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Impulsionado pela Segunda Revolução Industrial, o século XIX foi marcado por um

intenso processo de urbanização. Sob o signo das cidades e das inovações tecnológicas, o
período em questão modifica fundamentalmente o modo como o homem moderno relaciona-
se com o seu entorno. À urbanização do Ocidente opõem e alinham-se diversas correntes que
pensam as relações humanas e a natureza neste novo contexto. O século é, desse modo, um
período de variadas propostas intervencionistas nos centros urbanos, bem como do
surgimento de um pensamento ecológico que, avesso às renovações urbanas, prima pela
preservação e não-agressão da natureza.
Como enunciado anteriormente, o século XIX corresponde ao período compreendido
pela chamada Segunda Revolução Industrial. A partir dela, o setor secundário da economia
instaura-se predominante. A mecanização do campo culmina em uma redução drástica de
trabalhadores rurais que se veem desprovidos de sua forma de sustento e subsistência. Dá-se,
pois, a migração de um expressivo contingente populacional para as cidades. Afim de
acomodar e atender às demandas populacionais, as cidades passam por intensos processos de
expansão. Em confluência com ideias urbanos enunciados nos séculos XVII e XVIII, dá-se a
abertura de vias. Nesse sentido, as cidades organizam-se, quando possível, geometricamente a
partir de avenidas lineares. Ao longo destas vias, a burguesia instala seus imóveis que,
novamente convergindo com os ideais dos séculos anteriores, são homogeneamente dispostos,
havendo a predominância de fachadas de ornamentação parca e que pouco destoam entre si. A
imagem a seguir mostra um desenho do plano de expansão da cidade de Barcelona, na
Espanha, projetado por Ildefonso Cerdá em 1859, no qual as ruas se cortam de maneira a
formar ângulos retos:

Projeto de expansão da cidade de Barcelona, Espanha. Fonte: https://goo.gl/EY7Ru6


Neste contexto burguês, bem como de difusão de um modo de vida marcado pelo
consumo, o homem torna-se público. Os centros urbanos passam a protagonizar a vida social
moderna, suscitando o surgimento da figura do “flanêur”, isto é: o homem “observador”,
“caminhante”. A vida do homem do século XIX passa a pautar-se em uma espécie de “ver e
ser visto”: existir no mundo, era existir na cidade. Instaura-se, pois, o costume do passeio
público – momento de lazer e sociabilidade. Em consonância com esta prática, ocorre o
surgimento de praças e jardins públicos cuja estética remontava aos jardins do século XVIII.
Assim, espaços naturais eram trazidos para as cidades inspirando-se ainda na teoria do
pitoresco que intentava reproduzir uma natureza artificial “naturalista”, mimética. Na imagem
a seguir encontra-se reproduzida uma ilustração do parque urbano Buttes-Chaumont, em
Paris, inaugurado em 1867:

Parque Buttes-Chaumont, 1867, Paris, França. Fonte: https://goo.gl/X25fo5

No contexto brasileiro, os objetivos de criação de parques públicos que embelezem e


propiciem o convívio social nas cidades mostra-se evidente, por exemplo, nas diversas
tentativas e propostas de reforma urbana no Campo de Santana, na cidade do Rio de Janeiro.
Desde o estabelecimento da Corte Real portuguesa em terras brasileiras, na primeira década
do século XIX, foram numerosas as proposições acerca da possível transformação do campo
em um local de passeio, bem como da reunião de festividades que reunissem, devido ao
terreno extenso pelo qual este estendia-se, todos os moradores da cidade. Após numerosas
sugestões e projetos de intervenção que não foram postos em práticas, ao fim do século, o
Campo havia sido arborizado, largos e arejados caminhos haviam sido criados, além de lagos
e canais de água corrente. Como apontado por Koseritz:

Conheci o Campo de Santana há 32 anos como um pântano enorme, onde se


reuniam à noite todos os vagabundos do Rio e muitos milhões foram gastos
para transformar aquele pântano num dos mais belos parques do mundo. A
orgulhosa cidade imperial deu-se este luxo: queria ter um grande parque e o
teve. (Koseritz apud Segawa, 1986, p. 170)

De volta ao contexto das cidades europeias, no que concerne as classes trabalhadoras,


apesar das promessas de emprego e melhores condições de vida – perante a propagação de
noções idealistas da vida urbana –, os trabalhadores industriais viam sua força laboral
explorada, sujeitando-se a péssimas condições trabalhistas e salarial e, por conseguinte, de
vida e moradia, posto que as cidades se mantinham inaptas à acomodação desse expansivo
número de habitantes. Ocorre, desse modo, uma secessão entre burgueses e operários: os
primeiros instalavam-se usualmente nas áreas centrais e movimentadas das cidades, nas
avenidas principais, enquanto os últimos viram-se empurrados para zonas menos favorecidas
e insalubres. Nesse sentido, a classe operária reunia-se em cortiços superpopulosos, com
precaríssimos conforto e condições sanitárias – levando a disseminação de patologias
diversas.
É nesse contexto que os governos das cidades passam a empenhar-se em um
movimento de sanitarização e higienização urbanos. As cidades passam a ser vistas por seus
habitantes, como apontado por Jean-Lius Hauroel, como “um tecido patológico, doentio”
(HAUROEL, 2004, p. 115), e as habitações populares, a fonte e meio de perpetuação dos
males urbanos – sendo consideradas não apenas como proliferadoras de doenças, mas também
dos vícios e do crime.
Desse modo, o urbanismo moderno instala-se (consolidando-se somente no século
seguinte), muito influenciado pelo caráter racionalista imperante no século anterior, como
uma ciência de caráter progressista que objetiva elaborar um projeto urbano perfeito e
universal que contenha e contemple adequadamente todos os habitantes da cidade.
Desenvolvem-se assim, diversos modelos urbanos utópicos que primam pela higiene, havendo
uma predominância edificações bem arejadas e iluminadas e que seja adequada às principais
atividades humanas, isto é, o trabalho, o lazer e a moradia. Tais projetos, no entanto, pouco
abandonam a teoria para serem aplicados na prática.
Contrapondo-se a este urbanismo utópico, o movimento culturalista aponta para uma
retomada das pequenas cidades. De raízes anti-industriais e contrário à síntese formal
característica da arquitetura modernista a partir da incorporação de materiais como vidro,
concreto e metal (considerando-a uma carência cultural), o movimento inspira-se nas cidades
do medievo, principalmente em suas ruas e praças, indicando-as como locais comunitários de
encontro. Busca, nesse sentido, “ressucitar o calor humano e a qualidade arquitetural”
(HAUROEL, 2004, p. 122).
Em confluência com o pensamento culturalista, o arquiteto Augustus Welby
Northmore Pugin aponta a composição urbana do período como um reflexo de uma sociedade
individualista. Na paisagem urbana de uma cidade industrial típica, “as altas torres das igrejas
agora sofrem a competição das chaminés das fábricas, cuja fumaça se espalha por toda a
cidade” (KERN, 20--, p. 2). A cidade medieval, em contrapartida, na qual “apenas as altas
torres dos monumentos religiosos se elevavam aos céus” (KERN, 20--, p. 3), refletia os
valores altruístas de comunhão e benevolência. Também o crítico de arte inglês John Ruskin,
ao versar acerca do Palácio de Versalhes (construção realizada inteiramente em metal e vido,
materiais típicos da era industrial, que recepcionou a Exposição Universal de 1851), aponta
um caráter desdenhoso do homem moderno, posto que este, em seu contínuo esforço rumo à
inovação e ao progresso, distancia-se intencionalmente das construções e tradições
arquiteturais europeias - para o autor, desconsiderando-as.
Também o movimento artístico e intelectual denominado Romantismo expressa-se
contrário ao caráter cientificista e industrial do século XIX. Contrapondo-se ao Iluminismo
que se pautava, sobretudo, na racionalidade, este prima por uma espécie de retorno à
espiritualidade, a uma valorização da sensibilidade, da emoção pessoal. O homem desse
período, posto que suas certezas fundadas na religiosidade foram decalcadas pelo
racionalismo, encontra-se deslocado, imergindo-se, pois, em uma postura pessimista e
melancólica – foge, nesse sentido, para o sonho, o misterioso. É a partir deste contexto que os
artistas e pensadores do Romantismo se voltam para a natureza.
No âmbito artístico, o conceito de sublime desenvolvido, sobretudo, pelo filósofo
Edmund Burke ainda no século XVII redimensiona o olhar direcionado à natureza. Para
Burke, o sublime seria a manifestação de uma potência extrema, de um ilimitado que, como
tal, não é passível de ser apreendido pela imaginação e entendimento humanos, mostrando-se,
pois, além de nossas capacidades de compreensão. O sublime, produzido apenas pela
natureza, ao ser experienciado, causa-nos a dor e o terror. Simultaneamente, entretanto,
experimentamos um regozijo. Isto ocorre pois o sentimento de perigo que o sublime suscita é,
de certa forma, “fingido” – é imprescindível que o sujeito esteja relativamente “afastado”, sob
certa segurança, afim de que o medo e o terror cedam lugar ao prazer, à fruição estética.
Perante o sublime que, portanto, não pode ser senão uma manifestação do divino, o homem
toma consciência de sua insignificância e pequenez.
Como apontado por Franciele Favero, esta noção da pequenez do homem diante da
natureza e do divino, é explorada pelos artistas românticos, tal como Gaspar Friedrich que
opõe, em suas obras, pequenas figuras humanas a paisagens caracterizadas pela imensidão.
Esta diferença de escala encontra-se explicito na obra reproduzida a seguir:

Caspar David Friedrich, Two Men By The Sea, 1822, tinta a óleo, 51cmx66cm, Old National
Gallery, Berlim. Fonte: https://goo.gl/sywfxz

Também o conceito de pitoresco mediou as relações artista-paisagem no período


romântico. Guiado por um intento de intervenção na natureza sem, entretanto, subtrair sua
espontaneidade e naturalismo, o pitoresco foi muito aplicado os jardins do século XVIII. Nas
produções do Romantismo, encontra-se expresso em obras de artistas como William Turner
ou John Constable. Nestas, há um predomínio de cores quentes e luminosas e pinceladas
ágeis, sendo pinturas de rápida execução – afastando-se, portanto, dos padrões das Academias
de arte.
John Constable, Autumn Sunset, 1812, tinta a óleo, 34cmx16cm, Victoria and Albert Museum,
Londres. Fonte: https://goo.gl/j2kxRc

No contexto estadunidense, por sua vez, em uma postura de nostalgia com relação aos
mitos dos pioneiros que descobriram e desbravaram as terras selvagens norte-americanas, que
os colonos passaram a crer que seria nova nação de Deus, os pintores inspiram-se nas
produções românticas europeias. Suas pinturas idealizam, pois, uma natureza de grandeza e
beleza divina insuflada de promessas acerca da nação que viria a formar-se. A partir deste
reposicionamento com relação à natureza anterior às intervenções humanas e diante das
drásticas modificações desta paisagem, em especial com a instalação das estradas ferroviárias,
origina-se uma urgência em preservar áreas verdes, que culminou na criação de reservas
indígenas e Parques Nacionais.
É notório, portanto, que os ideais românticos estabeleceram as bases para o surgimento
daquilo que chamamos hoje de ecologia. Este esforço de conservação e reconstituição da
natureza a sua condição original, inicialmente pautou-se, em grande parte, nas crenças de que
é impossível pensar a humanidade diante do aniquilamento dos espaços naturais. A influência
dos escritos filosóficos de Russeau, datados ainda do século XVIII, segundo os quais os
valores éticos e morais da vida em sociedade estariam atrelados ao contato do homem com a
natureza, apontando que, distante desta, este tornar-se-ia corrupto, é, pois, evidente. A
natureza configura-se, desse modo, não apenas como “um bem físico, mas também moral.”
(FAVERO, 20--, p. 214)
Nesse sentido, é possível afirmar que o estabelecimento do estilo de vida urbana, ainda
que alguns a ele tenham se oposto, modificou irremediavelmente a vida do homem moderno.
É inegável que os constantes avanços técnicos e industriais conferiram ao homem maior
controle sobre o mundo circundante. É evidente também, a partir da criação de jardins e
campos públicos, bem como das produções artísticas do Romantismo, que a industrialização e
urbanização imperativos geram, em contrapartida, um sentimento de nostalgia com relação à
natureza. A aparição da ecologia, por fim, parece uma reação inevitável perante este contexto
estabelecido durante o século XIX.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

FAVERO, Franciele. O Romantismo e a estetização da natureza.

HAROUEL, J.L. O Urbanismo. São Paulo:  Papirus, 2004, [p. 101-146].

KERN, Daniela. Paisagem moderna: Baudelaire, Huskin e as grandes exposições de 1851


1855.

SEGAWA, Hugo. Ao Amor do Público - Jardins no Brasil.  São Paulo, Difel, 1986 [p. 151-
174].

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