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Há dívidas que são verdadeiramente impagáveis. A do


Brasil com suas raízes africanas é uma delas. Se hoje temos uma
das culturas mais dinâmicas e ricas do mundo, se a diversificação
Editores
é uma das nossas melhores características, convém recordar que
Edmundo Pereira
somos filhos de muitas mães. A alma brasileira é matriz e reflexo Gustavo Pacheco
do encontro entre culturas e identidades indígenas, européias e
africanas em um primeiro momento, e depois pela chegada de
Realização:
filhos de outras paragens. Do emaranhado de raízes que nos fi-
zeram e nos alimentam, a africana é, sem dúvida, uma das mais
poderosas e essenciais.
Outra dívida, esta sim pagável, é a que o Brasil tem com sua
própria memória. E a melhor forma de pagá-la é através do resgate,
da recuperação e da preservação. O projeto Documentos Sonoros é Diretor do Museu Nacional
Sérgio Alex Kugland de Azevedo
um exemplo disso. Registra gêneros e expressões musicais que cor-
rem o risco de ficarem à margem do nosso cotidiano, especificamente
as músicas indígenas e as religiosas de origem africana.
Este CD, primeiro de uma série de três, chamada de forma
muito apropriada Documentos Sonoros, apresenta cantos sacros
dos rituais do candomblé. Tem o mesmo nome, Ilê Omolu Oxum,
de um dos mais tradicionais terreiros religiosos do Brasil, em São Coordenadores
João de Meriti, no Rio de Janeiro. São cantos ancestrais, marca João Pacheco de Oliveira
central de todas as religiões afro-brasileiras. Não há religião afri- Antônio Carlos de Souza Lima
cana sem os cantos e o soar dos tambores: canta-se para pedir
e para agradecer, para louvar e fortalecer, canta-se para que os
deuses e deusas dancem. Canta-se, enfim, para viver, recordar e
reverenciar a vida.
Ao apoiar a realização desses Documentos Sonoros, a Pe- Patrocínio:
trobras rende homenagem às culturas que fizeram de nós o que
nós somos. Um povo vivo, dono de uma identidade que, de tão
diversificada, fez-se única. Que recupera seu passado para rumar
melhor para o futuro.
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Participaram das gravações: Com o presente CD, o LACED/Museu Nacional dá início à Coleção
Ialorixá: Documentos Sonoros, estabelecendo para isso um trabalho conjunto
Mãe Meninazinha d’Oxum com o Ilê Omolu Oxum. Mais que colocar uma mercadoria em estan-
Ogãs: tes de lojas de música ou de museus, esperamos com ele selar uma
Mado, Carlinhos, Jorge, Adauto, Ricardo, Sidinho, Camilo, Wallace, Rodrigo, Douglas e Dado nova aliança. Isto é, desejamos cumprir de modo diferente nosso papel
Equedes: como instituição: queremos mostrar que é possível dar novo sentido a
Hilda, Zeneide, Solange e Kátia um museu nacional, dispositivo de exibição e construção de imagens
Ebômis:
de “nós mesmos” e de “outros”, por muito tempo comprometido com
Lúcia, Noélia, Nilce, Aurinha, César, Dadá, Beth e Anderson os ideais de uma nação unitária. Buscamos suplantar o passado, em
que se exibia em sua exposição uma “mestiçagem cultural” homoge-
neizadora, ocultando formas escondidas de discriminação e racismo.
Pesquisadores: Nossa meta agora é outra: trabalhar para o reconhecimento do caráter
Ricardo Freitas, Edmundo Pereira e Gustavo Pacheco pluriétnico da sociedade brasileira, lutar contra as diversas formas de
Produção: desigualdade que assolam nossa vida, numa aliança em que todas as
Ricardo Freitas, Margarida Menezes, Edmundo Pereira e Gustavo Pacheco partes pensem, escolham, trabalhem. Agora é o momento de ressaltar
Técnicos de som: e de vivificar os múltiplos valores e heranças históricas que nos per-
L.C. Varella e Toninho (Estúdio Zaga) mitem seguir como seres sociais mais complexos do que os registros
Mixagem: escritos ou visuais conseguem retratar.
L. C. Varella, Edmundo Pereira e Gustavo Pacheco Nada melhor para começar do que a música do candomblé de
Masterização: Mãe Meninazinha em São João de Meriti, na Baixada Fluminense.
Oswaldo Vidal, Edmundo Pereira e Gustavo Pacheco Longe dos livros que celebrizaram a vida “africana” na Bahia, mas
Fotografias: perto do coração do “povo de santo”, onde a cada dia se canta
Tiago Quiroga e acervo do Memorial Iyá Davina com os pés, se dança com a boca e se transmite de geração a
geração crenças, modos de ser, conhecimentos, habilidades, sons,
Projeto gráfico:
Caco Chagas paladares, sentimentos. “Patrimônio imaterial” sempre renovável
porque é motivo do orgulho de se ser quem se é, parte do prazer e
Versão para o inglês:
Keith Reid e Gustavo Pacheco da beleza de se participar de uma festa de orixá, tudo isto contido
também na mídia eletrônica, a nos evocar a demasiadamente
Agradecimentos:
Associação Cultural Caburé, Click Cultural, Cristiane Cotrim, João Bina, Maria Helena Lacorte,
humana aliança com os deuses.
Antonio Carlos de Souza Lima
Mariza Mendes, Maurício Pacheco, Tom Flynn, todos os membros do Ilê Omolu Oxum
Coordenador Técnico
e todos os orixás.
LACED/Museu Nacional-UFRJ
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see shakers, bead-netted cabaças called xequerês. The lyrics of candomblé songs derive from Afri-
can languages modified from years of oral transmission in Brazil. In the Queto nation, the songs
derive mainly from several dialects of the Yoruba language. In public ceremonies, the songs are led
by the mãe-de-santo, or someone she designated beforehand. The audience participates by singing,
hand-clapping and crying out greetings to the orixás. While some songs don’t call for drumming,
especially in the private rituals, some rhythms can be undertaken without singing, as in the last four
tracks of this CD. There are over 20 rhythmical patterns in the candomblé repertoire, each one be-
aring a distinctive function in the ceremonies, or a relationship with a particular orixá. The rhythms
for the orixás sound the personal traits of each deity. Thus, for example, the rhythm performed
for Iansã, the goddess of the storms and winds, is a thunder-tumbling rhythm dubbed ilu, someti-
mes refered to as quebra-prato or “dish-breaker” (track 50). On the other hand, the seriousness of
Omolu, the god of contagious diseases, is reflected in the slower opanijé (track 49). Though some
rhythms are played exclusively for a particular orixá, such as Xangô’s alujá (track 51), other rhythms
can be played to honor or summon other gods and goddesses. Thus, the ijexá, traditional rhythm
for Oxum (tracks 23 to 25), can also be played for Exu, Ogum, Logunedé, and Oxalá.
HOW THIS CD WAS MADE - Any candomblé recording, as good as it may be, is only a
pale reflection of the actual beauty encountered in everyday candomblé music. Trying to seize this
beauty is a difficult task demanding the right decisions. Which songs to record, where to place the
microphones, how to equalize the recordings were but a few of the questions. It is important to
highlight that the production of this CD was based on dialogue, partnership, and respect for the
cultural dynamics of the terreiro. All decisions were taken jointly during several lengthy meetings
accompanied by plenty of savory food, as is usual in candomblé.
The first decision was to record in the terreiro with a portable studio. For acoustic reasons,
the recordings were not made in the barracão, the place where the public ceremonies take place,
but in an alley within the terreiro’s premises. Mãe Meninazinha, aided by other members of
the terreiro, was in charge of choosing the repertoire to be recorded. Two recording sessions
took place on 3/10/2001 and 1/31/2004. All recorded material was listened to, analysed, and
criticized by the members of the Ilê. Further recordings to double the chorus and correct minor
flaws took place in a studio on 2/29/2004. Finally, the photographs and graphic design were
submitted to Mãe Meninazinha’s approval. The CD cover was chosen so as to represent the
symbols of the patron orixás of Ilê Omolu Oxum: Oxum’s holy bead necklace, and Omolu’s
preferred food, popcorn.
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joining a large community of people of African descent from Bahia who helped to forge Rio’s
modern urban culture, including samba. Yá Davina soon joined the terreiro of the renowned
O CANDOMBLÉ
pai-de-santo João Alabá in the neighborhood of Gamboa, one of the first terreiros in Rio. After
Alabá’s death, in 1924, its followers moved to Bento Ribeiro and afterwards to Mesquita, in
the Baixada Fluminense, where they founded in 1932 the Casa Grande or Axé de Mesquita. Tia A escravidão no Brasil perdurou por mais de três séculos.
Pequena was the ialorixá and Yá Davina was the iaquequerê. After Tia Pequena’s death in 1950, Junto com a mão-de-obra escrava, para cá seguiram, provenien-
Yá Davina became the ialorixá until her death in 1964. Born on August 18th, 1937, Mãe Meni- tes da África, visões de mundo, costumes e tradições. A partir do
nazinha d’Oxum was destined to inherit the Axé de Mesquita, and she founded her own terreiro início do século XIX, tais tradições, sobretudo crenças e formas re-
in 1968 in the neighborhood of Marambaia, Nova Iguaçu. In 1973, Ilê Omolu Oxum moved to ligiosas, passaram a ser perpetuadas num único e mesmo espaço
its present location in the São Matheus district, in the city of São João de Meriti. físico denominado terreiro (ou roça, casa-de-santo, ilê, abaçá, axé ou
CANDOMBLÉ MUSIC - Like all religions deriving from Africa, candomblé is deeply im-
egbé). Surgiam, assim, as religiões de origem africana no Brasil ou
pregnated with music. All relations with the orixás and all ceremonies, whether private or public,
as religiões dos orixás no Brasil, dentre elas o candomblé.
are conducted by an immense repertoire of songs, often accompanied by drums. For each and
Religião centrada na tradição oral, sua liturgia baseia-se na
every ritual act, there is an appropriate group of songs to be performed. There are songs for the
transmissão dos mitos expressos nas danças, cânticos e rituais, que
laying of offerings, for initiation rituals, for the dances of the orixás, for thanksgiving, and for
perpetuam experiências históricas, religiosas e sociais na consciên-
many other occasions. This rich repertoire, from which this CD is but a small sample, represents
cia e na memória coletiva dos descendentes de africanos no Brasil
one of the most important musical heritages of Brazilian culture.
e, hoje, de todos os brasileiros e estrangeiros de diversas origens
A candomblé orchestra is composed of three drums of similar shape, yet varying in size
and tuning. These drums, or atabaques, go by the names of rum, rumpi, and lê. Covered with
que participam das religiões afro-brasileiras.
animal skins at one end, they can be played with hands, or with wooden sticks called aguidavis.
De modo geral, três são os sistemas rituais nas religiões
Whilst rhythms from the Congo and Angola nations are played with the hands, those of the Jeje- de origem africana no Brasil. O primeiro, de origem nagô, diz
Nagô nations are performed with aguidavis. Except for tracks 23 to 25, ritual chants worshiping respeito aos povos que têm o iorubá como língua comum e que
the goddess Oxum, all tracks on this album are played with aguidavis. The tall and thunderous formam o que se designa yorubaland – correspondendo, hoje, ao
rum is the lead soloist, performing rhythmic variations over the steady rhythm kept by the other sul do Benin e ao sudoeste da Nigéria (antigos reinos de Oyó,
two drums. These variations guide the steps and gestures of the orixás when they dance, and Ijexá, Ijebu, Ketu e Egbá). O segundo, de origem jeje, nasce dos
therefore only the most experienced drummers are able to play the rum. Due to its importance povos ewe ou fon, provenientes da região do antigo Daomé
in the religious cult, the drums are considered sacred and pass through a series of rituals before (atuais Repúblicas do Togo e Benin). Distingue-se do primeiro
being used. Before public ceremonies, the atabaques are dressed with pieces of cloth called ojás por não cultuar divindades encontradas naquela região, dentre as
and receive offerings just like the orixás themselves. quais alguns dos mais populares orixás cultuados no Brasil, como
Besides the drums, the candomblé orchestra includes a single bell called gã or agogô and Xangô, Oxum e Iemanjá. Foi a fusão desses dois sistemas – fon e
made up of one or two high-pitched cylinders. The bell keeps a repetitive pattern which functions iorubá – que resultou no modelo de culto jeje-nagô, que é o mais
as a rhythmic reference for all people singing and playing. In some terreiros it is also common to conhecido sistema de práticas e tradições religiosas de origem
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africana no Brasil. Há ainda um terceiro sistema, cuja origem remonta be found: umbanda, jurema, candomblé de caboclo, pajelança, catimbó etc. All of these religious
aos povos de língua banta (sobretudo quimbundo e quicongo) pro- traditions have in common the worshiping of deified ancestors, a cross-between humans and
venientes do sudoeste do continente africano, e que resultou nos can- personifications of nature’s elements called orixás, inquices, voduns, santos, encantados etc. The
domblés angola e congo. Cada um dos subgrupos desses três sistemas latter manifest their presence by possessing their initiates in a trance, riding them as horses.
apresenta características próprias e é chamado de nação: nação queto, Candomblé cannot be reduced exclusively to its religious function. It has also served in
nação jeje, nação angola... O Ilê Omolu Oxum, cujo repertório musical reorganizing social life, playing a crucial role in forming the awareness and identity of descen-
está parcialmente registrado neste CD, é um terreiro de candomblé de dants of Africans, and more widely in forming the Brazilian identity itself. The terreiros were fun-
damental in organizing networks of solidarity and spreading collective consciousness, giving a
nação queto, e por este motivo as informações contidas neste encarte
sense of belonging, and instilling family and social values. The terreiros are organized according
referem-se primordialmente a essa nação.
to rigid hierarchical systems, at the head of which we find the babalorixá or pai-de-santo (“father of
Cultuadas por todo o território nacional, as religiões de origem
saint”, high-priest), or the ialorixá or mãe-de-santo (“mother-of-saint”, high-priestess). Iaquequerê
africana no Brasil recebem diversas designações: tambor de mina (Ma-
or mãe-pequena (“small mother”) or babaquequerê or pai-pequeno (“small father”) is the second
ranhão), xangô (Pernambuco), batuque (Rio Grande do Sul) e candom-
most important position in the hierarchy. The ogãs are the men responsible for taking care of the
blé (Bahia, Rio de Janeiro e resto do país.) Deve-se, ainda, considerar
terreiro, sacrificing animals, and playing the drums during the cerimonies. The equedes are the
toda a sorte de religiões afro-derivadas (em que elementos dos três
women who take care of the orixás, helping them during the ceremonies. The adoxus are the ones
sistemas de religiosidade africana no Brasil podem estar presentes) who enter into trance and are possessed by the orixás. They are called yaôs when they have not
praticadas por esse Brasil afora e, por isso, também denominadas yet fulfilled their ritual obligations after a seven-year period, and ebômis when they have. There
afro-brasileiras – umbanda, jurema, candomblé de caboclo, pajelan- are also several positions of trust determined by the divinities themselves, sometimes through
ça, catimbó etc. Todas essas tradições religiosas têm em comum oracles such as the jogo de búzios (a sort of divination with the use of small shells).
o fato de cultuarem ancestrais divinizados, intermediários entre This religious system helped to organize the social life of the descendants of Africans
homens e forças naturais, conhecidos como orixás, inquices, vo- through the passing on of African customs and the invention of new ones in contact with Bra-
duns, santos,, encantados etc., cuja presença se manifesta através zilian society. Oral transmission has been the fundamental means for the development and
do transe de possessão. expansion of candomblé since the 19th century. Since the dawn of the 20th century, however,
Contudo, o candomblé não pode ser reduzido única e this tradition has also been affected by a large range of books, movies, and records focused on
exclusivamente ao espaço religioso afro-brasileiro. Serviu, tam- candomblé. Gradually from a non-written tradition it is evolving into a written, technological,
bém, como reorganizador da vida social, determinante para and even cybernetic tradition. The CD Ilê Omolu Oxum: chants and rhythms for the orixás fits in a
a formação da identidade dos descendentes de africanos no stream of productions that have tried to capture the beauty of this cultural heritage through the
Brasil e, de forma mais geral, da própria identidade nacional means available by modern technologies.
Xaxará, lança de brasileira. Além de constituir-se como base para a formação Ilê Omolu Oxum was founded by Mãe Meninazinha d’Oxum, who was initiated into can-
mão de Omolu,
de redes de solidariedade e auxílio mútuo, o candomblé domblé in 1960 by her grandmother Iyá Davina d’Omolu, at the Casa Grande de Mesquita, in
pertencente ao
Omolu de Iyá Davina também forneceu à população afro-brasileira um vasto Rio de Janeiro. Yá Davina had been initiated in Bahia in 1910 by Procópio d’Ogum, one of the
(acervo do Memorial patrimônio sociocultural. Esse patrimônio foi fundamen- most important pai-de-santos at that time. In the 1920s, Yá Davina came to live in Rio de Janeiro,
Iyá Davina, 1910).
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ILÊ OMOLU OXUM: CHANTS AND RHYTHMS FOR THE ORIXÁS tal para a formação de uma consciência coletiva,
baseada numa herança ancestral (transnacional
For over three centuries, the slave trade which prospered between Africa and the Ameri- e trans-histórica), que proporcionou a perma-
cas, deporting millions of men and women from their homeland, supplied Brazil with not only nência no Brasil moderno de uma religião
a labor force which was to build the country, but also with new visions of the world, traditional estritamente hierarquizada e complexamente
customs, and arts which have forged a unique cultural heritage. Candomblé is one of these ritualizada. Para isso, os terreiros reelaboraram
legacies, a lively religion to be found throughout Brazil. Deeply rooted in African religions, the a noção de família e o sentimento de pertença
rise of candomblé dates back from the 19th century, when its practices came to take place in a comunitária ou social, dando mãe (de santo),
single physical space called terreiro, roça, casa-de-santo, ilê, abaçá, axé or egbé. Candomblé is a irmãos (de santo), casa (de santo) e família (de
religion based on oral tradition. Its liturgy is passed on from one generation to the next through santo) aos que não tinham nada disso.
the myths reproduced in dance, songs and rituals. Candomblé has had a key role in perpetu- Os terreiros foram erguidos sob um rígido
ating historical, religious, and social experiences in the consciousness and collective memory sistema hierárquico, que, de forma geral, assim pode ser Abebé, espelho ou leque
of descendants of Africans in Brazil, and of those who take part in the Afro-Brazilian religions.
descrito: ialorixá, babalorixá, mãe ou pai-de-santo é a mulher ou o de Oxum, pertencente ao
Today, Candomblé is practiced by Brazilians and foreigners alike, regardless of social class or Oxum de Tia Esmeralda
homem responsável pela liderança espiritual e pela administração (acervo do Memorial Iyá
ethnic background. Roughly speaking, there are three main groups of religious practices called
de um terreiro. Iaquequerê, babaquequerê, mãe ou pai-pequeno é Davina, 1937).
“candomblé” in Brazil today. The first group is the Nagô, originated from people who shared
a pessoa imediatamente responsável pelo terreiro após a mãe ou
Yoruba as a common language. These people came from the ancient empires of Oyo, Ijesa,
pai-de-santo. Ogãs são os homens responsáveis pela manutenção
Ejigbo, Ketu, and Egba, corresponding to modern day Benin and South-East Nigeria. The second
do terreiro, pelo toque de atabaques e pelo sacrifício de animais.
group is the Jeje, brought by people of Ewe or Fon descent, who inhabited the Dahomey empi-
Equedes são as mulheres responsáveis pelo zelo com as divinda-
re, corresponding to today’s Benin and Togo. The fusion between these two groups resulted in
the Jeje-Nagô cult system, which is the most influential system of religious practices of African
des e as auxiliam nas danças, nas vestimentas etc. Adoxus são os
origin in Brazil. The third group was born from people who inhabited the southeast of Africa, “cavalos” das divindades, os que entram em transe e são possuídos pelos
corresponding to today’s Angola and Congo. These people spoke several languages of the Bantu orixás. Nesse grupo, duas são as divisões: iaôs são os que não completa-
group, especially Kimbundo and Kicongo. Each of these three groups presents its own distinctive ram suas obrigações rituais (após sete anos de iniciação) e ebômis os que
characteristics and several ramifications, each one of which is called a nação, or nation: nação já as completaram. Há ainda cargos de confiança, determinados pelas
queto, nação jeje, nação angola... Ilê Omolu Oxum, whose musical repertoire is partially recorded divindades, no mais das vezes, através da consulta ao oráculo – o jogo
in this CD, is a terreiro which belongs to the Queto nation. For this reason, the information on de búzios: iabassê, a mulher responsável pela cozinha das divindades;
these notes applies mainly to this nation. babalossaim, o homem responsável pela colheita das folhas e ervas e
Religions of African origin are found all over Brazil with distinctive regional traits and pelos rituais em que plantas são necessárias; ialaxé, mulher responsável
denominations: tambor de mina in Maranhão, xangô in Pernambuco, batuque in Rio Grande do pela limpeza e pela oferta de comidas às divindade.
Sul, candomblé in Bahia, in Rio de Janeiro, and in the rest of the country. It should also be men- Toda essa hierarquia foi elaborada e preservada através da ritua-
tioned the several Brazilian religions in which elements of the three groups mentioned above can lística religiosa, que contribuiu para organizar a vida social dos descen-
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dentes de africanos no Brasil, através das recordações, ou mesmo da invenção,


de práticas oriundas das terras africanas em contato com a realidade brasileira
– graças à transmissão oral que se deu ao longo do tempo entre as gerações.
Assim, mesmo que a história afro-brasileira não tenha podido ser minuciosa-
mente concretizada através de uma história textual, documental ou mesmo
material, pode ser, entretanto, elaborada por meio da oralidade – elemento
primordial para a realização do saber afro-brasileiro, que se baseia numa me-
mória não-escrita, não-documental e, por isso, simbólica ou conceitual, que
encontrará no corpo e na narrativa mítica seus instrumentos mais valiosos.
Se a tradição oral foi, de fato, o instrumento para a formação e perpe-
tuação desse sistema durante o século XIX, a partir do início do século XX essa
tradição sofrerá o impacto dos muitos livros, filmes e discos publicados sobre
o candomblé e seu complexo sistema ritual. Dessa forma, a religião atextual,
centrada na oralidade, vai, aos poucos, transformando-se numa religião tex-
tual, tecnologizada e, por fim, digital(izada) ou hipertextual(izada).
O CD Ilê Omolu Oxum: cantigas e toques para os orixás encaixa-se no rol das
produções que tentam, através das possibilidades que as tecnologias de comuni-
cação podem oferecer, resguardar o acervo patrimonial do rico e complexo sis-
tema cultural e religioso afro-brasileiro, através da gravação dos cânticos rituais
cantados, recantados e decantados há séculos por esse Brasil afora.
O Ilê Omolu Oxum foi fundado em 1968 por Mãe Meninazinha
d’Oxum, iniciada em 1960 por sua avó carnal Iyá Davina d’Omolu, na Casa-
Grande de Mesquita, no Rio de Janeiro. Iyá Davina, por sua vez, foi iniciada
por Procópio d’Ogum, na Bahia de 1910. Foi a última mãe-de-santo da
Casa-Grande de Mesquita, terreiro que dava continuidade ao terreiro do re-
nomado pai-de-santo João Alabá, situado na Gamboa, Rio de Janeiro – o que
comprova os vínculos criados entre lideranças religiosas das mais diversas
regiões do país. A importância do Ilê Omolu Oxum para o universo religioso
afro-brasileiro deve-se, dessa forma, a sua genealogia, que aqui será co-
mentada a partir da história de vida de Iyá Davina e das muitas articulações
criadas entre o povo-de-santo daqui e dacolá.
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A primeira decisão foi a de que as gravações seriam realizadas


no próprio Ilê, para onde foi levado um pequeno estúdio móvel. Por
razões de acústica, optou-se por não gravar no barracão, local onde
acontecem os toques. Coube a Mãe Meninazinha, com sugestões de
outros membros do terreiro, a escolha do repertório a ser gravado.
Duas sessões de gravação foram realizadas, em 10/03/2001 e 31/01/
2004, no local conhecido no terreiro como Alameda Tia Fióti. Todo o
material registrado nas sessões foi ouvido, analisado e criticado pelos
membros do Ilê. A partir destas audições, definiu-se o repertório final
que constaria no CD e novas gravações a serem feitas para dobrar os
coros das cantigas e corrigir pequenas imperfeições rítmicas e meló-
dicas. As gravações finais aconteceram em 29/02/2004, desta vez não
mais no terreiro, mas em um estúdio, com um grupo menor de pes-
soas. Na fase de mixagem, procurou-se clareza e equilíbrio na relação
entre as vozes (solista e coro) e destas com os tambores, preservando,
contudo, o impacto sonoro dos atabaques. Finalmente, as fotografias
e o projeto gráfico também passaram pelas mãos de Mãe Meninazi-
nha. A capa foi escolhida de forma a representar, por meio de objetos,
os dois orixás patronos da casa: o fio de contas de Oxum e a pipoca
que serve de alimento a Omolu.
Tomadas todas estas escolhas em seus processos de decisão, de-
vemos enfatizar, portanto, que este CD não deve ser entendido apenas
como um documento etnográfico, mas também como um registro de
como uma determinada comunidade-terreiro quer se ver representa-
da, ou melhor, de como quer ser ouvida. Cabe-nos, por fim, agradecer
a Mãe Meninazinha e a todos os membros do Ilê Omolu Oxum pela
realização deste trabalho, encerrando como deve ser:
Adupé!
Edmundo Pereira
Gustavo Pacheco
LACED/Museu Nacional-UFRJ
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COMO FOI FEITO ESTE CD


PROCÓPIO D’OGUM E O ILÊ OGUNJÁ Qualquer disco de candomblé,
por melhor que seja, está destinado
a ser apenas um pálido reflexo da
Procópio Xavier de Souza, Procópio d’Ogum ou Ogum
exuberância e beleza de uma noite
Jobi, foi iniciado por Iyá Marcolina da Cidade de Palha. Há
de festa no terreiro. Tentar captar
poucas informações sobre ela. Sabe-se que era de nação
em disco a complexidade e riqueza
queto e da mesma geração de Iyá Pulchéria do Gantois.
musical do candomblé é uma ta-
O terreiro de Procópio, situado no Baixão (antigo Ma-
refa difícil em que várias escolhas
tatu Grande), em Salvador da Bahia, era muito conhecido
têm que ser feitas. De fato, toda
pelo grande número de iniciadas e pela renomada feijoada
reprodução fonográfica de um
anual oferecida ao orixá Ogum – patrono do terreiro –,
evento musical envolve escolhas:
que ficou mais conhecida como “feijão do Procópio”. Sobre
que repertório gravar, como colocar
a feijoada, conta-se a seguinte história: “Um dia Procópio
os microfones, como equalizar as
estava comendo em sua casa. Chegou um filho-de-santo,
gravações... No caso do registro do
com quem ele tinha brigado. Então, Procópio o manda em-
repertório sacro de um terreiro de
bora com outra briga. Com isso, comete um grande pecado
candomblé, estas escolhas podem
do candomblé: negar comida a um filho-de-santo. O santo
ainda nos colocar questões éticas
pegou Procópio e falou que ele estava multado. Na semana
e políticas diante do preconceito e
seguinte, ele deveria fazer no terreiro uma feijoada à base
ignorância com que muitas vezes as
de toucinho, convidando todo o mundo”. Colocava-se uma
religiões de origem africana são re-
esteira no chão para comer e as filhas-de-santo assim que
cebidas. Nesse sentido, vale destacar
comiam caíam no santo (entravam em transe).
que todo o processo de gravação e
Outro fator fundamental para o seu reconhecimento
edição do CD que ora apresentamos
foi o fato de ter participado da legitimação do candomblé,
foi fruto do diálogo, da parceria e
durante o Estado Novo, período marcado pela perseguição
do respeito à dinâmica cultural do
às religiões afro-brasileiras e aos seus terreiros e sacerdo-
terreiro, todas as decisões sendo to-
tes. O Ilê Ogunjá foi nesse período invadido pelo famoso
madas conjuntamente ao longo de
delegado de polícia Pedrito Gordo e Procópio foi preso.
diversos encontros acompanhados
Até hoje se comenta das marcas nas costas que teria por
por comida farta e saborosa, como
conta dessa prisão. Tal acontecimento, que ficaria conheci-
é tradição no candomblé.
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Além dos tambores, a orquestra do candomblé conta também com


um sino de ferro de som estridente, tocado com uma haste de ferro ou de
madeira. Este sino é chamado de gã quando possui uma só campânula e
de agogô quando possui duas, e executa um padrão rítmico repetitivo que
serve de referência para todos que estão tocando e cantando. Em alguns do como “caso Pedrito”, registrou o nome
terreiros, também são usadas cabaças envoltas por uma rede de contas, de Procópio na história popular baiana e
chamadas xequerês. conferiu-lhe citações em obras de ficção,
As letras das cantigas têm por base idiomas africanos (no caso do can- trabalhos científicos e mídia impressa. Um
domblé queto, especialmente dialetos do iorubá) modificados pela transmis- samba-de-roda, de domínio popular, ilustra
são oral ao longo de seus muitos anos de vida no Brasil. Nas cerimônias pú- bem essa fama: “Procópio tava na sala /
blicas (ou toques), as cantigas são em geral puxadas pela mãe-de-santo ou por Esperando santo chegar / Quando chegou
pessoa por ela designada, e respondidas por todos os presentes, que também seu Pedrito / Procópio passa pra cá / Gali-
participam batendo palmas e exclamando saudações aos orixás. Nem todas as nha tem força n’asa / O galo no esporão /
cantigas são acompanhadas por tambores, especialmente as usadas em rituais Procópio no candomblé / Pedrito no facão”.
internos, fechados ao público. Por outro lado, há alguns toques que podem O “caso Pedrito”, assim como a fama alcan-
ser executados sem canto, como as quatro últimas faixas deste disco. çada pela feijoada anual oferecida a Ogum,
As cantigas são acompanhadas por mais de vinte toques diferentes, cada que se tornaria uma tradição nos terreiros
um associado a uma determinada etapa da cerimônia ou a um determinado brasileiros, fizeram do Ilê Ogunjá uma re-
orixá, refletindo musicalmente as características atribuídas a cada divindade. ferência nacional na história das religiões
Assim, por exemplo, Iansã, deusa dos ventos e tempestades, tem como ritmo afro-brasileiras.
característico o vigoroso ilu, também chamado de “quebra-pratos” (faixa 50), Profundo conhecedor de ervas, Pro-
enquanto que a seriedade e a introspecção de Omolu, deus das doenças con- cópio possuía uma quitanda (herbário) no
tagiosas, se refletem no ritmo mais lento do opanijé (faixa 49). Embora alguns Gravatá, perto de sua residência. Mantinha
toques sejam privativos de determinados orixás, como o alujá de Xangô (faixa profunda relação com o terreiro do Alaketu,
51), outros ritmos, ainda que associados a um orixá específico, podem ser tendo auxiliado Dona Dionísia (mãe-de-san-
tocados também para outras divindades, como o ijexá, ritmo característico to àquela época) na feitura de dezenas de
de Oxum (faixas 23 a 25), mas encontrado também em cantigas para outros barcos (grupos de pessoas iniciadas juntas),
orixás, como Exu, Ogum, Logunedé e Oxalá. Alguns ritmos podem ser associa- entre estes o barco da atual ialorixá do Axé,
dos a momentos determinados dos rituais, como o toque avamunha (também Olga Francisca Régis (Olga do Alaketu) e de
conhecido como avaninha, ramunha e outros nomes), que pode ser executado Tia Delinha d’Ogum, do qual foi pai-peque-
na entrada e saída dos orixás do barracão (faixa 48). no. Faleceu em 1958, com idade ignorada.
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IYÁ DAVINA E A
CASA-GRANDE DE MESQUITA

Iyá Davina, Davina Maria Pereira, nasceu no ano de


1880, na cidade de Salvador, Bahia. No dia 24 de julho de
1910, foi iniciada por Procópio d’Ogum, no Ilê Ogunjá. Fi-
lha de Omolu e Oxalá, tomou, na década de 1920, o navio
“Comandante Capela”, para, juntamente com seu marido,
Theóphilo Marcelino Pereira, ogã do mesmo Ilê Ogunjá,
chegar à cidade do Rio de Janeiro. Possuiu no bairro da
Saúde sua primeira residência, conhecida como “Consulado
Baiano” por abrigar inúmeros conterrâneos de mudança
para o Rio. Manuel Rodrigues Pontes, Tio Pedro, Zazá e Iri-
néia (filhas-de-santo do Ilê Ogunjá) foram alguns dos muitos
baianos abrigados por Iyá Davina. Já nessa época, existia na
cidade famoso terreiro de candomblé, situado na Rua Barão
de São Félix, na Gamboa, dirigido pelo renomado pai-de-
santo João Alabá. A este, Iyá Davina se juntou. Alguns his-
toriadores afirmam que tal terreiro havia sido fundado com
a ajuda de Rodolfo Martins de Andrade, mais conhecido
como Bamboxê Obitikô. João Alabá cultuava grande ami-
zade com sacerdotes baianos, entre estes Joaquim Vieira da
Silva, o Tio Joaquim. Por Alabá, foram iniciados membros
da família de Tia Carmen do Xibuca e de Tia Ciata, duas das
mais importantes matriarcas baianas daquela época. Após
o falecimento de João Alabá, em 1924, Vicente Bankolê
e sua esposa Tia Pequena herdaram os assentamentos de
seu orixá – Omolu – e deslocaram o terreiro da Gamboa
para Bento Ribeiro. Por lá, o terreiro permaneceu até 1932,
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A MÚSICA DO CANDOMBLÉ

O candomblé, como todas as religiões de origem africana, é


marcado profundamente pela presença da música. Todas as relações quando se transferiram para Mesqui-
com os orixás e todas as cerimônias, públicas ou privadas, são me- ta, na Baixada Fluminense, criando,
diadas e conduzidas por um imenso repertório de cantigas e rezas, assim, a Sociedade Beneficente da
acompanhadas ou não por tambores. Para cada atividade existe um Santa Cruz de Nosso Senhor do Bon-
conjunto de cantigas específicas. Canta-se para preparar as oferendas, fim, mais conhecida como Casa-Gran-
canta-se nos rituais de iniciação, canta-se para fazer as divindades de de Mesquita, que foi a primeira
dançarem nos dias de festa, canta-se para abrir os caminhos e para comunidade-terreiro de candomblé a
agradecer por dádivas recebidas... Este repertório, do qual este CD é estabelecer-se na Baixada. Uma outra
apenas uma pequena amostra, representa um dos mais importantes tia, Bibiana, tornou-se braço direito
patrimônios musicais da cultura brasileira. de Tia Pequena e Vicente Bankolê.
A orquestra do candomblé é composta por três tambores de for- Iyá Davina, ainda à época da
mato semelhante, porém de tamanho e afinação diferentes: rum, rumpi Saúde, já nutria profunda amizade
e lê. Esses tambores (ou atabaques) são cobertos com pele de animais com o Axé de João Alabá, auxilian-
Mãe Meninazinha e ebômi Nilza d’Oxossi (Marambaia, RJ)

em uma das extremidades e podem ser tocados com as mãos, no caso do-o com os afazeres daquela comunidade. Participou eficaz-
dos candomblés congo e angola, ou com varetas de madeira chamadas mente da mudança do terreiro para Bento Ribeiro, tornando-se
aguidavis, no caso dos candomblés jeje-nagô (todas as faixas deste CD iaquequerê da casa durante o período em que Tia Pequena foi a
são tocadas com aguidavis, à exceção das cantigas para Oxum – faixas ialorixá. Por conta de sua disposição para dar hospedagem aos
23 a 25). O rum, maior e mais grave dos três tambores, é o solista, conterrâneos baianos, desenvolveu profunda amizade com baba-
fazendo variações e floreios sobre o ritmo constante sustentado pelos lorixás e ialorixás dos mais variados axés, que no Rio de Janeiro
outros dois tambores. Essas variações orientam a dança dos orixás, pon- se radicaram. Participou da fundação de inúmeros terreiros na
tuando seus passos e gestos, e por este motivo tocar o rum é tarefa de cidade, como o Bate-Folha de João Lessengue, o Axé Opô Afonjá
grande responsabilidade, reservada aos ogãs mais experientes. Devido de Mãe Agripina, o Terreiro de São Gerônimo e Santa Bárbara
a sua importância no culto religioso, os atabaques são considerados de Mãe Senhorazinha e o terreiro de Djalma de Lalu. Também
sagrados e passam por uma série de rituais e preparos antes de serem possuiu inúmeros filhos-pequenos em outros terreiros dos quais
usados. Nos dias de festa, são “vestidos” com faixas de pano chamadas sempre foi assídua freqüentadora, como as casas de Seu Tata
ojás e recebem oferendas como as próprias divindades. Fomotinho e de Seu Ciriaco. Fundou ainda o terreiro de Seu
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Ninô d’Ogum, o Ilê Nidê. Esses fatos ilustram bem os vínculos


criados entre migrantes baianos e cariocas, determinantes para Oxum nos engajamos nessa história tomados por muitas
a preservação, manutenção e criação de novas e velhas tradições motivações. Entre elas, pelo fato de termos entendido,
culturais. O fato de ter sido iniciada num tradicional terreiro no Ilê, o modo pelo qual as culturas se inter-relacionam
baiano e ter se tornado a última dirigente de tradicional terreiro e transformam realidades inflexíveis em processos
carioca fez de Iyá Davina um símbolo dos vínculos criados entre sincréticos e, por isso, flexíveis e criativos. E aqui não
sacerdotes baianos e cariocas – processo decisivo na criação de falamos somente dos eventos rituais mágico-religiosos,
uma cultura urbana carioca, tendo como exemplo de suas muitas mas sobretudo dos rituais cotidianos, dos estilos de
manifestações, o samba. vida, das formas de sobrevivência faladas acima.
Em 1950, após o falecimento de Tia Pequena, Iyá Davina Foi isso, sem dúvida, o que possibilitou e permitiu a
tornou-se a última ialorixá da Casa-Grande de Mesquita, o que concretização do candomblé no Brasil, que mais que
pôs fim às inúmeras viagens que fazia a Salvador. Faleceu, no Rio uma forma religiosa é uma forma de viver, olhar,
de Janeiro, em 1964. perceber e entender o mundo.
Acreditamos que preservando a história das
religiões afro-brasileiras e de sua gente, estaremos
contribuindo para a formação de uma sociedade melhor
relacionada, que poderá elaborar soluções para obten-
ção de bem-estar mesmo nas situações menos nobres da
vida. Uma vez escrevi: agradeço a Olorum a experiência
nos caminhos mais obscuros e misteriosos das coisas da
terra e do espaço, nesse laboratório que é o terreiro. Casa
sem dono, casa dos orixás, nossa casa. Agora, reescrevo
aqui. Agradeço a Omolu, a Oxum e a todos os orixás
a permissão para que fôssemos iniciados nas coisas dos
deuses e dos homens, nas coisas da terra e do espaço, e
pudéssemos, com isso, compreender as horas em que se
transformam as Marias e Joãos em Davinas, Meninazi-
nhas, Procópios, Alabás, Mados, Enedinas...

Ricardo Oliveira de Freitas


Coordenador do Memorial Iyá Davina
Joselita, Lourdes d’Iansã e Meninazinha ao redor de Iyá Davina (Casa-Grande de Mesquita, RJ, 1962) Ogã do Ilê Omolu Oxum
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O MEMORIAL IYÁ DAVINA MÃE MENINAZINHA E O


ILÊ OMOLU OXUM
O Rio de Janeiro foi e continua sendo um importante
pólo de tradição e propagação das religiões afro-brasileiras. Maria do Nascimento, Meninazinha
Contudo, quase nada foi escrito sobre a presença de d’Oxum, herda os assentamentos do Omolu
terreiros de candomblé na cidade antes da década de de sua avó, Iyá Davina, e funda, em 06 de
1970. A trajetória de Iyá Davina, migrante baiana no julho de 1968, a Sociedade Civil e Religiosa Ilê
princípio do século, permite-nos traçar um levantamento Omolu Oxum, situada, num primeiro momen-
histórico da importância dos intercâmbios, das articulações to, na Marambaia, distrito de Tinguá, Nova
e das redes de solidariedade para a preservação das Iguaçu, com a ajuda de Tia Dêja (irmã), Tia
religiões afro-brasileiras por esse Brasil afora. Foi o que nos Dininha (irmã), Tia Angélica de Xangô (irmã-
motivou a criar, em 1997, o Memorial Iyá Davina. de-santo), Tia Mocinha (tia-de-santo), Tia San-
Instalado no espaço físico do Ilê Omolu Oxum, o ta d’Oxalá (Djanira Jumbeba, irmã-de-santo),
Memorial Iyá Davina constitui-se num núcleo de pesquisa Roque Cupertino de Lima (Ogã Doum), Darci
e documentação aberto à visitação pública, que abriga Neves de Mendonça (Ogã Tiquinho, suspenso
acervo (fotografias, desenhos, documentos, objetos etc.) referente no terreiro de João Alabá e primeiro ogã con-
à religião dos orixás e à formação das primeiras comunidades- firmado na Casa-Grande de Mesquita), Walde-
terreiro de candomblé no Rio de Janeiro. O Memorial Iyá Davina mar do Nascimento (Seu Mado, ogã e irmão)
serve como instrumento de acesso à informação de interessados e Tio Nozinho (ogã e irmão). Lá, o terreiro
tanto da comunidade do entorno como de pesquisadores, que vêm permaneceu até 1973, quando, com a ajuda
ao longo dos anos procurando o Ilê Omolu Oxum para obtenção de Tia Bené d’Iansã (uma das fundadoras do
de dados sobre religiões, cultura e sociedade afro-brasileiras. É o Grêmio Recreativo Escola de Samba Acadêmi-
primeiro centro de preservação de história material e memória no cos do Salgueiro e segunda porta-bandeira
distrito de São Matheus, São João de Meriti, município fluminense a desfilar pelo G.R.E.S. Império Serrano) o
que concentra o maior contingente percentual da população afro- terreiro foi transferido, definitivamente, para
descendente no Estado do Rio de Janeiro. a rua General Olympio da Fonseca, nº 380, no
A idéia da construção desse Memorial surgiu de Mãe bairro de São Matheus, em São João de Meriti,
Meninazinha, que há muito tempo pretendia torná-la realidade. no Estado do Rio de Janeiro.
Eu, equede Margarida Menezes e a comunidade do Ilê Omolu
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Mãe Meninazinha d’Oxum foi na. Mãe Dininha teve duas filhas, que
iniciada em 1960, na Casa-Grande hoje têm papéis importantes no egbé:
de Mesquita, por Iyá Davina. Por Tia Mãe Nilce d’Iansã e equede Neide
Pequena foram iniciados cinco dos d’Oxaguiã. Iyá Davina havia se mudado
quatorze filhos e alguns netos car- para a Rua Dias Raposo, em Ramos. Lá,
nais de Iyá Davina, entre estes: Nair Mãe Dininha, diretora da ala feminina
d’Oxaguiã (filha e primeira equede do afoxé Filhos de Gandhi, fundou em
do Axé de Mesquita), Tia Neném de 1963 o primeiro bloco afro feminino
Xangô (filha), Waldemiro e Oswaldo carioca, a Sociedade Afro Omo Xapanã.
(filhos e ogãs), Mãe Dêja (neta), Mãe Outra irmã, Djanira do Nascimento,
Dininha (neta) e Tio Nozinho (neto Mãe Dêja, foi, até o seu falecimento, em
e ogã de seu orixá). Mariazinha de 1988, a iaquequerê do Ilê Omolu Oxum.
Nanã, filha de Iyá Davina e mãe Mãe Dêja fora iniciada por Tia Pequena
carnal de Mãe Meninazinha, fora ini- para Iansã, em 1951, na Casa-Grande de
ciada no Ilê Ogunjá. Mariazinha de Mesquita. Mãe Dêja teve cinco filhos,
Nanã teve quinze filhos. Apenas seis que hoje ocupam papéis importantes
viveram e foram, todos, iniciados na no terreiro: Mãe Lúcia d’Omolu, equede
mesma Casa-Grande. Quando engra- Hilda, equede Zeneide, equede Solange
vidou de Mãe Meninazinha, o Omo- e ogã Carlinhos. Equede Solange casou- Zeneide, Nilce, Sandra, Lindomar, Hilda e Diacuy.
Afoxé Omo Xapanã (Ramos, RJ, 1963).
lu de Iyá Davina disse que naquela se com ogã Jorge, filho de Mãe Noélia
barriga havia uma menina, filha de d’Iansã (iniciada no mesmo barco de Mãe Lúcia d’Omolu), por
Oxum, que seria a herdeira do Axé. sua vez, filha carnal de Mãe Angelina d’Ogum, iniciada por Ban-
Em 18 de agosto de 1937, nascia danguame, no Terreiro do Bate-Folha, em Salvador – o que, mais
Meninazinha d’Oxum. Duas de suas uma vez, comprova os vínculos criados entre o povo-de-santo no
irmãs biológicas foram fundamental- Brasil. Waldemar do Nascimento, Pai Mado d’Omolu, é outro ir-
mente importantes no processo de mão de Mãe Meninazinha com importante papel no terreiro. Sua
sucessão. A primeira, Waldemira do esposa, Mãe Lourdes, já falecida, foi a primeira equede confirma-
Nascimento, Mãe Dininha d’Oxossi, da no Ilê Omolu Oxum. Sua irmã carnal, Tia Fioti de Omolu, foi a
foi confirmada equede em 1950, na primeira filha-de-santo iniciada no Ilê. Seu Mado é hoje um dos
mesma Casa-Grande de Mesquita. ogãs mais antigos da casa, junto com Pai Wilton (marido de Mãe
Era equede do Omolu de Iyá Davi- Nilce d’Iansã) e Pai Carlinhos (filho carnal de Mãe Dêja).

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