Você está na página 1de 176

MICHELLE SALES [ORG]

À MARGEM
DO CINEMA
PORTUGUÊS
MICHELLE SALES [ORG]
À MARGEM
DO CINEMA
PORTUGUÊS
Título Agradeço a generosidade com que os artistas Agradeço gentilmente à leitura atenta de
À Margem do Cinema Português envolvidos neste projeto receberam-me: Ana Cristina Pereira e Jusciele Oliveira, parceiras
Vanessa Fernandes, Hamilton Trindade, nesta empreitada e também os demais
Organização
Welket Bungué. Silas Tiny, Pocas Pascoal, investigadores deste projeto que colaboraram,
Michelle Sales Ângelo Torres, Ana Tica, Filipe Henriques. de maneira fundamental, ao longo de 2019 - 2020:
Design Este projeto de pesquisa não poderia ter sido Paulo Cunha, Liliane Leroux, Sérgio Dias Branco,
Esfera Similar realizado sem o apoio incrível da equipe técnica Maíra Zenun. E a presença, parceria e sugestões
envolvida, nomeadamente: Jorge Cabrera de Pedro Pousada, mais do que necessárias:
ISBN (assistência curadoria), Ana Isabel Albuquerque incontornáveis. Obrigada aos colegas do Colégio
978-989-54713-1-7 (revisão), Cristina Lopes (paginação), Maria João das Artes, pela possibilidade de conclusão deste
Dep. Legal Marques (transcrição), Gabriel Paixão (transcrição) trabalho: José Maças de Carvalho, António Olaio.
e Nay Araújo (transcrição e produção), assim Obrigada ao apoio imprescindível da Fundação
467627/20
como Sara Carregado (filmagem e pós-produção), Calouste Gulbenkian e da Universidade de Coimbra.
Ano de Edição Francisco Oliveira (filmagem), Fabrício Cavalcanti Um aperto nos mais próximos, para quem isto tudo
2020 (foto/ pós-produção), Paulo Cunha (Mostra). faz valer a pena: Fabrício, Thais e Gael.
Fornecedor
NOZZLE,LDA
9 75 127
PREFÁCIO ANA TICA FILIPE HENRIQUES
ENTREVISTA REALIZADA POR ENTREVISTA REALIZADA POR
11
MICHELLE SALES MICHELLE SALES
A TERCEIRA MARGEM
DO CINEMA PORTUGUÊS 85 141
MICHELLE SALES LOLO ARZIKI ÂNGELO TORRES
ENTREVISTA REALIZADA POR ENTREVISTA REALIZADA POR
19
ANA CRISTINA PEREIRA MICHELLE SALES
WELKET BUNGUÉ
ENTREVISTA REALIZADA POR 91 163
MICHELLE SALES E ANA CRISTINA PEREIRA QUEBRANDO SILÊNCIOS: HAMILTON TRINDADE
O CINEMA NEGRO DE VANESSA FERNANDES ENTREVISTA REALIZADA POR
35
ANA CRISTINA PEREIRA E CARLA CERQUEIRA MICHELLE SALES E ANA CRISTINA PEREIRA
O PÁSSARO-ESPELHO
MICHELLE SALES 101 171
VANESSA FERNANDES O CIRCUITO EXIBITIVO DO
41
ENTREVISTA REALIZADA POR CINEMA NEGRO PORTUGUÊS
SILAS TINY
MICHELLE SALES E ANA CRISTINA PEREIRA MICHELLE SALES
ENTREVISTA REALIZADA POR
MICHELLE SALES E ANA CRISTINA PEREIRA 113 175
“A GUINÉ-BISSAU NOTA BIOGRÁFICA
57
OFERECE-ME INSPIRAÇÃO,
CINEMA NEGRO FEMININO EM PORTUGAL
PORTUGAL PROFISSÃO”:
MICHELLE SALES
O TEMPO DOS MORTOS
63 E DOS VIVOS NO DRAMA
POCAS PASCOAL DE TERROR LUSO-GUINEENSE
ENTREVISTA REALIZADA POR O ESPINHO DA ROSA (2013),
MICHELLE SALES DE FILIPE HENRIQUES
JUSCIELE OLIVEIRA
PREFÁCIO
Este projeto, financiado pela Fundação Calouste margem do cinema português contemporâneo,
Gulbenkian, enquadrou-se nas iniciativas do questionando inclusive a própria ideia de
Grupo de investigação “Correntes artísticas e produção periférica ou marginal, uma vez que
movimentos intelectuais” do Centro de Estudos grande parte dos filmes que aqui trazemos
Interdisciplinares do Século XX (CEIS20) da consolida, em torno dos próprios filmes e de
Universidade de Coimbra ao longo do ano de seus realizadores, novos “centros” de ativação
2019. Tal grupo tem reconhecida atuação no cultural, deslocando as velhas (novas) relações
campo dos estudos fílmicos, nomeadamente entre centro-periferia.
no campo da história do cinema, onde o De forma geral, este projeto de investigação teve
presente projeto se inseriu. A linha geral do como interesse central a inclusão historiográfica
grupo “orienta as suas investigações para as no cinema português dos filmes produzidos por
condições de afirmação de correntes artísticas portugueses afrodescendentes nos últimos anos,
e de movimentos intelectuais, implicados em nomeadamente a partir do ano 2000 e a reflexão
processos de produção de imaginários políticos cultural sobre a existência do cinema negro
e de reconfiguração social. O Grupo valoriza português. Pensar uma produção periférica num
as ocorrências portuguesas do século xx e contexto fortemente institucionalizado como
já agora também do século xxi, acompanha é o campo cinematográfico português produz
as transformações conceituais e políticas da per se reverberações políticas no campo do
cultura, analisa as redes de intercâmbios com cinema. Não é fácil separar aquilo que fazemos
correntes artísticas e movimentos intelectuais como investigação daquilo que propõe um
de outras proveniências, estuda a inscrição intelectual ativista antirracista, por exemplo.
das circunstâncias portuguesas nas grandes Entendemos que a disputa pela inclusão
mutações contemporâneas e desenvolve o historiográfica de filmes feitos por realizadores
trabalho teórico necessário para pensar a in- afrodescendentes faz parte de uma ampla luta
atualidade do presente.” histórica e social pela visibilidade do racismo
Dessa forma, como investigadores da história do estrutural no campo cultural português (mas não
cinema, entendemos a necessidade de estudos só) e pela inclusão identitária de grupos étnicos
sobre o que está a ser produzido numa certa minoritários, tão importantes na constituição
do tecido social de um país multirracial como é investigadoras Ana Cristina Pereira (em parceria
Portugal. Apontamos nesta investigação, que com Carla Cerqueira) da Universidade do
aqui encontra seus desdobramentos, a maneira Minho, e Jusciele Oliveira, da Universidade do
com a qual tal produção cinematográfica persiste Algarve, ambas investigadoras deste projeto.
numa certa marginalidade institucional do Por fim, incorporamos nesta publicação todas
campo cinematográfico português canônico, as entrevistas realizadas de forma integral.
uma vez que grande parte destes filmes Esperamos que suas falas ecoem em novas
configuram produções independentes, por produções e ativem zonas de circulação de
vezes levadas a cabo sem financiamento ou obras, realizadores e afetos.
esquemas formais de produção, circulação
e distribuição cinematográfica. É também
sintomático que grande parte dos realizadores
aqui abordados tem trazido em seus filmes
temáticas relacionadas ao colonialismo,
à memória colonial, e à identidade afro-
portuguesa ou mesmo afro-europeia, temas
que, muito recentemente, tornaram-se afluentes
de um acentuado interesse acadêmico e um
número relevante de produção intelectual a
elas relacionada. Entre os realizadores, este
projeto debruçou-se na obra de: Silas Tiny,
Vanessa Fernandes, Welket Bungué, Hamilton
Trindade, Ana Tica, Mário Monteiro, Lolo Arziki,
Filipe Henriques, Ângelo Torres e Pocas Pascoal.
Apresentamos, aqui, leituras de alguns de seus
filmes, não se tratando de um panorama deste
cinema, mas de uma abordagem provisória,
capaz de alimentar novas análises, novas
perspectivas críticas e futuros desdobramentos.
Incluímos, nesta edição, a contribuição das
A TERCEIRA MARGEM
DO CINEMA PORTUGUÊS
MICHELLE SALES

Este artigo relaciona diferentes textos anteriores, como cinema negro uma postura conceitual
produzidos entre 2018 e 2019, expandindo-os para expressar a diferença de uma nova posição
e também alterando-os, e é resultado também sociocultural do afrodescendente, no sentido
de um encontro mais direto com os realizadores de construir uma imagem afirmativa do negro
afrodescendentes, pois insere-se no contexto e de sua cultura. Além disso, a busca é não
em que estava a realizar as entrevistas que apenas pela representatividade, ou seja, pela
constituem este livro. construção de narrativas e imaginários cujo
negro ou negra é fio condutor, mas também

a busca negociada pelo protagonismo –
A conjuntura social e política de crise pós-II ocupando o lugar de quem fala. Ao contrário
Guerra Mundial permite a ascensão internacional da cinematografia oficial nacional que era
de um movimento de massas que traz como produzida no âmbito do movimento do Cinema
inflexão a questão urgente do racismo. A luta dos Novo no Brasil, surgem cineastas negros como
negros pelos direitos civis nos Estados Unidos Zózimo Bulbull, Luiz Paulino dos Santos e Adélia
da América, a crise ética do regime do Apartheid Sampaio que colocam em crise a representação
na África do Sul, bem como as lutas pela do povo negro e passam a negociar novos
descolonização dos países africanos culminam regimes de visibilidade para os negros, negras e
numa ampla frente de resistência que faz surgir afrodescendentes no Brasil.
o Movimento Negro Unificado, em meados dos
Tal situação irrompe no cinema português
anos 1970.
tardiamente, ou, melhor, a partir dos anos 2000,
O cinema negro, embora tenha raízes mais quando, a partir da segunda ou terceira geração
profundas, irá ampliar-se e aprofundar sua de portugueses afrodescendentes radicados
atuação na década de 1970 ao redor do mundo em Portugal – a maioria com formação escolar
movido por esse contexto sociocultural, como europeia –, uma nova produção cinematográfica
é o caso do Brasil. De forma ampla, define-se
A TERCEIRA MARGEM DO CINEMA PORTUGUÊS 12

passa a ser produzida, dessa vez, por inquestionado. Um certo imaginário visual aqueles que até então estavam imobilizados em
realizadores que colocam em crise a identidade da população afrodescendente portuguesa espaços de visualidade subalternos.
nacional e a memória do colonialismo, impondo foi sendo, pouco a pouco, sedimentado na Não iremos avançar na análise fílmica de obras
uma visão construída por um olhar opositivo (bell historiografia do cinema português a partir da produzidas após o 25 de Abril e que começam
hooks, 2003). Localizamos aqui esta produção projeção de filmes como Casa de Lava (1994), de por dar a ver esta complexidade sociocultural
fílmica como uma terceira margem, já que, se Pedro Costa, e também Zona J (1998), de Leonel na qual Portugal se insere a partir daí. Portanto,
hegemonicamente a produção cinematográfica Vieira. também é um fato que a representação do negro
realizada em Portugal é dominada por homens
Muitos dos realizadores afrodescendentes que no cinema português e a relação de diretores
brancos, a segunda margem estaria composta
aqui apontamos têm a diáspora familiar como portugueses com temáticas pós-coloniais
por mulheres brancas portuguesas, como
metáfora de origem e grande parte de seus filmes não é recente, aliás, é bem próprio do período
sustenta a investigadora Ana Catarina Pereira
circula em torno de questões como memória, pós-revolucionário, mas mais especificamente
(2015), restando, dessa forma, uma alternativa do
identidade, representação, pertencimento e da geração que surge nos anos 1990. Nomes
“lado de fora”, uma terceira margem, para uma
origem. A maior parte dos realizadores nasceu como Pedro Costa, Margarida Cardoso, e os
produção fílmica marcada pela racialização de
em Portugal (ou viveu desde a primeira infância) mais recentes Filipa César, João Miller Guerra
corpos negros.
por conta dos tais deslocamentos forçados que e Filipa Reis, e até mesmo Miguel Gomes, têm
A matéria de Joana Gorjão Henriques, de 13 a guerra colonial produziu e que o colonialismo sua trajetória artística também vinculada
de abril de 2018, publicada pelo jornal Público, português reforçou. à relação de Portugal com os portugueses
intitulada Há um cinema negro em Portugal?, afrodescendentes e com a memória e trauma do
O fim do colonialismo português (e de uma
aponta uma interessante cartografia de período colonial.
longuíssima ditadura, esgarçado por uma
realizadores em atuação em Portugal, bem como
sangrenta guerra colonial (1961-1974) trouxe De forma geral, ainda que esta discussão seja
um breve olhar sobre seus filmes. O citado artigo
para Portugal importantes fluxos populacionais, mais ampla, queremos refletir não acerca da
de Joana Henriques insere-se num novo campo
marcados por segregação, invisibilidade, novas representação do negro no cinema, mas pensar
de atuação cultural português em que jovens
e complexas identidades híbridas, inserindo em representatividade e inclusão ativa de vozes
realizadores afrodescendentes conseguem
no tecido social português os “retornados”, afrodiaspóricas no contexto cinematográfico
ocupar o posto narrativo e lançar novos olhares
os ex-combatentes de guerra, os refugiados, português. Interessa-nos pensar a forma com a
sobre o cinema português.
os ex-colonizadores e os ex-colonizados. Este qual realizadores portugueses afrodescendentes
Até ao surgimento dessa “geração”, a qual complexo tecido social vai possibilitar surgir, despontam no campo do cinema português,
podemos intitular provisoriamente de cinema apenas na virada para o século xxi, um cinema de propondo novas dinâmicas de produção e
negro português, o espaço de representação do contra-representação, um cinema produzido por circulação de imagens além de temáticas
negro ou negra permanecia hegemonicamente voltadas para a descolonização dos corpos
13 MICHELLE SALES

e das vidas negras, transpondo o lugar da sociedade brasileira – qual seja: o colonialismo, tais como a memória da escravidão, o passado
representação para a auto-etnografia (Maréchal, o patriarcado e o racismo –, mais recentemente colonialista e a ocupação portuguesa de domínio
2010), auto-apresentação, autobiografia. Pois um debate semelhante começa a despontar político e exploração económica em África?
percebemos, e aqui ressaltamos, um novo em Portugal, ainda que de forma tímida ou Sobre a emergência de um cinema menor
contexto das poéticas contemporâneas em circunscrita em limites universitários, mas
Partindo do texto escrito por Deleuze e Guattari,
que a subjetividade pessoal do autor está auto- não menos latente. Parece-nos inversamente
Kafka – Por uma literatura menor, queremos
implicada na realização de seus filmes. proporcional a produção intelectual em torno
explorar o conceito “literatura menor” criado
da questão do racismo e do colonialismo em
Muito recentemente, o debate sobre racismo pela dupla de filósofos franceses e adaptá-lo ao
Portugal e a presença cultural efetiva de artistas
em Portugal aprofundou-se em diferentes contexto do cinema, posteriormente, propondo
e intelectuais negros e negras, inseridos no
frentes de atuação. Numa delas, além da uma reflexão semelhante com um suposto
imaginário simbólico e afetivo nacional. Um
revisão dos traumas e feridas do período “cinema menor”.
dos objetivos centrais deste projeto foi trazer à
colonialista, a produção intelectual de negros
tona este debate, mas sobretudo reinserir um Dessa forma, ao analisar a obra de Kafka,
e negras tem mantido aberta a questão sobre
volume consistente de filmes e realizadores pensando a maneira com a qual este autor
a inserção social, cultural, profissional e,
afrodescendentes na cinematografia portuguesa, explora e altera a “língua alemã de Praga”
sobretudo, representacional do povo negro e
redefinindo o cânone cinematográfico e o corpus metamorfoseando o sentido das ideais,
afrodescendente na sociedade portuguesa.
historiográfico do cinema português, além de desterritorializando a língua alemã para
Dessa forma, a questão da representação do
promover a reflexão e o debate em torno do reterritorializá-la num contexto diverso, Deleuze
povo negro no cinema português assume, em
cinema negro português e sua legitimidade e Guattari propõem pensar a escrita de Kafka
pleno século xxi, dois aspectos centrais deste
artística e cultural. como uma “literatura menor” ressaltando
debate: a necessidade de pertencimento efetivo
que “uma literatura menor não pertence a
ao campo do trabalho cinematográfico, ou seja, É pensar: que estruturas de pensamento e de
uma língua menor, mas, antes, à língua que
produzindo filmes e ocupando cargos técnicos; representação surgem a partir dessas imagens?
uma minoria constrói numa língua maior. E
e, sobretudo, redefinindo as subjetividades, Quais os principais temas abordados por esta
a primeira característica é que a língua, de
memórias e afetividades do negro na sociedade filmografia? De que forma tais discursos e filmes
qualquer modo, é afectada por um coeficiente de
portuguesa a partir de um olhar opositivo, ou se relacionam com o imaginário nacional? De que
desterritorialização” (Deleuze & Guattari, 2003,
seja, contra-hegemônico. forma estes filmes negociam (ou se opõem) às
p. 38).
narrativas hegemônicas sobre o negro ou sobre
À semelhança do que acontece atualmente
o colonialismo? Quais são as formas das novas A escolha pela obra de Kafka não se dá por
no Brasil, onde o questionamento acerca
subjetividades negras que surgem em Portugal acaso. Em diversas passagens analíticas, Deleuze
da identidade nacional está assumindo a
do século xxi? Como são apresentados temas, e Guattari exploram a escrita do autor de Praga,
crise seminal de onde parte a formação da
A TERCEIRA MARGEM DO CINEMA PORTUGUÊS 14

chamando a atenção para a maneira com a que não é a sua é condição sine qua non da estejam imediatamente ligadas à política”
qual o autor é capaz de “torcer” o sentido das experiência dos imigrantes e, dito de outra (Deleuze & Guattari, 2003, p. 39) e assim definem
palavras. A questão do uso de uma língua que forma, é condição também dos contextos os autores:
não é a sua “original” torna a escrita de Kafka pós-coloniais, em que muitos são forçados As três categorias da literatura menor são
inventiva em muitos sentidos. É dessa forma a partir para viver numa língua que “não é a a desterritorialização da língua, a ligação
que uma das características básicas da literatura sua”. O tecido social das diásporas africanas do individual com o imediato político, o
menor está ligada à desterritorialização da em inúmeras cidades europeias consegue agenciamento colectivo da enunciação.
língua, ao uso que, em condições minoritárias, representar bem tal condição. Por outro lado, O mesmo será dizer que “menor” já não
um indivíduo pode fazer da língua. Em viver “em outra língua” também é premissa das qualifica certas literaturas, mas as condições
segunda análise, a consequência direta é o minorias, estas que, segundo Deleuze e Guattari revolucionárias de qualquer literatura no
estilhaçamento, no interior da própria língua, da (2003), “não (é)[são] definida[s] por um número seio daquela a que se chama grande (ou
identidade e da ideologia da Nação. Perguntam mais pequeno, mas pelo afastamento, pela estabelecida). (Deleuze & Guattari, 2003, pp.
Deleuze e Guattari (2003): distância em relação a uma dada característica 41-2)
da axiomática dominante” (p. 41). Ambas
Quantos é que vivem hoje numa língua que não
condições, ser imigrante e ser minoria, tomadas Como seria possível, portanto, pensar em
é a sua? Ou então nem sequer a sua conhecem,
aqui numa perspectiva política, como potência perspectiva um cinema menor? Um cinema
ou ainda não a conhecem, e conhecem mal
de dissonância entre os modos de ser e estar na cujo ruído desterritorializado se territorializa
a língua maior que são obrigados a utilizar?
sociedade. na linguagem? Como seria pensar um cinema
Problema dos imigrantes e, sobretudo, dos
que se apropria, através do seu interior, de
filhos deles. Problema das minorias. Problema Como é do interesse da literatura menor
uma língua que “não é a sua”? Ao pensar
de uma literatura menor, mas também de nós transgredir os limites e gerar novas
de forma mais alargada, seriam os cinemas
todos: como é que se extrai da sua própria sensibilidades, novas formas de ser e estar no
produzidos nas periferias exemplos de um
língua uma literatura menor, capaz de pensar a mundo, há um aspecto revolucionário nesse tipo
cinema menor? Ou este cinema poderia ser
linguagem e fazê-la tecer conforme uma linha de escrita capaz de gerar a partir de um devir
definido pela não-institucionalidade de suas
revolucionária sóbria? (p. 43) minoritário perspectivas contra-hegemônicas.
práticas, relacionando-o com os paracinemas?
Por isso, além do aspecto da desterritorialização
Há dois pontos que surgem nesse trecho que As possíveis respostas não são adesões
da língua, a literatura menor é composta pela
merecem comentários. O primeiro é a questão automáticas. Um cinema menor pode ser
politização do indíviduo enquanto potência de
dos imigrantes, dos afrodescendentes, dos produzido nas periferias ou nas franjas do
um enunciado coletivo, pois o lugar da literatura
sujeitos de dupla ou tripla nacionalidade. O sistema hegemônico, todavia, sua delimitação
menor “é completamente diferente: o seu espaço
segundo, das minorias. Viver numa língua não é intrinsecamente geopolítica senão
exíguo faz com que todas as questões individuais
15 MICHELLE SALES

também estética, porque é contra-discursiva. um desprivilégio das narrativas baseadas em na internet e nas suas redes sociais, facilitou,
Refletindo a partir do texto Cinema Periférico “subjetividades individualizadas” para dar lugar ao redor do mundo, o aparecimento de novos
de Bordas, os cinemas produzidos nas “bordas” às histórias e situações representativas de uma atores sociais no campo cinematográfico,
são cinemas formados a partir de duas bases, comunidade ou de um grupo, potência, por fim, disputando o lugar de produção discursiva que,
segundo Bernadette Lyra (2009): de um agenciamento coletivo. até aos anos 2000, estava bastante concentrada
em circuitos institucionais do cinema. Ao lado
O comportamento trivial do lazer e os contratos Entretanto, como apontado acima, nem todo
deste fenômeno, vamos observar em diferentes
da cultura midiática e massificada de agora cinema periférico produzido nas bordas pode
zonas europeias o surgimento de narrativas pós-
(Lyra & Santana, 2006), apresentando certas ser entendido como um “cinema menor”.
coloniais produzidas por sujeitos deslocados
características específicas que o distinguem de Ainda em diálogo com o texto de Bernadette
que reterritorializam a experiência da diáspora
outras práticas cinematográficas, sobretudo Lyra, é necessário apontar que o sucesso
através do fazer artístico. Por isso, é notório
pelas especificidades da produção e circulação, comercial que a autora menciona em relação
que em países como Portugal surjam na cena
quase sempre situadas às margens, quer do a este paracinema, ou seja, um tipo de cinema
cultural e artística jovens afrodescendentes
sistema industrial puramente cinematográfico, produzido de forma paralela ao cinema
provenientes de países como Cabo Verde, Guiné-
quer dos circuitos exibitivos de arte. Assim, os valorizado institucionalmente, não corresponde,
Bissau, Angola e Moçambique, todas ex-colônias
filmes se fazem sob um contrato periférico. quase sempre, aos interesses de um cinema
portuguesas.
(p. 33) menor – que, por seu aspecto revolucionário
e experimental, precisa não apenas forjar as Neste cenário, em que surgem novos atores,
O contrato periférico que menciona a próprias redes de circulação, distanciando-se podemos mencionar também o aparecimento de
pesquisadora brasileira citada acima é capaz assim do caráter massivo do cinema periférico de movimentos sociais e civis, muito concentrados
de incorporar os pressupostos de uma “estética bordas, como também romper com a hegemonia na zona de Lisboa, que se relacionam com
menor”, ou seja, a desterritorialização da língua, dominante da língua “do outro”. Propomos a constituição deste novo campo cultural
já que o cinema sempre esteve localizado pensar de forma ampla e profunda o cinema português, como a associação Djass –
em zonas privilegiadas do fazer artístico negro português como um cinema menor, do Associação de Afrodescendentes, a Femafro
(geográficas, sociais e de classe), uma vez que ponto de vista deleuziano. – Associação de Mulheres Negras, Africanas
a tal produção das bordas é capaz de romper e Afrodescendentes, e a criação do Instituto
O aparecimento das minorias do cinema
com a hegemonia discursiva de um determinado Inmune – Instituto da Mulher Negra em Portugal,
negro português
grupo, e a ligação imediata do individual além do SOS Racismo, instituição constituída
com o político, pois, em boa parte dos filmes O barateamento dos meios de produção ainda nos anos 1990.
produzidos e exibidos nas periferias e nas bordas audiovisual, bem como o surgimento de novas
É importante mencionar que, ao lado da
do sistema, há (assim como na literatura menor) zonas de circulação de filmes concentrados
produção realizada por afrodescendentes no
A TERCEIRA MARGEM DO CINEMA PORTUGUÊS 16

cinema em Portugal, têm surgido também novos colonizador era preciso romper não apenas com exercício de filmar. Entre muitos percalços, e
circuitos e zonas de circulação e exibição de o ciclo de produção do cinema colonial, como mesmo sendo o cinema o meio verdadeiramente
filmes, e ressalto aqui a importância do Instituto também passar a produzir as próprias imagens. genuíno para a construção da memória de uma
Hangar, criado pela artista Mónica de Miranda, Esse foi o principal investimento imagético da nação soberana, moderna e livre, a criação do
epicentro de circulação de artistas e produtores guerra colonial guineense: formar profissionais Instituto Nacional de Cinema em 1979, presidido
culturais relacionados à diáspora africana de cinema capazes de narrar a guerra, a vida da por Sana Na N’Hada, não conseguiu implementar
em Portugal, bem como o MICAR, Mostra Guiné, “dar voz” ao povo da Guiné. de forma efetiva políticas públicas para o cinema
Internacional de Cinema Anti-Racista, realizado nacional guineense, tendo conseguido finalizar
É nesse sentido que partem para Cuba futuros
no Porto desde 2014, o Festival Internacional um único filme, o Regresso de Cabral, e teve suas
realizadores, sob a influência política de Amílcar
de Cinema da Cova da Moura, realizado por atividades suspensas no final dos anos 1980.
Cabral, líder intelectual pan-africanista da
Maíra Zenun e coletivos antirracistas, bem descolonização da Guiné-Bissau, num certo Os anos 2000 na Guiné-Bissau trazem
como o Afrotela, cuja curadoria e criação são sentido “a fim de garantir a independência do modificações semelhantes ao que aconteceu
compartilhadas por diferentes produtores gesto e do olhar e a possibilidade da construção em Portugal no tocante ao barateamento dos
culturais e ativistas, entre os quais o também de uma memória fílmica realizada pelos próprios meios de produção audiovisual e da chegada
cineasta, ator e dramaturgo luso-guineense guineenses” (Cunha & Laranjeiro, 2016, p. 11). de equipamentos técnicos mais acessíveis
Welket Bungué, cuja obra e trajetória iremos e populares. No lugar de uma produção
Em entrevista concedida à pesquisadora Catarina
explorar mais profundamente. cinematográfica institucionalizada – algo que
Laranjeiro, Sana Na N’Hada, um desses quatro
Welket Bungué e sua produção nunca aconteceu de fato na Guiné-Bissau, (salvo
jovens cineastas guineenses formados pela
em situações isoladas) –, vemos surgir uma
A luta pela descolonização na Guiné-Bissau reconhecida escola de cinema cubana, atesta:
produção não-institucional, independente e com
– que culmina numa violenta guerra colonial Eu costumo dizer que o cinema feito por nós,
forte valor identitário que surge nos circuitos de
contra os portugueses entre 1961 e 1974 –, guineenses, começou quando nós começámos
exibição alternativos da internet. Segundo os
assim como nas outras ex-colônias portuguesas, a filmar. Quando nós chegámos de Cuba, nós:
pesquisadores Paulo Cunha e Catarina Laranjeiro:
tem a questão cultural como o eixo central da a Josefina Crato, o José Bolama, o Flora e eu.
libertação. O entendimento de que a soberania À semelhança do que tem acontecido em outros
Nós chegamos a Conacri a 7 de janeiro de 1972.
nacional e autodeterminação dos povos países africanos, como no caso do fenômeno
Havia guerra. Nós tínhamos saído da guerra, ido
africanos só viria a partir de uma produção ugandês de Wakaliwood, o modelo de produção
a Cuba e voltámos para a guerra. (N’Hada, 2015
intelectual e cultural própria do seu povo e DIY (do it yourself) de baixo orçamento de
apud Laranjeiro, 2015b).
capaz de representá-lo torna-se uma ideia Nollywood se popularizou nas últimas décadas,
estruturante dos ideais anticoloniais dos anos Destes realizadores mencionados, apenas graças aos formatos de home video (primeiro
1960. Para romper secularmente com o olhar do Flora Gomes consegue alguma regularidade no o VHS e depois o DVD). Além das questões
17 MICHELLE SALES

técnicas e financeiras, Françoise Balogun (2007, como vemos na sua trajetória. O seu cinema é Interessado num cinema de crítica social,
p. 197) sublinha que este fenômeno nigeriano entendido aqui como um cinema menor, como Welket reclama para si um cinema de auto-
também foi potenciado por uma “enorme um cinema que esgarça a “língua do outro”. representação, rompendo com o lugar social e
necessidade de imagens que refletissem a também narrativo imposto aos corpos negros
O realizador Balanta e luso-guineense Welket
identidade nacional”. Ao contrário da África diaspóricos e deslocados, sempre em constante
Bungué nasceu em 1988, em Xitole, na Guiné-
francófona, onde a indústria de cinema foi busca de si, de identidade e de pertencimento.
Bissau, cresceu como imigrante em Portugal e
muito subsidiada pelo Ministério da Cooperação Por isso, também o seu cinema é uma máquina
vive atualmente entre Rio de Janeiro e Berlim.
francês, o cinema nigeriano desenvolveu- ancestral em torno da pesquisa de antepassados
O trânsito cultural e artístico por entre estas
se de forma totalmente independente, Balantas e da relação entre África, Portugal e
fronteiras marca o percurso do seu trabalho
abordando temas com maior interesse para Brasil, como no curta Woodgreen e Aginal, ambos
como ator, dramaturgo, guionista e realizador.
as comunidades locais. No caso concreto da filmados no Brasil, já exibidos em público.
Arriaga, que estreou no último Festival
Guiné-Bissau, um território onde a cultura
Não parece ser um acaso o Brasil tornar-se
IndieLisboa em 2019, é o seu quinto curta-
cinematográfica mais canônica é praticamente
uma espécie de lugar intensificador dramático
metragem, filme que revela certa confluência
inexistente (nem os filmes do próprio Flora
na trajetória profissional de Welket, tendo sido
estética e de valores como acúmulo de um sólido
Gomes são conhecidos pela generalidade da
percurso no campo do teatro como do cinema, e lá que o realizador filmara como ator o longa-
população), os jovens autodidatas inscrevem-se
metragem Joaquim, do cineasta brasileiro
também um pensamento bastante estruturado
numa cultura visual muito pautada pela estética
Marcelo Gomes, e também criara o curta-
sobre o lugar de inclusão/exclusão social de
e narrativa da televisão, dos vídeos musicais e
metragem N´sumamde Tchalih Hudi, um filme-
indivíduos marginalizados que compõem o
dos videojogos, conteúdos bem mais acessíveis
ensaio em que Bungué e sua companheira
tecido social da diáspora africana em Lisboa.
à generalidade da população. Produzidos fora
percorrem as matas densas da Amazônia.
de qualquer forma institucionalizada, esses O interesse central de Welket, como o próprio diz,
Os filmes Bastien (2016), Arriaga (2018) e Lebsi
filmes são geralmente falados em dialetos está em “ficcionar documentando” tendências
& prima (ainda em produção) constituem uma
autóctones e refletem questões atuais e muito estereotipadas das zonas periféricas da capital
espécie de tríptico no qual há uma série de
pertinentes para as comunidades locais, o que portuguesa, como o Bairro Nossa Senhora, lugar
continuidades e também aprofundamentos
lhes confere um forte cunho identitário. (Cunha ficcional criado pelo realizador que serve como
sempre em torno de protagonistas negros
& Laranjeiro, 2016, p. 17) espécie de epicentro dramático que percorre
marginalizados. No primeiro, Welket é um
seus filmes desde a websérie Vã Alma (pode ser
É nesse contexto que surge a produção vista integralmente no YouTube), estreia dele jovem morador do Bairro de Nossa Senhora,
audiovisual de Welket Bungué, marcado pela como realizador. vive com um irmão mais novo, uma avó adotiva
travessia entre fronteiras e por estar num entre- portuguesa branca e sonha em ser artista.
lugar entre Portugal, Guiné-Bissau e Brasil, Bastien ultrapassa e revisa estereótipos de
A TERCEIRA MARGEM DO CINEMA PORTUGUÊS 18

representação da periferia e do negro na Lisboa assinalar a densidade do problema. O filme


contemporânea, revisitando o imaginário social brasileiro em questão, hoje visto e revisto pelo
construído por filmes como Zona J, mas também próprio realizador, é considerado um marco na
Juventude em Marcha (2006), Cavalo Dinheiro construção de um imaginário social violento que
(2014) e o mais recente Vitalina Varela (2019), os intensifica racismos estruturais. De que forma
três últimos de Pedro Costa. a citação deste filme pode ser entendida na
trajetória de Welket Bungué? Está ali novamente
Por outro lado, o cinema de Welket repõe e
para repor a violência de forma crítica ou reforça
reestrutura violências cotidianas, relações sociais
velhos estereótipos?
esgarçadas, vidas fragmentadas e dispersas pela
atividade do crime. A violência aqui é reposta
criticamente, como uma forma de dar a ver as
linhas de força de uma sociedade racista.

Arriaga, filme que já tem uma estrutura de


produção cinematográfica completamente
diferente dos filmes anteriores – e por isso pode
ser apontado como um “filme de virada” (ou
um “filme de preparação” para o que virá?) na
trajetória do realizador –, é um curta-metragem
que explora o tecido social do Bairro de Nossa
Senhora, novamente centrando-se na trajetória
do jovem Arriaga, que não resiste ao universo
do crime. Numa das cenas marcantes do filme,
Arriaga, num rito de passagem, canta trechos
do Rap das Armas, música que se tornou
mundialmente conhecida por ser trilha sonora
do longa-metragem Tropa de Elite (2007), do
cineasta brasileiro José Padilha. A relação
com Tropa de Elite e com todo o imaginário
do cinema brasileiro merece ser melhor
aprofundada, entretanto quero aqui apenas
WELKET BUNGUÉ
ENTREVISTA REALIZADA
POR MICHELLE SALES
E ANA CRISTINA PEREIRA

Facebook para falar dessa mostra. Tinha muito


interesse e muita vontade que pudesse ser
um pouco no espectro do Afrotela, com uma
curadoria próxima da do Afrotela (também é
uma coisa de que podemos falar ao longo do
ano; a mostra talvez aconteça em dezembro
ou janeiro no TAGV, em Coimbra) e que tivesse,
por exemplo, o máximo de filmes, mas também
algumas pessoas que pudessem trabalhar
Entrevista a Welket Bungué, Hangar, 2019, por Michelle Sales
connosco como parceiros do projeto e com as
e Ana Cristina Pereira @michellesales
quais dividiríamos o protagonismo. O importante
Michelle Sales Primeiro, vou explicar um é que vocês estejam lá com os filmes, para os
pouco porque estamos aqui, como não debates, etc. Isto só para te contar um pouco
tivemos oportunidade de falar pessoalmente. como surgiu a ideia da entrevista. Vou retomar
[Esta entrevista] faz parte de um projeto de alguns temas de ontem. Foi uma conversa longa,
investigação que se chama “À Margem do muito generosa... Nunca tinha estado com um
Cinema Português: Estudo sobre o cinema realizador que se debruçasse tanto sobre o
afrodescendente produzido em Portugal”. Somos próprio trabalho, de maneira retrospetiva. Foi
oito investigadores. O projeto é financiado pela quase um pouco catártico (acho que para ti
Fundação Calouste Gulbenkian e irá acontecer também) ver todos os filmes juntos e pensar
ao longo de um ano, através de uma série de no que é o trabalho. Algumas coisas já foram
entrevistas com realizadores, uma residência conversadas ontem, mas quero partir de alguns
artística e uma mostra no final. Lembro-me lugares que acho mais polémicos e ouvir-te falar
de te ter contactado, muito rapidamente, pelo um pouco sobre isso também. Queria [começar
WELKET BUNGUÉ 20

com] o Bastien [2016], que é um filme que se que consigo entender o que sugeres quando que está numa situação debilitada, em relação
coloca a meio da tua trajetória e que me parece dizes que o Bastien é o meu alter ego, porque é ao irmão, que é mais novo, mas, também, por
ser um filme de virada, depois da produção no uma personagem que surge do âmago, da génese ele saber que tem um passado obscuro e que as
YouTube, depois da série. Ou seja, eu vi a série da minha criatividade, do ponto de vista de coisas, tarde ou cedo, nos são cobradas.
um pouco como o preâmbulo de uma trajetória e escrita para cinema. Quando pensei em escrever MS Porque é que escolheste uma avó branca
o Bastien já é uma espécie de virada. É um filme um argumento, foi a primeira personagem que para adotar os dois meninos?
que parece colocar uma série de questões que surgiu e talvez isso tenha que ver com uma
WB A avó branca, para mim, simboliza, entre
não [existiam] no início da carreira. E há outra espécie de arquétipo de personagem para aquele
muitas coisas, esse corpo institucional,
coisa: o Bastien parece ser o alter ego do Welket tipo de ambiente, como eu o concebi. E, não
português, branco, de alguma maneira
e eu queria saber como vês essa personagem sendo outro ator a fazê-lo, de alguma maneira,
colonizante. Tem que ver com o lugar onde
em cena, como construíste a trajetória do fui levado a crer que a personagem, não podendo
cresci, num internato no Alentejo, mas, também,
Bastien, sendo ator e diretor em cena, e se já te ser eu (enfim, não me consigo enquadrar
com o patriarcalismo presente na cultura
imaginaste nesse lugar, construindo uma espécie naquele ambiente onde ele está retratado),
portuguesa e, sobretudo, pelo facto de eu ser
de alter ego, que vai estar nos outros filmes. Não eventualmente, teria de ser outra personagem
filho de imigrantes. Também é algo que não
sei no Arriaga [2019], porque só vou ver hoje à com uma sensibilidade [adequada à] do Bastien,
podia passar, a meu ver, sem ser referido, porque
noite. que, provavelmente, teria a possibilidade de fazer
ela é, ao mesmo tempo, a peça charneira que
coisas que eu, enquanto Welket, não faço, não
nos evidencia numa já esquecida ligação entre
tenho coragem para tal, ou que a minha ética
Portugal e os países africanos colonizados,
não me permite. Essa personagem atravessa,
nomeadamente Guiné-Bissau, Angola...
pelo menos, três projetos, três filmes: Vã Alma;
em Arriaga, poderão vê-lo no início, embora MS Achas que está esquecida?
esteja omisso, mas está presente. E, sobretudo, WB Está esquecida e, para muitos, apagada.
tentei que ele fosse a voz de seres com uma
MS Esquecida para os africanos ou para os
sensibilidade especial e com uma sabedoria
portugueses?
Welket Bungué, imagem de divulgação @welketbungue
intrínseca para lidar com os problemas do seu
mundo circundante. Portanto, eu vejo no Bastien WB Por parte dos portugueses, especialmente.
Welket Bungué O Bastien é o meu segundo
uma personagem que absorve e, ao mesmo Eu acho.
filme, embora tenha uma robustez de cinema
tempo, imprime uma afetividade materna e MS E porque é que sentes isso? Em que sentido
convencional, como nós o conhecemos, e que
fraterna por conta do irmão, mas acho que lhe é é que isso se torna visível para ti? Porque, por
é diferente das outras peças, neste caso do Vã
natural esse lado protecionista. Em relação à avó, exemplo, a relação com o Brasil, sendo eu
Alma [2018] e dos outros filmes que vimos. Acho
21 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES E ANA CRISTINA PEREIRA

brasileira, é sempre uma relação muito referida. uma grande negação por parte português em de Portugal, em relação àquelas colónias. Mas,
O Brasil está presente na música – entras relação à dívida histórica que existe para com as se todos os outros países colonizadores da
num centro comercial, está a tocar música colónias africanas. Com as ex-colónias. Ou com Europa tiveram de abrir mão do domínio dos
brasileira; ouves música brasileira no rádio; as esses lugares ocupados. E também com o Brasil. outros povos, que tinham ocupado e colonizado,
telenovelas estão muito presentes... Há uma Só que África é um continente e tem muitas porque é que Portugal não haveria de o fazer?
tentativa de proximidade de Portugal com o nações. O Brasil é um subcontinente que tem No cinema isso está presente, na literatura e no
Brasil, mas, quando se está no Brasil, não se muitos Brasis dentro de si. Mas há uma unidade sistema educativo também. Por exemplo, têm-
pensa em Portugal como Portugal pensa no que podemos referir enquanto Brasil. Quando se feito grandes esforços para tornar o crioulo a
Brasil. Não sei se isso também não é marca de falamos de África, temos de ir mais devagar, língua oficial de Guiné-Bissau. Neste momento,
um certo colonialismo ou de uma necessidade porque, em relação a Portugal, em termos [é considerada] língua, mas ainda não houve
de Portugal estar sempre a pensar nas suas ex- de língua, estão a Guiné-Bissau, São Tomé, uma oficialização para que se tornasse a língua
colónias. Porque, estando no Brasil, as pessoas Moçambique, Cabo Verde, etc. Todas são culturas oficial do país. É preciso que a comunidade
nem sequer se lembram onde fica Portugal, a altamente distintas. Não estão unificadas. internacional, a UNESCO, etc., intervenham
verdade é um pouco essa. Fora aqueles que Portanto, Portugal, em relação às ex-colónias para que isso aconteça. Este tipo de subversões
têm parentes e familiares, que, na verdade, são africanas, por conta da forma como a cisão foi é altamente inaceitável para o orgulho ou o
uma minoria, o brasileiro, quando pensa em feita, [alimenta] uma espécie de mágoa endémica saudosismo colonizante de Portugal. Portanto,
sair do Brasil... Agora está a pensar em Portugal que se reflete na forma como se inter-relaciona [o facto de] esta personagem, Dona Angustina
por uma questão estratégica, mas, na verdade, com os indivíduos provenientes desses lugares. (angústia), estar presente no filme simboliza
Portugal nunca esteve na rota de emigração para justamente essa interseção do ponto de vista das
MS Mas achas que essa mágoa é portuguesa?
o brasileiro. O brasileiro, estando na América, vivências, da memória, do culturalismo.
WB A mágoa é portuguesa. Porque há um
sempre pensou: “Vou para os Estados Unidos, MS Ao mesmo tempo, quando ela morre, os
grande sentimento de derrota, de incapacidade,
porque lá há trabalho.” E Portugal sempre meninos ficam completamente “desprotegidos”.
de insustentabilidade. Tanto é que, entendido
viveu numa crise económica muito grande... E o filme dá uma volta a partir da morte dessa
de outra maneira, ter-se-ia percebido que
Essa invisibilidade que sentes é de Portugal avó adotiva. Que é também outro trauma.
os maiores aliados para o desenvolvimento
relativamente a África ou... Será que os africanos
de Portugal, em todos os sentidos, seriam WB É outro trauma porque leva-nos a questionar
pensam em Portugal como Portugal pensa nas
justamente essas ex-colónias. O grito de quem são os nossos suportes aqui, nos países
ex-colónias?
libertação por parte das colónias significou nos quais não somos nativos. Nós estamos
WB Ambos pensam. Nas condicionantes de cada para Portugal uma espécie de ingratidão, de deslocados. Muitas famílias afrodescendentes
um dos territórios, acredito que isso é recíproco. renúncia a toda a cultura portuguesa. Isso tem conseguiram fazer uso deste apoio, as habitações
Mas pensam de maneira diferente. Acho que há que ver com uma falta de sensatez por parte sociais, mas há limitações muito claras na
WELKET BUNGUÉ 22

aquisição e manutenção desses espaços. Quem teremos mais tempo para conhecer melhor a WB Acho que sim, porque é a única coisa que lhe
é que dá acesso a isso? Estes dois irmãos vivem Angustina. resta. São aqueles dois corpos que transitam por
com esta senhora, porque era a melhor amiga da ali. Há uma grande esperança ainda no Zézito,
MS Ela vai estar no filme?
mãe. Por isso permanecem em casa dela. Mas, porque ele é novo, só sonha em ser jogador de
WB Sim. Não quer dizer que seja a mesma atriz,
ao mesmo tempo, têm de contribuir com algum futebol e poder ganhar dinheiro para ajudar a
mas a personagem está.
dinheiro, mensalmente, para ajudar a sustentar a avó e ajudar aquela gente toda a sair daquele
casa. Esta senhora está, também, numa situação MS Mas ainda vai estar viva? simplismo, já que vivem com os recursos
de precariedade, de alguma maneira, por ser mínimos que têm. A água, às vezes, falta em casa
WB Sim, exatamente. Aí, poderemos ver que ela
idosa. Ou seja, é sénior, está na terceira idade, e a televisão não tem som...
é uma pessoa devota, que tem fé; nas costas
é viúva e nem tem dinheiro para poder pagar MS Queria ainda colocar uma questão sobre
dos rapazes, reza por eles, para que eles tenham
os medicamentos. O que é um problema, aqui. o Bastien e o Vã Alma, o início da tua carreira,
salvação e para que não caiam, justamente,
E, socialmente, a relação entre estes jovens e no perjúrio da vida desviante, altamente que é a seguinte: no Brasil, tem-se discutido
esta senhora, e a relação desta senhora com o sugestionada pelo facto de viverem por aí. muito a questão da representação do negro
aparato social e público, do ponto de vista do Portanto, trazemos também o lado religioso, no cinema, no cinema brasileiro, etc., e como
apoio e da orientação, está latente no filme. Se justamente, aquele altar que vemos naquela essa representação está carregada de clichés. A
nós esmiuçarmos, conseguimos entender alguns cena, no lugar onde ela reza para todos aqueles forma como o negro aparece em cena é sempre
problemas que ali coabitam, não só do ponto de santos pela salvação dos seus netos adotivos. em papéis subalternos, ligado à violência, à
vista relacional, mas do ponto de vista exterior Mas a figura da avó, sendo ela uma mulher... prostituição ou ao tráfico, e os últimos vinte
ao microcosmo que é a casa deles. É claro que, anos de retomada do cinema brasileiro lançaram
por ser uma curta-metragem, a personagem algumas imagens ícones dessa representação
pode sugerir o abarcamento de todas estas do negro, por exemplo, o Cidade de Deus [2002],
simbologias e analogias, mas, se fôssemos que citaste ontem, o Tropa de Elite [2007], filmes
aprofundar, eu conseguiria desenvolver muito marcantes no sentido do lugar que o negro
mais outros aspectos que me interessariam ocupa no imaginário social brasileiro, e que
contar. Estes filmes são filmes acabados, mas tem sido muito debatido. Talvez pelos “chatos”
que, entretanto, vão constituir uma longa- académicos, mas, também, pelos realizadores,
metragem em que intersecionamos a história do no sentido em que “de que forma vamos
Bastien, 2016, Welket Bungué @welketbungue
Bastien, do Arriaga e de duas outras personagens representar o negro na sociedade brasileira?”
centrais, chamadas Lebsi e Prima. Nessa história, MS Achas que existe uma relação de afeto entre Há um movimento americano também dos
essa avó e os netos adotivos? últimos anos, embrace your brother, embrace your
23 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES E ANA CRISTINA PEREIRA

sister, uma campanha publicitária com negros um lugar, uma atmosfera, para que ele e a sua não. Acredito que houve um desejo de objetificar,
exatamente para falar da afetividade. Levei isso individualidade consigam sobressair, [fazendo] diabolizar esse tipo de perfil, de fenótipo, esse
uma vez para a sala de aula, onde vários alunos prevalecer a sua ética, a sua maneira de agir e tipo de caráter que é um indivíduo negro.
negros [ficaram] profundamente tocados, porque tudo o mais. Agora entendo porque disseste MS Mas porque a intenção era falar do racismo?
nunca tinham visto uma imagem publicitária que o Bastien era o meu alter ego. De facto, ele
WB Porque a intenção é perpetuar alguns
de um negro beijando um negro, uma mulher vai para a arte. E isso salva-o, transforma-o, faz
estigmas, ainda que inconscientemente.
beijando um negro... Como é que levas isso com que ele consiga entender o mundo sob
para os teus filmes? Porque, de certa forma, o outro prisma também. Colocarmos personagens, ACP Provavelmente, as pessoas que fazem esses
Bastien e o Arriaga estão no lugar da brodagem, como é o caso do Bastien ou do Zézito, num filmes veem o negro mesmo assim. Porque está
da violência, parece que lutam para fugir desse lugar que não aquele que é estereotipado para naturalizada a desumanização do negro. A forma
lugar, mas não conseguem. E o facto de o Bastien os perfis negros tem muito que ver com as como é dada uma notícia, por exemplo, sobre
ser artista – por isso é que acho que é um filme nossas vivências, com as pessoas com quem nos uma manifestação feita por negros não é igual
de virada – [mostra que] ele quer sair desse lugar, cruzámos ao longo da vida e com as pessoas à forma como é dada uma notícia sobre uma
desse imaginário social e dessa representação que nos inspiraram criativamente. Porque, manifestação feita por brancos. E não é porque o
clicherizada, excessiva, do afeto, do negro embora os filmes de realidade social brasileiros jornalista pensa: “Vou diabolizar a manifestação
que ama. Ontem também disseste uma coisa do início do século xxi me tivessem inspirado, dos negros.” É porque, realmente, ele acredita
muito forte: “Eu não posso ser visto só como por ter vivido no Brasil desde 2012, sabia que que aqueles corpos na rua são perigosos!
um negro, eu não posso ser vista só como uma não eram representativos da cultura brasileira. MS Sim, mas no caso, por exemplo, do Cidade
mulher.” Até que ponto a maneira como nós nos São um apanhado do que é mais polémico, o de Deus e do Tropa de Elite, acho que é mais
autorrepresentamos consegue negociar com que pode ter um teor ficcional apelativo, mas, complexo.
esses clichés, de que maneira negociamos com por outro lado, se não houver pensamento
O Cidade de Deus é feito pelo Fernando Meirelles,
esses clichés? crítico em relação ao que se vê, podemos cair
um realizador publicitário, tem uma agência... E
no erro de acreditar que os negros são todos
WB Em ficção, temos a possibilidade de criar o Tropa de Elite é do José Padilha que, inclusive,
assim daquela maneira e que o corpo policial
um entorno e uma atmosfera que [propiciem] a fez uma declaração dizendo ter-se arrependido
é maioritariamente daquela maneira, tal como
caminhada ou as ações da nossa personagem de ter feito o Tropa de Elite, que hoje ele vê como
está representado no Tropa de Elite. Mas os
para onde a queremos direcionar. No mundo uma certa ascensão deste governo autoritário,
corpos de negros e de negras representados nos
real é mais difícil. Para conseguirmos elevar as racista e preconceituoso. É uma declaração
filmes de realidade social, a meu ver, não têm
qualidades que distinguem o Bastien daquela importante, que toca numa série de questões
de estar intrinsecamente ligados às narrativas
que seria uma personagem estereotipada atuais do Brasil. Ele esteve nos Estados Unidos
de marginalidade, criminalidade... de todo que
naquele ambiente, criamos toda uma condição, da América, tem uma relação com o cinema
WELKET BUNGUÉ 24

americano, etc. No Cidade de Deus havia muita e indivíduo e, portanto, deixou de se apresentar MS Citaste o Seu Jorge e o Lázaro Ramos. Aqui,
gente do Brasil e a própria diretora de elenco era como alguém que pudesse somente responder em Portugal, há alguma referência, em termos
uma figura central. a um universo onde o corpo dele tivesse de se visuais ou do teatro, que possas considerar uma
prestar ao serviço de histórias estereotipadas, filiação no sentido de uma “influência” no teu
ACP Mas, volto ao que estava a dizer: qual
sobretudo vistas e consumidas do ponto de vista trabalho?
é a diferença? No Brasil é igual. Mesmo que
branco.
sejam brasileiros, também está naturalizada a WB Sim. O Teatro Griot consolida esse referencial.
animalização do corpo negro. Desde há 400 anos MS E que já têm uma expectativa em torno...? Portanto, Zia Soares, Isabél Zuaa, Daniel
que isso é construído. Martinho...
WB Exatamente. Ele internacionalizou-se,
WB Mesmo que estes filmes possam não ser trabalha com realizadores de todas as partes, tal
os melhores exemplos para explicar isso, acho como o Seu Jorge, por exemplo. Já não precisam
que entendo e concordo. Existe esse problema de provar nada a ninguém para se perceber que
latente e, felizmente, na década em que vivemos são ecléticos e não simplesmente indivíduos
agora, os filmes têm trazido outras coisas. negros. São indivíduos e trabalham com qualquer
Acho que todos nós aprendemos com o efeito um que trabalhe. Nesse sentido, tenho tentado
colateral do Tropa de Elite. O Cidade de Deus é um investir num cinema que não se feche somente
caso emblemático daquele que é um bom filme na temática do racismo, ou que procure impor- Arriaga, 2019, Welket Bungué @welketbungue
de realidade social, porque tocou muita gente, se ou evidenciar-se nesta marca do cinema
MS Chegaste a trabalhar com eles?
ainda que possa haver controvérsia em relação negro. Porque isso é uma coisa que está latente,
a isso. Mas têm-se feito filmes em que o negro é incontornável. Preocupo-me em mostrar às WB A primeira vez que trabalhámos juntos foi
aparece apresentado de outra maneira. Atores pessoas [que] “isto é cinema, é um filme, feito no Brasil, em 2008, fazendo seriado de época.
como o Lázaro Ramos, sobretudo, contribuíram com corpos negros, brancos...; quando é na Foi aí que os conheci. Se não, acho que não teria
muito para que se desconstruíssem certos Europa é num território que pertence a um país acontecido. Até mesmo esse caso é uma situação
estereótipos. Eu começo sendo inspirado pelos europeu, quando é no Brasil é num território que particular. Porque, como fizemos um projeto
melhores. pertence a um país da América Latina, onde uma temático, o Equador [2009], tiveram de garimpar
grande maioria é negra e uma parte é branca os artistas mais talentosos afrodescendentes.
MS Achas que o Lázaro Ramos é uma inspiração
e indígena.” Mas continua a haver um domínio E, felizmente, foi nessa situação que nos
para ti?
à guisa daquele que era o panorama de intuito apresentámos uns aos outros.
WB É. Porque é uma pessoa empoderada, colonial. Esse também é um problema que MS E no cinema? Já falámos do Cidade de Deus,
consciente das suas qualidades enquanto artista merece alguma atenção. Tropa de Elite...
25 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES E ANA CRISTINA PEREIRA

WB Equivalente ao Cidade de Deus, aqui, nos Comunidade Europeia... Posteriormente, os WB Não é só no caso de Portugal, é no caso
anos 90, tivemos o Zona J [1998], do [Leonel fundos entraram e, mais ou menos no início de qualquer indústria, de qualquer ramo em
Vieira]. dos anos 90, começaram a fazer-se os bairros que o capitalismo, o mediatismo e o desejo
sociais. Só a partir daí é que os bairros de lata de reconhecimento estão latentes. A moeda
MS Por exemplo, o cinema do Pedro Costa é
começaram a desaparecer, antes disso as de troca é, inevitavelmente, o destaque desta
um cinema que se volta muito para o cabo-
favelas estavam impregnadas aqui na cidade. pessoa. Moeda de troca, se calhar, não é o
verdiano e [estabelece] uma ligação, desde o
Quem é que falava sobre essas pessoas? Quem melhor termo... Um dos efeitos do tempo
Casa de Lava [1994] até ao Juventude em Marcha
é que sabia alguma coisa a seu respeito? Eram investido dele seria esse. Se calhar, se tivéssemos
[2006], através do Ventura, uma personagem que
[pessoas] altamente invisibilizadas porque cinco, não seria só o Pedro Costa, seriam
acompanha todos os filmes. O que achas desse
não traziam uma boa imagem para a capital cinco pessoas. E, aí, não teriam de ser brancos
tipo de cinema e como vês essa relação de um
lisboeta. Os filmes [do Pedro Costa] permitiram preferencialmente, podiam ser mulheres
cineasta português branco com um negro?
retratar [isso]. Até porque a metodologia de brancas, mulheres ciganas ou homens brancos,
WB Não vi todos os filmes do Pedro Costa. Vi trabalho dele implica uma imersão nos lugares nepaleses, outro tipo de realizadores. Há aqui
alguns e sei que ele é tido como o realizador dos onde filma, portanto, é a evidência de que há um sistema. Quando muito, acho que as
filmes com os africanos, com os negros. Acho um envolvimento honesto da pessoa que está a pessoas, passivamente, deixaram que houvesse
que, para Portugal, isso é muito bom, mas é retratar aqueles corpos. uma mascote, alguém que pudesse dizer:
pouco. “Vejam lá que nós também fazemos este tipo
MS Mas não achas que o cinema dele poderia
MS Mas achas que é bom porquê? ser considerado paternalista? Vou [introduzir] de cinema.” Nós temos um representante nesse
ramo, que é o Pedro Costa, mas, pelo menos,
WB É bom porque, se não fosse ele, muitos dos aqui uma polémica. Isto está mais em debate no
temos um.
atores negros que, nos anos 80 ou 90, estavam Brasil. Por exemplo, o Pedro Costa, por ser um
no anonimato tão pouco teriam aparecido. E cineasta branco, português, etc., apropria-se de
os problemas das zonas periféricas da cidade um lugar, uma cultura e uma memória, e torna-
não teriam sido trazidos a debate público. se internacionalmente conhecido, faz filmes que
Muito menos levados para fora, porque ele é circulam no MoMA, vai para um circuito europeu
um realizador internacionalizado. Se assim não e americano em que ele é o protagonista e não o
fosse, estaríamos num Portugal que conseguiu Ventura...
fundos da União Europeia, desde a sua entrada, WB Porquê? Porque ele é quem assina o filme?
e que conseguiu criar alguns bairros sociais, que
MS Porque ele é quem assina o filme. Como é que
foram importantes para o período de transição Welket Bungué, imagem de divulgação @welketbungue
vês essas relações no caso de Portugal?
pós-“independência salazarista” e adesão à
WELKET BUNGUÉ 26

MS Colocaria a Margarida Cardoso também Fontainhas e de estar ali a filmar a Vanda, horas e ACP Do Zézé Gamboa...
um pouco nesse... Fez o Yvone Kane [2014], horas... No Quarto da Vanda [2000], ele mergulha
WB ... ou da Inês Oliveira. Também há pontos
A Costa dos Murmúrios [2004], Kuxa Kanema [– O naquele imaginário...
muito fortes a referir em relação ao trabalho
Nascimento do Cinema, 2003], enfim, vai filmar WB Mas porque não uma crítica social? deles. Mas, às vezes, pergunto-me. As coisas
sempre em Moçambique...
MS Não consigo pensar num filme do Pedro parecem resvalar para o ponto em que [se inicia]
WB Nunca vi os filmes dela. O Kuxa Kanema tem Costa como uma crítica social. uma discussão sobre racismo. Como é que
que ver com Moçambique, não é? O João Viana falamos das coisas sem, de alguma maneira,
ACP Eu concordo contigo sobre a crítica social,
também, com a Papaveronoir. Daqui para a deixarmos que a equação da conversa, o
porque é muito crítico. Todo o cinema do Pedro
frente, a ver se vão os meus filmes também. entendimento do assunto, tenha o racismo como
Costa é profundamente político e feito para
um aditivo incontornável? [Em] Portugal, Brasil,
MS O próprio Miguel Gomes, quando fez o Tabu os outros 90%. Não é feito para as elites. Esse
África (digo África, porque é uma série de países).
[2012]. Há também uma negra que aparece no é o problema dos artistas. Estão a falar para
Quando estamos a lidar com o cinema, parece
filme, mas como empregada. os outros 90% e depois só as elites é que os
que o número de filmes produzidos, o número
WB Exatamente. Nessas coisas é que temos compram. Isso é transversal.
de indivíduos ou ‘indivíduas’ cujo perfil atesta
de estar atentos. Não se pode aplaudir estes WB Como ontem, não é? Há harmonia entre os a assinatura do projeto, o tipo de temáticas do
realizadores de ânimo leve. Nem o Ivo Ferreira, eu filmes, mas quem é que está aqui? filme, a comunidade representada, no final,
trabalhei com ele. Temos de pensar o Cartas da
ACP Exato. Isso é um problema. O que não podemos falar sobre tudo, mas o racismo vem à
Guerra [2016]. Quais são os corpos ali debatidos?
significa que os filmes, na sua origem, no seu tona.
ACP Tem sido um filme muito pouco pensado, âmago, não sejam profundamente políticos. Foi MS E como é que te sentes em relação a isso?
por acaso. interessante que aquilo que tu, enquanto artista,
WB Como eu disse ontem, é um fenómeno
MS Tanto o Miguel Gomes como o Pedro Costa destacaste no trabalho do Pedro Costa foi
que diz respeito àqueles que estão no lugar
não entram nessa polémica. Os filmes deles são justamente a sua função política. Quando é um
dos oprimidos e àqueles que estão no lugar
legitimados. Na verdade, é bastante complicado cinema-cinema. Um cinema de arte, um cinema
dos privilegiados, por assim dizer, opressores.
um filme ser visto como uma crítica social. carregado de cinema lá dentro, de saber fazer e
Opressores quando exercem o uso indevido do
Pessoalmente, não acho que o cinema do Pedro de perceber da poda. Mas, depois, o que é que
seu privilégio e não querem partilhar com os
Costa seja uma crítica social. Acho que há uma nos fica? Fica-nos o que traz de político e social..
outros. Por outro lado, acredito que, no caso
relação muito ambivalente. Mas concordo WB Acho que ele tem mérito por isso. Se nós do cinema, temos de ser os primeiros a diluir as
contigo, que há essa imersão verdadeira dele estivéssemos a falar do Flora Gomes ou de O questões ligadas ao “colorismo”. Desenhamos
enquanto artista – ir morar no Bairro das Grande Kilapy [2012]... personagens, escrevemos roteiros, fazemos
27 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES E ANA CRISTINA PEREIRA

castings e procuramos quem são os corpos, MS E o que é que mudaria? Porque são personagens psicologicamente muito
quem são os indivíduos mais qualificados para WB O que é que mudaria? Nada. Mudaria complexas. E as relações entre elas, então...
o fazer. Quando começamos a pensar na cor, a perceção das pessoas que fossem ver. Pessoas que não se viram! Estou a pensar
o filme, inevitavelmente, remete para uma Continuava a ser um filme. É nisto que temos de também nas personagens brancas. Porque é que
temática, que acaba por estar condicionada por pensar. Poderíamos colocar uma senhora negra a aquela acompanhante do polícia está ali, com
conta desses indivíduos escolhidos a dedo. fazer o papel da Angustina e o Bastien e o Zézito aquele prazer? A ver aquela violência, o que é
aquilo? Aquilo existe, aquilo é Portugal também.
MS Mas achas que o contrário poderia ser serem brancos. É possível.
Ela é terrível!
verdadeiro? Ou seja, colocar um branco nesse ACP Claro que é possível, mas muda tudo.
lugar? Como é que seria o inverso? WB Eu fico muito lisonjeado por haver uma
WB Muda tudo. Porque o cinema é político.
atenção, uma sensibilidade e uma assertividade
WB Viste o La Haine [1995]? O Ódio? Do [Mathieu
ACP Porque a questão racial está de tal maneira em comentar este filme com vocês. Porque
Kassovitz]. É o filme que lançou o Vincent Cassel.
presente na sociedade, intrincada em todas as agora, três, quatro anos após a estreia, eu sinto
Agora, vamos trocar e meter um negro. Não é
estruturas sociais e nos fios com que se tecem as que o filme está completo, porque agora chegou
possível? É possível. Estava ali o branco, não é?
relações sociais, que o facto de pores uma avó às pessoas, realmente. E eu pude libertar-me
Mas o filme foi credível. Estás a ver onde estou
branca traz uma delicadeza ao filme, interseciona disso. Pude criar um distanciamento real sobre
a querer chegar? Temos o Amigos Improváveis,
tudo. Porque se trocam afetos, não são só o projeto, consigo vê-lo de outra maneira e
Intouchables [2011]; também podíamos trocar. Só
relações de poder, são relações de afetividade, entender essas coisas.
que não íamos trocar só essas duas personagens,
de memória. De repente, aquela família é
íamos trocar toda a casa. A orquestra que vai MS Vou saltar para uma questão sobre o
Portugal. E não era um Portugal completo se a
lá tocar também teria de ser maioritariamente cinema de autorrepresentação. Este é um tema
avó não fosse branca. Para mim, o Bastien não
negra. O filme seria possível. Mas quem é também muito atual, presente em Portugal,
é um filme de virada, é um primeiro diamante
que dá dinheiro para fazer o filme? Não são muito presente no Brasil, que fala desses
em bruto, que depois vais desdobrar; dali vai
negros. Aí é que está a questão. Se também protagonismos, da questão do lugar de fala e
nascer o teu trabalho, é uma coisa primeira.
pudéssemos trocar isso, então... O que mudaria de quem ocupa o protagonismo na produção
Não é uma coisa que já aconteceu e agora vira
se trocássemos quem dá o dinheiro? Só mudaria cultural. No Brasil, surgiram organizações
para outro. É outra leitura, não estou a dizer que
a credibilidade. Porque aqueles tipos, como muito potentes no audiovisual – o Nós
a minha é melhor. Por ser uma curta-metragem,
têm o dinheiro, iam dizer assim: “Não, vamos do Morro, o AfroReggae – e várias instituições
está tudo apontado e nada está levado até ao
ter aqui as personagens que fazem parte deste que se empoderaram através do cinema,
fim, refletido até às últimas consequências.
corpo burguês e vão ser negros como nós, para no sentido de construir uma imagem e de se
Cada personagem daquelas, cada vida daquelas
estarmos aqui representados. Nós é que temos o autorrepresentar. Ontem, disseste que vias
é um filme, uma longa-metragem de ficção!
dinheiro.”
WELKET BUNGUÉ 28

o teu cinema como um cinema de legitimado, circulou no MoMA... Tem a máquina


autorrepresentação. Queria entender um pouco a funcionar e a colaborar para ter um tipo de
que cinema é esse. cinema que é político. Mas é difícil o Welket entrar
nesse espaço e fazer um cinema que possa estar
WB Acredito que é um tipo de cinema subversivo.
na mesma tela.
Um cinema que vai contra os
cânones do cinema, contra as padronizações ACP Mas porque é que o Welket há de precisar da
da indústria, do ramo, dos connaisseurs legitimação desse espaço?
do cinema. É um tipo de cinema de autor, Arriaga, 2019, Welket Bungué @welketbungue
MS Ele precisa de financiamento e de apoio tanto
independente do ponto de vista de produção, MS E achas que Portugal tem sido recetivo a esse quanto o Pedro Costa.
ou conceção, que vive da experiência tipo de cinema?
ACP O Welket precisa, como diz o ator americano
autobiográfica de quem o faz. Implica uma
WB Acredito que ainda não está preparado, Samuel L. Jackson, de cus nas cadeiras. Quando
grande honestidade por parte do fazedor.
porque a bolha sistémica é muito [hermética]. tiveres cus nas cadeiras, vais ter dinheiro para
Os aspectos técnicos, o método, o sistema
Se não apresentas um filme que tenha sido fazer cinema.
aristotélico de criação de narrativa é altamente
produzido por uma produtora com vários pontos
questionado. Isto veio [trazer] uma liberdade MS Mas a máquina da indústria cinematográfica é
no Instituto do Cinema e do Audiovisual, ou se
criadora a quem concebe. É um tipo de cinema toda americana e só compra os blockbusters.
não te fazes apresentar com um filme assinado
que implica uma consciência grande de quem
por uma produtora, que tenha ido para festivais MS Não estamos a falar de relações simétricas
faz, do ponto de vista teórico, do ponto de
internacionais ou já tenha recebido prémios, com o cinema, o problema é esse. Não estamos a
vista daquilo que tem pertinência ser mostrado.
és automaticamente marginalizado. Portanto, partir do mesmo lugar.
Claro que isto é altamente subjetivo. Porque
este é o [tipo de] filme que poderá representar MS Mas o facto é que, para circular na tela, para
eu penso de uma maneira, a Ana Cristina pensa
as pessoas como eu. Não só do ponto de vista ter o cu na cadeira, é preciso chegar à tela. E,
de outra, a Michelle de outra [ainda]. É um tipo
étnico, mas também do ponto de vista de para chegar à tela, tens de ser legitimado, de ser
de cinema que não se mede ou não se coíbe
repertório. comprado por uma distribuidora e o exibidor tem
de se fazer aparecer ou de se fazer
MS Essa é a minha questão com o Pedro Costa. de exibir o teu filme.
autorrepresentar, independentemente de haver
lugares convencionados para a exibição e Em termos políticos, é fácil para o Pedro Costa WB Posso discordar? A tela, para mim, não é só
distribuição de filmes. É um tipo de cinema que fazer o cinema que faz porque tem toda a a sala de cinema. Eu sei que este cinema tem
está aí, que tem de ser encontrado e tem estrutura e apoio. Ele tem o Jacques Rancière estas implicações; não ser, justamente, o tipo de
de procurar mostrar-se. a escrever sobre o cinema dele... É fácil ser cinema que apele a essa máquina. Mas o que me
reconhecido como um cinema político, porque é diferencia, a meu ver, dos cineastas tradicionais,
29 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES E ANA CRISTINA PEREIRA

nomeadamente aqueles que estão articulados critérios de seleção deles), no Visões Periféricas perfil que eu, as mesmas necessidades. Mas
com a máquina, é que nós somos uma afronta, (no Rio de Janeiro), no Festival Africlap (em essas pessoas não estão presentes.
uma afronta real que existe. Estes tipos não Toulouse), no Zanzibar (como no ano passado),
[aparecem] nos livros. Isto não é um sonho. Existe em São Tomé e Príncipe, em todos esses lados.
e eu estou aqui. E haverá muitos outros que ou Porque não está fechado numa caixa. Mal de
ficaram no lugar de quererem produzir os filmes, mim. É nesse sentido que eu digo, estão os
ou produziram-nos, mas ainda não conseguiram filmes feitos... Claro que, se eu fosse outro autor,
perceber como é que os filmes podem ser se calhar da minha geração (não preciso de
mostrados. Por isso é que eu falo na ideia de estar aqui a dizer nomes), teria conseguido que
repertório. A máquina não compra agora, mas eu o Público ou o Diário de Notícias fizessem um
faço cinema. Eu protagonizo fora, noutros países. DVDzinho a acompanhar a tiragem de sábado
Aginal, 2018, Welket Bungué @welketbungue
O meu valor comercial há de alcançar um lugar para as pessoas depois verem o DVD em casa.
mediático em que qualquer pessoa que pegue Mas não sou filho daqui. E eu sei disso! Portanto, MS Queria colocar mais [uma questão] em
nestes filmes irá ver neles uma possibilidade mais do que nunca, o que estou a fazer é um relação à legitimação. Em 2002, no Brasil, foi
de lucro. A partir daí, vamos conseguir meter os serviço público. Não tenho obrigação nenhuma criada a ANCINE, a Agência Nacional [do Cinema]
filmes nas salas e ter as cadeiras cheias. É nesse de estar a fazer isto. Estou a fazer uso do meu (agora desmontada com o governo atual), e
sentido que eu trabalho. tempo para produzir uma coisa que acho que discutiu-se muito, nalguns editais que surgiram
será de utilidade pública. Não só do ponto de da ANCINE e de outros órgãos, a criação de
ACP Aí eu falo de categorização estratégica.
vista da fruição artística para quem for consumir, quotas para mulheres, grupos indígenas, negros,
Tens um festival na Cova da Moura [auto]-
mas porque tem temáticas rasantes, acutilantes, etc., para filmar. Para terem financiamento
categorizado “cinema negro”, que já leva cinco
e que vão ao encontro daquilo que são para poderem circular nos espaços em que
mil pessoas.
discussões urgenciais, que têm de ser levadas a há legislação para este tipo de cinema. É claro
WB Está bem, mas calma! Atenção a uma coisa. cabo neste país. Apesar de isto ser evidente, as que eu concordo que se tem de criar uma cena
Não é o facto de eu não categorizar o filme dessa pessoas fazem um grande esforço para não ver. própria para que isso se torne evidente, mas, ao
maneira que não considero que os filmes possam E é pena. Eu faço parte da triangulação Brasil, mesmo tempo, fico sempre pensando – e acho
fazer parte dessas exceções. Mas como não me Portugal e África. Não [queres investir] numa que isso é um problema que não está resolvido,
categorizo dessa maneira, mando os filmes para pessoa assim? [...] Esses tipos é que deviam estar nem vamos resolver aqui, mas é bom que se
todos! Não mando só para a Cova da Moura. Faço aqui a dizer-nos, em tese, porque é que acredito discuta – na criação de um gueto, de os filmes
questão que lá passe, mas faço questão que que não há acesso para mim ou para quem mora estarem a circular no gueto do cinema negro.
passe [também] no IndieLisboa, na Berlinale no mesmo lugar que eu ou que têm o mesmo Eu provoquei a Vanessa Fernandes com isso
(se tiver qualidade para passar segundo os
WELKET BUNGUÉ 30

também, porque a questão da definição é algo os tipos têm de investir mais. Esse capitalismo aquele do qual eu faço parte, é um cinema que
que se almeja, mas de que se foge para que não [de que falas] são estruturas internacionais está na origem de uma precariedade e de um
se fique sempre circunscrito a um espaço hiper- que conseguem investir muito mais dinheiro desejo de subversão, de transgressão daqueles
definido. [Depois,] não consegues fugir daquela para que os filmes deles sejam publicitados e que são os padrões do sistema, neste caso, da
temática, daquele problema. Eu pergunto: até comunicados massivamente. Claro que desviam indústria cinematográfica que temos, com as
que ponto o ICA, por exemplo, não deveria ter o foco das pessoas. Aliás, direcionam o foco suas limitações. Acho que essa é a força motriz
um sistema de quotas? Ou editais específicos das pessoas para aquilo que eles querem, os que faz com que tenhamos de produzir cada
para realizadores afrodescendentes? Porque filmes americanos consumidos aqui. Aqui e vez mais curtas-metragens, porque não temos
não criar editais específicos para isso? Porque em toda a parte do mundo. Um sistema de recursos para fazer muito mais do que isso. Há
não criar quotas específicas para a circulação quotas abriria um precedente: admitirmos cinco anos, eu já dizia isso e, hoje, estou cada
desse cinema, para a distribuição e exibição? que existe, efetivamente, uma assimetria do vez mais convencido. Acho que tem de se criar
Não há quota de tela em Portugal, não há cinema ponto de vista das oportunidades. Portugal, uma comissão que recolha todo este acervo de
português na tela em Portugal. Por exemplo, como tradicional país que é, com este desejo curtas-metragens e que encontre uma forma
a predominância do cinema americano no de [eugenismo] em tudo, duvido que fizesse específica de distribuir esse material e capitalizá-
mercado de exibição: chegas ao centro comercial uma coisa dessas. Se para dar nacionalidade a lo. Não se podem misturar curtas-metragens
e é Homem-Aranha, Batman, Vingadores... negros afrodescendentes é complicado, iriam com longas-metragens; a sua duração, o seu
abrir essa possibilidade? Preferem que a coisa género e orçamento são completamente
WB Aqui, anualmente, produzem-se entre dez a
se mantenha nesta paz podre que dá a entender distintos. Se conseguirmos criar um mercado
treze longas-metragens. É relativamente pouco.
que há uma grande tolerância, inclusão e sentido de circulação de curtas-metragens, vamos ter
MS Mesmo assim, ficam uma semana em de oportunidade equitativa, mas não é o caso. uma coisa que mais nenhum país da Europa
cartaz. Quando eu sei que vai estrear um filme Por outro lado, a guetização de determinados tem, neste momento, e vamos conseguir
português, compro logo [bilhete], porque sai na géneros, de determinadas filmografias, é um dar visibilidade ao trabalho que os cineastas
semana seguinte. assunto delicado, porque muito do cinema portugueses estão a fazer aqui, sejam brancos,
WB Acho que tem que ver com a formação de experimental que também não é entendido ou pretos, amarelos, de qualquer origem étnica. Isto
público. não tem, [à partida], um apelo capitalizável é é o que nós precisamos. Não queremos andar
remetido para esses lugares. São filmes que só a brincar às grandes produções quando temos
MS O sistema capitalista é muito inteligente e
passam em festivais e ficam guardados. Não são um número muito limitado de produtoras que
sabe apropriar-se desses espaços, a pipoca dá
difundidos em CD, DVD, e muito menos vão para ganham sempre os projetos. Produzem-se, por
muito lucro...
o cinema ou para a televisão. Agora, eu acho que ano, dez a treze obras. Uma produtora faz três ou
WB É, mas o governo tem de fazer um esforço o cinema português, em específico, sobretudo quatro filmes.
maior. Se o ICA é um instituto público-privado,
31 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES E ANA CRISTINA PEREIRA

MS Essa é a questão do acesso. WB Eu diria até cinco. Sabemos quem são essas E vamos ter programação. Um ano cheio de
pessoas. Não são os autores que dominam os curtas. Porque há produção para isso.
WB O ICA tem, desde o princípio do século,
financiamentos, são as produtoras, porque elas
uma política de expansão do cinema português ACP Há toda uma geração, aliás, já denominada
é que têm a pontuação e que detêm os direitos
para África. Creio que, pelo menos desde 2004, pela academia, justamente, como a geração das
maioritários das produções cinematográficas.
há um concurso específico para projetos curtas.
africanos, que têm de ter uma coprodutora WB Mas são especializados. As curtas são cada
portuguesa. Quem são os realizadores, os vez melhores. E, por falta de estrutura para dar
autores que têm tido acesso a esses fundos? escoamento a essas produções, há sempre este
São os mesmos homens, brancos, desejo latente de que os filmes têm [de estrear]
heterossexuais, burgueses, que dominam o lá fora primeiro para virem com crédito e
cinema. Portanto, as mesmas pessoas ficam sem poderem depois entrar em grandes festivais
acesso. É preciso ser criativo também. Não acho aqui. Se nós tivermos uma estrutura de
que seja só da parte das pessoas que escrevem distribuição, os filmes podem estrear lá fora ou
o sistema de atribuição, não acho que seja só I am not Pilatus, 2019, Welket Bungué @welketbungue
aqui, mas já sabes que vai para sala e vai trazer
patriarcado naquela mesa, acho que é falta ACP E que sabem fazer o projeto com as palavras retorno financeiro. Vai para salas no Porto, em
de imaginação. certas. Faro, em Lisboa, na Guarda, etc., circula por todo
MS E de conhecimento também. São políticas o país. Aí, criamos valor artístico, valor sobre as
WB Claro. Portanto, isso é um problema real.
públicas. É a política de Estado, acho que tem de peças concebidas, e as pessoas terão interesse
Se calhar, pensar na questão de quotas é
haver vontade política. em vir perceber que tipo de cinema é este que
pertinente, mas, desculpa-me o pessimismo,
se faz em Portugal e que consegue ter
ACP Tem de haver vontade política. E imaginação aqui [não há vontade política]. Isto é só o
distribuição. Porque, mesmo lá fora, que eu
para conseguir fazer os meios chegarem às meu ponto de vista, a minha resposta. O
saiba, não há uma estrutura de distribuição de
pessoas. Porque muita gente nem sabe como. Eu que eu acredito mais é em organizarem-se,
curtas-metragens. Há festivais, mas também
falei com alguns autores emergentes, que nem os interessados, sobretudo, e criar-se uma
se produz em menor volume. Não é a mesma
saberiam como concorrer. Nem sabem quando catalogação dos filmes curtos, segmentá-los
coisa que conseguires ir ao cinema ver curtas.
abre o concurso. em categorias e géneros, tentar reunir uma
Ou streaming, mesmo para curtas-metragens.
lista de cineclubes, por exemplo, os filmes
WB Porque há um grande domínio por conta de O que é preciso é haver um retorno financeiro
ficarem em cartaz e cobrar-se um valor por isso.
determinadas produtoras aqui em Portugal. para as pessoas que produzem. Porque dedicam
Antigamente, os cineclubes eram para as longas,
MS Há duas ou três produtoras que ganham os muito do seu tempo, trabalham em condições
passam a ser para as curtas-metragens.
editais sempre. precárias, muitas vezes, e, ao fim de duas, três
WELKET BUNGUÉ 32

curtas assim, [não dá] para fazer mais. Tens de onde se filma. Por exemplo, em Joaquim, tivemos que estamos a representar corpos negros
fazer sozinho, como eu faço, por exemplo. de ir para Diamantina, um lugar que faz parte escravizados, mas há um grande compromisso
Porque não consegues nem tempo nem de Minas Gerais, onde houve muita exploração e abertura por parte da direção para melhorar
dinheiro para pagar às pessoas. Se fores um escravocrata para extração de minério. aquela história. Melhorar aquela história
performer, que é o meu caso, estás sempre Sendo eu um negro, isso tinha uma implicação. significa tentarmos, ao máximo, melhorar
pronto para dançar, etc., depois pensar e articular Um negro empoderado, que não andava a pedir os estereótipos associados àquela época e,
as coisas para criar um sentido, mas, se fores favores, nem andava a subalternizar-se, como sobretudo, associados ao género. O filme de
só um realizador, não interpretas, e aí? Vais bater vi lá muitos ainda. O facto de fazermos um época é para [representar] ipsis verbis aquela
à porta, fazer telefonemas para chamar os filme sobre o Joaquim José da Silva Xavier, o que era a prática da altura, mas a que depois
atores para estarem sempre presentes? Tiradentes, tido como mítico herói nacional, chamamos ficção. Onde é que está a ficção?
Não é possível. que foi decapitado por se ter insurgido Estamos a fazer um proto-documentário
contra a coroa portuguesa e que, depois, de daquilo que se acredita ser o ambiente da
MS E a tua relação com o Brasil? Tinha
alguma maneira, foi canonizado à imagem época. E estamos fartos disso. Estamos fartos,
curiosidade de falar um pouco sobre isso, até
de Cristo, é uma adoção daquilo que são as digo eu. Porque comecei por fazer de escravizado
porque filmaste lá o Joaquim [2017], com o
referências religiosas do Brasil, ou seja, vindas em Equador, depois fiz outra personagem
Marcelo Gomes, uma superprodução que esteve
da Europa, ocidentais. Nesse filme, a pesquisa parecida... [Mas, neste filme], fiz uma personagem
em cartaz em vários países; o filme circulou.
e o envolvimento de três semanas no terreno que era um serviçal do tenente, do Tiradentes,
Como foi a experiência de fazer o Joaquim e
deram-me a conhecer várias implicações do e a minha história era justamente ser o seu
de viver no Brasil? Ou seja, estas estruturas que
ponto de vista relacional, entre os escravizados, braço direito e acompanhá-lo na sua expedição
temos pensado aqui em Portugal, que tipo
os brasileiros (que podiam ser os mestiços, os no Sertão Proibido. Ele foi enviado para lá para
de relações podem [estabelecer-se]
brasileiros nativos) e os brancos portugueses. morrer, mas foi levado a acreditar que haveria
relativamente à experiência de viver e trabalhar
E fiquei a saber, por exemplo, que os Balantas pedras preciosas e ouro. Se não morresse e
no Brasil?
foram levados como escravos para lá. Eu sou conseguisse trazer ouro para a coroa, poderia
WB há um crescimento que, em Portugal, Balanta. Assim como outros indivíduos de ficar rico e pagar a alforria de uma negra
não foi possível até então, porque as pessoas não outras etnias de países africanos. Nós estivemos escravizada, [interpretada pela] Isabél Zuaa,
se envolvem. Já fiz aqui alguns filmes. A história envolvidos na edição do guião, com quem ele se queria casar. Portanto, nos
que é contada, a relação com o argumento é porque aquilo que trazíamos de conhecimento filmes de época [deve haver] uma grande
uma coisa, sobretudo, de circunstância, de e que era posto em prática durante as imaginação ou um assumir de liberdade
filme. No Brasil, os projetos que tenho feito têm- improvisações foi adotado pelo argumentista. poética, que é o que o Marcelo Gomes fez.
me levado a interagir com a realidade dos lugares [Este é o caso de] um filme de época em Primeiro que tudo, corta o cabelo ao Tiradentes,
33 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES E ANA CRISTINA PEREIRA

[que deixa de ter] o cabelo grande como Jesus levou para fora, foi o início de uma relação
Cristo. Coloca o tipo a apaixonar-se por uma bastante familiar com o cinema brasileiro. Agora,
escravizada, tendo como braço direito um segue-se o filme Pedro [2019], realizado por Laís
negro, um mestiço e um indígena. No filme, há Bodanzky, que estivemos a filmar em São Paulo e
um índio, um mestiço e um negro, todos em que vai estrear este ano.
circunstâncias diferentes – as relações de
poder estão muito presentes –, mas cada uma
das personagens tem a sua individualidade.
Este aspecto tem que ver com uma
intertextualidade relacionada com o que a
história conta e qual o seu argumento, fazendo
com que este filme, para mim, me tenha trazido
um grande ensinamento do ponto de vista da
escrita para cinema. Porque, da mesma maneira
que outros filmes afetam o nosso imaginário
e entendimento sobre épocas passadas ou
sobre aquilo que são as obras fílmicas feitas
presentemente, este [filme] vem desconstruir
muitos estereótipos que tínhamos. Para já,
diz que o Tiradentes era um indivíduo igual a
outro qualquer, simplesmente estava numa
circunstância em que precisou de tomar
determinadas decisões e a sua morte foi
martirizada, fazendo com que se tornasse num
herói nacional. Ele não concebeu: “agora vou
ser um herói [nacional]”, mas é claro que não é
isso que é vendido na história popular brasileira.
Foi um filme feito em três, quatro semanas.
Fomos para locais inóspitos, pois queriam
filmar a 360 graus. E foi um projeto que me
O PÁSSARO-ESPELHO
MICHELLE SALES

Inspirado no trabalho de Catherine Russel, pensamento (concepção de escritura como


Experimental Ethnography: the work of film in criação, em vez de simples comunicação
the age of video, no qual a autora aprofunda de ideias). (p. 2)
a relação entre o filme experimental e o filme
Bastante influenciado pela literatura ensaística,
etnográfico, neste artigo, iremos explorar a
o filme-ensaio vai assumir algumas de suas
linguagem do documentário O canto do Ossobó,
errâncias e evocar sempre uma relação, como
de Silas Tiny, relacionando-o com os percursos
aponta Julia Vilhena (2019):
do filme-ensaio, refletindo acerca das formas
assumidas pelo filme e a maneira com a qual o Como se sabe, a forma ensaio no cinema e
realizador utiliza e aprofunda o documentário na literatura possuem grandes afinidades.
como uma ferramenta de busca por identidade, O gênero literário conferiu ao ensaio alguns de
memória e pertencimento, própria de um seus princípios mais fundamentais.
método investigativo autoetnográfico. Sendo assim, é frequente encontrar nos
estudos sobre o filme ensaio uma valorização
Por ser um texto literário localizado num
excessiva do texto verbal, falado ou escrito, na
entre-lugar entre o poético e o didático, entre
composição fílmica. Apesar da importância
a crítica e a ciência, entendido como uma
de se manter essa herança literária como
“literatura menor” por Deleuze e Guattari, a
referência para se refletir sobre a forma,
forma e a escrita ensaística por si requerem uma
torna-se necessário também um exame mais
aproximação e um entendimento. De acordo com
atento dos materiaise dispositivos
Arlindo Machado (2003):
expressivos próprios da linguagem audiovisual,
Denominamos ensaio uma certa modalidade
que conferem aos filmes uma inflexão
da escrita que carrega atributos amiúde
ensaística. (p. 21)
literários, como a subjetividade do
enfoque (explicitação do sujeito que fala), a Dessa forma, assumindo o espaço híbrido do
eloquência da linguagem (preocupação com filme-ensaio, e por isso entendendo-o não
a expressividade do texto) e a liberdade do como um gênero cinematográfico, mas como
O PÁSSARO-ESPELHO 36

um campo fértil de experimentação e Afora a clara diluição de fronteiras entre ficção Um caminho fabricado pelo cinema francês
contaminação entre múltiplas linguagens e documentário, o filme-ensaio dos anos 50 que nos interessa especialmente
cinematográficas, partimos do ponto em que causa na linguagem cinematográfica a quebra aqui é aquele que André Bazin define, já em
consideramos como filme-ensaio a “forma ou a redefinição de supostos lugares “fixos” 1958, como ensaístico, ao falar do filme Lettre
que pensa”, ou seja, um tipo de cinema cuja como as tradicionais dicotomias sujeito/objeto, de Sibérie (1957), de Chris Marker. Para o
dimensão reflexiva é caráter ontológico da privado/público, pessoal/coletivo, memória/ crítico francês, Marker “renova profundamente
imagem, bem como a premissa ativa da história, o “eu” e o “outro”. O embaralhamento a relação habitual entre texto e imagem”
subjetivação do autor. das fronteiras entre esses lugares transforma realizando um filme “sem precedentes” na

Para o filósofo francês Gilles Deleuze, o cinema o filme-ensaio num vasto campo de produção documental (Bazin, 1998: 257).

moderno é capaz de produzir um tipo de experimentação no cinema: um terreno Desde então, o ensaio fílmico, essa forma

relação entre a imagem e o espectador que fértil, poroso e indeterminado. No documentário, híbrida sem regras nem definição possível, mas

aprofunda e amplifica a subjetividade daquele é evidente o uso marcado da multivocalidade com o traço específico de misturar “experiência

que vê, mas também daquele que produz a ou da polifonia, em detrimento de uma de mundo, de vida e de si” (Moure, 2004: 25)

imagem. Para ele, o pensamento gerado pelo voz off ou voz over que explica o mundo que foi retomada e retrabalhada por cineastas tão

cinema reconstrói a potência da vida, produz vemos, bem como a maneira imprecisa e díspares e inventivos quanto Alain Resnais,

um tipo de relação que errante com que trata seus temas, Jean Luc Godard, Agnès Varda, Marguerite
contaminados por diferentes linguagens Duras, Straub-Huillet, entre outros. (p. 5)
leva o espectador a experienciar e pensar
e sobreposições.
o mundo. Para o filósofo, o pensamento Ao lado do aparecimento dessa “forma que
nasce no vácuo ou nos interstícios entre
Ao traçar uma breve genealogia do pensa”, de um cinema subjetivado e/ou
imagens e coloca o espectador em uma posição
filme-ensaio, ainda que sejamos incapazes de autobiográfico que surge como oposição à
de suspensão. Deleuze vai dizer que o cinema
apontar limites precisos para o aparecimento linguagem narrativa hegemônica seja da ficção
moderno apresenta uma ruptura com o
dessa forma-cinema, desde Carta da Sibéria ou da não-ficção, o campo do documentário
mundo, na medida em que estabelece uma
(1957), de Chris Marker, até aos dias de hoje, também vai sofrer inflexões ou influências
barreira entre este e o espectador. Nesse
é muito evidente uma “voz pessoal” e ativa, das transformações vividas no campo da
sentido, a preocupação deixa de ser com a
mediadora de imagens e sons – que nem sociologia e da antropologia que, desde os
associação ou a atração das imagens e passa
sempre são congruentes. Como aponta anos oitenta, passa a questionar a objetividade
a ser com o ‘interstício’ entre imagens, “um
Consuelo Lins (2013), o percurso do filme- da investigação e a marcar cada vez mais
espaçamento que faz com que cada imagem
ensaio está intrinsecamente vinculado às a importância da narrativa pessoal e das
se arranque ao vazio e nele recaia”.
transformações do cinema moderno: experiências dos autores da/na pesquisa.
(Deleuze, 2013, p. 216, in Vilhena, 2019, p. 36)
37 MICHELLE SALES

É dessa forma que surge o conceito da de imagem? Partimos, assim, para a análise de “realidade”. Como comenta Arlindo Machado
autoetnografia nos anos oitenta como um lugar O Canto do Ossobó, de Silas Tiny. (2003),
político de pensamento sobre a identidade – e Uma das sequências iniciais do filme de Silas o documentário começa a ganhar interesse
sobre a produção cultural da identidade – Tiny acompanha crianças a brincar em cima de quando ele se mostra capaz de construir uma
que, aliado ao movimento feminista, aos estudos árvores de cacau. Um deles observa a câmera visão ampla, densa e complexa de um objeto de
queer e aos escritos pós-coloniais movidos e aponta em direção ao espectador/realizador, reflexão, quando ele se transforma em ensaio,
por novas vozes emergentes reconfiguram, a devolvendo um olhar que funciona como em reflexão sobre o mundo, em experiência e
partir daí, o locus da produção cultural ao redor espelho: sabemos, ao longo do documentário, sistema de pensamento, assumindo, portanto,
do mundo. que Silas Tiny emigrou de São Tomé e Princípe aquilo que todo audiovisual é na sua essência:
De forma breve, podemos dizer que a para Portugal aos cinco anos de idade e que um discurso sensível sobre o mundo. Eu
autoetnografia é baseada em três orientações: grande parte das motivações deste filme consiste acredito que os melhores documentários,
uma orientação metodológica, cuja base é a em recuperar uma memória perdida. O filme aqueles que têm algum tipo de contribuição
etnografia e a análise; uma orientação cultural, parte dessa busca pessoal e deste encontro do a dar para o conhecimento e a experiência
que tem como ponto de partida a interpretação realizador com suas “origens”, numa postura do mundo, já não são mais documentários
dos fatos vividos (a partir da memória), da relação ativa de Silas Tiny que se coloca também em no sentido clássico do termo; eles são, na
entre o pesquisador e os sujeitos (objetos) da cena, como personagem num entre-lugar entre verdade, filmes-ensaios (ou vídeosensaios, ou
pesquisa; e uma orientação de conteúdo, cuja sujeito e objeto, chave característica do filme- ensaios em forma de programa de televisão ou
base é a autobiografia aliada a ensaio. hipermídia). (p. 10)
um caráter reflexivo. Não parece demais referir que, nos últimos anos, O início do filme O canto do Ossobó parte
Isto torna evidente que a reflexividade assume a produção intelectual em torno da noção e da exatamente deste ponto: da reflexão sobre
um papel fundamental nesse modelo de historiografia do filme-ensaio é impulsionada por o mundo. O realizador caminha por entre a
investigação. Queremos pensar a partir deste uma certa “virada subjetiva do documentário”, mata, observa e é observado, toca as plantas
ponto: de que forma o cinema na forma do ou seja, transformações que, como referimos e as árvores, num esforço de espanto e dúvida.
filme-ensaio absorve (e é absorvido) por essas acima, partiam também do campo da sociologia Inicialmente, essa reflexão sobre o mundo recai
novas dinâmicas da produção de conhecimento e da antropologia e que caminharam juntas numa perspectiva muito individual e familiar
que partem do campo da sociologia e da com inflexões da linguagem documental que foi que, aos poucos, como veremos, vai-se
antropologia? Ou seja, poderia ser a “forma que exigindo para si um lugar de mediação e reflexão alargando.
pensa” do filme-ensaio matéria (e sujeito) do sobre o mundo e sobre a vida, abandonando,
Nasci em São Tomé e Príncipe e aos cinco
método autoetnográfico? Como se dá em termos cada vez mais, a relação com o “real” e com a
anos emigrei com minha família para Portugal.
O PÁSSARO-ESPELHO 38

Durante três décadas, permaneci afastado como um dos “recursos subjetivantes” deste Um “documentário de busca”, para usar o termo
das minhas raízes e do meu país. Ignorei a gênero híbrido que repõe o espaço sonoro cunhado por Consuelo Lins e Cláudia Mesquista,
história dos meus antepassados que ocuparam como locus central da subjetividade do movido pela viagem de Silas Tiny de volta a sua
este minúsculo território perdido algures no autor, como comenta Consuelo Lins (2013) terra, que reflete sobre a memória individual do
meio do Atlântico e atravessado pela linha ao contextualizar a produção documental do realizador e é confrontado com as ruínas,
do Equador. As memórias que tinha desse lugar cinema brasileiro: no sentido benjaminiano, que, ao longo de todo
desapareceram, o elo que me ligava à terra o filme, tenta converter o passado em “imagens
Mais recentemente, documentários ligados à
perdeu-se. Esqueci meu passado, como dialéticas” capazes de dialogar com o presente e
chamada produção subjetiva ou performática,
quem esquece um trauma difícil, uma iluminar o futuro. O filme de Silas Tiny relaciona-
que tematizam aspectos da experiência pessoal
recordação dolorosa. Escondo a cicatriz dessa se com a história e, como um colecionador
dos cineastas, reintroduziram a narração em
ferida profunda por baixo da minha pele, errante, passeia e coleta estilhaços. Faz-nos
off de forma inovadora no Brasil, deslocando
longe dos olhares das pessoas que me lembrar Walter Benjamin (1994) nessa
os usos clássicos desse recurso no campo
observam e das pessoas com quem falo passagem do seu texto Sobre o Contexto
documental. Filmes como Seams (1997),
todos os dias. (Tiny, O canto do Ossobó, de História:
de Karin Ainouz, 33 (2003), de Kiko Goifman e
98 minutos)
Santiago, uma reflexão sobre o material bruto Há um quadro de Klee que se chama Angelus
(2007), de João Moreira Salles, são exemplares Novus. Representa um anjo que parece querer
de um uso mais ensaístico da voz off, afastar-se de algo que ele encara fixamente.
fabricando associações inauditas do Seus olhos estão escancarados, sua boca
espaço sonoro do cinema com o espaço dilatada, suas asas abertas. O anjo da história
visual. (p. 4) deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido
para o passado. Onde nós vemos uma cadeia
de acontecimentos, ele vê uma catástrofe
única, que acumula incansavelmente ruína
sobre ruína e a dispersa a nossos pés. Ele
O canto do Ossobó, 2017, Silas Tiny @silastiny
gostaria de deter-se para acordar os mortos e
juntar os fragmentos. Mas uma tempestade (...)
Recupero a fala de Silas Tiny como citação
o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual
porque o uso estilístico da voz off é um recurso
ele vira as costas, enquanto um amontoado
bastante presente na modalidade do filme-
de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é
ensaio que tem vindo a ser comentado, também
O canto do Ossobó, 2017, Silas Tiny @silastiny chamada de progresso. (p. 226)
39 MICHELLE SALES

A mesma narrativa de progresso está entranhada passado silenciado e incerto que se transformará peso do trabalho e do medo. Nesta mesma
no filme de Silas Tiny, pois sendo o progresso numa espécie de imagem-fantasma, uma maternidade, da qual hoje apenas restam
o motor do colonialismo e o pressuposto da imagem atemporal capaz de dialogar com o ruínas e animais que fugiam
modernidade, os mortos que o realizador passado, o presente e o futuro, como o canto para poder dar luz às suas crias, nasceram
do Ossobó, o pássaro que anuncia a chuva, crianças que testemunharam a dor e o
mas que nunca é visto, segundo a lenda sofrimento dos seus anónimos que durante
de São Tomé. gerações viveram a escravatura. Em São Tomé,
a avidez, o poder e a dominação colonial
A metáfora da vida e da morte percorre todo
foram representados por um espaço: a roça.
o filme, transformando e relacionando a
(Tiny, O canto do Ossobó, 98 minutos)
trajetória pessoal do realizador com a trajetória
coletiva do seu país e os percalços vividos Termino parafraseando Walter Mignolo (2019):
durante o período do colonialismo. A cena da “A colonialidade está longe de ter sido
cabra que está parindo do lado de fora das superada” (p. 15), portanto, um cinema
O canto do Ossobó, 2017, Silas Tiny @silastiny ruínas de um antigo hospital faz viver e iconoclasta, pós-colonial, deverá prosseguir,
encontra pelo caminho no seu percurso reviver o drama coletivo colonial. A imagem rasgando o passado e iluminando o
em ruína do hospital é uma imagem-síntese
deambulatório por São Tomé e Príncipe ao futuro.
do processo de busca, de reflexão, do método
longo do filme também os faz querer despertar,
investigativo autoetnográfico e também de
libertando um futuro que o passado de seu
filmagem, esgarçando completamente e em
país não teve, como o anjo da história
definitivo as fronteiras entre sujeito-objeto,
de Benjamin.
pessoal/coletivo, memória/história:
É um olhar iconoclasta que vai guiando-nos por
Uma das minhas irmãs nasceu neste hospital
estas ruínas, despertando-as de seu passado
em 1980; nesta altura, tinham se passado
para revelar o escândalo e a catástrofe do
cinco anos da independência de São Tomé.
colonialismo diante de nossos olhos. O filme
As roças tinham sido nacionalizadas e
rompe com a lineraridade da história
transformadas em cooperativas. No início O canto do Ossobó, 2017, Silas Tiny @silastiny
homogênea que parte em direção ao progresso
dessa década ainda seriam visíveis as
e ao futuro e cria um curto-circuito que
marcas dos milhares de homens e mulheres
relampeja. Converte o próprio filme num “cinema
que por aqui passaram, esgotados pelo
de ruínas”, guiado por fragmentos de um
O PÁSSARO-ESPELHO 40

Bibliografia Vilhena, J. (2019). Falar ao lado: vozes femininas


e pós-coloniais no filme ensaio (Dissertação de
Benjamin, W. (1994). Sobre o Conceito da
Mestrado). Pontifícia Universidade Católica do
História. In Magia e Técnica, Arte e Política.
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
Obras escolhidas. Volume 1. Trad. Sergio Paulo
Rouanet. São Paulo, Brasil: Brasiliense.

Lins, C. & Mesquita, C. (2008). Filmar o Real: sobre


documentário brasileiro contemporâneo. Rio de
Janeiro, Brasil: Jorge Zahar.

Lins, C. (2014). O ensaio no documentário e a


questão da narrative em off. XXII Encontro Anual
da Compós. Associação Nacional dos Programas
de Pós-Graduação, XXII Encontro Anual da
Compós, Universidade Federal do Pará, Brasil, 27
a 30 de maio de 2014.
Machado, A. (2003, setembro). O filme-
ensaio. Intercom – Sociedade Brasileira de
Estudos Interdisciplinares da Comunicação,
XXVI Congresso Brasileiro de Ciências da
Comunicação, Universidade Federal de Minas
Gerais, Belo Horizonte, 2 a 6 de setembro.

Mignolo, W. (2017). Coloniality is far from over,


and so must be decoloniality. Afterall journal,
Londres, n.º 43, primavera-verão, 38-45.
Disponível em: http://www.journals.uchicago.
edu/doi/full/10.1086/692552

Russel, C. (1999). Experimental etnography. The


work of film in the age of video. Durham, Carolina
do Norte, EUA: Duke University Press.
SILAS TINY
ENTREVISTA REALIZADA POR
MICHELLE SALES E ANA CRISTINA PEREIRA

publicação e as entrevistas aos realizadores, que


devem constar nessa publicação, transcritas,
como material de pesquisa. Eu aviso já para
poder ter autorização para essa publicação.
Isto só para te informar como ainda não nos
tínhamos encontrado. A minha mediação foi toda
feita pela Ana Cristina Pereira. Eu queria começar
esta conversa pedindo que te apresentasses e
falasses um pouco da tua trajetória profissional,
para que possamos ir entrando nos teus filmes e
Entrevista a Silas Tiny, Hangar, 2019, por Michelle Sales e Ana abordando outras [questões].
Cristina Pereira @michellesales
Silas Tiny Falar sobre mim, sobre nós próprios,
Michelle Sales Entrevista a Silas Tiny, 8 de maio é sempre complicado, porque a imagem que
de 2019. Esta é uma conversa informal. Estamos temos sobre nós, às vezes, pode ser um pouco
a fazer uma série de entrevistas para um projeto distorcida. No entanto, biograficamente, a minha
de investigação chamado “À Margem do Cinema história começa em São Tomé [e Príncipe].
Português”, cujo subtítulo é o seguinte: “Estudos Eu nasci em São Tomé, um país do Golfo da
sobre cinema afrodescendente produzido em Guiné que foi colonizado por portugueses, e
Portugal.” A ideia é estabelecer uma cartografia vim para Portugal aos cinco anos, com os meus
de realizadores que estão a filmar, mas não pais. Já tínhamos família aqui. Somos uma
só. Somos oito investigadores, que vão tentar família grande. Além de primos e tios, alguns
produzir também material bibliográfico sobre familiares já tinham vindo para Portugal, para a
filmes e realizadores. Além das entrevistas, há zona Oeste, e os meus pais vieram em 1989.
uma residência em junho, em Coimbra, e uma Eu vim com a minha mãe para uma aldeia na
mostra no final do ano, onde devemos lançar a zona da Malveira, onde estudei, cresci e passei
SILAS TINY 42

grande parte da minha vida. O ambiente urbano A verdade é que vim a aproximar-me cada vez ST O ensino, para mim, é sempre algo de difícil
é-me desconhecido, praticamente. Vim para mais do cinema. relacionamento. Porque considero que, no
Portugal cedo, estudei, fiz a escola primária, ensino, somos muitas vezes levados a pensar em
Ana Cristina Pereira Fizeste o curso de cinema
os estudos, etc., tudo naquela zona. A minha vida categorias já preestabelecidas. Não quer dizer
ou o curso de teatro na ESTC?
é um pouco assimétrica. Porque, desde cedo, que isso não seja importante. É importante para
comecei a pintar. Fazia pintura e escultura ST De cinema. conseguirmos ter também uma bagagem, para
de forma autodidata. Sempre me interessei mais ACP Fizeste o curso de cinema na Escola Superior pensar o mundo em si, mas chega uma altura
por pintura, que é uma coisa de que eu gosto de Teatro e Cinema. Então, pertences à “grande em que isso começa a ser limitador. Eu sempre
muito. Agora, já não estou tão próximo, família do cinema português”. li muito e sempre gostei muito de ler, portanto,
mas gostava mesmo muito de pintura. O via a escola, num certo sentido, quase como
ST Não sei a que chamam “grande família do
engraçado é que, para seguir os estudos, nunca uma afronta às minhas próprias capacidades de
cinema português”, mas, na ESTC, passaram
escolhi as artes, escolhi sempre outra coisa. pensar de forma exterior. Considero que esta
muitos cineastas portugueses, dos mais
E fui para ciências. Algum tempo depois, deixei [provavelmente] não era uma forma justa de
conhecidos aos menos conhecidos. Tive
de estudar – já próximo de entrar na faculdade olhar para as coisas, mas era como me sentia na
professores como o Joaquim Sapinho, a Manuela
– e comecei a trabalhar. Trabalhei durante, altura. A ESTC, o que me dava – e não sei como
Viegas, o Vítor Gonçalves, etc. Nessa altura, o que
sensivelmente, quatro anos e, durante esses está agora...
me levou a candidatar-me à ESTC foi sentir que
quatro anos, continuei a dedicar-me à pintura
me faltava algum background de cinema, alguma ACP Foi em que ano?
de forma autodidata. Depois de ter começado
capacidade de pensar o cinema, que é o mais ST Em 2010. Naquela altura, dava-me alguma
a trabalhar, voltei novamente à faculdade,
importante. Fazer é uma coisa, conseguir pensar liberdade. Os professores eram compreensivos
o que aconteceu já muito tarde, naquela
o cinema é outra. Naquela altura, eu tinha uma na forma como davam as aulas e também tinham
fase a que se chama “maiores de 23”, e entrei
grande revolta contra o ensino. Considerava que uma coisa boa: estavam interessados em pensar
para a Escola Superior de Teatro e Cinema. O
a forma como o ensino era feito e [transmitido] o cinema. Portanto, eu aprendi a pensar – não
curioso foi que, antes de entrar para a ESTC,
(foi uma das razões que me levaram a sair da aprendi a pensar só com os professores, mas eles
tinha começado a interessar-me por cinema.
escola) não estava correto. Claro que era uma ajudaram nesse processo. A professora Manuela
Anteriormente, não me interessava muito, até
revolta adolescente, mas, na altura, fazia todo o Viegas, que foi minha professora de montagem,
porque a pintura preenchia-me, mas houve
sentido. Portanto, saí. Quando achei que a escola tinha uma forma muito curiosa de ver os filmes
ali uma altura em que senti que não estava a
poderia ser uma mais-valia, comecei a aproximar- e com a qual me identifiquei muito: não ver o
conseguir fazer coisa alguma, não sei se por
me do cinema. cinema só naquilo que está, mas na capacidade
culpa minha ou se aquele não era bem o meu
meio de expressão. ACP E essa experiência valeu a pena? Como é que de criar vários contextos. Portanto, um plano não
tu vês, hoje, a tua relação com a escola? é só aquele plano, mas, por trás, a ligação entre
43 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES E ANA CRISTINA PEREIRA

os planos, as ideias, é imprescindível. Não só ST O cinema português, isto para tentarmos financiamento não temos. Como é que vamos
para o realizador, mas para o próprio espectador. enquadrar, funciona como os países pequenos. fazer? O que acontece é que depois temos de
Coisas que os espectadores não se apercebem, Porque o cinema é considerado uma indústria, utilizar a criatividade, em vez de utilizar coisas
porque não são explicadas diretamente, mas mas há quem lhe chame arte, uma mistura de muito... Queria encontrar aqui uma palavra que
que, inconscientemente, são levados a pensar. E duas coisas. Mas, em alguns países pequenos, há não fosse...
ela fazia isso com uma grande capacidade, tem uma tendência de os realizadores e as pessoas ACP Sofisticadas, caras, dispendiosas,
uma grande capacidade de fazer isso. Os outros que fazem cinema criarem uma força através tecnologicamente avançadas...?
professores também tinham a capacidade de nos da singularidade. Como não têm tantos meios
ST Porque o desejo de utilizá-las está sempre
levar a pensar dessa forma. para fazer, tentam criar, através dos objetos, das
lá. A questão é que os meios não existem. Como
coisas que fazem, dos filmes que fazem, coisas
MS E, além da relação com os professores esses meios não existem, nós vamos à procura
singulares e com um pouco mais de liberdade.
da ESTC, com relação ao cinema português, de uma singularidade. A pobreza tem esta coisa
Não quer dizer que essas coisas sejam todas
consegues articular alguma ideia de influência no boa, que nos leva a ser criativos. Os portugueses,
boas, portanto, nessa singularidade existem
teu trabalho que possa ter culminado em O Canto e os povos menos ricos, em geral, têm esta
algumas coisas que não funcionam, mas que
do Ossobó [2017], por exemplo, ou alguma linha faculdade de serem criativos com pouco. Esta
levam sempre a um desejo de descobrir novas
de força do cinema português, já que existe toda criatividade existe também no cinema português.
formas de fazer, o que também é importante.
essa relação estrutural no ensino e na academia, Em alguns casos funciona, noutros não funciona,
Aqui em Portugal acontece isto, devido ao meio
com o pensamento sobre o cinema, muito mas existe e isso não pode ser negado. No meu
ser muito pequeno e aos meios financeiros. O
presente em Portugal? caso, sinceramente, se estivermos a falar a nível
cinema – eu não gosto de chamar só arte – é
ST Eu não consigo retirar uma influência direta, de formalismo do cinema em si, há algumas
uma atividade, [ao mesmo tempo que] é uma
porque penso que o cinema português também coisas de que gosto, mas não posso dizer
arte, mas é muito diferente de todas as artes,
é muito variado. Aquilo que se chama o cinema que fui influenciado por isso, porque estaria
porque exige muito dinheiro, é uma forma de
português é uma coisa muito complexa. Há a mentir. Venho mais de uma perspetiva do
fazer arte e de fazer objetos muito dispendiosa.
uns que se identificam, outros que não se cinema clássico norte-americano, de que gosto,
Se pensarmos, no geral, as outras artes não
identificam... como no caso do John Ford. Mas não só. O
funcionam deste modo. Funcionam de uma
Mizoguchi... e muitos outros, como o Rossellini,
ACP Voltamos às categorizações. forma um pouco mais reduzida e barata. Não
o Charlie Chaplin, esses não posso negar, são as
quer dizer que seja muito mais barata, mas mais
ST Pois. influências que eu vejo no cinema. Não é que eu
barata. O cinema, em si, é uma coisa muito cara e
MS Mas, quando olhas para o cinema português, queira fazer igual a eles, mas vejo ali um sentido
é essa parte financeira que, muitas vezes, resulta
de que é que gostas e que achas que pode onde ir buscar e quero fazer igual. Portanto,
em grandes dificuldades. Muitas vezes, queremos
ajudar-te a pensar o teu cinema, por exemplo? nesses posso ver uma influência direta. Agora,
criar um filme que temos em mente, mas cujo
SILAS TINY 44

no cinema português, (tenho essa semelhança, vezes, definir os nossos conceitos estéticos. que estavam a trabalhar comigo. Foi uma coisa
de resto, com quem quer fazer cinema) há uma Esse é o ponto. Portanto, em O Canto do Ossobó, muito estimulante, eles viam o meu empenho e
procura de fazer, com pouco, alguma coisa que como não havia muitos meios, ou quase nenhuns foram recetivos a isso e, portanto, ajudaram-me.
seja relevante, que consiga dizer alguma coisa. meios, os conceitos que eu desenvolvi ou que E conseguimos fazer O Canto do Ossobó. Porque
podia desenvolver foram determinados por era um filme que já estava muito pensado, os
isso. Não quer dizer que, se eu tivesse três vezes conceitos já estavam muito amadurecidos. Eu já
mais, seria muito diferente, mas, para este filme tinha em mente, muito enraizadas, as coisas que
em si, foi muito determinante. Quando fui para queria filmar. Portanto, se ia para uma situação
São Tomé fazer aquele filme, não fui só fazer fazer alguma coisa, sabia precisamente onde
aquele filme, fui fazer um outro filme, que está queria colocar a câmara, o que queria fazer... O
em pós-produção, [aproveitando] a viagem. A cinema tem que ver com isto, o que colocamos
minha perceção é a seguinte: nunca sei quando dentro ou fora. O que queremos colocar dentro
vou voltar a fazer um filme. Porque, como já do enquadramento, o que queremos colocar fora.
disse no início, o cinema é uma coisa cara e Quando existem muitas dúvidas, quer dizer que,
nunca sei se vou voltar a ter meios à disposição. possivelmente, ainda não estamos conscientes
Bafatá Filme Clube, 2013, Silas Tiny @silastiny
Assim, quando os tenho, quero aproveitar ao do que queremos fazer. Essa consciência que
MS E achas que isso foi condicionante, por eu tinha, à partida, quando fui fazer O Canto do
máximo. Portanto, quando fui para São Tomé
exemplo, para o formato de O Canto do Ossobó? rodar o filme (o Construções do Equador, ainda Ossobó, foi [determinante para fazer o filme], não
ST Sim, sim. em pós-produção), fizemos um segundo filme, só através de mim, mas da ajuda e do incentivo
O Canto do Ossobó. Não é o segundo [filme] dos meus colegas todos. Eu chamo colegas,
MS Em termos de condições de produção,
em termos de conceção, porque já tinha sido apesar de serem [também amigos]. O Rui, que é o
condições de financiamento? Em termos
desenvolvido há muito tempo, mas não havia meu produtor, a Teresa, o João Vagos...
estéticos, achas que isso foi uma condicionante
meios para o fazer. Quando se deu a ocasião de ACP Tiveste financiamento do ICA? Com que
para o formato final do filme?
fazer um outro filme, não havia dúvidas de que produtora é que trabalhas? São teus colegas
ST Estéticos, não. Mas concetuais, sim. Quando eu teria de fazer O Canto do Ossobó. Portanto, de geração, são pessoas a quem tu chegaste
falamos do estético, tem que ver com a conceção aproveitei as circunstâncias para fazer esse filme. depois...? É isso também que eu quero dizer com
que nós temos. Quando partimos para um Foi um filme muito limitado em termos de meios. “grande família do cinema português”. Ter estado
filme ou para uma rodagem, essa conceção Estivemos três semanas a fazer os dois filmes. na Escola [de Cinema] facilita muito.
estética está, à partida, delimitada pelos meios Foi um trabalho imenso de toda a gente, de
que temos. Nós pensamos que não, que é ao ST Facilita e não facilita. Ainda bem que colocas
todos os participantes, de todos os meus amigos
contrário, mas não. Os nossos meios vão, muitas essa questão. Apesar de eu ter passado [por]
45 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES E ANA CRISTINA PEREIRA

isso, há uma coisa muito importante. Antes de ST Trabalho, mas é tudo um milagre, não é? Eu Nessa altura, andava um pouco distante das
entrar na Escola de Teatro e Cinema, já estava a ter ganhado com esse meu primeiro projeto. minhas raízes. Nós, que somos desta geração,
começar a fazer os meus próprios filmes. Tive, Ganhei o financiamento nesse primeiro concurso uma segunda geração de africanos; podemos
digamos, a bênção, fui agraciado por um projeto do ICA com a Real Ficção. E fui fazer esse filme considerar já assim, não é? E eu vivia numa
que eu queria fazer e através do qual conheci antes mesmo de saber que ia entrar na Escola realidade um pouco afastada da [realidade]
o Rui Simões, antes de entrar na Escola de de Teatro e Cinema. Como o Rui estava na ESTC, urbana, onde existem mais pessoas de
Cinema. Estava a fazer um projeto meu, pessoal, entretanto (penso que foi numas férias), fui à ascendência africana. Nós éramos a única família
que enviei ao Rui Simões (entre muitos outros), Guiné realizar um filme, o Bafatá Filme Clube de negros a viver naquela zona, naquela aldeia –
que foi quem se mostrou disponível. Nessa [2012]. Era a história deste homem, que depois portanto, eu vivia aquilo como vivia outra coisa
altura, os projetos eram uma coisa diferente. Às sofreu algumas alterações no meio, porque nós qualquer. A minha relação com as minhas raízes
tantas, nessa pesquisa que eu estava a fazer, não tivemos tempo – tem que ver outra vez com não estava muito bem identificada, portanto, eu
que tinha que ver com uns músicos da Guiné- a história dos meios... Apesar de ter ganhado o nunca me questionei muito sobre isso. Mas, com
Bissau na época da revolução, como o José concurso, o financiamento não era tão grande esta alteração a nível pessoal, fui começando a
Carlos Schwarz. O primeiro filme que eu estava quanto isso, mas tinha de estar agradecido. [Só aproximar-me e a questionar-me mais sobre esta
a preparar tinha que ver com isso. No entanto, que fomos] à Guiné e não tínhamos nada assim ligação à minha terra.
numa das leituras que eu estava a fazer, descobri muito preparado. Sabíamos mais ou menos o MS O facto de ser pai?
a história de um homem que vivia em Bafatá e que íamos fazer, mas havia ali muitas dúvidas
ST Sim, o facto de ter sido pai e de começar a
era guarda num cinema dessa cidade. Eu achei pelo meio. E, quando chegámos lá, começámos
questionar-me sobre qual a minha herança para
que não valia a pena fazer um filme sobre outra a ver as coisas e o filme com uma direção um
os meus. O que é que eu poderia deixar daquilo
coisa qualquer, porque o tema já estava ali. pouco diferente da que tinha inicialmente. Foi um
que tinha? E comecei a pensar que não conhecia
Portanto, deixei de parte o filme que estava a pouco diferente de O Canto do Ossobó. Ali, eu não
nada daquilo que tinha.
querer fazer e fui fazer esse filme. Escrevi esse sabia muito bem o que iria surgir do filme. Em O
filme e disse ao Rui Simões: “Rui, não vale a pena Canto do Ossobó eu já sabia bem de que queria MS Há uma questão muito contemporânea em O
estar a fazer esse filme, porque eu estou mais falar. A história do Canjajá foi o que me levou a Canto do Ossobó, sobre a qual queria conversar
interessado neste filme, vamos fazer este filme fazer esse primeiro filme com a Real Ficção. Foi contigo, que é essa atitude reflexiva e subjetiva
sobre o Canjajá, que é uma coisa de que quero o meu primeiro filme, enquanto andava ainda em relação ao tema do documentário, que é o
falar.” [E ele disse:] “Está bem, vamos escrever no primeiro ano da Escola Superior de Teatro tema da tua vida, não é? Alguns documentários
este projeto.” E eu escrevi o projeto. Tive a sorte, e Cinema. Essa primeira viagem coincidiu com têm sido chamados documentários de busca,
não sei se posso só chamar sorte ... coisas pessoais, da minha própria vida. Antes exatamente porque os realizadores se colocam
de entrar na ESTC, fui pai pela primeira vez. de maneira muito subjetiva, intercalam vozes
ACP A sorte dá muito trabalho.
SILAS TINY 46

e trabalham um pouco com o arquivo, um por acaso, o filme foi muito pensado, não em que ele seja meu, o triste, às vezes, é saber que,
pouco como em O Canto do Ossobó – por isso termos de resultado, mas a nível estrutural, a possivelmente, isso nunca vai acontecer por
é que te perguntei sobre a tua filiação, se era nível concetual. Quando cheguei a O Canto do inteiro. Ou já não é mais possível. Isso acontece
possível traçar em alguma genealogia no cinema Ossobó, eu sabia o que queria fazer enquanto não só comigo, mas com muitas pessoas da
português... Porque o Bafatá não coloca essa filme. Para mim, há uma coisa muito importante minha família. O meu pai só voltou a São Tomé
questão, ou seja, não há o Silas Tiny como que tem que ver com desenvolvermos qualquer vinte e cinco anos depois de ter estado em
personagem como há em O Canto do Ossobó, coisa a nível pessoal, sempre ligado ao que Portugal. As imagens que nós vemos no filme
não há esse jogo com o espectador. Como é que podemos fazer de forma profissional. O cinema foram filmadas por ele da primeira vez que
tu vês O Canto do Ossobó a nível internacional e a minha vida, não que sejam duas coisas voltou a São Tomé, vinte e cinco anos depois.
e na relação com o documentário enquanto iguais, mas as minhas ideias, enquanto pessoa, As imagens que eu fiz em São Tomé eram um
género e relação com a ficção – porque há uma eu tento transferi-las para os meus filmes. Não paralelismo com isso. Ou seja, eu fiz as minhas
construção ao longo do filme que vai baralhando de uma forma direta ou política, mas tento próprias imagens a partir das imagens que o meu
essas relações, do documentário com a ficção, colocar a minha forma de ver o mundo dentro pai tinha feito quando voltou a São Tomé. O filme
da imagem de arquivo com a imagem pessoal... dos meus filmes. O Canto do Ossobó é um nasce desta dupla procuração. Não só com as
filme que derivou de duas coisas: uma busca origens, mas também com a família. Como é que
pessoal – não só minha, porque é uma busca nós herdamos; como é que nós passamos; como
pessoal que envolveu toda a minha família. Nós é que nós, ao mesmo tempo, nos conseguimos
chegámos a Portugal nos anos 80 e muitos de situar e fazer essa comunicação com o que
nós não voltámos para os nossos países. Eu só herdamos dos nossos pais? Os arquivos que
voltei a São Tomé quase trinta anos depois de existem em O Canto do Ossobó foi o meu pai que
ter chegado a Portugal. É muito tempo. É como os fez.
se houvesse um corte, como se esquecêssemos MS Mas há lá imagens da Cinemateca Portuguesa
quase tudo e quando estamos lá não sabemos também.
bem de onde somos. O Canto do Ossobó deriva
ST Essas imagens da Cinemateca Portuguesa já
Bafatá Filme Clube, 2013, Silas Tiny @silastiny deste problema: como é que nos conseguimos
têm que ver com outra temática. Têm que ver
situar num lugar que, à partida, podemos
ST É uma boa pergunta. Em relação a essa com o colonialismo que existia em São Tomé.
considerar nosso, mas não é nosso? Mas nós
primeira questão, como é que eu coloco o O filme tem vários eixos: o eixo pessoal, o eixo
queremos que ele seja nosso. A questão é que,
filme a nível internacional? Eu não coloco, eu coletivo e o eixo familiar, que é o que modela o
apesar de querermos que esse espaço, esse
não penso nisso. Eu trabalho, faço os filmes e filme. Este é um filme muito pessoal. Eu acho,
território que é São Tomé, apesar de eu querer
tento pensar os filmes. Em O Canto do Ossobó,
47 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES E ANA CRISTINA PEREIRA

sinceramente, que não sei se vou voltar a fazer parte dessas memórias que vêm do passado. estão em O Canto do Ossobó só conseguirão ser
um filme igual a este. Nunca estamos livres delas. Essa ideia é algo que entendidas através de um segundo filme, que é o
me interessa, algo que me persegue sempre nos que está a ser feito. Portanto, o Ossobó não é um
ACP Há coisas que só se dizem uma vez. Ficam
meus filmes, tanto nos que já fiz como nos que filme fechado, é um filme aberto (como alguns
ditas.
vou fazer. Pode é não ser da mesma forma. filmes não são fechados, mesmo que não sejam
ST Talvez. segundas partes; nós só conseguimos entender,
MS O ossobó, por fim, também se torna esse
MS Há uma cena, que eu acho muito forte no fantasma, essa imagem. Aí, acho que há uma às vezes, certos filmes, ou certos realizadores,
filme, em que estás a entrevistar um senhor de relação no documentário que é forte, essa através de outros filmes que eles vão fazendo).
idade e perguntas se ele via na roça os negros a imagem que não existe e que não pode ser Ou seja, um filme nunca é só aquele filme, apesar
serem enterrados vivos, porque se rebelavam... E vista. E que, ao fim e ao cabo, se torna aquelas de termos de conseguir fazer materialmente
ele narra uma situação, dizendo que ele não via, fotografias de família a que não consegues aquele filme, ele depende sempre dos outros que
mas os antepassados viram e contaram, e esse vêm [depois]. O Canto do Ossobó é disto exemplo,
aceder, a casa da tua família que não consegues
fantasma, no filme, está presente o tempo inteiro. encontrar, o pássaro que canta que ninguém foi pensado assim. Estas coisas que foram
faladas, a que não se conseguem aceder, não se
ST Essa é uma ideia que eu queria ter consegue ver; e há essa sobreposição de imagens
conseguem aceder por duas razões: porque as
desenvolvido no Bafatá, mas que, na altura, não e fantasmas a que não consegues aceder com o
próprias pessoas não as querem ver e também
tive capacidade ou possibilidade, que é a ideia filme.
não querem falar sobre elas.
de que nós herdamos fantasmas dos nossos ST O Ossobó foi feito, desde o início, com a ideia
antepassados. São coisas que nós não vivemos, MS Achas que o colonialismo é um desses temas?
de existirem duas partes. Esta foi a primeira
mas que fazem parte da nossa consciência. parte e há uma segunda parte que está a ser Que as pessoas não querem ver e não querem
Essa era a ideia do filme que eu queria ter desenvolvida, que tem vindo a ser feita e que, em falar?
feito no Bafatá – não consegui passar isso breve, também vai... ST O colonialismo é um tema bastante complexo,
por incapacidade minha. Tem que ver com os muito complexo. É simples e complexo ao
ACP Mas é essa parte que está agora em pós-
fantasmas, os fantasmas que não desaparecem. mesmo tempo. Simples, porque envolveu coisas
produção?
E os fantasmas estão ligados às memórias. As muito diretas e muito duras.
memórias coletivas, as memórias que, muitas ST Não, não, é outro filme. O Ossobó foi feito
MS Eu acho que consegues sintetizar isso
vezes, nós não queremos ver, mas que estão com a ideia de existirem duas partes. Ou seja,
com a ideia da roça. E aquela imagem-síntese
sempre presentes. E esta ideia de memórias, esta existe um filme que fala sobre um presente
explicando o que era a roça, o Rio do Ouro,
ideia dos fantasmas que fazem parte de todas e depois há outro filme, que é esta segunda
a plantação de café... Organiza muito
as nossas relações; nós falamos diretamente parte, que fala sobre um passado ainda anterior
rapidamente.
uns com os outros, mas assumindo sempre uma àquele do primeiro filme. E algumas coisas que
SILAS TINY 48

ACP Só que depois há a parte complexa, que é... milhões, ou seis milhões, outra coisa é falar trabalharam comigo estavam fora do [meu
daquela pessoa que saiu daquele território, que grupo] de Escola. Basicamente, as pessoas da
ST A parte complexa é a parte sobre a qual
deixou aquela família, que veio para Portugal. E minha turma, para terem uma ideia, foram a
vou tentar falar neste segundo filme, que é
eu penso que a complexidade das coisas surge Leonor Teles, o Pedro Cabeleira... Eu era muito
como é que nós próprios nos víamos perante
sempre que vamos ao singular, nunca quando mais velho do que eles, já tinha quase 30 anos e
estas experiências. Como é que a comunidade
vamos para o exterior da coisa. Porque o exterior eles tinham ainda 18 ou 20 anos, portanto, são
e os líderes escravos se viam a eles mesmos
da coisa, o que nos dá é uma imagem opaca. coisas muito diferentes.
dentro deste global. Uma coisa é falarmos de
Mas quando vamos ao singular, começamos a
colonialismo partindo de uma ideia de fora e ACP Mas é uma geração interessante, é curioso.
descobrir as várias nuances que existiam. E, a
dos culpados. Porque as únicas pessoas que são
partir deste princípio, não sei se vou conseguir, ST É interessante o facto de nos termos cruzado,
inocentes são as pessoas que sofreram, ou seja,
mas vou tentar particularizar neste filme que mas, quando eu cheguei, já a minha experiência
as pessoas que foram escravizadas, as pessoas
estamos a fazer. Mas regressando ainda a outra de vida... Eles ainda eram uns jovens, eu já tinha
que foram vendidas, as que foram enganadas,
coisa que não terminámos, que tinha que ver uma idade adulta, a minha experiência já era um
essas são as únicas inocentes. Fora delas, são
com como cheguei ao cinema português. O Rui pouco diferente.
todos culpados. Mas, quando se fala em culpados
Simões foi a primeira pessoa que me ajudou. ACP Há muitas coisas que dizes – nós, que
e em culpa, há várias maneiras de mostrar quem
Depois, tive outra experiência na produtora estamos a falar com várias pessoas e que
foram os culpados, quem foram os responsáveis.
Real Ficção, que é do Rui Simões. Para dizer que estudamos cinema, temos tendência, se calhar,
Não foi só uma parte, foram várias partes e, às
apesar de a Escola [de Cinema] ser uma boa para o facilitismo de relacionar logo com outras
vezes, a complexidade de chegar a estas coisas,
plataforma para arranjarmos meios para fazer as e de te colocar num movimento. Para não cair
ou a dificuldade de falar destas coisas... Como é
coisas... nesse facilitismo, eu queria perguntar-te quem
que nós, africanos, como é que eu, africano, me
ACP Conhecimentos, às vezes conhecer um são os teus pais, hoje, no cinema em Portugal?
consigo contextualizar num tempo em que os
Tu vês-te, por exemplo, dentro de um movimento
meus próprios antepassados venderam os meus colega que estudou produção... às vezes, é
afrodescendente de cinema, colocas o teu
antepassados? Como é que nós conseguimos uma coisa de geração e vamos todos da nossa
cinema próximo dessa busca de identidade,
lidar com estas coisas? Sem arranjar coisas muito geração fazer o nosso filme. É nesse sentido que
que muitos autores - não só no cinema, na arte
mais fáceis, como apontar logo o dedo. Porque a eu digo, é uma coisa boa, não é uma crítica.
portuguesa em geral - hoje procuram? Ou não?
parte fácil é sempre nós dizermos: “Pronto, isto ST Não, eu queria voltar a isso porque, no meu
Ou distancias-te e vês-te como criador isolado
é assim, vamos fazer assim.” A parte, às vezes, caso, foi completamente diferente. Excluindo
que, por acaso, pode ter alguns pontos em
mais difícil é nós querermos tentar compreender esta experiência que eu tive na produtora (que foi
comum?
as coisas de uma forma mais pessoal. Porque uma coisa muito passageira, o desenvolvimento
uma coisa é dizer que foram escravizados oito de um argumento), todas as pessoas que
49 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES E ANA CRISTINA PEREIRA

ST Essas questões são sempre muito difíceis importante porque cria uma maior identificação pessoas saírem dessas periferias, penso que
de responder, porque, basicamente, eu faço os e também uma maior consciência dos próprios são coisas muito boas e relevantes e que devem
meus filmes. Como eu disse, a minha forma de realizadores. Eu não consigo dizer que faço continuar a ser feitas.
viver condiciona, às vezes, a minha própria forma parte de um movimento, porque eu também
de fazer os filmes. Porque eu faço os meus filmes, não sei se existe um movimento. Se existir e se
não tenho um... ele estiver a formar-se, é uma coisa excelente,
porque marca um ponto em que existe uma
ACP Não estás em contacto com pessoas, não
consciência, ou seja, não estamos só a fazer por
fazes parte de movimentos?
fazer, mas com a consciência de que o estamos
ST Não, não tenho qualquer tipo... Por isso é que a fazer. Isso é muito bom, é excelente. O que
eu estava a tentar dizer que isso é um pouco acontece é que, a partir daqui, outras pessoas
difícil para mim de responder, porque eu não que se sintam isoladas, ou que não se sintam
tenho um movimento, não tenho fações. Eu correspondidas, têm sempre uma ligação a
quero fazer filmes, quero falar sobre algumas determinado grupo. E referências que possam
Bafatá Filme Clube, 2013, Silas Tiny @silastiny
coisas que, para mim, fazem sentido, portanto, também desenvolver. Que não se sintam
não tenho uma fação. A minha fação é tentar completamente isoladas, ou à parte, que é o que MS Eu discordo um pouco do que a Ana Cristina
falar sobre as coisas que me dizem alguma coisa acontecia e acontece, muitas vezes, infelizmente, colocou na pergunta em relação ao facilitismo
e tentar fazer disso alguma coisa de interessante, com os afrodescendentes, por nós não estarmos de buscar as relações. Eu acho que, na verdade,
filmes interessantes. Mas respeito e tenho a dentro ou no centro... Acaba por haver aqui tem de haver um esforço, porque a criação
máxima consideração por estes movimentos uma dupla periferia: a periferia geográfica e a individual, solitária, ainda mais no cinema, é
que tentam relacionar os realizadores periferia estética e cultural. Há o centro, que é o quase praticamente impossível de existir no
afrodescendentes e tentam dar mais força a centro onde as coisas se passam, onde existe o mundo de relações do cinema. Eu li uma crítica
esta identidade. Porque é mais difícil estarmos poder e que identifica esse poder. E depois há que relacionava o teu cinema com o Rithy
sozinhos e conseguirmos fazer as coisas do que a periferia, onde habitam as pessoas que não Panh, que é um realizador do Camboja com
se estivermos em conjunto. Eu penso que o facto conseguem decidir as coisas, e, muitas vezes, os uma produção de documentário muito ativa e
de existirem agora realizadores afrodescendentes afrodescendentes fazem parte dessa periferia. que toca em questões que falam do genocídio,
que tentam fazer filmes numa busca da sua Consciente ou inconscientemente. Não fazendo do extermínio... O Rithy Panh circula já num
própria identidade afrodescendente, através disso uma lamentação, mas isso acontece. Pode cenário internacional, é muito conhecido no
de temas que os ligam diretamente, que têm haver “n” motivos para isso acontecer, mas o Brasil, por exemplo, e eu cheguei a O Canto do
que ver não só com a situação do colonialismo, facto de existirem movimentos que façam as Ossobó, pela primeira vez, a partir dessa crítica
com situações de racismo... Eu penso que isso é
SILAS TINY 50

que falava do Rithy Panh e do teu trabalho. conseguir [encontrar] um núcleo do filme. Neste ser com as coisas mais tristes que já existiram
Surpreendentemente, era um crítico de cinema caso, quando falas do Rithy Panh e dos meus no universo, como o Holocausto. Os filmes
que escrevia sobre o Rithy Panh e dizia: “Há um filmes, sim, pode haver pontos de ligação. O dele têm esta força de ele procurar, porque ele
cineasta que faz um tipo de documentário que, Chinua Achebe, um escritor nigeriano, contava a perdeu, ele vai sempre à procura do pessoal. Ele
como o Rithy Panh, tem uma certa relação de seguinte história a propósito do seu livro Quando perdeu muita da família na revolução comunista
memória, busca, identidade, uma relação com a Tudo se Desmorona: contava que ficou muito do Camboja. Portanto, [parte numa] procura
câmara, com o gesto de filmar...” E há uma certa surpreendido ao ver que os jovens da Coreia do pessoal, que é o que eu também tento fazer. Por
postura ética também no documentário atual, Sul tinham ficado completamente sentidos e acaso, só conheci o cinema dele mais tarde, mas
e acho que O Canto do Ossobó se relaciona com identificados com as histórias dele, porque ele fiquei muito feliz com o facto de existirem outras
isso. As fronteiras entre ficção e documentário, pensava que estava a falar de uma realidade pessoas que praticam a mesma visão do mundo:
esse gesto ativo de identidade, de reflexão que era só dele. Mas, quando leu esta crítica, como é que conseguimos descobrir as nossas
sobre a imagem que se faz e, a partir do filme, pensou: “Afinal, o poder da arte é transformar próprias origens, as nossas próprias memórias
ser uma busca. Usar o filme para uma reflexão a singularidade numa coisa plural.” É o que nas coisas que são singulares? Ele vai à procura.
pessoal que sai do indivíduo e vai para o coletivo. acontece quando falas do Rithy Panh e dos meus Quanto mais procura, mais consegue descobrir
Acho que esse é o grande pulo do filme, tu filmes: quando falamos de uma coisa singular, aquela que foi a história do seu país. No meu
consegues pensar o país a partir da tua família. ao mesmo tempo, estamos a querer falar caso, é semelhante, porque tento ir à procura das
O próprio Rithy Panh é colocado como o grande disso com uma força tão grande que podemos minhas origens, dos meus familiares, dos meus
documentarista que faz isso. tocar em aspectos universais. Como dizia há avós, das coisas que não conheci, que não pude
pouco, para mim, a complexidade vem sempre conhecer, porque vim para Portugal e tive um
ST Eu conheço o cinema do Rithy Panh, já vi
através do singular, da pessoa única. Ou seja, esquecimento total das coisas que faziam parte
alguns filmes dele. Alguns filmes são bastante
eu conheço-te a ti e é a coisa mais complexa do da minha experiência, os meus antepassados, os
fortes, os quais até aprecio. Agora, tenho uma
mundo. E depois, a partir daquela pessoa, eu escravos, etc.
certa dificuldade (penso que já devem ter
vou saindo para [o exterior], para o mundo. [Às
reparado) em falar sobre algumas coisas; depois ACP Isso é uma experiência tão comum em todas
tantas,] começamos a estabelecer os sentidos
as coisas começam a tornar-se muito abstratas, as diásporas. E aí já estás a tocar em todos nós.
e os sentimentos, as causas e os porquês das
porque eu não consigo falar, não sou a melhor
coisas. Eu penso que o cinema do Rithy Panh ST Eu penso que sim.
pessoa para falar dos meus próprios trabalhos.
também fala um pouco destas coisas. Ele tenta ACP Quando falei em facilitismo foi uma
Eu tenho ideias, tenho algumas coisas que
estabelecer uma realidade, que foi uma realidade autocrítica, atenção. Eu estava a ouvir-te e estava
penso, e tento fazê-las, mas penso que não
muito dura, a do Camboja, que não se pode a ser demasiado fácil para mim enquadrar-te.
consigo ir a esse nível a que consegues ir – e
comparar com nenhuma outra coisa, a não E, quando as coisas começam a ser demasiado
ainda bem – de destrinçar as várias pontas e
51 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES E ANA CRISTINA PEREIRA

fáceis, convém que nós nos questionemos. fazer isso noutros filmes, mas é sempre muito “O que é isto de haver racismo?”, “O que é isto de
Porque, realmente, quando te ouço falar, mesmo difícil, porque a linha é muito ténue. Como é ser mulher?” O que é? Nós podemos arranjar uma
em termos das palavras escolhidas: fantasmas que passamos de tentar falar das coisas para pergunta fácil, mas penso que cabe ao realizador,
– tu não lhe chamas pós-memória, mas estás uma acusação? Como é que passamos só para o ao cineasta, pensar “o que é isto?” quando tem
a falar de uma pós-memória, uma coisa que apontar? Penso que, quando atravessamos essa um argumento ou uma ideia, uma frase: “Mas o
nós não vivemos, mas que está [no nosso fronteira, já não estamos na fronteira do fazer que é isto de ser, sei lá, africano?” O Sembène
inconsciente]. É muito comum à nossa geração cinema, do fazer arte, estamos na fronteira da fazia isso de uma forma extraordinária. Ele
de afrodescendentes. E será de muita gente no propaganda. Essa fronteira, para mim, é sempre conseguia pensar as coisas, não de uma forma
Camboja e de muita gente por toda a América muito difícil. Por isso é que, quando falo das muito teórica, mas conseguia levar-nos a pensar
Latina e nos Estados Unidos... A parte contém o coisas, muitas vezes digo que são complexas. estas coisas. Uma coisa que eu acho que, se
todo. Depois, com o teu olhar pessoal sobre isso, Ou seja, a arte, para mim, é algo que tem de alguma vez conseguisse fazer, seria excelente.
que é o que faz um artista. ser pensado, mas não de uma forma em que
ACP As tuas referências também são sempre as
chegamos à primeira conclusão e dizemos: é isto.
ST Sim, eu penso que tem que ver com isso maiores.
Apontamos logo as baterias...
que estás a dizer: como é que nós conseguimos ST As referências têm de ser as melhores! Se
transformar estas coisas em veículos válidos ACP Coloca o espectador numa posição muito só
forem as referências piores, o que vai acontecer
que consigam dizer alguma coisa? Não só para de receber, não é? Também não é interessante.
é que vamos fazer coisas piores. As referências
mim. Porque o cinema tem esta dicotomia, não ST Sim. Uma das coisas que também é têm de ser sempre as melhores para que nós
é? Muitas vezes é algo pessoal, mas tem de ser fruto daquilo que os meus professores nos também as consigamos superar. Eu penso que
algo que consiga... Não é que isto seja direto e transmitiam é isso: colocar o espectador de isso é importantíssimo. Nós conseguirmos ir
que as coisas tenham de ser feitas de maneira forma a questionar a sua própria presença sempre atrás das pessoas e das coisas que
consciente, mas o cinema tem isto: não é uma perante as imagens que vê. Pode ser feito de “n” achamos serem sempre as mais singulares.
arte para cinco ou dez pessoas, tem esta coisa maneiras, mas ele também tem de participar Voltando outra vez à questão das influências no
de conseguirmos fazer de algo pessoal uma coisa para que também se questione. Penso que, se cinema português, não é que não existam essas
universal, abrangente, que tu possas sentir. O calhar, hoje, muito do cinema que é feito (há referências, mas, para as minhas preocupações,
cinema também tem que ver com esta coisa: muito cinema válido que ainda é feito, apesar eu não vejo essas referências. Para as minhas
como é que tu consegues sentir algo que me de eu não ver muito) ainda tenta colocar estas preocupações pessoais e como pessoa. Eu não
diz respeito a mim? Quando alguém consegue premissas. Mas, [dentro] destas coisas válidas, vejo essas referências, logo, não podem ser as
fazer isso quer dizer que está no sentido certo. como é que eu consigo fazer pensar sobre referências com as quais me identifico, tenho
Eu não estou a dizer no meu caso. Se eu consigo determinado tema? Como é que eu consigo de ir à procura de outra coisa. Essas referências
fazer isso, ainda bem. Quem me dera conseguir chegar a ti e dizer: “O que é isto de ser escravo?”,
SILAS TINY 52

também têm que ver com a minha educação, o ACP Não achas que isso é questionável numa temas que a mim me dizem respeito. Portanto,
meu crescimento... Escola [de Cinema] em Portugal, não se ver relativamente à Escola [de Cinema], estes filmes,
cinema de língua portuguesa, quer dizer, nem essas ligações, só poderão existir na altura em
ACP E, no cinema africano, além do Sembène,
português, nem brasileiro, nem africano? que, se calhar...
que já referiste, enquanto guineense, por
exemplo, os filmes do Flora Gomes...? ST Não, mas há todo o direito de isso ser ACP ... tu chegares a professor da Escola!
questionado. Tu ou alguém como tu. Queria dizer uma
ST Eu vi poucos filmes do Flora Gomes. Gosto
representação.
do Sana, que é um bom realizador, um bom
cineasta. ST Que não seja eu, mas pessoas que tenham
uma relação com esta realidade. Se elas não
ACP Quantos filmes de realizadores africanos te
existirem, não posso pedir às pessoas que [o
mostraram na Escola [de Cinema]?
façam], porque a realidade delas [é diferente].
ST Quantos filmes? Eu penso que não me
ACP Daí a necessidade da representação no
mostraram nenhum filme.
poder, não é?
ACP Era uma provocação.
MS Esses interesses estão além dos interesses
ST Eu penso que não mostraram nenhum filme. individuais, são interesses políticos. Pelo
Mas, sinceramente, não posso considerar isso Bafatá Filme Clube, 2013, Silas Tiny @silastiny
menos, numa parte da formação – e há hoje
uma afronta, porque também não mostravam MS E vice-versa, porque no Brasil também não uma necessidade de revisão bibliográfica, das
filmes portugueses na Escola [de Cinema]. se vê nenhum cinema português, e africano formações e dos currículos, etc. –, os interesses
ACP Não? também muito pouco. políticos devem estar acima dos interesses
individuais. Não é o professor X ou Y que define
ST Não. ST Mas, se nós olharmos, há aqui uma situação...
que se vai ver cinema americano ou francês...
MS Nem brasileiros? ACP ... que é eurocentrada, que é patriarcal...
ACP Tem de haver outra representatividade a
ST Nem brasileiros. Mas eu não vejo isso como ST Por exemplo, vamos falar de uma situação
nível do corpo docente e dos lugares de decisão.
uma categorização negativa, atenção. Porque [específica]: os temas que nos dizem respeito só
MS Exato. E não é só assim: vamos separar 10%
o cinema tem uma história e os próprios serão falados se as próprias pessoas que têm
do Brasil, 10%... Eu acho que está além até da
professores estão ligados a essa história, os uma relação com esse cinema consigam falar.
questão da representatividade, mas passa por
professores têm as suas próprias influências no Eu não posso pedir que seja um português, que
uma formação cultural mais ampla em que nos
cinema. teve uma educação diferente, uma vida diferente,
toda uma história diferente, a querer falar de possamos enxergar. Acho que há um déficit
53 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES E ANA CRISTINA PEREIRA

enorme na América Latina, por exemplo, que ST É como falar de pintura e não falar em MS Mas não entram nessa lista.
não consegue sequer enxergar-se a si própria. O Miguel Ângelo ou Da Vinci. São pessoas que ACP Nem o Manoel de Oliveira veem…
Brasil é um país endógeno, nesse sentido, porque conseguiram sintetizar toda uma forma de
MS O Manoel de Oliveira também é um caso.
é continental e só consegue olhar para si, não pensar de uma arte que ainda estava a nascer.
consegue dialogar com os vizinhos, o Uruguai, a Portanto, eu não posso (e sou muito pessoal ST Não entram nessa lista porque penso que
Argentina, a Colômbia, com os quais faz fronteira. nestas coisas, não faço abrangências para o os docentes teriam de rever... A questão de ser
E atravessa-se o Atlântico inteiro e todo o resto, falo por mim), não consigo e não faço essa docente tem que ver com a sua própria procura
mundo conhece o Godard e viu o cinema francês crítica, porque penso que tem que ver, realmente, das coisas. Portanto, se calhar, teria de haver aqui
inteiro, o cinema italiano, o cinema americano, com essas influências. Agora, claro que poderia um maior interesse...
etc. O que eu quero dizer é que esse problema haver uma maior diversidade a nível do ensino. MS E nessa lista só falámos de homens. Só há
de formação não é próprio de Portugal, é uma Isso ajudaria também os alunos a pensar o pais, não há mães no cinema.
questão que atravessa... Porque é a política cinema. Além destes que foram os pais do
ACP Morreu agora a Agnès Varda! Eu acho que
pedagógica de Estado, infelizmente. cinema (e que são grandes realizadores, isso não
nem nesta altura mostraram um filme aos
está em causa), poderia haver um incremento do
ACP Porque o Estado, esse Estado, essas pessoas alunos!
ensino noutras vertentes e noutros realizadores,
que tomam as decisões e [deliniam] as políticas
noutros países, também é fulcral que isso exista. MS Exato. Eu escrevi um texto pequeno sobre
pedagógicas são as mesmas! E são as mesmas
Por exemplo, o cinema da América Latina tem O Canto do Ossobó (depois, quero enviar-to, se
que estão na Escola [de Cinema]. Agora é mesmo
grandes realizadores. tiveres interesse em ler), em que relaciono o
uma provocação, e vais perdoar-me, mas os
teu cinema com o da Chantal Akerman. Apesar
alunos que saem da Escola Superior de Teatro e MS Por isso é que eu te perguntei isso. Nessa lista
de ela ter a obra fenomenal que tem, de ter a
Cinema, do curso de cinema, saem de lá todos há nomes latino-americanos que são grandes...
importância que tem, as mulheres são sempre
a dizer [em côro]: John Ford, Mizoguchi, Ozu, Talvez não conseguiram o volume financeiro de
colocadas na categoria do cinema de género.
Chalie Chaplin... porque a formação é toda para um John Ford ou de um Ozu...
Temos passado estes dois dias a falar disso e
aí [virada], sempre. ST Não é volume financeiro. São grandes como é difícil fugir dessa definição. E, ao mesmo
ST É, mas também porque eles são grandes, realizadores... tempo, ela é importante para definir, mas para
vamos ser sinceros. Agora tenho de ser sincero. MS Mas há o Fernando Solanas, o Glauber se fugir dessa categoria também. No entanto, se
Eles são mesmo grandes, grandes realizadores. E Rocha... ela não existisse, talvez a Chantal Akerman nem
quando se fala nesses realizadores não é só por sequer tivesse sido conhecida como realizadora,
ST O Nelson Pereira dos Santos. São grandes,
uma questão de ser simplista... que história é essa? A Agnès Varda a mesma
grandes realizadores.
ACP São os grandes pais do cinema. coisa, a Maya Deren... E, no Brasil, a Letícia
SILAS TINY 54

Parente e uma enorme quantidade de mulheres ST Podemos procurar muitas fundações, mas entre as pessoas e as pessoas [acabarem por
que produziram filmes. há que ter uma coisa muito em conta, que é se] relacionar com isso, com os seus próprios
primordial: dar bases para os próprios alunos interesses. Os nossos interesses, entre eu, tu, ele,
ST Nós falámos sobre a Chantal Akerman na
compreenderem o cinema. Reparem, eu sou inconscientemente, se nós tivermos os mesmos
Escola [de Cinema]. Eu fiz um trabalho [sobre ela].
negro, africano, e sou cineasta. Mas, para eu interesses, vamo-nos relacionar. Não tem de
MS Estavas a sonegar as tuas filiações todas para fazer algo, tenho de compreender o cinema. ser algo que esteja escrito num movimento,
deixar para o final. Portanto, o que pode faltar nestas instituições, num papel, tipo o Dogma. Pode ser algo mais
ST Gosto bastante da Chantal Akerman. Nós e nisso eu estou de acordo, é interesse em inconsciente do que isso.
falámos sobre ela nas aulas e vimos os seus mostrar outras realidades, o que acaba por ser
ACP Alguma vez passou um filme teu no Festival
filmes. É o que eu dizia. Os docentes são um pouco limitativo. E não explorar, às vezes, os
da Cova da Moura, por exemplo?
humanos, são pessoas, e estão, muitas vezes, interesses de alunos que vêm de outras origens
e com outros backgrounds, não explorar isso ST Não sei.
circunscritos à sua própria realidade e aos seus
próprios interesses. Muitas vezes, têm de surgir para criar maior diversidade criativa. Se calhar, ACP Se tivesse passado sabias, não é?
pessoas de fora que [tragam] uma lufada de em Portugal, também falta... Quando falávamos
ST Talvez. Até esta data nunca ninguém me disse
ar fresco. As instituições devem ter pessoas de referências, tem que ver com isto. Ou seja, o
nada, portanto, posso pressupor que não.
que lhes [tragam] uma lufada de ar fresco e facto de, às vezes, existirem poucas referências
ACP Digo porque é uma mostra de cinema negro
criem uma nova perspetiva, tragam outros leva a que as pessoas que estão a fazer coisas
importante, talvez a mais importante.
interesses. Porque, se forem sempre os mesmos, e a produzir obras não se referenciem, porque
a probabilidade de as coisas serem sempre as não existe um referente que já o tenha feito. É ST Eu posso pressupor que não, mas, às vezes, o
mesmas [é grande]. A questão de, muitas vezes, o que estava a tentar dizer há pouco. O facto que acontece é que a informação sobre os filmes
não haver representatividade de outros tipos de de existir esta noção, agora, de um movimento que saem e que são feitos não chega a todos.
cinema, de outros géneros, tem que ver com isso afrodescendente é bom.
ACP Nesse sentido, a organização de um
mesmo. Com os próprios professores, às vezes, MS Mas achas que há esse movimento? movimento é importante.
não irem além daqueles que são, primariamente,
ST Eu não sei se há, não sei se há. ST É importante, sim. Através dessa
os seus interesses e daquilo que os influenciou.
ST Se existirem pessoas de origem africana inconsciência que existe, pode ocorrer que as
ACP O que eles também acham que é fundador.
que façam filmes e falem sobre temas que pessoas se juntem já com uma perspetiva, com
ST O que eles acham que é fundador. E é lhes digam alguma coisa, penso que pode uma ideia, e as coisas funcionem mais para
fundador. não ser um movimento consciente, mas pode um objetivo, que seja fazer festivais de cinema
afrodescendente ou outras coisas do género.
ACP Podemos procurar muitas fundações. criar um movimento inconsciente das relações
Quanto mais houver pessoas a fazer, com maior
55 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES E ANA CRISTINA PEREIRA

diversidade, com maior relação com temas que ou como é que tu te vês dentro desse manancial ACP Que foi uma guerra brutal.
lhes digam respeito, penso que só há a ganhar. de trabalhos que hoje se colocam como cinema ST Foi uma guerra horrível. Foi a guerra mais
Não vejo outra solução. Eu penso nas coisas de autorrepresentação. atroz que aconteceu nos países que foram
assim. Quanto mais existirem realizadores a falar ST Eu devo dizer uma coisa: tenho sempre muita descolonizados. E o meu filme tem que ver com
sobre os mesmos assuntos, que só lhes dizem dificuldade em falar sobre o meu trabalho. uma situação que aconteceu, e que se relaciona
respeito a eles, penso que é um pouco pobre. Porque, basicamente, eu faço filmes. Ou seja, com essa guerra, que foi uma ajuda humanitária
Apesar de tudo, a relação – neste caso estou a [acabo] um filme e tento fazer outro. Agora estou em São Tomé, a ponte aérea. Durante a Guerra
falar de Portugal – de Portugal com os outros a fazer este, que fui [filmar] a São Tomé, estou da Nigéria, houve um bloqueio. Isto passou-
países é uma coisa exponencial. Portanto, temos a fazer outro... Para mim, é um pouco difícil, às se em 1968, 1969, ainda na [era] salazarista.
de aproveitar as diversidades que existem neste vezes, estabelecer-me num certo contexto. Naquela altura, São Tomé transformou-se num
meio para podermos construir algo que seja dos maiores entrepostos do mundo a nível
MS A resposta é essa.
diverso, rico, entre todas as pessoas que existem. de ajuda humanitária. Nessa guerra foram
Os próprios realizadores africanos e criadores ST Eu queria dar-vos uma resposta um pouco criados os Médicos do Mundo, os Médicos Sem
africanos também devem ir à procura, falar sobre mais... O que eu quero dizer, o que eu vejo, mas Fronteiras, e definiram-se alguns dos valores da
os seus próprios temas e tentar criar um espaço, não sei. Os meus filmes tentam falar sobre coisas ajuda humanitária... Mas o filme fala sobre esta
não se deixando ficar numa perspetiva de não que têm uma relação pessoal e, ao mesmo ponte aérea e sobre estas crianças. Fala também
haver um espaço para eles. Porque o espaço é tempo, de memória, de história. Até agora. Vamos sobre o que foi esta guerra infanticida. Portanto,
sempre dificílimo para todos. Mas os realizadores ver no futuro. Não sei. Vamos ver o que se pode nós descolonizámos, mas a descolonização,
africanos também devem criar o seu próprio fazer no futuro, os projetos são outros, a própria para nós, foi algo muito difícil, e que continua
espaço, as suas próprias condições e fazerem as realidade... a ser muito difícil, porque também não foi bem
suas obras. Penso que isso é importantíssimo. ACP Tens muitos projetos para o futuro? Queres construída. O filme fala sobre isto. Espero que
MS Uma última pergunta. Desde ontem, temos falar um bocadinho sobre isso? Tens algum filme consiga terminar o filme em breve. Vamos ver o
estado à volta de um conceito... O Welket já financiado? que vai acontecer.
[Bungué], que esteve aqui de manhã a ser ST Sim. Neste momento, estou a trabalhar
entrevistado, define o cinema dele como um num projeto que está em pós-produção, um
cinema de autorrepresentação. Este é um filme chamado Construções do Equador e que
conceito, um género, que tem estado em muitos também retira um pouco desta situação de
festivais (vejo alguns críticos falar sobre isso) e responsabilidade. Tem que ver com o que
queria conversar contigo, pensar e tentar ver ou aconteceu em África na pós-colonização. Tem
perceber se isto se relaciona com o teu trabalho que ver com a Nigéria e com a Guerra do Biafra.
CINEMA NEGRO FEMININO
EM PORTUGAL
MICHELLE SALES

A virada do século xix para o século xx é Ao longo do século xx, o Estado Novo português
determinante para Portugal no que diz respeito financiou e idealizou diversas expedições
à política colonial adotada em África. Com a cinematográficas nas antigas colônias em África
independência do Brasil em 1822, avança já no com o interesse não apenas de representar o
século xix o entendimento crítico de que a crise “outro” africano mas também de ressaltar as
econômica e financeira portuguesa só poderia “benesses” do colonialismo português. Segundo
ser superada através do deslocamento do eixo Ana Cristina Pereira (2019), na tese Alteridade e
colonial para as colônias africanas, o que de fato Identidade na ficção cinematográfica portuguesa
ocorreu no século xx. em Portugal e em Moçambique,
Até meados dos anos 1960, o cinema produzido [o] cinema acompanhou a evolução da
em Portugal esteve fortemente ao serviço de colonização portuguesa de África, durante o
um projeto colonialista, tendo em conta que o século xx, constituindo-se como fonte para
Estado Novo português – liderado por António a compreensão das suas especificidades, e
Salazar – é o principal financiador. Do ponto particularmente para perceber a origem de
de vista ideológico, prevalecem adaptações representações sociais entre portugueses e
de grandes nomes da literatura portuguesa, africanos. O “outro africano” foi no cinema
nomeadamente escritores como Eça de Queirós português primeiro o “indígena”, o “preto”
e Camilo Castelo Branco. Maioritariamente, a ou o “mulato” e mais tarde o “assimilado”
produção é dominada pela presença masculina (Baptista, 2013). Este retrato dos africanos
nos postos de comando como direção, permite e substancia a construção – por
produção, cargos técnicos, atribuindo à mulher oposição – da autoimagem dos portugueses
o papel de musa, subalterna ou submissa. E, como exploradores (Gentes que nós civilizámos,
em termos narrativos, dominam temas que 1944, MCCA47), depois como trabalhadores
exaltam os “grandes feitos” de Portugal, como os esforçados, ou como grandes homens de
“descobrimentos” e assuntos daí correlatos. família e de negócios (Chikwembo! Sortilégio
CINEMA NEGRO FEMININO EM PORTUGAL 58

Africano, 1953, Carlos Marques) e mais tarde Estreado a 30 de agosto de 1945, Três dias sem também o grupo mais oprimido: tiveram acesso
como tolerantes, e algumas vezes ingénuos, Deus, de Bárbara Virgínia, é uma adaptação da pela primeira vez a liberdades fundamentais
amigos de todas as nações (O Zé do Burro, 1972, obra Mundo Perdido, de Gentil Marques” (p. 250). como a de poder deslocar-se, ou decidir sobre
Eurico Ferreira). (p. 111) o seu próprio corpo (em caso de doença, por
Recentemente, é objeto de interesse de Luísa
exemplo), votaram pela primeira vez em 1975 e
O aspecto colonialista da produção de cinema Sequeira, no filme Quem é Bárbara Vírginia?
passaram a ir à escola mais tempo, libertaram-
em Portugal no século xx acompanha duas (2017). A obra da primeira realizadora portuguesa
se sexualmente e assumiram as suas próprias
facetas que caracterizam o lado sombrio do torna-se centro do interesse e do debate
lutas e destinos. O Filme português ignora
projeto da modernidade, como bem ilustram público, tendo sido o filme premiado na primeira
largamente este processo, a dor e a luta que
autores decoloniais latino-americanos como edição do Festival de Cinema Porto Femme, de
ele implicou. A falta de mulheres no comando
Walter Mignolo, Anibal Quijano e Zulma Palermo: 2018, primeiro festival português inteiramente
das câmaras explica uma parte do que aqui
o capitalismo e o patriarcado. A tríade composta dedicado ao cinema realizado por mulheres.
se descreve e a origem sociocultural das que
pelo colonialismo, capitalismo e patriarcado De volta à tese de Ana Cristina Pereira (2019), vencem as dificuldades e filmam explicará,
resultou, no campo do cinema, na invisibilidade a luta das mulheres por direitos políticos e por ventura, o resto. Se a produção que inclui
das mulheres nos cargos técnicos (ou mesmo representatividade corresponde a uma ampla negros é escassa, é ainda mais rara a produção
na inexistência), mas também pela atribuição de disputa pelo poder e por um grande esforço de que inclui negras. (p. 164)
papéis subalternos na atividade cinematográfica: tornar invisível essa luta,
maquiadoras, anotadoras, assistentes de Lentamente e, sobretudo a partir
[a] escassez de mulheres em lugares de
produção e, quando muito, atrizes. da década de 1970, começam a despontar
Poder explica, pelo menos parcialmente, o
importantes obras de realizadoras portuguesas,
Historicamente, as dificuldades inerentes à apagamento feito pelo cinema ao papel da
ainda predominantemente mulheres brancas de
produção cinematográfica em Portugal levaram mulher na História. Na ficção fílmica portuguesa
classe média urbana. Será somente no século xx
as mulheres a uma produção autoral dedicada que se refere ao período ditatorial, não há
que surgirão, as primeiras realizadoras negras
ao gênero do documentário, com raras exceções, mulheres torturadas pela polícia política, nem
portuguesas como Pocas Pascoal, Vanessa
praticamente até à década de 1970, no que mulheres em luta pela liberdade, e muitas vezes
Fernandes, Lolo Arziki, Ana Tica e a artista
diz respeito aos filmes de ficção dirigidos por as mulheres nem sequer sofrem especialmente
Mónica de Miranda.
mulheres. No artigo FemCinema: Breve história com a Guerra Colonial – pelo contrário,
das mulheres cineastas em Portugal, Ana Catarina quando os homens vão combater, elas A luta antirracista em Portugal começa
Pereira (2019) ressalta que “[d]urante o período casam com outro. As mulheres foram, muito a estruturar-se de forma institucional a
do Estado Novo português apenas um longa- provavelmente, o grupo que mais beneficiou partir dos anos 1990, apesar de sempre
metragem de ficção foi realizado por uma mulher. com a democratização do país, porque eram ter havido resistência do povo negro e dos
59 MICHELLE SALES

afrodescendentes ao racismo institucional que passado colonial, e pelas cicatrizes da memória à semelhança do que acontece atualmente
existe em Portugal. O povo negro representa a em torno da escravidão, do colonialismo e da no Brasil, onde o questionamento acerca da
maioria da população imigrante no País. Vindos diáspora africana. Nomeadamente a atuação identidade nacional está assumindo a crise
das ex-colônias portuguesas, sobretudo com de intelectuais como Boaventura de Sousa seminal de onde parte a formação da sociedade
o fim dos ciclos da guerra colonial, angolanos, Santos e Manuela Ribeiro Sanches constrói brasileira, qual seja: o colonialismo, o patriarcado
guineenses, moçambicanos, são-tomenses um pensamento acadêmico renovado para e o racismo. Mais recentemente, começa a
e cabo-verdianos misturaram-se ao caldo as relações entre Portugal e suas ex-colónias, despontar em Portugal um entendimento
cultural que começou a intensificar-se com conseguindo descolar-se das fortes tendências mais aprofundado das práticas racistas que
mais evidência na região do bairro central do lusotropicalistas da academia portuguesa fundam também a sociedade portuguesa,
Intendente, em Lisboa, e dos bairros da Linha de (que posicionavam Portugal como um país mesmo que ainda de forma circunscrita aos
Sintra, onde também se somaram os brasileiros de “brandos costumes” e naturalmente limites universitários, entretanto não menos
do então primeiro ciclo migratório para Portugal, “mestiço”),passando a revisar também as latente do que no Brasil. Por outro lado, parece-
sobretudo a partir das políticas neoliberais do narrativas pós-coloniais, além de ambos nos inversamente proporcional a produção
então presidente Fernando Collor. solidificarem uma forte discussão conceitual em intelectual em torno da questão do racismo
torno do pós-colonialismo, conceito que surge e do colonialismo (e pós-colonialismo) em
A criação do SOS Racismo consolida em termos
em contexto acadêmico britânico e que ganha Portugal e a presença cultural efetiva de artistas
institucionais a luta antirracista portuguesa nos
certa visibilidade em todo o mundo ocidental. e intelectuais negros e negras, inseridos no
anos 1990, mas também significa a chegada
imaginário simbólico e afetivo nacional. Um
do debate acerca da interculturalidade e do Entretanto, o tema da intersecionalidade, assim
dos objetivos centrais aqui é trazer à tona este
multiculturalismo – temas que chegaram com como no Brasil, chega apenas na segunda
debate, reinserindo um volume consistente
muito dinamismo ao campo das Ciências década dos anos 2000, marcado pela criação
de filmes e realizadoras afrodescendentes na
Humanas nos anos 1990 na Europa e no mundo de instituições lideradas e pensadas por
cinematografia portuguesa, redefinindo o cânone
– para um público mais amplo, haja vista a forte mulheres negras portuguesas como a Femafro
cinematográfico e o corpus historiográfico do
atuação que esta instituição manterá, desde aí, – Associação de Mulheres Negras, Africanas e
cinema português, além de promover a reflexão e
com as escolas de ensino básico e secundário, Afrodescendentes em Portugal – e o Instituto
o debate em torno do cinema negro português e
principalmente em Lisboa. Inmune – Instituto da Mulher Negra em Portugal
sua legitimidade artística e cultural.
–, que lançou em 2019 a candidatura de uma
Além disso, o debate pós-colonial em Portugal
eurodeputada negra ao Parlamento Europeu. É possível afirmar que uma das primeiras
passa a acontecer com mais força nos anos 2000,
realizadoras afrodescendentes a filmar em
já que é a partir daí que ganha visibilidade, na Esta luta antirracista possibilitou a
Portugal é Pocas Pascoal, que, desde os anos
academia e nos setores progressistas culturais, consolidação de temas até então ainda inertes
2000, mantém atividade regular no campo do
um crescente interesse pela revisão narrativa do em boa parte da população portuguesa e,
CINEMA NEGRO FEMININO EM PORTUGAL 60

cinema, tendo sido considerada a primeira Nas realizadoras acima, com exceção talvez é relativamente fácil de caracterizar: os filmes
operadora de câmera da televisão em Angola. de Maíra Zenun, é recorrente temas voltados feitos por negros e negras em Portugal abordam
Seu filme Alda e Maria, de 2011, passa-se nos à questão da inserção da mulher negra no temas relativos aos africanos imigrantes no
anos 1980 e conta a história de duas irmãs que contexto europeu, como também uma relação país (Pocas Pascoal), aos afrodescendentes
fogem da guerra colonial em Luanda e refugiam- com o imaginário africano, às vezes real, mas e às periferias (Welket Bungué), à hibridez
se em Portugal. O filme lança uma luz sobre muitas vezes ficcional, já que a memória acerca e à herança cultural (Silas Tiny; Vanessa
questões em torno de migração, gênero e as dos países africanos de origem, por conta da Fernandes), ao racismo e à exclusão social (Ana
consequências da guerra civil angolana (1976- diáspora, é quase sempre interrompida de forma Tica; Mário Monteiro; Lubanzadyo Mpemba).
2002), que se desencadeou logo após o fim da abrupta, tendo sido os ciclos de guerra uma Além destes, podemos observar nos filmes
guerra colonial (1961-1974). consequência nefasta do colonialismo tanto (curtas-metragens) feitos por negros e negras
quanto um dos principais fatores que levaram em Portugal tendências comuns, de onde
tantas famílias a emigrar para Portugal e a tentar destacamos uma condição ‘entre’ lugar, que é
reconstruir suas vidas. partilhada amiúde pelos autores e pelas estórias
que filmam e a busca pela compreensão/
O imaginário da produção cinematográfica
aproximação a uma ancestralidade. (p. 165)
afrodescendente em Portugal está fortemente
ligado ao contexto da luta antirracista como Diferente da produção audiovisual de mulheres
também à produção de uma memória opositiva negras no Brasil, o contexto de circulação desses
em relação ao discurso colonialista oficial ainda filmes, em sua grande maioria, está bastante
Alda e Maria, Pocas Pascoal, 2011 @pocaspascoal vigente e localiza-se num entre-discurso, pois restrito a um circuito independente de exibição,
é uma produção de pensamento e de imagem
Estão também no escopo desta amostragem criado em sua parte pelas próprias realizadoras
diaspóricos realizada por alguém deslocada do
a cinematografia de realizadoras portuguesas – caso do Festival de Cinema, criado na Cova
seu contexto de “origem” a tratar de temas como
afrodescendentes como Ana Tica, Vanessa da Moura pela realizadora e ativista da luta
identidade, passado colonial, diáspora negra.
Fernandes, Lolo Arziki e Maíra Zenun (brasileira antirracista em Portugal Maíra Zenun. E outro
Concordo com Ana Cristina Pereira (2019) quando
radicada em Portugal). E não pode deixar de fator diferencial é o fato de os filmes de Vanessa
a investigadora sustenta que
ser mencionada a produção artística de Mónica Fernandes, Lolo Arziki, Maíra Zenun e Mónica
de Miranda, criadora do centro de pesquisa e [é] cedo (talvez) para perceber uma estética ou de Miranda estabelecerem um forte diálogo
residência artística Hangar, em Lisboa, uma vez uma gramática na produção de cinema negro com o campo das artes visuais, muitas vezes
que a artista tem usado muito o vídeo como português, por ser ainda recente no tempo e sendo possível posicionar seus filmes como
linguagem de expressão. curta em quantidade, mas já tão diversa entre si. filmes-ensaio, de linguagem e gênero híbrido e
No entanto, a temática, destes primeiros filmes, experimental.
61 MICHELLE SALES

Referências Bibliográficas Souza, E. P. de. (2013). Cinema na panela de barro:


mulheres negras, narrativas de amor, afeto e
Hooks, B. (1992). Black looks: race and
identidade (Tese de Doutorado). Brasília, Brasil.
representations. Boston, EUA: South and Press.

Oliveira, J. (2017). Cinema negro contemporâneo


e o protagonismo feminino. In K. Freitas e P. R. G.
de Almeida, Diretoras negras no cinema brasileiro.
Rio de Janeiro, Brasil: Caixa Cultural do Rio de
Janeiro.

Pereira, A. C. (2019). FemCinema: Breve história


das mulheres cineastas em Portugal. In K.
Holanda (Org.), Mulheres de Cinema. Rio de
Janeiro, Brasil: Numa.

Pereira, A. C. (2019). Alteridade e Identidade na


ficção cinematográfica portuguesa em Portugal
e em Moçambique (Tese de Doutoramento).
Universidade do Minho, Braga, Portugal.

Sales, M. (2018). Pós-colonialismo(s) e o cinema


brasileiro. In XXII Encontro SOCINE, 2019, Goiânia.
Anais de Textos Completos do XXII Encontro
SOCINE. São Paulo: Socine – Sociedade Brasileira
de Cinema e Audiovisual.

_______. (2019). Cinema negro português. In


Avanca Cinema – International Conference
Cinema – Art, Technology, Communication, 2019,
Avanca. Vol. 1. Avanca Cinema 2019 (pp. 325-329).
Avanca: Edições Cine-Clube de Avanca.
POCAS PASCOAL
ENTREVISTA REALIZADA
POR MICHELLE SALES

olhar novo, e tinha-me prometido que tinha de


vir viver em Lisboa. Estou aqui, na verdade, há
quase quatro anos.

MS De volta, não é?

PP De volta não, porque eu, na verdade,


nunca… Eu vivi cá muito pouco tempo, e
naquela altura era sempre como se estivesse
de passagem, sempre me senti de passagem.
Foi uma passagem difícil, mas… Para mim,
Michelle Sales Entrevista a Pocas Pascoal. é novo viver em Lisboa.
13 de janeiro de 2020. Lisboa. Bom, esta é uma
MS Está bem. Eu queria começar a entender daí
conversa muito informal. Eu tenho assumido
como foi a chegada da Pocas, ou a trajetória da
um tom de conversa com todos os realizadores,
família, como foram os percursos…
primeiro, para ter elementos biográficos o mais
fiéis possível à vossa trajetória. Estavas no PP Como muitos angolanos, a minha família fugiu
CONTAG, e vives em França. Podemos começar da guerra em Angola…
a partir daí para ter um registo... MS Colonial?
Pocas Pascoal Na verdade, eu vivo entre Paris PP Não. A guerra interna entre o MPLA e a
e Lisboa, e faz pouco tempo que estou a fazer UNITA, portanto, a guerra civil em Angola, não
isso. Eu vivi em Paris durante trinta anos, e, a colonial. Já foi muito mais tarde, porque
há alguns [anos], decidi vir a Lisboa. Fiquei saímos de lá… Naquela altura, a minha mãe
apaixonada por Lisboa quando fiz o Alda e Maria, quis, sobretudo, salvar-nos do serviço militar
redescobri Lisboa com outro olhar, com um da guerra.
POCAS PASCOAL 64

Na verdade, ela enviou-nos naquela altura. MS Ela tinha ligação política com o MPLA? fora, justamente para poder salvá-los e evitar o
Eu era muito jovem, tinha dezassete anos, a serviço militar. E, de repente, esses jovens todos,
PP Não. Digo, a minha mãe era do MPLA, era
minha irmã já tinha dezoito, e tínhamos de sair nós todos, estávamos sozinhos numa cidade
profundamente do MPLA, mas não estava ligada
de Angola antes dos dezoito anos. que não conhecíamos à procura de casa. Nós,
diretamente ao partido. Ideologicamente, era
por exemplo, fomos para o outro lado do rio
MS As mulheres também eram obrigadas a do MPLA, mas não tinha o cartão do partido, ela
porque era mais fácil. Naquela época, havia ainda
cumprir o serviço militar? preferia funcionar livremente.
um sistema de entreajuda, nos ajudávamo-nos
PP Exatamente. MS Vieste tu e a tua irmã, então, para Portugal, a entre nós. E conseguimos assim arrumar um
MS Uau. Aos dezoito? mãe ficou em Angola. apartamento, um sítio onde viver, mas era uma

PP Houve um período muito curto, não durou PP Eu vim com a minha irmã e a [minha] mãe coisa bastante dramática. Sobretudo quando se

muito tempo. Se não me engano, foi de 1978 a ficou em Angola. está. Para mim, naquela altura, eu via aquelas
pessoas, entreajudávamo-nos, mas não tinha
1982. MS E ficou o resto da família também? Os avós,
realmente a noção do drama que podia ter sido
MS Todos eram obrigados, homens e mulheres. os tios?
– ainda pior – de viver sozinho com dezasseis,
PP Homens e mulheres. E, então, as únicas PP Sim, o resto todo da minha família ficou em dezassete, dezoito anos num país que não se
razões que poderiam evitar que fossemos para a Angola. A minha mãe é que foi um bocadinho conhece ou onde não se tem família. Eu e a
guerra eram sair de Angola, claro, ou então estar mais aventureira, e uns anos depois… Eu só minha irmã não tínhamos família, outros tinham
grávida, ter filhos. (risos) queria dizer que aquilo que está no filme (Alda e tios ou primos, nós não tínhamos. Tivemos sorte.
Maria) não é tudo a minha história, há uma parte
MS E achas que isso aconteceu com algumas? MS E como foi o processo, a formação que te
que é ficção.
levou a trabalhar no campo do cinema? Como
PP É possível. Não conheço nenhum caso
MS Sim, eu ainda nem entrei no filme, mas sei foi esse processo e essa construção profissional
particular deste tipo, mas é possível que tenha
que o filme Alda e Maria tem alguns elementos aqui em Portugal?
acontecido. Então, essa foi a maneira da minha
biográficos, que têm que ver um pouco com a
mãe nos salvar da guerra. Nós já tínhamos PP Na verdade, eu comecei a trabalhar para a
história da Pocas.
vivido a guerra durante uns anos e ir para televisão porque, depois, voltei para Angola,
o front, para a frente, não interessava a PP E também tem muita ficção, claro. Mas um bocadinho mais tarde. Naquela altura,
ninguém. a minha mãe ficou em Angola e teve muitas muito desiludida com Lisboa, com Portugal. Na
dificuldades em sair de Angola. E foi naquela verdade, eu não conhecia Lisboa, eu vivia do
MS Claro.
altura que me apercebi de que havia muitos outro lado do rio e fiquei lá durante um ano, e,
PP E a minha mãe veio ter connosco muito mais jovens em Lisboa sozinhos, que viviam para mim, toda a Europa era assim: uma coisa
tarde. sozinhos. Os pais tinham-nos enviado para horrível, uma zona industrial, de fábricas, muito
65 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES

poluída. Eu queria voltar para Angola. Então, MS Nem um curso técnico? Foi chegar em Angola PP Já dentro da televisão, tivemos uma
voltei com dezoito anos e um bocadinho mais. e fazer. professora argentina que nos formou em tudo o
que era artes visuais, na verdade. E foi uma coisa
MS Então, o primeiro período foi curto? PP Foi diretamente. Aprendi diretamente com
muito enriquecedora.
pessoas que…
PP Muito curto. Por isso, é que às vezes digo
MS Em relação aos conteúdos desses programas
que não tinha vivido de verdade em Portugal, MS Mas esse convite surgiu como? A família era
que vocês faziam, como era a televisão em
não posso dizer que sim. Foi um momento de ligada à cultura ou cinema?
Angola nessa altura?
passagem na minha vida. Voltei para Angola e aí PP Não, nada. Foi uma questão de encontros,
comecei a trabalhar como operadora de câmara PP Era uma coisa muito nova e muito
pessoas que encontrei. Naquela altura, convivia
para a televisão angolana, porque adorava moderna, extremamente moderna. Era um
com pessoas que eram muito literárias ou
fotografia. lugar onde havia muita criatividade.
artistas, e eu estava muito no meio artístico e,
Nós éramos todos jovens, muito jovens, só
MS Pocas é considerada a primeira mulher claro, a fotografia e o cinema faziam parte do
havia jovens. Era uma televisão jovem, e
angolana a ser operadora de câmara… nosso meio.
não havia ficção. Eu estava mais na área de
PP Exato. MS Já fotografava? reportagem e fazíamos muitos documentários,
MS Eu queria saber como isso acontece. Como é PP Sim, já fotografava, adorava isso. Sobretudo, ia muito para fora com a minha câmara. Eu
que isso acontece? encontrei o José Mena Abrantes, que é um levava a câmara no ombro, não era de estúdio,
diretor de teatro em Angola que me introduziu era mesmo de ir fazer reportagem. Fazia um
PP Era uma vontade minha de fazer fotografia,
neste meio da televisão. Foi ele que me bocado de tudo. Às vezes, íamos filmar artistas
mas não de me tornar a primeira mulher
apresentou o diretor da televisão, acho que plásticos ou escritores, ou podia ir filmar um
operadora de câmara. Eu não sabia que era a
era o Luandino Vieira naquela época, e comecei jogo de futebol, ou podia ir filmar algum
primeira naquela altura, queria fazer fotografia,
logo a trabalhar como estagiária. E aprendi momento dramático na guerra, aonde me
fui à televisão, fui ajudada por amigos que me
com pessoas que eram diretoras de fotografia, enviavam para filmar uma coisa que tinha
introduziram na televisão e propuseram-me
os manos Henriques, pessoas extraordinárias e acontecido, um ataque da UNITA – também me
fazer câmara. E eu disse: “Ok, tudo bem, adoro
que trabalhavam com película naquela altura, aconteceu várias vezes.
fazer câmara”, e tornei-me a primeira mulher
mesmo sendo para televisão. E foi assim que
operadora de câmara. MS Essa televisão era ligada ao MPLA?
comecei a evoluir, mas houve uma altura em
MS Então, não havia passado por uma formação PP A televisão era ligada ao MPLA. A televisão
que tivemos uma formação.
aqui em Portugal? pertencia ao governo naquela altura, e ainda
MS Já dentro da TV angolana? hoje.
PP Não, não…
POCAS PASCOAL 66

MS E havia uma diretriz editorial que era entrar naquele quadro da televisão, mas éramos Havia muito respeito e, sobretudo, uma
encaminhada aos funcionários? Como eram bastante livres, não havia uma maneira específica admiração por uma mulher que queria fazer
construídas as pautas dos telejornais ou mesmo que devíamos seguir todos os dias da mesma imagem, havia muita admiração. Quase todos
dos documentários? Como surgiam as ideias? maneira. Aprendemos a filmar, a enquadrar, a os homens, e eram só homens, quase todos
fazer som, mas não era arte, não era arte. (risos) queriam trabalhar comigo. Eu era jovem, tinha
PP Não sei, eu era tão naïf, tudo o que queria
dezoito, dezanove anos, portanto era muito
era filmar, não me preocupava com o resto. Mas, MS Ou pelo menos não era visto dessa forma,
jovem mesmo. E era uma vontade de me
se me lembro bem, havia aquela expectativa não é?
ensinarem, de partilharem comigo. Era uma
do dia a dia porque era para a televisão, eram PP Não, não. Naquela altura, não. coisa diferente, uma pessoa que tem uma outra
reportagens. Havia aquela expectativa de o que
MS E como mulher, sendo a primeira mulher sensibilidade do que a de um homem, uma
é que vai acontecer? Onde é que vamos hoje?
num ambiente masculino, como era a televisão, opinião diferente. Muitas vezes, aconteceu que
O que é que vamos filmar? Não tínhamos uma
sentia alguma diferença, alguma situação que eu fosse aquela pessoa com quem queriam
coisa programada. Sim, havia também coisas
te colocava um pouco à margem? Como era a fazer a equipa, aconteceu muitas vezes.
programadas, mas havia também a surpresa,
tua relação com os superiores ou colegas de Também porque eu trabalhava bem, de certeza
o imprevisto. Qualquer coisa tinha acontecido
trabalho? absoluta, tinha aquele mérito. E, pronto, acho
e tínhamos de ir lá a correr filmar. Era muito de
que tínhamos uma boa relação, nunca senti
reportagem. PP Na verdade, acho que foi um momento
uma pressão machista. Pelo contrário, estava
de muita sorte, onde tínhamos um país novo.
MS Entendi. Mas, quando surgiam esses projetos sempre a ser incentivada. Às vezes, acordávamos
Naquela altura, o socialismo em Angola quis pôr
de documentário, havia uma discussão, uma de manhã cedo para ir trabalhar e eu era a
as mulheres no poder, em evidência. E é verdade,
preparação da equipa? primeira. Eu gostava, estava apaixonada pelo
havia um verdadeiro incentivo para as mulheres
PP Sempre, sempre. Éramos muitas vezes duas meu trabalho também, e acho que eles viam isso,
trabalharem, para não ficarem só em casa.
pessoas, a imagem e o som. Às vezes, não íamos não era aquela mulher frágil que tinha medo de
E isto aconteceu muito nesses países socialistas
com o realizador, enviávam-nos simplesmente ir filmar a guerra, ou que tinha medo de estar
ou comunistas – que as mulheres, naquela
para fazer a imagem, e claro que nos preparavam, só com três ou quatro homens a oitocentos
altura, fossem incentivadas a ser livres e a fazer
como é que vamos fazer, como é que vamos quilómetros de casa, porque às vezes viajávamos.
o que quisessem, e acho que fiz parte destas
trabalhar juntos, colaborar… E acho que havia muito respeito entre nós.
pessoas. Eu nunca senti uma coisa desagradável
MS Eu digo até em termos de linguagem ou da parte dos meus colegas. Havia um bocadinho MS E achas que essa experiência, por exemplo,
abordagem de conteúdo. Não sentia isso? de machismo, mas nunca houve uma falta te influencia em termos de linguagem no
de respeito ou abuso, podia até haver um trabalho, naquilo que a Pocas vem fazer depois?
PP Não, não muito. Éramos muito livres. É claro
desejo, mas nunca houve um abuso. PP Eu acho que sim.
que tínhamos uma maneira de filmar, tinha de
67 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES

MS Esse ambiente livre, enfim, de PP Sim, claro. Onde não és bem-vinda, não tens PP Não éramos bem-vindos.
experimentação… a tua família, não tens a tua maneira, o teu ritmo MS … o pós-25 de Abril foi como?
de vida, a tua cultura, o teu sol, a tua praia, as
PP Sim, porque eles puseram-me tão à vontade PP Houve também os retornados. Não sei se você
pessoas com quem tu convives, a maneira de ser
que eu nunca tive medo de fazer aquilo que sabe o que chamaram de retornados. Foram os
é tão diferente. E, naquela altura, os angolanos
queria. Acho que me tornei também uma pessoa portugueses que viviam em Angola, alguns até
não eram bem-vindos. Isto é uma realidade, os
com segurança por ser jovem. Mas também me tinham nascido lá, que cá chegaram primeiro,
angolanos não eram bem-vindos em Portugal.
puseram à vontade, portanto, eu estava segura um bocadinho antes dos angolanos, e que
de mim e… Acho que foram os melhores anos MS Achas que hoje é diferente? também foram muito mal recebidos. E acho que
que tive na minha vida. PP Ahm… Houve uma história que se criou com os angolanos passaram por uma outra segunda
MS (risos) Angola e as coisas mudaram um bocadinho. fase, que foi ainda pior. Eu penso que fomos
Não penso que seja tão fácil, não é tão fácil. Eu muitos a chegar ao mesmo tempo e, de repente,
PP Mas é verdade. Porque estava a aprender com
também vejo as coisas de uma maneira diferente acho que os portugueses se sentiram invadidos,
profissionais, não artisticamente, mas naqueles
hoje, também tenho uma relação com Portugal com medo que lhes tirassem o trabalho, o pouco
anos em que eu trabalhava e, ao mesmo tempo,
que é diferente. Já não tenho aquela relação trabalho que tinham porque, na verdade, todas
aprendia, trocávamos ideias. Acho que aqueles
de colono e colonizado, é uma relação que é as colónias davam trabalho aos portugueses.
anos foram ótimos para mim, porque amadureci
muito… fraterna, mais fraternal. Não é aquela Portanto, de repente, essa gente toda que vem…
naquele momento. Tinha voltado de Lisboa, que,
relação que eu podia ter naquela altura, do
para mim, tinha sido um pesadelo… MS Perderam trabalho lá e ainda perderam aqui,
colonizado e do colono. ou podiam perder aqui…
MS Traumático, não é?
MS Na altura dos anos setenta? PP Podiam ter perdido, claro. E acho que foi
PP Completamente. E, para mim, era assim:
PP Fim dos anos setenta, início de oitenta. Eu terrível, ninguém queria ter angolanos à volta.
“uau”. Estou, sim, em um país em guerra, sentia-
vejo as coisas (de maneira) diferente, mas penso E havia muito racismo, muito abuso sexual,
se muito a guerra em Luanda, mesmo que não
que as coisas continuam a ser muito difíceis para mesmo nas ruas com as raparigas. Eu e a minha
fosse todos os dias…
os estrangeiros, para os africanos que vêm, não irmã vivíamos com medo de ser abusadas. Havia
MS Mas mesmo em guerra era melhor do que para os estrangeiros europeus, mas sobretudo muito machismo em Portugal, o que já não havia
estar cá. os africanos que vêm a Portugal. Não é fácil, não em Angola porque havia lá outra mentalidade,
PP Era, porque enquanto tu estás em exílio num é fácil. uma abertura de espírito que era muito diferente
país que não é teu, que não conheces, onde, no da portuguesa. Realmente, os portugueses que
MS Então, sentias que naquele período os
fundo, não és bem-vinda… tinham ficado em Portugal não tinham crescido
angolanos não eram bem-vindos, a Pocas
tanto quanto os portugueses que tinham ido ao
MS Sentias isso? acabou estando naquele momento…
POCAS PASCOAL 68

estrangeiro, é verdade. Mesmo sendo colónias, muitos bairros sociais à volta de Lisboa onde há MS Entendi. Então foi o amor que te trouxe de
acho que isso ajudou muito, e estou a dizer isso uma mistura incrível, o que não há em França. volta.
abertamente, ajudou muito a evolução dos Por exemplo, os bairros sociais em França PP Foi o amor que me trouxe de volta para a
portugueses o fato de terem ido para as colónias. são muito separados, só há negros, ou só há Europa. Felizmente, porque eu descobri outras
Acho que, por nós, os portugueses eram vistos árabes, ou só há chineses, é uma coisa incrível, coisas. Finalmente, eu acho que tinha ficado
como pessoas… porque se criaram guetos. Em Portugal, nesses muito fechada naquilo que me tinha acontecido,
bairros, que são bairros de imigrantes, também
MS Atrasadas? acho que isso acontece muito com os imigrantes.
há portugueses. Há algumas exceções, alguns E descobri que a Europa era diferente, que as
PP … atrasadas, não civilizadas, é verdade. E bairros cabo-verdianos, onde as pessoas vivem coisas eram diferentes, havia pessoas diferentes.
tristes, sempre vestidas de preto (risos), com as como num gueto, é verdade. Mas também é E Paris deu-me imenso. França é um país que
mulheres de luto, uma coisa muito pesada, não verdade, e tenho de dizer aquilo que constatei me deu muito, e Paris sobretudo. Enriqueci-me
havia cores. Havia uma diferença enorme para nos últimos anos, que havia uma mistura. muito, fiz uma escola de cinema, em França
uma jovem que chega num país estrangeiro, era
MS Nesses bairros socias. comecei a fazer cinema, aquilo que eu queria
uma diferença muito grande e muito sinistra.
fazer, finalmente.
Ainda por cima, naquele bairro onde acabei PP Nesses bairros sociais há uma mistura, é
por ir viver… Foi chocante. E acredito que hoje verdade. MS E foste para que escola? Eu queria que
continua assim. O estrangeiro que chega e não contasses um pouco desse percurso de formação
MS E como é que foi a tua passagem, depois
vive na Estrela, não vive na Lapa, ou não vive em França.
desse período em Angola, ao decidir ir para
não sei aonde, na Baixa… A pessoa que imigra França? Não voltas para Portugal e vais para PP Quando cheguei em França, mesmo sendo
e chega, hoje em dia, em Portugal, acredito que França. operadora de câmara, ainda era um bocado
não venha diretamente para os bairros mais tímida, tinha um bocadinho daquele medo.
PP Eu nem pensava em voltar para a Europa,
chiques de Lisboa… Será que eu vou ter o nível que os franceses
para mim era uma coisa terrível. A Europa era um
MS E se confronta com este mesmo Portugal. têm? Aquela reputação de grandes cineastas,
sonho que eu tinha tido quando adolescente,
será? Então, decidi fazer uma escola, e fiz o
PP Com este mesmo Portugal. Acho que as mas que…
conservatório de cinema francês, onde estive
coisas evoluíram. Eu não estou nessa realidade, MS Virou um pesadelo. dois anos, e já queria fazer realização, mas decidi
é verdade, não estou nessa situação. Vivi essa
PP Virou um pesadelo, eu tinha-me enganado fazer montagem. Porque achei que, naquela
situação nos anos setenta, oitenta, mas acho
completamente. Mas, em Angola, dois anos altura, era o que me convinha mais. Eu tinha
que continua a haver um certo olhar crítico e
depois, fiquei apaixonada por um francês. (risos) tido filhos. No segundo ano, estava grávida da
de medo. Mas há uma coisa que reparei. Se
minha filha, e convinha mais a montagem. Fiz
posso comparar com França, reparei que há
69 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES

montagem, trabalhei durante anos e anos como bocadinho deste mundo da televisão e a fazer vivido a guerra também, e fiz um documentário
montadora no cinema, e acabei na televisão. Os as minhas curtas. Fiz um documentário. assim sobre a infância. Depois, fiz outra vez uma
meus últimos anos de trabalho como montadora E, pronto, como estava no meio, finalmente, curta-metragem sobre a palavra, uma curta em
foram para a televisão independente, para o meu início como realizadora foi um bocadinho que eu não quis (…) Como eu disse, fui tímida
produtoras independentes de televisão. mais fácil. Conhecia as produtoras, conhecia durante uns anos, era muito tímida, e acho que,
muita gente, fiz filmes quase sem dinheiro para mim, era mais fácil comunicar através
MS Francesas?
nenhum. da fotografia, fiz muita fotografia também, e
PP Francesas. Portanto, não tinha… Só a partir continuei a fotografar em França, fiz exposições.
MS E quais são os teus primeiros filmes?
de um momento em que comecei a dizer: “Acho Então, era mais fácil comunicar através da arte
que agora preciso de fazer aquilo que sempre PP Eu fiz duas curtas-metragens, uma na Índia, que eu fazia do que através da palavra. E fiz
quis fazer realmente, a realização de filmes.” sobre a matéria têxtil, fiz quase sozinha; e, uma curta-metragem também onde falava um
depois, fiz um documentário sobre a infância.
MS E quando esse clique aconteceu? Em que bocadinho de mim. Depois, fiz um documentário
Naquela altura, interrogava-me muito sobre
momento da tua carreira? onde falava da minha memória. Pela primeira
a minha própria infância, acho que foi no vez, falei de mim própria. É um documentário
PP Eu acho que foram precisos muitos anos momento em que comecei a pensar naquilo que fala da guerra que vivi, daquilo que vivi com
de televisão para eu começar a dizer “Ai meu que vivi durante a guerra, a colonização a minha família, com as minhas irmãs e a minha
Deus, que horror, não suporto mais a televisão.” portuguesa. Acho que comecei a interrogar-me mãe.
(risos) Fiquei alérgica à televisão, e sobretudo sobre quem eu era, a minha pessoa, a minha
a trabalhar para a televisão, fabricar aquilo. MS Antes de vir para Portugal?
identidade. Então, fiz um filme sobre a infância,
Era uma fábrica de filmes. A televisão é uma não sobre a minha, sobre a dos outros, mas era PP Antes de vir para Portugal, em 75. Eu era
fábrica de filmes que nem sempre são criativos, uma maneira de falar de mim também através muito jovem, era miúda, estávamos a fugir da
sobretudo séries para televisão, sejam do filme. Fiz com vários estrangeiros, eram guerra em Luanda, estávamos a ir para o Sul de
passadas na Alemanha ou em qualquer parte sobretudo pessoas estrangeiras que viviam em Angola e fomos presas pela UNITA. Levaram-nos
do mundo. A televisão nem sempre é criativa, França. Eu tinha perguntas muito exatas sobre para um sítio que ficava em Huambo. Nós não
infelizmente. E, a partir de um momento, eu a maneira como eles se criaram no ambiente conhecíamos, levaram-nos para o Huambo, e
disse “Não posso mais continuar a fazer isso, em que cresceram e, ao mesmo tempo, eram fecharam-nos.
se não vou deprimir, tenho de mudar, tenho questões que eu me fazia. Aquela memória de MS Ficaram presas.
de fazer os meus projetos.” E comecei a fazer infância, o que é que nós tínhamos, o que é que
curtas-metragens. Continuei a trabalhar para PP Ficámos presas.
nós captamos da família, o contacto humano,
a televisão, tinha filhos, tinha de alimentar os até os sons… E tinha alguns amigos que tinham MS Com outras mulheres?
meus filhos, mas comecei a desligar-me um
POCAS PASCOAL 70

PP Com outras pessoas. Havia muita mulher e mestiços eram do MPLA, era o que diziam. Ao mudar também a minha maneira de ver as
muita criança. Eu lembro-me de que a minha mesmo tempo, era verdade, porque, naquela coisas, e de ter uma visão mais política ao
mãe apoiou muita criança que estava lá sozinha altura, o MPLA era uma mistura de brancos, nível cinematográfico e aquilo que eu queria
sem os pais. Havia muita gente perdida naquela mestiços. E a UNITA já tinha aquela reputação de fazer. Finalmente, eu descobri que aquilo que
altura, porque as pessoas fugiam à direita e partido racista. Portanto, ser mestiço, para eles, e queria fazer era um cinema político, um cinema
à esquerda, e perdiam-se. E nós estávamos para muita gente, era ser do MPLA. engajado, um cinema onde eu quero denunciar
fechadas num armazém nesta cidade, Huambo. MS E a UNITA era constituída só por negros? problemas da sociedade, onde quero não só
E, mais tarde, quando fiz esse documentário, (…) É claro que eu gosto de cinema que fala de
PP A maioria era.
descobri que este armazém era um matadouro. amor, de paixão, e de beleza, eu gosto da beleza
E, para mim, foi… Bom, estive o filme todo MS Mas também tinham lá muitos brancos? também. Mas o cinema que eu quero fazer e que
numa emoção, deviam ter filmado aquilo. Eu PP Tinha mais no MPLA. Na verdade, nós não comecei a fazer a partir desse documentário
não estou no filme, só tem a minha voz, mas conhecíamos muito bem a UNITA. O MPLA é um cinema mais engajado politicamente,
realmente, para mim, foi muito importante ter chegou em Luanda, nós fomos politizados pelo porque acho que é tão importante termos este
voltado a Angola naquele momento. Fiquei MPLA, muitas vezes enganados pelo MPLA poder. Finalmente, temos esse poder de utilizar
muito tempo, ia de férias e não sei o quê, mas também. Acho que havia realmente uma grande o cinema como uma arma, não é? Acho que seria
não tinha questionado sobre a realidade que eu esperança no MPLA, porque havia aquela uma pena não denunciarmos aquilo que se passa
tinha vivido, era miúda, tinha oito ou nove anos mistura de raças, e não havia aquele medo que na sociedade.
em 75. E voltar a este sítio, falar com as pessoas, nós tínhamos da UNITA, o medo do racismo MS Sim. Olhando para a sociedade hoje
entrevistar várias pessoas à procura do sítio onde da UNITA, e a UNITA era tribalista também. em Angola, essa polarização entre MPLA e
estive presa com a minha família, foi para mim E é verdade, eu vivi isso, nós fomos presas UNITA que houve entre a guerra, como vês os
muito importante. simplesmente porque éramos mestiças, é uma desdobramentos, a construção do país, e a
MS E sabes o porquê de terem sido presas? Ou realidade, e por sermos consideradas do MPLA. Angola de hoje?
eram prisões aleatórias? Portanto, foi uma coisa injusta e nós ficámos, não
PP É complicado, extremamente complicado,
sei quanto tempo, mas muito tempo, fechadas
PP Eram prisões aleatórias, mas sobretudo e uma grande desilusão para muita gente ver
nesse sítio, até um dia em que, com a minha mãe,
porque éramos mestiças. Naquela altura, a UNITA aquilo em que Angola se tornou. Porque penso
conseguimos fugir.
era um partido muito racista, e matavam pessoas que muita gente acreditou no país, acreditou que
só porque eram diferentes, porque não tinham a MS Conseguiram fugir? era um país que podia ser maravilhoso. Tem tudo
mesma cor da pele. Levaram-nos, a minha mãe PP Conseguimos fugir. Portanto, este para ser maravilhoso, tem pessoas maravilhosas,
e outras pessoas, porque éramos mestiços. Os documentário foi para mim uma maneira de pessoas extremamente curiosas, extremamente
71 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES

inteligentes a quem não deram formação, a muito recentes, acho que só com distância é que MS Com relação a Alda e Maria. Depois desse
quem não deram aquilo que deveriam ter dado e vamos constatar se a UNITA era realmente aquele documentário, então muito pessoal, vais para a
que, finalmente, todos esses membros políticos, partido rígido, racista e tribalista, ou se era uma ficção e decides fazer o Alda e Maria. Como foi o
os nossos dirigentes, não foram capazes de visão que o MPLA nos deu da UNITA, não sei. Eu processo de criação e filmagem desse filme?
manter aquilo que tinham prometido nos anos nem me quero exprimir em relação a isso, são
PP Eu, quando fiz o documentário, comecei a
setenta. Toda aquela ideologia muito bonita coisas muito complexas. Acho que, aos poucos,
pensar num filme que seguia a minha história.
foi para o país ser aquilo que é hoje, um roubo, com o tempo, de certeza haverá pessoas que
Portanto, depois do documentário, depois
uma corrupção, uma mentira, uma mentira vão escrever sobre isso, falar sobre isso. O que
daquilo que aconteceu, uns anos depois, é que
enorme. Aquilo que está a acontecer hoje em sinto é que fomos enganados, muito enganados,
vim para Portugal. E acho que me deu imensa
dia em Angola, mesmo que eu já não esteja em e que é uma grande desilusão, que o país podia
vontade de falar, não somente da minha história
Angola há muito tempo, e há anos que não vou realmente ser um país maravilhoso para todos.
pessoal, mas daquilo que aconteceu com muitos
a Angola, justamente por causa dessa grande E que estamos numa situação supercatastrófica
angolanos naquela época. Queria falar sobre esta
desilusão. Acho ótimo vermos que houve um onde realmente há muita pobreza num país tão
imigração dos anos setenta, início de oitenta, cá
grande engano da parte do MPLA, as pessoas rico. O povo está a sofrer muito, e continua a
em Portugal, sobre essa juventude que foi um
foram muito enganadas. Que o MPLA esteja a sofrer, onde o país está hipotecado, onde não há
bocadinho abandonada, não é? E que não foi fácil
mudar, não sei. É difícil saber, hoje em dia, se está dinheiro, e onde há um governo que está a tentar
para eles. Essa juventude que conheço, ainda
realmente a mudar ou não. Eu, pessoalmente, lutar… também não se sabe onde está a verdade
hoje cá em Portugal, é composta por pessoas
não acredito. Que a UNITA fez esforços ou não. Bem, é um caos. (risos) Portanto, é difícil
que foram sacrificadas e que, até hoje, ainda que
consideráveis… ou que estamos a descobrir pronunciar-me, não estou lá, vejo as coisas com
algumas se tenham adaptado, evidentemente,
uma UNITA diferente daquilo que era numa um bocado de distância e… o que dizer mais
não são aquilo que quiseram ser.
época, é verdade que estamos a descobrir uma sobre isso? Não sei. Esperemos que um dia as
MS As que ficaram, não é?
UNITA diferente, que tem pouco poder. A UNITA coisas mudem, não é? Há uma juventude que luta
não tem muito poder em Angola, ou porque por esta liberdade que tenta conseguir alcançar. PP Exatamente. Foi muito mais difícil do que
eles realmente fizeram aquilo que fizeram, ou Há uma juventude que é ativista e que conseguiu para as pessoas que vieram nos anos noventa,
porque tiveram uma reputação, é preciso rever fazer alguma coisa. Graças a ela, o país mudou ou que nasceram cá. Os filhos dos imigrantes
a história. Acho que seria necessário rever a um bocadinho, é um país com um bocadinho que nasceram cá, de muito mais fácil adaptação
história um bocadinho e saber exactamente qual mais de liberdade de expressão, mas acho e de construção de uma vida, não é? Para essa
foi a realidade. O que se vai descobrindo hoje que ainda há muito trabalho a ser feito, muito geração foi muito difícil, e eu quis falar disso. Eu
em dia (…) Mas eu nem me vou pronunciar em trabalho. quis falar dessa relação também com o meio
relação a isso, porque acho que as coisas são angolano, com o que aconteceu naquela altura,
POCAS PASCOAL 72

a solidariedade ou não, que nem sempre havia. E MS A experiência de filmagem? nos permitir mudar de equipa, era impossível
quis falar da minha história. PP A experiência de filmagem foi maravilhosa, parar a rodagem, era impossível. Portanto, tive
de fazer compromissos. Foi uma luta que não
MS E em termos de produção? Como foi o teu era a minha primeira longa-metragem… Bom,
devia ter sido uma luta. Acho que o maior sonho
projeto, conseguir dinheiro, financiamento, tive problemas com o meu diretor de fotografia,
é tu fazeres a tua primeira longa-metragem –
construir uma equipa? infelizmente. (risos) Pode-se dizer, e é uma
coisa de que às vezes não falo, mas tive muitos para mim era – com pessoas maravilhosas e,
PP Foi rápido, uma coisa rápida, incrível.
problemas com ele, não vou entrar em detalhes. de repente, havia aquela pessoa, que era a mais
Consegui dinheiro, inscrevi-me em França, importante para mim, que criou um conflito
numa residência em França e logo encontrei MS Mas era em termos de linguagem ou em
onde não devia ter havido. E foi simplesmente
uma pessoa que me disse: “Mas eu tenho um questão técnica?
porque ele pensou que tinha de me ajudar, entre
produtor em Portugal que vai estar interessado PP Em termos de linguagem, sim, e acho que, aspas. Ele tinha de me ajudar, eu quero ajuda,
nesse projeto.” E aí eu enviei o projeto, nem sinceramente, ele tinha dificuldades em acreditar mas não é assim, impondo as coisas. É trocando
tinha acabado de escrever, e tive este produtor que uma mulher, uma coisa que nunca me ideias, o que é normal, trocamos ideias com as
que se interessou. Acho que, um ano depois, aconteceu em Angola… pessoas com quem trabalhamos. O cinema não
nós tivemos dinheiro em Portugal. E ele nem
MS Pudesse fazer um filme. é uma arte que tu fazes sozinha. Portanto, de
procurou dinheiro no estrangeiro, portanto, um lado, foi ótimo, tive duas atrizes maravilhosas,
decidimos fazer o filme com este dinheiro, PP Exatamente. Angolana e mulher. Eu senti
realmente, com quem partilhei muita coisa,
muito pouco, mas eu estava naquele ritmo, isso. E foi terrível para mim, porque a pior das
duas pessoas de talento que não tinham muita
queria fazer o filme rapidamente, não queria coisas é ter um conflito com o teu diretor de
experiência profissional. A Sheila, uma das
ficar quatro, cinco anos à espera, à procura de fotografia, porque normalmente tens uma grande
duas, até nem tinha experiência nenhuma, tinha
dinheiro. Então, decidimos fazer o filme com cumplicidade com ele.
acabado de sair da escola. Tive boas coisas.
poucos meios. Tive uma equipa maravilhosa, MS É melhor que tenha. (risos) Foi difícil, mas tive boas coisas. Foi um
pessoas que eu não conhecia na maior parte.
PP Claro. É uma coisa terrível. E era a minha sofrimento. (risos)
Também não conhecia Portugal. Na verdade, eu
primeira longa-metragem, portanto, foi assim MS O filme circulou em sala comercial?
vivia em França, não podíamos ter uma equipa
uma coisa superdura. Tinha uma superequipa, Conseguiste?
francesa cá porque não tínhamos muito dinheiro,
mas com a pessoa mais importante da equipa
e foi criada por este produtor com quem eu PP Sim, sim. O filme, em França, teve uma grande
não funcionou, uma coisa terrível. Eu consegui
trabalhei. É claro que eu os conheci distribuição. Por acaso, funcionou, esqueço-
fazer o filme, consegui impor aquilo que eu
um bocadinho no início, fizemos pesquisa juntos, me dos números, mas esteve muito tempo nos
queria. Nem sempre, é verdade. Às vezes, tive
mas foi maravilhoso. cinemas, o que é difícil para um filme estrangeiro,
de fazer compromissos, porque não podíamos
73 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES

com negros. Acho que ficou cinco semanas no os movimentos ativistas, antirracistas parecem MS E projetos para o futuro? Algum filme que a
cinema, o que é muito. mais engajados hoje, pelo menos aparentemente Pocas está a preparar?
mais bem organizados.
MS E foi bem recebido? PP Eu estou a acabar agora um filme que fiz
PP Porque também não havia nos anos oitenta, em Pedrógão Grande sobre os incêndios em
PP Foi muito bem recebido, tive uma imprensa
setenta… Portugal. Um filme que é completamente
realmente ótima.
diferente daquilo que fiz até hoje, um filme
MS S.O.S. Racismo é o primeiro que vai surgir nos
MS Tanto em França quanto em Portugal? que fala daquilo que se passa no mundo em
anos noventa.
PP Em Portugal, ele também foi distribuído, relação à mudança climática, portanto, que
PP Exatamente. Acho que realmente há um
mas muito mal distribuído, uma coisa terrível, também me toca, evidentemente. É um filme
movimento de ativistas cá em Portugal que não
nem quero falar sobre isso. Até hoje, nem falo no qual acompanhei um casal que foi vítima
existia antes, e que estão a fazer um trabalho
com o distribuidor. Enfim, o filme viajou pelo dos incêndios, e filmei-os durante um ano. São
maravilhoso. E é verdade que há, hoje em dia,
mundo inteiro, teve prémios no mundo inteiro. pessoas bastante engajadas também ao nível do
um lugar, como se vê na assembleia nacional,
Teve um prémio cá, no IndieLisboa, em 2012, e clima. É um filme universal, um filme que fala
para negros que é representativo da sociedade
é um filme ainda muito pedido porque fala de dos portugueses, mas que fala daquilo que
portuguesa. A sociedade portuguesa tem negros
imigração, fala do exílio, e é um filme muito atual. acontece hoje no mundo inteiro, os incêndios,
em toda a parte, não é? Portanto, não era justo
É um filme de 2012, mas continua muito atual seja na Austrália, ou na Suécia, ou no Brasil.
que essas pessoas não existissem
porque continuamos a imigrar, cada vez mais Portanto, é um filme que fala daquilo que
por não serem representadas. Mas, mesmo
até, por razões diferentes, económicas, de guerra, se passa no mundo ao nível ecológico, e da
assim, ainda acho que está muito longe
ou do clima. E um filme que continua muito destruição que se faz. Infelizmente, não sei
daquilo que as pessoas esperam, de ter mais
atual, portanto, funcionou. Cá em Portugal, se vamos conseguir sobreviver às catástrofes
representantes ao nível dos media, não somente
ele estava no programa nacional das escolas. atuais…
ao nível político. Os nossos filhos… Bem, os
É um filme que está nas escolas, nos liceus, MS Humanas, não é? Sobretudo as humanas.
meus não, mas os filhos em geral, quando
eu fiz algumas intervenções. É um filme que é
veem televisão, não se reconhecem, não veem PP Humanas. Este é um documentário que
mostrado e isto é genial, uma coisa incrível.
um negro como médico, ou uma negra que estou a acabar agora, estou em pós-produção.
E, em França, ele também teve uma bela história.
tenha sucesso, quem represente aquilo que é Espero acabar para o IndieLisboa, espero ser
Na Alemanha, andou não sei em quantos
a sociedade portuguesa, ainda não chegamos selecionada para o IndieLisboa. (risos)
festivais, e no mundo inteiro.
a este ponto. Mas há realmente, hoje em dia, Mas acho que sim, acho que está bem
MS E achas que essa situação de racismo que associações que fazem um trabalho maravilhoso encaminhado. E estou a fazer um filme sobre a
havia… Eu já perguntei isso, mas era só para e ativistas que tentam mudar as coisas. identidade em Cabo Verde, com uma produtora
saber… Porque, no contexto atual de Portugal,
POCAS PASCOAL 74

francesa também. Vou agora em abril a


Cabo Verde fazer pesquisas, ainda estamos
numa fase de escrita. E estou com um projeto
de longa-metragem sobre uma mulher
maravilhosa, que foi a primeira negra a fazer
cinema, a primeira mulher negra a fazer cinema,
que é a Sarah Maldoror. Portanto, estou a
fazer uma ficção sobre a Sarah, e a Sarah fez
o primeiro filme angolano. É incrível. Ela não é
angolana, mas o primeiro filme dela foi o filme
que ela fez sobre Angola, em Angola, nos anos
setenta.

MS O Sambizanga, não é?

PP Sambizanga, exatamente. Então, estou a


escrever, estou a trabalhar com as filhas dela,
porque ela já está muito velha, e é difícil às vezes
conversar com ela, mas estou a fazer uma ficção
sobre a Sarah, neste momento. Estou a escrever.
Vai ser um processo muito longo, mas bom.
Estou com esses três projetos.

MS Ótimo. Acho que podemos encerrar aqui.

PP Olha, que bom, porque eu preciso mesmo


correr. (risos)
ANA TICA
ENTREVISTA REALIZADA
POR MICHELLE SALES

cena, mais ou menos na última década dos anos


2000. Eu tenho acompanhado esta produção e
já estive com Welket Bungué, Silas Tiny, Vanessa
Fernandes, Hamilton Trindade, agora contigo;
estarei com Maíra Zenun, e também Ângelo
Torres e Pocas Pascoal, enfim, o máximo de
levantamento possível que possa representar
o que (…) eu venho imaginando a ideia de uma
geração mesmo. Talvez uma questão geracional
de uma produção audiovisual que surge com
Entrevista com a realizadora Ana Tica, no bairro Ameixoeira, essa geração de portugueses afrodescendentes.
Lisboa, novembro de 2019 Eu queria que começasses falando da tua
formação. Como é que foi a tua formação? Como
Michelle Sales 18 de novembro de 2019. Lisboa.
foi o início no meio cinematográfico? Enfim, os
Ana Tica. Entrevista na Ameixoeira. Bom, já foi
primeiros trabalhos, mas centrando um pouco
uma conquista a gente conseguir chegar aqui,
nesse período mais formador, está bem?
esta entrevista já estava prevista há algum
tempo. Vou-te explicar: trata-se de uma conversa Ana Tica Eu não tinha experiência, não fiz
informal; para este material de vídeo, como eu te formação audiovisual. Portanto, a realização do
falei, ainda não tenho previsão, nenhum formato documentário aconteceu por interesse
pensado com muita clareza. Isto faz parte de meu. Encontrei pessoas que tinham essa
um projeto de pesquisa que foi aprovado pela experiência e me podiam ajudar, mas foi uma
Fundação Calouste Gulbenkian e ganhou um casualidade, digamos assim. Portanto, a minha
financiamento para fazer um levantamento, e um formação é na área social, estudei animação
projeto de investigação, sobre os realizadores sociocultural, que tem uma vertente forte ao
portugueses afrodescendentes que surgiram na nível da produção cultural, e foi nessa ótica que
ANA TICA 76

também fui dando cada vez mais valor à criação muito entre bairros. Na área metropolitana de pessoas conseguissem colaborar mais e lutar
artística. Ou, melhor, essa criação já existia Lisboa, há muitos bairros, inicialmente foram juntas pela melhoria das suas condições de
à minha volta, eu é que passei a ter algumas autoconstruídos; alguns deles, depois, foram vida, mas lamentavelmente há muitos desses
ferramentas de produção e tentei então trabalhar demolidos e as populações realojadas à volta fenómenos de colocar as pessoas, que se deviam
com criadores, especialmente afrodescendentes, da cidade. Eu tive a oportunidade realmente de unir, umas contra as outras. Às vezes, nem sabem
porque sempre foi a minha cena. trabalhar em vários bairros e a música era uma bem explicar porquê, mas isso era muito comum.

MS Mas essa “criação que existe à volta” se refere coisa que estava sempre presente, circulava MS O início da tua vida profissional foi então com
a quê? Ao lugar onde vivias? Ao seio familiar? entre os espaços. Por vezes, entre bairros, havia a música, não com o cinema. A vida cultural e
Enfim, essa produção é o quê? relações de hostilidade fortes, e havia pessoas artística começou com o rap, é isso?
que nem circulavam, nem sequer circulavam.
AT Eu entrei em contacto com essa produção AT Não é com o rap. Portanto, eu, enquanto
por necessidade minha, porque não cresci em MS Mas porquê essa hostilidade? Por exemplo, animadora sociocultural, trabalho com
comunidade; pelo contrário, cresci bastante no Brasil, às vezes, são em zonas controladas grupos, sendo que a maioria dos grupos está
isolada, e tinha muito essa necessidade pelo tráfico ou por grupos de mílicias urbanas... em situações vulneráveis, e a ideia é sempre
de encontrar, de alguma forma, os meus Essas hostilidades, aqui, se davam porquê? encontrar aquilo que são as necessidades não
pares, e acabou sendo por via profissional. AT Também tem que ver com esses tipos satisfeitas, aquilo que os grupos identificam
Nesta profissão que escolhi, desde cedo, de fenómenos, claro que em muito menor como sendo os seus desejos, e trabalhar com
comecei a trabalhar em bairros com grupos dimensão, mas ela era muito presente. Há eles, muito em metodologia de projeto, para
maioritariamente jovens. E foi aí que encontrei conflitos, às vezes geracionais, que os mais concretizar alguns desses objetivos, melhorar
muita produção, seja de dança, seja de teatro, jovens vão herdando, nem sabem bem porquê, a vida no bairro, passar a ter uma resposta
música, muito rap. Então, desde cedo comecei a mas sabem que o bairro deles não se dá com o que não existia. Muito deste trabalho é feito na
interessar-me por essa produção. outro bairro vizinho. Cheguei a presenciar e a ter comunidade e com a comunidade. O rap foi um

MS Mas essa produção era circunscrita a esses conhecimento de situações de rixa entre jovens interesse meu. Ao fazer esse trabalho, percebi

bairros ou achas que conseguiam, de alguma de diferentes bairros. Eu acho que também tem que havia esta linguagem. Ao aproximar-me,
forma, circular na cidade de Lisboa ou ter alguma associados fenómenos de tráfico e criminalidade, dei conta que havia essa linguagem. Depois,

visibilidade? mas, por vezes, também são heranças, já pessoalmente, em 2016, também por ter feito
não se explica bem. Porque alguém teve um um percurso de formação que tinha que ver
AT Eu considero que não tinham visibilidade, daí
primo, um amigo, não sei o quê, vão herdando com coesão e diversidade, participei numa
essa minha necessidade, enquanto produtora
esse tipo de relação. Infelizmente, porque são formação onde este foi o mote. Durante um
cultural, de poder fazer emergir essas criações.
locais que, muitas vezes, têm o mesmo tipo ano, trabalhámos estes temas e cada um dos
A música, nomeadamente o rap, circulava
de problemática. Era muito importante que as participantes, no fundo, tinha como desafio
77 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES

voltar para a sua realidade e tentar implementar recentemente por processos de realojamento depois constituí uma equipa, claro, muita malta
um projeto que promovesse esses valores. social, e estavam muito zangados com a forma voluntária que também quis contribuir.
Foi internacional, e, quando regressei, vi- como as coisas foram feitas, com a quebra dos MS E como o projeto foi financiado?
me com esse desafio, lembrei-me do rap e seus laços, das suas relações sociais, com irem
AT Na altura, como tinha feito essa formação
queria trabalhar com MC’s. Então, esse foi o para lugares que ainda não lhes diziam muito,
internacional e tinha um pouco a noção de
meu primeiro projeto que produzi, que foi um prédios de betão. Então, cantavam muito a
quais eram as possibilidades a nível europeu, foi
álbum de pop em que trabalhei com MC’s de saudade e faziam muitos hinos a esses bairros
através do Programa Juventude em Ação, que, na
vários bairros, porque tinha esta questão: eu autoconstruídos.
altura, tinha uma medida que eram “As Iniciativas
circulava, via que a música circulava, mas sabia MS Podes dizer quais são os nomes desses Jovens” e que financiava projetos europeus.
que as pessoas não se relacionavam. Então, fiz bairros?
um projeto onde juntei MC’s de vários bairros MS Era um fundo da União Europeia?
AT Eram Estrela D’África e Fontainhas, ambos na
diferentes, todos afrodescendentes, e, a partir do AT Sim, era um fundo da União Europeia.
Amadora; mas tinha também o Fim do Mundo,
interesse comum, criámos este álbum.
em Cascais; Das Marianas, que também era em MS E achas que, no caso do cenário português,
MS Como se chama o álbum? Cascais. Portanto, isso somente envolveu a malta no campo da produção propriamente dita...
AT PUTOS QUI A TA CRIA, que é do crioulo, de Cabo dos concelhos de Sintra, Amadora e Cascais. Quando olhas para os meios de financiamento
Verde, a minha origem, e significa “as crianças aqui, para as estruturas de produção, como é
MS E achas que essa cena congregou esses MC’s
que estão a crescer”. E o desafio foi muito esse, que enxergas um tipo de ação como a que fizeste
e eles conseguiram dinamizar outros projetos ou
as crianças que estão a crescer, vocês são nesses bairros, tentando se inserir nos meios de
outras iniciativas que partiram daí?
portadores de mensagem, vocês são ouvidos em financiamento nacionais?
AT Assim, eles todos já faziam música. E era isso
todo o lado, o que é que gostariam de deixar às AT Bem, eu pessoalmente tive muita dificuldade.
que eu queria, trabalhar com pessoas que tinham
novas gerações? Nessa altura, embora tenha conseguido, e com
esse gosto e que já o faziam. Claro que potenciou
MS E quais são as mensagens desse álbum? uma oferta bastante significativa através desta
muito, porque na altura nenhum deles tinha o
O que é o principal? No sentido desse legado forma que acabei de dizer, nacionalmente,
álbum editado, fizemos um videoclipe, ajudou
deixado para a próxima geração. O que é que experienciei algumas dificuldades. Aquilo
que tivessem mais projeção.
esses MC’s cantavam de significativo para a que senti é que não tinha crédito perante a
MS Dirigiste os videoclipes?
tua trajetória ou mesmo para a história desses maior parte das organizações, por ter pouca
bairros? AT Não. Fiz a produção executiva do projeto e experiência na área, mas sobretudo pela questão
só. (risos) Pronto, concebi a ideia do projeto, da credibilidade. Aquilo que senti é que não tinha
AT Olha, cantavam sobre muitas coisas. Na altura
procurei o financiamento para ele acontecer, o suficiente.
em que os conheci, grande parte tinha passado
ANA TICA 78

MS Mas achas que há espaço para produções seus portefólios. E foi assim que várias pessoas MS Por exemplo, foi algum filme que te motivou
como essa? Por exemplo, no caso dos foram chegando e ajudaram a contribuir para o ou que te estimulou a produzir até uma imagem
videoclipes, eles foram também financiados pelo objetivo final. Mas não são equipas profissionais; diferente da que habitualmente gostarias que
fundo da União Europeia? muitas vezes, as pessoas têm outros afazeres e fosse feita?
vão acabar por trocar o compromisso que têm
AT Sim, foi o pouco que permitiu fazer... AT Na cena portuguesa, acho que, dos primeiros,
contigo por outra coisa que, entretanto, apareceu aquele que mais me impactou foi Outros Bairros,
MS Achas que um projeto assim poderia, hoje, paga, porque te estão a fazer, no caso, um favor. do Kiluanje Liberdade, porque também falava
ser financiado por um sistema nacional de Depois, há prazos a cumprir porque, nos dois destas realidades, dava voz a uma série de
financiamento estatal, público, português? casos, houve esses financiamentos da União jovens que inclusive, nesta altura, estavam
AT Não sei, eu pessoalmente não conheço Europeia. No caso do documentário, já muito nesse processo de sair do seu bairro de infância
muitas possibilidades. Aconteceu-me o menor. Mas é complicado porque, no fundo, e de o ver ser demolido, e serem realojados. A
mesmo com o documentário. Também tentei o orçamento não era para pagar o trabalho linguagem desse documentário em particular foi
nacionalmente encontrar apoio e não consegui. das pessoas, era mais para os materiais e esse muito forte e chocou-me muito. Eu não o teria
Tenho a impressão de que o projeto foi lido, tipo de coisa. Depois, havia prazos e gerir as feito daquela forma, embora respeite muito. Mas
que despertou interesse, mas as respostas disponibilidades, não é fácil quando se fazem as tinha sempre a preocupação de até que ponto eu
foram todas negativas por já estarem a apoiar coisas assim com muita pressão e percalços. não estava a perpetuar um pensamento que já
outros projetos, por não haver essa capacidade MS Então, qual foi o clique desse universo dos existia sobre aqueles jovens.
financeira. Então, também há essa questão: bairros, da tua atuação como produtora cultural MS E o que mudarias no filme do Kiluanje?
financiamento público limitado. E a tal questão: na cena musical para a vontade de fazer um
para conseguir aceder, é necessário já ter um AT Eu não mudaria nada, não é?
documentário? Como é que surgiu a ideia do
grande historial, ter um reconhecimento que, MS O que farias diferente? Quando falas “eu não
documentário e, enfim, como é que vês essa
obviamente, quem está a começar ou tem acesso passagem, essa formação profissional e entrada faria assim…”
a menos recursos não tem. Eu, pessoalmente, no mundo do cinema? AT Traz-me esta angústia, porque nós já nos
tive essa dificuldade, que depois conduziu a uma
AT Eu também sou público, não é? É uma vemos tão pouco e quando vemos é uma
forma muito precária de produção, muito ativista.
linguagem que se foi democratizando, também determinada realidade, que é um pedacinho da
Ou seja, acabei por ter sempre o apoio de muitas
foram chegando outras coisas feitas por outras realidade, mas ela também tem esse poder de
pessoas voluntárias, amigos de amigos, porque
pessoas. No fundo, é ver outros documentários e cristalizar preconceitos e estereótipos, e, quando
sabem o que estou a fazer e, ao mesmo tempo,
pensar: “Uau, gostava de fazer uma coisa desse não se vê outra coisa, é aquilo que fica. Essa
também querem agregar valor, deixar os seus
género, gostava de poder dar visibilidade...” era a minha preocupação, e ainda tenho essa
créditos, como uma forma de desenvolver os
preocupação com muita coisa que vejo, mesmo
79 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES

de ficção, tem muito essa dificuldade. Porque fazendo a sua carreira e outros ficaram pelo MS Nessa cena musical, e mesmo
nos vemos tão pouco, se calhar, também por caminho. Então Zona J, e depois outros que não cinematográfica, citaste vários homens, no caso
ter que ver com o meu projeto, estou sempre à tinham que ver com a minha realidade, mas dos MC’s e mesmo no caso do Kiluanje e Zona J.
espera que aquilo que vejo tenha esse cunho mostravam que aquela linguagem tinha esse Nos últimos anos, no Brasil, se discute muito
mais ativista e contribua para desconstruir poder, e foi atrás disso que eu fui. a questão da visibilidade das mulheres negras
esses preconceitos, para falar do que não é como produtoras de imagens e das próprias
MS E como é ser uma ativista na sociedade
falado. Pronto, mas isso tem que ver comigo, narrativas. Achas que isso acontece ou vem
portuguesa? Como te vês como ativista?
obviamente. acontecendo também em Portugal? Como vês
AT Olha, não me vejo muito bem, porque essa relação das mulheres afrodescendentes na
MS E, além do Kiluanje, há outros que marcaram o ativismo não foi uma escolha, foi uma cena cultural e artística portuguesa?
o teu percurso de formação de público, mesmo necessidade. Tem que ver com a minha história,
como espetadora? AT Sim, acho que está a acontecer e de forma
tem que ver com a minha vida, tem que ver, se
forte, e que se está a conseguir ter essa
AT Sim. Em Portugal, não são assim tantos calhar, com determinadas dificuldades que fui
visibilidade. Há muitas mulheres negras a fazer
exemplos. Foi também o Zona J, que foi um encontrando. E acabou por ser no ativismo, ou
muita coisa. Eu, particularmente, citei homens,
filme muito mediático e que também tem esse quando conheci outras pessoas que me deram
outro lado que estou a dizer, de repente coloca acesso a outras interpretações da realidade, porque, na minha experiência, aquilo que sempre
me fez sentir agredida foi o fato de ser negra,
no ecrã um bairro com as suas problemáticas. a falar muitas coisas que eu desconhecia, de
então, iniciei esse percurso ativista com base
Também a própria forma como as personagens conhecimentos a que fui tendo acesso e que, a
nisso, e só muito mais tarde é que fui refletir
participaram, alguns eram mesmo jovens do partir dos quais, fui pesquisando e procurando. E
sobre o feminismo, sobre essa condição.
bairro e, depois, até vão criando... Li, mais tarde, daí fui ganhando força, mas também condições
reportagens sobre isso: naquele momento, até para interpretar algumas coisas que até então MS Ou seja, a questão de género surgiu depois?
criam a expectativa de que vão poder ser atores, importavam-me a mim mesma, ou não percebia AT Sim, surgiu depois, no meu caso. Sempre
e vão poder fazer outro tipo de trabalhos, mas porque é que aconteciam repetidamente. Foi um senti de forma mais forte esse ataque enquanto
que afinal não, foi só para aquele filme e, mesmo engajamento que vem muito da minha própria negra, portanto, me juntei a outras pessoas
dentro do filme, nem todas as personagens vivência, não foi uma escolha. Muitas vezes, negras, maioritariamente homens. Claro que
principais eram jovens negros, apesar de ter sido senti que é a escolha mais difícil, mas perante dentro do nosso próprio movimento e das coisas
feito naquele contexto específico do bairro. Se situações que indignam, que revoltam, é uma que íamos fazendo também existiam essas
calhar, aqueles que até tiveram maior projeção das respostas, e eu também fui fazendo porque questões de género, mas eu também não as via,
não eram (do bairro), mas já eram atores e encontrei outras pessoas com quem me fui tal como no início não vi as questões de racismo,
obviamente para nós, como público, eram todos fortalecendo, não foi um percurso individual. como não tinha essa leitura, também não a tive
iguais, mas depois vimos que alguns foram
ANA TICA 80

imediatamente. Se calhar, só passado algum pouco nessa questão da dupla nacionalidade, e motivações eram várias e as coisas foram-se
tempo, e passando por situações dentro do não sei até que ponto a gente consegue negociar construindo durante o próprio processo. Eu
próprio movimento, é que comecei a perceber essa dupla vida, porque é como se a gente tinha alguns pontos de partida que, se calhar,
que também ali havia questões que nem sempre assumisse uma dupla identidade: uma hora, hoje sei explicar melhor do que naquela altura.
eram corretas nesse ponto de vista. Mas, sim, no eu sou uma coisa e, em outra hora,… Eu fiquei Acima de tudo, essa necessidade de separar o
meu caso foi mais tarde. Até quando me tornei pensando no filme, na fronteira das identidades que é a nossa identidade daquilo que é a nossa
mãe. Tenho uma filha com seis anos, também nesses espaços entre Portugal e Cabo Verde. cidadania. Eu não tenho que dizer a ninguém que
vi-me com o desafio de educar uma menina, e se sinta português, mas acredito que temos de
AT No meu caso, não é uma dupla nacionalidade,
acho que foi sobretudo nessa fase que comecei ter uma participação mais ativa nesta sociedade
é uma dupla pertença.
a refletir mais sobre essas questões de género. para termos acesso àquilo que devem ser os
MS Sentes-te portuguesa? Sentes-te daqui, deste
Mas, nos últimos anos, efetivamente essa nossos direitos e, muitas vezes, nos são negados.
lugar?
preocupação está muito presente, e as mulheres E acredito que, quando nos fechamos na
estão a se afirmar muito na cena portuguesa, AT Tem dias, não é? (risos) Como disse a Felipa pertença de Cabo Verde e não queremos saber
as mulheres negras, em todas as áreas, mas (em Portugal dizemos Felipa, mas escrevemos de nada disto, não estamos a contribuir para
também muito na produção cultural. Filipa) no documentário. É difícil ir ao momento resolver essas questões. Então, era este o ponto
em que se ia fazer o documentário. Aquilo que de partida.
MS Eu li uma matéria que saiu... Agora não
me motivou não foi nada disso, do que acabou
lembro bem onde. Era um site na internet com
sendo o documentário. Foi até pegando muito
uma notícia sobre o teu filme, Nôs Terra, não sei
na experiência dos PUTOS QUI A TA CRIA, em
se falei certo porque é crioulo.
2006. Portanto, o documentário é de 2011, e eu
AT Sim, sim. queria muito reencontrá-los, perceber como é
MS E a chamada da matéria dizia: “Ana Tica que continuavam a fazer música, como é que a
Fernandes fez um filme sobre como ser coisa se tinha influenciado. Na base dos PUTOS
português e cabo-verdiano ao mesmo tempo.” QUI A TA CRIA, não havia só música. Então,
Logo que li a chamada, fiquei-me perguntando, quando nos reencontramos e conversamos
depois de saber um pouco sobre o filme, se era sobre nós, há tantas coisas para se falar que não
Entrevista com a realizadora Ana Tica, no bairro Ameixoeira,
isso mesmo, se o filme foi feito para pensar o dava para falar só sobre música, porque aquela
Lisboa, novembro de 2019
que é ser português e cabo-verdiano ao mesmo música também é uma música de intervenção,
tempo. Queria que falasses um pouco sobre isso, também tem um propósito, também foca muito MS Já foste a Cabo Verde?
sobre como te enxergas... Eu, às vezes, penso um as realidades dos afrodescendentes, então, as AT Eu não, nunca estive em Cabo Verde.
81 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES

MS E como imaginas? Tendo convivido nos Nascemos aqui e somos cidadãos de segunda, MS E o teu trabalho aqui? O que é que estás a
bairros, e ao ver a vida dos afrodescendentes, por uma série de situações, seja por não ter tido fazer? Como é o trabalho aqui? Como é a relação
sendo muitos cabo-verdianos nos bairros, aqui, acesso à nacionalidade, seja pela própria forma com o contexto, com a comunidade local?
em Lisboa, nas zonas que citaste, como imaginas como a cidade é organizada, remete-nos a não- AT Eu trabalho em desenvolvimento comunitário,
ser a vida? Ou como é a relação identitária que lugares que têm serviços com menor qualidade, portanto, partimos aqui do princípio, e essa é a
se estabelece consensualmente entre as pessoas e tudo isso vai tendo uma série de repercussões nossa visão, de que o desenvolvimento dessa
que vieram de Cabo Verde pós-25 de Abril e se na nossa vida. Eu acredito que nós temos de ter comunidade não se faz sem as pessoas que
estabeleceram na década, sobretudo em Lisboa? direito a uma cidadania plena e isso implica fazer cá vivem, e que elas têm de ser o motor desse
Como é que vês a relação deles com Portugal, essas alterações, reclamar também o direito desenvolvimento, e têm de estar implicadas em
ou mesmo com a cidade, com esses espaços de a esse chão, e que isso se traduza a nível de tudo o que é feito para melhorar a qualidade de
cidadania, esse exercício cidadão? cidadania. vida aqui, desde identificar os problemas, pensar
AT São perguntas sobre quem veio de Cabo MS A tua família toda mora em Portugal? que soluções podiam ser implementadas, e é
Verde e sobre quem nasceu aqui? AT Toda não, mas a nuclear sim. esse trabalho que vamos fazendo. Claro que é
difícil, porque essas comunidades são artificiais.
MS Exato. MS Sim, os teus pais estão cá... Isto é um realojamento social, as pessoas não
AT Porque é muito diferente e, muitas vezes, AT Sim, e os meus avós maternos também se conheciam, não tinham rotinas de convívio,
nós nem nos entendemos sequer. Por exemplo, vieram, os conheço desde que nasci, mas os pertencem a grupos étnicos diversificados,
houve pessoas que me acusaram de, ao fazer paternos não conheci, faleceram todos. portanto, se coloca aqui uma grande quantidade
esse documentário, estar a separar os imigrantes de pessoas que têm de aprender a viver umas
MS E como é a relação deles com Portugal?
das pessoas que nasceram cá. Nós temos uma com as outras, e isso não é fácil, não é? E logo
luta que é comum, a cidadania não nos protege AT Olha, eles já faleceram os dois, e não tive isso também coloca muitos entraves à nossa
de questões de racismo, de discriminação, etc. muito essa possibilidade de escavar e ficar missão, e às pessoas quererem participar
Então, não é uma relação fácil, porque quem vem com esse olhar deles. De qualquer forma, foi ativamente, porque se elas nem se sentem parte
de Cabo Verde, ou de qualquer outro país, vem uma escolha vir para cá. Claro que a escolha é daqui, se não gostam daqui viver, se muitas vezes
com a sua identidade bem construída, e vem sempre com base no passado e com uma relação até escondem, e dizem que vivem no Lumiar, nas
com um propósito, seja estudar, seja melhorar que Portugal teve com Cabo Verde, mas foi a altas de Lisboa, claro que também não vão estar
a sua condição de vida, e pode escolher ter uma acreditar que aqui poderiam ter acesso a uma tão disponíveis para aquilo, acham que não vale
cidadania ativa no sítio onde está, também se vida melhor, trouxeram os seus filhos, portanto a pena fazer porque o outro vai estragar, não
depara com problemas e onde estiver vai fazer foi uma escolha, construíram uma vida. vale a pena... Nunca vale a pena investir naquilo
essa luta. No caso, nós não fizemos uma escolha. que é o espaço coletivo. Agora, a minha missão
ANA TICA 82

é acreditar que é possível, é não me deixar ataques racistas em Portugal. Como é que vês a inventar a roda. Saber que, para chegarmos
contaminar por esses sentimentos, porque eu esse processo, sendo ativista e estando tão aqui, há um legado que nos trouxe cá, e que
não vivo aqui, ao final do dia, bem ou mal, vou ligada aos movimentos sociais? está a ser continuado por outras pessoas. Eu,
para a minha casa. Então pronto, isso também AT Olha, eu não estou de acordo que as mulheres particularmente, fui-me aproximando de alguns
é positivo, porque mantém esta capacidade de brasileiras potenciaram, acho que foram mais movimentos, de alguns fóruns onde começámos
acreditar que é possível as pessoas se juntarem uma força que se juntou a algo que já acontece a pensar, mas senti que é necessário pensar
em função de interesses comuns. Aqui, neste há muito tempo, e que também não começou o feminismo negro em Portugal, e há pessoas
centro, tentamos que seja um espaço que acolhe comigo. Antes de mim, muitas mulheres, inclusive que não têm tempo para isso. Então é mais
toda a gente, e que as pessoas aqui encontrem a minha avó, a minha mãe. Muitas mulheres fácil avançar, mas quando avançamos muito
um espaço seguro onde podem estar umas com negras têm feito um caminho que é invisível, mas depressa sem nos apropriarmos ou pensarmos
as outras, já que, se calhar, não estariam juntas um caminho de conquista da sua posição. Agora, as coisas, acho que não é a melhor forma de
de outra forma. E ir identificando o que são isto é tudo muito recente, portanto... fazê-lo, e como é uma coisa que penso a partir
interesses em comum e organizando as pessoas da minha experiência, pode ainda não estar
MS Também a mediatização desse processo...
à volta disso, e dar aqui o nosso apoio. suficientemente refletida, depois às vezes é difícil.
AT Sim, e estamos a falar de uma ditadura
MS Dos movimentos sociais ligados ao MS A questão de género?
que acabou há quarenta anos, portanto, isto
feminismo negro em Portugal, há algum que
é tudo mesmo muito recente. Ou seja, nós AT Sim, a questão do feminismo negro, não é?
tenhas acompanhado, acompanhas ou poderias
não temos os anos que o Brasil tem de luta de Porque dentro do feminismo negro há muitas
comentar? Como vês essa construção do
consciencialização e tudo mais. Não quer dizer divergências, há possibilidades, há que olhar
feminismo negro em Portugal e a relação com a
que não venha sendo feito, e se hoje tem mais para a cena específica da nossa situação, daquilo
sociedade? Estive em vários debates sobre essa
visibilidade é porque esse caminho foi mesmo que são os nossos problemas, e a partir daí
questão de género, e já ouvi até que as mulheres
sendo feito. Só que realmente há uma nova perceber quais são as nossas reivindicações ou
brasileiras potencializaram essa discussão de
geração ou novas gerações que já têm mulheres quais são as nossas principais necessidades e
género e chegaram com uma agenda, porque
mais novas do que eu. Tenho quarenta anos, temáticas. Eu, pessoalmente, não tenho isso
a imigração brasileira recente é muito grande
como também algumas da minha geração que suficientemente… Não é que não conheça
também e impuseram uma agenda à sociedade
foram fazendo um trabalho de formiguinha e as temáticas, mas não houve processo que
portuguesa que não era tão discutida. Já ouvi
parece que só agora as coisas foram ganhando permitisse fazê-lo com mulheres negras e que
mulheres dizerem-me que o feminismo aqui não
aqui mais visibilidade. Mas há uma história, que desse força a isso.
é tão importante. Como vês essa construção?
eu acho que nunca deve ser esquecida, que MS Bom, sobre o processo de criação do
E fico pensando no contexto em que a gente
devemos reconhecer e não achar que estamos documentário, falaste quando, no contexto
tem uma deputada eleita que foi alvo de vários
83 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES

daquelas produções culturais dos bairros, surgiu parte de toda a escolha do material que ficou no AT Ambas. Há pessoas que não tinham
a ideia, e que o processo de produção era muito projeto final. conhecimento, nomeadamente da questão da Lei
semelhante, ou seja, sem financiamento, uma MS Junto ao Nuno Pedro? da Nacionalidade e, para elas, é um choque saber
gestão coletiva... que há muitos jovens que nascem em Portugal e
AT Sim, junto ao Nuno Pedro.
não têm cidadania portuguesa. E há pessoas que
AT Exatamente. Basicamente, eu tinha um
MS Algum outro aspecto do filme? veem as coisas de outra perspetiva, e acabam
amigo que estudou cinema e que já tinha feito
AT Na edição, acabou por haver mais uma pessoa por, de alguma forma, vitimizar ou criminalizar as
vários documentários, portanto, foi a ele que
pessoas que passam por determinadas situações
inicialmente fiz a proposta: “Olha, eu tenho esta que tinha muita experiência com edição, o Alex,
que ali são apresentadas, e acham sempre um
ideia, gostava de fazer um documentário com que também acabou por dar o contributo dele.
bocado esta questão da meritocracia, que as
vários afrodescendentes.” E, pronto, colocada MS Esse filme já foi exibido nos bairros?
pessoas não fazem o suficiente para sair do lugar.
a possibilidade, numa primeira fase, foi ele
AT Sim, em vários.
que ajudou a pensar numa ideia de guião. MS Eu acho essa ideia da meritocracia algo muito
Apesar de ser um documentário, temos um MS E como é a receção do filme junto às presente na sociedade portuguesa. Por exemplo,
projeto estrutural do que seria feito. Ele não pessoas? tive uma conversa recente sobre as cotas. Era um
era português, estava cá em transição, e, a AT É muito boa. É o público que me é mais assunto que já estava mais ou menos resolvido
determinada altura, ele teve uma proposta de gratificante quando assiste ao documentário no Brasil, com uma lei que foi implementada em
fazer um estágio fora e foi necessário encontrar porque há identificação, há valorização, surgem 2012, e que realmente transformou o cenário
uma segunda pessoa para dar continuidade ao sempre muitas conversas boas. Geralmente, académico universitário brasileiro. Mas é um
processo de filmar o documentário, e foi assim no final, há uma conversa e as pessoas acabam assunto que não vejo sequer menção no mundo
que acabámos por juntar também ao projeto o pondo também as suas questões, as suas académico português. Não se discute isso e se
Nuno Pedro. Acabou por ser uma correalização. problemáticas, as suas experiências, e acaba parte do princípio de que se adotarmos cotas
No fundo, concebi a ideia, conheci as pessoas, por ser ali um gatilho para muita coisa que aqui é como se estivéssemos desvalorizando
os bairros, mas eu nunca tinha pegado numa venha depois .E para outros públicos, claro que essa população ou enfraquecendo o nosso
câmara e tive de ter este apoio. é sempre importante, e também era essa a ensino... Enfim, uma discussão que, no fundo, é
racista.
MS E o processo de edição? intenção, de levar algumas problemáticas para
fora do contexto dos bairros. Há todo o tipo de AT Sim, e o triste é quando os próprios
AT O processo de edição não fui eu que fiz, mas
reações. afrodescendentes racializados, em geral, adotam
estive presente; ou, melhor, fiz edição, não fui eu
MS Por exemplo? Positivas ou negativas? também este discurso de “não, eu não quero
quem manuseou o programa, mas claro que fiz
cotas, eu quero merecer as coisas, nunca me
sentiria bem de ocupar um lugar que me está a
ANA TICA 84

ser cedido”. E é um bocadinho como o que eu AT Eu acredito que não seria por uma grande percebem para que isso serve. É um trabalho
falava do feminismo, ou seja, se as discussões parte das populações que vive nos bairros, por imenso, faz falta; eu sou a favor, acho que devia
não forem feitas de forma mais aprofundada não entenderem o porquê dessa pergunta, não ser feito. Estive na origem de todo esse trabalho,
e com pessoas que muitas vezes não tiveram sabem, acham que isso vai-se virar contra elas. com mais um conjunto de pessoas, incluindo
acesso a determinado conhecimento, que estão A própria comunidade cigana. Portanto, nem o SOS Racismo. Respondemos à ONU, quando
atrás na discussão, isso torna-se tudo, para mim, sequer houve este consenso entre a comunidade Portugal esteve no comité da ONU a dizer que
pouco. Ao mesmo tempo que estás a falar, estás racializada, e invoca muito isto de que é como não sentia necessidade de políticas específicas
a falar de quem, por quem? Porque as próprias se eles estivessem a identificar, a darem eles para afrodescendentes. E nada disso, mesmo a
pessoas não estão a acompanhar-te nessa a informação sobre eles próprios para depois constituição desse grupo de trabalho, nada disso
discussão, não é?E ela será muito mais lenta, serem vítimas de mais discriminação, de políticas foi dado. Foi tudo fruto das nossas posições,
mas tem de ser feita em conjunto, de forma que discriminatórias, o que seja. de conseguirmos ter acesso aos média, marcar
as próprias percebam. Isso passar-se-ia mesmo MS Mas tem sido uma luta, por exemplo, do SOS agenda, dizer “olha, essa não é a nossa posição,
com as cotas, se não tivesse havido esse revés e Racismo, essa questão do censo e da inclusão da não estamos de acordo”. Mas conscientes de
tivéssemos conseguido esse ganho, a pergunta pergunta sobre a origem étnica. És a favor? Ou que há muito trabalho a fazer nas comunidades,
estaria lá nos censos e a maior parte das pessoas seja, achas que essa pergunta deveria existir ou senão é uma minoria que vai responder à
não responderia. ela precisa de uma construção maior? questão e isso não vai permitir fazer a leitura que
nós queremos da realidade portuguesa.
MS Achas que não? AT Eu acho que ela devia existir, só que ela tem
AT Não, elas não foram incluídas. Nem houve de ser respondida. Então, são dois trabalhos que
ainda tempo para fazer essa discussão com as têm de ser feitos e, na minha opinião, têm de
pessoas. Porque isso, mais uma vez, compete ser feitos pelo governo português, não por nós
a quem? A nós ativistas, que já temos as nossas ativistas. Ou bem que nós sejamos pagos para
vidas. Já é tudo tão difícil, ainda nós, na nossa acompanhar esse trabalho e estar no terreno,
boa vontade, no nosso tempo livre, é que temos ou então tem de ser feito pelo governo e arranjar
de ir fazer esse trabalho, porque ninguém faz. aqui forma de nós irmos acompanhando, mas
Isso faz com que as coisas fiquem sempre muito não pode ficar nos nossos ombros essa tarefa
pobres. que é muito grande. São precisos meios, são
precisos recursos, é preciso dinheiro para fazer
MS Mas achas que essa pergunta não seria
campanhas, para estar nos sítios, para explicar
respondida no censo português?
às pessoas, e tudo isso demora muito tempo
quando não aconteceu antes. As pessoas não
LOLO ARZIKI
ENTREVISTA À CINEASTA LOLO ARZIKI,
NO MOMENTO A VIVER EM LUXEMBURGO,
NO DIA 02 DE FEVEREIRO DE 2019.
VIA SKYPE, REALIZADA POR ANA CRISTINA
PEREIRA

Ana Cristina Pereira Gostava de te ouvir falar decidi vir para o Luxemburgo, para estar
sobre o teu trabalho e o teu percurso. Sei que mais perto e conseguir estudar, com melhores
nasceste em Cabo-Verde… condições.

Lolo Arziki Queres que eu comece a falar desde E foi assim que eu comecei a estudar cinema,
Cabo-Verde. Nasci em Cabo Verde e vim para porque eu comecei a estudar Artes do
Portugal com 13 anos, porque a minha mãe já Espetáculo, com vertente de Cinema e Teatro,
era imigrante, em Lisboa. A minha mãe já vivia no norte de França. Entretanto depois a meados
em Lisboa há uns 10 anos. Eu fiz o 9º ano aqui, do curso percebi… já estava mais decidida no
tinha terminado o 8º ano em Cabo Verde, vim que é que eu queria fazer porque pronto, já tinha
para aqui… fui para Portugal, já não estou em a base de Cinema e tinha a base de Teatro e
Portugal. Fiz o 9ª e depois terminei o secundário. percebi que o que eu queria mesmo era Cinema.
Fiz um ano de faculdade também em Lisboa, Então decidi que ia novamente mudar de curso
comecei Estudos Africanos, na faculdade de e ia estudar só Cinema, porque já estava bem
letras (Universidade de Lisboa) depois desisti decidida que era isso que eu queria fazer.
dos Estudos Africanos, porque, às tantas, percebi E nesse processo decidi voltar a Portugal, porque
que não era bem o que eu queria fazer. E vim em França só havia cursos em Paris e não me
estudar para França, porque a minha mãe, ficava muito favorável, não tinha as condições
entretanto imigrou para o Luxemburgo, quando financeiras. Então voltei a Portugal e fui estudar
eu tinha 17 anos e, pronto, por questões também cinema, lá. Na altura eu já tinha conseguido
financeiras, porque para ela me conseguir bolsa do Luxemburgo. Estudei cinema
sustentar os estudos em Lisboa estava muito em Portugal, mas sempre fui bolseira do
difícil, porque eu não tinha bolsa de Portugal, Luxemburgo, até agora que estou a terminar
LOLO ARZIKI 86

o mestrado. Fiz a licenciatura em Portugal. encontrar o cinema com que eu me pudesse com 13 anos, e em Cabo Verde não tinha acesso
Os primeiros anos do curso foram anos identificar. Então comecei, isto quase no 3º ao meio artístico, que era também bastante
muito complicados, por essa questão de ano do curso, encontrei um grupo no FB que elitizado. E então foi aí que eu decidi que ia
representatividade nas escolas, no próprio é o FICINE: fórum itinerante de cinema negro. tomar outro rumo na minha vida, que decidi
programa e tudo mais. Então comecei a ter Encontrei o FICINE e conheci lá vários cineastas o que é que eu queria fazer no cinema. Já fui
alguns conflitos e também a questionar-me sobre negros, do Brasil, conheci cineastas de Cabo também para as aulas com mais convicção,
o que é que eu queria fazer no cinema e o que é Verde, de Moçambique e tudo mais, e descobri daquilo que eu era e do que eu queria fazer e
que eu queria ser, o que é que fazia sentido para que havia todo um mundo de Cinema que eu então era também a altura em que decidíamos
mim e o que é que não. desconhecia, e que era exatamente o Cinema se queríamos fazer filme, estágio ou projeto e eu

Tinha muito poucas referências de cinema que eu procurava, porque quando eu comecei decidi que queria fazer – a princípio escolhi fazer

africano. Aliás não tinha referência nenhuma, a ver o… porque no grupo metiam vários links projeto, sendo o projeto um filme a ser realizado

para falar a verdade. Porque o único filme de filmes e tal, quando eu comecei a ver… alguns em Cabo Verde – mas por ter uma turma

que eu vi no curso com personagens negras foi filmes eu senti uma tamanha identificação totalmente branca, europeia e não ter outras

um filme de Jean Rouch…. Depois vim a ver o que eu… tive a certeza que eu não tinha pessoas com quem eu me pudesse identificar

La noir de, do Osmane Sembene, e foi assim escolhido o curso por acaso! Tive a certeza e fazer o filme, acabei por desistir da ideia,
que eu comecei a perceber que o cinema que eu realmente podia fazer aquilo. porque não estava a ir no caminho que
eu queria.
africano podia ser protagonizado por pessoas Ao mesmo tempo que isso foi muito positivo,
negras e que se calhar eu é que não conhecia também foi muito doloroso porque eu percebi Fui fazer o estágio em Cabo Verde, mesmo
e percebia que havia ali uma ausência, talvez onde é que eu estava. Localizei-me no tempo e com propósito de me conectar com o
propositada, no programa. Porque lembro-me no espaço, enquanto uma mulher negra jovem cinema do meu país e de me conectar com
de questionar, porque será que quando que está a estudar Cinema em Portugal, um o cinema africano com a estética do cinema
mostram cinema africano o cineasta tem que país europeu. E a partir daí tudo mudou para africano, perceber o que é que as pessoas estão
ser branco, será que não há nenhum cineasta mim, sinceramente, tudo. Porque lembro-me a fazer e por quê, tudo mais… e ver também
africano negro, e tudo mais? E o mesmo que na altura pus no grupo que sou uma jovem onde é que eu me encontrava. Fui para Cabo
professor, não responder e recusar responder e estudante e que estava à procura de referências Verde e então fiz estágio na Universidade de
tudo mais… cinematográficas, as pessoas foram super Cabo Verde no Gabinete de Comunicação e

Então comecei, mesmo por revolta, a pesquisar recetivas, deram-me montes de referências, Imagem durante seis meses, com uma equipa

mais sobre cinema africano e cinema negro, puseram-me em contacto com um grupo de também muito, muito boa mesmo. Fiquei

porque queria-me ver representada. E queria cineastas em Cabo Verde que eu nem sequer muito surpreendida também com a qualidade
conhecia. Porque pronto, eu saí de Cabo Verde da equipa. Porque agente sempre tem aquela
87 ENTREVISTA REALIZADA POR ANA CRISTINA PEREIRA

ideia que… quando estamos na Europa um projeto que eu queria, mas por outro lado que não era… e acabei por ter que assumir um
que… quer dizer, digo agente, mas pronto… a sentia-me frustrada, a nível pessoal, porque eu papel para o qual não estava muito preparada,
maioria, ou uma boa parte têm a ideia de que não podia ser aquilo que eu era completamente. mas pronto foi um papel importante, porque
o que é feito em África não tem assim tanta Então juntei o útil ao agradável, não é? Na altura, isso também me ajudou muito a crescer não só a
qualidade… e quando fui a Cabo Verde, no como eu estava necessitada de escrever, porque nível pessoal, mas também a nível profissional.
Gabinete de Comunicação e Imagem, eu fiquei me sentia bastante sozinha - esse processo Porque fiz várias exibições do vídeo. Em Portugal
completamente surpreendida com a qualidade de assumir-me lésbica foi um processo muito e depois acabei por fazer em outros países, na
da produção, das pessoas com quem eu solitário em Cabo Verde - decidi criar o Relatos Finlândia, aqui no Luxemburgo. O ano passado,
trabalhava, com as ideias e tudo o mais. Senti- de uma rapariga nada pudica que foi um texto fizemos aqui no Luxemburgo, no pride, fizemos
me mesmo bem, senti-me em casa. Aprendi que eu fiz que fala do meu processo de coming a exibição juntamente com o filme Tinders, que
muito com eles, eles também aprenderam muito out e, depois do texto escrito, como havia um é um filme sobre a comunidade trans em Cabo
comigo, havia conceitos que eles, que a maioria grupo de pessoas que estavam a realizar um Verde. Que foi feito por um realizador espanhol,
deles não conhecia como por exemplo cinema laboratório de artes e experimentação, no eu trouxe a curadoria para o pride. Porque o
experimental, que era algo que me interessava Porto, acabei por submeter esse texto a esse pride Luxemburgo, tem um espaço dedicado
muito, no momento. Então tínhamos várias laboratório. Eles pediram depois que fizesse só ao cinema. Na altura, eu tinha vindo para o
discussões sobre géneros cinematográficos. Foi um áudio a ler o texto e eu acabei por fazer um Luxemburgo de férias e era a primeira vez que eu
um momento muito bom vídeo, que é a vídeo performance Relatos de uma confrontava a minha família com a questão da
rapariga nada púdica. Depois dessa exibição, no
Por outro lado, havia outra questão com que orientação sexual, voltei a um processo muito
Porto, nesse laboratório, o vídeo foi notícia no
eu estava a lidar no momento e que era uma solitário. É um processo muito difícil e então
jornal em Cabo Verde, o que despertou também
questão mais pessoal, que era a questão acabei por me conectar com o centro LGBT daqui
interesse das pessoas de saberem exatamente o
da orientação sexual. E isso gerou um certo e eles, quando souberam que eu fazia cinema,
que é que aquilo era e tudo mais e foi aí que tudo
conflito, interior e exterior também. Em Cabo convidaram-me a fazer a curadoria do pride e eu
começou, porque pronto acabei por assumir um
Verde é um assunto muito tabu ainda. Na trouxe o Relatos… e o Tinders ao Luxemburgo.
papel que, inicialmente, eu não pensava que iria
altura, eu me assumia lésbica e as pessoas Houve, uma ausência gigantesca da comunidade
ter que assumir. Tive que me tornar mais ativa
não falavam muito sobre isso. Isso é que me cabo-verdiana, basicamente não tinha ninguém,
em relação à causa, apesar de na altura ser um
fez voltar a Portugal, na verdade, porque na sem ser as minhas duas irmãs e uma prima
universo completamente desconhecido, para
altura eu estava a sentir-me muito realizada minha. Tinha uma representante da embaixada
mim. Eu me assumia lésbica, mas eu não fazia
profissionalmente, por me conectar com o de Cabo Verde no Luxemburgo, mas abandonou
ideia do que é ser uma pessoa lésbica, não fazia
cinema africano e academicamente também por a sala, portanto a representação de Cabo Verde
ideia da comunidade LGBT, o que é que era, o
estar a desenvolver o meu projeto no meu país, foi praticamente nula, mas de resto correu bem,
LOLO ARZIKI 88

as pessoas gostaram e tudo mais - deu espaço O processo foi muito rápido porque não Depois, estreámos em Cabo Verde, no Plateaux,
para uma grande discussão, e espero, agora que tínhamos uma equipa, era só eu, chamei um no Festival Internacional de Cinema da Praia,
estou aqui, ter mais oportunidades de fazer esse colega meu do estágio para ir fazer direção onde ganhamos o prémio revelação nacional.
tipo de coisas. de fotografia, mas como ele também estava a Depois, estreámos em Moçambique, no
trabalhar só podia ir no fim de semana, então Kogoma; em São Tomé, no São Tomé Fest Film.
Ainda em Cabo Verde depois do Relatos…
fiz reperage durante esses três dias e depois Recentemente estreamos no Silicon Valey,
e na sequência de várias notícias sobre o filme e
fizemos a rodagem do filme, em 24 horas, com African Film Festival, na Califórnia, nos EUA.
sobre mim, pessoas de uma fundação na
o diretor de fotografia e o resto da equipa foi E pronto, continuamos a subscrever o filme
Ilha do Maio, a ilha onde eu cresci, a ilha da
voluntária, som, e tudo o resto foi voluntário. em festivais.
minha mãe, viram o filme e chamaram-me.
Fizemos o filme, em Cabo Verde, em 24 horas e
Convidaram-me para realizar um documentário O festival de São Tomé é dirigido por um
depois eu trouxe para Portugal para e fizemos
que seria protagonizado por mulheres na Ilha cineasta que é santomense, eu conheci-o no
lá a edição. Como eu estava muito politizada
do Maio. Faltava mais ou menos uma semana Avanca. Ele chama-se Hamilton Trindade.
ao nível de pensar como fazer cinema, queria
para eu voltar a Portugal e sinceramente É um jovem muito interessante, com um trabalho
mesmo que a edição fosse feita por uma pessoa
eu achava que não seria possível fazer esse muito interessante, vive em Estarreja.
da comunidade periférica, em Lisboa, que fosse
documentário, mas eles queriam muito, muito Na altura em que eu estive a estagiar em
obrigatoriamente negra, preferencialmente
que fizesse, por ser mulher e por ser da Ilha Cabo Verde, teve um acontecimento que foi
mulher. Não aconteceu que fosse mulher, mas
do Maio. Porque queriam que o filme fosse determinante para o meu posicionamento
acabou por ser um rapaz, o Rafael Vieira que
dirigido por uma mulher e que fosse da Ilha. enquanto cineasta negra. No Festival de Cinema
fez a edição do Homestay, que é um jovem
Então achei essa iniciativa muito, muito justa da Praia, teve um espaço dedicado ao cinema
estudante de fotografia, morador da Cova da
e aceitei, fui para a Ilha do Maio, durante essa negro brasileiro no feminino. Foram lá quatro
Moura. Tínhamos amigos em comum, na altura,
semana, conheci o projeto que é o Homestay, cineastas negras do Brasil, estrearam os seus
havia um cineclube na Cova da Moura - que aliás,
que é um programa de turismo de habitação, filmes e fizeram várias discussões sobre
foi o primeiro lugar onde eu exibi Relatos…,
dirigido por mulheres, na Ilha do Maio.Depois cinema negro, sobre a representatividade do
em Portugal - que era na Tabacaria Tropical e o
conheci as mulheres, achei muito interessante, negro no cinema, questões muito para nós,
Rafael é parente do Vítor, que geria a Tabacaria
porque é um projeto que visa não só promover para a comunidade cabo-verdiana digamos
Tropical e ele é que acabou por o indicar e
o turismo sustentável e o turismo comunitário, assim. E foi muito, muito bom, porque percebi,
fizemos o trabalho juntos.
mas também visa o empoderamento económico que elas tinham, entre os 19 e 25 anos, a
dessas mulheres. Então achei o projeto muito, Depois, estreámos o filme no Festival de Avanca, curadora tinha por volta dos 40, e fiquei muito
muito interessante e quis fazer parte. em Portugal, Aveiro e ganhámos o prémio estreia impressionada como pessoas tão jovens, já
mundial de televisão.
89 ENTREVISTA REALIZADA POR ANA CRISTINA PEREIRA

com um posicionamento político sobre cinema, interessante, interessantíssimo, com pessoal um casal lésbico, impressionante. Direto, direto
tão sério. Fiquei mesmo impressionada, até muito inspirador a trabalhar. Trouxeram uma ao assunto. É maravilhosa. Fizemos a discussão
começamos a trabalhar juntas inclusivamente curadoria do cinema clássico africano e do com a Adélia Sampaio. A Sabrina Fidalgo,
e isso também me motivou muito a me cinema negro contemporâneo do Brasil. também que é uma cineasta do Rio de Janeiro.
posicionar enquanto mulher negra e cineasta: Fizemos também discussões em volta dos Estudou na Alemanha e tem um cinema com
eram Larissa Fulana de Tal; Yasmin Tainá; Aline filmes, eu fiz discussão sobre o filme Viva Riva, uma estética muito interessante. Próxima do
Lourena; Tamiris Vieira. Todas com filmes que protagonizado por um ator angolano que vive em cinema europeu alemão, clássico. A curadoria
estão a rodar pelo mundo fora e com filmes de Portugal, que é o Ogi Furtuna. E também o filme era do Tomi, que é um ator camaronês, da
alta qualidade. Ficção, documentário, tudo de Nossa estrangeira que é um filme lindíssimo, Marta, que é afro-indígena, que é pesquisadora
alta qualidade. Inclusive elas também têm uma dos filmes mais bonitos que eu já vi, que conta a em cinema, também brasileira, a Tatiana Glufo
produtora a Larissa e a Tamiris, todas elas têm estória de uma emigrante que vive muitos anos e um realizador congolês que vive em
produtoras, na verdade, mas a Larissa Fulana de em França e que depois vai para o Burkina Fasso, São Paulo.
Tal tem uma produtora onde estive a estagiar mas ela, entretanto, já não se reconhece tanto Quando fui para São Salvador, trabalhei na
recentemente por causa do mestrado, no Brasil. na cultura, nas pessoas, porque se desenraizou produção de filmes e trabalhei na curadoria
um bocado, no processo de emigração…
Estou a terminar o mestrado em Estética e da Mostra de Cinema Mohamed Bamba, que é
Nós sabemos que isso acontece muito… é um
Estudos Artísticos, especialização em Cinema e uma mostra de cinema em homenagem a um
filme muito, muito, muito bonito, fala da relação
Fotografia na Universidade Nova de Lisboa. Fui professor de cinema africano no Brasil, com
dela com a mãe, que também é imigrante…
estagiar, o ano passado, no Brasil, por seis meses filmes também muito interessantes.
é muito bonito… bom, e fizemos discussões
e inicialmente na produtora Odum, da Viviane A minha tese de mestrado é sobre mulheres
sobre outros filmes também que estavam na
Ferreira, que também é uma cineasta que eu negras no cinema - Brasil e Portugal. Como o
curadoria, juntamente com outras cineastas.
admiro muito. Estagiei com ela, em São Paulo, número de mulheres a produzir em Portugal é
Eu fiz a discussão com Adélia Sampaio que é a
três meses e depois fui para a produtora parceira, muito reduzido, vou trabalhar o cinema negro,
primeira mulher negra a dirigir um filme no Brasil,
que é a Rebento que é da Larissa, da Tamiris, no geral, em Portugal. Questionar se já existe,
já tem oitenta e tal, mas não parece. Parece que
da Dai e da Clarissa, quatro mulheres negras ou não em Portugal, perceber a estética e tudo
tem tipo cinquenta, sabes como é? (risos)
produtoras e cineastas! mais… e perceber que papel é que as mulheres
Eu admiro muito o trabalho dela por vários
Trabalhei com curadoria no Festival de São estão a ter no cinema negro português.
motivos, por ela ser a primeira mulher negra a
Paulo, a partir do estágio, trabalhei no Festival Vim para o Luxemburgo porque, neste momento,
dirigir uma longa metragem, a dirigir um filme
Kilimanjaro, que é um festival de cinema só estou a escrever, não preciso de estar em
no Brasil que é um país ainda muito racista, e
africano e da diáspora africana muito Portugal, o trabalho maior de pesquisa já foi
também a primeira longa que ela dirige é sobre
LOLO ARZIKI 90

feito. Começando pelo motivo mais prático no Luxemburgo, mas também nos outros
de todos, básico, que é a questão financeira filmes distribuídos aqui, que filmes é que são
que Portugal não garante. Sobretudo a artistas distribuídos aqui? Também vim com o objetivo
negros, nós somos subvalorizados, somos de futuramente conseguir abrir a minha própria
sempre convidados para eventos a custo zero. produtora e ser uma pessoa mais autónoma.
Acham a nossa fala muito importante e Não quero ficar dependente dos outros a vida
determinante, mas não querem pagar. toda, não é?
Está a ser feito muito produto, sobretudo
material escrito à base dos nossos
conhecimentos intelectuais, estás a ver?
Para mim, tornou-se uma questão séria não dar
entrevistas a pessoas brancas – porque depois
a forma como o material é usado beneficia
a quem? E é muita exploração, mesmo.
Vim para aqui porque sempre estudei com
bolsa do Luxemburgo, então é mais fácil também
conseguir trabalho aqui, apesar de aqui existir
a questão da língua, mas ainda assim,
por ter estudado com bolsa daqui é mais fácil.
Até porque mesmo que não consiga um contrato
de trabalho normal, consigo um contrato de
trabalho estudante, que é coisa que em
Portugal nem isso é possível, e mesmo com
contrato de estudante é quase o dobro do
salário mínimo em Portugal. E também porque
tenho uma boa parte da família aqui, quero
muito explorar a questão racial aqui, perceber
como é o cinema luxemburguês, estudar
a representatividade do negro no cinema
luxemburguês, não só no cinema produzido
QUEBRANDO SILÊNCIOS:
O CINEMA NEGRO DE VANESSA
FERNANDES
ANA CRISTINA PEREIRA E CARLA CERQUEIRA

agendas de contestação e de (re)construção de


espaços políticos.

O cinema tem sido, ao longo do tempo, um


meio privilegiado para a reprodução do
capital simbólico dominante, mas também
para o seu questionamento. Deste modo,
uma das expressões deste movimento negro
@vanessafernandes
português tem sido o aparecimento de
cineastas que se identificam também como
A teoria interseccional tem trazido para mulheres negras e que desenvolvem narrativas
a discussão académica e pública a cinematográficas que trazem rostos, corpos,
multidimensionalidade das experiências vividas vozes e temas silenciados ao longo do tempo
pelos membros de grupos historicamente e da história do cinema, em Portugal. Assim,
oprimidos, ampliando o sujeito político dos este posicionamento interseccional relaciona-
feminismos. Embora ainda recente e muito se diretamente com aquilo a que podemos
setorial, o feminismo interseccional português chamar cinema negro e que se define, em traços
desenvolve-se na sequência de uma longa e forte largos, pela expressão e afirmação da posição
mobilização das mulheres negras (sobretudo, sociocultural dos afrodescendentes, no sentido
em Lisboa, Porto e Coimbra) e tem vindo a de construir uma imagem autoproposta dos
ganhar espaço público, nomeadamente através povos negros.
da constituição de organizações e coletivos Este capítulo, depois de uma breve leitura da
e da promoção de iniciativas com expressão evolução dos estudos fílmicos nas últimas
mediática. Surgem, assim, novas e múltiplas
QUEBRANDO SILÊNCIOS:O CINEMA NEGRO DE VANESSA FERNANDES 92

décadas, que se revela a base teórica da presente configurações identitárias dominantes no Nas décadas de 1980-90, emergem questões
reflexão, debruça-se sobre a realizadora Vanessa imaginário individual e coletivo (Marsh & Nair, em torno da voz autoral (Chaudhuri, 2006), da
Fernandes (1978 – Guiné-Bissau), que vive em 2004). Como refere Teresa de Lauretis (1987), não homogeneização das representações e
Portugal e cujos filmes abordam o diálogo o cinema pode ser encarado como uma das/os espetadoras/es (De Lauretis, 1987), dando
entre a memória de um passado colonial e um “tecnologia de género”, em que os significados e destaque às questões raciais (Ricalde, 2002)
presente migrante. Partindo da análise dos filmes premissas ideológicas são (re)negociados, aceites e de orientação sexual (Dyer, 1982). É também
Si Destinu (2015) e, de forma mais aprofundada, e contestados. nesta fase que surgem os estudos das
Mikambaru (2016), de entrevistas concedidas masculinidades (Cook, 1982). Pode dizer-
Como uma estrutura fluida, dinâmica e
pela autora e ainda da leitura do seu projeto de se que é neste período que emerge uma
multidimensional (Connell, 2009), o género e
mestrado, propomos uma aproximação ao seu abordagem interseccional (Crenshaw, 1991),
os feminismos começaram, desde a década de
percurso e discurso fílmico, enquanto projeto que reconhece a necessidade de incluir nos
1970, a ser um tópico profícuo de investigação
de autorrepresentação e de afirmação de vozes estudos várias dimensões identitárias que, de
no âmbito da teoria fílmica (Buonanno, 2014;
silenciadas. forma multiplicativa, perpassam as pessoas
Cerqueira, 2017). De destacar, os debates trazidos
(exemplo: género, raça e classe). Neste domínio,
pela segunda vaga do movimento feminista
podem destacar-se os trabalhos de feministas
(ex. Mulvey, 1975; Kaplan, 1992), em torno da
negras como bell hooks (1992) que questionam
representação das mulheres no cinema, bem
a homogeneização da categoria “mulher” e a
como os trabalhos que se focavam na forma
universalização das experiências.
como as narrativas cinematográficas são
rececionadas e ajudam a organizar os modos de Desde os anos 90 até à atualidade, surgem
compreensão das relações de género. Os estudos grandes alterações em todo o processo
iniciam-se com uma abordagem bastante cinematográfico – representação, produção
@vanessafernandes essencialista, que deixa para segundo plano a e receção, realçando-se os discursos
produção e a autoria, a par da emergência de ambivalentes que tão bem caraterizam a era
Mulheres em foco no cinema
um cinema feminista alternativo (Erens, 1990) e do pós-feminismo (Tasker & Negra, 2007). No
Desde o seu surgimento, no final do século xix, de um olhar crítico que pretendia desmistificar que concerne à produção cinematográfica,
que o cinema tem desempenhado um duplo a ideologia sexista (Smelik, 2007). De realçar por um lado, persistem assimetrias de género;
e importante papel no que concerne, por um que, neste período, começa a verificar-se o por outro, existem narrativas empoderadoras
lado, ao reforço das relações de poder desiguais desenvolvimento da teoria fílmica feminista e dos e de resistência, como o exemplo no qual nos
existentes na sociedade e, por outro, estudos fílmicos como disciplina (Hollinger, 2012), centraremos no desenvolvimento deste
ao questionamento dos valores e das nomeadamente nos EUA e no Reino Unido. capítulo.
93 ANA CRISTINA PEREIRA E CARLA CERQUEIRA

Ainda na década de 90, as análises também no contexto, na história, nas estruturas e relações de género. (Cardoso a Branco, 2013,
vão sendo alargadas a diferentes contextos nos atores sociais envolvidos na produção p. 289)
geográficos (Pozo, 2014). Paralelamente, há uma cinematográfica.
A escassez de mulheres em lugares de
atenção cada vez maior à interseccionalidade, Mulheres atrás das câmaras no cinema em poder explica, pelo menos parcialmente, o
que insiste que diferentes categorias de Portugal apagamento feito pelo cinema ao papel da
pertença identitária se conjugam,
Apesar da evolução positiva das últimas décadas mulher na História. As mulheres foram, muito
potencializando-se de forma a privilegiar umas
(Pereira, 2015), o mundo do cinema em Portugal provavelmente, o grupo que mais beneficiou
pessoas e a oprimir outras (ex. Cerqueira &
ainda é, sem surpresa, um território ocupado com a democratização do país, porque eram
Magalhães, 2017). As pessoas não são apenas
maioritariamente por homens, brancos, de também o grupo mais oprimido: tiveram acesso
definidas pelo género – que é múltiplo e não
classe média e alta e de meio urbano. Contudo, pela primeira vez a liberdades fundamentais
binário –, mas são definidas também pela sua
a “grande família cinematográfica portuguesa” como a de poder deslocar-se, ou decidir sobre
raça, idade, classe social, entre vários outros
abraça também algumas mulheres que o seu próprio corpo (em caso de doença, por
aspectos da identidade pessoal e grupal.
assumem, regra geral, posições bem definidas na exemplo), a grande maioria votou pela primeira
Além disso, é de referir que a questão da
hierarquia: além de atrizes, são maquilhadoras, vez em 1975 e passaram a ir à escola mais tempo,
representação das mulheres, atentando para
anotadoras, assistentes de produção, entre libertaram-se sexualmente e assumiram as suas
a sua identidade múltipla, continua a ser uma
outras funções, muito abaixo do vértice da próprias lutas e destinos. O Filme português
preocupação, no sentido de tornar visível, nas
pirâmide do poder. A raridade de realizadoras ignora largamente este processo, a dor e a
narrativas fílmicas, a diversidade de mulheres
no cinema não é compensada com uma grande luta que ele implicou. A falta de mulheres no
existentes. A par desta emerge a necessidade
produtividade por parte das que, ainda assim, comando das câmaras explica uma parte do que
de visibilizar mulheres que têm permanecido
conseguem fazer filmes. A par das dificuldades aqui se descreve e a origem sociocultural das
na penumbra enquanto produtoras de cinema,
comuns a todos os cineastas, as realizadoras de que vencem as dificuldades e filmam explicará,
como é o caso das mulheres negras.
cinema debatem-se num universo em que, nas porventura, o resto. Se a produção que inclui
Incorporar uma perspetiva feminista na teoria palavras da cineasta Margarida Cardoso: negros é escassa, é ainda mais rara a produção
e na análise fílmica implica, assim, questionar que inclui negras (Pereira, 2019).
As relações de poder estão todas deslocadas
as estruturas de poder hegemónico que (re)
para o lado masculino, e tu notas um estigma Os negros e os “seus bairros” foram, já no
produzem e sedimentam representações
terrível que começa a aparecer muito século xxi, um filão muito apetecível para obter
assimétricas e que produzem impacto na vida
claramente nas tuas coordenadas, já não é só financiamentos, para fazer documentários e
das pessoas, quer a nível pessoal, quer a nível
sorte, azar, talento. Há outra coisa que está também ficção. Alguns destes filmes pouco
coletivo. É neste sentido que este olhar valoriza
implícita nisso, que é teres de lidar com essas mais fazem do que alimentar estereótipos
um conhecimento situado, ancorado
QUEBRANDO SILÊNCIOS:O CINEMA NEGRO DE VANESSA FERNANDES 94

sobre “cultura da pobreza” ou sobre “cultura (ex. HomeStay, 2017) ou Vanessa Fernandes, a A alteridade não é uma condição fixa, ou uma
de violência”. No entanto, formatos menos cineasta de que se ocupará doravante este texto. qualidade intrínseca de um grupo, um povo,
dispendiosos, em vídeo por exemplo, permitem ou de um indivíduo. Trata-se, pelo contrário,
Vanessa Fernandes
o aparecimento de imagens em movimento de uma noção relativa: só se é “outro” a partir
Filha de intelectuais, Vanessa Fernandes nasceu
feitas por elementos dessas mesmas minorias. do olhar de um “eu”. O “outro” não é um ente
na Guiné-Bissau e foi para Paris com um ano
Os filmes feitos por negros e negras em Portugal absoluto, dado na realidade de forma imutável,
devido ao percurso estudantil dos pais, que aí
abordam temas relativos aos africanos imigrantes é uma posição relativa. Mais, o “outro” não se
fizeram os seus doutoramentos. Pouco depois,
no país (Pocas Pascoal), aos afrodescendentes refere necessariamente a um povo longínquo,
na sequência da separação dos progenitores,
e às periferias (Welket Bungué), à hibridez e a distância muitas vezes não é geográfica, mas
foi com a mãe para Macau, onde viveu situações
à herança cultural (Silas Tiny), ao racismo e sim social ou cognitiva (Cabecinhas, 2002;
de racismo marcantes. O facto de ter nascido
à exclusão social (Ana Tica, Mário Monteiro, Cunha, 2016). Nessa medida, os corpos negros
num meio privilegiado não protegeu Vanessa
Lubanzadyo Mpemba) e também à recuperação perdem a sua visibilidade enquanto indivíduos
Fernandes de ser percebida como “outro” e de
crítica de mitos e modos de vida ‘africanos’ (Filipe ao serem diluídos socialmente neste “outro”,
sofrer as consequências que a marca da pele,
Henriques). Além destes, podemos observar nos lido como homogéneo, de que fazem parte (ex.
acrescida do peso de um passaporte africano,
filmes (curtas-metragens) feitos por negros e Cabecinhas, 2007). A este processo chamamos
impõe a todos os negros pelo mundo fora.
negras em Portugal tendências comuns, de onde essencialização. Vanessa Fernandes reflete sobre
destacamos uma condição entre-lugar, que é E eu passei a minha infância toda a não a experiência vivida nos aeroportos:
partilhada amiúde pelos autores e pelas estórias conseguir… os grupos inteiros, nos aeroportos,
Essa distinção, quer dizer, a pessoa pergunta-se
que filmam e a busca pela compreensão/ vínhamos de Macau, íamos passar férias à
porquê, porque é que eu hei de ser diferente,
aproximação a uma ancestralidade (Pereira, Tailândia, eu ia com um grupo de amigos e eu
porque é que eu sou a única que tenho que ter
2019). era a única que ficava de plantão, em frente à
as vacinas todas? Porque é que eu tenho que
polícia a ter que justificar a minha existência,
Contrariando as dificuldades decorrentes de um justificar a minha existência? Porque é que eu
porque eu tinha um passaporte guineense e,
grande desequilíbrio nas relações de poder, o tenho que justificar, como se estivesse a roubar
apesar de virmos todos do mesmo sítio, eu
número de filmes realizados por mulheres, em alguma coisa, ou como se estivesse prestes a
nasci noutro (Fernandes a Pereira, 2019)1.
Portugal, é cada vez mais expressivo (Pereira, roubar alguma coisa? Então não sei, mas sei que
2015) e, na última década, apareceram também cresci muito com esta coisa. Bagagem. Que era
realizadoras negras, de que são exemplo as um peso, o peso de ser africana. (Fernandes a
já referidas angolana Pocas Pascoal (ex. Alda Pereira, 2019)
e Maria – por aqui tudo bem, 2011), Lolo Arziki 1. Entrevista, não publicada, concedida por Vanessa
Fernandes a Ana Cristina Pereira, em Águeda, em 6 de
fevereiro de 2019.
95 ANA CRISTINA PEREIRA E CARLA CERQUEIRA

Os racismos institucional e quotidiano sustentam história simples. Abdulay vive em Lisboa, com sofre tem origens várias, que se potenciam
políticas do corpo que obrigam Vanessa a filha Awa, e depois da morte da esposa, num internamente – por ser criança, a sua voz não é
Fernandes a “ter que justificar a existência”, acidente de viação, decide casar de novo, com tida em conta; por ser mulher, na medida em que
precisamente por viver fora dos espaços uma mulher da sua terra. A tradição do ‘corte’, apenas as raparigas são submetidas ao ‘corte’;
para onde são remetidos os corpos negros. que não fazia parte dos planos desta família, por ser negra, vive isolada das crianças da sua
O medo e a desconfiança que a branquitude passa a ser considerada uma urgência. A menina idade e parece ter apenas uma amiga, guineense
desenvolveu relativamente aos sujeitos negros – tem 12 anos, é chegada a sua hora. como ela; sofre ainda por ser imigrante e não ter
por via da projeção dos recalcados instintos de um acesso facilitado às estruturas de apoio do
Si Destinu (O destino dela, ou em inglês Her
agressividade e sexualidade – revelam-se aqui, país em que vive.
destiny) tem como tema central a mutilação
na exigência do boletim de vacinas e na forma genital feminina e é, em primeiro lugar, um filme Vanessa Fernandes tem vindo a realizar vários
como a criança é tratada, fazendo-a perceber-se sobre o peso da tradição e sobre a dificuldade filmes curtos, trabalhos em vídeo-dança, e
como alguém que, aos olhos das autoridades, que é ultrapassá-la – fala sobre a impossibilidade em dança e performance. A premiada curta-
pode estar prestes a “roubar alguma coisa”. de fugir a um percurso que é traçado no dia em metragem Tradição e imaginação (2018), sobre as
A marca desta experiência faz-se presente na que se nasce mulher, guineense, pertencente a rotas de escravos no Benim e as memórias que
obra de Vanessa Fernandes, especialmente em uma determinada classe social e grupo religioso. elas inscrevem, conduzirá – espera-se – a uma
Mikambaru, como veremos. E, assim, é também um filme sobre a fragilidade longa-metragem sobre este mesmo mote.  
As experiências de “outificação” continuaram dos projetos que tentam escapar a percursos No entanto, entre Si Destinu e o momento
a fazer-se sentir no percurso de Vanessa pré-traçados e da própria vida. Mesmo que presente, a autora realizou Mikambaru, no
Fernandes, que viveu na Alemanha, entre 2009 e Abdulay questione a tradição, é difícil viver em âmbito do mestrado em realização de cinema e
2012, e teve uma filha com um homem alemão. conformidade com esse questionamento. Nesse televisão, um filme muito pessoal sobre estórias
Com o companheiro e pai de Tamara, Vanessa sentido, Si Destinu é também um filme sobre que Vanessa Fernandes viveu e pessoas que
Fernandes fundou a produtora Artmetisse e o silêncio que impera nas relações de grupo, conheceu ao longo de toda a vida.
realizou vários trabalhos ligados à imagem, melhor dito, sobre a circulação silenciosa de
Queria falar de um assunto que fizesse sentido,
mas também à dança e à performance. Voltou Poder dentro das famílias e das comunidades
que falasse do passado, com o olhar virado
a Portugal em 2012, fundou a Taluma Filmes e – a defesa da tradição esconde o desejo de
para a atualidade. Sei que todos os temas
estudou Cinema e Audiovisual na Escola Superior manutenção de poder sobre os mais frágeis.
sublinhados no filme são bastante conhecidos
Artística do Porto. No final do curso, realizou Si O isolamento a que essas comunidades estão
no mundo do cinema, mas como realizadora
Destinu (2015), um filme de 21 minutos, em preto sujeitas, em Portugal, que faz com que práticas
queria (…) olhar para o “mundo africano” que
e branco e em cores, filmado em vídeo, falado aí perpetuadas escapem completamente ao
habita em mim, e que eu pudesse contar a
em crioulo da Guiné-Bissau (Kriol) e com uma controlo institucional. A opressão que Awa
QUEBRANDO SILÊNCIOS:O CINEMA NEGRO DE VANESSA FERNANDES 96

minha história, a de familiares e amigos que se potenciarem mutuamente enquanto fontes de simbólica complexa, que mistura elementos
passam por esta situação frequentemente. opressão. de origem africana com elementos da tradição
(Fernandes, 2016, p. 6) europeia/ocidental. Eva é um corpo “ocupado”, e
Mikambaru (2017)
estas quatro fases de uma gravidez são também
Mikambaru é uma palavra, inventada pelo Como afrodescendente de família guineense
referência aos quatro temas de uma diáspora
Herói (alter ego de Osvaldo), que indica a e cabo-verdiana, sempre me foi segredado ao
africana. Polinização – colonialismo; Implantação
transformação de uma pessoa pelo encontro ouvido para não esquecer, para ser capaz de
– imigração; Gestação – um corpo dentro de um
com outra. A partir do momento em que perdoar, mas para não esquecer a experiência
corpo; Germinar – descender.
duas pessoas (dois povos, ou duas culturas) dos meus antepassados escravizados e
Criei este filme com uma certa dose de revolta
se encontram, não mais serão o que eram colonizados, e é por isso que faço este filme,
e de tristeza. Como afrodescendente, percebi
antes desse momento. Querendo ou não, exatamente para não esquecer. (Fernandes,
que tinha a função de transmitir uma perspetiva
somos contaminadas pela experiência do 2016, p. 12)
interna, com todo o peso que o meu ser ocupa,
“outro” e, nessa medida, “o outro” é parte
À semelhança de Si Destinu, a história contada todas as viagens e todas as histórias que fui
integrante daquilo que somos. Deste modo,
por Mikambaru pode ser resumida de forma ouvindo atentamente ao longo da minha vida.
a ideia inscrita na palavra Mikambaru desafia
as lógicas de construção identitária vigentes, simples. Trata-se do encontro entre duas (Fernandes, 2016, p. 51)
famílias, através do relacionamento amoroso
em que o “eu/nós” se constrói por oposição a Eva vive com os pais, que são guineenses. Em
de dois jovens – Eva é negra, filha de imigrantes
um “outro” exótico, perigoso ou simplesmente casa, todos vestem roupas em tons térreos, e o
guineenses, e Pedro é branco e filho de uma
diferente e revela a urgência de se inventarem ambiente geral também reflete tons ligados à
família conservadora do Porto (cidade onde a
novas palavras, para descrever formas de natureza. No dia em que Eva faz 18 anos, a mãe,
autora vive). No entanto, apesar da linearidade
relacionamento, que se pretendem também Mortinha, oferece-lhe a chave da sua casa, na
da história e da aparente banalidade do tema
distintas das existentes. Guiné. Não sabe muito bem como está agora,
(tantas vezes retratado), nada em Mikambaru é
Mikambaru merece uma análise um pouco mais mas é o que têm. O pai, Osvaldo, levanta-se,
simples.
estendida (embora ainda necessariamente breve) como se aquele gesto lhe causasse repúdio e a
Além das evidentes questões de género, raça e
neste contexto de crítica interseccional, por ser, tristeza que o envolve torna-se mais evidente.
classe, presentes logo no mote do argumento,
a nosso ver, um filme construído precisamente A chave abre a porta de uma casa que está
Mikambaru reflete sobre a história de uma longa
sobre essa constatação (experienciada pela distante, que talvez já nem exista, mas cuja
relação de 500 anos, através da metáfora que é a
autora) de que marcadores identitários como memória alimenta a dor de não poder regressar.
gravidez de Eva. Vanessa Fernandes divide o seu
género, raça e classe se relacionam no sentido de A rapariga irá deixar cair a chave, como quem
filme em quatro partes e a suavidade da imagem deixa cair o elo de ligação a um passado que
do crescimento de uma flor abriga uma ordem
97 ANA CRISTINA PEREIRA E CARLA CERQUEIRA

lhe pesa, uma herança que, de algum modo, ela dizem, esta Eva negra, com a sua metade de que parece ter sido uma casa imperial. É sobre
quer descartar. Há nesta chave uma passagem maçã, remete para a chegada dos portugueses esta ruína que vão construindo a sua relação.
de testemunho. Pedro vai apanhar a chave, e ao a África. Eva não é só uma mulher jovem, é a Curiosamente, tal como S. Pedro, também este
fazê-lo assume uma responsabilidade. Mais tarde, representação de todo um continente, e da sua Pedro é a pedra sobre a qual Eva tentara edificar
Pedro irá pôr a chave no aquário, libertando os exuberância que instigou (e continua a instigar), o seu futuro, rejeitando o seu passado africano, a
escravos deitados ao mar, como se nesse preciso nos homens, ganância, crueldade e loucura. sua ascendência. Logo no início do filme, vemos
momento estivesse a fazer justiça. Osvaldo, o pai de Eva sofre de depressão Banzo, Pedro a vestir e calçar Eva, entregando-lhe uma
maçã, que simboliza aqui também o ato de
“Sinto-me bem portuguesa”, diz Eva, no entanto, termo usado principalmente no Brasil e que se
cristianizar. Mais tarde, Pedro reage contra esta
todos à sua volta parecem querer remetê-la refere à depressão dos negros escravizados,
mentalidade colonialista, mas esta sequência
para esse espaço africano, juntamente com que os conduzia muitas vezes ao suicídio.
revela que há informação que é transmitida
tudo o que ele representa. Eva gosta de ler e de Osvaldo é uma personagem em conflito, vive
familiarmente e que Pedro, só aos poucos e
escrever, mas quando o amigo de uma amiga, entre a loucura e a morte – deita-se com as
muito lentamente, conseguirá contrariar.
que é pintor, refere que precisa de uma modelo mãos cruzadas no peito. O desenraizamento e
com determinadas características, é de Eva a humilhação perante a família fazem com que Quando Pedro pergunta a Eva se ela quer mesmo
que esta amiga se lembra. Não são referidas se queira alhear da realidade – sobe as escadas conhecer a sua mãe, a menina responde “sim,
as características que Bartolomeu enunciou, em pose de despedida. O efeito de transe, o claro que sim”. Em casa de Pedro, a coloração
mas percebemos, depois, que se trata de um escape, a terra, os tons de verde que remetem à é marcada pela ideia de sangue. Filomena
quadro sobre o pecado original. O tema deste natureza, transportam Osvaldo para um passado remeterá Eva, de forma explícita, para um lugar
quadro estará também relacionado com a culpa distante, nesse estado de “banzo negro”. Ele é o de exotismo. A mãe de Pedro não compreende
portuguesa, no que se refere à relação com corpo-memória dessa experiência traumatizante, que Eva é portuguesa, apesar dos seus pais não o
África, cujas consequências, na voz do pintor, forçado a sair da sua terra e a atravessar a dúvida serem e, mesmo depois de Eva lhe explicar que é
vão requerer muita inteligência para sublimar do retorno, o limbo e a descontextualização. portuguesa, a mulher vai insistir em dizer que ela
devido à “troca de ignorâncias” daí decorrente. Osvaldo, (tal como Eva e como Pedro), passa por só se sente portuguesa porque estes últimos são
O pecado original e o pecado português um processo transformador, essa progressão muito bons a fazer os outros sentir-se como se
confundem-se num só, como a maçã, que idílica de aprendizagem e de resistência – estivessem em sua casa.
aparece aqui como símbolo do sexo feminino e sublima-se no encontro com o Herói, as cores Depois de expulsar Eva, Filomena discute com
da tentação, que o pintor corta, desvirginando mudam e o seu comportamento também, o o filho e deixa bem claros os seus objetivos.
esse mundo e partindo-o ao meio, e deixando-o encontro com o Herói é uma elevação.
Esta mulher quer que o filho tome as rédeas do
irreconciliável como Norte e Sul. O discurso Os encontros de Eva e Pedro acontecem negócio da família, e vê em Eva a estrangeira, a
verbal de Bartolomeu completa o que as imagens frequentemente numa ruína abandonada, do distração ou, pior do que isso, a má influência
QUEBRANDO SILÊNCIOS:O CINEMA NEGRO DE VANESSA FERNANDES 98

que o afastará do “caminho certo”. Na de frascos e poções. A vendedora é a tentação, crowdfunding, e a circuitos de visionamento e
impossibilidade de fazer o jovem mudar de a manipulação, por trás de Filomena, como se distribuição alternativos. No entanto, não são
ideias, Filomena oferece uma maçã enfeitiçada a assombrasse. Esta personagem, relacionada apenas estas estratégias que aproximam os
ao filho, que ele vai oferecer a Eva. Mais do que com o poder económico, usa o termo “dívida” e filmes de Vanessa Fernandes de outros autores e
a mistura entre elementos realistas com outros vende-lhe “feitiços” que não passam de ilusões. autoras afrodescendentes. A já referida condição
fantasiosos ou simbólicos, é interessante em Os sons metálicos do tema Eden Park, dos “entre lugar”, que é constante no discurso fílmico
Mikambaru a inversão das regras dos contos Cachupa Psicadélica, criam a tensão necessária de Vanessa Fernandes (bem como de Welket
infantis: aqui, a maçã terá um feitiço que trará ao momento inicial do filme. Eva deixa-se vestir Bungué, ou Pocas Pascoal) e que é partilhada
o jovem ao caminho do trabalho, do sucesso e calçar por Pedro, e desvaloriza a presença da pelas personagens e pela autora do filme, pela
e da riqueza, e “o príncipe” dá a maçã à “gata mãe, que varre flores do chão. Eva irá perceber história contada e pela história pessoal da
borralheira”. que a sua condição de mulher, negra, pobre, filha realizadora. A segunda característica muito
presente é a busca pela compreensão de uma
É evidente a relação especular entre as duas de imigrantes, não é uma herança que possa
ancestralidade, a tentativa de perceber “quem
Famílias – uns são negros, outros brancos; os descartar. Rejeitada pela mãe do namorado,
somos” e de “onde vimos” pela voz dos ancestrais
primeiros vivem numa casa pobre, os segundos Eva sopra o feitiço da maçã antes de a comer,
e que podemos também encontrar na obra de
num ambiente burguês; na família de Eva há revelando a sua artificialidade de purpurina. Esse
Silas Tiny, por exemplo. Paradoxalmente, regista-
afeto, na de Pedro frieza. Mortinha abre uma gesto salva o filme de cair numa história em que
se também um olhar crítico para a cultura e para
gaveta vazia e Filomena tira de lá frascos com o príncipe, herói, branco, salva a pobre moça
a tradição, que é paralelo a uma voz feminista,
líquidos exóticos – as gavetas de cada casa negra do seu infortúnio. Será Eva quem terá de
que, além de se afirmar como negra, “também
aparecem alinhadas, no ecrã. Filomena coleciona escrever a sua própria história. Por outro lado, o
tema Ca mistid mentida, usado no final do filme, quer ser outras coisas” (Fernandes a Pereira,
objetos exóticos de forma obsessiva, Mortinha
2019) – características partilhadas com Lolo
vive focada nos afazeres do momento. No sublinha a melancolia que uma história ainda não
Arziki, por exemplo. Estas proximidades deverão
entanto, é quando percebemos que Filomena, a acabada suscita.
ser objetos de reflexões aprofundadas no sentido
mãe de Pedro, é uma mulher tão doente como Nota final
de se compreender o cinema negro português
Osvaldo, pai de Eva, que esta oposição se torna
Como outras e outros cineastas enquanto movimento cinematográfico. No
mais rica de significado. Osvaldo e Filomena
afrodescendentes portugueses, Vanessa entanto, uma premissa é certa, como base dos
constroem-se em contraste e refletem-se um
Fernandes esforça-se por ultrapassar as estudos futuros: personagens e autores, bem
no outro, são indissociáveis, porque cada um
dificuldades decorrentes de não conseguir como os percursos de produção e circulação,
é a causa da loucura do outro. Se Osvaldo tem
aceder aos canais de financiamento e dos realizadores afrodescendentes em Portugal,
um alter ego, pelo qual se sublima, Filomena
distribuição institucionais, e recorre ao serão marcados pela interseção dos problemas
tem uma sombra representada na vendedora
99 ANA CRISTINA PEREIRA E CARLA CERQUEIRA

relacionados com género, raça e classe social. Connel, R. (2009). Gender: In World Perspective. Mulvey, L. (1975). Visual pleasure and narrative
Todo o discurso inerente a esta interseção tem Cambrige, UK: Polity Press. cinema. Screen, 16(3), 6–18. Doi: 10.1093/
sido silenciado na história do cinema português Crenshaw, K. (1991). Mapping the margins: screen/16.3.6
e oferece, por isso também, a este conjunto de Intersectionality, identity, politics and violence Pereira, A. C. (2016). A mulher-cineasta: da arte
filmes uma relevância particular. against women of color. Stanford Law Review, 43, pela arte a uma estética da diferenciação. Covilhã,
Referências 1241–1299. Doi: 10.2307/1229039 Portugal: LabCom.IFP. ISBN: 978-989-654-278-8

Branco, B. C. (2013). Margarida Cardoso, apesar De Lauretis, T. (1987). Technologies of gender: Pereira, A. C. (2019). Alteridade e identidade
dos tropeções. Doc On-line, 14, agosto, 283-302. Essays on theory, film and fiction. Bloomington, IN: na ficção cinematográfica em Portugal e
Retirado de www.doc.ubi.pt Indiana University Press. em Moçambique. (Tese de Doutoramento).
Universidade do Minho, Braga, Portugal.
Buonanno, M. (2014). Gender and media studies: Dyer, R. (1982). Don’t look now: The male
progress and challenge in a vibrant research field. pin-up. Screen, 23(3/4), 61–73. Doi: 10.1093/ Pozo, D. (2014). Feminist film theory, history of. In
Anàlisi. Quaderns de Comunicació i Cultura, 50, screen/23.3-4.61 E. Branigan & W. Buckland (Eds.), Encyclopedia of
5-25. DOI: http://dx.doi.org/10.7238/a.v0i50.2315 Erens, P. (1990). Introduction. In P. Erens (Ed.), Film Theory (n.p.). Abingdon, UK: Routledge.

Cerqueira, C. (2017). Feminist Film Analysis. Issues in feminist film criticism (pp. xv-xxvi). Ricalde, M. (2002). Feminismo y teoría
In Patrick Rössler, Cynthia A. Hoffner Bloomington, IN: Indiana University Press. cinematográfica: Escritos [Feminism and
& Liesbet van Zoonen, International Fernandes, V. (2016). Mikambaru – trabalho de cinematic history: Writings]. Revista del Centro de
Encyclopedia of Media Effects: Wiley-Blackwell. projeto. Mestrado em Realização de Cinema e Ciencias del Lenguaje, 23(25), 23–48.
DOI: 10.1002/9781118783764.wbieme0112. Televisão. Escola Superior Artística do Porto. Smelik, A. (2007). Feminist film theory. In P. Cook
Cerqueira, C., & Magalhães, S. (2017). Ensaio (Não publicado). & M. Bernink (Eds.), The cinema book (pp. 491–
sobre cegueiras: cruzamentos intersecionais e Hollinger, K. (2012). Feminist film studies. New 504). London, UK: British Film Institute.
(in)visibilidades nos media. Ex aequo, n.º 35, 9-20. York, NY: Routledge. Tasker, Y., & Negra, D. (2007). Interrogating
DOI: https://doi.org/10.22355/exaequo.2017.35.01.
Kaplan, G. (1992). Contemporary Western postfeminism: Gender and the politics of popular
Chaudhuri, S. (2006). Feminist film theorists: European feminism. London, UK: Routledge. culture. Durham, NC: Duke University Press
Laura Mulvey, Kaja Silverman, Teresa de Lauretis,
Marsh, R., & Nair, P. (2004). Gender and Spanish
Barbara Creed. London, UK: Routledge.
cinema. Oxford, UK: Berg.
Cook, P. (1982). Masculinity in crisis? Screen, 23(5),
3–46. Doi: 10.1093/screen/23.3-4.39
VANESSA FERNANDES
ENTREVISTA REALIZADA POR
MICHELLE SALES E ANA CRISTINA PEREIRA

formação inicial, básica, de que cursos vieste,


como começaste na vida profissional e como
começaste a filmar, os primeiros trabalhos, as
primeiras experiências.

Vanessa Fernandes Chamo-me Vanessa


Fernandes, tenho 40 anos. Sou formada em
Realização Cinematográfica, mas, se calhar,
começo pelo trajeto pessoal, desde a nascença
Entrevista a Vanessa Fernandes, Mala Voadora, 2019, por
Michelle Sales e Ana Cristina Pereira @michellesales até seguir o percurso académico. Nasci em
Guiné-Bissau e, [quando tinha] um ano, os meus
Michelle Sales Vamos continuar num tom pais foram acabar os estudos académicos para
de conversa. Queria que ficasses à vontade Paris. Vivi sete anos em França. Os meus pais
comigo, e, uma coisa que até me esqueci de separaram-se e fui com a minha mãe para Macau,
dizer ao Hamilton, podes devolver perguntas onde vivi doze anos. Depois, chegou o momento
também, não há nenhuma rigidez neste de escolher onde estudar e escolhi Portugal, por
trabalho. Como eu disse, isto faz parte de um questões de língua também, mas porque havia
trabalho de investigação. A minha expectativa alguma familiaridade. O meu pai tinha família
é que possamos (dependendo do material que em Lisboa e era um percurso quase automático,
conseguirmos filmar) [fazer] um documentário devido às provas de aferição, a seleção dos
sobre este tema em Portugal. Pedia-te que cursos, das formações; Macau estava muito mais
começasses por te apresentar. Primeiro, associado a Portugal do que propriamente a
repetindo um pouco o que o Hamilton fez, outros países a nível mundial. Então, acabei por
apresentas-te e eu vou colocar algumas vir para o Porto. Do grupo de pessoas com quem
questões, a Ana Cristina também. Gostava me dava mais – foi uma separação, ao fim e ao
que falasses da tua trajetória profissional, cabo, com o lugar onde cresci –, toda a gente
VANESSA FERNANDES 102

foi para Lisboa e eu acabei por ir para o Norte. algumas viagens pela Europa. Estava a precisar Eu já tinha tendência para a ficção. Aliás, em
Vim sozinha. A minha mãe ainda vivia em Macau. de conhecer esta área, estive muito tempo fora todos os meus primeiros registos, nos trabalhos
Esse primeiro ano foi muito importante para da Europa... Decidi sair de Design e inscrevi-me académicos, de escola, sempre procurei um
solidificar e ganhar algum tipo de maturidade no curso de Som e Imagem na [Universidade] certo surrealismo ou um imaginário mais poético.
também. Acaba por ser um continente diferente, Católica, que é bastante apelativo, na altura tinha Um universo [que] apelava mais para este tipo
mesmo que Macau tenha tido uma ligação uns poucos anos. O curso estava muito bem de imagem. Estes registos que fiz em África,
bastante forte com Portugal. Macau acabou equipado, tinha formadores que me pareciam na costa ocidental, apesar de terem este lugar
por ser um empréstimo, mas não deixou de ser interessantes, e acabei-o. Entretanto, viajei, fui de pesquisa, o resultado, a nível sonoro e de
uma forma de colonização. Então, esse espectro para a Alemanha, e acabei por juntar o cinema a composição videográfica, acabava por trazer um
todo que eu vinha a carregar, de uma vivência várias outras áreas, porque também me comecei aspecto onírico. Isso causou sempre um bocado
numa cidade muito pequenina, vir para o Porto, a envolver com a dança africana tradicional. de confusão. O Taama taama ani N’Fa Douwa
ao fim e ao cabo, foi rasgar também com uma Viajei muito para a costa ocidental, tinha ali o [2011], passeios com o pai N’Fa Douwa, é um
série de zonas de conforto. O Porto trouxe-me meu foco de interesse, a dança mandinga. Fiz filme de 15 minutos, totalmente independente,
a possibilidade de me construir também como alguns meses de viagem no Mali, Guiné-Conacri, fizemos com os nossos recursos. [O filme] cai
pessoa. Vim aos 19 anos e por aqui fiquei. Guiné-Bissau, Senegal... E trazíamos a câmara. numa zona de experimentação, porque pode
Comecei a estudar nas Belas Artes, fiz três Daí surgiram alguns projetos, muito espontâneos: realmente perceber-se como um documentário,
anos de Design de Comunicação e, de repente “Olha, tens uma câmara, então vamos filmar por causa da maneira como está a ser registado,
– agora vem o cinema –, comecei a encadear a aqui.” Era muito autêntico este percurso de mas depois é não-narrativo.
paixão pelo cinema no meio do design. Apesar lidar com as pessoas. Havia também uma série
de serem áreas artísticas que até se podem de pequenos grupos que tinham espetáculos
coligar, comecei a ver muito cinema. Havia o de grande e pequeno formato. E as situações
Fantasporto [Festival Internacional de Cinema todas das aldeias, as festividades... Havia um
Fantástico do Porto], que vitalizou também olhar antropológico, mas também uma pesquisa
um pouco esta paixão, e comecei a escrever sobre a dança, sobre os movimentos, e depois
pequenos guiões, porque queria perceber como os ritmos, associar ritmos que eram praticados
é que se escrevia. Fiz um curso de Linguagem [em diferentes] momento[s] do ano, com que
Cinematográfica no Cineclube do Porto e, de origem... Dessas viagens surgiram três projetos, Dance, Dance, Dancea [2014], Vanessa Fernandes @
repente, decidi: é por aqui que eu quero ir. Era que, na parte da montagem, me definiram vanessafernandes
uma formação (penso que de três meses) a como artista videográfica, porque acho que
A narrativa, aliás, é dada pela música e pelos
curto prazo. Estive um ano também a fazer sempre tentei dissociar-me do documentário.
títulos. Então, achei que podia arriscar um
103 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES E ANA CRISTINA PEREIRA

bocadinho. Comecei a adotar este sistema. de realizadores, ou que tipo de imagens havia o interesse por esse tema, de onde partiram os
Obviamente, com muitas falhas de produção. no teu imaginário que construíram essa ideia primeiros gatilhos e as ideias do filme?
Acabei por fazer produções próprias, porque de “quero dissociar-me do documentário, VF É um exercício académico, um projeto de
também me davam alguma liberdade, mas porque o documentário não é para mim, não mestrado, que acabei por fazer na ESAP [Escola
também porque pensava que aquele período é a minha praia”? Queria entender um pouco Superior Artística do Porto]. Em 2016, apresentei
de andar à procura de fundos de maneio e essa tua busca pelo não documental, que não este projeto para fazer a tese. Obviamente,
produtores, todo este desgaste energético de é bem uma ficção, não é? Porque o filme é não- houve todo um processo de pesquisa onde fui
os projetos acontecerem ou não, o risco de não narrativo, mas, também, “quero dissociar-me do orientar o filme. Inicialmente, havia o relacionar
acontecerem, para mim, era muito mais grave. documentário”. Então, o que é esse cinema? uma questão religiosa com o colonialismo, mas,
E não perder aquela energia que, às vezes, os VF Há um filme não-narrativo, com música dos obviamente, era um universo extremamente
projetos necessitam em fase inicial. Então, lancei- Dead Can Dance, Baraka [Ron Fricke, 1992] em extenso para fazer numa curta-metragem –
me aos lobos, não é? E, obviamente, as questões que ele faz um apanhado... É muito sensível, porque há um ano para fazer o filme –, com as
de qualidade também pesam nos projetos. um pouco na onda do Ashes and Snow [Gregory limitações todas a nível financeiro, pedidos de
Acabei por fazer duas curtas-metragens. A Colbert, 2005]. Eu gosto muito dessa [ideia de] autorização e de arquivo, etc. Nesse momento
primeira sobre mutilação genital feminina e a não auxiliar o espectador, dar-lhe só as chaves (e eu acho que gosto desta parte também), no
segunda, Mikambaru [2016], sobre racismo. para que ele possa entrar no universo e fazer processo de criação, os sensores ficam alerta.
ele a sua própria reflexão. É muito interessante E basta ter uma ou duas conversas com alguém
e, num documentário, acho que é um reforço que, de repente, me dá aquele plot, aquela coisa
estético que também exige muita coragem e que faltava. Na altura, conheci uma rapariga
muita imaginação para que as coisas possam que vivia numa situação muito idêntica à que
fluir dessa maneira. Foi um filme que me inspirou se passa no filme. Lembro-me de que comecei
bastante e que toca também em questões a achar, de certa forma, que era uma situação
Mikambaru, 2016, Vanessa Fernandes @vanessafernandes sociais, mecanismos... Ele faz um apanhado da semelhante e começámos a falar muito sobre
nossa casa, que é o mundo, e ali sente-se que é isto. Que, ao fim e ao cabo, os conflitos da
MS Antes de avançar para essas duas curtas, casa. Isso é muito importante. Acaba por nos unir relação não eram deles, estavam à volta deles.
queria voltar um pouco à questão do começar em vários pontos. Neste caso, era a família dele que acabava por
a filmar, essa tentativa de te dissociares criar um desconforto e a Daniela acaba por ser
MS Essa segunda curta, Mikambaru, fala de uma
do documentário. Qual é a tua filiação vítima de um racismo deste género, que é quase
relação proibida de um casal inter-racial. Queria
cinematográfica? Há algum interesse ou imagens um racismo permitido, porque as pessoas são
que falasses um pouco do filme. Como surgiu
que podem ser consideradas a tua filiação extremamente inocentes na maneira como
cinematográfica, que tipo de filmes, que tipo
VANESSA FERNANDES 104

acabam por insultar as pessoas sem lhes MS Olhando hoje para essa trajetória, entendi Zeca, etc...” E isto em qualquer sítio do mundo.
quererem fazer mal. Obviamente, este retrato é também que o “Dance, Dance, Dance” é sobre A família sempre foi uma procura, porque vivi
extremamente caricaturado, mas são situações as viagens pela costa ocidental de África, essas muito tempo longe da família. Vivia em Macau,
que acontecem com alguma frequência; esta imagens de recolha, imagens de viagem, e não era? Mas, ao mesmo tempo, havia uma
questão da sogra, que em muitas famílias também uma espécie de diário dessa viagem. vontade e um sentimento de representatividade
também já está estigmatizada, da mãe protetora Também queria que falasses sobre isso. Olhando do que era ser Castro Fernandes ou ser Mendes
a entrar em conflito com a segunda mulher a para o teu percurso, agora, retrospetivamente, Fernandes...
entrar na família. Muitas vezes, existem estas achas que há uma relação entre esses dois filmes Ana Cristina Pereira Esse desejo tem que ver
invasões culturais. Estavas a perguntar-me de ficção que coloca questões de género e de com uma situação diaspórica e também com
porque fui para a ficção e não tanto para o raça, achas que há uma relação entre esses dois uma coisa que o mundo nos diz e nos faz sentir.
documentário. Isso tem que ver também com filmes – um sobre circuncisão genital e outro Não sei se no teu caso... Queres falar sobre isso?
a maneira como gosto de trabalhar nas coisas, sobre um casal inter-racial a viver um drama em
VF Sim. Acho que isto de o mundo nos fazer
porque também sempre estive muito ligada torno do racismo?
sentir, isto do “não posso dar um passo em
ao espetáculo. Filmei, no meu percurso como VF Curiosamente, nunca tive muita vontade falso”, também tem que ver com a chegada ao
estudante, mal comecei a pegar na câmara de escrever histórias de amor. Na verdade, Porto. Porque, ao mesmo tempo, [vinha] sem
(tinha uma Sony daquelas pequenininhas), aconteceu porque é uma maneira de juntar nada, os meus tios estavam em Lisboa, eu podia
comecei logo a fazer registo, conheci muita as personagens, mas o que me interessava chegar à cidade, mas este compromisso tinha
gente da música, do teatro, do circo, etc. [Ao] realmente eram as questões familiares. Isso, sim, também que ver com o olhar do outro. Esse
poder juntar estas áreas – a criação do cenário, liga os dois filmes. São histórias de família. As garantir de que pertenço à sociedade, pertenço
imaginar os adereços, os figurinos, as luzes –, nossas relações familiares têm muito que ver com ao sistema de forma correta também. [Há
acabava por criar um universo muito mais onírico a maneira como nos apresentamos no mundo, uma tentativa de] normaliza[ção] no espectro
também, mas a focar temas reais. Para mim, era porque há sempre um peso de responsabilidade comportamental, mas também como mulher.
a maneira com a qual me identificava, com que algures, tentamos proteger esta família. E há E como jovem. Se calhar, acabava por preferir
me sentia confortável. As minhas tentativas de coisas que acontecem, curiosamente. Lembro- ser quase invisível, dava-me uma certa vontade
fazer documentários na escola, na universidade, me de que, acontecia-me há uns anos, se de invisibilidade, porque tinha de me camuflar
correram sempre mal. Não sei, não era, me cruzasse com algum guineense ou cabo- de forma a ser aceite. Porque também há esta
realmente, qualquer coisa que me [atraísse]. verdiano, era automático perguntar: “Tu de que questão da aceitação. Em determinadas idades.
MS Depois há o Si Destinu [2015], um família és? Eu sou da família Castro Fernandes.” Principalmente, esta fragilidade da não pertença,
documentário sobre circuncisão genital feminina. “Aaaahhh!” E começava a lista dos meus tios, do desenraizamento, de garantir, a nível familiar,
dos meus primos... “Pois, porque eu conheço o
VF Não é um documentário, é ficção. de que te comprometes a responder a todos os
105 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES E ANA CRISTINA PEREIRA

itens também. Acho que vivi algum tempo com forte, também pelas leituras que uma pessoa não pertencer a lugar nenhum, e, mesmo assim,
este espectro; vivia ali um ghost, um fantasma, vai fazendo e tudo, de ir percebendo os erros conseguir construir um diálogo com essa vida
sendo que, obviamente, as minhas vivências que vai cometendo. Se calhar, a maneira como que se foi fazendo diariamente e com os outros,
também foram outras. A minha mãe, à sua vejo o Mikambaru hoje em dia é outra. Sinto que nesse diálogo com o mundo, que é muito mais
maneira também, aos poucos, foi desintegrando poderia ter direcionado de outra forma a maneira difícil, porque nada está posto. Todos os dias, é
esses itens. Eu pude ver uma mulher que se foi como tratei o tema. Acho que esta autocorreção preciso fazer com que aquele dia exista. Eu acho
libertando desses pesos. E acho que ela acabou constante também [faz] muito [parte] dos que uma vida estrangeira é muito mais difícil
por me inspirar também, na maneira como me processos evolutivos. exatamente por isso: porque não há nada e tudo
olho ao espelho, a assumir-me como pessoa precisa de ser feito.
MS Queria sair um pouco do âmbito mais
autêntica. Mas isto tudo demora algum tempo. pessoal dos teus filmes e tocar em questões
Principalmente, acho que na minha vivência, gerais, até culturais em Portugal. Hoje em dia,
nesta transição de Paris para Macau, ainda é evidente que há um feminismo negro ativo e
existiram alguns surtos de bullying, de racismo. uma organização de mulheres muito presente
Tanto em Paris como em Macau, tive uma no âmbito da cultura. Queria que tu falasses,
infância que se fragilizou um pouco, porque são ou até se consideras que o teu trabalho pode
violências, não é? Para me libertar e adotar, ao estar inserido nesse contexto, ou como vês a tua
fim e ao cabo, o eu que agora, se calhar, consigo trajetória neste momento, neste cenário, que tipo
ser, fui tentar espelhar-me também nas pessoas de diálogo existe entre o trabalho que já fizeste, Fiji [2017], Vanessa Fernandes @vanessafernandes
que me foram inspirando. Acho que conheci as que até é anterior. Acho que, nos últimos dois
pessoas certas, tive um trajeto muito bonito a VF Sim, o facto de não ter raízes, essas bases,
anos, esta consciência mais ativa e os feminismos
nível humano, principalmente aqui no Porto. Foi tem alguns impactos que causam algum
em Portugal foram-se tornando mais evidentes.
uma cidade que me carregou de afetividades e desconforto, mas também há um lugar de uma
No Brasil, é um pouco anterior (até tem uma
de um auxílio, de uma bagagem muito bonita. certa liberdade. E também há certos conflitos
certa relação), mas eu queria saber como vês
Perguntaste-me como é que eu associava estes e diálogos que, se calhar, ainda não foram
o teu trabalho inserido neste contexto e que
trajetos com o meu trabalho. Acho que é a falados de determinada forma. Acabo por ter um
tipo de diálogo pode haver agora neste espaço.
questão da coragem. A questão da coragem, olhar – não vou dizer autêntico no sentido de
Porque, como disseste, colocas questões desde o
de usar a palavra – neste caso, a palavra e a ser único – em relação às coisas que, às vezes,
momento em que nasceste, ou seja, uma menina
linguagem cinematográfica – para perceber difere do das pessoas que sempre viveram
que se tornou mulher, uma estrangeira quase
os temas nos quais estava envolvida desde o naquele sítio. Porque eu olho para as coisas já
ao longo da vida inteira, alguém que passou
momento em que nasci. Há uma possibilidade com uma série de informações. Obviamente,
por essa fragilidade do desenraizamento, do
VANESSA FERNANDES 106

[há uma] tendência de comparação, que tento pessoal. Em relação aos movimentos, tal como relação com a sogra e o poema surge quase
não fazer, mas está lá, [ao mesmo tempo que o feminismo e os movimentos antirracistas, que paisagístico. O poema fala sobre a construção
existe] um olhar quase ingénuo e naïf, o das surgem agora com a força que têm, acho que dessas relações, não esquecendo o que se
surpresas. Quando comecei a perceber que, são estruturas fundamentais para poderem passou no passado. Mas aquilo que eu quero
no Porto, se diziam determinadas palavras, a dar à estrutura social e política algum debate. construir agora, para aquilo a que nós chamamos
maneira como se expressam verbalmente, para É preciso cada vez mais pessoas a dialogar futuro, é um pouco este lugar de [empatia]. Nós
mim, eram surpresas, um maravilhamento. Esse e a debater. Agora, eu tornei-me um ser estamos num momento de guerrilha, é preciso
maravilhamento, essa maneira de olhar para os extremamente inconstante. E, por nunca me as coisas virem cá fora, é preciso debater, é
sítios novos, é sempre um pouco de surpresa ter associado realmente a nenhum grupo – no preciso saqueá-lo das entranhas, mas há um
misturado com um pouco de insegurança; há ali sentido de grupos sociais –, acabei por nunca me lado sensível que também está a ser esquecido.
um lugar mágico que, se calhar, quem sempre encadear em nenhuma forma precisa de pensar. Onde é que nos ligamos, ao fim e ao cabo? Se
viveu aquilo, quem sempre experimentou Não posso dizer que faço um cinema ativista, vivemos num mundo tão globalizado, será que
aquilo, se calhar, já não vivencia. Ainda tenho um feminista ou antirracista. Toco nestes temas, vale a pena estarmos a forçar alguma tentativa
percurso de dois ou três anos de me surpreender. mas não sei até que ponto me identifico com a ou uma tendência do sistema em separar, ou
Isso também é bonito, porque depois é um massa crítica a nível de discurso. Porque o que criarmos, como ativistas, discursos que também
exercício que se vai expressar artisticamente. tenho sentido é a minha necessidade de criar são em prol dessa separação? Obviamente, nem
[Por isso], também, esta necessidade que tenho um pensamento próprio, uma reflexão própria toda a gente tem esta tendência, mas, às vezes,
em viajar, que já se torna quase uma necessidade sobre aquilo que está à minha volta, pondo-me acontece. Então, sim, há algumas plataformas
de experienciar e de viver este estado. num lugar, que é o lugar do meio, que, apesar de que eu acho que são de risco. Não quer dizer
parecer extremamente não solidificado (porque que toda a gente tenha esta posição, mas, em
ACP A Michelle estava a chamar a atenção para
às vezes é preciso o preto e o branco), é um lugar algumas moderações, em algumas questões,
uma coisa (e eu sei que é interessante o que tu
que acho bonito (também tem alguns riscos); alguns eventos feministas, já se pode assistir, de
tens a dizer, porque já falámos sobre isto), mas
neste tema do racismo, acho que é fundamental vez em quando, a um debate que já não é anti-
gostava de te ver aqui falar um bocadinho dessa
haver alguém nesta posição. Procuro mais as machista, que é para onde ele se devia orientar,
tua relação com um cinema mais ativista em
afetividades, as empatias. Acho que o Mikambaru mas tornou-se anti-sexo oposto. Onde é que
Portugal, porque é muito interessante a forma
tem isto refletido, apesar de ser [talvez] o lado em estão as nossas fronteiras, também? Nestas
como tu vês o teu cinema, um bocadinho – não
que não trabalhei tão bem o filme. Agora percebo coisas, gosto de ser cautelosa, como [n]a minha
é abaixo, nem ao lado, nem acima – num outro
que gostava de falar muito mais de [empatia] posição política das coisas.
discurso... Fala tu.
e acho que o poema da Alda [Lara] tenta fazer MS Como deves saber, hoje em dia, no Brasil, há
VF Acho que é importante focar sobre os temas esse elo. O filme fica muito centrado naquela uma situação política muito ruim, autoritária,
que nos tocam. Tento referenciá-los de forma
107 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES E ANA CRISTINA PEREIRA

com o golpe, etc., um cenário terrível com a questão do lugar de fala, como é que vês isso no que se vê em cartaz. Existe um cinema feito por
eleição de 2018, mas o facto é que há também, teu contexto, dentro dos limites sociais, políticos, mulheres, mas há uma gestão aqui que não é
ao lado desse fascismo de Estado e de um etc., que existem em Portugal? partilhada entre as duas vozes. Tal como não
governo autoritário que retrocede em muitos VF Acho que não é suficiente dizer: “Percebo a sei se há um cinema africano, também não sei
aspectos sociais, por outro lado, a explosão situação que se passa no Brasil.” Gostava de lá se há um cinema masculino ou feminino. Por
dos movimentos sociais de uma maneira muito estar. É um pouco a questão de não estar na linha mim, devia tentar-se humanizar ao máximo. É
potente. Isso tem resvalado muito para o campo da frente, mas perceber. Toca-me muito o que se feito por pessoas, da maneira como estão a ver
da arte e as fronteiras entre a arte e o ativismo está a passar no Brasil e, infelizmente, acho que o mundo. Transmitir esse olhar. Provavelmente,
vão-se tocando, mas há também uma questão há coisas que não deviam voltar a acontecer, é se fosse passar agora um ano no Brasil, viria com
sobre a qual queria que conversássemos, além revoltante. É revoltante perceber a posição em uma formação interior completamente diferente
dessa relação da arte com o ativismo, é que que nos estão a colocar a nível político global. do estado em que estou neste momento. Acho
muitas feministas, e até artistas que se colocam Este é um problema a nível mundial. A questão que Portugal oferece uma certa possibilidade,
nesse lugar do feminismo ou do feminismo da resposta tem de ser pensada e, curiosamente, apesar de haver questões em Portugal, a nível
negro, defendem, de certa forma, um lugar de tem de ser pensada também no coletivo. Há de racismo, que têm de ser debatidas e que
fala, um feminist point of view. E eu vejo que movimentos muito bonitos que estão a surgir são urgentes. Mas não estamos numa posição
essa questão, em Portugal, chegou um pouco em forma de resposta, de necessidade. E, como de fragilidade, acho que ainda nos dá azo a
a reboque do que vem acontecendo no Brasil. tu dizes, em Portugal, realmente, acabámos por sermos livres. Eu questiono-me se é uma zona
Acho que há uma certa tentativa de se colar à vivenciar isto um pouco em segunda mão, o que de conforto. É uma zona de conforto, neste
realidade brasileira, o que é impossível, porque nos faz, obviamente, estarmos presentes, mas é momento, artisticamente.
são países completamente diferentes, e, pelo muito diferente de estarmos realmente a sentir
menos como eu percebo, não há tantas forças na pele ou sermos brasileiro em 2019. É uma
autoritárias em Portugal como há no Brasil para situação que espero que se reverta, porque esta
que esses discursos se endureçam tanto e para situação política vai afetar-nos a todos. Agora, se
que essas pontes sejam derrubadas, para que o meu cinema é um cinema de género – acaba
esses isolamentos aconteçam, etc. Gostaria de por ser, porque, se calhar, os protagonistas são
saber até que ponto essa questão do lugar de femininos. Se calhar, é muito mais fácil procurar
fala é relevante para o teu trabalho, se te sentes este olhar e este lugar de fala, que também
confortável, por exemplo, que o teu cinema seja sinto que, principalmente no cinema português, Tradição e imaginação [2018], Vanessa Fernandes @
considerado de género, por exemplo, se isso durante muitos anos, foi encaminhado por vanessafernandes
te toca ou não, se isso te incomoda. Ou essa realizadores portugueses – pelo menos, aquele
VANESSA FERNANDES 108

MS Vou fazer-te uma pergunta ingénua e muito VF Tenho mesmo um problema com a rotulação trabalho, como disseste, fica circunscrito numa
honesta: achas que há uma mesma condição de das coisas, porque acho que a [invisibilidade] certa zona de interesse e de circulação. Essa
trabalho para homens e mulheres no campo do acaba também por ser criada por algum tipo de hiper-definição conforma o trabalho aos seus
cinema em Portugal? rotulagem, porque, de repente, é uma “mostra circuitos de exibição e circulação, de venda e
de cinema africano da zona do Mali” que depois de compra de trabalho, etc., de filmes e obras,
VF Não. Não.
vai ser metida só em festivais de cinema para um mas, ao mesmo tempo, gera uma visibilidade
MS Porque isso, à partida, já coloca uma questão certo tipo de público que vai ver “cinema africano para trabalhos que tocam nessa questão e que
de género. [da zona do Mali]”. A rotulação acaba também por os trabalhos comerciais não tocam. Um filme
ACP Ela fez um filme sobre mutilação genital criar uma separação. hollywoodiano não está interessado em discutir
feminina. E fez um filme sobre uma rapariga ACP Mas podemos acumular rótulos, não? relações de género, falar de feminismo negro, em
estrangeira que chega a uma família portuguesa. Porque um filme pode ser feminista, antirracista, saber se em Portugal há racismo, se no Brasil o
E perguntam-lhe: “O teu cinema é de género?” de ficção... africano, do sul global... Bolsonaro é fascista. Isto é a minha opinião, não
“Não, é de pessoas.” estou dirigindo isto ao teu trabalho. Mas entendo
VF Eu percebo esta necessidade que há de se
que os artistas aderem e fogem dessa hiper-
VF Porque também, se forem perceber, durante o criar características de orientação e sabermos
definição. E é nesse jogo contraditório que as
filme, o olhar do pai, tanto num como no outro, é o que vamos ver, só que acho também tão
coisas vão acontecendo, de adesão e fuga.
extremamente importante. importante um público generalista ter acesso
VF A adesão é feita por assumir, porque está
ACP Mas é o olhar de uma mulher para o pai. É o a estes debates, que não existam só na sua
em mim, não é? Só que, se calhar, a maneira de
teu olhar sobre o pai. própria bolha. Acho que essa acessibilidade tem
de ser também espicaçada e alimentada para fugir tem que ver com não querer carimbar-me
VF Sim, mas também há a posição do pai, em
um público generalista para que ele se possa automaticamente, não querer procurar esse
ambos os filmes, a posição do pai é chave.
sensibilizar. Porque, senão, estamos a sensibilizar lugar...
ACP Então, eu faço-te uma outra pergunta muito pessoas que já têm o mesmo discurso. MS Porque um gay também não fala só da vida
ingénua: cinema feminino ou feminista é excluir
MS O que eu vejo muito, sobretudo no campo de um gay, pode querer falar sobre a família,
os homens?
das artes visuais (tenho um percurso nos sobre o mundo, sobre as estrelas, sobre a praia,
VF Não, não nesse sentido. Percebo onde queres últimos cinco anos na área da curadoria), no qualquer coisa. O cinema gay ou o cinema
chegar. Eu tenho sempre algumas questões Brasil, é que alguns artistas falam muito dessa feminista não é um cinema que fala da mulher ou
sobre... questão da hiper-definição do trabalho, e, do gay, é um cinema que fala sobre o que quiser.
Essa é a grande questão da hiper-definição,
ACP Tens um problema com rótulos. sobretudo no movimento LGBTQ, a questão
da hiper-definição é um problema, porque o hoje, no campo das artes. E eu acho que os
movimentos sociais, às vezes, não conseguem
109 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES E ANA CRISTINA PEREIRA

entender isso. O campo da arte está sempre como criança, estávamos a falar da família, se apresenta. Acho que gostava de continuar a
em negociação com os ativismos e com os como se comporta... Acho que há um peso de estender-me nos universos que me têm atraído.
movimentos sociais por conta disso. Porque há responsabilização da tua atitude, a partir do E que me chamam, que me dão algum tipo de
essa poesia que escapa ao ativismo, desculpem momento em que te afirmas como feminista ou liberdade. Como tu disseste e disseste bem, acho
os ativistas. Porque são campos diferentes de como cineasta afrodescendente. O que é que que a questão poética é importante, porque
atuação. E precisam de ser. E como são campos acontece? Eu sou realizadora afrodescendente, depois esta sensibilidade, às vezes, até vai para
diferentes de atuação e a arte se coloca nesse então, os meus temas vão ser virados para este caminhos que uma pessoa não está à espera
lugar de mediação com o mundo e com as coisas universo, em resposta à minha experiência de se poder auxiliar. A linguagem é muito mais
e com a experiência, o teu cinema, ou o cinema neste universo. Nos últimos anos, tenho feito maleável. Porque ela é plástica. Pelo menos,
de qualquer mulher, mesmo que seja feminista, trabalhos, dos quais gosto muito, com polacos, nesta fase do meu percurso, gostava de deixar
não precisa de passar pelo rótulo do feminismo australianos, em que não tive de ir procurar esta as minhas raízes espraiarem um bocadinho.
para existir. Mas, mesmo assim, não deixa de ser temática de conflito social constantemente. E Quando fiz o Mikambaru e o Si Destinu foi uma
um cinema feminista! trabalho com pessoas de quem gosto muito, fase em que, realmente, sentia que, aí sim,
[quer seja na] posição de realização ou de estava a caracterizar-me exatamente dessa
VF Claro, exatamente. Ele está lá. Não deixa de
direção artística ou direção de fotografia... forma, havia um foco de ação política. Depois,
ser.
Obviamente, tive várias experiências na maneira o que vem a seguir na minha vida é trabalho
MS E acho que há muitas mulheres – no Brasil, de lidar com os grupos, que também são com artistas a nível internacional que não
isso é muito evidente – que temem esse rótulo. curiosas, às vezes, mas há uma recetividade põem estas questões raciais. De certa forma,
Já estive com amigas, na formação e no muito grande ao meu trabalho. Não sinto que obviamente, põem no seu discurso a sua posição,
cinema também, que fazem filmes feministas, tenha de me orientar nessas definições, porque mas vão falar das suas próprias sensibilidades.
profundamente feministas, e não conseguem tenho algum receio – se calhar esta é a minha Neste momento, pelo menos, acho que procuro
afirmar “eu sou uma cineasta feminista”. Há inquietação – de que eu, ou o facto de, a partir não definir. Mas, se calhar, as coisas estão lá,
sempre uma dubiedade muito grande com do momento em que afirmo estas posições, não é?
o feminino e o feminista, não são sinónimos. tenha de carregar esta bandeira. Porque eu sou
MS Vou fazer-te mais uma pergunta, que é
Porque um homem também fala do feminino e assim. Se as afirmo, vou assumi-las mesmo.
também uma provocação. Recentemente, o
não é feminista. A questão da representação da Depois, profissionalmente, sei que vou ter de
Spike Lee deu uma declaração dizendo que
mulher no cinema é tão velha quanto o próprio seguir uma certa linha de estratégia profissional.
nenhum homem branco, nenhum realizador
cinema. Estas acontecem na produção, na curadoria...
branco norte-americano, poderia fazer Do the
VF Sim, e acho que esta questão da rotulagem, Porque também há a divulgação do teu trabalho,
Right Thing [1989] ou BlacKkKlansman [2018],
indo buscar agora à minha experiência também a maneira como se candidata, a maneira como
que só ele poderia ter feito. Achas que isso vale,
VANESSA FERNANDES 110

por exemplo, para o teu trabalho? Achas que uma que estou a fazer neste momento, jogar com momento, todas as questões presentes sobre a
mulher branca, europeia, uma mulher norte- essas [caricaturas] e depois começar a tirar descolonização das mentes; finalmente, muitas
americana poderia... qualquer coisa do seu ponto mais real, onde elas pessoas, muitas mulheres brancas a pôr-se, ou,
estão como humanos. Agora, não sei, acho que pelo menos, a criar alguma [visibilidade] sobre
VF ... pôr as questões da maneira como as
estes temas são abordados de tantas formas no estes temas e a tentar (porque é isto, é esta
põe? Se calhar, poderia pô-las. Acho que,
cinema... Não quer dizer que alguém não consiga questão do tentar) pôr-se no lugar do outro.
sinceramente, tanto o tema de um como do
chegar a esse ponto ou a essa sensibilidade, Ser sensível ao lugar do outro. Perceber, ouvir...
outro, são temas já batidos. Não são [temas]
[mas] vai dar resposta de outra forma. Os olhares Porque começa a haver um efeito de escuta. Tu
recentes. Poderia pô-las, mas, provavelmente,
são tão pessoais. estás aqui nesta posição e estás a questionar-te
com algum tipo de cuidado ou auxílio ou crítica
MS Mas sentes-te confortável com a ideia de sobre estas [coisas]... Se calhar, no lugar onde
que, se calhar, vai ser limada de uma forma ou de
estás, há dois séculos seria impossível.
outra. Porque o racismo que exista, relacional, que fazes um cinema negro? Ou seja, sentes-te
de casal jovem – acho que até há um filme confortável em ser lida dessa forma, como uma MS Mas eu quero que te sintas confortável com
americano que traz este tema, um filme até de cineasta afrodescendente? isso para dizer que não ou que sim. Não quero
entertainment; também há um filme francês que VF Sem dúvida. Hoje estou a aproveitar também que estejas a olhar para mim pensando se sou
saiu há poucos anos que também volta a trazer para me contrariar. O meu exercício de criação uma mulher branca, índia, americana.
este tema; a mutilação genital também já foi também passa por isso. Eu pôr-me em conflito VF Eu não faço essa mirada.
abordada, principalmente em documentário... comigo mesma. Porque também me põe numa
MS No Brasil, há hoje uma consciência
ACP A forma como tu falas da exotização da agilização das minhas ideias. Esta pergunta
afrodescendente e isso é fruto dos movimentos
figura da Maria, que é uma miúda africana que que tu fazes: será que uma branca faz um filme
negros com relação à identidade, mas não há o
gosta de ler, que tem outros interesses, mas que, da mesma forma? Ou com esse olhar, com
mesmo com relação a uma identidade indígeno-
de repente, é remetida para uma coisa exótica, essa sensibilidade? A minha resposta real é:
descendente, por exemplo, não há o mesmo
em que só arranja emprego como modelo... eu espero que sim, que ela consiga, de certa
movimento social em torno disso e as pessoas
Porque é que não aparecem esses filmes feitos forma, perceber a minha situação como mulher
colocam-se como brancas, negras e pardas. Por
por brancas? afrodescendente ou o que é ser uma mulher
exemplo, no censo do IBGE, eu apareço sempre
afrodescendente, que ela tenha a capacidade de
VF Exato. Nós temos estas preocupações, como parda, identificam-me sempre como
pensar a necessidade de estereotipagem desta
obviamente, de estereotipar... É o nosso conflito, parda. Só que ser pardo não é nada no Brasil, por
personagem. As minhas respostas também não
esta questão dos rótulos. Há uma necessidade, exemplo. Quando eu olho para a minha família e
são do agora, mas também numa perspetiva do
ao mesmo tempo, criam-se caricaturas e depois me pergunto – e acho que essa é uma pergunta
que pode vir a ser para lá. Porque eu vejo, neste
tenta-se desventrá-las, acho que é o trabalho muito forte no Brasil hoje – “o que é que eu sou?”;
111 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES E ANA CRISTINA PEREIRA

quando as pessoas me dizem que sou branca, pergunta e não parecer tão direta. Era uma VF Não é uma questão da mulher. Se calhar,
acho engraçado. Não porque não possa ser, mas pergunta. Porque eu acho que vejo, ao fim e ao também não me estou a expressar da melhor
porque também acho que não sou e que não cabo, este tema. Uma pessoa cria com esse fluxo. forma...Acho que a cooperação tem de ser maior.
estou sendo fiel às minhas origens. E isso me São as minhas preocupações, é o meu dia a dia. Porque, se nós estamos a falar de feminismo,
mobiliza, na verdade, uma série de sentimentos. que é um movimento anti-machista, temos de
MS O Brasil colou-se muito à história do
ACP A mim também. Nesse aspecto, sou muito acolher os homens. Porque os homens têm de
movimento negro americano e até do feminismo
mais simpática a determinadas ideias do que ser feministas. E os homens têm de ter essa
negro americano, só que nós temos esta questão
tu. Não sou artista, portanto, não preciso de sensibilidade. Acho que é um pouco esta não
de raça totalmente diferente. Nos Estados
defender para mim esse espaço de liberdade definição...É uma resposta a estas situações
Unidos da América, é a ideia do one-drop [rule]
criativa.Mas consigo encontrar pensamento para que a Ana Cristina acabou de contar, e que têm
e, no Brasil, tu não tens a ideia do one-drop para
mim muito dentro já de balizas que respeitam existido com alguma frequência. Isso assusta-
definir cor. Então, tens um espectro de pessoas
noções de raça, de género, de identidade. E me bastante, esta estruturação do separatismo,
que se definem como pardas e que poderiam ter
essas são importantes para mim, para a minha a estruturação das linhas e das borders. Elas
afinidade com o movimento negro, até afinidade
reflexão. criam, ao mesmo tempo, um espaço de debate e
política, estética e afetiva, e não têm porque são
um espaço de invisibilidade. Acho que o grande
colocadas para fora. Isso é o que me preocupa,
conflito é este. Onde estamos e a maneira
na verdade. Hoje em dia, no Brasil, é uma
como podemos [direcionar] o nosso discurso a
questão muito evidente.
quem precisa de ser tocado por esse discurso.
Por favor, não ponhas isto… nunca sair contra as A sensibilização desta comunicação tem de ser
Sisters publicamente. É uma máxima minha  Foi feita às pessoas que precisam de ouvir, de ter
uma convers privada, era assim que eu estava a acesso a um olhar oposto ao deles para perceber
entender… as pontas. Aliás, nós andamos aqui a saltitar
VF Se calhar, também não me estou a expressar entre movimentos. Tanto que acho que agora
MadMudPools [2018], Vanessa Fernandes @
assim muito direcionada para nenhum lado, mas, viemos parar a um lugar onde ninguém queria
vanessafernandes
por exemplo, sinceramente, acho que os homens estar, de um fascismo, no fundo, um fantasma...
VF Desculpa, fui superagressiva agora, dizer “tu têm de ser feministas. É esse lugar de estrutura. E se as pessoas que votam no Bolsonaro não
és branca, tu és negra”, senti que não era por conseguem perceber quantas pessoas estão
MS Não é uma questão da mulher, é uma questão
aí, não foi também com um sentido pejorativo, a ser derrubadas, quantas estruturas estão a
da sociedade.
porque também sinto quase o contrário... Agora, ser desconstruídas – demorou tanto tempo
o tema da cor e da pele... Eu queria fazer-te essa até chegarmos lá –, se elas não perceberem o
VANESSA FERNANDES 112

que é a luta que as mulheres tiveram durante


séculos para estar num lugar de liberdade, que,
de repente, é destruído, essas pessoas têm de
ser sensibilizadas. Agora, como é que chegamos
a elas? As fronteiras, ao mesmo tempo, estão a
ser criadas porque elas não estão a ter acesso a
este discurso. Obviamente, isto são questões de
pensamento. Não estou a dizer que agora vão ver
um filme sobre feminismo, mas eventualmente
também pode acontecer. Porque o grande
trabalho da arte é este. Há um lugar de utopia
aqui no meu imaginário. Mas prefiro que seja
esse lugar de utopia a ser o meu alvo. É isto que
eu gostaria que acontecesse, que elas tivessem
essa possibilidade de serem sensibilizadas por
uma mulher, ou por algum filme LGBT, ou por
aquele efeito mágico de unicórnios a passarem
com umas espadas... Obviamente, agora, entrei
no lado da ironia, mas é sem maldade. É só
mesmo porque gostava que as coisas fossem
mais fáceis para não estarmos no lugar onde nos
encontramos no presente.
“A GUINÉ-BISSAU
OFERECE-ME INSPIRAÇÃO,
PORTUGAL PROFISSÃO”:
O TEMPO DOS MORTOS
E DOS VIVOS NO DRAMA
DE TERROR LUSO-GUINEENSE
O ESPINHO DA ROSA (2013),
DE FILIPE HENRIQUES
JUSCIELE OLIVEIRA

Os movimentos de libertação nacional de Sana Na n’Hada e Flora Gomes, que estudaram


Angola, Guiné e Moçambique receberam apoios em Cuba e estavam terminando o estágio com
internacionais e o cinema, no período da luta Vieyra, no Senegal, no período da escrita do livro;
de independência, nas décadas de 1960 e 1970, e justifica a ausência de produção dos cineastas
serviu para mostrar ao mundo a violência do locais: “La Guinée Bissau actuellement en lutte
colonialismo português e a luta pela liberdade pour sa libération pour son effort sur le cinema
através da produção de filmes. O Partido Africano moyen d’éducation et d’information” (Vieyra,
para a Independência da Guiné e Cabro Verde 1975, p. 113).
– PAIGC, por meio da figura do seu secretário Durante a luta de independência da Guiné, ainda
geral Amílcar Cabral, convidou cineastas de portuguesa (1963-1974), destacam-se alguns
França, Itália, Inglaterra, Cuba, Suécia e Holanda, filmes realizados no território guineense. Em
solidários à causa e apoiadores dos movimentos 1965, o francês Mario Maret realiza La La Guema.
de libertação na África, para realizarem filmagens O italiano Piétro Nelli, em 1967, realiza em preto
dos espaços da guerra. Inclusive, no capítulo e branco, La Banda Nera. Em 1968, o jornalista
de seu livro, Les films africains par pays, Paulin britânico Basil Davidson fez um pequeno
Vieyra lembra dos quatro jovens bissau- documentário, Terrorists Attack. O sueco Axel
guineenses, Josefina Lopes Crato, José Bolama,
“A GUINÉ-BISSAU OFERECE-ME INSPIRAÇÃO, PORTUGAL PROFISSÃO”: 114
O TEMPO DOS MORTOS E DOS VIVOS NO DRAMA DE TERROR LUSO-GUINEENSE O ESPINHO DA ROSA (2013), DE FILIPE HENRIQUES

Lahmann e o holandês Rudi Spee filmam Free semelhantes foram feitos em Angola na luta de africanos, conforme ratifica Paulin Vieyra (1975):
people in Guinée-Bissau, em 1969, em preto e libertação do Movimento Popular de Libertação “Le cinéma africain n’est pas un cinéma spécial
branco, com duração de 50 minutos; no mesmo de Angola – MPLA e, em Moçambique, pela Frente pour Africains. Il est africain par les themes qu’il
ano, o cubano José Massip realiza o filme de Libertação de Moçambique – FRELIMO. Depois aborde et non pas tellement, pour l’instant du
Madina do Boé, com 35 minutos de duração, das independências, os primeiros cineastas moins, par la façon don’t il aborde ces themes”
no qual são apresentadas imagens de africanos entram em atividade para registrar (p. 233).
Cabral presente no espaço da guerra. Em 1970, os vários eventos políticos, nacionalistas e pan- Os textos que tratam da questão da “África
os franceses Tobias Engel, Rene Lefort e africanistas ainda como forma de resistência à de Língua Oficial Portuguesa”, para alguns
Gilbert Igel produzem No Pincha (Em marcha), opressão. Os precursores dos cinemas africanos a “África Lusófona”, majoritariamente,
um documentário de 70 minutos sobre o povo construíram os seus primeiros filmes com o destacam as produções de Moçambique e
da Guiné-Bissau e o apoio ao programa do propósito de utilizar o cinema “to inform, to Angola. Moçambique em razão da criação
PAIGC, inclusive com imagens de Amílcar educate, and to project authentic visions of do Instituto Nacional de Cinema (INC), uma
Cabral (Vieyra, 1975; Diawara, 1992; Ukadike, Africa and its peoples as well as to assist in das primeiras ações culturais do governo
1994). reversing the demeaning stereotypical images of moçambicano, após a independência, em 1975,
Em 1973, os suecos Lennart Malmer e Ingela Africa found in dominant representations of the pelo presidente Samora Machel. O instituto
Romare dirigiram o filme O nascimento de uma continent” (Ukadike, 2002, p. xviii). possuía também unidades de Cinema Móvel,
nação, que apresenta imagens e momentos Após as independências, “en 1973, près de 40 que levam por todo o país a produção do jornal
históricos do nascimento da nação Guiné-Bissau pays africains sont devenus indépendants, cinematográfico Kuxa Kanema. E Angola por
(Laranjeiro, 2016). Da produção das imagens et le visage du cinema en Afrique commence causa da realização do longa-metragem de
na Guiné-Bissau participam também os jovens à changer” (Vieyra, 1975, p. 16). Com a importância internacional Sambizanga (1972),
cineastas recém-formados em Cuba, que realização local dos cinemas africanos, mesmo realizado por Sarah Maldoror, baseado no
interrompem o estágio no Senegal com Paulin com limitações financeiras, as produções romance A vida verdadeira de Domingos Xavier
Vieyra para participarem da captação de aumentaram principalmente pelas relações (1961), do autor angolano José Luandino Vieira.
imagens do último ano da luta. Estas cenas transnacionais e transcontinentais das O filme foi produzido em colaboração com o
tornam-se clássicas e são reproduzidas, até ao produções e coprodução com países como União MPLA e com o governo do Congo-Brazzaville,
momento atual, em filmes que versam sobre Soviética, China, Estados Unidos da América, rodado no Congo, com subsídio francês.
as temáticas das lutas pela independência, Brasil, Cuba, França, entre outros, as quais foram Sarah Maldoror desempenhou um papel de
violência colonial e história da Guiné-Bissau, um meio de resolver em parte as dificuldades liderança no cinema da África de Língua Oficial
como acontece no filme A respeito da de financiar e produzir novas imagens e abordar Portuguesa e no cinema revolucionário da
violência (2014), de Göran Hugo Olsson. Filmes novas temáticas sobre a África e sobre os época. Maldoror recebeu seu treinamento em
115 JUSCIELE OLIVEIRA

Moscou e tornou-se uma defensora da luta pela a Portugal, o que, diferentemente da expressão social. Notadamente na campanha de Samora
independência. Há poucas informações com “língua oficial portuguesa”, faz relação com Machel pelo país recém-libertado (Vieyra, 1975;
relação a Cabo Verde, entretanto, destaca-se a amplitude das discussões e dos países que Ukadike, 1994; Diakhaté, 2011). Leão Lopes
a idealização de um cineclube. São Tomé e compõem a comunidade do idioma. Compete realizou o primeiro longa-metragem de Cabo
Príncipe, muitas vezes, nem ao menos é citado ainda destacar que a palavra “lusofonia” Verde, Ihéu de contenda (1994). Com relação a
antes das independências. E Guiné-Bissau transmite a ideia de que existe harmonia e São Tomé e Príncipe, em pesquisa na internet
adquire prestígio cinematográfico depois das plenitude nas relações, o que não acontece. e no texto recente Panorama do cinema e do
independências, notadamente pela produção audiovisual em São Tomé e Príncipe (Falconi;
Nos países que viveram sob o jugo colonial
de Flora Gomes e Sana N’Hada (Diawara, 1992; Krakowska, 2017), encontrou-se a informação
português, a realização e a produção de filmes
Ukadike, 1994; Andrade-Watkins, 1995; Arenas, de que o cineasta Januário Afonso realizou o
de longa-metragem de ficção ocorreram após
2011, 2019; Ferreira, 2014, 2016). primeiro longa-metragem, em 2002, intitulado
1975, como é o caso de Angola, com Mena
Imprudência, o fogo do apagar da vida.
É importante ressaltar que mesmo os cinemas Abrantes, António Ole e Ruy Duarte de Carvalho1;
africanos de língua oficial portuguesa, apesar de enquanto a Guiné-Bissau só inicia sua produção Esta conjuntura de produção de ficção tardia
serem apresentados como fazendo parte de um cinematográfica com o cineasta Flora Gomes2, pode ser entendida pelo fato de os cinemas
mesmo movimento: “cinema lusófono”, “cinema em 1988, com o filme Mortu nega. Moçambique nacionais dos Países Africanos de Língua Oficial
da África lusófona”, pela relação com o passado de então utilizou o cinema como forma de Portuguesa partilharem com os outros cinemas
colonial, “all three groups [Angola, Guiné-Bissau propaganda do partido FRELIMO, para subsaarianos as mesmas limitações técnicas e
and Moçambique] differ in their approach educação e desenvolvimento econômico e financeiras, como também das dificuldades
to and execution of narrative, methods of na distribuição e exibição em virtude de,
representation, and definition of documentary” ao contrário dos colonizadores britânicos,
(Ukadike, 1994, pp. 6-5). Estes países, aos quais 1. Ruy Duarte de Carvalho nasceu em Portugal, mas assumiu franceses ou belgas, os portugueses não
a nacionalidade angolana.
se acrescentam ainda São Tomé e Príncipe 2.Considerando-se apenas os longas-metragens, pois terem criado uma infraestrutura adequada,
e Cabo Verde, fazem parte “de um processo Flora Gomes já havia realizado dois curtas-metragens restringindo-se apenas à produção de
antes de Mortu nega. Além disso, também existem poucas
em constante mutação. De um processo em documentários no período colonial, dificultando
informações sobre uma produção, N’tturudu (1987), realizada
revolução permanente, em busca de um por Umban U’Kset, músico, ator e diretor, mas do qual assim as produções cinematográficas nacionais
discurso que, apesar de ser aparentemente não há demais informações além do que Ukadike (1994) após as independências. Os portugueses não
relatara: “[It] was shown at the Film Fest D.C. in May 1988.
o mesmo, é distinto” (Tavares, 2013, p. 469). estavam interessados em criar uma estrutura
This promising young director is a man to watch. This film is a
Ademais, o termo “lusofonia” é vago e ignora os gentle comedy, furtive in its own unique way, exploring many física ou profissional técnico-cinematográfica
contextos, as diferenças “raciais” e coloniais que themes common to black African cinema – the status quo na África, diferentemente dos britânicos e
versus change, country versus city, and the generation gap”
possui no seu radical “luso”, referência exclusiva (pp. 236-237).
belgas. Por isso, limitaram sua produção a
“A GUINÉ-BISSAU OFERECE-ME INSPIRAÇÃO, PORTUGAL PROFISSÃO”: 116
O TEMPO DOS MORTOS E DOS VIVOS NO DRAMA DE TERROR LUSO-GUINEENSE O ESPINHO DA ROSA (2013), DE FILIPE HENRIQUES

noticiários mensais (de cunho propagandístico) ideologically proven to be a model for African relaciona-se diretamente com o que é
e filmes pornográficos produzidos nas colônias, solidarity” (Ukadike, 1994, p. 245), visto que a ser africano.
por Portugal e pela África do Sul; a pós-produção jovem nação ainda sofria das consequências O filme emblemático da história do cinema
era realizada em Madrid ou Joanesburgo da recente luta, havia problemas estruturais, da Guiné-Bissau pós-independência é o
(Diawara, 1992). Assim, os cinemas africanos educacionais e técnicos que tinham prioridade documentário O regresso de Amílcar Cabral
de língua oficial portuguesa nascem da luta: na pauta dos governantes, instituindo a cultura, (1976)3, concebido por Sana Na N’Hada e Flora
pela independência, pelos financiamentos, pela a arte e o cinema como não prioridade nas Gomes, o qual retrata o retorno do corpo
libertação total – “[...] le cinéma reflete la lutte et listas governamentais. Mas, mesmo assim, de Cabral desde Conacri, após o seu assassinato
la lutte motive un cinéma ‘de libération’” (Barlet, os artefatos documentais demonstram uma em 20 de janeiro de 1973, para a Guiné-Bissau,
2000, p. 18). tendência nacionalista que destacavam e seu cortejo pelas ruas de Bissau até ao
conteúdos históricos, sociais, culturais e políticos
As restrições técnicas e financeiras dos cinemas mausoléu na Fortaleza da Amura. Em 1978,
da Guiné-Bissau, os quais “têm como vocação
africanos de língua oficial portuguesa parecem na Guiné-Bissau, criou-se o Instituto Nacional
destilar imagens positivas da África e acabar com
estar relacionadas com os altos custos que de Cinema, com poucos realizadores e técnicos
a dominação colonial pela imagem” (Bamba,
envolvem a concepção de um filme e o medo formados, e, “para ajudar na estruturação
2010, pp. 279-270).
dos colonialistas de que os africanos pudessem do Instituto, alguns estrangeiros foram
revelar ao mundo os excessos do colonialismo. Cabe apontar que a questão da “Por imagem convidados da Suécia e da França em 1980”
Pelos longos períodos de lutas de libertação, por positiva” [By positive image] implica na (Ferreira, 2016, pp. 192-193). O Instituto financiou
isso os cinemas nacionais desses países tiveram representação do que realmente importa, exclusivamente dois filmes, N’tturudu (1987),
que ser construídos a partir do nada, como parte não que a imagem seja favorável de Umban U’kset, do qual não há notícias
integrante das lutas de libertação nas décadas e conforme aos valores da norma. A luta é de cópias ou demais informações sobre as
de 1960 e 1970, a maioria das vezes, envolvendo pela autorrepresentação (Ukadike, 1994, pp. condições de produção do filme (conforme
iniciativas e esforços de colaboração com 274-275). Por vezes, a mera exibição na tela de destacado anteriormente), e Mortu Nega (1988).
diretores e produtores de cinema estrangeiros uma África positiva já é vista como uma grande 1987 também foi muito importante para
(Arenas, 2019). mudança, um deslocamento e descolonização a história do cinema africano, pois pela primeira
de perspectiva no cinema, em virtude de vez um filme da África negra foi finalmente
Inicialmente sobre a Guiné-Bissau, depois
confrontar paradigmas do afropessimismo e
sobre a independência, a produção
da pornomiséria, pela simples ideia de
cinematográfica, nos seus primeiros anos, foi 3. “O espólio de material fílmico do INC [Instituto Nacional de
questionar a imagem de uma África miserável Cinema da Guiné-Bissau] foi recentemente digitalizado pelo
quase exclusivamente de documentários,
– um adjetivo que, nas mídias e na internet, Arsenal – Institute for Film and Video Art de Berlim no âmbito
“which are cheaper for them to produce and
do projeto coletivo Luta Ca Caba Inda sob a orientação de
which have effectively, aesthetically, and Filipa César” (Cunha & Laranjeiro, 2016, p. 69).
117 JUSCIELE OLIVEIRA

aceito na competição oficial do Festival de de ficção: Mortu Nega (1988), Udju azul di Yonta pela televisão comunitária de Klélé; Cussas di
Cannes. O filme em questão é Yeelen/The light, (1992), Po di sangui (1996), Nha fala (2002) e Nô Terra (2013), realizado por Domingos Sanca
do cineasta malinês Souleymane Cissé, Republica di mininus (2012); o documentário As e produzido pela Televisão da Guiné-Bissau
cujo trabalho anterior, Fiyé/The Wind, já havia duas faces da guerra (2006) em co-realização com (TGB) e pelo Grupo Teatral Catho Modja; A Lei
sido apresentado na mostra Un certain regard. Diana Andringa; os curtas-metragens A pegada da Tabanca (2015), realizado por Bigna Tona
de todos os tempos (2009) e Bindidur di Passada/O Ndiba; e os vários filmes em língua Fula, pela
Atualmente, conhece-se a Guiné-Bissau
vendedor de histórias (2017) e o filme institucional produtora Candé Produções, em parceria com a
pelas notícias em função de seu momento
Uma nova cara para Guiné-Bissau (2014). Associação Laamten. O que demonstra que os
político4. Apesar de um cenário desordenado
filmes africanos de língua oficial portuguesa não
relativamente ao apoio ao cinema nacional, esse As mais recentes produções da Guiné-Bissau
querem sugerir “uma nova forma de fazer filmes,
cinema desenvolveu-se graças à persistência são da autoria de José Lopes (Clara di sabura,
quer-se utilizar os recursos que o cinema dispõe
e à vontade própria de Flora Gomes e Sana Na 2011); Vanessa Fernandes (Taama Taama ani N’Fa
para construir com eles novos discursos e dar a
N’Hada, que, além das co-realizações com Flora Douwa, 2011; Si Destinu, 2015); Filipe Henriques
ver aquilo que, de um modo geral, se oculta ou se
Gomes nos curtas-metragens, realizou ainda os (O rapaz do tambor, 2020; O velho, 2020; Heaven
estereotipa” (Tavares, 2015, pp. 371-372). Sendo
documentários Fanado (1984), Bissau d’Isabel or hell, 2007; Vejo-te quando lá chegares, 2005 e o
assim, a história e a historiografia dos cinemas
(2005) e Os escultores de espíritos (2014), além longa-metragem O espinho da Rosa, 2013 – o qual
africanos procuram por uma correspondência
dos longas-metragens de ficção Xime (1994) e será analisado no próximo item desse artigo); e
entre o uso de um novo meio e a expressão
Kadjike (2013). O cineasta Flora Gomes, sujeito Suleimane Biai, que colaborou na realização do
dos problemas de conteúdo, mas também dos
e objeto de pesquisa de doutorado (Oliveira, filme de José Lopes e é assessor de Flora Gomes
estudos de forma, da estética, do gênero, de
2018), realizou e roteirizou os longas-metragens desde o filme Udju azul di Yonta. Estes, em um
narrativa e de representação, que permitam
verdadeiro “percurso de combatente” (Embalo,
ir além das grandes questões antropológicas
2015), conseguiram reunir meios e condições
4. Em 12 de abril de 2012, na véspera do início da campanha e documentais e do levantamento de dados e
para se afirmarem profissionalmente, tanto em
para a segunda volta da eleição presidencial bissau-
informações sobre os filmes, como o thriller O
guineense, militares ocuparam a rádio nacional, a sede nível nacional como internacional, promovendo
do PAIGC e atacaram a residência do primeiro-ministro espinho da Rosa, de Filipe Henriques.
uma cinematografia local.
em fim de mandato, Carlos Gomes Júnior. O Presidente
O filme de gênero luso-guineense: O espinho
da República interino, Raimundo Pereira, foi preso em sua Paulo Cunha e Catarina Laranjeiro (2016), a partir
residência por militares, tal como o primeiro-ministro, Carlos da Rosa
de um mapeamento recente sobre a produção
Gomes Júnior. O evento sucede ao conflito militar de 2010
e a uma tentativa de golpe de Estado fracassada em 2011. “amadora ou semiprofissional” do audiovisual A junção entre fantasia e realidade, memória
Realizaram-se eleições em 2014 e em 2015, o presidente da Guiné-Bissau, destacam os seguintes títulos: individual e coletiva, vivos e mortos é o mote do
eleito, José Mário Vaz, já demitiu/exonerou/não aceitou os
o documentário Tapioca, fonte de nutrição e drama de terror O espinho da Rosa (The thorn of
primeiros-ministros que foram indicados para o cargo pelo
partido vencedor das eleições parlamentares. apoio na economia familiar (2013), produzido
“A GUINÉ-BISSAU OFERECE-ME INSPIRAÇÃO, PORTUGAL PROFISSÃO”: 118
O TEMPO DOS MORTOS E DOS VIVOS NO DRAMA DE TERROR LUSO-GUINEENSE O ESPINHO DA ROSA (2013), DE FILIPE HENRIQUES

the Rose, 2013) (figura 1), de Filipe Henriques5 com a necessidade de assustar e apavorar o
(Bissau, 1979). O primeiro longa-metragem de espectador, como a história do “Pé-de-cabra”
ficção do jovem bissau-guineense entrou para Rosa, a morta que recebeu “autorização” para
a historiografia do cinema como o primeiro filme retornar ao mundo dos vivos, um dia após a sua
de “cinema negro” português, já que foi escrito, morte (02 de março), e seduzir advogados, que
realizado, produzido e protagonizado totalmente podem ajudá-la na sua busca pela punição dos
por negros e negras, filmado em Lisboa. A seus algozes.
película é uma co-produção luso-guineense A classificação dos gêneros cinematográficos
aclamada em mais de 35 festivais internacionais tem sua definição ligada inicialmente à literatura,
de cinema, como o FEStin 2014, o PAFF 2014, o mas depois torna-se um aspecto fundamental
Fantasporto 2014, o FESPACO 2015 e o AMAA – da instituição cinematográfica. Com o passar
Africa Movie Academy Awards 2015; e premiada dos anos, os gêneros cinematográficos se
no Festival Internacional de Cinema de Zanzibar expandiram. Contudo, ainda existe uma
2014, realizado na Tanzânia; no Eerie Horror Film grande dificuldade no que concerne a
Festival, nos EUA, 2014; no FIC Luanda, Figura 1: Imagens utilizadas para publicidade do filme6.
definição e delimitação de cada gênero para
em Angola, 2013. No entanto, com todo o os filmes produzidos contemporaneamente,
Por relacionar o medo, o horror, o sobrenatural
sucesso internacional do filme, não foi exibido uma vez que nem todas as obras podem ser
com um assunto tabu, complexo e dramático,
no circuito comercial em Portugal. enquadradas numa única tipologia, em que o
como a pedofilia, o filme é classificado como
gênero orienta e prepara o espectador. Estas
um drama de suspense/thriller, no qual, ao
especificações podem estar associadas a
mesmo tempo que o gênero drama cria uma
indicações genéricas, as quais podem incluir
5. Filipe Henriques nasceu na cidade de Bissau, capital
aura de mistério na construção das tramas de
na mesma categoria filmes que pertencem a
da Guiné-Bissau em 24 de julho de 1979. Aos 18 anos, Rosa (Ady Batista), David Lunga (Júlio Monteiro),
migrou para Portugal, em virtude do conflito armado que cinematografias, contextos, estilos e ideologias
Sr. Nancassa (Daniel Martinho), Linette Oliveira
ocorreu em 1998 em Bissau. Atualmente, vive em Lisboa. absolutamente diferentes entre si (Costa, 2003, p.
Estudou cinema, vídeo e comunicação multimédia na (Ciomara Morais), policial (Ângelo Torres),
93). Um exemplo disso fica a cargo dos cinemas
Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias Neriano “Ney” Seidei (Ricador Abril), joga
(2001-2004). Trabalhou, por sete anos, como sonoplasta africanos pós-coloniais, que são cada vez mais
na produtora Plural Entertainment Portugal, tendo feito confrontados com a problemática dos gêneros:
17 telefilmes e 15 telenovelas, nomeadamente Meu Amor, 6. Agradeço ao cineasta Filipe Henriques pelas conversas
vencedor de um EMMY na categoria de melhor novela. Com sobre o filme e sobre cinema, pela disponibilização Discussions of genre often dwell on
10 anos de carreira como realizador e roteirista, além do de informações e material publicitário sobre o filme e,
conventional notions of the category as
longa-metragem O espinho da Rosa, possui vários curtas- especialmente, pela autorização para utilização das imagens
metragens e videoclipes. do filme neste artigo. explications of literary typologies or on
119 JUSCIELE OLIVEIRA

questions of whether “borrowed forms” (the que podem ser considerados cinema emergente, o próprio cinema, que muda muito cada vez
novel, the melodrama, the sonnet) can bear the transnacional, transcontinental, transcultural que olhamos para ele” (Bahiana, 2012,
political weight of representations designed to e intercultural e/ou cinema negro africano e/ou p. 127).
upend those forms in unanticipated contexts afrodiaspórico, em virtude das suas temáticas Por isso, os cineastas africanos querem ter
(Adesokan, 2011, p. 179). e dos seus financiamentos. Além disso, nas a liberdade de realizar filmes de todos os
fichas técnicas carregam normalmente uma gêneros cinematográficos, incluindo os clássicos
Os filmes africanos e afrodiaspóricos não dupla ou múltipla classificação, como o filme hollywoodianos, como o musical e o thriller,
se encaixam nos modelos dos gêneros (pré) luso-guineense O espinho da Rosa (2013), que prezem pela técnica cinematográfica,
estabelecidos, pois suas variações temáticas de Filipe Henriques, que é classificado instituindo novos modelos estéticos.
são muito amplas e diversificadas, mas também como drama, fantasia, horror e/ou thriller. Assim, no seu primeiro longa-metragem de
podem gerar muita polêmica porquanto estão Demonstrando, muitas vezes, a necessidade ficção, Filipe Henriques ousa não só na
fora do enquadramento dos gêneros por da junção de dois ou até mais gêneros para escolha do gênero thriller (gênero pouco usual
métodos, temas e ressonâncias, bem como os enquadramentos destes filmes, sendo nos cinemas africanos), como também por
os novos e outros contextos e espaços de que em alguns casos pode-se perceber ainda optar, como realizador e roteirista negro,
produções ficcionais. O gênero cinematográfico, uma categorização geral, ampla e temática por fazer um filme em Lisboa com elenco de
atualmente, deve possibilitar associações à desses filmes em sites e blogues especializados atrizes e atores negros e negras, marcando-o
narrativa visual, não limitar ou cristalizar o filme na área dos estudos fílmicos (como drama, como o primeiro filme negro de Portugal,
e/ou o olhar do espectador, que, “embora docuficção, etnoficção ou etnografia, ou ainda instituindo novos modelos estéticos e
possa ser estudado em suas constantes como a busca por “verdade”, pelo real). técnicos positivos, como o próprio realizador
e nas suas invariantes [...], vive numa relação Assim, os filmes de ficção de cineastas destaca:
dinâmica com a situação política, social e cultural africanos frequentemente são relacionados
(Costa, 2003, p. 98), como propõe a narrativa com a etnoficção simplesmente por serem Diziam-me: “Não existe um chefe de polícia
de Filipe Henriques, quando se inspira nas “filmes africanos” e/ou fazer relação com negro, não existe um bom advogado negro.”
histórias e memórias escutadas na sua infância elementos das culturas de seus países e Como não? Existe! Mas mesmo que não
e juventude, vividas na Guiné-Bissau, para continente de nascimento, que deveriam seguir existisse, estamos a criar um efeito que
contar a história da heroína Rosa, que se apega uma tendência contemporânea e fluida de pode ser positivo, um modelo. Há uma
à oportunidade de retornar do mundo dos que “gêneros existem e servem de código crescente necessidade de os negros se verem
mortos para realizar a sua vingança. de compreensão tanto para realizadores quanto representados no cinema de uma forma que
enaltece (Henriques, 2018).
Partindo dessa saída da caixa canônica das para nós, na sala escura. Melhor compreendê-los
classificações de gênero, emergem os filmes como algo fluido, em mutação, vivo como
“A GUINÉ-BISSAU OFERECE-ME INSPIRAÇÃO, PORTUGAL PROFISSÃO”: 120
O TEMPO DOS MORTOS E DOS VIVOS NO DRAMA DE TERROR LUSO-GUINEENSE O ESPINHO DA ROSA (2013), DE FILIPE HENRIQUES

Talvez, a escolha de fazer um casting com Isso faz com que esse gênero cinematográfico
atrizes e atores exclusivamente negros desdobre-se em variantes: drama épico ou
tenha sido orientada pela preocupação histórico, drama de época, drama de guerra,
e a responsabilidade em torno da drama romântico/melodrama, drama de crime
representatividade e da autorrepresentação, já (policial), drama do Oeste (western),
que por muito tempo só se projetou nas telas drama musical, animação dramática, dramédia
do mundo a performance do homem negro ou comédia dramática, um drama sobrenatural,
geralmente como figurante, ou num papel de drama de horror (thriller). Nesse sentido, a
boy ou de figura cômica impossibilitada de agir prevalência do drama, para Ana Maria Bahiana
ou pensar por si mesma; e os papéis atribuídos (2012), pode estar associada ao que comove
à mulher negra costumam ser secundários e sensibiliza o espectador: “Enquanto o que
e estereotipados. Via de regra, trata-se da nos faz rir é em grande parte específico e
empregada doméstica, da mãe preta ou de cultural, o que nos faz chorar e emocionar é
personagens relacionadas com a maternidade, a universal, suplantando fronteiras, idiomas
melhor amiga da protagonista branca, a mulher e peculiaridades culturais” (p. 147).
negra sensual, a escravizada, além de reproduzir Já o thriller preza por emoções, pelo suspense
e reforçar o lugar-comum da mulher negra em e terror, com o propósito de provocar o medo
posição subalternizada, localizada num lugar de no espectador, mesmo que para isto recrie
dor e sofrimento. nossos piores pesadelos. Assim, o thriller
Com relação ao gênero cinematográfico, o pode ser entendido como o modo de lidar
drama é o mais comum e utilizado no cinema, com questões perturbadoras individuais ou
pois quase todos os filmes revelam-se com coletivas, como a pedofilia, que apavora e
elementos característicos daquele: tragédia, desestabiliza crianças, adultos, famílias e a
superação, heroísmo, destino, descobertas sociedade no mundo. É por isso que no thriller
interiores, grandes questões morais (colocadas de Henriques, mesmo com medo da morte e
em forma de dilema), como o drama de Rosa, da morta-viva (Figura 2), identificamo-nos com
David Lunga e Linette, que viveram suas Rosa, com
tragédias pessoais na infância e juventude, o seu sofrimento e torcemos para que seus
relacionadas com as questões do abuso sexual assassinos sejam punidos.
Figura 2: Imagens da certeza da morte de Rosa por David.
no seio familiar.
121 JUSCIELE OLIVEIRA

Mesmo com a assustadora história narrada antagonistas: pai e policial, família e segurança cresce vendo seu pai abusar da sua irmã, e
pelo Sr. Tagma Nancassa, pai de Rosa, sobre pública, isto é, por aqueles que deveriam busca por justiça pelos outros (pois carrega
a morte de sua filha, que se tornou um protegê-la, o que torna o filme mais assustador. o peso de não ter ajudado a sua irmã) em
“Pé-de-cabra”, que são os espíritos que Demonstrando que não foi um simples crime ou vida e acaba sendo assassinado por isto –,
conseguem o direito de voltar e solucionar aparente aborto seguido de morte. o enredo encaminha-se para sua resolução e
suas demandas terrestres: “No meu país Estamos diante da presença do bárbaro, (talvez) trazer a vitória do “bem” sobre o “mal”,
(Guiné-Bissau), os Urakanes acreditam que da dor, do horror, que precisa de ser detido não necessariamente com um happy end, já
quando uma pessoa morre antes do tempo, antes que aconteça novamente... Como o que o filme lida com questões que ultrapassam
deixando problemas sérios para resolver, que acontece com a personagem Linette os limites entre vida e morte.
Deus concede uma segunda oportunidade (também morta-viva), que foi assassinada
O clímax acontece depois de David encontrar
para resolvê-los” (Trecho O espinho da Rosa, cruelmente pelo policial, por ter resolvido
o “Nenhures”, o local onde Rosa faleceu e
2013). Nesse sentido, Rosa se apega a esta adquirir matrimônio com Ney, sendo que o
tinha escondido a câmera com a filmagem que
oportunidade de retorno para conseguir policial abusava dela desde a infância
incrimina seus assassinos e há o embate com
alguém para ajudá-la a encontrar a prova e que estava sendo investigado pelo crime de
o Sr. Nancassa, que acaba sendo morto por
do seu assassinato, no qual estão envolvidos pedofilia (conforme notícias de jornais que
David com sua própria arma (Imagem 1
o seu próprio pai e o policial, que obrigaram- aparecem no filme).
da figura 3), mostra também o corpo do
na a provocar um aborto, que ocasiona sua Depois dos esclarecimentos gerais das policial, que também foi morto por David
morte aos 16 anos. trágicas histórias paralelas das três personagens (Imagem 2 da FIGURA 3), o que permite fazer
Os filmes de horror exigem medo, em sua – da morta-viva Rosa (1), que sofre abuso com que Rosa consiga partir para o mundo
sensação ampliada ao máximo, levando o sexual, engravida do próprio pai e morre por dos mortos, depois de agradecer a David
expectador a questionar e confundir a realidade, um aborto provocado pelo policial, tornando- (Imagem 3 da FIGURA 3), o qual também
mas, acima de tudo, estes precisam trazer à -se um pé-de-cabra em busca de justiça; da morre (Imagem 4 da FIGURA 3), isto é, o (auto)
tona a frustração do herói/protagonista. No morta-viva Linette (2), que recusa o pedido sacrifício do herói. No entanto, a morte
caso do filme de Henriques, somos tomados de casamento do seu estuprador, tenta se casar, também vai lhe conceder uma oportunidade
pela agonia, desespero e medo da heroína e por isto é assassinada pelo policial, e todas para resolver seus traumas familiares do
Rosa na sua busca por justiça, que só se as noites percorre o mesmo caminho, do passado. David torna-se um “pé-de-cabra”.
torna possível depois da terceira tentativa, local onde foi assassinada para a casa onde
com a ajuda de David, já os advogados vivia com seu noivo, e lá fica à espera dele a
anteriores foram assassinados pelos seus noite toda; e do vivo-morto David (3), que
“A GUINÉ-BISSAU OFERECE-ME INSPIRAÇÃO, PORTUGAL PROFISSÃO”: 122
O TEMPO DOS MORTOS E DOS VIVOS NO DRAMA DE TERROR LUSO-GUINEENSE O ESPINHO DA ROSA (2013), DE FILIPE HENRIQUES

Com uma música lenta e uma melodia que nos


comove, a história de Linette tem seu happy
end no plano dos mortos, já que seu noivo, Ney,
depois de viver com a dor de não saber o que
aconteceu com sua noiva (o corpo dela só é
encontrado por Júlia Monteiro, amiga de David),
possivelmente por ter sido abandonado no
altar, passa os dias a beber por desgosto.
Então, comete suicídio e (re)encontra-se com
sua amada (figura 4).

Cabe ressaltar ainda uma característica


fundamental dos filmes de terror, que é a
escuridão, com o objetivo de causar ambiguidade
e imprecisão no olhar do espectador, e, neste
filme, assim como o tempo ou a paragem do
tempo, para marcar o tempo dos mortos no
espaço dos vivos, serve para marcar a
escuridão, a noite como o momento mais
marcante dos mortos na tela, o que pode ser
visível nas imagens dos mortos selecionadas
neste texto. Como se pode perceber, o filme
joga a todo o instante com o tempo dos vivos e
o tempo dos mortos, seja através da iluminação,
da trilha sonora, da montagem,
mas especialmente pela marcação da presença
de relógios (FIGURA 5), que param o tempo
e avisam, aos espectadores mais atentos, sobre a
presença “deles” – os mortos – na narrativa.

figura 3: Mortes de Sr. Nancassa, policial e David e a partida Figura 4: Reencontro dos mortos.
de Rosa.
123 JUSCIELE OLIVEIRA

O tempo dos mortos e dos vivos estruturas temporais: (1) o tempo condensado
– é a maneira habitual de o cinema utilizar o
É na montagem que se percebem os três tempos
tempo; (2) o tempo respeitado – poucos filmes
do cinema: “o tempo da projeção (a duração do
tentaram respeitar o desenrolar temporal
filme), o tempo da ação (a duração diegética
integralmente apresentando na tela com
da história contada) e o tempo da percepção (a
uma ação cuja duração fosse idêntica à do
impressão de duração intuitivamente sentida
próprio filme; (3) tempo abolido – os mais
pelo espectador, eminentemente arbitrária
impressionantes são aqueles que têm um caráter
e subjetiva)” (Martin, 2003, pp. 213-214, grifos
onírico, fantasmático ou poético; (4) tempo
do autor). Isto é, tempo fílmico, tempo real e
revertido – baseado no retorno ao passado,
tempo da narrativa. O tempo do filme não é o
ou flashback, é seguramente o procedimento
da realidade. O tempo da realidade somente
de interpretação do tempo mais interessante
é possível de ser concretizado quando o
do ponto de vista da narrativa cinematográfica
espectador está diante da tela. Há ainda o
(Martin, 2003, pp. 221-228).
“tempo real” relacionado com o momento
das filmagens, que pode ser vinculado com o Nesse sentido, no filme O espinho da Rosa, o
tempo presente, mas que para o espectador tempo da narrativa parece ser abolido, ambíguo,
será o tempo passado e para o cineasta ou por se tratar de um drama de horror/thriller, que
montador será o tempo do futuro: o tempo da retrata histórias paralelas de mortos-vivos e vivos
experiência do espectador. Nesse sentido, o que parecem mortos, notadamente a busca da
tempo no cinema é relativo e, neste trabalho, morta-viva Rosa pela punição dos seus algozes,
interessa tratar do tempo no/do filme. Importa, criando um duplo espaço subjetivo, que pode até
assim, debater o tempo fictício, que pode indicar devaneio do protagonista David Lunga, ao
possuir pedaços e relações com o tempo real descobrir que a mulher com a qual se relacionou
relacionados com o passado, (com a morte) com fisicamente e sexualmente está morta. Assim,
o espectador, ator ou cineasta. Com relação ao o cineasta e roteirista Filipe Henriques arrisca-
tempo transcorrido (a duração dos filmes), o se esteticamente ao utilizar um relógio – um
filme O espinho da Rosa possui 97 minutos. marcador temporal cronológico do tempo dos
vivos – para indicar o tempo, a presença “física”
Assim, o tempo da narrativa serve para localizar
da morta-viva na narrativa cinematográfica e que
mais ou menos a ação e possui diversas
Figura 5: Relógios que marcam a presença dos “Pé-de-cabra”
também será o indicador da transformação de
na narrativa.
“A GUINÉ-BISSAU OFERECE-ME INSPIRAÇÃO, PORTUGAL PROFISSÃO”: 124
O TEMPO DOS MORTOS E DOS VIVOS NO DRAMA DE TERROR LUSO-GUINEENSE O ESPINHO DA ROSA (2013), DE FILIPE HENRIQUES

David também em um morto-vivo. É como se o de ser tratado), de negociarem com as pressões Andrade-Watkins, C. (1995). Le cinema africain
tempo cronológico parasse, para que o tempo econômicas, estéticas e ideológicas, que exigem lusophone: perspectives historiques et
dos vivos e dos mortos se cruzem. A interrupção uma fórmula de sucesso e menores riscos contemporaines de 1969 à 1993. Ecran d’Afrique,
é a autorização de Rosa-morta para a sua econômicos. n.º 13-14, 3.º/4.º trimestre, 109-124.
materialização na narrativa como Rosa-viva ou Dessa maneira, o realizador apresenta Arenas, F. (2011). Lusophone Africa on screen:
Rosa-“zumbi” (FIGURA 2). a diversidade do fazer cinematográfico After utopia and before the end of hope. In
Assim, Filipe Henriques inspira-se no seu país de contemporâneo, por meio de um estilo pessoal, Lusophone Africa: beyond independence (pp. 103-
nascimento, nas suas memórias, nas histórias na escolha por planos e enquadramentos 157). Minneapolis, EUA: University of Minnesota
orais da cultura da Guiné-Bissau sobre “pé- próximos, iluminação escura, por vezes Press.
de-cabra”, a relação dos mortos com os vivos, sombria, montagem alternada, com atores e
_______. (2019). África lusófona: além da
para construir um filme esteticamente sombrio, atrizes negros e negras, em um cenário urbano,
independência. Trad. Cristiano Mazzei. São Paulo,
escuro e sobrenatural para tratar de abuso sexual falado em português de Portugal, com um final
Brasil: Edusp.
e pedofilia, um tema comum e que assusta aberto, para executar o mistério do thriller O
Bahiana, A. M. (2012). Como ver um filme. Rio de
espectadores em qualquer lugar do planeta, espinho da Rosa, exercendo a criatividade e
Janeiro, Brasil: Nova Fronteira.
para narrar o drama de horror de Rosa, que a renovação dos cinemas contemporâneos,
morre sem resolver seus problemas, mas que mostrando a qualidade técnica, a multiplicidade Bamba, M. (2010). O cinema na África: dos contos
a morte não é empecilho para a resolução da estética, o colorido e a beleza dos homens ancestrais às mistificações cinematográficas.
sua busca por justiça. Desse modo, munida de negros e mulheres negras do mundo (seja na In Andréa França & Denilson Lopes, Cinema,
coragem, ousadia, sensualidade e resistência, África, na Europa ou na América), voltados globalização e interculturalidade (pp. 267-280).
Rosa ultrapassa a barreira da morte para para espectadores sedentos por novidades. Chapecó, SC: Argos.
buscar sua vingança. É também ultrapassando Sem olvidar, que são cineastas que convivem
Barlet, O. (2000). Cinémas lusophones: le gâchis
barreiras que Henriques habilmente se adapta com problemas antigos de financiamento
et l’espoir. In Africultures: “Afriques lusophones”, n.º
às regras do jogo do mercado e realiza um e distribuição, todavia, não deixam de
26, mars 2000, Paris, França: Edtions L’Harmattan,
filme de terror com elementos da cultura local sonhar, de inspirar, criar através do seu fazer
18-23.
e global, como um indivíduo, que é reflexo dos cinematográfico.
Costa, A. (2003). Compreender o cinema. Trad.
seus contextos, de suas escolhas estéticas e Referências Bibliográficas
Nelson Moulin Louzada, 3.ª ed., São Paulo, Brasil:
relações sociais e temporais, como um agente
Adesokan, A. (2011). Postcolonial artists and Globo.
que demonstra o poder dos cineastas africanos,
global aesthetics. Indiana, USA: Indiana University
afrodiaspóricos, afro-português (no caso em Cunha, P., & Laranjeiro, C. (2016). Guiné-Bissau: do
Press.
questão “luso-guineense”, como o cineasta gosta cinema de Estado ao cinema fora do Estado. In
125 JUSCIELE OLIVEIRA

Rebeca – Revista Brasileira de Estudos de Cinema África: um continente no cinema (pp. 107-141). São Tavares, M. (2013). Cinema africano: um possível,
e Audiovisual / Sociedade Brasileira de Estudos Paulo, Brasil: Editora Unifesp. e necessário, olhar. Revista Contemporânea/
de Cinema e Audiovisual – Socine, 5(2), Jul./Dez., POSCOM, 11(3), set-dez, 464-470.
_______. (2016). O drama da descolonização
56-77. em imagens em movimento – a propôs do _______. (2015). Cinema: tempos e movimentos. In
Diakhaté, L. (2011). O documentário em África e “nascimento” dos cinemas luso-africanos. Revista Walter Rossa, & Margarida Calafate Ribeiro (org.),
sua diáspora: uma emancipação pela imagem. In de Estudos linguísticos e literários, 53, Jan-Jul., Patrimónios de Influência Portuguesa: modos de
Manthia Diawara, & Lydie Diakhaté (orgs.), Cinema 177-221, Salvador, Brasil. olhar (pp. 351-375). Coimbra, Portugal: Imprensa
africano: novas estéticas e políticas (pp. 83-125). da Universidade de Coimbra e Fundação
Henriques, Filipe (dir.). O espinho da Rosa (longa-
Lisboa, Portugal: Sextante Editora. Calouste Gulbenkian.
metragem). Roteiro e direção de Filipe Henriques.
Diawara, M. (1992). African cinema: politics and Guiné-Bissau, Portugal: Duxilin Filmes, Plural Ukadike, N. F. (1994). Black African cinema. Los
culture. Bloomington, EUA: Indiana University Entertainment, 2013. Angeles, USA: University of California Press.
Pess. Henriques, J. G. (2018). Há um cinema negro _______. (2002). Questioning african cinema:
Embaló, F. (2015). O cinema da Guiné-Bissau. In em Portugal? Público. Reportagem realizada conversations with filmmakers. Minneapolis, EUA:
Miguel de Barros (Cood.), Flora Gomes: o cineasta em 13 de abril de 2018. Disponível em: <https:// University of Minnesota Press.
visionário (pp. 19-23). Bissau, Guiné-Bissau: www.publico.pt/2018/04/13/culturaipsilon/ Vieyra, P. S. (1975). Le cinéma africain: des origines
Corubal. noticia/temos-esta-sede-de-nos-ver-como- à 1973, Tome I, Paris, França: Editions Présence
protagonistas-e-autores-das-nossas-
Falconi, J., & Krakowska, K. (2017). Panorama do Africaine.
historias-1809502>. Acessado em: 20 out 2019.
cinema e do audiovisual em São Tomé e Príncipe.
Revista Mulemba, 9(17), jul/dez, 177-193. Rio de Laranjeiro, C. (2016). Quantas nações somos
Janeiro, Brasil: UFRJ. capazes de imaginar? Comunicação e Sociedade,
vol. 29, 79-92.
Fendler, U. (2017). O cinema da Guiné-Bissau.
Revista Mulemba, 9(17), jul/dez, 147-179. Rio de Martin, M. (2003). A linguagem cinematográfica.
Janeiro, Brasil: UFRJ. Disponível em: <https:// Trad. Paulo Neves. São Paulo, Brasil: Brasiliense.
revistas.ufrj.br/index.php/mulemba/article/ Oliveira, J. (2018). “Precisamos vestirmo-nos com
view/14605/16003>. Acessado em: 30 jul 2019. a luz negra”: uma análise autoral nos cinemas
Ferreira, C. O. (2014). As produções transnacionais africanos – o caso Flora Gomes (Tese). Centro de
luso-africanas. In Carolin Overhoff Ferreira (org), Investigação em Artes e Cultura, da Universidade
do Algarve – CIAC-UALG, Faro, Portugal.
FILIPE HENRIQUES
ENTREVISTADORA: MICHELLE SALES
ENTREVISTADO: FILIPE HENRIQUES

Michelle Sales Colombo. 13 de janeiro de 2020. FH Sofre, com certeza. Quando fiz o meu filme,
Entrevista com Filipe Henriques. Mas ias falar perguntaram-me porque é que não tem um ator
sobre o projeto. Isso não precisa de ser transcrito, branco no meu filme. E a minha resposta é: as
era só para ouvir o que ias comentar sobre o meu pessoas consideram isso como sendo cinema
projeto. negro; é verdade, é cinema negro, mas é cinema
feito para qualquer sociedade, para qualquer
Filipe Henriques Eu acho que é interessante.
camada, não só para os negros. Em Portugal,
Nós agradecemos imenso que haja interesse em
fazem-se por volta de setenta filmes por ano, e
trabalhos feitos por afro-descendentes e pelo
a maior parte, incluindo as curtas-metragens,
cinema “negro”, embora o termo não (…) Aquilo
noventa por cento dos filmes, se calhar, noventa
que eu faço, não o considero como sendo cinema
e nove por cento dos filmes não incluem um ator
negro.
negro, e nunca foi considerado cinema branco,
MS Porque não consideras o teu trabalho cinema ou qualquer coisa do género. Para mim, não faz
negro? Primeiro, não gostas do conceito. É isso? sentido nenhum perguntarem porquê que eu não
FH Não gosto muito do conceito porque limita tenho um ator branco no filme.
o trabalho a uma comunidade, aos negros. As MS Não faz sentido?
pessoas veem como se fosse para os negros,
FH De todo.
enquanto aquilo que nós fazemos contém os
negros, sim, mas é para ser visto em qualquer MS E quando tu olhas para esses setenta filmes
lado. que não têm nenhum ator negro, primeiro
enquanto português e cineasta, o que tu sentes?
MS E achas que esse conceito, por exemplo,
em Portugal, sofre alguma resistência ou FH Eu estou a viver em Portugal, embora, se
preconceito? Como é que tu sentes isso? não me engano, dez por cento sejam africanos,
luso-africanos, descendentes de países africanos
FILIPE HENRIQUES 128

que já estão cá há muito tempo. Alguns, inclusive, tudo o que é prejudicial. O que é, definitivamente, desenvolver, crescer e fazer aquilo que eu
nem conhecem o país deles, nunca lá estiveram. contraproducente. Mas também não posso hoje faço, que é realizar. Eu não tenho nada a
Então, já são portugueses. A cultura portuguesa, pender para um lado ou criticar porque não se contrapor e odeio criar essa separação, porque
aquilo que retratam nos filmes, está relacionada faz com atores negros. Para mim, as histórias não vejo essa separação. Eu nunca fui tratado
com a vivência portuguesa, portanto, eles criam que eles contam são histórias deles, nós temos de forma diferente, fui sempre tratado com o
o cinema com aquilo de que eles têm maior de contar a nossa história. Até chegar a uma maior respeito em todos os sentidos possíveis,
conhecimento, naturalmente. Por exemplo, o altura em que haverá uma fusão. Até porque nós todos. Todas as oportunidades que tive, deram-
Brasil que está muito mais diversificado… precisamos crescer e deixar permanentemente me todo o poder criativo de realizar os meus
de mendigar oportunidades. trabalhos. Tenho sim, a gratidão, porque foi
fundamental para o meu desenvolvimento
MS Achas que é possível?
pessoal e profissional. Portanto, quando
FH Há várias histórias que não foram contadas começam a falar dos negros e dos brancos, falam
em que pode haver essa fusão, essa comunhão. de uma diferença que, a mim, faz confusão.
Só que, quando se retrata aquilo que denigre Mas existe, não é que não exista. Agora, a razão
a história de Portugal, a coisa complica-se no de quase não existirem negros no cinema
sentido de poder contar essa história. português, como eu já tinha mencionado, é o
MS Sim. fato de os portugueses contarem a história deles,
que eles conhecem, e poucas dessas histórias
FH É um caminho longo, um caminho que, para
incluem os negros. Para haver uma maior
MS Agora, cada vez menos. Não sei se já é um mim, eu acho que a nós, os negros, não convém
integração, acho que os negros têm de começar
exemplo, acho que não é mais. fomentar a separação. Nem a nós, nem a eles.
a criar as suas próprias oportunidades. Só que
Aliás, nós e eles não devia existir. Infelizmente
FH Aquilo que se conta no cinema português nós não nos identificamos, há pouca união entre
existe.
está muito mais em relação àquilo que nós e isso prejudica-nos. O facto de ficarmos
Portugal tem de conhecimento sobre a cultura MS Mas a separação não foi criada exatamente à espera que nos deem oportunidade, o que é
portuguesa, da vivência portuguesa. Portanto, agora. natural que aconteça, porque ainda não criamos
é natural que eles contem a história deles. FH Todas as minhas oportunidades, até então, um estrutura sólida que nos impulsiona, já é um
Infelizmente para os negros, grande parte nasceram com os portugueses. Toda a minha obstáculo a nossa evolução.
dos filmes que se faz em Portugal, quando vida profissional, de uma maneira ou outra, Imagina que eu chego numa sala de aula
incluem atores negros, está relacionada com a está ligada ao portugueses; deram-me todas as e encontro lá com (…) Qual é o teu nome?
escravatura, gangsters, maltas do bairro, oportunidades possíveis para que eu pudesse Desculpa.
129 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES

MS Michelle Sales. que eu me lembro. O meu pai tinha por hábito bens.” Embarquei com a minha mãe no barco, e
fazer projecções de filmes ao ar livre, no quintal o meu cão ficou à deriva no porto. Fiz dois dias
FH Por exemplo, suponhamos que a Michelle
e os vizinhos vinham de todos os cantos, aquilo no mar, a dormir numa palete, sem conseguir
chega numa sala de aula, primeiro dia de aulas
fascinava-me. Víamos o Bruce Lee, Sandokan, comer, porque tudo o que se comia, vomitava-
e encontra portugueses de um lado e brasileiros
James Bond, Trinitá e Bud Spencer e pouco mais. se logo a seguir. Quando eu me levantava da
de outro; é natural que o teu primeiro impulso
O cinema sempre me fascinou. Eu ainda tenho o palete, era uma tontura horrível, tudo às voltas,
seja juntar-se aos brasileiros, onde te sentes
hábito de ver, pelo menos, um filme por dia. Isso portanto, fiquei deitado na palete aqueles dois
à vontade, confortável. A história é igual.
quase é inevitável. No entanto, creio que a paixão dias. Fomos para Cabo Verde. De lá apanhámos
Não podemos ficar à espera que nos deem
veio do meu pai, que também vive o cinema. Aos o avião e viemos para Lisboa. Fiz o décimo
oportunidade. Nós temos de criar as nossas
quinze anos de idade, se não me engano, lembro- segundo ano, liguei ao meu pai, e disse: “Pai, vou
próprias oportunidades, e crescer nesse sentido
me de que o meu pai me perguntou o que eu para a faculdade. Vou fazer cinema. Pagas-me o
para que, no futuro próximo, chegar a um ponto
queria ser, e eu respondi prontamente que queria curso?” E ele disse: “Vais mesmo fazer cinema?”
em que haja uma maior inclusão, onde se pode
ser cineasta, que queria fazer cinema. Ele apenas Questionou porque, apesar da oportunidade,
considerar uma sociedade mista, em que as
sorriu e passou-me a mão pela cabeça. Quando fazer cinema em África era praticamente uma
pessoas começam a ver que realmente nós
cheguei a Portugal… utopia. É claro que nós tínhamos o Flora Gomes,
somos um só núcleo de sociedade.
que se tinha vingado como um realizador. No
MS Quando foi isso?
MS Multirracial. entanto, era um sonho puro de uma realidade
FH Em 98. Eu vim da Guiné devido à guerra civil
FH Multirracial. Infelizmente em Portugal, ainda bastante nublada. Aliás, o meu pai queria que
que aconteceu no país. Houve uma guerra civil e
há uma distinção. Ainda existe, mas muito menos eu fizesse arquitetura no Brasil, inclusive tinha
nós fomos obrigados a abandonar o país, como
do que há um tempo, penso eu. bolsa para o efeito. Mas o meu sonho sempre
refugiados. Passei dois dias no mar num barco de foi fazer cinema. E a Universidade Lusófona
MS Está bem. Eu não ia começar por aí, pela guerra. proporcionou-me uma sólida base para a
questão mais política. Acho que podemos voltar
MS Vieste com a família? concretização desse sonho. Fui instruído a
a essa questão depois de uma outra forma. Eu
promover essa técnica para contar historias,
queria que começasses contando um pouco FH Vim com a minha mãe. O meu pai levou-nos
que eu tanto estimo. Dos quatro anos que fiz,
da tua trajetória. Como é que foi o teu percurso ao porto, conseguiu fazer com que a minha mãe
no início do curso, éramos quarenta e cinco
profissional, a tua formação, até chegar numa e eu passássemos. Antes de entrar no barco,
alunos; no último ano do curso, restaram apenas
escola de cinema? Primeiro, essa parte de olhámos para trás para ver se o meu pai vinha,
nove alunos e, dos nove, acho que sou o único
formação mesmo. mas ele fechou o portão que dava acesso ao
que ainda tenta fazer alguma coisa na área do
cais, e disse: “Agora, tu és o homem da família.
FH Eu nasci em Bissau, Guiné-Bissau, em 1979. cinema, ou que ainda pratica a profissão. Do
Eu vou ficar aqui para tomar conta dos nossos
E a minha ligação com o cinema existe desde
FILIPE HENRIQUES 130

curso fui diretamente para a antiga NBP, agora ele agarrava no carro, ele podia circular, e ia MS Esse eu não consegui ver.
Plural Entertainment/TVI. Na Plural, estive buscar água para as pessoas que ficavam FH Por acaso, está na internet. O filme teve uma
sete anos efectivo, onde fiz quinze novelas e no porto, que não podiam embarcar, porque boa aceitação a nível internacional. Infelizmente,
dezassete telefilmes como sound designer. Ainda primeiramente só podiam embarcar as famílias ainda estava no final do curso, não tinha
hoje colaboro com a produtora, ocasionalmente. portuguesas. E algumas pessoas conseguiram, os condições financeiras para sustentar as despesas
portugueses conseguiram levar mais do que só
MS Então, a tua especialização na faculdade foi de envios para festivais. O filme ainda ganhou
os portugueses. Sim, ele ficou.
em som? dois prémios naqueles para os quais consegui
MS E depois veio para Portugal, ou não? enviar, um em Israel, e um cá em Portugal, onde
FH Não apenas. Em outras áreas também. Som,
Conseguiu reunir a família aqui de novo? ganhou também de melhor filme. Não consegui
imagem, realização e escrita são as quatro áreas
enviar para mais lado nenhum porque não tinha
em que me especializei . São as áreas que exerço. FH Ele veio um ano depois da guerra. Esteve
condições financeiras. Em 2007, voltei a fazer
connosco quarenta e cinco dias e regressou com
outra curta-metragem com o apoio dos meus
a minha mãe, apesar da instabilidade política no
colegas, com o apoio da própria faculdade, com
país.
o apoio da própria Plural/TVI, onde passei grande
MS Pronto, depois do curso, entraste na parte da minha experiência dedicado à televisão.
Plural/TVI. Essa foi a tua primeira experiência
MS Achas que a linguagem da televisão é forte no
profissional.
teu trabalho? Como achas que essa passagem
FH Pode-se dizer que sim. Quer dizer, tinha pela televisão interferiu no teu processo de
feito um estágio na Tobis, no filme intitulado criação? Interferiu no bom sentido. Ou seja,
“O Filme da Treta”, de José Sacramento. Salvo como vês essa tua ligação com a linguagem da
erro, a primeira longa em Portugal feito em HD, televisão? Mesmo o encontro com a linguagem
MS Então, o teu pai continuou na Guiné? Ele lutou em 2006. Entretanto, eu já tinha Produzido e das séries, das telenovelas.
na guerra? Realizado a minha primeira curta-metragem,
FH A linguagem televisiva é completamente
fora do âmbito académico. Porque tornou-
FH O meu pai continuou na Guiné. Não lutou diferente da linguagem cinematográfica, como
se imperativo terminar a faculdade, tendo
na guerra, mas ficou para ajudar, porque ele nós já sabemos. Mas o conhecimento que eu
na bagagem pelo menos uma obra como
tinha sido diretor da Cruz Vermelha da Guiné- adquiri a fazer televisão influencia bastante
realizador. Então, pedi apoio à própria faculdade,
Bissau. Então, ele tinha esse interesse, essa a forma como faço cinema, porque tive a
extracurricular, e fiz um filme à parte, uma
preocupação em poder ajudar as pessoas que oportunidade de melhorar conhecimento de
curta-metragem chamada “Vejo-te Quando Lá
estavam lá no porto, que inclusive não tinham quase todas as áreas possíveis relacionadas
Chegares”.
nem água para beber, não tinham nada. Então,
131 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES

com a televisão e cinema. E, conhecendo MS Eu queria entender os caminhos disso e o negro conceituado em Portugal.” E eu digo:
melhor essas áreas, para mim, pensar a porquê dessa escolha. Eu diria que há, não um “Mesmo que não haja…”
realização, o horizonte alarga-se. Porque preconceito, mas um caminho tortuoso rumo MS “… no meu filme…”
permite-me ter a visão de como é que eu ao cinema comercial em Portugal, inclusive,
FH “… no meu filme há e eu estou a criar um
hei de resolver uma serie de questões. Por digamos, para o cinema do Pedro Costa, e de
modelo, ou estou a criar uma personagem que
exemplo, como é que o som pode resolver uma outros grandes nomes. Eles não conseguem
possa servir de modelo para vários outros negros
adversidade que a imagem não consegue, e entrar nesse circuito. Como é que pensas esses
que tenham alguma visão.” Se existe, também
vice-versa. Então, facilita-me bastante na espaços comerciais e fazes o teu cinema voltado
eu posso ser. “Também não existem chefes de
realização a conjugação dessas áreas, do para isso?
polícia…”, disseram. Por acaso, existem, existiam
conhecimento dessas áreas. Faz com que a FH O financiamento que há em Portugal na altura. Eu estou a criar precedentes, estou a
minha capacidade de realização, ou de reação dirige-se mais para o chamado cinema de arte, criar imagens. Os Estados Unidos da América
perante situações, ou condições que me são é verdade. Porquê? Porque o maior interesse é conquistaram o mundo inteiro com o cinema,
impostas no momento da realização (…) que os filmes sejam vistos em festivais de fazendo acreditar que era a maior nação, e
Muitas vezes, temos dificuldades quando cinema, provavelmente a maior plataforma, acabou por ser a maior nação. Toda a cultura,
estamos a realizar, e a conjugação desses salvo erro, de divulgação do cinema português. hoje em dia, tem parcelas de cultura americana,
conhecimentos faz com que eu tenha uma Eu não quero que os meus filmes sejam vistos é inevitável. A influência do cinema é tremenda.
melhor capacidade de reação durante apenas por um grupo restrito de intelectuais e O cinema de arte é mais para um grupo restrito
uma imposição, uma complicação, um seja avaliado apenas por esse grupo restrito de de pessoas, de intelectuais, e eu não pretendo
problema qualquer que esteja relacionado intelectuais. Isto é, porque eu pretendo passar que aquilo que eu faço seja visto apenas dessa
com a realização e não só. Sim, fez com que não só a minha visão, mas sobretudo maneira. Eu pretendo que aquilo que eu faça seja
o espectro fosse maior no que diz respeito à mensagens que possam, de alguma forma, visto pelo maior número de pessoas possível, e
realização. sensibilizar o maior número de pessoas possível. que possa criar uma sequência, porque nós não
MS Tu, dentre os realizadores que eu tenho O meu filme, O Espinho da Rosa, é o primeiro temos indústria em Portugal. O Brasil tem; é um
entrevistado, és aquele que tem a proposta mais filme negro feito em Portugal. Embora, país enorme. São trezentos e vinte milhões?
comercial, digamos. És aquele que mais tem como eu já tenha especificado, não o veja
MS Não. Duzentos e vinte.
tentado dialogar, não apenas com a linguagem como sendo… esse termo do cinema negro,
da TV, mas com um tipo de cinema que possa temos de olhar melhor isto. E eles, quando FH É um país enorme, com inúmeras salas, e um
chegar à sala comercial e ter grande público. estavam reunidos a ver o filme, a maior parte mercado funcional.
dos produtores com quem eu estive em reunião,
FH De nada nos serve um filme que não foi visto. MS Ou tínhamos, não é? Não sei mais se tem
eles perguntavam: “Mas não existe um advogado
E quanto mais, melhor. acontecido.
FILIPE HENRIQUES 132

FH Penso que sim. Os Estados Unidos da FH O Espinho da Rosa tem uma história financiou o filme. Eu paguei a alimentação,
América tem proporcionado uma certa lindíssima. as cassetes, uma série de coisas e fiz a minha
visibilidade as produções brasileiras. A Netflix curta-metragem, que teve grande aceitação
MS Financiamento, equipa, constituição de
está cheia de filmes brasileiros, mas não na altura, sobretudo na Universidade. O tempo
equipa, o casting….
há um único filme português na Netflix, nós passou, não consegui fazer O Espinho da Rosa.
FH O Espinho da Rosa foi escrito no último ano
temos um mercado reduzido. Por essa razão, Então, fui a várias produtoras e não consegui
do curso na faculdade, 2004/2005. No último
aqueles que são financiados querem que nenhum desses produtores fizesse o meu
ano do curso, os alunos tinham o direito de
continuar a ser financiados, por esse grupo filme. Apresentei o filme a vários produtores, e
escolher qual guião seria filmado para o final
restrito. No entanto, o que se pretende, os produtores diziam: “Isto é excelente, vem cá
do curso. Estive a investir o último ano todo a
para os que fazem cinema independente, ter connosco e falamos sobre o assunto.” Eu ia
preparar o guião, porque tinha de fazer o filme,
é que haja uma plataforma que possa retribuir lá ter com eles, abriam-me a porta e ficavam
não sei como. Então, escrevi o guião e a turma
para que mais pessoas sejam financiadas e que automaticamente cépticos.
inteira escolheu, por unanimidade, nem sequer
mais pessoas possam contar histórias, não só MS Mas porquê?
discutiu. Este é o filme que tem de ser feito,
aquelas histórias que são contadas por
acabou, não havia discussão. Chegámos às FH Não sei. Não estavam à espera que fosse…
um grupo restrito e que só aquelas pessoas
aulas, e o professor levanta-se e diz para a
entendem. Há partes do cinema de arte que MS Um realizador negro.
turma inteira: “Não quero esse filme. Eu é que
só algumas pessoas entendem, estou a ser FH Negro. E eles perguntavam: “Mas tu sabes o
mando e digo que não quero, quero outro
sincero. Noventa por cento do público olha que é realizar? Realizar não é uma coisa sem mais
filme”. Optou por um outro guião que nem
para aquilo e “ok, o que é que eu estou aqui a nem menos. Não queres dar-nos o guião? Dá-
sequer tinha sido escrito, e tinha de ser realizado
ver?” Há um esforço e, às vezes, acredito que até nos o guião e tu ficas como argumentista.” Nem
por um outro colega, a escolha dele. A turma
os críticos chegam a dar nota alta porque não pensar, eu tenho de realizar o filme. Há outros
cedeu, ninguém disse “ai” nem “ui”. Eu, como
entenderam. senhores que me disseram de partida: “Vamos
não sou de explosão, pensei: “Isto quer dizer
MS Porque se tivessem entendido não dariam. para Cuba, fazemos isto em Cuba…”, eu chegava
algo.” Ok, olho para a frente. No tempo que levou
(risos) lá e…
para o outro guião ser escrito, eu escrevi o
FH Não dariam.(risos) Vejo-te Quando Lá Chegares, que é o meu outro MS Foste a Cuba?
filme, a minha curta-metragem. E propus à
MS É possível. FH Não. O discurso mudava sempre, quando me
Universidade, que deliberadamente cedeu o viam.
MS Eu ia pedir-te, voltando ao O Espinho da Rosa, material técnico, facilitando toda a logística
para contares sobre o processo de produção. MS Produtores portugueses?
necessária para a concepção de um projecto
cinematográfico. Liguei para o meu pai, ele
133 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES

FH Produtores portugueses. Então, fiz um em termos logísticos e materiais técnicos. E em


percurso na Plural, fui fazer as novelas. dezasseis dias, filmamos um filme que até então
Em 2011, surgiu a oportunidade de eu ir para parecia impossível, a fazer quatro a cinco cenas
Inglaterra viver. E pensei: já tinha feito novelas, por dia.
doze ou treze na altura, e vários telefilmes. MS E o casting? Como foram escolhidos os atores
Já fiz televisão suficiente, pelo menos por e as atrizes? Já tinhas a ideia pré-concebida de
agora. O cinema é aquilo que me fascina. quem seriam?
É um outro mundo. O mundo onde eu me
FH Já tinha ideia. Porquê? Porque desde 2008,
perco. A outra dimensão, aquilo que me envolve
eu já me reunia com os atores, já ensaiávamos, já
completamente. Preciso de voltar ao cinema, MS E foi a própria Plural que distribuiu o filme?
estávamos a tentar fazer o filme, juntos.
tenho de voltar ao cinema, mas como volto ao FH Infelizmente para mim, a Plural não
cinema não tendo condições nenhumas? MS Por isso conseguiste fazer tão rápido esteve envolvida na distribuição do filme.
Voltei à carga de produtores, não encontrei também. A Plural apoiou-me, o filme estava feito e o
produtor nenhum. Então, na Plural, soube de FH Por isso conseguimos fazer tão rápido, resto ficou ao meu cargo, tudo, o que
um produtor excecional, Raul Soares, que estava também. Já tínhamos ensaiado, já estávamos é péssimo.
na transição entre as fazes do projecto, no à procura de condições financeiras para poder MS E tiveste algum apoio para a distribuição?
período de contenção. fazer o filme. Fomos a todos os cantos possíveis,
FH Não tive apoio para nada. Tive apoio na
MS Isto falando da troika? Em 2011… inclusive com os atores. Andávamos de produtora
altura do presidente interino da Guiné-Bissau,
em produtora para ver se conseguíamos fazer o
FH O ano da troika. Então, havia pessoas que Manuel Serifo Nhamadjo para a finalização
filme, ou obter qualquer apoio financeiro. Isso
estavam paradas. Fui ter com Raul Soares e do filme. Havia custos incontornáveis. O filme
foi em 2008, só conseguimos fazer em 2012. Os
apresentei-lhe o projecto. Ele analisou, e no chegou a custar sessenta e cinco mil euros.
atores já estavam praticamente cientes daquilo
dia seguinte ligou-me a comunicar a grande Quase todo esse dinheiro saiu do meu bolso,
que tínhamos de fazer, foi só um bocado reviver.
notícia de que estava interessado em produzir e do Presidente interino da Guiné-Bissau,
O que acabou por acontecer, nas próximas duas
o filme. Sento um produtor respeitado, reuniu que teve o conhecimento do projecto e das
semanas que se seguirem antes da rodagem.
uma equipa de grandes profissionais num dificuldades face as despesas de pós-produção
Filmámos em dezasseis dias o filme, porque era
período record, para fazer o filme que eu e, consequentemente, os festivais internacionais
aquilo que nós tínhamos. O filme estreou em
tanto almejei. À vista disso, dirigi-me à de cinema.
Angola, no festival Internacional de Cinema de
direcção da Plural e pedi-lhes apoio, como
Luanda, o FIC Luanda 2013. MS O filme foi exibido na Guiné?
profissional da casa. Concedido. Deram-me tudo
o que eu precisava para o filme,
FILIPE HENRIQUES 134

FH O filme foi exibido na Guiné, em Bissau, MS Olha, essa seleção do teu filme para o Pan Berlim, de melhor filme, e Berlinale tinha de ser
primeiramente a um grupo restrito de pessoas African Film Festival. Quando tu dizes que não premier. Toronto a mesma situação. O filme já
que estavam ligadas à presidência e não só, queres o teu cinema associado ao cinema negro, tinha sido exibido, no Toronto black film festival,
Instâncias altas e pessoas que foram convidadas. mas, ao mesmo tempo, os espaços de circulação inclusive com o Spike Lee a apresentar o filme
Aproveito a oportunidade para reforçar o também vão condicionando os filmes, nós dele. O Spike Lee foi o cabeça de cartaz, e, logo
agradecimento ao Sr. Presidente Manuel Serifo sabemos disso. em seguida, vinha O Espinho da Rosa, como a
Nhamadjo, por ter tido a amabilidade de apoiar FH Infelizmente por um lado. Por outro, é uma segunda atração do evento. O que é genial. Estar
o projecto. O filme estreia em Angola com o Zezé excelente plataforma de divulgação para os selecionado para um festival, aliás dois festivais,
Gamboa a abrir a sessão, também em estreia. cineastas negros. com o Spike Lee é simplesmente genial.
“O Grande Kilapy”, protagonizado por Lázaro
MS Agora, depois de o filme já ter sido exibido MS (risos) É fixe isso.
Ramos, produzido por um dos meus professores
e circulado em festivais, como avalias essa FH É fixe. Mais do que fixe, é gratificante.
da universidade, que haviam rejeitado o
apropriação do teu filme pela imprensa, Concorrer, por exemplo, com um filme como
guião. Foi cabeça de cartaz do festival. Atrizes
pelos festivais? O filme circulou nos espaços Mandela – Long Walk to Freedom, que tem um
brasileiras, membros do júri. Eu não fui, não me
que tu querias? Tu não conseguiste acesso a orçamento de milhões de dólares, ou Half
convocaram, não faço ideia porquê. O Espinho
determinadas telas? Como é que foi isso para ti? of a Yellow Sun, e ganhar tudo, melhor filme,
Da Rosa arrecadou o prémio de melhor filme
FH Em primeiro lugar, o circuito dos festivais melhor ator e prémio signos é extraordinário.
no FIC Luanda 2013. Foi a grande sensação do
É verdade que, se eu tivesse conhecido melhor
festival. Logo a seguir foi selecionado para o era algo novo para mim, e eu estava sozinho no
o sistema, talvez as coisas funcionassem de
que fora, em tempos, o maior festival de cinema filme, sozinho, mais ninguém. E eu comecei de
outra forma, mas não implica. O filme esteve
Fantástico do mundo, Fantasporto; Logo a uma forma errada.
em mais de trinta e cinco festivais, não é nada
seguir, para o maior festival de cinema negro dos MS Porquê?
mau para uma primeira obra. FESPACO, tendo
Estados Unidos da América, o Pan African Film
FH Não tinha conhecimento que existia ranking como exemplo, que é o maior festival de cinema
Festival e mais tarde para o FESPACO, o maior
de festivais, aqueles que são considerados os africano do mundo, onde, na altura, entre os dez
festival de cinema africano do mundo. Foi um
dez melhores festivais internacionais de cinema melhores filmes do ano, foi o único lusófono.
estrondo para mim. “O Espinho da Rosa” ainda
e como funcionava a selecção dos filmes. Sendo O Timbuktu abre o FESPACO, e O Espinho Da
arrecadou onze prémios internacionais, incluindo
seleccionado para um desses festivais, já és visto Rosa fecha o FESPACO. Estamos a falar do
melhor filme, melhor realizador e foi visto em
de uma outra forma. Houve festivais que não Timbuktu, do celebre realizador Abderrahmane
mais de 35 festivais internacionais de cinema.
fui selecionado, como por exemplo Berlinale e Sissako, o grande vencedor da 40.ª edição dos
MS O mundo dá voltas. Toronto International Film Festival porque o filme Césares, conquistando sete dos oito prémios
FH O mundo dá voltas, não é? tinha ganhado um prémio num festival negro em para os quais estava nomeado, incluindo os de
135 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES

melhor filme e melhor realizador. E são filmes que O Espinho da Rosa enquadrava-se mais ao MS Ou seja, o filme também circulou naqueles
que custam milhões, e O Espinho Da Rosa género. espaços intelectualizados e restritos que não
custou apenas 65 mil euros, feito por mim, pela MS E o filme estreou em sala comercial em eram exatamente pensados para o filme, não é?
minha luta e por pessoas que acreditaram no Portugal? FH Também.
projecto e ofereceram os seus serviços a custo
FH O filme não chegou a estrear em sala MS Distribuição na televisão também não
zero. Portanto, toda essa aceitação a nível
comercial em Portugal. Tive a reunião com a aconteceu?
internacional; as críticas foram excecionais…
NOS. Na reunião, Angola já tinha aceitado o filme
Houve só uma crítica que foi desfavorável, que FH Distribuição na televisão também não
para estreá-lo em salas, mas a NOS pediu para
eu tenha visto, mas as críticas que tive do filme aconteceu, pelo menos em Portugal. Não faço
que não enviasse o filme para Angola, porque
foram excecionais. Filme acabou por receber ideia porquê. Por exemplo, eu sou membro da
tinham uma certa influência nalguma das salas
convites, em maior parte dois festivais a que ARCA(Associação de Realizadores de Cinema
em Angola, e queriam que o filme passasse
frequentei, com tudo pago para lá ir e discutir o e Audiovisual), que depois de terem visto o
cá primeiro. O filme não chegou a estrear em
filme com o público. Agora, é incrível como é que filme – antes de me convidarem para fazer
Portugal. No entanto, a NOS, mais tarde, disse-
é possível o filme estar nos festivais, por exemplo, parte da ARCA –, disseram que não fazia sentido
me: “Nós damos-te a sala, mas a promoção é
esteve no maior festival de cinema fantástico de nenhum o filme não ter passado nas salas de
tua.” Nessa altura, já tinha gastado tudo o que eu
Portugal, top cinco do mundo, o Fantasporto; Foi cinema nem no circuito da televisão. Confesso
tinha do meu bolso para fazer o filme, não tinha
cabeça de cartaz do Fantasporto, e concorria a que talvez parte da culpa seja minha, porque
mais para fazer a promoção do filme. Acabei por
duas categorias: a do melhor filme internacional, não tenho o conhecimento e ninguém atrás de
desistir da ideia. Também já estava, de alguma
e a do melhor filme português. O prémio de mim que faça esse trabalho. Sou sozinho, já
forma, satisfeito com aquilo que o filme tinha
melhor filme português, na categoria de longa- faço mil e quinhentas coisas, não consigo fazer
conseguido a nível internacional. Não tinha muita
metragem não foi atribuído. tudo ao mesmo tempo. Falta-me essa bagagem,
força para ir à procura de mais financiamento, de
e alguma manobra para que as coisas sejam
MS Não saiu? Não foi atribuído a ninguém? uma outra guerra para pôr o filme nas salas de
feitas corretamente. E também ninguém sabia
FH Não. Foi atribuído um prémio de melhor filme cinema. Já tinha passado algum tempo também,
quem era o Filipe Henriques. O que permite que
português, numa categoria que englobava as e as pessoas tinham começado a ficar assim um
haja reticências em passar aquilo que eu faço.
duas vertentes, curtas e longas. bocado desligadas do filme. Contudo, o filme
Por exemplo, é o primeiro filme em Portugal só
foi distribuído nos Estados Unidos, pela Kweli
MS Uau. com atores negros. O que eu ouvi, a primeira
TV, los Angels e pode ser visto na Comcast, que
contestação de sala, o primeiro obstáculo em
FH Talvez tenha sido pretensioso da minha parte é a segunda maior empresa de transmissão e
relação ao filme passar nas salas de cinema é
achar que era bom o suficiente para ganhar. Mas televisão a cabo do mundo.
que o filme não tinha um ator conhecido, e o
pronto, dentro da categoria que era, acreditei
FILIPE HENRIQUES 136

fato de ele ser feito só com atores negros pode Eles dão muito mais valor àquilo que é feito fora colonialismo. Sem dúvida. A descolonização, em
influenciar, porque os negros não vão ao cinema. do que àquilo que é feito por eles. Infelizmente. pais africanos de língua portuguesa, não foi feita
Absurdo. O filme não é feito para os negros, Temos de reeducar. como deve ser.
desculpa lá. É um filme feito com negros, mas MS Reeducar o quê? O sistema? MS Achas que não?
é para qualquer parte da sociedade, qualquer
FH O sistema, mas não só, os próprios africanos FH Não, não houve descolonização. Nos países
um em qualquer lado pode ver o filme, não é
também. Os próprios negros têm de ser lusófonos não houve descolonização. Nos países
um filme para negros. Se negros não vão, vão os
reeducados. francófonos, anglófonos, tudo bem, mas nos
brancos. Qual é o problema? “Ah, devias ter posto
MS Ah, porque dizes que eles dão mais valor países lusófonos não houve descolonização.
um ator branco, conhecido, talvez isso puxasse
Houve uma retirada e feito.
às salas.” Se calhar, assim, já pensaram que aqui também à cultura portuguesa.
começamos a mudar qualquer coisa, que há aqui FH Dou-te um exemplo: se eu chegar à Guiné- MS Achas que as instituições portuguesas ainda
o início de qualquer coisa, já pensaram nessa Bissau e apresentar um projeto, eles não vão têm poder sobre as ex-colónias em África?
possibilidade? É que o interesse, se calhar, é mais querer saber de mim. Se um português chegar FH Essa questão política é mais complicada,
de rentabilidade. É o sistema. Temos de respeitar. à Guiné-Bissau, ou a qualquer parte de África, e não me refiro a isso, mas não creio que seja o
MS E os teus projetos, atualmente, como pensas apresentar um projeto, eles vão dar relevância a caso. Na política, eu ponho-me completamente
sobre eles? Com toda essa experiência que isto. à parte.
tu tiveste com O Espinho da Rosa, daqui para MS Entendi. MS Sim. Pronto, eu nunca fui à Guiné, então não
a frente, como é que tu vês o teu trabalho e
FH É neste sentido. O que é feito por nós ainda sei, por exemplo, que tipo de atuação o Instituto
vislumbras essa inserção comercial, essa relação
é visto com um pé atrás, mesmo que seja uma Camões tem na Guiné-Bissau.
no circuito português?
coisa excecional. É como aqui. O que é feito pelos FH Infelizmente, para mim, depois de várias
FH Eu continuo a ter a mesma visão, a mesma outros é sempre mais bem aceite, o português tentativas, inclusive de fazer O Espinho da Rosa
ideia, embora apurada. Há que conquistar o também tem um bocado esse exagero. “O que é na Guiné-Bissau, não houve qualquer tipo de
mercado, em primeiro lugar. Há que ter um lugar, feito lá fora é melhor.” Não é, só é feito lá fora. E adesão.
ter um nome, ter um espaço, para eventualmente temos isto, temos de reeducar a nós todos.
MS Porque a ideia inicial era filmar lá.
fazer aquilo que eu pretendo, e que faça com que
MS E achas que esse senso comum é causado
as pessoas queiram ver o meu trabalho. Eu acho FH A ideia inicial era filmar lá, porque a história
por que motivo? Porque achas que as pessoas
que, para mim, seria o percurso. Infelizmente, tem que ver com a Guiné-Bissau. O meu sonho
pensam assim?
os africanos, ou por falta de conhecimento, ou era filmar lá, e não tive qualquer tipo de apoio ou
adotamos aquilo que é o pior que o português FH Em relação aos portugueses, não faço adesão ao filme. Nada. Zero. Nem sequer houve
tem, não apoiam aquilo que é feito por eles. ideia. Em relação aos africanos, é o estigma do algum interesse ou princípio de um interesse.
137 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES

MS Tu consideras o teu filme guineense ou é uma história que eu pensava ser da Guiné, Uma História Simples, do Lynch, é o filme mais
português? enganei-me. simples e comercial do Lynch, para mim, que
me fascinou bastante. São os dois filmes que
FH Nunca vi o filme como sendo guineense ou MS Mas era de Portugal.
eu considero excelentes do Lynch – não sou um
português. FH Era universal. Cheguei à Alemanha, e todos
grande fã, porque é uma linguagem (...) Inclusive,
MS Não? Nunca pensaste sobre isso? Mas ele diziam: “O meu pai também contava essa
o Cronenberg também tem uma linguagem
circulou como sendo um filme português. história”; nos Estados Unidos: “O meus avós
completamente diferente, mas eu vejo de tudo
também contava essa história; Aliás, creio eu que
FH Não. Circulou como filme português, e mais alguma coisa. Michel Mann, O Último dos
existe um livro do escritor Mia Couto que também
guineense, luso-guineense, as duas coisas. Moicanos, Scorsese, Shyamalan – os primeiros
retrata o conto que originou a adaptação para
Dependendo dos festivais. Mas o filme é filmes do Shyamalan, embora numa forma
cinema. Disse-me alguém, num dos festivais de
assumidamente luso-guineense. bastante simples de filmar – é execional. Eu
cinema.
lembro-me de ter visto o Unbreakable, enquanto
MS Como co-produção.
MS Quando tu pensas em influências, em termos ainda estava na faculdade, às duas da manhã,
FH Co-produção entre Portugal e Guiné-Bissau. de linguagem, que realizadores tu olhas e pensas: não consegui dormir. Fiquei até de manhã a
E eu fiz questão que fosse uma co-produção. “esse filme mudou a minha vida” ou “esse filme pensar no filme. Como é que era possível ele ter
Porquê? Porque o filme não só foi feito em fez-me querer fazer cinema”? criado aquela história, e a forma tão simplista
Portugal pelos técnicos portugueses, como
FH Nenhum. Eu não tenho nenhum realizador como ele contou aquela história, mas que tocava
foi apoiado na íntegra por uma produtora
que seja de referência. É estranho dizer isto. tão profundamente as pessoas, nos fazia pensar.
portuguesa. Parte do financiamento veio
A maior parte das pessoas diria “mas como Realmente, se existe um fraco, tem de existir um
da Guiné-Bissau, e o meu esforço de pessoa
é possível?” No entanto, há vários filmes que forte para proteger o fraco. São coisas que nos
guineense. Hoje, eu considero-me
fizeram com que a minha paixão por cinema faziam pensar, são filmes que nos faziam pensar.
luso-guineense. Vivi mais tempo em Portugal
crescesse cada vez mais. Há vários realizadores Entre vários outros realizadores de cujos nomes
do que vivi na Guiné-Bissau. Toda a minha
que eu admiro. não me vem a cabeça agora.
experiência técnica, o meu crescimento
MS Por exemplo? MS Projetos em aberto, tens algum?
intelectual, tudo o que vem da parte teórico-
prático aprendi cá em Portugal. Toda a minha FH Ridley Scott, Tony Scott, o seu irmão; FH Olha, acabei de Realizar um filme para a
experiência criativa, a minha inspiração, vem Spielberg, Cronenberg, embora seja um RTP, com a produção de José Carlos de Oliveira,
da Guiné, daquilo que eu vivi na Guiné em bocado fora, David Lynch. Lynch é uma coisa Marginal Filmes. Fui convidado, entre treze
conjugação com o que também vivi em completamente à parte, mas tem dois filmes realizadores portugueses. Escolheram treze
Portugal. Toda a minha inspiração não, olhe lá, que me fizeram repensar a forma de fazer contos de autores portugueses, e desses treze
não é bem assim. O Espinho da Rosa cinema: Mulholland Drive e Uma História Simples. contos escolheram os argumentistas, e os
FILIPE HENRIQUES 138

realizadores para contar as histórias. Calhou- Ainda havia poucos, não havia praticamente MS Incorporados?
me um conto do Fernando Namora, um conto negros naquela posição, e eu ainda tentei ver se
FH Inclusão talvez seja o termo mais adequado.
sensacional chamado O Rapaz do Tambor. E é conseguia um ator negro que pudesse fazer parte
No entanto, para o efeito, temos também
um filme de época, passado em 1958. Segundo do filme, mas não tinha como ter o ator, porque
de fazer a nossa parte, não nos podemos
a adaptação do conto, o filme retrata a história a história não permitia que tivesse um ator negro
restringir, ou isolar-se. Temos que fazer parte
de uma pai austero, simpatizante do Estado no filme, pelo menos a ocupar um papel de
de um todo. Referindo que a história contada
Novo, que desdenha o filho mais velho por este grande relevo.
neste novo projecto, tenha sido inspirado em
ser diferente dos rapazes daquela altura, mas MS Os atores foram todos brancos. acontecimentos reais, os personagens brancos
que vê-se obrigado a escolher entre o amor do
FH Os atores foram todos brancos. No entanto, que incluem a narrativa, foram indivíduos que
filho e a ideologia que tanto defende. Sendo
já tenho a minha próxima longa-metragem viverem na Guiné que chegaram a Portugal, como
que, qualquer das escolhas, trará consequências
escrita, e agora estamos no processo de voltar a repatriados e têm de lidar com a nova realidade.
devastadoras. Acabámos as filmagens há pouco
conseguir financiamento. É verdade que nós temos de ter aquela ginástica
tempo, estamos na pós-produção, estamos a mental de limitar a criatividade na criação de
terminar o filme. Desta vez, é um filme só com MS Já tem título?
um projeto, o que é horrível. Só que, às vezes,
brancos, portanto não há quem (…) (risos) Serviu FH Tem título, mas estou em dúvida. a criatividade, a imaginação, não tem limites,
bastante também para mostrar, do meu ponto
MS E também é com atores negros? então, eu deixei um bocado as asas abrirem
de vista, eu acho, para as pessoas começarem a neste novo projecto.
perceber que eu não faço cinema para um grupo FH É. São atores negros. Como eu já tinha dito,
MS E depois vês o que fazes, não é?
restrito, ou para uma sociedade restrita. Faço toda a minha inspiração vem de África, e a
cinema de acordo com a linguagem que eu vejo maior parte do filme foi inspirada numa história FH Depois, vejo o que faço. E eu gostava imenso
que é necessária. Aquele com os atores negros, que conta um percurso não só passado na de poder fazer esse filme, de poder voltar a filmar
para mim, foi porque contava uma história que Guiné, como em Portugal. Desta vez, não trata um projeto completamente meu, e precisava
eu pensava ser da Guiné, porque nasci a ouvir só dos negros, terá atores brancos também, que houvesse, sobretudo, apoio da comunidade
essa história dos meus pais, e os atores negros pessoas que fizeram parte desse percurso e que africana e não só, como é evidente. Contar a
enquadravam-se com a visão que eu tinha da enriqueceram a história, mas também porque nossa história através de nós, da nossa visão,
história contada em África. Era como funcionava aprendi a lição. (risos) Nós não podemos bater é uma necessidade em crescendo. Se todo o
melhor o filme. Tem que ver com a vivência, com o sistema, temos de nos adaptar ao sistema, sistema que alimenta a industria cinematográfica,
a atmosfera do filme. Este é um filme passado criar uma fusão, e as coisas vão-se alinhando. pudesse abrir essa porta para que se contem
nos anos cinquenta, na altura, a primeira Nós queremos ser, de alguma forma, falta-me a outras histórias, porque temos tanto para contar,
camada de africanos estava a chegar a Portugal. palavra… o cinema ganharia outra dimensão. O cinema
139 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES

europeu talvez ainda tenha muito para contar, e tem de ser mostrado o que é. Existe essa parte de ter regressado ao país. O meu pai estudou
o cinema americano, para mim, já esgotou a horrível, mas existe outra parte, nós temos de em Portugal, viveu cá desde muito cedo até aos
formula e está num processo de reinvenção. contar a outra parte. Se calhar, ao mostrar uma vinte e poucos, e a minha mãe também. Ela é
África tem muito para contar, porque nada ou evolução em África, vamos começar a crescer. E de Cabo Verde, viveu e estudou em Portugal,
pouco foi contado. E do que foi contado, grande acho que o cinema é o mecanismo fundamental decidiu passar umas férias em Bissau, depois
parte, não foi contado por nós. E eu acho que para que haja essa evolução, para que haja essa da independência da Guiné, e encontrou o meu
devia ser uma aposta, não só para os próprios sensibilização dos negros. pai que tinha acabado de regressar ao país. Eles,
africanos, como para o cinema internacional. MS Para criar uma imagem positiva. então, conheceram-se, e eu nasci. A educação
Acho que África devia ser a porta. Não daquilo continua a ser um problema em África, daí a
FH Para criar uma imagem positiva. Para mim, o
que eu tenho visto, sobretudo nos festivais, que literatura ser menos efetiva do que o próprio
cinema é o melhor mecanismo de sensibilização
é feito em África e que denigre o continente. Por cinema, no que se refere a uma sensibilização
para a criação dessa imagem positiva.
exemplo, falar sobre um filme de amor em África, imediata, penso eu. O cinema é direto, acho que
com os próprios africanos é quase um absurdo. MS Mais do que a literatura? as pessoas se identificam, é logo ali. É visível.
Falar sobre SIDA em África “já faz sentido”. Falar FH Mais do que a literatura. Porquê? Porque o MS É uma relação mais direta, não é?
sobre a pobreza em África “já faz sentido”. África é cinema é direto, é visual. A literatura, nós temos
FH É uma relação mais direta. E os africanos
muito mais do que isso, é vida, é lindo. a educação num processo vagaroso, nós temos
precisam de modelos. Agora a literatura
MS E achas que essa imposição vem das de perceber que África ainda está num processo
continua a ser a solução mais efectiva para uma
instituições dos festivais? Como é que tu vês isso? longo de educação. Quarenta e seis ou sete anos
aprendizagem refinada. O que acontece na Guiné
de independência, em que, por exemplo, na
FH Eu não consigo ver de onde é que vem essa também é que a cultura do cinema acabou por
Guiné-Bissau, grande parte da população não
única perspetiva de África. Ou é uma necessidade desaparecer. Já não temos nenhuma sala. Eu
tinha acesso à escola durante a época colonial.
de continuar a perpetuar a ideia da inferioridade, lembro-me de que, nos anos oitenta e noventa,
Na minha infância, na escola primária que eu tive,
que continuam a querer manter nas nossas nós vivíamos cinema, nós saíamos à rua depois
os professores não eram professores formados.
cabeças, expondo apenas a destruição, e acho de ter visto um filme, a imitar as façanhas dos
Eles tinham mais conhecimento e foram para
que funciona; ou é uma visão desinformada e protagonistas e por aí fora. Todo o mundo vivia
lá dar aulas, tentar ensinar-nos o melhor que
preconceituosa do continente e de nós mesmos. aquilo. Nós íamos às salas de cinema ver os
sabiam depois da independência. Hoje, volto
Cada vez que eles mostram o que há de pior que filmes. Hoje em dia, não há uma única sala. As
atrás e vejo que, embora não tenha aprendido
existe em África, nós acabamos por acreditar pessoas não estão mesmo ligadas ao cinema.
da melhor forma possível, aprendi com o que
que é só isso que nós temos: “Acabou, ficamos Pelo menos, na Guiné-Bissau, não há ligação
era possível, não há dúvida nenhuma. E tive a
por aqui, é isso que nós somos.” Eu acho que é nenhuma ao cinema. A cultura do cinema
sorte de ter um pai, que fora professor, depois
uma estratégia. África é muito mais do que isso, desapareceu.
ÂNGELO TORRES
ENTREVISTA REALIZADA
POR MICHELLE SALES

publicação. Estas entrevistas vão todas ser


publicadas integralmente numa versão de livro
em papel.

MS A ideia é pensar sobre esse cinema. Então, a


gente mapeou vários nomes e eu tenho feito as
entrevistas. E a discussão que tem acontecido
neste grupo é a de se a gente pode falar de um
cinema negro português, se há um movimento
que a gente possa chamar de cinema negro; se
há esse tipo de mobilização em torno desses
Entrevista com Ângelo Torres, realizada em Lisboa,
cineastas – e essa discussão é mais minha. Eu
dezembro de 2019 @michellesales
tenho feito essa pergunta, por conta de uma
Michelle Sales Ângelo Torres. Jardim da Estrela. matéria que saiu no jornal Público, você deve ter
06 de dezembro de 2019. Na verdade, este projeto visto, da Joana Gorjão, e isso catalisou toda esta
não é sobre cinema africano. É sobre cinema discussão. Na verdade, a discussão é dentro do
realizado por portugueses afrodescendentes. É cinema português realizado por portugueses
um projeto de pesquisa que pretende mapear afrodescendentes. É uma conversa informal.
e pensar sobre a produção cinematográfica Eu queria que você me desse um registo o mais
de portugueses afrodescendentes de segunda pessoal possível do teu trabalho. Todas as
ou terceira geração. Dentro deste projeto, entrevistas têm sido assim, informais. E a ideia
uma discussão tem sido feita. Somos seis é que a gente chegue o mais próximo possível
investigadores; eu sou a coordenadora científica do realizador, da obra, da trajetória. Eu queria
do projeto. É um projeto financiado pela que me contasses, primeiro, do teu percurso de
Fundação Calouste Gulbenkian e prevê uma formação profissional, por onde passaste – eu sei
ÂNGELO TORRES 142

que és ator também – e sobre como chegaste à meu me desafiou a fazer um documentário. Fiz MS Teu pai saiu originalmente...
realização. Isso já é uma pergunta longuíssima, o documentário Mionga ki Ôbo, em 2005. Depois AT O meu pai é de São Tomé e Príncipe. Os meus
e a partir daí a gente vai falar sobre os filmes disso, fiz a minha única incursão até agora na pais são de São Tomé e Príncipe.
depois, está? ficção, que foi uma curta-metragem. Depois
MS E ele estava ligado a que movimento lá?
AT Mais do que tudo, infelizmente, não sou de Mionga ki Ôbo, fiz mais dois documentários.
Tenho vários guiões de ficção escritos, mas AT Ao MLSTP, o movimento fundador da
realizador, sou mais ator. A minha formação é de
ator. nunca cheguei a fazê-los. Dois deles cheguei independência. O meu pai é um dos fundadores
a ensaiar, preparar, a fazer tudo, pois estava a do MLSTP. Até 2002, pelo menos quarenta,
MS Mas porque dizes “acima de tudo,
contar com um apoio, mas que nunca veio a sessenta por cento do governo de São Tomé era
felizmente...”?
acontecer. Para voltar ao início... minha família direta ou indireta. De 1975 a 1989,
AT Infelizmente. era direta. De 1989 a 2002, era indireta e direta.
MS Eu só queria fazer uma pergunta... Falaste
Hoje, olho para o elenco de São Tomé e tenho de
MS Ah, infelizmente. que te formaste em engenharia termodinâmica
ir à procura de nomes. É bom sinal, sinal de que o
AT Sou mais ator do que realizador. Adoro contar e eu vi, na tua biografia, que passaste por vários
país se renovou, houve uma mudança.
histórias. A realização chegou um pouco por um países e lugares. Então, eu queria entender essa
acaso, embora sempre fosse algo que mexesse diáspora e como chegaste a Portugal. MS E porque ele teve de sair de São Tomé?
comigo. Gosto muito de contar histórias, e AT Venho de uma família muito, muito política, o AT O meu pai saiu durante o período colonial. Se
reparei que contá-las através das imagens atinge meu pai andou a fugir... lá ficasse, seria preso, torturado, essas coisas.
mais pessoas. E eu sempre tive curiosidade, mas, Fugindo da PIDE, ele vai para a Guiné Equatorial,
MS Fugir do quê?
por vários motivos, nunca aconteceu. E o teatro... depois para Espanha...
Não tem nada que ver com a minha formação, AT Da PIDE, do colonialismo português. Ele
MS Ele considerava-se comunista?
quer dizer, a minha formação hoje é tal, mas a teve de fugir e, claro, os filhos vão atrás.
Primeiro, Guiné Equatorial, onde eu nasço. AT O meu pai era comunista, mas muito
minha formação primeira é como engenheiro
termodinâmico. Entretanto, nunca exerci porque Depois, Espanha; depois de Espanha, dá-se nacionalista. A consciência nacionalista da minha
fui atropelado pelo teatro, comecei a fazer teatro. a independência, São Tomé. E após quatro família é muito apurada. Reza a crónica de que

E, quando comecei a fazer teatro, veio outra vez à anos estando em São Tomé, como eu não me o meu bisavô se suicidou porque havia uma

baila aquele bichinho de querer contar histórias, adaptava lá muito bem, o meu pai decidiu enviar- suspeita de tentativa de participação contra o rei

embora também por causa do teatro, e comecei me para Cuba para estudar. Foi uma decisão de Portugal, Dom Miguel ou Dom Pedro... Então,

a contar histórias oralmente, e isso fez com que sábia. Fui para Cuba estudar e foi lá que fiz ele suicidou-se antes de ser preso.

essa vontade aguçasse mais. Até que um amigo Termodinâmica. MS Para não se submeter ao regime.
143 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES

AT Como o acusaram de tentativa de sublevação pai chegar e dizer “Mataram-lhe”. Minha mãe: MS E os anos em Espanha?
contra o reino, antes de ser preso, ele suicidou- “Quem?” “Amílcar.” Foi... AT Ah (...) não sei. Foram quatro anos, eu era
se. MS Eles conheciam-se? criança, dos seis aos dez. A única coisa de que
MS Porque ele escolhe ir para a Guiné? me lembro é de apontarem muito para mim na
AT Conhecia-se a gente toda, Amílcar Cabral,
rua: “Mira el negro, mira el negro.” Então, desde
AT A Guiné era uma colónia espanhola. Franco Agostinho Neto, Samora Machel, Marcelino dos
criança, estou habituado a que apontem para
e Salazar não se davam muito bem. Não eram Santos...
mim na rua. Habitua-se.
inimigos, mas muito menos parceiros, e muito MS Digo, o seu pai e o Amílcar.
menos aliados. Os países faziam vista grossa, o MS E o contexto da família, depois de Espanha?
AT O meu pai conhecia essa gente toda, os
meu pai teve de ir. A Guiné fica próxima de São AT Fomos para São Tomé, o meu pai foi antes. O
movimentos conheciam-se. Nessas viagens que
Tomé, é uma ilha mais a norte (???). E, depois de meu pai levou-nos a Espanha...
eles faziam para o exterior, acabavam tendo
Angola, que era uma colónia portuguesa, a Guiné
contacto, em Paris, Berlim; de vez em quando, MS Porque foram constituir o governo.
Equatorial era o país com a maior diáspora são-
ouvia falar em Suécia, não sei porquê; mas Paris
tomense, era uma ilha. Então, o meu pai emigrou, AT O meu pai levou-nos a Espanha e voltou para
e Berlim muitas vezes. E Argel, a partir de 72,
um pouco para consciencializar os são-tomenses a luta dele. Foi ter com os camaradas, primeiro
para a luta. foi uma parada constante. Tanto que houve a no Gana, depois no Gabão. Cultiva-se lá uma
hipótese, primeiro, de irmos para a Argélia, mas célula do MLSTP. Depois, dá-se a independência
MS Mas ele tinha contacto... o meu pai colocou aquela coisa: “É um país e o movimento entra, antes da independência,
AT … com São Tomé? Sim, sim. muçulmano, não sei o que...” Depois, houve a em março de 75. O meu pai regressa a São Tomé.
hipótese, antes mesmo da Argélia, de irmos para
MS Não, não. Com os movimentos de libertação Saiu em 59 e só regressou em março de 75,
o Chile, entretanto cai o Allende e não vamos.
que aconteciam na Guiné. com o movimento que foi dar a independência.
Vamos para Espanha. No primeiro governo, o meu pai foi ministro,
AT Na Guiné Equatorial, não. O processo de
MS Mas primeiro vão a Cuba. essas coisas todas. Tinham os ministros primos
independência da Guiné foi diferente, com
do meu pai, eram todos primos. Então, os
Espanha, foi diferente da portuguesa. Se houve AT Não, a Cuba vou a posteriori. Cuba depois de
primeiros governos de São Tomé, até 89, estavam
algum contacto ou não, não sei. O que sei é que, ir a São Tomé. Dá-se a independência, e, quatro
intrinsecamente ligados à minha família. O
entre eles, os países de expressão portuguesa, anos depois, é que vou a Cuba, em 79.
Presidente da República, primo; o ministro da
os PALOP, tinham contacto. Por isso, eu crescia MS Quer dizer, saem da Guiné e vão para Economia, tio; o ministro do Trabalho, pai; e iam
a ouvir falar do Agostinho Neto. Por exemplo, Espanha. jogando. Depois, mesmo no jogo político do
no dia em que o Amílcar Cabral morre, foi
AT Espanha, São Tomé. comité central, iam jogando entre os postos.
uma comoção em casa. Lembro-me do meu
E, no meio disto, vou para Cuba em 79.
ÂNGELO TORRES 144

MS E vais para a Escola de Cinema? E fui educado assim, sacrificando as minhas MS Eu já ouvi isso de jovens.
vontades em nome da vontade da maioria.
AT Não, fiz termodinâmica. Fui fazer a décima AT “Eu não tenho culpa, passou muito tempo.”
primeira, décima segunda, e depois fui para MS Sentiste-te integrado na escola cubana? Ok, mas porque quando aos cinquenta anos:
engenharia. O cinema não passava, embora em “Ah, um trauma infantil quando o pai...” Se ele
AT Claro. Em Cuba, naquela altura, em 79,
Espanha tivesse tido alguma experiência como teve um trauma quando o pai abusou dele,
acreditávamos que um dia o socialismo iria
ator. Participei em dois filmes, num com um bateu nele, e aos 50 e tal anos isso se reproduz
vencer. Estávamos todos imbuídos numa
ator italiano chamado Giuliano Gemma, no carácter dele, anuncia isso, é porque para
ideologia, numa forma de pensar, numa crença,
Il Tren de Charleston; depois fiz um filme de zorro, ele isso é válido? E eu quando quero falar de
numa vontade. Víamos a direção, víamos o
com Alain Delon, Il Foro Republicano. Gostei uma coisa que é traumatizante até hoje para
sentido, víamos a luz no fim do túnel, que todos
daquilo, do circo todo que se monta em volta a minha sociedade, para a minha realidade, tu
os povos no mundo iriam gritar em uníssono
disso, chama-me muito a atenção. Mas ao chegar vens gritar que já passou muito tempo, que isso é
“somos todos irmãos, em concórdia”. Em 79, eu
em São Tomé, como venho de uma família muito complexo de culpa. Não. Assume. É um problema
acreditava piamente nisso. Hoje acredito, mas
politizada e de esquerda, fizeram-me ver que, da sociedade ocidental; enquanto vocês não
não tão piamente quanto naquela altura.
além dos nossos sonhos e vontades, há uma reconhecerem isso, todos os problemas da
MS Mas achas que essa paz mundial iria
coisa maior do que nós. E essa coisa, maior do história... Há dois grandes problemas da história:
inclusive, por exemplo, superar os traumas do
que nós, é uma causa, uma razão, o motivo pelo um, a religião, que trouxe muita desgraça para
colonialismo?
qual tu existes. E esse motivo é uma coisa o nosso mundo; dois, os que professaram essa
maior do que tu, a chamada pátria. E é uma AT Claro, podíamos depois falar cara a cara. religião. Quem andou em nome dessa religião
coisa que se aprende quando se chega em Cuba, E são coisas que, até hoje, nos falam. Vou ser por esse mundo afora a martirizar, a escravizar, a
quando se vai fazer “pioneros por el comunismo, politicamente incorreto, já começo a entrar dinamizar, a extinguir? Foi a sociedade ocidental.
seremos como el Che”. Os militares e os pioneiros nessa idade em que posso dizer o que penso. A Em nome de uma religião, martirizaram,
de Cuba, quando fazem a continência, não fazem sociedade ocidental tem muitos complexos de escravizaram, massacraram, fizeram quarenta
com os dedos perfilados desta forma. O dedo culpa. Hoje, quando se fala da escravatura é... mil coisas. Enquanto nós não pudermos começar
gordo mete-se por debaixo dos quatro dedos, a falar, equiparar tudo (…). Deixa-me resgatar os
MS Quando não se fala, não é?
pra quê? O indivíduo submete-se à maioria, e meus deuses, não são menores do que os teus.
AT Ou quando se fala: “Ah, já passou muito
queremos todos ser como quem? Como el Che. Enquanto, na sociedade africana, continuamos
tempo. Eu não tenho culpa.” Como é que uma
O Che é o ícone dessa coisa, é o máximo a rezar “pai-nosso que estais no céu” em nome
pessoa com 55, 60, 70 anos diz que “isso é um
expoente dessa coisa chamada ‘luta pela de um deus que não sabemos de onde vem,
trauma infantil”?
libertação dos povos’. Uma pessoa que se criado por um branco qualquer, enquanto
sacrificou a si própria em prol do coletivo.
145 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES

nós continuarmos a professar essa religião, outro e nos chamaríamos de irmão. Irmãos que discutiam, e a coisa ia-se eliminando até chegar
estaremos sempre em inferioridade. Deixa-me somos nas nossas diferenças, respeitando o que (...). A concórdia em África não se chega pela
resgatar os meus deuses e dar-lhes a dignidade cada um é, e juntos avançarmos para a felicidade maioria. Fecha-se duas pessoas num quarto, só
que eles sempre tiveram antes do nosso dos homens, independentemente da raça, do saem quando chegarem a um acordo. Aqui não,
encontro, quando tu vieste impor o teu deus credo, da crença, do género, dos gostos, de tudo. metem três pessoas numa sala para que ganhe a
por uma questão puramente economicista. Por maioria. Se três votam e, entre dois, apenas um
MS E vês a sociedade portuguesa preparada para
uma questão económica, mataste toda a minha convence um para vingar, ou ganhar, ou trair o
falar de escravidão?
história, todos os meus deuses, todas as minhas outro. Quando dois se entendem, aí sim houve
AT Ainda não. Alguns setores da sociedade sim,
crenças. Impuseste a tua civilização como se concórdia. Porque não casamos a três, casamos
mas ainda não.
fosse superior à minha, fizeste-me crer durante eu e mais uma pessoa. Chegamos a um acordo,
muito tempo que eu era zero, que não tinha MS Porque não? Em que nível sentes isso mais “ok, vamo-nos casar”. Não se divorciam três,
passado, não tinha história, não tinha nada... forte? divorciam-se duas pessoas, quando é pacífico
e em concórdia. Falamos e chegamos a um
MS ... nem futuro. AT Vê o exemplo Joacine.
acordo, “ok, vamos separar-nos”. Isso é que é
AT … nem futuro. Porque me tiraste a alma. MS Esse é o exemplo mais recente. concórdia, isso é que é entendimento. Enquanto
As nossas religiões são animistas, não têm AT Atenção, quando eu critico a tua sociedade, meterem uma terceira, quarta, quinta ou sexta
alma. E até hoje a malta escreve: “Ah, a crença eu não estou a falar mal dela. Eu estou a chamar pessoa, a maioria está a vencer a minoria, está a
animista.” Pelo amor de deus, não são animistas. a atenção para o que ela tem de defeituoso. Se sobrepor-se à minoria. Então, deixem africanizar
Se acredito no Oxum, no Xangô, é meu deus. discordas, ‘bora sentar e discutir os pontos de a democracia e não venham com essa retórica do
Porque é que está a tirá-lo? Alma? Essa é minha vista, e a partir daí chegaremos a uma conclusão. politicamente correto. Não, não.
alma, enquanto eu não tiver essa alma, não sou Por exemplo, voltando um pouco atrás, sobre MS Consideras-te pan-africanista?
ninguém. Estão a tirar-me a possibilidade de um dos próximos passos urgentes que África tem
olhar para trás e ver quem sou. Tiram-me todo AT Cem por cento.
de fazer. “Há democracia em África.” Ok, tudo
o chão seguro que tenho para caminhar para a bem, aceitamos. Mas também aceitem que nós MS E achas que deveria haver um tipo de
frente. E eu pensava naquela altura, em 79... africanizemos a democracia. organização política que servisse à união do
MS ... quando foste para Cuba. continente…
MS Deve ser de uma outra forma.
AT Mesmo antes. Sou de uma família comunista, AT ... ou união africana. Devia sair do papel.
AT Deve ser de uma outra forma. Nós éramos
e o comunismo professava que, num futuro E graças a deus, está a sair; infelizmente,
democratas. Há muito tempo. A sociedade
próximo, perto, iríamos todos falar em concórdia aprendendo o modelo europeu, que não é mais
africana é de concórdia, de diálogo. Por isso
e igualdade, em que todos olharíamos um para o (que?) copy-paste do modelo americano. “A
havia os jangos, onde se sentavam, reuniam e
ÂNGELO TORRES 146

Europa se une porque gostam muito uns dos era um dos defensores indefetíveis do São Tomé MS Isso é o que escuto aqui na Europa. Vejo
outros”, é mentira. Vê-se todos os dias que não independente. Aprovaram, ontem, o orçamento muitos europeus a falar isso, que agora
gostam uns dos outros, aturam-se. A América é geral do Estado de São Tomé e Príncipe, 97 por “vocês têm esse presidente X porque não têm
o que é por ser um continente para um país, por cento do nosso orçamento é de ajuda externa. capacidade central...”
isso “Estados Unidos”. Estamos a brincar à independência. Se fossemos AT E o outro? O sósia dele, só fala inglês, Donald
a décima-nona província de Angola, não teríamos
MS Tem outros problemas também. Trump. É um Bolsonaro. Ponto final. É a mesma
esse problema. A nossa história e a de Angola coisa.
AT Tem outros problemas, mas no que interessa estão intrinsecamente ligadas. Boa parte da
estão unidos. Os outros problemas resolvem no MS Mas eles têm feito essa brincadeira com o
nossa população vem do reino do Congo e de
senado e no parlamento deles. Aqui não. Brasil…
Cabinda, portanto somos de lá, também somos
MS E nesse contexto, como é que vislumbras os de lá. Eu cresci ouvindo o MPLA em casa, “o Neto AT Os americanos não têm capacidade.
PALOP, por exemplo, ou mesmo a CPLP? isto, o Lúcio aquilo”, ouvia essa gente porque Como eles chegaram ao ponto de ter... A tribo
eles tinham contacto uns com os outros. Depois americana, porque é uma tribo, chegou ao ponto
AT A CPLP é uma utopia muito bonita, mas
de pedir independência, cada um foi para o de escolha como chefe da tribo, Donald Trump.
tem um pequeno grave problema, que é difícil
seu lado. E, com o andar do tempo, estamos a Esse gajo é quatro vezes pior. Eu não sei, entre ele
conciliar: a dispersão geográfica. Estamos
demonstrar, a nós próprios, que somos incapazes e Bolsonaro, qual é pior.
a falar de oito países dispersos em todos os
de nos governar sozinhos. São Tomé e Príncipe,
continentes. Mas, por outro lado, é uma utopia MS Difícil dizer.
por enquanto, não é um Estado.
muito bonita, como diz o poeta: “O homem AT Como dizer que o Brasil é incapaz de se
sonha e acontece.” Vamos sonhar que é possível, MS E achas que essa incapacidade... governar? O Brasil deve ser a sétima, oitava, nona
vamos sonhar que podemos dar essa lição ao AT ... tem que ver com a nossa insularidade, com economia do mundo.
mundo. Os PALOP. Portugal fez muito bem o seu a nossa incapacidade de produzir, de gerarmos MS Oitava.
trabalho, muito bem, desde a época colonial, riqueza para garantir o bem-estar do nosso povo.
desuniu-nos. E somos incapazes de nos unir. AT Oitava. Portanto, o problema do Brasil,
MS Porque isso é uma discussão em qualquer
Guiné-Bissau e Cabo Verde separaram. Porque vamos ser honestos, é ser um país colonizado.
país ex-colónia. Também é uma fala muito
é que São Tomé pediu independência? Porque é Ponto final. A Europa continua lá, continua a ser
persistente no Brasil, “o Brasil nunca vai ser uma
que São Tomé não se aliou, desde o princípio, a quem manda no Brasil. Mas o grande problema
nação soberana porque não tem capacidade de
Angola? Era o mais correto que podíamos fazer. brasileiro é o de termos de definir afinal quem
autogovernabilidade.”
Quando ouvirem isso em São Tomé, vão-me dar manda nesse país. É a presença italiana? É a
um tiro, vindo do filho de um homem que lutou AT Como que o Brasil não tem? Pelo amor de presença portuguesa? A presença alemã?
pela independência daquele país. O meu pai deus. A presença francesa? O problema do Brasil é
147 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES

esse. Quem finge que deu independência o Brasil não se governa? O Brasil governa-se do filho aos outros irmãos, fala mal do filho, “o
são portugueses que se fazem brasileiros. muito bem para onde quer. vosso irmão isto, o vosso irmão aquele outro...”,
Dormiram portugueses, acordaram brasileiros, MS Em termos da perspetiva histórica do porque o pai tem complexo. Depois, para
e pediram a independência. Ok, tudo bem. colonialismo, eu ainda vejo, em termos atuais, Portugal ver a relação das ex-colónias inglesas
Só que esses portugueses, e até hoje há uma no contexto atual, que há, por parte de alguns com a Inglaterra, das ex-colónias espanholas
corrente monárquica no Brasil, perderam o portugueses, um certo recalque quando se fala com a Espanha, é diferente. Continua a ter
poder. E enquanto não se definir entre eles do Brasil. É uma relação tensa entre os brasileiros reverência em relação à metrópole. O Brasil não,
quem manda (...). É só ver no cenário brasileiro que vivem aqui e os portugueses. Então, quando ele quebrou com essa reverência, porque o filho
as famílias que lá estão. É só ver nas riquezas a gente ouve um discurso de que são países do rei pediu a independência e deu o grito do
brasileiras, os apelidos. Enquanto não se irmãos, também é mentira. Porque também é Ipiranga.
definir quem manda e quem é quem, o Brasil uma relação construída secularmente. MS E achas que essa relação de reverência existe
vai ser a confusão que é, porque convém essas entre os PALOP e Portugal?
AT O Brasil não é um país irmão. O Brasil é um
oligarquias. Convém. Temos um exemplo
país primo. Mas ele mesmo sabe, é um país AT Ainda temos. Por isso, Portugal se dá bem
boliviano. Quando os donos da terra começam
primo. Países irmãos bastardos são os PALOP. connosco.
a tomar terra, o poder, eles organizam-se e
Somos irmãos bastardos, filhos daquela outra
correm com eles, outra vez. A oligarquia parece MS Ainda há uma relação de subserviência?
mãe que nós não queremos.
forte, e volta. Mas a oligarquia é antropófaga, AT Claro, ainda há. Angola, toda rica que é (...).
porque tem esse pequeno problema. No dia MS Não se reconhece...
MS Eu percebo isso, mas para mim é difícil falar
em que os espanhóis começarem a falar com AT Não se reconhece como filho. Pronto, quando disso dessa forma, reconhecer isso.
os poucos italianos que estão lá, começarem convém, somos irmãos. Quando convém, somos
a dividir o poder, vão discutir entre eles. E o AT Reconhecer? Ou é difícil de falar?
filhos da mesma mãe; quando não convém,
problema do Brasil é só esse, as oligarquias somos filhos da mãe. Ponto final. Brasil, aquele MS Os dois. É um processo doloroso, acho. Esse
não se definem, porque cada uma quer definir irmão rebelde, que se rebelou contra o pai, bateu contacto é um contacto que acho doloroso,
qual é o seu quinhão no meio desse bolo. a porta e foi-se embora. E quando voltou, não subjetivamente falando. Vir para Portugal,
Dividiram-se as fatias, cada um quer a maior voltou para a casa do pai como filho pródigo. estabelecer conexões de trabalho. Tudo eu acho
fatia para si. O Brasil governa-se muito bem, Comprou uma casa maior do que a casa do muito doloroso, porque passas por várias etapas
dentro de si há cinco ou seis Brasis. Há o Brasil pai, ao lado; e o pai, quando quiser comer ou nesse contacto. Porque nós temos essa história
super high-tech; há o Brasil das finanças, a bolsa beber, tem de falar com o filho. Como o pai tem da colonização, memória, enfim. Eu venho de
de São Paulo está entre as melhores do mundo. vergonha de falar “filho, preciso...”, o que é que uma família pobre do Brasil, eu não sou filha da
Como podem ter coragem de dizer que faz? Começa a ter raiva do filho. Quando vai falar oligarquia. Então, é muito difícil dissociares a
ÂNGELO TORRES 148

tua história pessoal da história que o país viveu. engraçado. Ponto final. Mas se um europeu vai vamos sair do beco onde estamos. Eu não fui
Então, dói-me isso, ver a relação dos países a África, ou à América do Sul, ou à Ásia, ou um ao Senegal e não quero voltar a ir ao Senegal.
africanos com Portugal, e a maneira como eu americano, esses passaportes que valem, podem Eu nunca fui a Londres, obrigam-me a pedir um
vejo que os portugueses afrodescendentes lutam passar cinquenta anos, nunca vão sair do sítio visto. Outro dia, fui lá pedir o visto, pediram-me
para se integrar e se tornar portugueses. E uma onde estão. Porque não posso viver e morrer tanta coisa. “Eu só quero ir para o teu país para
vez perguntaram-me isso: “Mas você não vai ficar em Portugal e nunca ser português? “Porque dá voltar.” Se não me querem lá, eu não vou. Por
aqui, ter um contrato que poderia atingir o tempo a possibilidade de tu viajares...” Ok, tudo bem. causa do meu passaporte? É válido como o teu.
para ir ao SEF e pedir…?” Falei: “Jamais vou ser Vou poucas vezes ao Brasil, porquê? Porque Não vou. Ponto final. Tenho orgulho de ter esse
portuguesa.” Não é porque não quero, é porque me recuso a mendigar por um visto. O meu passaporte e não vou mendigar, não vou vender.
não sou. passaporte é tão digno quanto um passaporte Este meu passaporte é o meu. Não vou estar a
americano ou um passaporte europeu. Eu pedir para entrar no teu país. Se queres, bem,
AT Eu entendo.
estava para ir ao Senegal para fazer uma curta- se não queres, também. Sabem quem perde?
MS Eu jamais vou ser portuguesa. Podem dar-me metragem como ator. Fui pedir o visto. A minha São vocês. Vão deixar de ter hoje me, myself and
qualquer documento, entendes? senhora pensou que era possível ir só como fucking I, in your fucking country, man. Look, I’m
AT É uma discussão que tenho dentro da minha são-tomense pedir um visto. O senhor negou- black, I’m proud and I’m beautiful. Não me queres
casa todos os dias, porque estou cá desde 1986 me, disse que não, porque São Tomé é um país lá, eu não quero.
e ainda não sou português. E a minha mãe não africano de terceiro grau, não sei o quê. Como
MS Tem uma discussão no contexto dos
entende. Eu disse: “Mãe, porque é que o teu ia pedir um visto, dei-me ao cuidado de me
portugueses afrodescendentes que reclamam a
marido, o meu pai, lutou pela independência?” vestir bem, ir limpinho, cheirosinho, essas coisas
nacionalidade...
todas. Enquanto eu estava a falar com o senhor,
MS Para nós nunca sermos portugueses, não é?
entram duas alemãs com todo o preconceito que AT É um direito.
AT Porque senão, teríamos ficado, tenho, pé de chinelo, a cheirarem mal porque MS Claro, é constitucional.
continuávamos. Se o meu pai e os irmãos dele, não devem ter ido tomar banho, e perguntam ao
AT Não, não é só constitucional. Tira a papelada
quatro irmãos, uma menina e três rapazes (…). senhor: ‘’Ah, desculpa lá...’’ E ele: “Você, como é
fora. Desde o momento em que os legistas
Os três rapazes estão na fundação do MLSTP. alemã, pode entrar”. What the fucking fuck? Eu,
tomaram conta da sociedade, isto é o que é. É
Os primos deles, diretos, estão na fundação preto, africano, residente em Portugal, quero ir
um direito. Vamos parar. As fronteiras são uma
do MLSTP, que deu a independência a São ao Senegal, e dizem que não porque estou no
invenção do homem. Desde que o mundo existe,
Tomé. Eu cresci a ouvir “quando nós formos grau três para o teu país, não sei o quê. Uma
os povos se movimentam. Primeiramente, somos
independentes, quando acabarmos com o alemã qualquer pode entrar no teu país porque
nómadas; quando nos sedentarizamos, quando
colonialismo em São Tomé...” Ok, eu vivo enquanto nós, africanos, pensarmos assim, não
se esgota aqui, mudamos para lá. Um vírus no
em Portugal, hoje, porque é um país bonito,
149 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES

fígado transmuta-se para outro lado, não fica lá humanos. Depois, o mais engraçado: dizemos com a conquista, com a colonização, com os
até morrer também. É do ser humano movermo- que somos todos filhos de um deus, que ele é o massacres, com tudo o que eles foram levando,
nos. Essa história de que isso aqui pertence pai de todos. Porque é mais para um do que para invasões… nasceu aqui. E daqui vem o problema
só aos portugueses, ou aos franceses, ou aos outros? Se a terra é uma, se vier cá um gajo de que depois se espalhou por todo o mundo.
espanhóis, é uma mentira da política, de um Marte, ele não vai dizer: “Ah, tu és da Ásia, tu és
MS Desculpa interromper. Como é que isso tudo
grupo de pessoas, de um grupo de interesses. da América, tu és da Europa”, não. Ele vai querer
reverbera no teu trabalho, como ator, primeiro?
O ser humano move-se para se sentir melhor. colonizar-nos todos, e vamos ter todos de nos
AT (riso) Eu, outro dia, estava falando com
Portanto, porque aceitam pacificamente esses defender em conjunto. Portanto, se essa coisa
um ator português chamado Diogo Dória, e
bolsonaristas, os que votaram no Bolsonaro? Eles que chamamos Terra (...). O povo vai assustar-se
o Diogo dizia: “Porra, tu és o ator, de todos os
estão a fugir da violência que não sabiam que ao ouvir-me dizer isto: Somos sete mil milhões
que conheço, que melhor representa o ódio;
estavam a criar, a vir todos para aqui comprar agora…
quanto representas o ódio, fazes a cena tão bem.
casas na Lapa, Campo de Ourique, e são aceites, MS Bi.
Onde vais buscar essa raiva toda?” Eu disse:
porque vêm comprar casas de dois, três milhões.
AT Exatamente, somos sete bilhões. Essa raça “Da minha consciência política.” Atenção, não é
Agora, vem um coitado, que está a fugir da fome
branca, como a conhecemos, deve estar a rondar contra o homem branco, é contra a civilização
e da miséria, para trabalhar, dar o seu sacrifício,
os mil milhões, não mais. Dá mais duzentos anos, ocidental. A própria democracia, de que todo o
a força da sua juventude para desenvolver este
deve estar em trezentos milhões. Se a Terra mundo fala: “Ah, somos herdeiros da democracia
país, e tem de morrer na travessia, quando a
aguentar como globo terráqueo, daqui a mais grega.” A democracia grega era fascista, elitista,
Europa é o que é. Outro dia, estava a falar com
cinco séculos já não estão cá. Quando virmos xenófoba. Como vocês podem dizer isso? “Só os
uma grande amiga minha, que se vira para mim
um branco: “Olha, um branco! Eu via no cinema!” atenienses tinham escravos, depois os romanos
e diz: “Diz-me vinte invenções da humanidade
Portanto, ou começamos a perceber que a modificaram...” Mas pelo amor de deus. O
em que os africanos participaram.” Em todas,
Terra, como a conhecemos, se ela resistir, se não paradigma da história tem de mudar tudo isso e
direta ou indiretamente, participámos em todas.
implodir, ou se não acontecer de o Sol se apagar, quanto mais informado tu és, e mais conheceres
A Europa é o que é graças à nossa riqueza e ao
o diabo-a-quatro (…). O mundo que nos ensinam da história, dizes: “Andam a mentir-nos este
nosso suor, tanto tirada em África, no subsolo
na história desta forma injusta, por causa de tempo todo, enquanto eles não tinham coragem
africano, quanto das forças de trabalho nas
um hemisfério, nesta divisão, não vou ser mau, de olhar-se no espelho porque é muito duro?”
Américas. Nós construímos este continente,
mas dois terços dos problemas do mundo Olhar-se no espelho, reconhecer e assumir a
tornámo-lo o que é. A malta não vem cá reclamar
nasceram aqui na Europa. E, depois, espalharam culpa, e começar a trabalhar em prol de melhorar
nada, apenas viemos contribuir em direto no
para todo o mundo com as conquistas que isso. O que eles fazem? O contrário. Reforçam-
vosso solo o que sempre fizemos indiretamente.
eufemisticamente chamam ‘descobrimentos’, no mais. Parem de vender-nos desenvolvimento
É um direito que nos assiste como seres
ÂNGELO TORRES 150

como isto que estamos a ver aqui. Isto esgota de deus. Precisamos de ter medida nas coisas. forma de alimentação energética que não seja
com os recursos da Terra. Please. Parem. Se ela tivesse pedido uma audiência, tudo bem, fóssil.
Se vocês, o Ocidente, dizem que quase 20% e iam recebê-la. Agora, porque a menina para em
MS Mas já há, não é? O problema é o uso disso,
da população do globo usufrui de mais de Belém, eu vou...
que não se faz.
noventa por cento dos recursos naturais do MS Mas não achas que foi uma atitude malcriada
AT Diz-me uma.
mundo, imagina se a malta inverter esse dele? Ele faz tantos atos populistas.
número, a Terra esgota-se. Portanto, este MS Energias renováveis, eólicas.
AT Ele, Presidente da República, toma iniciativa
modelo de desenvolvimento está errado.
de ir com o seu povo, porque esses são os que o AT Diz-me quantas torres eólicas tu vais precisar
Vamos parar com esse paradigma, parar de
elegem. para pôr uma fábrica a funcionar? Quanto terreno
inventar telemóveis todos os anos. Por exemplo, vais ter de ocupar com essas torres eólicas?
a África do Sul tem problemas de apagões. MS Eu vejo ele fazer isso, e esse ato de recusa foi
Quanta terra? Quantos painéis solares? Para pôr
Não é porque os pretos é que estão a mandar. um ato malcriado dele.
uma só fábrica a funcionar. Uma fábrica que
É porque a maioria da população passou a ter AT Ele é o Presidente da República, pelo amor de produz automóveis, uma fábrica que produz
acesso a mais coisas. Quando a América deus. Ela não pediu audiência. Ela parou aqui. Ela barcos.
também começou a ter apagões, “ah!”. não é chefe de Estado, não é nada, é uma miúda
MS Mas eu acho que ela traz uma perspetiva
Porquê? Quem não podia comprar, agora que parou aqui. A minha prima aterrou antes
de um novo marco civilizatório radicalmente
pode... Antigamente, de dez casas, uma tinha de ontem no aeroporto e ninguém disse nada.
diferente desse que a gente vive.
um frigorífico; de vinte casas, uma tinha uma E a minha prima, em São Tomé, é uma ativista
televisão. Agora, todas as casas têm frigorífico também, é uma jovem empreendedora. Porquê? AT Vamos ter de mudar o paradigma. Como eu
e micro-ondas. Tudo isso com o qual Ele é o Presidente da República. digo, isto como está não chega lá.
consumir energia. Vamos ter cada vez mais
MS Achas que há uma idealização em torno da MS Eu acho que ela fala de um futuro que a gente
capacidade? E não há hoje (…). Coitada
Greta? ainda não consegue ver, no sentido material,
da Greta... de como será isso. Ela fala de coisas como, por
AT Não é idealização, ela está correta no que
MS Thunberg. Sim. Ela esteve aqui há poucos exemplo, acabar com a utilização de energias
diz. Embora, pela criança que é, ela não veja a
dias. fósseis, de como seria.
profundidade ou a superficialidade daquilo que
AT Sueca. Sim. Estou de acordo com Marcelo está a dizer. Porque se fizer tudo o que ela está a AT Mas isso, hoje, é impossível. Porque ela não
Rebelo de Sousa. O Presidente da República dizer, instala-se o caos, a miséria e o problema na vai para o âmago da coisa?
receber uma menininha? Ela não podia ir à Terra. Infelizmente para a Terra, hoje, o homem MS E qual é, para ti?
audiência. Ela chega e vou recebê-la? Pelo amor tem de correr contra o tempo e arranjar outra
151 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES

AT É esse paradigma de desenvolvimento que desenvolvimento, mudar radicalmente. O dia em AT Sim, como ator sim. Fiz um alemão chamado
nos andam a vender. Está errado. Não podemos que se fizer isso (...). Heiner Müller...
consumir selvaticamente como estamos a MS E acho que, por conta disso, a gente está num MS Eu não queria dizer politicamente fortes,
fazer. Com isso vem o quê? Vem a exploração momento de inflexão no mundo – ou agora, ou queria dizer politicamente consciencializados.
do homem pelo homem. Vem a utilização nunca. Eu tenho lido algumas coisas em relação Foi o termo que usaste.
excessiva das máquinas. Temos de voltar a a isso, perspetivas de uma reorganização de
AT Sim, fiz Heiner Müller, que era um alemão
depender de nós próprios, mesmo que custe formas comunitárias da vida humana na Terra
da República Democrática. Fiz algum Brecht.
e se produza menos. Em vez de pôr quarenta para antigas e ancestrais.
Embora digam que não, o próprio Shakespeare
robôs a funcionar, porque só consomem energia,
AT Hoje, índios na Amazônia estão à frente, é considerado, para a altura, e hoje em dia ainda
põe vinte pessoas. Tirem os robôs todos,
porque nunca perderam isso. As aldeias nos tem alguma pertinência. Fiz alguns Mias Coutos,
tirem isso tudo. Voltem a contratar pessoas,
confins da África, da Ásia, não sabem o que é Pepetelas. Sim, fiz alguns.
voltem a dar trabalho. Voltemos a depender
aqui porque continuam a praticá-lo. Agora, os
de nós mesmos, dos nossos braços, da nossa MS E quando decides fazer o documentário, e
europeus e os do Norte perderam. Também lá
força de trabalho. Voltemos a ser outra vez o fazer sobre São Tomé, o que significa isso para ti?
os noruegueses, os finlandeses, continuam a ter
elemento fundamental e único que se chama Como é essa relação? E fazer em Portugal, com
uma vida ligada à natureza. Agora, o resto está
desenvolvimento. A presença humana tem de uma produtora portuguesa?
completamente perdido. Se acontecer, vamos ter
justificar a sua presença aqui no mundo. Não é
de voltar a ter, outra vez, e falo por mim, aulas de AT Porque em São Tomé não há outra forma de
de repente. Justificar porque é que estamos cá,
sobrevivência. Porque já não sei. Se me tiram a fazer, senão em Portugal com uma produtora
neste mundo. De repente, um homem e quarenta
luz de casa, se estou com uma lâmpada fundida, portuguesa. Depois, também, o cinema
máquinas fazem o que duzentos homens fariam,
olho para o combustível. E mais... (sussurra) sou português, o que é? É uma miragem utópica.
e esses duzentos homens ficam a fazer o quê? A
engenheiro. Mas sou termodinâmico, não tenho E, mesmo assim, eu sou dos atores que mais
consumir, porque aqui (na Europa) podem. Mas se
nada com isso. “Tem de mudar essa lâmpada, cinema faz. Até uns dois, três anos, fazia muito
tu cortas isso aqui e vais um pouco mais para o
tem de tirar essa porcaria, depois subir... ah, vou cinema em Portugal, sempre com papéis de
sul, à medida que aqui se corta a necessidade por
amanhã.” Embora o meu pai, comunista que era, preto, sempre. Só um filme em que não fui, a
homens, lá abaixo muito mais. Se aqui despedem
dissesse: “Filho, se todo o mundo fizer isso em única coisa que estava escrito, entre aspas...
duzentos, o reflexo lá abaixo é de três, quatro mil.
casa, estamos a tirar um posto de trabalho.” MS “...subalternizado.”
Ficam sem nada. Porque aqui consome-se mais,
mas de outra forma. Estamos num círculo vicioso MS Tiveste oportunidades, na tua carreira como AT Não, mas tinha de ser um preto que vinha da
que tem de se mudar junto ao paradigma de ator, de viver papéis politicamente fortes? África, não sei o quê. Entre aspas, “um preto”,
ÂNGELO TORRES 152

outra estupidez homérica. M-m-m-mas tudo Cinema português, e quiseram imprimir esse MS E gostas do cinema dele?
bem. Vês que sou gago como a Joacine. Novo Cinema cá. E, quando se dá o 25 de Abril,
AT Pedro Costa? Eu amo de morrer. É um filme
quiseram cortar radicalmente qualquer cinema
MS Eu, às vezes, gaguejo também. cru, não tem contemplações, não faz concessões.
popular instituído pelo regime. Então, foram fazer
Esta é a minha ideia, esta é a minha história,
AT O próprio cinema português é uma miragem. cinema de autor, mas tão de autor que só o autor
quero contar-te assim.
MS Mas porquê? e a família, quando tinham muita boa vontade,
é que percebiam. Isso é que é um divórcio entre MS Não te incomoda o fato de ele filmar as
AT Não existe cinema português.
o cinema e o público, que não é mais do que populações racializadas ou os imigrantes
MS Porque é muito escassa a produção? Porque a razão do cinema: é o espetador. Se não há africanos?
não há mercado, não há uma indústria? espetador, não há cinema. AT Bom, já tenho idade para dizer o que penso.
AT O mercado só está aí para o básico do MS E achas que esse divórcio continua até hoje? Sim e não. O cinema vérité é uma coisa dupla.
pensamento ocidental. O mercado nunca há, tu É para profissionais. É um engano, ok? Essa
AT Estão a tentar reverter, mas muito
crias o mercado. Se queres criar um mercado, senhora faz esse filme e não volta a fazer mais
timidamente. Estão a tentar, tal como aquele
crias a necessidade, depois dás o produto. Ou nenhum. Como aquele que fez o filme Ladrões de
filme fantástico que agora houve com o Tiago
melhor, dás o produto para criar a necessidade. Bicicleta, do De Sica. Fez aquele filme fantástico,
Rodrigues, e o Albano Jerónimo, grande papelão,
Vicias a pessoa. Quando a pessoa fica carente maravilhoso, ganhou em Cannes e tudo, depois
A Herdade, que se passa no Alentejo. É uma
e dependente daquilo, dás em quantidade. Mas nunca mais foi contratado. Tentou e não
tentativa de fazer um bom filme, história clássica,
tem a sua explicação, digamos, relacional. Há contratavam, porque não era ator. Ou trabalhava
contada de forma clássica, com atores pá! Miguel
quem entenda, há quem não. Depois do 25 de só com o De Sica, que tinha outras histórias para
Borges faz um papelão, uma coisa. Falando do
Abril, quando aparece o Novo Cinema português, contar em que ele não cabia. E ele acaba a vida
Albano, o Albano está muito bem, muito mesmo,
foi um pouco contra o cinema que era conotado miserável a chorar na porta da Cinecittà a ver se
mas o Miguel Borges, a Sandra Faleiro, uau! Os
como salazarista, que era muito popular, virado conseguia trabalho. Ele não era ator. Atuar não
três. É uma coisa de Hollywood para Óscar. É a
para as massas, para as bilheteiras. O Novo é algo que qualquer um faz. Agora, essa senhora
tentativa de fazer um bom filme, que vendem
Cinema português foi um grupo de jovens fez esse filme. Quem vai contratá-la no próximo
contra o que o povo quer ver. Depois, há bons
de Campo de Ourique, Avenida de Roma e filme? O Pedro Costa vai contratá-la no próximo
filmes, como o Vitalina, do Pedro Costa. É um
companhia limitada, que puderam ir a Paris filme? Oxalá ele faça mais vinte filmes com ela.
bom filme, só que para um nicho. Mas a história
e tiveram contacto com Le Nouveau Cinema Ótimo, aplaudo. Só que ele usou-a para aquilo de
poderia ser contada de outra forma, piscando o
Française e ficaram “uau”, todos maravilhados que precisava. Grande filme, bem feito. Depois,
olho ao grande público, mas esse é o estilo do
com o neorrealismo, essas coisas todas. E, vai pô-la de lado, isso não se faz. Como em No
Pedro Costa. Ele é isso, cru. Ou comes, ou deitas
quando voltaram para Portugal, criaram o Novo Quarto da Vanda, ele usa atores. A malta estuda
fora. Ele não tem nenhum medo.
153 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES

para isso, há atrizes que veem esse papel como AT Mas com quem? Só com Pedro Costa, porque ganhou um monte de coisa”. Sim, é um homem
fantástico. Carla Gomes, uma miúda da Guiné- só cabe nos filmes dele. É um chá que ele dá com uma visão muito individual e está a fazer a
Bissau, faria aquilo com um pé às costas. Ela foi ao gajo, é um favor que ele faz ao Ventura. sua carreira, a ganhar tudo, tudo bem. Só que, se
preparada para isso. Dê trabalho a uma atriz que Sendo ator, não aceito favores. Ou tu me aceitas queremos defender o cinema, não é por aí.
podia explodir, ganhar aquele prémio. Depois, porque sou bom, ou não; ou sou teu amigo, MS Mas mesmo assim, gosto da obra dele.
qual vai ser outro realizador exterior a contratar teu amante, o que quer que seja, mas tudo tem
AT A obra é boa. Não há nada a fazer, é boa.
essa senhora? Ninguém, ela fica aí. É injusto, não um preço, e por causa disso tu contratas-me.
Tenho muitas coisas contra, mas reconheço.
se deve usar assim as pessoas, eu sou contra. A Agora, pronto, safou-me, foi bem o filme (...).
culpa é do Pedro Costa? Não. Quando tu fazes “Oh, coidatinho, vem cá para um papelzinho.” MS O António Ferro era poeta e líder da cultura
um projeto para o ICA dar-lhe o subsídio: “Olha, Não. Depois de fazer o Cavalo Dinheiro, aquele do governo Salazar. Acho que há limites éticos
desculpa, quem é essa senhora? Não. Traz um papelão do Ventura, ele só faz papéis pequenos. nisso, na poesia, na arte, na cultura.
ator.” O ICA deveria ver, o instituto. Se defendes É claramente para ganhar uns trocos. Não, não se AT Em tudo. E depois, se estamos a defender a
o cinema, deverias defender o ator que é uma faz. E a culpa não é do Pedro Costa, a culpa é que indústria do cinema, não é só o realizador que
parte integrante da indústria. O cinema não é só dá dinheiro. Agora, vou ser muito mau mesmo: o faz parte. No filme do Pedro Costa, o elo mais
o realizador, os atores também o são. A senhora, cachê deles. importante, ou um deles, não se fecha, é o ator.
não sei quem é, fez um bom papel, mas quero MS Então? Ele é que vende o filme, ele é que leva o filme
vê-la num outro papel, de uma dondoca da para as pessoas. Imagina uma Carla Gomes, se
AT Não sei. O cachê deles?
Quinta da Marinha, angolana, cheia de dinheiro. A tivesse feito esse filme, era a oportunidade da
ver se ela se defende bem, se faz tão bem como MS Nunca se soube, não é? Já ouvi essa vida dela, abrir-lhe-ia portas para fazer muito
fez Vitalina. Está aí o justo desses filmes, mas, pergunta. mais coisas. Aquela senhora abriu essa porta,
por outro lado, que o filme é bom, que a senhora AT Eu, se fosse uma atriz a fazer de Vitalina, mas ficou por aí. Espero estar enganado. Espero
esteve bem, temos de aceitar, é muito bom. Mas o cachê tinha de ser de atriz. Espero, por ele ver essa senhora pegar de surpresa muita gente.
podemos ver Cavalo Dinheiro, Juventude em parecer uma pessoa de bem, que pague a essa Só que isso em outros países, aqui não. Lembro
Marcha, No Quarto da Vanda, essa gente está gente o que merecem pelo papel. Porque aquilo a primeira vez que apareci, uau, fiz uma série
onde? Esses atores estão onde? Não são atores. vale, no mínimo, sete, oito, dez mil euros – no em televisão, um êxito, e vamos ser honestos...
Esses cidadãos que foram usados estão aonde? mínimo, e mal pago. À Vitalina, se deres vinte Um dos lados mais racistas desse país, mais
Desapareceram depois, portanto, acho que não mil, está bem paga. Essa mulher carrega o pelos decisores do que pelos espetadores, é o
se deve permitir isso. filme. E aquele filme quanto custa e quanto eles audiovisual. “Ah, porque o público português não
MS O Ventura continua, não é? Ele perpassa os receberam? Há muitas coisas em cima da mesa está preparado.” É mentira. Estou a chegar da
filmes dele, atravessa a cinematografia dele. que... não; “ah, porque dignifica, ganhou prémios, Madeira: “Uau, que feitio, nunca mais apareceu
ÂNGELO TORRES 154

na televisão.” As pessoas gostam, adoram, AT Mentalidade colonial. Ontem, apanhei uma MS E essa leva que veio, achas não se ter
pedem. Em vez de me dizerem a mim, escrevam plataforma. Vinha de Santos para a minha identificado com o novo governo, com o
para lá e perguntem por mim. Eu fico: “muito casa. O rapaz da Índia, de Mumbai, perguntou- comunismo, com o nacionalismo comunista?
obrigado, muito obrigado”; enche-me o ego, me: “Estás aqui há muito tempo?” Eu disse AT Bom, um esclarecimento: é que um
mas não me enche o prato. Se você ligar para que sim. “Então, trabalhas?” Sim. “Aonde?” comunismo nunca houve, é uma utopia.
lá, ou escrever, quem sabe. “Ah, pois, ‘tá bem, Por aí. “Nas obras?” Olhei para ele: “Porquê?”
MS Mas utopia… Pronto, o MPLA dizia-se um
se calhar...” O cinema português só às vezes Ele: “Trabalha nas obras?” Pena que não fala
movimento comunista.
se lembra de mim, ou de outros como eu; por português e mal fala inglês, pena para ele, não
exemplo, o Igor Regalla fez um papel fantástico para mim. Perdeu uma oportunidade de ter AT Não se dizia, diziam que eles eram. Não
agora em Gabriel. Ele fez uma adaptação, teve uma bela aula de sociedade e história. Perdeu tem nada que ver. Eram todos nacionalistas de
de vir da Ucrânia, passou para Cabo Verde. a oportunidade. Porque a cabeça daquele esquerda.
Fantástico, maravilhoso. Só que é um miúdo cidadão, que está cá há três anos, situa-me a MS Mas o Amílcar Cabral...
que vem de Cabo Verde. Gostaria de ver o mim como trabalhador de obras. Agora, imagine
AT Amílcar Cabral não era comunista.
Igor Regalla. Um jovem que acabou de sair da aqueles que os pais enviaram para cá, muitos
faculdade, tirou um curso e, de repente, fez um de segunda, terceira geração. Estão cá hoje a MS Mas pelo menos disse que sim.
percurso e tornou-se um high-tech. Por exemplo, reclamar a nacionalidade, porque os pais deles, AT Dizem, dizem. Ele era de esquerda. Amílcar
hoje por hoje, o engenheiro de robótica mais com a independência, vieram-se embora com o Cabral era mais socialista, como conhecemos
bem pago do mundo é um gajo nigeriano que colonialismo. Não aceitaram a independência, cá, do que extrema-esquerda. Amílcar Cabral,
estudou na Nigéria, e agora está há dois anos no muitos vieram embora. Outros não vieram logo desde 1953, tenta a conversação com a origem
Reino Unido a ganhar dinheiro. Porque não pode embora. Vieram embora quando puderam: 1975, colonial. Em 1953, 1957 e 1959, tentou conseguir
ser? Se criarem essa ilusão, essa utopia, pode ser 1977, 1978. Muitos vieram embora porque viram uma negociação, uma forma de organizar e
que os miúdos dos bairros acreditem que podem a independência, não gostaram do que viram, negociar uma saída, como seria essa saída, se era
ser também. Que tipo de sociedade queremos não concordaram com o que viram, saíram. federativa…
criar? O que queremos para o futuro? Pelo que “Para isso, nós preferimos ser portugueses”,
MS ... fora da luta armada.
eu vejo, parece que muitas consciências, muitas e vieram embora, só que perderam a leva da
mentalidades querem perpetuar essa forma nacionalização automática. Ao terem ficado, AT Fora da luta armada. Tanto é que foi o
retrógrada, obsoleta, antiga da divisão social do perderam o direito de ser portugueses, mas primeiro do movimento a formar-se, e o último a
mundo. Cada raça na sua. na mentalidade deles nunca deixaram de ser começar a guerra.
portugueses. Então, os filhos já nasceram cá, e os
MS Mentalidade colonial. MS Mas foi também a guerra mais violenta.
filhos dos filhos nasceram cá.
155 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES

AT Mais terrível e mais violenta, porque estavam AT Unia-os para um objetivo maior. Deu-se a ala comunista do MLSTP, mas havia outra ala,
mais bem organizados, só isso. O MPLA entra em independência. Mesmo, por exemplo, o Savimbi os Fretes, o Leonel d’Alva, o Miguel Trovoada
guerra sem saber. O MPLA foi empurrado para a foi do MPLA, depois viu “ah, não é bem isso eram mais nacionalistas do que de direita ou de
guerra com o Quatro de Fevereiro. Primeiro, com que quero”, e foi-se embora. Dentro do MLSTP, esquerda, o que eles queriam era um período
o massacre da Baixa do Cassange, acho; depois, o Miguel Trovada tinha uma forma de pensar, independente. E como o país ficou independente,
os portugueses retaliam ao Quatro de Fevereiro. o Pinto da Costa tinha outra; a FRELIMO vai-se “ok, vá, em nome dessa independência, vamos
O MPLA, como movimento, teve de entrar porque embora. Ele pede a independência e vai-se tentar”. Como dentro do MPLA, muita gente
senão perdia o comboio e nunca mais levantava embora. Portanto, havia várias formas de pensar não é de esquerda, mas, para eles, Angola
a cabeça. Tiveram de entrar na guerra em 1961. dentro dos partidos, só que havia o objetivo independente é mais importante do que a
Mas o país em si entrou também, em 1963. maior, que era a independência. Depois da ideologia. Como dentro da UNITA, há pessoas
A FRELIMO, creio que em 1962, não sei bem. independência, vêm todas as deferências ao de que são de esquerda. Eu sou de esquerda aqui na
Sempre houve a tentativa de uma forma pacífica cima, e deu no que deu. Essa guerra fratricida, UNITA, mas contra o MPLA, contra a via do MPLA.
e calma, como a França fez, mas Portugal não que é a guerra civil entre irmãos, que levou mais E dentro da esquerda há maoistas, trotskistas,
quis, e não se fez nada. tarde à democracia. A democracia imposta, leninistas, marxistas, há muita coisa, como
quer se queira, quer não, acabou sendo imposta dentro da religião católica temos adventistas, etc.
MS Mas também houve guerra na Argélia, por
pelo exterior, como os próprios regimes foram Portanto, decidir que éramos comunistas...
exemplo, contra o colonialismo francês, muito
impostos também ao exterior. A União Soviética e
sangrenta. MS ... simplificava muita coisa.
Cuba foram os que mais apoiaram durante a luta
AT Sim, uma guerra duríssima, sangrenta. Depois, armada. Então, quando se dá a independência, AT Exatamente, mas não éramos. Há essa
Argel passou a ser o nosso Eldorado dos partidos vamos ser como os nossos amigos são, os maldade, esse lado nocivo, mau, da sociedade
de esquerda. nossos parceiros, e ficaram. Cuba, por exemplo, ocidental. Porque eu, se te roubo um brinquedo,
ou, melhor, se tomo o brinquedo que era meu,
MS Inclusive intelectualmente. é empurrada ao socialismo por causa do
bloqueio. O primeiro congresso do Partido que achaste ser teu, não vais entregar-mo de
AT Independentistas de esquerda. E porquê, mais
Comunista Cubano é em 1962, porque até aí mão beijada. E, até hoje, o Ocidente reclama esse
tarde, essa fração? Porque no início era o bem
era um movimento nacionalista de esquerda. brinquedo que acha que é dele. Porque deus fez
comum, o bem maior, a independência. Depois
Mas como a direita organiza-se e começa a ir o mundo para os que criaram deus louro de olhos
da independência, houve divisão, houve fração.
contra, a massa fecha-se, pois o mundo estava azuis, à imagem e semelhança deles. Acham que
Porque dentro do movimento havia quem era de
dividido em dois blocos. Aquele que nos ajudava esta coisa chamada Terra é um direito que lhes
direita e de esquerda, havia vários.
mais, virávamo-nos para ele. E decidiu-se, cá assiste pelo deus que eles criaram e que acham
MS Ou seja, o nacionalismo unia diferentes forças fora, que éramos comunistas. O meu pai era da ser maior do que todos. Enquanto isso, vingar?
nacionais. Estaremos sempre nessa luta constante, e nunca
ÂNGELO TORRES 156

haverá tranquilidade, para não dizer outra coisa dinheiro é português, tem de ser controlado admite que um cineasta como Flora Gomes faça
mais querida, paz. por uma produtora portuguesa. Antigamente, um filme de sete em sete ou oito em oito anos,
o que faziam muitos realizadores? Eu fiz dois não se admite, não pode. Não deve ser. Flora
MS Acho que ela queria fazer uma pergunta...
filmes assim. Iam para África – realizadores Gomes tem de fazer filmes de dois em dois anos.
VF Eu queria retornar a questão do audiovisual, portugueses –, criavam uma produtora em África, Se não há dinheiro na Guiné-Bissau, o governo
porque estavas comentando sobre essa não concorriam como PALOP, ganhavam, porque guineense devia fazer de tudo para captar
presença de atores negros. O teu filme foi feito tinham melhor currículo, e faziam o filme com dinheiro para que ele pudesse fazer. Porque ao
com uma produtora daqui? tema africano ou parecido à África, dizendo que fazer, é a história da Guiné que estão a contar,
AT Sim. era um filme africano. Então, agora, depois de é a história da Guiné que se está a perpetuar.
muitas represálias, Zezé Gamboa foi um dos Daqui a cem anos, alguém vai assistir e ver que
VF E vocês captaram recursos para fazer o filme...
responsáveis por chamar a atenção para essa eram assim, que viviam assim, faziam assim,
AT Qual filme? O documentário? injustiça. De tanto batalhar, conseguiu que a sonhavam assim, gritavam assim. Enquanto não
VF Sim, o documentário. lei fosse revogada, modificou-se a lei, e agora tiverem essa consciência, e pensarem que o
premeia-se um realizador africano. É bom. É a cinema é só lúdico..., embora no lúdico também
AT Sim, foi uma coisa chamada “DOC...”
única forma de eles poderem fazer filmes. Não haja muito de formativo. Enquanto não tivermos
VF DOC TV. Pronto, era isso que eu queria posso estar a apontar só para um lado, tenho de essa mentalidade, não se fará cinema no nosso
perguntar. apontar para o outro lado. Os nossos dirigentes país. Eu venho da estrutura, da superestrutura.
AT E o outro foi um amigo meu quem patrocinou. são burros, atrasados mentais, incultos de “Filme, não sei o quê, fogo.” Estou a falar com o
primeira água, para não dizer mais. E acham primeiro-ministro de São Tomé e Príncipe. Não
VF No Brasil, acho que agora isso vai declinar,
que o cinema é uma estupidez, uma futilidade foi só um, nem dois. “Fogo, como é que tu queres
mas foram discutidas muitas políticas
de gente rica. Essa é a mentalidade dos nossos que eu faça cinema se não há dinheiro para
audiovisuais nestes anos todos, e não se criou
dirigentes, não veem a importância cultural e comprar aspirina?” Por isso mesmo, tens de fazer
uma cota, mas criaram-se muitos editais para
social que o cinema tem. Para eles, cultura é cinema, por isso mesmo. Se vão fazer campanha,
mulheres, para a população negra. E aqui há um
edital, que é o edital dos PALOP. folclore. Enquanto o pessoal lá de baixo tiver essa fazem uma produção, gasta-se. Agora, deram
mentalidade, não será fácil ou possível produzir três milhões de dólares para fazer campanha
AT Ah, sim. Durante muito tempo, foi uma cinema em África. E não se admite que num país, para saneamento básico, uma coisa qualquer.
grande mentira. Mas, há dois anos, reverteram como Angola ou Moçambique, o cinema seja uma Tendo as condições de São Tomé, eu não faria,
o regulamento e a lei. Hoje, o projeto tem de questão de carolice, como se diz em Portugal. não preciso de fazer. Dá-me cinquenta mil euros,
ser uma produtora africana, com um realizador Ou que tenham de vir para fora, para Portugal, eu faço-te um filme sobre campanha de saúde
africano, coproduzido por uma produtora mendigar dinheiro para conseguir fazer. Não se pública, de saneamento básico. Com cinquenta
portuguesa. E entendo porque, já que o
157 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES

mil, juntamos um projector com ecrã, fazemos a ser quase ocidental a falar dos meus países. grupo – quem a tem sou eu – é a de congregar
o filme, e vamos de bairro em bairro exibir esse Porque cresci com PAIGC, MPLA, FRELIMO, MLSTC as pessoas. E isso não é estar-me a pôr em
filme. Depois, com o resto do dinheiro, fazes dentro de casa. Quando tenho de pedir um visto bicos dos pés. Há tentativas de formar grupos
o que sem ele se faz. É uma forma. “Fogo, pá” para ir a Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde de teatro em Portugal. Houve quatro tentativas
(faz gesto de ‘lava-mãos’)! Enquanto pensarem ou Angola, dói-me a alma, porque eu vivi todas até chegar ao Griô, e, nessas quatro tentativas, o
assim... Ok, há aquela coisa, é normal. Tenho um as independências desses países. Quando era único nome que se repete é o meu. Na primeira
grande amigo, cineasta da Guiné-Bissau, o Filipe ganha uma batalha, eu celebrava, era criança, e formação do Griô, eu era vice-presidente;
Henriques, que deveriam entrevistar. Já falaram em minha casa celebravam. Quando morria um quando o grupo se extinguiu, eu era presidente.
com ele? herói da independência, chorávamos em casa. E agarrei nesse nome. Griô é um nome africano.
Portanto, esses países também fazem parte de Eu já não faço parte do grupo hoje, e entendo
MS Ainda não. É o próximo. (risos)
mim, eu sou desses países também. Por isso (...). o que eles querem fazer, mas não quero fazer
AT Ao Filipe Henriques é um direito que lhe O que eu ia dizer? peças de teatro no teatro do bairro, no Teatro
assiste. É um miúdo que nasceu e viveu até aos
MS Por causa do Filipe Henriques, que é da São Luís. Quero fazer Gerações da Utopia,
quinze, dezasseis anos na Guiné-Bissau, e veio
Guiné, mas tem essa visão muito estreita sobre o quero fazer Terras Sonâmbulas, quero adaptar
embora para Portugal. Tem outras aspirações,
financiamento dos filmes. também textos da Chimamanda Adichie. Quero
outros desejos, outros sonhos como realizador. levar peças de teatro ao Teatro Dom João, aos
O Filipe vê o cinema como algo artístico, quer AT Estreita não. Outra forma de ver o cinema.
Recreios da Amadora, e para o teatro do Cacém.
expressar a sua arte e a sua capacidade de MS Outros modos de circulação também. Quero estar no palco, olhar para a plateia e
poder manipular, mover com a imagem, o som, a
AT Sim, sim. Ele quer fazer filmes artísticos, ficar “uau”, olha lá o meu primo, o meu amigo.
história. Ele não vê o lado formativo, ele vê mais o
enquanto eu quero fazer filmes formativos, Já me aconteceu de estar no palco, estava de
lado lúdico do que formativo. Está no direito dele.
sociais, para instruir, educar, formar as pessoas. costas, quando viro, na sala estúdio do Teatro
Com isso ele merece ser apoiado para fazer o
Quero fazer um filme politicamente social. O Municipal Amélia Rey Colaço, vejo quatro pretos
filme? Sim. Vamos supor que o Filipe faz um bom
Filipe quer fazer filme de autor. O espinho da que eu não tinha convidado, e perco-me. Fico a
filme, e o filme é premiado em Cannes, em Los
Rosa é um filme de autor. Vem de uma tradição olhar, “mas quem são?” Graças à minha colega
Angeles, em Hollywood, em Veneza, em Berlim.
da Guiné-Bissau que ele transformou em filme – éramos só dois em Sorrisos (de uma Noite de
É um nome da Guiné de que se está a falar.
de autor. Enquanto eu quero fazer um filme Verão), de Bergman –, ela é quem diz a minha
Portanto, indiretamente é para a Guiné. Só que
popular. Mesmo em teatro, tenho uma pequena fala. Eu ia dizer: “Começamos como? Engomas
“ah não, não sei o quê...” Enquanto eles forem
divergência com o pessoal de um grupo tu ou engomo eu? Estou farto de engomar.” Ela
tão curtos, a nossa governação será feita de
chamado Griô, que é um grupo de teatro que dizia qualquer coisa, e eu dizia: “Pois, é sempre
navegação, com terra à vista. A malta não sabe...
formei, sou um dos fundadores. E a ideia do assim, as mulheres têm de… não sei o quê.”
E é normal. Atenção. Estou a ser injusto, estou
ÂNGELO TORRES 158

E perdi-me, tive de retomar outra vez a peça. AT É outra forma. E só vem a enriquecer, porque é fazer contas. É raro que tu encontres alguém que
“Quem são esses gajos? Quem os convidou? como nós vemos esta sociedade, como sentimos, possa dizer que sabia. Mas sim, a minha sabia. A
Porque estão cá?” Eram miúdos que vieram de como vivemos com essa sociedade. E dizem: minha trisavó sabia ler e escrever estupidamente,
Coimbra para ver a peça porque quiseram ver “Vocês estão a ser injustos para connosco.” É contava os criados dela. Já tinha abolido a
uma peça de teatro, e foram cair lá. Eu não queria uma crítica, mas é construtiva, porque a malta escravatura. Portanto, eu não tenho culpa de
que isso acontecesse, queria dizer: “Quem são quer uma convivência salutar, uma convivência nascer numa família...
esses brancos?” Estou a exagerar, mas gostava justa, que seja… Como se diz?
MS … abastada.
que fosse assim. Por isso, a elite se quiser vir que MS Harmónica.
AT Já foi. Mas não era abastada, era prestigiada.
venha. Mas por defeito de formação e defeitos
AT Harmónica. Não. Quando se divide? Tinha prestígio em São Tomé. Agora, quando se
de políticos que fingem ser do povo. Eu gosto
Equitativa. Queremos uma divisão equitativa. olha para ti, e não é algo que digo com orgulho,
de fingir que estou no meio da população, que
Não para um senhor indiano, de Mumbai, que do que disse esse senhor antes de ontem, que
o povo está comigo. Gostaria de representá-
está cá há três anos, olhar para mim – bem- decidiu que: “Este gajo é das obras.” Enquanto
los mais, coisa que não faço, infelizmente, mas
vestido, porque eu visto-me sempre bem, muito houver essa forma de olhar para o outro... Por
gostaria. Gostaria de poder saber o que eles
bem por acaso, cheirando bem, porque eu exemplo, olham para um romeno, para um
querem, o que eles dizem, para podermos nos
cheiro bem –, sentado ao meu lado, olhar para ucraniano, louro de olhos azuis, e dizem: “Devem
comunicar, eu perceber o que eles querem dizer,
mim: “...nas obras?” Uau. Ele só me vê como um ser muito bons a matemática... Porque o sistema
eles perceberem o que eu quero dizer. E não
trabalhador das obras. Por exemplo, há alguns de ensino deles, não sei o quê...” Vem um gajo
cair no engano, Pedro Costa, não é uma crítica,
negros a serem choferes dessas plataformas, do Leste, vem um chinês. Há chinês malandro,
é uma constatação desta mentira que é ‘falar
Uber, Bolt, Kapten, Taxify, há negros, pretos, se há chinês ladrão. Porque é que a máfia chinesa é
em nome de’. Vitalina é um exemplo de filme,
quiser. Mas nem lhe passou pela cabeça que eu uma das mais temidas do mundo? Há um motivo.
mas a realidade das Vitalinas, e há montes por
podia ser um colega dele. Não, obras. Se fosse Porque é que uma das máfias mais temidas do
aí, ninguém conta. Ainda continuamos a contar
mulher, diria, “está na limpeza, não é?” Direi mundo é a ucraniana? Ninguém rouba ao ponto
a versão do caçador. E não é com um concurso
algo com muita vaidade, mas com a humildade de organizar-se para roubar melhor e matar
de PALOP, e com realizadores que estão lá a viver
que está intrínseca nesta afirmação. Quando os porque gosta de trabalhar. Não. Além da falta
em África. Mas África começa aqui, e enquanto
meus amigos portugueses falam isso, eu digo: de empatia, que é uma questão a se estudar, a
a sociedade portuguesa não reconhecer que há
“Só uma coisa, a tua trisavó sabia ler?” Sabia. falta de empatia social, isso faz com que tu vás
uma forma de interpretar Portugal, de estudar
“Então, a tua família é quem? Ah, ‘tá bem...” Mas à margem da sociedade, há também a falta de
Portugal, de querer falar Portugal, há um ponto
se não for dessas famílias aqui de Lisboa, muito disciplina do esforço. Depois, tu canalizas toda a
de vista que não é luso.
finas, é raro as pessoas terem trisavós, e não tua concentração, a tua capacidade de produção
MS Está em outro lugar, olha de outra forma. digo trisavôs, trisavós que sabiam ler, escrever, e reprodução para produzir coisas que estão à
159 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES

margem, avessas à sociedade. Por isso, criam Aqueles malucos americanos, eles também se também era celebrado, só que muito emotivo,
os games, os bandos, não sei o quê lá. Também sentem, de uma forma ou de outra, violentados muito emocional. E Arão, tudo o que fazia tinha
é uma forma de identidade e falso sentimento pela sociedade, por isso reagem assim, com a justificação, era um negro no meio de uma
de defesa. O meu igual, o meu parecido. facilidade de comprar uma arma. Enquanto a sociedade branca em que conseguiu ter um
Portanto, enquanto nós não pensarmos assim e sociedade não estiver em paz consigo própria, filho com uma mulher. O filho foi morto, muita
o português não sair da sua zona de complexo, vai ser muito difícil. discriminação e não sei o quê... Ele apanha uma
porque são complexados, veem o loiro “ah, raiva tal, que vinga-se de todos. E, ao vingar,
MS Só para encerrar, até comecei a gravar de
uau”. Como também a Globo. Todo o mundo quando apanhado, na forca, perguntam-lhe:
novo. Eu ouvi recentemente numa aula sobre
que seja loiro de olhos azuis trabalha na Globo, “Não tens nada a dizer?” Ele diz: “Tenho. Se eu
cultura africana que a escravidão já existia em
como também aqui nas televisões. Eu diria que pudesse voltar a fazer o que fiz, faria mil vezes e
África, que os portugueses não inventaram nada
loiro de olho azul pode ser feio. Há duas ou três mil vezes pior, matava as vossas mães, violava
a mais do que algo que era um processo histórico
miúdas da televisão, loiras de olhos azuis, e são as vossas irmãs, matava os vossos cadáveres,
natural. O que eles faziam era transportar
feias. Abre os olhos. Brasil idem. Enquanto não punha-vos em frente à vossa porta, sangrando,
pessoas escravizadas. E nunca falam de pessoas
passarmos desse complexo, partirmos todos para que, todos os dias em que abrissem a porta,
escravizadas, são simplesmente “os escravos”.
os cânones, deitarmos tudo abaixo. Glorificar a vissem a culpa diante da vossa porta.” Então,
Já escutaste isso? O que achas desse tipo de
gesta de Vasco da Gama é bonito, mas só a gesta desde que se ganhou a capacidade de poder
afirmação? Porque tem-se discutido muito no
marítima, o resto não. E eu disse isso no outro dizer alguma coisa em voz alta, de poder escapar
Brasil, não só um negacionismo histórico em
dia na Madeira, ficaram todos escandalizados: da mordaça que tínhamos, e começarmos
relação à escravidão, mas um revisionismo
“Temos de matar os nossos deuses, derrubar a exigir que se revisse a história, houve um
histórico, que também tem acontecido muito
as nossas estátuas, e voltar a contar as nossas período de bonança em que se via até onde
insistentemente, sobretudo em relação à história
histórias.” isso ia. Mas quando começou a ferir o que eles
do colonialismo. Eu queria saber a tua opinião
dizem de civilização e história, claro, começou-
MS Então, vamos acabar por hoje com essa frase. sobre isso.
se a criar desculpas. Criou-se esse lado para
AT Pela forma como tu passas a notícia, como AT Esqueci-me do texto na íntegra. É um desculpabilizar. “Nós não temos culpa, a culpa
tu instrumentalizas o pensamento, indireta ou monólogo de uma peça chamada Tito Andrónico, também é vossa.” Foram buscar lá, quando aqui
diretamente, estás-me a pisar. E ao pisar-me, uma personagem chamada Arão, que foi um o escravagismo havia em toda a história, em
claro que vou reagir. Há quem reaja de uma dos papéis que fiz de que mais gostei, e, no todas as latitudes, em todas as raças. Eu fazia-lhe
forma pacífica, há quem reaja de uma forma final, Arão é o mau da fita, ele é o ensaio para prisioneiro e você vinha trabalhar para mim como
extrema. Porque é que a maioria dos atentados o Iago (de Otello). E, não em vão, ele faz Arão escravo. Claro, não ia pagar a um prisioneiro
na Europa é de filhos europeus? É de gente daqui. negro e Iago branco. Iago é mais celebrado. Arão de guerra. Invadíamos essa terra, tínhamos
ÂNGELO TORRES 160

homens aqui para fazer trabalho que ninguém a sua pena como prisioneiro, conseguiu ser Só que depois de cumprir, tu eras solto, podias
queria. Trazíamos homens fortes de lá para libertado e atingiu o estatuto de rei ou de nobre, voltar à tua tribo, ao que tu quisesses. Mas não
essa terra, e púnhamo-los a trabalhar, porque é porque nunca lhe tirámos o mais importante, era da mesma forma. E as excursões de captura
eram prisioneiros. Depois, alguns conseguiam a alma. Não o desumanizámos, continua a ser que faziam. Parecia que ficavam na costa a tomar
escapar ou atingir a liberdade, eram soltos e um semelhante como nós. Como uma pessoa sol, a beber caipirinhas, não sei o quê, e a malta...
podiam viver na sociedade, alguns cresciam ou que matou a mulher – está preso em qualquer (imita grunhidos). Pagavam. E há de todo o tipo
morriam prisioneiros. Sempre houve em toda cadeia de Portugal –, depois de cumprir a pena, de pessoas. Corromperam, compraram. Essa
a história, na África também. O que não havia se ele se arrependeu, volta a ser integrado na prática de corrupção do Ocidente com África
era agarrá-los aqui, levá-los para lá e vender. sociedade. Alguém o vai incluir, alguém o vai não é de hoje, de virar tu contra esse, esse contra
Isso não havia. Mesmo assim, em África, traziam aceitar. Ele não deixa de ser semelhante a nós, aquele, pago-te a ti, depois pago a ele. Desde
inimigos escravizados. Houve inimigos que até há campanhas de reeducação. Toda a teoria aquela altura e, claro que há pessoas ambiciosas
chegaram como escravos, depois de dois, três, racial, toda a teoria escravagista, é ocidental. de todas as raças, nós não escapamos disso,
quatro anos, deixaram de ser escravos, subiram Não vale a pena tentar tirar essa culpa, porque para demonstrar a nossa humanidade, para
na sociedade e chegaram a reis. Temos vários é deles. Escravizaram, venderam, agarraram demonstrar que somos tão humanos quanto os
exemplos, Musa, Iaia, há outro do Gana que me crianças para servir de alimento a crocodilos. outros, temos os mesmos defeitos que os outros
escapa o nome, que chegaram a reis depois de Tiraram-nos o direito de existir, o direito de ser têm. E o que é que os outros tinham mais do que
terem sido escravos. Outros que tiveram filhos pessoas, o direito de deus, mataram os nossos nós? Tinham um poder que a malta não tinha.
de escravos conseguiram, quando nasceram deuses todos. Até o Bartolomeu de las Casas, Há um padre africano que diz: “Se formos pintar
ou foram libertados, chegar a reis depois. Não o próprio Padre António Vieira, defendiam os o diabo, ele não tem rabo, mas tem uma cor. É
era um negócio, não era um tráfico, não era índios, porque um mediterrâneo, com bom sol no branca. Vamos ver toda a maldade do mundo,
nada, era apenas a estupidez do ser humano verão, pode parecer um índio, pode sim. Mas nós qual é a cor que sempre esteve lá?” Prenderam-
em subjugar e explorar os seus semelhantes. não, tiraram-nos o direito de ser gente, tiraram no. Em 50-e-tal, quando disse isso, prenderam-
Nós, africanos, somos seres humanos, fazíamos os nossos nomes, deram o nome deles. É como no, foi a reação de um senhor. Eu não vou chegar
o mesmo. Agora, o tráfico negreiro, o negócio essas pessoas que chamam os cães de Frank, a esse ponto, mas quem inventa deus, diabo,
de escravos é uma invenção portuguesa que Bobby, Fernando – há cães com esses nomes. essas coisas, é a religião católica. E a cor do
toda a Europa replicou. É invenção deles. Eu Naquela altura, éramos piores do que cães, nem diabo aparece quando? Vá olhar para o Antigo
não via um congolês a ser capturado no Congo, sequer éramos gente. Como é que podem hoje Testamento, não está lá que ele é preto. Não
a ser levado para o rei do Mali para trabalhar querer dizer que a culpa é nossa? Quando o rei está. No Novo Testamento começa a aparecer a
e vendê-lo numa praça. Não. E, mesmo assim, comprava, capturava e vendia para outro, claro hipótese de ele ser, não sei o quê. E vais à procura
se agarrei um escravo que, depois de cumprir que era para trabalhar de uma forma desumana. daqueles contos de Aristóteles, daquela época;
161 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES

aquela lenda do cavalo branco e do cavalo


preto. De repente, começa a se formar essa
ideia. Quando se pensou numa cor para o diabo,
foram procurar naquela mais desconhecida, e
calhou-nos a nós. Naquela altura, não se tinha
contacto com o chinês, com o indiano. Talvez
se tivessem tido contacto com eles, pudesse ter
sido um deles, não sei. Mas como já tinham tido
contacto com o negro, porque o negro sempre
esteve aqui presente na Europa. Mais ou menos,
sempre houve presença negra nessa sociedade.
E muitos destacaram-se em várias cortes. Hoje,
vão-se vendo histórias, estiveram lá sempre
com destaques, mais ou menos. Mas quando
isso se torna teoria e depois passa à ideologia
com o racismo e o eugenismo, nos séculos xvii,
xviii, é que chegamos aos nossos dias. E, hoje, há
revisionistas que querem aliviar essa culpa. Mas,
não. Temos culpa sim, porque só o fato de termos
capturado escravos e entregado a ti, e lucrado
com isso, temos culpa. Só que o negócio escravo
não é invenção nossa. Só se vende quando
alguém quer comprar.
HAMILTON TRINDADE
ENTREVISTA REALIZADA POR
MICHELLE SALES E ANA CRISTINA PEREIRA

agrária. Na prática, antes de ser cineasta, fui


técnico agrário. Mas sempre tive esse bichinho,
tanto pelas tecnologias, pela multimédia, como
pela televisão em si. Quando comecei a fazer
formação como técnico de produção agrária,
tive sempre a oportunidade de poder mudar
de curso e fazer um curso numa área com a
qual mais me identificasse. Mas, com o passar
do tempo, fui-me apercebendo de que tanto a
agricultura como a tecnologia têm algo que as
Hamilton Trindade, Mala Voadora, 2019, por Michelle Sales e liga uma à outra. Nomeadamente, agora, na era
Ana Cristina Pereira @michellesales moderna, a agricultura e a tecnologia estão, de
alguma forma, ligadas. Então, decidi não desistir
Michelle Sales Vou pedir-te que comeces por
do curso, finalizei-o e apresentei um projeto de
te apresentares. Queria que fizesses, também,
investigação sobre produção de culturas que
uma retrospetiva afetiva da tua trajetória e
desenvolvem...
[explicasses] o que te levou a trabalhar com
o cinema e que caminhos foram esses que te Ana Cristina Pereira Fizeste a licenciatura em
levaram a fazer um filme. Queria que fizesses agronomia?
um background mental e conseguisses construir HT Não, a seguir. Fiz o [ensino] técnico em
o teu percurso para sabermos mais sobre o agronomia e depois fiz a licenciatura em novas
Hamilton. tecnologias da comunicação.
Hamilton Trindade Hamilton Trindade, 36 anos, ACP Ambas na Universidade de Aveiro?
sou natural de São Tomé e Príncipe. Vim para
HT Sim. A anterior foi numa escola profissional
Portugal em 2005 para fazer o curso de produção
mesmo em Aveiro, na Escola Profissional de
HAMILTON TRINDADE 164

Agricultura e Desenvolvimento [Rural] de do lado de Portugal; depois, havia um casal como entrei para o cinema, não foi diretamente,
Vagos; faz parte de Aveiro, mas é em Vagos. de espanhóis que ficava preso em Portugal e mas fui entrando paulatinamente.
Depois, a seguir, quando terminei o curso vinham os militares espanhóis resgatar os seus MS Hamilton (não sei se vais continuar no
profissional, aí sim, candidatei-me a fazer novas conterrâneos. Com esta curta até participámos Festival de Avanca), mas eu queria que voltasses
tecnologias. Comecei em Aveiro, dentro das no Festival de Cinema do Departamento de um pouco [atrás] e falasses um pouco da curta
minhas possibilidades. Se calhar, podia estar Comunicação e Artes onde eu estudava, que Ibéria. De onde surgiu a ideia para esse projeto e
nos Açores ou na ilha da Madeira a estudar, era o DeCA. Estávamos nomeados para um o interesse por contar essa história em Portugal
porque era uma das universidades que eu tinha prémio de efeitos especiais. Como nós tínhamos e Espanha?
como opção, mas o facto de já estar a viver em a possibilidade de fazer um projeto em 3D ou
HT Depois de muito brainstorming dos colegas,
Aveiro também influenciou que fosse colocado imagem real, decidimos arriscar e juntar os dois,
um dos colegas apareceu e “que tal se nós
na Universidade de Aveiro. E foi assim, com o 3D e a imagem real, apesar de ser ainda muito
fizéssemos algo entre Portugal e Espanha? Já
todas as dificuldades que tive; vinha de uma elementar. Na altura (estou a falar de 2010),
que no passado houve esse conflito em que a
área que não tinha nada que ver, gostava muito, mesmo os nossos professores não tinham...
Espanha quis unir Portugal e essas coisas todas.”
mas não percebia nada. Mas tinha vontade, era Mas nós arriscámos e fizemos um conjunto de
Eles tiveram aquela ideia, “então, vamos fazer
aquilo que eu queria. Entrei para o curso (tinha coisas e ficou o trabalho que foi feito. Entretanto,
isto assim”. Agora, por acaso, já não me lembro
algumas equivalências) que despertava em mim com este filme, além de termos participado no
dos contornos que deu... Já passaram quase dez
mesmo grande interesse, como trabalhar para a festival do departamento onde estudávamos,
anos.
televisão ou estagiar nos estúdios da RTP. Mas, fomos convidados a participar no Festival de
infelizmente, quando entrei para o curso, as Avanca, numa categoria que englobava projetos ACP E é um projeto de escola. Depois disso,
coisas mudaram. Fiquei ali, terminei, e foi durante universitários. Foi mais uma participação onde fizeste um filme teu.
o curso que tive a possibilidade de estar não só pudemos mostrar [o nosso trabalho]. A seguir, HT Sim. Fiz um filme meu, mas, já recentemente,
no ramo da multimédia, mas também ligado onde comecei mesmo a trabalhar em cinema em 2017.
um pouco ao cinema. Tínhamos uma cadeira, (não diretamente a produzir nem a realizar) foi
ACP Para nós, era interessante [saber] como
Escrita para Televisão e Cinema, cujo trabalho no Festival de Avanca, [onde] fui convidado
chegas aí, a esse filme teu?
implicava a realização de uma curta-metragem, a fazer parte da equipa de produção e onde
fosse de animação, 3D, fosse de imagem real, comecei, juntamente com outro colega, a HT Como é que chego a este filme meu? Este
o que nós quiséssemos fazer. E foi ali que eu coordenar o campo de trabalho internacional – filme já era um projeto em que andávamos a
comecei. Fiz uma primeira curta, Ibéria, sobre, alunos e jovens que vinham de outros países da pensar há algum tempo. Depois, como eu fazia
basicamente, um período de conflito entre Europa para participarem no festival e fazerem parte de um festival, a organização do festival
Portugal e Espanha, em que o conflito acontecia trabalhos. E foi um processo que começou assim, disse: “Então, já estás aqui há tantos anos,
165 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES E ANA CRISTINA PEREIRA

também podias fazer um filme; acho que tens MS E porque é que escolheste Portugal? parte dos nossos planos, mas era uma pessoa
conhecimento suficiente para fazer um filme, que eu conhecia e, na altura em que fomos
HT Por causa da língua, principalmente. Podia
desde que não seja um filme todo ele muito bem filmar, ela estava em São Tomé, conversei com
ter ido para outro país, por exemplo, para o
produzido, com grandes produções, mas podes ela, expliquei-lhe o que estávamos a fazer, o
Brasil, mas escolhi Portugal. Tinha aqui também
também fazer um filme, vai ajudar-te também a que era o projeto, e ela ficou sensibilizada e
familiares, era ligeiramente mais prático para me
construir o teu currículo.” E aí comecei a pensar partilhou connosco a sua história de vida e
poder adaptar.
em diversos projetos, dos quais depois saiu o como conseguiu dar a volta depois de todas as
ACP Nesse filme, Sonho Longínquo no Equador,
meu documentário. Comecei a pensar naquela [dificuldades] que teve durante a infância. Hoje, já
as entrevistas foram feitas em São Tomé ou com
história dos jovens em São Tomé que têm muitas fez dois cursos.
jovens são-tomenses cá?
dificuldades. O país é um país rico, muito bonito, MS Não sei se viste o filme do Silas Tiny, O Canto
mas temos imensas dificuldades financeiras. E HT As entrevistas foram todas feitas em São do Ossobó, também é um documentário...
há muitos jovens que não querem ficar em São Tomé.
HT Ainda não.
Tomé, querem sair para poderem descobrir
o mundo, descobrir outra maneira de fazer MS Também é filmado em São Tomé, com
as coisas. E foi esta que serviu de argumento algumas entrevistas. É um documentário muito
para eu fazer o meu documentário, que se reflexivo sobre o facto de a família emigrar para
chama Sonho Longínquo no Equador [2017]. Portugal e a relação dele com São Tomé. Sei
Basicamente, tentar perceber, com entrevistas que acabaste de dizer que não viste o filme, mas
junto dos jovens, se, agora que são adultos, achas que o teu trabalho, nesse sentido, o facto
conseguiram realizar os sonhos que tinham em de filmar o próprio país, ou filmar pessoas de São
criança. Se conseguiram, qual foi o processo, que Tomé, se reflete de alguma forma numa busca,
dificuldades tiveram, como as ultrapassaram. Foi num resgate pessoal, ou numa relação entre São
Sonho Longínquo no Equador, Hamilton Trindade, 2017 @
assim, o meu filme. Tomé e Portugal...? O que é que surgiu nessas
hamiltontrindade
entrevistas? Primeiro o nome, Sonho Longínquo
MS Quando é que chegaste a Portugal?
ACP Mas com jovens que tinham saído já do país no Equador, o que significa esse título e o que,
HT Cheguei a Portugal em novembro de 2005. em algum momento. nessas entrevistas, faz um sonho longínquo no
MS Sozinho? equador?
HT Sim, pelo menos uma das jovens
HT Sim, vim sozinho. Viemos num grupo de entrevistadas estudou, precisamente, no HT O significado deste título [tem que ver com a]
estudantes bolseiros de São Tomé para cursos Brasil. Ela tem uma história muito bonita, que localização do país em si. O equador atravessa
profissionais, mas, sim, vim sozinho. quis partilhar connosco. Por acaso, não fazia São Tomé e está a zero graus, tanto na longitude
HAMILTON TRINDADE 166

como [na latitude]. E em São Tomé, um país perspetiva de que a vida não acontece ali. Isso população tem de ter em mente, definir, aquilo
com fracas possibilidades financeiras, muitos está a mudar um pouco agora, nos últimos que quer. Se a população, os jovens não tiverem
jovens [não têm] prosperidade nenhuma, apesar anos no Brasil. Agora há uma reviravolta muito algo definido, não disserem: “Nós queremos
de muitos terminarem o 12.º [ano]. Depois grande, mas o facto é que há a ideia de que, ali, o um hospital em condições, nós queremos uma
terminam... e os sonhos? O que é que eles vão progresso pessoal nunca vai acontecer, porque o educação com melhores condições para os
fazer para poderem atingir os seus sonhos a não acesso ao conhecimento, à tecnologia ou à vida nossos filhos ou para nós próprios”, os políticos
ser sair do país? A lógica passa a ser esta: um civilizada está sempre fora, da perspectiva de não vão fazer nada. Os políticos não estão
sonho que está lá longe no equador. que é preciso migrar. interessados em que a população seja instruída
e evoluída. A população é que tem de impor aos
ACP Era essa a provocação que eu te ia fazer: tu HT Sim, em São Tomé também... É parecido, mas
políticos que quer ser instruída. Para os políticos,
olhas daqui. ainda é pior. Grande parte da população não
quanto mais desinformada e não instruída a
tem a possibilidade financeira de poder migrar,
HT Exatamente. população, melhor para eles.
ficam ali. Só há coisa de mais ou menos seis, sete
ACP São Tomé está longe. É que, para quem está ACP Uma das soluções que normalmente se
anos para cá, é que temos uma universidade
lá, longínquo é a Europa, não é o equador. no país. Mas essas universidades também não vê é o retorno à terra desses jovens que vão
HT Exatamente. oferecem assim tantas opções de cursos para os estudar fora. Isso acontece em São Tomé? No teu
são-tomenses, muitos deles veem-se forçados caso, não aconteceu, ficaste em Portugal. Mas
MS Para mim, falar de equador é casa. Eu nasci
a vir estudar fora. E faz com que os que não têm vieste com uma bolsa de São Tomé. Só que não
em Fortaleza, que é uma cidade um pouco
possibilidade de vir para fora fiquem ali. Ou voltaste para São Tomé.
abaixo da linha do equador e também muito
ingressam na fileira política ou ficam ali ao Deus HT Acontece. No meu caso, eu até já voltei, mas
próxima de São Tomé em termos de escala
dará, vão dar aulas ou coisa assim. Mas este não é
no mundo em relação à linha do equador, que depois regressei outra vez.
o país que nós queremos. Nós queremos um país
funciona como uma espécie de fronteira entre ACP Porquê? Não encontraste condições
de pessoas instruídas que possam instruir outras
esse Norte e esse Sul. E é engraçado porque mínimas de progredir?
pessoas, de forma a sermos um país [evoluído]
quem nasce em Fortaleza – e aí há uma questão
de pessoas instruídas [que possam] criar outros HT Existem muitos jovens que se formaram
interior geográfica do Brasil, que é um Estado
recursos para o desenvolvimento do país. em Cuba, no Brasil, regressam a São Tomé,
semiárido e tem problemas climáticos, secas,
o que é que eles vão ser? Ou vão ser políticos
enfim, a literatura tem muito isso, também é MS E achas que esse “subdesenvolvimento” do
ou vão ser professores. Mas eu não estudei
o Estado que serve de exportação de jovens, país se atribui ou se dá porquê?
para ser político, nem quero ser professor. Eu
– é uma população historicamente itinerante, HT À política desenvolvida pelos nossos gosto de ensinar, mas não quero fazer a minha
sempre sai. Sempre sai por diversos motivos, governantes, na maioria das vezes. A própria carreira como professor. As condições técnicas
por questões económicas também, mas há a
167 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES E ANA CRISTINA PEREIRA

para a continuação do desenvolvimento e cá, mas quero levar algo útil para lá. Por exemplo, HT Sim. É importante dizer que a história do país
conhecimento teórico são baixas. nós, em São Tomé, não temos um cinema. Na era faz-se também com o cinema. É com o cinema
colonial, sim, tínhamos uma casa enorme, que que guardamos a memória do nosso país. Nós
era o Cinema Marcelo da Veiga. Lembro-me da temos lá uma estação de televisão que funciona
última vez que lá fui ver um filme, ainda era em porque as pessoas têm vontade que ela funcione.
preto e branco, na década de 80, em 86 ou 87, por ACP E os arquivos na televisão desaparecem
aí, eu era muito miúdo ainda. Mas lembro-me, logo.
ainda andava na “pré”, ou coisa assim. Ainda me
HT Exatamente. E, se houver produções
lembro de ter ido lá ver um filme.
independentes, os trabalhos vão ser arquivados,
ACP Qual?
Filmagens de Sonho Longínquo no Equador, Hamilton os realizadores nunca vão querer destruir os seus
Trindade, 2017, Portugal @hamiltontrindade HT Não sei. Isto para dizer que foi a última vez trabalhos, não é? Vão querer preservar o trabalho
que lá fui e, se calhar, deve ter sido o último ano que fizeram porque custou a produzir. E vão
MS E como é que te sentes em relação a esses
em que aquele espaço foi usado como cinema querer que estes trabalhos sejam catalogados
que ficaram ou até mesmo em relação aos que
para o público. O espaço chegou a ficar ao em alguma parte do mundo, “epá, existe esse
regressaram?
abandono durante muitos anos. Em 2000, 2003, filme”, vai-se a uma base, o IMDB ou outro sítio
HT É frustrante. o espaço foi recuperado. Houve uma tentativa qualquer, e deixa-se o trabalho que foi feito. É
MS Para ti ou para eles? de se voltar a ter filmes em exibição, mas foi uma assim que nós criamos a identidade e a memória
tentativa falhada. O espaço está outra vez... não dos nossos países. Eu ganhei o festival com
HT Tanto para mim, como para eles. Eu tenho
está ao abandono, está a ser utilizado, mas não essa ideia. De poder haver um incentivo de mais
sempre vontade de voltar, mas volto todos os
está a ter a utilidade que deveria ter. O único produções locais, nomeadamente, e também
anos. Desde que vim pela primeira vez, em 2010,
espaço que temos em São Tomé com cinema trazer produções de outros países, lusófonos,
tenho voltado, pelo menos, uma vez por ano.
com alguma regularidade é o Centro Cultural francófonos, anglófonos, e poder mostrar o que
E, a partir de 2014, tem sido mesmo importante
Brasil-São Tomé [e Príncipe], que tem passado é feito a nível independente, não em grandes
voltar todos os anos, porque acabei por criar
filmes brasileiros, como é óbvio. Fora isso, não produções. Grandes produções não interessam
um festival de cinema, o São Tomé FestFilm –
temos mais nada. Apesar de haver dois ou três nada, isso é fácil de vender. Agora, a ideia é que
Festival Internacional de Cinema de São Tomé e
realizadores, posso dizer que estamos excluídos possamos mostrar filmes feitos por realizadores
Príncipe – e, desde então, tem sido um motivo
do mundo da realização de cinema. amadores. Quem sabe se é assim que eles
para regressar a São Tomé. É desta forma que eu
descobrem que afinal têm jeito para fazer
me vejo regressar. Eu estou cá fora, vim com uma MS Ou da imagem.
cinema.
bolsa de São Tomé, vim estudar, fiz a minha vida
HAMILTON TRINDADE 168

MS Dizes na tua biografia que agora trabalhas no muita luta posicioná-lo num sítio, tecnicamente ACP Mas a Michelle fez-te uma pergunta
Cine-Teatro de Estarreja, em Portugal, e eu fiquei pô-lo num sítio onde pudesse funcionar relativamente às relações de trabalho, às
curiosa para saber como foi a tua trajetória, a corretamente no espetáculo. Mas, depois, com relações afetivas no trabalho.
tua inserção profissional em Portugal, de que o passar do tempo, mesmo para a exibição HT As relações afetivas nem sempre são as
maneira começaste a inserir-te profissionalmente dos filmes, as próprias distribuidoras deixaram melhores, nem sempre. Mas, como em qualquer
e como te sentes em relação a essa inserção de fazer entrega dos filmes em película – dos trabalho, qualquer emprego que temos, há
profissional. Como é o trabalho e como são os filmes mais recentes quase nenhum era feito em sempre algum momento de grande tensão.
contextos afetivos e burocráticos em relação a película –, passavam largos meses, cinco, seis [Às vezes, as pessoas estão] com os nervos
viver e trabalhar em Portugal? meses, depois em película, e as distribuidoras à flor da pele, porque aconteceu alguma
também não estavam muito interessadas nisso.
HT Eu comecei a trabalhar no Cine-Teatro de coisa em casa, vêm chateadas e, chegam ali,
Houve um upgrade para o cinema digital e agora
Estarreja em 2011, ainda não tinha acabado querem descarregar... Mas são momentos que
é tudo feito através do cinema digital. Tudo
o curso. Surgiu essa oportunidade e entrei acontecem, depois ultrapassamos e continuamos
isso passou por um processo de formação e
como prestador de serviços. Não foi fácil. a ser colegas de trabalho na mesma.
aprendizagem e agora tudo mudou, mudámos
Principalmente, conciliar o trabalho com o MS Hamilton, eu vou fazer-te uma pergunta, que
toda a tecnologia de projeção que usávamos;
estudo. Se fosse fácil, acho que todos podiam vou fazer a todos, e queria saber a tua opinião:
utilizávamos esquemas ligados em rede e essas
conseguir, podia estar lá uma pessoa qualquer. o que sentes em relação à ideia de que há um
coisas todas que eu também ajudei a trazer; a
Eu fui para lá como técnico de projeção. Na cinema negro em Portugal? O que é que isso soa
arquitetura, quais os equipamentos ideais para
altura, a sala ainda projetava em 35mm. Foi para ti ou o que é que a ideia de um cinema negro
poder funcionar. E é este o meu percurso no Cine-
uma maneira de ir trabalhar com fitas de 35mm. te traz, do ponto de vista afetivo, identitário,
Teatro, basicamente.
Eu fazia a projeção dos filmes e era assistente ou mesmo de trabalho, o que significa? O que
de palco. E também da parte multimédia, de ACP Mas agora já não estás como prestador de é um cinema negro? Ou achas que essa ideia é
tudo o que era projeção nos espetáculos. Tudo serviços. uma invenção da imprensa, uma invenção dos
o que é projeção nos espetáculos é comigo. HT Agora já não estou como prestador de académicos, dos ativismos, dos movimentos
Mesmo se não for eu a operar, ajudo a preparar serviços, passei ao quadro da função pública. sociais? O que te parece?
toda a logística desta parte para que, num As coisas melhoraram, mas também depois HT O cinema negro é algo que deve existir. Muita
espetáculo, as coisas corram bem. Depois, de complicaram. Porque, antes, como prestador gente, a ver se pega, quando alguém diz: “Ah,
2011 até agora, houve uma evolução em termos de serviços, podia estar mais tempo em casa... qualquer coisa negro já traz consigo questões
de equipamentos, da forma como fazemos as E agora não, tenho de cumprir com as regras da raciais.” Não. Para mim, o cinema negro é uma
coisas. Sendo que, quando comecei, tínhamos função pública, mas é a vida, não é? Temos de forma de poder demonstrar o que os negros, os
um projetor pequenino e tínhamos de ir com fazer uma carreira de alguma forma.
169 ENTREVISTA REALIZADA POR MICHELLE SALES E ANA CRISTINA PEREIRA

africanos, também podem fazer. Porque há muito que, se alguém falou mal para mim, é racismo. o negro.” Há uma palavra técnica que se usa,
o estereótipo de que só os europeus, os brancos, Não vou dizer que não haja. Mas não consigo por exemplo, para fazer o blackout, e um dia
o homem branco é que sabe fazer as coisas e lembrar-me de uma vez em que tive alguma disseram-me: “Faz aí o blackout.” “Então, ‘tá
sabe fazer bem. Mas não. O homem negro, os situação em que possa dizer que fui tratado bem, tchau. Mandaram-me ir lá fora, eu vou-me
africanos também sabem fazer. E eles também de forma diferente por racismo. Não consigo embora.” Pronto. Eu próprio brinco com essas
têm de se chegar à frente e poder mostrar aquilo lembrar-me. Não sei se é por ser eu que não coisas, porque por mais que a gente se chateie e
que sabem fazer. Poder mostrar as suas culturas, trago isso facilmente à baila. Ah, agora falando, faça escândalo, ainda é pior. Ainda é pior porque
nomeadamente – não vou dizer a cultura do consigo lembrar-me! Mas foi uma situação banal; as pessoas pegam nisso... Por isso, eu, EU sou
africano – a cultura do homem negro. O homem às vezes, é a forma como é feita. Estava num assim. Não vou dizer que, numa situação ou
negro tem outras vivências, outra forma de estar. espetáculo, e eu tenho todo o direito de proibir outra, alguém que esteja a falar mal, porque tudo
O homem negro gosta de festas e de música alta qualquer coisa de anormal que possa acontecer depende do contexto, tudo. Senão, entra [por um
e coisas assim, já o homem branco... no palco, mas havia um grupo de senhores ouvido e sai por outro], volto as costas, vou-me
que queria entrar no palco a todo o custo. Eu embora. Está o assunto resolvido.
ACP Não faz festas.
disse que não podiam entrar ali, tinham de ACP Apesar de o teu discurso não ser muito
HT Faz festas, mas são mais, são mais um estar do outro lado. E ele ficou todo chateado, ativista, eu sei que tens um projeto – eu não sei
bocadinho... Não, não vou generalizar. O homem todo indignado porque eu não queria que ele se tu consideras, mas eu considero – de algum
negro também pode querer ficar no seu canto, estivesse ali. “Então, mas você não pode estar ativismo com São Tomé. Que tem que ver com
não gostar de barulho, mas o homem negro aqui! São regras.” Ele ficou do outro lado, eu essa coisa que disseste no início da entrevista,
quer fazer festa na sua casa até altas horas da ia abrir a sala e ele estava ali a mandar umas de juntar a agricultura aos nossos meios de
noite. E são estas coisas que o cinema negro bocas: “Ah, foi aquele negro, aquele preto ali!” E comunicação. Queres falar um bocadinho sobre
tende a mostrar. Que os negros, os africanos, têm eu: “O que é que você disse?” Ele virou as costas isso?
outra maneira, outra forma de estar. Para mim é e foi-se embora, todo chateado. Eu informei os
transcendente. Para começar, para mim, todos HT Sim. Eu descobri a ligação entre a agricultura
meus colegas: “Olha, foi assim e assim.” E veio
nós somos iguais. O preto, do branco... só isso. a vereadora, veio não sei quê, veio e perguntou: e a tecnologia quando fui estagiar numa
propriedade agrícola e fui descobrir um conjunto
ACP Ligando com isto, mas voltando um “Mas quem é que é, quem é que foi?” Foi uma
de coisas que não sabia que eram possíveis. O
bocadinho atrás. Não sentes racismo em situação em que fiquei chateado pela maneira
controlo das chuvas, o controlo da rega, tudo de
Portugal? Nunca sentiste? No trabalho, na como ele falou, mas de resto... Os meus colegas,
forma automatizada...
universidade, nas tuas relações de amizade? e outros que vêm, estão sempre a dizer: “Olha
aquele preto.” Eu próprio digo, quando estão ali
HT Já tive situações, mas não sou daquelas
na conversa: “Pois, é sempre o negro, é sempre
pessoas que, logo à primeira, põem à frente
HAMILTON TRINDADE 170

ACP Não, eu estava a falar de um projeto de que ACP Portanto, no fundo, o documentário era um
me falaste, um projeto de cinema, de filmar a documentário da reconstrução da praia.
construção de uma praia... HT Era uma curta de ficção. Sim.
HT Ah, sim, sim! Isto é um projeto que eu tenho, MS Como se chama o filme?
mas que ainda está no papel, ainda está na
HT Ainda não tem nome. Ainda está no segredo
fase de criação, [relacionado com a] erosão
dos deuses. Já pensei em três, quatro nomes,
costeira. Existe uma praia em São Tomé, das
mas ainda não tem nome. E ainda nem sei se
mais icónicas de São Tomé, que se chama Lagoa
vou conseguir realizar ou produzir o filme. Mas
Azul. Anteriormente, aquela praia era (continua
tinha muita vontade de o fazer... Aliás, é um
a ser) uma praia muito, muito gira, pelo facto de
filme que iria ter algum custo de produção para
a água ser completamente azul, consegue ver-se
conseguir fazer com que as empresas fossem
o fundo do mar, e muitos turistas vão lá dar o
repor a areia numa das praias que eu escolhesse
seu mergulho. Mas o areal está completamente
para este projeto. Iria envolver custos elevados,
destruído, está só em pedras. Eu falo daquela
governamentalmente, da parte do Ministério do
praia e de outras, não é? As pessoas, as
Ambiente... Ainda não sei. Principalmente, agora,
empresas, vão lá extrair areia – em vez de irem
como estou a viver cá nestas condições, não sei;
buscar com uma draga ao alto-mar – e muitas
só numa altura de férias ou coisa assim, preparar
[outras], no passado, tiraram a areia das praias.
bem as coisas e depois ir lá e realizar, começar a
Mesmo, atualmente, as pessoas continuam a
pôr o plano das filmagens em prática.
fazê-lo. O que eu acho que é uma coisa [errada],
não se devia tirar areia das praias. E, como forma
de sensibilizar, tive [a ideia de fazer] um projeto
de curta-metragem, curta ou longa, que serviria
tanto para sensibilizar as pessoas a não terem
essa prática, [alertando para o facto de] essa
prática poder também ter algum impacto na sua
vida, como para conseguir angariar fundos para a
reconstrução de uma das praias que eu decidisse
utilizar.
O CIRCUITO EXIBITIVO DO
CINEMA NEGRO PORTUGUÊS
MICHELLE SALES

Projeto criado em 2016 pela Associação Surge também em 2016, outro importante
Cultural Afrolis em Lisboa, o espaço exibitivo espaço exibitivo independente, projeto
Afrotela reuniu nas primeiras sessões filmes também da Nêga Filmes Produções em
que representassem as comunidades colaboração com a Associação Cultural
afrolisboetas, como apresentado na descrição Moinho da Juventude, o Festival Internacional
deste evento pelos próprios fundadores. de Cinema na Cova, como parte da
Numa das primeiras sessões, foi exibido, o programação do Kova M Festival que desde
filme Margem Atlântica, do francês Ariel de 2012, movimenta a cena artística local da zona
Bigault. Este documentário produzido pela da Cova da Moura, zona periférica
produtora Real Ficção tem como interesse de Lisboa e local frequentemente associado
pesquisar a música portuguesa produzida ao aos afrodescendentes portugueses. O Festival
redor do mundo com “inspiração lusófona”, Internacional de Cinema na Cova é fruto
ou seja, debruçou-se na pesquisa pela música da parceria das pesquisadoras brasileiras
considerada portuguesa produzida nas antigas Maíra Zenun e Luzia Gomes, ambas fundadoras
colônias de Portugal. da produtora Nêga Filmes, ambas residentes
em Portugal. Juntas irão também realizar
No ano seguinte, em 2017, a Afrotela firma
A cidade e o amor (2015), dirigido por Maíra
parceria com a Nega Filmes Produções, gerida
Zenun. Sobre as intenções do Festival
pela cineasta e ativista cultural Maíra Zenun.
Internacional de Cinema na Cova, a organização
A partir daí, o Afrotela passa a contar com
sustenta que:
sessões regulares mensais em dois lugares,
no centro de Lisboa, na Casa Mocambo e intenção com a Mostra de Cinema na Cova
na Cova da Moura, na Linha de Sintra, na é dar visibilidade a uma produção audiovisual
Tabacaria Tropical. que não alcança as salas comerciais de cinema
O CIRCUITO EXIBITIVO DO CINEMA NEGRO PORTUGUÊS 172

em Portugal, realizada por cineastas negras a pesquisadora e organizadora do Festival e com a Luzia Gomes de novo, porque ela
e negros da contemporaneidade, tanto sustenta que o público das sessões de cinema está na produção desde que a mostra surgiu.1
de África, quanto das diásporas. Temos são bem diversos, mas predomina o fato de
A partir de 2016 a Mostra Internacional de
como objetivo principal, disponibilizar este serem, em sua grande maioria, moradores
Cinema da Cova, ainda que não tenha tido
cinema à população que vive e frequenta do Bairro da Cova da Moura, e em média as
o destaque na imprensa portuguesa, tem
a Cova da Moura, bairro cuja população é sessões de cinema negro levam entre 15 a
tornado-se a principal janela de exibição para
maioritariamente negra, a fim também de sessenta pessoas por sessão. Como faz parte
cinemas negros, reproduzindo filmes que
estimular a produção de novos filmes e do Kova M Festival, festival muito voltado para
anteriormente foram exibidos em Cannes,
mais debates por artistas e estudiosas/ a música, as sessões de cinema precisam
no Fespaco, ou na Mostra Zózimo Bulbull.
estudiosos de cinema, que vivem no disputar públicos mais maduros, segundo
bairro, na cidade e que descendem de Maíra. Sobre a formação da Mostra Internacional Por sua vez, o circuito exibitivo do Afrotela já
populações africanas. de Cinema da Cova e a proposta curatorial, denota também uma sólida relação com o
(In: https://www.buala.org/pt/da-fala/mostra- a realizadora comenta Brasil, seja porque o público é permeado por
internacional-de-cinema-na-cova-da-moura) afro-brasileiros residentes em Portugal,
O Festival Internacional de Cinema na Cova
seja porque os filmes exibidos são realizados
já está indo pra quinta edição, e o Kova M
A Mostra Internacional de Cinema na por afro-brasileiros. Em 2019, o ator e
está indo para a nona edição. É porque
Cova, para além de ser idealizado por uma realizador independente Welket Bunguè
já tinha uma exibição de filmes no
investigadora e realizadora brasileira assume a curadoria do Afrotela e reforça
Kova M Festival, mas não era uma mostra,
residente em Portugal, possui inúmeras a importância da circulação de filmes
era quase um cineclube. [...] E, na época,
relações com os novos circuitos exibitivos que produzidos por realizadores afrodescendentes.
em 2016, foi que aconteceu primeiro,
surgem no Brasil, o fato, por exemplo, de ser Podemos observar a relação com o Brasil,
e a ideia foi bem no inverno de 2016 que
o primeiro festival de cinema a ser realizado em no deslocamento curatorial do Afrotela,
é quando a galera do Moinho começa a se
Portugal inteiramente dedicado à exibição uma vez que se coloca como central a questão
organizar para fazer o Kova M. [...] Eu e
de cinema negro, além de trazer na da disputa pela produção narrativa, ou seja,
Janaína Oliveira fizemos a curadoria.
programação de suas edições realizadas pelo lugar de fala.
A ideia era criar um espaço para realizadoras
curadores, realizadores e programadores
e realizadores negros, afro-descendentes Tão importante quanto os filmes que serão
brasileiros dedicados ao protagonismo
e africanas, africanos. [...] Em 2019, eu dividi exibidos a partir de 2019 é quem os produz,
negro e/o afrodiaspórico.
a curadoria com Edileuza Penha,
Em entrevista realizada com Maíra Zenun em
que é da mostra Adélia Sampaio,
dezembro de 2019, na Cinemateca Portuguesa, 1. Entrevista ainda não publicada, disponibilizada para as
autoras por intermédio de Maíra Zenun.
173 MICHELLE SALES

a performatividade do corpo que constrói


aquela narrativa; ser um realizador ou
realizadora negra torna-se um manifesto
importante na construção destes novos
discursos. Tal como acontece no Brasil,
sobretudo a partir da inflexão que percebemos
a partir da segunda década dos anos 2000,
em grande parte impulsionada pelas políticas
públicas que mobilizaram a diversidade e as
“minorias”. Uma velhíssima briga histórica dos
movimentos sociais no Brasil e que, ao que
parece, fortalece-se, a cada dia, também em
Portugal.
NOTA BIOGRÁFICA

ANA CRISTINA PEREIRA JUSCIELE OLIVEIRA MICHELLE SALES

Ana Cristina Pereira é doutorada em Estudos Possui graduação em Letras Vernáculas Professora, pesquisadora e curadora
Culturais, pela Universidade do Minho, com a tese pela Universidade Federal da Bahia (2006). independente. Professora da Escola de Belas
Alteridade e identidade na ficção cinematográfica Especialização em Metodologia do Ensino de Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro
em Portugal e em Moçambique. Tem como História e Cultura Afro-Brasileiras e Docência desde 2009, Investigadora do Centro de Estudos
principais interesses de investigação: racismo, do Ensino Superior (2010). Mestre em Literatura Interdisciplinares do Século XX da Universidade
identidade social, representações sociais e e Cultura, pela Universidade Federal da Bahia de Coimbra, Coordenadora Científica do projeto
memória cultural no cinema pós-colonial, sobre (2013). Doutora em Comunicação, Cultura e À Margem do Cinema Português: estudo sobre o
os quais tem editados vários artigos científicos Artes pelo Centro de Investigação em Artes e cinema afrodescendente produzido em Portugal,
em publicações nacionais e internacionais. Comunicação da Universidade do Algarve, em financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian.
É membro do projeto Memória, Culturas e Portugal (2018), com bolsa da CAPES Doutorado Curadora da exposição Daqui pra frente: Arte
Identidades: o passado e o presente das relações Pleno no Exterior, com a tese; “Precisamos Contemporânea em Angola, Caixa Cultural, Rio
interculturais em Moçambique e Portugal, vestirmo-nos com a luz negra”: uma análise de Janeiro, 2017, Brasília, 2018 e da Residência
financiado pela FCT e pela Fundação Aga Khan autoral nos cinemas africanos - o caso Flora Artística Afroeuropeans, Fundação Calouste
e do projeto A margem do cinema português: Gomes. Tem textos publicados nacional e Gulbenkian/ Colégio das Artes, Universidade
estudo sobre o cinema português afrodescendente internacionalmente sobre cultura, literatura e de Coimbra, 2019. Coordenadora do Seminário
produzido em Portugal, financiado pela Fundação cinemas africanos de língua oficial portuguesa”. Temático Cinemas Pós-Coloniais e Periféricos da
Gulbenkian. É membro do NARP – núcleo Socine (2018 -), Sociedade Brasileira de Estudos
antirracista do Porto. de Cinema e Audiovisual, e do Grupo de Trabalho
Cinemas Pós-Coloniais e Periféricos (2018 -) da
AIM, Associação de Investigadores da Imagem em
Movimento, de Portugal. Faz parte da Comissão
Organizadora do I Intersectional Conference, a
realizar-se em 2020, em Portugal.
Á MARGEM DO CINEMA PORTUGUÊS
MICHELLE SALES [ORG]

Você também pode gostar