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A RAZÃO DE PRATA

João Luzeilton de Oliveira - uece1

INTRODUÇÃO
1 5
É comum ouvirmos falar do número   , conhecido como razão de ouro (número de ouro
2
ou razão áurea), e de sua relação com o retângulo de ouro (retângulo áureo), bem como de sua relação
com a Natureza e algumas áreas do conhecimento humano, como Engenharia, Arquitetura, Design,
Música, Arte Renascentista e Cinema, por exemplo, emprestando harmonia e beleza a essas áreas ([1],
[2], [5], [6], [7] e [9]). A razão de ouro tem uma estreita relação com a sequência definida pela recor-
fn1
rência f0 = 1, f1 = 1 e fn = fn ‒ 2 + fn ‒ 1, n ∈ ℕ, chamada sequência de Fibonacci:   lim ([1]).
n  fn
Outro número, também de grande importância e que tem conexões com outros elementos da pró-
pria Matemática e com a Arquitetura Romana, por exemplo, é o número 1 + 2 , conhecido pelos
romanos desde os séculos I e II ([3] e [4]) e que, juntamente com o número 2 , foi usado como base
de um sistema de proporções na Arquitetura Romana. A divisão de segmentos (seccionados por um
ponto) era feita de tal maneira que a razão entre o segmento inteiro e uma das partes dessa divisão

Faculdade de Educação, Ciências e Letras do Sertão Central, FECLESC, da Universidade Estadual


1

do Ceará, UECE. E-mail do autor: joao.luzeilton@uece.br.

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A razão de prata

Os números em (2) foram chamados por Spina-


tinha como resultado o número 1 + 2 ou algum
del de números metálicos. Quando p = n e p = 1, a
número que tivesse relação com o mesmo. Isto fazia
expressão (2) coincide com a expressão (1); ainda,
com que tal sistema fosse baseado em proporções,
em (1), com n = 1 e n = 2, tem-se, respectivamen-
cujas partes se encaixavam formando um todo e, ao
mesmo tempo, satisfazendo padrões matemáticos,
1 5
te, os números   (número de ouro) e
padrões de estética e beleza, trazendo harmonia a es- 2
2  8 ou , batizado por Spinadel como núme-
sas proporções. A partir de agora, usando a notação 
2
  1  2 , vamos nos referir ao número 1 + 2 ro de prata (ou razão de prata), em alusão ao núme-
ro de ouro.
como δ e ao seu inverso como  1  2  1 .
Assim como a razão de ouro, que tem relação
Existe em Matemática uma classe de números com a sequência de Fibonacci, o número de prata
irracionais positivos que contém os números ϕ e δ; (a partir de agora o trataremos como razão de pra-
essa classe é constituída pelos números da forma ta) tem relação com a sequência de Pell, que é uma
sequência definida pela recorrência p0 = 1, p1 = 2 e
2
n + n + 4 (1) pn = pn – 2 + 2pn – 1 , n ∈ ℕ, n ≥ 2. Os números 1, 2, 5,
2 12, 29, 70, ... são seus termos e são chamados nú-
e que são raízes da equação x2 – nx – 1 = 0, com n meros de Pell (matemático inglês, 1611-1685). Essa
inteiro positivo. relação, como veremos mais adiante, será dada por
p
Ao número δ foi dado um tratamento do pon-   lim n .
n  pn1
to de vista do Design, mostrando a sua importância Na próxima seção definiremos formalmente a ra-
para a Matemática, por meio de suas propriedades,
zão de prata e o retângulo de prata ([8]), mostrando
bem como a possibilidade de aplicação em outras
as relações que os envolvem. Em seguida, construire-
áreas. Em 1998, Vera Martha Winitzky de Spinadel
mos, geometricamente, a razão e o retângulo de prata.
(matemática argentina, 1929-2017) ([9] e [10]) in-
troduz sua Metallic Means Family, onde faz um ex-
A RAZÃO DE PRATA
celente trabalho de generalização da expressão em E O RETÂNGULO DE PRATA
(1), obtendo uma expressão geral que dá origem
aos chamados números metálicos. Nessa família, o Se os pontos C e D sobre um segmento de reta
primeiro membro é a razão de ouro ϕ e o segundo, AB são tais que AC = CD > DB e
o número δ. Em seu trabalho, ao generalizar a se-
quência de Fibonacci e, consequentemente, a razão AC DB (3)
= ,
de ouro, Spinadel obteve uma família de números AC AB AC
positivos da forma
AC
AB
então é chamada razão de prata.
AC
AB
p + p2 + 4q (2) AB
2 a a b
A C D B
e que são raízes da equação x2 – px – q = 0, com p e
q inteiros positivos. Fig. 1. Segmento de prata

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Assim, se C, D ∈ AB são tais que AC = CD = a, DB = b, a > b, então AB = 2a + b e, dessa maneira, (3)
2
a b a a a
pode ser escrita como  , e daí
2a  b a  b   2  b   1  0 . Isto nos diz que b   é uma raiz positiva
   
da equação δ2 - 2δ - 1 = 0.
Um retângulo ABCD (Fig. 2a) será chamado retângulo de prata se dele forem suprimidos dois quadrados,
como ABEF e EFGH, restando um retângulo, HGDC, semelhante ao retângulo original. Isto significa que se
2a + b e a, a > b são as medidas dos lados do retângulo original, então

a b
 . (4)
2a  b a

B a E a H b C B a E a H b C

b
J L
a a b
K M
a ‒ 2b
A F G D A F G B
(a) (b)
Fig. 2. Retângulo de prata

Na Fig. 2b, ao retirarmos dois quadrados de lado Ainda, de (4) segue que
a, restará o retângulo HGBC de lados a e b, a > b.
a b a  2b 5b  2a
Do retângulo restante, HGBC, retiram-se novamen-    
2a  b a b a  2b
te dois quadrados de maior área possível (quadrado
5a  12b 29b  12a 29a  70b
de lado b), restando um retângulo de lados a – 2b      (5)
5b  2a 5a  12b 29b  12a
e b, b > a – 2b. Se deste forem retirados dois qua-
drados de maior área possível (quadrados de lado e, dessa maneira, também são de prata os retângulos
a – 2b), restará um retângulo de lados a ‒ 2b e de lados b e a – 2b, a – 2b e 5b – 2a, ... Assim, se a
5b – 2a, a – 2b > 5b – 2a, e, assim, continuando e b, a > b, são números positivos satisfazendo (4),
esse processo, chega-se a um retângulo em que o então a sequência
maior lado é o lado menor do retângulo anterior, e
o menor lado, o maior lado desse menos duas ve- 2a + b, a, b, a – 2b, 5b – 2a, 5a – 12b, 29b – 12a,...
zes o menor dos lados desse retângulo. Assim, de (6)
b a  2b
(4) segue que  e, portanto, se o retân-
a b em que seus termos, a partir do segundo, coinci-
gulo de lados medindo 2a + b e a é um retângulo de dem com os termos da sequência a0, a1, a2, ..., an, ...,
prata, então o retângulo de lados a e b também o é. ou seja, a0 = a, a1 = b, a2 = a – 2b = a0 – 2a1, ....

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Isto significa que se a0 > a1 são lados do primeiro Isto significa que se Cn e Dn são pontos sobre
retângulo restante, então a1 > a2 são os lados do o segmento AB satisfazendo as condições aci-
segundo retângulo restante e, desta maneira, o ACn1
ma, então   . Na Eq. (9), ACn = an – 1 e
n-ésimo retângulo restante, n ∈ ℕ, n ≥ 2, tem lados ACn
Dn Cn – 1 = an correspondem, respectivamente, ao
an – 1 e an, an – 1 > an e se origina de um retângulo de
lados an – 2 e an – 1, com an – 2 = an + 2an – 1, e, assim, maior e menor lados do n-ésimo retângulo, de acor-
do com a sequência em (6). Assim, de (8) segue
an = an – 2 – 2an – 1 (7) que ACn = (–1)n–1(pn – 3a – pn – 2b) e DnCn – 1 = (–1)n
(pn – 2a – pn – 1b).
com an – 2 > an– 1. Todos os termos dessa sequência são
Por fim, já vimos que de (7) e (8), para n ∈ ℕ, n ≥ 2,
positivos e tendem a zero, à medida que aumentamos
seguem an = an – 2 – 2an – 1 e an = (– 1)n(pn – 2a – pn – 1b), res-
o número de retângulos construídos semelhantes ao
pectivamente. Se n → ∞, então an = an – 2 – 2an – 1 → 0.
retângulo original e dois termos consecutivos quais- E, assim, pn–2a – pn–1b → 0. Dividindo-se
quer são lados de um retângulo de prata. p b p a
Observemos em (6) que os valores absolutos dos pn – 2a – pn – 1b por pn – 2b, tem-se n1  n2  0 ,
pn2b pn2b
coeficientes de a e b são 1, 2, 5, 12, 29, 70, ... , sendo pn1 a p p a
ou seja,   0 . Portanto, lim n  lim n1   
os de a considerados a partir de a4, e os de b, a partir pn2 b n  p
n 1
n  p
n 2 b
de a3, e, assim, an, em (7), pode ser reescrito como p p a
lim n  lim n1    , o que nos mostra como a ra-
n  pn1 n  pn2 b
an = (–1)n(pn – 2a – pn – 1b) (8) zão de prata e a sequência de Pell estão relacionadas.

em que pn – 2 e pn – 1 são números de Pell, n ∈ ℕ, n ≥ 2. CONSTRUÇÃO DO NÚMERO DE PRATA


Observemos, ainda, que as relações (3) e (4) são Dada uma reta r, tome os pontos C, D ∈ r tais
equivalentes, de modo que os segmentos AC e DB que AC = CD. Por D construa uma reta s perpen-
(ou AB e AC), na Fig. 1, são os lados de um retângulo dicular a r e tome os pontos O, Q ∈ s tais que DO
= OQ = AC = CD. Com centro em Q, construa um
de prata, isto é, (3) e (4) nos dá uma relação entre a suur
razão de prata e o retângulo de prata. Um retângulo círculo c1 de raio DQ, de modo que AQ  c1  {E} .
Como centros em A e em E e raios AE, construa
de prata é, portanto, um retângulo em que a razão
os círculos c2 e c3, respectivamente, e c2 ∩ c3 =
entre o lado maior e o lado menor deste é igual à suur
{F, G}. O segmento FG ⊥ AQ em H. Com cen-
a
razão de prata, ou seja,  . tro em A e raio AH, traça-se o círculo c4 tal que
b
c1 ∩ AD = {B}, e, assim, AB = AC + CD + DB, AC > DB.
Agora, se C1 e D1, C2 e D2 dividem o segmento
Observe que se C, D ∈ AB são tais que AC = CD = a,
AB de modo que a relação (3) e as condições AC1
AE
= C1D1 > D1B, AC2 = C2D2 = D1B > D2C1 são DB = b, a > b, então AH  AB  2a  b  e, por
2
satisfeitas, e se marcarmos os pontos Cn e Dn sobre o construção, DO = OQ = a. Assim, no ∆ADQ, re-
segmento AB, de modo que ACn = CnDn = Dn – 1Cn – 2
tângulo em D, temos que AQ = 2a 2 , e, como
> Dn Cn, n = 3, 4, 5, ... então vale QE = DQ = 2a, temos que AE = AQ + QE = 2aδ e

ACn DC DB = b = AH - 2a = aδ-1. Portanto,


 n n1 (9) AH AE 2a AC a
ACn1 ACn    e  1   .
a 2a 2a b a

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A razão de prata
F
E
c1
c2

H Q
c4
O c3
A C D B

Fig. 3. Construção da razão de prata

CONSTRUÇÃO DO RETÂNGULO DE PRATA

Para construir o retângulo de prata, inicialmente, consideremos um quadrado ABCD de lado a. Com
uuur
centro em A e raio AC = a 2 , traça-se o arco CE, com E ∈ AD , D entre A e E, e AE = a 2 . Trace por E o
uuur uuur
segmento EF ⊥ AD , com F ∈ BC , obtendo-se, assim, o retângulo DCFE. Agora, com lado EF, construa o
DC a BG a
quadrado EFGH. Como DC = AB = a, CF = DE = aδ-1 e BG = aδ, tem-se  1   e   ,
CF a AB a
e, assim, os retângulos DCFE e ABGH são retângulos de prata (Fig. 4).

B a C aδ-1 F G

A D E H

Fig. 4. Construção do retângulo de prata

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A razão de prata

CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
Este artigo tem como objetivos tratar um pouco sobre a ra-
[1] ÁVILA, G. Retângulo áureo, divisão
zão de prata, mostrar a sua relação com o retângulo de prata e
áurea e sequência de Fibonacci. Revista
apresentar sua construção. do Professor de Matemática, n. 6, SBM, p.
Esperamos que este texto contribua para a Formação do 9-14, 1º Semestre de 1985.
Professor de Matemática e dos estudantes de Licenciatura em [2] HUNTLEY, H. E. The Divine Propor-
Matemática, levando-os a outros textos que possam mostrar tion: a study in mathematical beauty. New
a importância da razão de prata no mundo que nos cerca. A York: Dover Publications, Inc., 1970.
beleza da Matemática pode ser encontrada na possibilida- [3] KAPPRAFF, Jay. Connections: The Geo-
de de enxergá-la em outras áreas do conhecimento humano, metric Bridge Between Art and Science.
mostrando que ela está presente em toda parte, mas que pou- Singapura: Editora World Scientific, v. 25,
2001.
cos a conhecem ou a enxergam.
Além de ser possível explorar as propriedades da razão [4] KAPPRAFF, J. Beyond Measure: A Gui-
ded Tour Through Nature, Myth, and Num-
de prata, com os estudos de Spinadel, viu-se a possibilidade,
ber. Singapura: Editora World Scientific, v.
através dessas propriedades, de mostrar que a Matemática está 28, 2002.
presente no nosso dia a dia. Diante disso, este artigo pretende
[5] LIVIO, M. Razão Áurea: a história de
mostrar a importância de o professor de Matemática trabalhar,
Fi, um número surpreendente. Tradução de
junto com outros textos, a interdisciplinaridade, facilitando a Marco Shinobu Matsumura. Rio de Janei-
aprendizagem do aluno, mostrando a Matemática em diversas ro: Record, 2009.
áreas do conhecimento humano, e contribuindo para que seja
[6] PAULINO, F. F.; SANTOS, F. W. M.;
democrático o acesso à Matemática. OLIVEIRA, J. L. O Código Da Vinci e o
encontro entre Matemática, História e
Arte. Educação Matemática Debate, v. 5,
Referência correta n. 11, p. 1-26, 2021.
da RPM 67 para a RPM 5
[7] SETZER, V. W. A Matemática pode ser
interessante... e linda! Espirais, Fibonacci,
O nosso leitor João Lúcio de Fortaleza, CE, que tam-
Razão Áurea, Crescimento Populacional e a
bém já colaborou com artigos para a RPM, fez uma ob- Natureza. São Paulo: Blucher, 2020.
servação importante sobre a RPM 67. No artigo Uma
[8] SILVA, Marcelo M. Desmistificando o
Fórmula Surpreendente, do autor Gerson Espindola
Conjunto dos Números Irracionais. Disser-
Serpa, a fórmula Q(N )  n(N  1)  11...1 (com n alga- tação de Mestrado (PROFMAT) – Universi-
rismos 1) para a quantidade de algarismos para escrever dade Estadual do Ceará – UECE, 2018.
os números naturais de 1 até N que tem n algarismos
[9] SPINADEL, V. W. From the Golden
foi apresentada como inédita. Mas o próprio João apre- Mean to Chaos. Buenos Aires, Nueva Li-
sentou uma fórmula similar na RPM 5, considerando os breria, 1998.
10n  10
números de 0 até x e Q( x )  n( x  1)  . Deixa- [10] STAKHOV, A. The Mathematics
9 of Harmony: From Euclid to Contempo-
mos aqui a referência correta e agradecemos a todos os
rary Mathematics and Computer Scien-
leitores e autores pelas contribuições que sempre enri- ce. Singapura: Editora World Scientific,
quecem a RPM. v. 22, 2009.

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