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DUPLOS E FANTASMAS:

ENTRE O REAL E O INSÓLITO EM MÉLIÈS

Giordano Dexheimer Gil / Universidade Federal do Rio Grande do Sul

RESUMO
O presente artigo pretende analisar a relação semântica entre a imagem fotográfica e o
conceitos do duplo e do fantasma, identificados em diversas tendências culturais do século
XIX, da literatura romântica até o gênero das farsas fotográficas espirituais, e colocados em
paralelo com o cinema de George Méliès, em uma maneira de repensar o conceito de
realidade.

PALAVRAS-CHAVE
Fantasma; Doppleganger; Fotografia; George Méliès

ABSTRACT
The preset article intends to analyze de semantic parallel between the photographic
image and the concepts of doppleganger and the phantom, identified in several
cultural tendencies of the 19th century, from the gothic romantic literature until the
spiritualist photo hoaxes, putting them in the light of George Méliès' cinema, in a way
to rethink the concept of reality.

KEYWORDS
Ghosts; Doppleganger; Photography; George Méliès

O século XIX, na cultura ocidental, construiu-se através de uma


tapeçaria de oposições e dialéticas entre o progresso industrial e a nostalgia
histórica, manifestada em diferentes áreas da experiência humana. No
entanto, a tensão entre a realidade e a ilusão também é digna de nota,
impulsionada pelos avanços tecnológicos da reprodutibilidade da imagem
que mudaram os regimes de visibilidade que orientam a compreensão
humana daquilo que é real e daquilo que é virtual. Não se trata,
necessariamente, de mera repaginação da repulsa platônica pelas artes
miméticas, mas de uma transformação ainda mais endêmica, que, no século
seguinte, completa a tarefa de recolocar as representações ilusórias no
epicentro do sistema cultural no lugar dos representados.

Em Le Portrait Mystérieux. Méliès apresenta-se como um mágico, com


gestualidades típicas do ilusionista e vestes como as de um dândi. Mostra
uma moldura vazada, e faz questão de atravessá-la para nos provar que é
vazada. Monta um cenário atrás dela, coloca ali um banco. Sem tocar em um
pincel, apenas com gestos que lembram os de um maestro, o personagem
faz surgir no quadro uma figura idêntica a si mesmo. Num primeiro momento,
a figura é estática, bidimensional, e aos poucos o autorretrato começa a
mover-se e discutir com o retratado, até que o pintor, repetindo os gestos
iniciais, torna-o um borrão de tinta, e o faz desaparecer numa tela preta.

Still de Le Portrait Mystérieux


(1903), em que Méliès encarna
um pintor dotado de poderes
mágicos, reproduzindo um
duplo seu que ganha vida e
interage com o autor. Além da
metalinguagem e da própria
relação estabelecida entre
pintura e cinema, o cineasta
também importa a temática do
duplo, recorrente na literatura
ocidental do fin de siécle.

O duplo é um dos temas mais arcaicos na cultura visual e narrativa da


humanidade. Segundo Edgar Morin, o tema teria sido potencializado a partir
das dúvidas do homem quanto a seu reflexo e quanto a sua sombra: uma
imagem fundamental de sua forma física, anterior à consciência íntima de si
mesmo:

Antes de projetar nele seus terrores, o homem primeiro fixou no duplo


todas as ambições de sua vida - a ubiquidade, o poder de metamorfose, a
onipotência mágica - e a ambição fundamental de sua morte: a
imortalidade. [...] O duplo é sua imagem, ao mesmo tempo exata e
irradiando uma aura que o ultrapassa: o seu mito. Reciprocamente, a
presença originária e original do duplo, no limiar da humanidade mais
recuado que possamos imaginar, é o sinal primeiro, irrecusável, da
afirmação da individualidade humana... é o esboço fantástico da construção
do homem pelo homem.
(MORIN, 2014, p. 44-45)

Essa afirmação paradoxal da individualidade através do duplo


acompanha a arte performática da mágica de palco nas suas modalidades
ópticas, mas o conteúdo semântico das ações que lidam com esse elemento
fazem eco às mesmas tradições que movem o fascínio literário pelo tema.
Conseguimos percebê-lo nas mais variadas fábulas moralizantes alemãs nos
contos populares que evocam a figura do doppleganger. Na literatura,
encontramo-lo nas novelas alegóricas de Dostoyevsky, O Duplo, e também
em José Saramago, O Homem Duplicado, ambos sobre homens impotentes
ou assombrados frente à contemplação de seus duplos. De maneira indireta,
esse assunto é trabalhado no Dorian Gray de Oscar Wilde, e em contos
como O Homem de Areia, de E. T. A. Hoffmann.

A concepção freudiana do conceito do unheimliche, o familiar


desfamiliarizado ou o inquietante, a partir do já citado conceito de Hoffmann,
nos serve para compreender como o estranhamento do corpo semelhante,
porém externo, distorcido, evoca pulsões do inconsciente. Daí a sensação
paradoxal de atração e repulsa da retina que esse tipo de narrativa gera no
leitor ou espectador. Segundo o historiador da arte John C. Welchmann, esse
conceito do unheimliche, traduzido também como sinistro ou o estranho,
baseia-se no resultado da soma de duas visões, uma imediata, quase
inconsciente, e outra mais estabelecida, analítica e reflexiva:

À primeira vista, pensa-se que há algo reconhecível -


um corpo, um pedaço de objeto, uma memória, uma
obsessão, um medo. A segunda confirma, em graus
variados, que a primeira impressão não era
exatamente o que parecia, mas a familiaridade nunca
é completamente eliminada. Como se verá adiante, a
visão sinistra é uma amálgama de familiar e
desfamiliar, um híbrido de visão perturba e visão
racional, que complica ou traumatiza pontos de vista
que giram entre corpos reais e imaginários, passados
e presentes, viscerais ou virtuais.

(WELCHMAN in: BREA, 2008, p. 314)

Esse conceito psicanalítico paradoxal pauta, por exemplo, a relação de


estranhamento com imagens humanas distorcidas, como anomalias, ou
artificializadas, como figuras de cera, manequins, robôs, autômatos, escultura
e computação gráfica hiperrealista. Determina, também as razões pelas quais
o duplo perturba, como tema e forma, e de que maneira esse conceito dobra
a realidade reconhecível, levando o observador a um questionamento sobre
os limites da natureza do real.
Também a psicologia analítica de Carl G. Jung convoca a visualidade
do duplo na análise do arquétipo da sombra na sua estratégia de utilizar
elementos do mundo material para descrever fatos psíquicos. Assim como
na metáfora histórica que invocamos anteriormente, Jung também vale-se da
simples ideia da óptica, de que a luz gera áreas escuras. Assim como
qualquer luz brilhante sempre projeta sombra em algum lugar, na Psicologia
Analítica, o brilho da consciência do eu sempre projeta uma sombra sobre a
personalidade de um indivíduo, uma sombra que tem a mesma relação com o
poder e as potencialidades do eu que um negativo fotográfico tem com a foto
em si.
A lendária sessão de Chegada do Trem à Estação de La Ciotat em
janeiro de 1896 não marca a gênese dos debates que circundam a imagem
em movimento, mas sim um ponto crucial para discussões que já vinham em
pauta ao longo do século. Conta a anedota extremamente difundida na
historiografia do cinema que houve um susto e um torpor coletivo, um medo
de que o trem saísse da tela e atropelasse os espectadores desatentos teria
levado alguns aos gritos e outros a correrem para fora da sala de exibição1.
Um rumor, ao que tudo indica, bastante impreciso, mas não por isso menos
revelador. É como se o cinema, ao nascer, já gerasse seu próprio mito
equivalente às uvas de Zêuxis que ludibriavam passarinhos. Tal qual a
narrativa contada por Plínio, a glória do cinema parecia ser a ilusão perfeita.
A vitória do doppleganger do trem contra o verdadeiro trem.

A mistificação da condição mimética, plana e inerte do retrato


fotográfico é comum a diversos povos e não é exclusivo da fotografia - outras
representações miméticas, como a pintura e a escultura, também geraram
variados mitos, narrativas e superstições.

A arte representa, em todas as culturas, animais em duplicata


(serpentes, dragões, leões, etc. ). Segundo Jean Chevalier e Alain
Gheerbraant, não é mera preocupação com simetria ornamental, mas um

1
Reação semelhante percebemos no caipira no curta The Countryman and the Cinematograph,
realizado por R. W. Paul em 1901, apenas seis anos após a sessão dos Lumiére. assusta-se e corre ao
deparar-se com a projeção de um trem vindo em sua direção.
indício da relevância simbólica das dualidades. As religiões tradicionais
concebem geralmente a alma como um duplo do homem, que pode separar-
se do corpo com a força da morte dele, ou no sonho, ou por força de uma
operação mágica, e reencarnar-se no mesmo corpo ou em outro. A
representação, portanto, que o homem faz de si mesmo é desdobrada. O
romantismo alemão deu ao Duplo (doppelgänger) uma ressonância trágica e
fatal. O encontro com o duplo é visto como acontecimento preocupante ou
mesmo nefasto, e não apenas na tradição literária germânica, mas ao longo
da História da Cultura, do reflexo no mito de Narciso à repercussão midiática
da clonagem da ovelha Dolly no final do século XX.

O diálogo entre as práticas fotográficas e cinematográficas e a


psicanálise soa inevitável: são frutos da mesma pulsão cultural que permeou
o século XIX, na dialética entre as luzes da ciência e tecnologia, e as áreas
de sombra geradas por essa "iluminação". Segundo o pesquisador Arlindo
Machado, tanto a genealogia da reprodutibilidade técnica da imagem quanto
a investigação do inconsciente buscam realizar a fusão da ciência com o
irracional: são máquinas e métodos positivistas a serviço do delírio do espírito
(MACHADO, p. 37). Machado nos coloca que as fantasias do desejo e o
trabalho das pulsões começam a reivindicar o estatuto de plena cidadania no
compasso em que Freud as expunha e Méliès as transformava no lúdico e no
feérico.

A ligação entre Freud e a fotografia é exposta também pelo próprio


autor em seu A Interpretação dos Sonhos, quando opta por uma metáfora
óptica para explicar a complexidade de nossa atividade psíquica,
comparando-a a um "microscópio composto ou aparelho fotográfico desse
tipo". A sugestão de que encaremos o inconsciente como uma câmera
invertida que registra o interior da maquinaria de nosso imaginário, que
enxerga apenas as imagens produzidas em seu interior gera inúmeros
questionamentos quanto a essa relação. Afinal, a pulsão escópica descrita
por Freud é constituída pelo ato de olhar tanto quanto o ato fotográfico ou
cinematográfico.
No entanto, na fotografia e no cinema, a duplicação ou substituição do
sujeito pela imagem ou da imagem pelo sujeito divorciou-se do sentimento do
nefasto apesar de ainda ser visto de maneira cautelosa por determinados
grupos que, num ato platônico, parece rejeitar a cópia em nome daquilo que
se refrata do real para o virtual.

O primeiro sinal de duplicação, de fato, é reagir, por


mínimo que seja, diante de nós mesmos. Geralmente
rimos, e o riso indica mais que surpresa. É a reação
polivalente da emoção. Pode significar
sucessivamente ou ao mesmo tempo um
deslumbramento infantil, um incômodo, uma vergonha
disfarçada, a impressão repentina de nosso próprio
ridículo. Orgulho e vergonha, vergonha do orgulho,
ironia para nosso cândido deslumbre, nos risos diante
da autoimagem cinematográfica há um misto de
espanto, admiração, incômodo, estranhamento.

(MORIN, Edgar. 2014, p. 57)

A força da atração da fotografia e do cinema não tarda a se sobrepor


ao receio e ao medo desses aparatos tecnológicos em suas funções
populares, ainda que tenha havido forte resistência erudita que, em suas
primeiras reações às tecnologias, parece num primeiro momento fazer eco à
rejeição platônica às artes miméticas. É notória, por exemplo, a reação do
romancista Maxim Gorky ao cinema:

Noite passada, estive no reino das sombras. Se vocês


pudessem imaginar o quão estranho é estar lá. É um
mundo desprovido de som e cor. Tudo nele - água,
terra, árvores pessoas, água, ar - encontra-se
mergulhado num cinza monótono... Não se trata da
vida, mas de sua sombra... E tudo isso em meio a um
absoluto silêncio.

(GORKY in: STAM, 2008, p. 34)

Como a luz que gera áreas de sombra, o êxtase das imagens


fotográficas e cinematográficas como cópias perfeitas de nosso mundo
material também gera suas contrarreações negativas, que denunciam a falsa
fidelidade das imagens artificialmente construídas. Edgar Morin também nos
fala que a arte da fotografia, como imagem física enriquecida com qualidade
psíquica, é um sistema de sombras e reflexos e que, justamente por isso,
uma das qualidades emocionantes da foto está ligada a uma qualidade
latente de duplo, um halo fantástico que a envolve. Não à toa, o reflexo em si
foi um elemento recorrente na trajetória da fotografia em direção à sua
legitimação: trata-se de um elemento que, por si só, denuncia a essência
primordial da fotografia.

SILVY, Camille (1834 - 1910)


As Senhoritas Booth, 1861.
albúmen a partir de negativo de vidro em
colódio úmido.
8,5 x 5,5 cm.

A foto demonstra o uso do espelho na


construção imagética de um retrato
fotográfico em meados do século XIX.
Trata-se de uma obra que acaba
denunciando o halo insólito do duplo, um
elemento primordial no ato fotográfico e na
contemplação da imagem.

O historiador da arte J. T. Mitchell relaciona essa relação entre sujeito


e imagem a três mitos clássicos descritos por Ovídio em suas Metamorfoses:
o já citado Narciso, jovem apaixonado pelo próprio reflexo; Pigmalião, o
escultor que apaixona-se pela mulher esculpida por si próprio, que
eventualmente ganha vida pelas mãos de Afrodite; e a Medusa, cujo olhar
petrificante acaba sendo vencido graças ao uso do seu reflexo por Perseu.

Interessa-nos aqui o Narciso e a Medusa, atingidos negativamente


pelo encontro com seus duplos ilusórios. A partir desses mitos, Mitchell
afirma que as imagens estarão sempre conectadas à pulsão do desejo. No
olhar da Medusa, acontece o inverso da escultura de Pigmalião: o sujeito que
se movimenta torna-se imagem estática, como no ato fotográfico. No entanto,
o destino dela varia de uma versão do mito para outra. Em uma, seu reflexo
mantém os poderes da petrificação, e esse poder vira-se contra ela quando
depara-se com sua própria imagem. Em outra, Perseu consegue enxergá-la
através da imagem, mas imune à petrificação, pois não é mais a Medusa,
apenas seu reflexo. Essas duas versões nos entregam diferentes reflexões
sobre o ato fotográfico e o que se mantém entre o sujeito real e o sujeito
virtual. Uma entende como a duplicata perfeita, inclusive em essência, e
outra como a cópia estéril, oca.

Se o poder da Medusa tem paralelo com o do ato fotográfico, o do


reflexo de Narciso se conecta à ilusão cinematográfica. E é aqui que
voltamos ao Retrato Misterioso, de Méliès, em que o próprio ilusionista cria
seu duplo, que por sua vez, cria seu próprio duplo. No entanto, o primeiro
Méliès diegético apresenta-se como detentor do poder de animar sua
imagem e de apagá-la também, como que reivindicando para o dispositivo o
poder quimérico de produzir e manipular miragens.

É notável, ainda, que o cineasta invoque uma legitimação do universo


da pintura - a presença da moldura e o gênero do retrato - para elaborar a
trucagem. Essa escolha de elementos legitimadores típicos das belas artes
academicamente reconhecidas traz consigo diferentes questões. Uma delas
é o escárnio com os limites da mímese. A obra de arte que imita tão bem o
objeto retratado que chega a superá-lo em perfeição é um tema recorrente na
historiografia desde as uvas pintadas por Zêuxis, tão belas que, segundo
Plínio, atraíam passarinhos desavisados, chegando até a anedota altamente
difundida de que Michelangelo, diante de sua escultura de Davi, ordenou
"Parla!" como se a imagem artificialmente elaborada fosse imbuída de vida,
tal qual uma Galateia ou um Pinocchio. Mesmo com a invenção do cinema,
espalha-se a lenda de que os espectadores fugiram do trem filmado pelos
Lumiére. Todas essas narrativas indicam a obsessão clássica pela mímese
perfeita e, de certa forma, o personagem interpretado por Méliès, seu alter-
ego, demonstra-se não só quase capaz de realizar o sonho de Michelangelo
ao fazer seu autorretrato ganhar vida (ainda carece da fala sonhada pelo
italiano), mas também capaz de fazê-lo sumir, assumindo a ilusão.

Outro debate levantado pelo paralelo com a pintura imposto pelo


francês é a própria noção de representação que vinha sendo superada desde
meados do século XIX, e que, nesse momento da virada, começa a indicar
caminhos de esvanecimento em face da distorção, da subjetividade e da
abstração.

Assim, trata-se de um filme de um minuto sobre um truque de


duplicação, ou seja, nessas aproximadamente 960 fotografias dispostas em
sequência para garantir a ilusão de movimento, Méliès é, além de Narciso,
Medusa, pois "petrifica-se" em cada um desses quadros, e também é ao
mesmo tempo Pigmalião, Galateia e a própria Vênus, pois "dá vida" a uma
imagem que logo "dá vida" a uma outra imagem.

A relação do cineasta ou do fotógrafo com uma deidade traz à tona,


novamente, que o problema das imagens animadas é, mais uma vez, o
problema da transmissão de imagens. Segundo o filósofo alemão Friedrich
Kittler, os deuses antigos, pelo simples fato de serem estátuas imóveis em
templos, encontraram uma solução fácil: seus reflexos, duplicações e
transformações, que satisfaziam as mesmas intenções eróticas do filme de
entretenimento, preenchem o imaginário narrativo de sua época.

Assistir Le Portrait Mystérieux hoje, mais de cinquenta anos após a


morte do autor da obra e duplamente astro principal, levanta a ideia da arte
fotográficas como embalsamadora do tempo, defendida por André Bazin, e
que soa como óbvia, mas à luz do conceito do duplo, ganha outro contorno: a
noção de que o original se foi e restará somente as cópias, os inúmeros
dopplegangers auto-concebidos por Méliès. São eles que habitam o nosso
imaginário fotográfico, não o original. O filme não embalsama o tempo, mas o
fantasmagoriza. Realiza, enfim, aquela obsessão de capturar fantasmas em
imagem fotográfica, prática extremamente popular no século retrasado.

O radical da palavra fantasma pertence à mesma raiz que a palavra


fantástico, e a percebemos no conceito grego de phantázein, o fazer
aparecer, que, por sua vez, deriva-se de phaínein, o mostrar. Não
coincidentemente, essa etimologia conecta-se à palavra grega phos, a luz,
pois a presença dessa onda eletromagnética nos mostraria aquilo que há
para ver.
Foto de set de Méliès como medium espírita
invocando uma aparição em imagem do filme WILLIAM H. MULLER,
fotografia de Mary Todd Lincoln
perdido Apparition de Phantom (1903). Neste,
com o fantasma de Abraham
assim como em outros filmes do cineasta, Lincoln. 1869. Allen County
percebemos a tradição da transparência como Public Library, Fort Wayne,
índice de sobrenaturalidade, de existência Inglaterra.
etérea e não material. A transparência
esfumaçada para representar a vida após a
morte sofre direta influência da técnica de
dupla exposição das farsas fotográficas da
fotografia espiritual, como vemos no exemplo à
direita.

No século XIX, o crescimento de correntes espiritualistas, como o


próprio espiritismo kardecista, assim como a formação do romance gótico,
construíram um imaginário acerca da vida após a morte diferenciado das
ideias que haviam até então. A fotografia, por exemplo, através da
descoberta do efeito da dupla exposição, foi capaz de estimular a iconografia
da transparência para as aparições sobrenaturais.

Jim Steinmeyer, que estuda as tipologias de efeitos e trucagens nos


espetáculos feéricos do século XIX, relaciona a moda das fantasmagorias
com as consequências da Revolução Francesa, e do sangrento capítulo do
Terror de Robespierre. Relata o autor que em 1794, com a memória da
guilhotina ainda viva nos parisienses, os cidadãos foram convidados para
uma apresentação um tanto peculiar. Um grupo de aproximadamente 60
espectadores se reuniu em uma pequena sala no Pavilhão de L'Echiquier,
que foi decorado com cortinas negras e mesas com velas. Segundo a
descrição do autor, baseada em um jornalista do periódico L'Ami de Lois, o
público silenciou-se com a entrada do apresentador Ètienne-Gaspard
Robertson, que começou a apagar todas as velas. Em sua oratória,
prometeu trazer os mortos de volta à vida, e pedindo aos espectadores que
chamassem pelos seus falecidos. Robertson, após uma performance com
gestualidades e elementos típicos do charlatanismo, produziu nuvens de
fumaça branca, e nessa névoa projetaram-se imagens de corpos
coreografados, em trajes elegantes da época, outros em formas de demônios
e esqueletos, e ainda retratos de Robespierre, Marat e Danton. Segundo o
mesmo jornalista, a recepção do público foi ambígua, nada homogênea: uns
riram, outros se assustaram, houve inclusive quem reconheceu seus
familiares nas imagens desfocadas projetadas.

Frontispício do volume 1
de Mémoires récréatifs,
scientifiques et anecdotiques du
physicien-aéronaute E.G.
Robertson (1831). Na legenda, lê-se
"Fantasmagorie de Robertson dans
la Cour des Capucines en 1797"

Stefan Andriopoulos constrói essa relação do idealismo alemão com


as fantasmagorias, tanto no geist (espírito) hegeliano quanto no erscheinung
(aparição) e no blendwerk (miragem) do pensamento kantiano e, mais além,
na fantasmagoria cerebral descrita por Schopenhauer. Em determinado
capítulo do seu Aparições Espectrais (2014), o autor chega a utilizar a
seguinte frase de Kant como epígrafe: ilusão é o tipo de miragem que
persiste mesmo quando se sabe que o suposto objeto não é real (KANT apud
ANDRIOPOULOS, 2014, pag. 27). Em sua teoria do cinema, Morin
compreende que, nesse estado onírico de antecipação, o mundo do filme
torna-se o mundo dos espíritos ou fantasmas, tal como ele se manifesta num
grande número de mitologias arcaicas: mundo aéreo, onde navegam
espíritos onipresentes. "A tela dissolve no espaço, os fantasmas estão em
toda parte" (MORIN, 2014, p. 34).

Robertson trabalhou a partir das lanternas mágicas, um aparelho


construído por bulbo, lente e chama a óleo, escondendo-as do público, e
através delas, projetava na névoa slides de gravuras operadas em uma
máquina que permitia que se movimentassem. Trata-se de uma anedota que
funciona, portanto, como alegoria do nascimento dessa modernidade a partir
do iluminismo, que, não à toa, tem como um dos herdeiros o idealismo
alemão hegeliano, que enxerga na conjuntura o conceito do espírito do
tempo, o geist, corrente que Andriopoulos relaciona diretamente aos
fantasmas ópticos e à literatura sobrenatural. Com a distância temporal, fica
evidente que o Século das Luzes, como toda iluminação, gera áreas de
sombras. O sucesso das fantasmagorias nesse período conturbado encontra
um eco na virada de século seguinte, na invenção do cinematográfo, quando
essas assombrações voltam a ser conjuradas, e com elas, desperta-se a
dialética entre realidade e ficção como protagonista do debate estético.

BIBLIOGRAFIA:

ANDRIOPOULOS, Stefan. Aparições Espectrais: O Idealismo Alemão, o Romance Gótico e


a Mídia Óptica. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2014.

CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José
Olympio. 1999.

CRARY, Jonathan. Técnicas do Observador: Visão e Modernidade no Século XIX. Rio de


Janeiro: Contraponto Editora, 2012.

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Janeiro: Contraponto Editora, 2012.

FREUD, Sigmund. The Uncanny. Londres: Penguin UK, 2003.

JUNG, Carl Gustav. O Homem e Seus Símbolos. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998.

KITTLER, Firedrich. Mídias Ópticas: Curso em Berlim, 1999. Rio de Janeiro: Contraponto,
2016.

MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas e Pós-cinemas. Campinas: Papirus Editora, 2011.

MORIN, Edgar. O Cinema ou o Homem Imaginário. São Paulo: É Realizações, 2014.

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