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Mastral, Daniel
Nephilim: águas escuras / Daniel Mastral. – Barueri, SP: Novo Século Editora,
2015.
1. Ficção brasileira I. Título.
15-00311 cdd-869.93
K
ilaim olhou fixamente para o fogo da lareira quando as chamas
ergueram-se altas e quentes, quase uma explosão. Ele permane-
ceu quieto, o fogo refletido nos olhos, enquanto buscava um con-
solo que não vinha. Por tantas vezes vira o fogo queimar nas cerimônias,
mas não apenas isso: do Fogo ele fizera parte. Quando Lucipher surgira
no meio das poderosas labaredas, o escolhera. A ele, Kilaim; que pudera
atravessar o braseiro em toda a sua extensão sem nenhum dano, legi-
timando sua paternidade. Seu poder havia crescido. Bastava um gesto
ritual, e o Fogo estava ali.
Um amigo.
Ele expirou alto, o ar rodopiando para fora de sua boca, e tentou eli-
minar o desconforto. Em vão. Os olhos negros e profundos de abismo,
completamente imóveis, continuaram refletindo a dança das chamas en-
quanto, no mesmo compasso, a dança dos sentimentos ia e vinha sem
que ele a conduzisse, aleatória e cortante, as sensações imbricando-se,
engolindo-o. Aquela mistura rançosa que borbulhava dentro dele conti-
nuava cheirando mal, como uma fruta apodrecendo ao sol.
Algo estava pesado. O quê, exatamente, ele não sabia precisar; na ver-
dade era uma somatória. Para começar, estar afastado da Organização
o humilhava; e havia aquela dor pela morte de Camille, ainda latejante.
Ela deixara na lembrança o seu brilho, mas não tornaria a andar sobre
esta terra, nunca mais. Havia também o pesar de ter que deixar a casa
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Quanto Kilaim ficou ali, ao lado da lareira, era difícil dizer. Ele já deveria
estar em casa de signore Arthuro há tempos. Ali ele passara as últimas
noites desde o falecimento de Camille. O patriarca da família pratica-
mente o obrigara a ir, afinal “uno bambino de catorze anos não vai viver
sozinho, não importa sua aparência”. Kilaim aquiesceu. Sentia muito can-
saço, estava sem forças para discutir. Que decidissem sua vida conforme
julgassem melhor, ele não queria pensar.
Aquele estranho cansaço dos últimos dias o invadia de novo agora, pe-
sado e hipnótico. Seus membros pareciam congelados. Mesmo assim ele
se arrastou até o sótão, que estava com a porta fechada. Não entrara no
atelier desde a noite da morte de Camille, e abriu a porta devagar, entrou
com passos suaves, quase com reverência. Não acendeu nenhuma luz.
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