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Derramar
Marina Melo

Minha avó sempre disse para as moças da família que elas não podiam ficar
trancadas em casa esperando que um conto de fadas lhes batesse à porta. Não
era para mim a lição; por algum motivo, os meninos não eram ensinados a
ouvir contos de fadas. Mas, mesmo não sendo alvo dos conselhos, percebi que
estavam completamente errados.

Quando ela apareceu na minha vida, eu não a esperava; assim como as moças
da minha família aprenderam a não esperar que o príncipe encantado tocasse
sua campainha propondo casamento. No meu caso, não a esperava nem
enquanto estava fora de casa. Ou talvez, justamente por não esperá-la, estivesse
tão desarmado. Eu havia chegado em casa do trabalho, e tudo o que precisava
era de um banho. Foi quando ela surgiu. E nunca foi embora.

Tornou-se meu segredo.

Consegui por pouco escapar do happy hour da sexta-feira. Poupei as desculpas;


meus pretextos tinham se esgotado na primeira semana, e já fazia meses. As
mentiras só não eram maiores que a minha conta de água. Já em casa, me despi
e fui direto para o banho. Ela preferia assim. Ela me esperava.

Às vezes, usava um vestido azul. Às vezes, não usava nada. Eu gostava dos dois
jeitos. O primeiro, pelo mistério. O segundo, pela urgência. Era ela quem
escolhia as águas nas quais navegávamos todas as noites. Ela tinha anseios,
humores; nem sempre me queria por perto. Como o mar, que tanto fazia estar
calmo como revolvendo em uma tempestade de naufragar navios. Eu esperava,
contornava, debatia. Ela aceitava meus argumentos, mas às vezes não. Às vezes,
eu ia dormir sozinho e com frio. E temia o dia em que ela pudesse evaporar para
sempre.

Hoje, estava de branco. Era a primeira vez que usava aquele vestido para mim.
Leve e fluido, com rendas suaves rodeando suas coxas, ondulando e descendo
até os pés descalços. Os cabelos escorriam até os ombros, presos parcialmente
por uma tiara que brilhava como diamante. O sorriso leve traduzia uma alegria
contida; os olhos, de um azul-claro quase translúcido — às vezes verdes, às
vezes cinzentos, mas sempre profundos —, hoje eram enigmáticos. Como se
ocultassem um tesouro.
Fui até ela, e ela me envolveu. O abraço era cálido, relaxante, água morna em
músculos tensos. Lábios molhados e ardentes encontraram os meus. Línguas
entrelaçaram-se e diluíram-se. O gosto dela, um trago de água doce após um dia
inteiro no mar. Senti-me desidratado.

Ela se afastou para fitar meus olhos.

— Me ama?

— Amo.

— Viria comigo?

— Até o fim do mundo.

Seus dedos eram escorregadios como outras partes que tantas vezes toquei.
Agarrei forte neles, para que soubesse que não iria sem mim. Para implorar que
não fosse. A água espirrou, e eu segurei o nada, as mãos completamente
encharcadas. Por um segundo, não a vi, seus contornos perderam a nitidez e era
apenas a água do chuveiro tamborilando no chão de ladrilhos. Liberei a pressão
e a senti de volta entre os dedos. Ela estava ali, estava perto, mas não seria
contida. Percebeu quando eu entendi. O toque voltou como se não tivesse
cessado. O sorriso, como se nunca tivesse ido. Segurou meu rosto e me guiou
para ela.

Respirei fundo, tomando fôlego. E mergulhei.

As mãos eram jatos de água cada vez mais quentes, cada vez mais próximos,
cada vez mais ousados. Apalpando, descobrindo, provocando. A língua, a
minha, procurando e encontrando nascentes de água doce, que viravam
cascatas à medida que o amor se tornava turbulento. As águas claras agora
turvas, revoltas, e ela gritou, um som que era o uivo da maresia penetrando
pelas frestas da janela à noite. Não mais doce: salgado. Não mais fluido:
viscoso.

E eu segui com ela. O êxtase se espalhou pelo meu corpo, inundando e


transbordando. Minha fluidez se misturou à dela, que se tornou clara outra vez,
esperando por mim. A expressão de felicidade absoluta em seu rosto me trouxe
lágrimas aos olhos, e permiti que estas se derramassem, vertendo e
misturando-se com toda aquela enchente onde antes eram só poças. Mas não
era mais somente dela.

O pranto continuou jorrando, como cântaros, levando meu sal e drenando toda
água que eu podia oferecer. Eram meus votos, minha promessa para ela. Minha
vida. Minha solidez se foi, e, então, eu era apenas água. Eu era dela, por
completo. Eu era ela. Sem início e sem fim; nos fundimos, nos dissolvemos,
escorremos ralo abaixo. Ela se foi e eu com ela. Pela eternidade.
 

Marina Melo é escritora recifense, bruxa do mar e grande

entusiasta da romantasia. Escreve no blog Do Fundo do Mar e

publicou o romance independente Um encontro, pela Amazon.

Tem alguns contos publicados, como a ficção relâmpago "A dama

de branco" na primeira temporada da Faísca e o conto “How to

deal with inconvenient guests” na edição #1 da Eita Magazine.

Integra o Coven de Escrita do Recife, coletivo de mulheres

pernambucanas que escrevem.

Twitter: @aquamarinamelo

Blog: dofundodomar.com.br

Instagram: @aquamarinamelo

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A primeira chuva de setembro
Gabriel Calácia

A noite inteira esperei pela chuva. Essa primeira chuva depois dos céus
nublados-mas-sem-nuvens, depois das fumaças que preenchiam os horizontes,
que acinzentam as serras no oeste de Sobradinho. Depois dos rosados sóis
nascentes, tão belos, mas carregados de notícias tão ruins. Depois dos sóis de
tarde de agosto, que brilham atrás de cortinas de fumaça grossa e preta do
cerrado queimando, sóis de um amarelo nojento, como cascas secas de
maracujá. Todo o ano espero pra receber essa primeira chuva de setembro.

Na frente da minha casa tem um campo. Ele era murado quando eu era criança,
um triângulo enorme de mato alto, maior do que eu. Mato que queimava
também, todo agosto. Era mais barato tacar fogo nele do que mandar aparar, e
se a gente não fechava as janelas, caía cinza de mato na casa toda: no chão de
cerâmica branca, no sofá de couro marrom, na minha cama de lençol azul-
clarinho.

Um dia eu voltei da escola, e lá do meio da rua já deu pra ver que o muro não
tava mais lá. O mato era meu agora, meu e de todo mundo, e ele nunca mais
queimou. Agora, mandavam cortar. Mas ele murchava ainda assim, murchava
como tudo em Brasília quando o frio parava, as nuvens sumiam e o sol subia. O
céu não dava água, no ar já não tinha água, e a grama murchava e murchava,
que nem eu em todos os setembros. Todos, menos esse.

Todo setembro eu abro o portão, atravesso a rua e corro pro campo pra receber
a chuva, sempre com notícias ruins, com tristeza. Deu algo errado, alguém
morreu, teve professor ruim na faculdade, eu sempre chorei em algum
momento. Eu choro uma vez por ano, e essa vez é em setembro — em agosto, às
vezes, e quase nunca em outubro. E é sempre esperando misturar minhas
lágrimas com as gotas que eu recebo a chuva.

E quando a chuva vem, ela apaga minhas lágrimas mesmo, sem antes
perguntar. Ela só pergunta depois. Depois que minhas gotas já estão no chão
junto com as gotas dela é que ela diz o que foi que houve dessa vez? E eu conto
pra ela. A chuva me consola vez por vez, como consola o cerrado que queima,
que às vezes tem que queimar, que queima mais do que devia por causa da
gente. Eu penso na vegetação rasteira chamuscada, penso nas árvores peladas,
penso em toda área verde da cidade amarronzada. E penso na chuva
consolando todos eles, e a mim também. Quem sabe eu sou parte árvore,
porque a chuva me escuta. Então foi isso que aconteceu?, ela diz, na sua fala
mansa, uma linguagem que toca a minha pele. Quem sabe isso te distraia, a
chuva diz, e um pipoco explode o céu na mesma hora, um brilho branco-meio-
azul que aparece e some em menos de um segundo. Faz de novo!, digo,
sorrindo, e a essa altura já nem lembro mais o que doeu.

Mas este ano é diferente. Este ano não tenho notícia ruim pra chuva, e é por
isso que ainda não dormi. Tô esperando a noite toda pra não correr o risco de
perder — sei nem o que acontece se eu perco a primeira chuva, e nem quero
saber. Pela primeira vez tenho notícia boa pra chuva. Pela primeira vez, e me
envergonha por ser a primeira, quero receber a chuva com um sorriso. Quero
que ela me molhe os dentes. Não tenho amargura pra ela. Hoje, sou só doce pra
chuva!

Só que ela insiste em não vir. Já choveu lá em Brasília, meu irmão me disse. E já
choveu em Ceilândia, vi no Instagram da minha amiga. Já tá chovendo no
Goiás. Mas em Sobradinho ainda nada… Eu saio na janela toda hora, percebo o
vento mais forte e frio, é a primeira noite um pouco fria desde julho. Eu respiro
fundo e sinto o cheiro da chuva.

Ela vem, ela vem, digo pra mim, ela tá quase chegando, e nada. Desde às sete
sinto o cheiro dela, e nada ainda. Deu oito, deu nove, deu onze e meia, deu
meia-noite e meia. Passa de duas da manhã. Venta mais, esfria mais, e nada de
chuva. O sono começa a pesar, a cabeça cai, eu assusto, ela sobe. A janela
aberta, frouxa nas dobradiças, balança com o vento, e eu espero o barulho:
sobre o toldo de lona da casa e o toldo de metal do bar ao lado, sobre a calçada
suja e o asfalto esburacado. A chuva que toca o mundo todo e hoje vai tocar
minha felicidade, minha doçura.

Eu já tô perto de desistir quando começo a escutar. Poc, poc, poc… Um pingo de


cada vez, aqui e ali. Ela começa tímida assim quase sempre. Oi, sumida!, a
gente grita, depois de noventa, cem, cento e vinte dias. Todo mundo fala isso,
todo mundo agradece, exceto os motoqueiros, os motoqueiros reclamam. Mas
eu tenho essa vantagenzinha que nunca contei pra ninguém, uma vantagem que
eu compartilho com as árvores: eu digo oi pra chuva e ela diz oi de volta.

Nesse dia, a primeira chuva de setembro chega, perde logo a timidez, antes de
eu conseguir fechar a janela da sala e sair correndo escada abaixo. Quando abro
o portão, ela já tá com toda a força, sapecando o chão, preenchendo os silêncios,
consolando quem precisa. Todo mundo que precisa diz oi, chuva!, e a chuva diz
olá, meu amor.

Hoje eu corro pra chuva, louco pra contar minhas novidades, cheio de doçura.
Eu a recebo num abraço sem igual, um abraço que ninguém deu na chuva, que
eu mesmo nunca tinha dado. Já que hoje não tem lágrima, todo o resto se
mistura, e percebo que, ao contrário da música, eu sou feito de açúcar.

Notas Autorais: O Distrito Federal passa por um período de seca de


aproximadamente cem dias todos os anos, com o pico nos meses de agosto e
setembro, os mais quentes e áridos do ano por aqui, quando acontecem as
queimadas no cerrado. As chuvas começam a voltar pelo fim do mês de
setembro, e isso sempre foi uma parte importante da minha vida. Adoro a
maneira como o clima faz parte da cultura de uma população, igual a música e a
culinária, e influencia o dia a dia e o emocional das pessoas, e sempre gostei de
escrever sobre isso.

Gabriel Calácia é um escritor de Sobradinho, no Distrito Federal, e

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