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Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes

Programa de Pós-Graduação em Psicologia

MULHERES E AGROECOLOGIA NO RIO DE JANEIRO: CONSTRUINDO UMA

POLÍTICA FEMINISTA A PARTIR DAS MARGENS

Maria da Graça Silveira Gomes da Costa

Natal

2019
Maria da Graça Silveira Gomes da Costa

MULHERES E AGROECOLOGIA NO RIO DE JANEIRO: CONSTRUINDO UMA

POLÍTICA FEMINISTA A PARTIR DAS MARGENS

Tese elaborada sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Magda Diniz

Bezerra Dimenstein e co-orientação do Prof. Dr. Jáder

Ferreira Leite e apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do

Norte, como requisito parcial à obtenção do título de

Doutora em Psicologia.

Natal

2019
i
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes -
CCHLA

Costa, Maria da Graça Silveira Gomes da.


Mulheres e agroecologia no Rio de Janeiro: construindo uma
política feminista a partir das margens / Maria da Graça Silveira
Gomes da Costa. - Natal, 2019.
252f.: il. color.

Tese (doutorado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e


Artes, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade
Federal do Rio Grande do Norte. Natal, 2019.
Orientadora: Profa. Dra. Magda Diniz Bezerra Dimenstein.
Coorientador: Prof. Dr. Jáder Ferreira Leite.

1. Agroecologia - Tese. 2. Gênero - Tese. 3. Epistemologias


feministas - Tese. 4. Direito à cidade - Tese. I. Dimenstein,
Magda Diniz Bezerra. II. Leite, Jáder Ferreira. III. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 631.95:141.72(815.3)

Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB-15/710

Capa: Helena Nehme Yung

ii
Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes

Programa de Pós-Graduação em Psicologia

A tese Mulheres e Agroecologia no Rio de Janeiro: construindo uma política feminista a


partir das margens, elaborada por Maria da Graça Silveira Gomes da Costa, foi considerada
aprovada por todos(as) os(as) membros(as) da Banca Examinadora e aceita pelo Programa de
Pós-Graduação em Psicologia, como requisito parcial à obtenção do título de doutora em
Psicologia.

Natal, RN, 28 de março de 2019.

BANCA EXAMINADORA:

________________________________________________

Prof.ª Dr.ª Magda Diniz Bezerra Dimenstein (UFRN, Orientadora)

________________________________________________

Prof. Dr. Jáder Ferreira Leite (UFRN, Co-orientador)

________________________________________________

Prof.ª Dr.ª Maria Juracy Filgueiras Toneli (UFSC)

________________________________________________

Prof. Dr. João Paulo Sales Macedo (UFPI)

iii
________________________________________________

Prof.ª Dr.ª Elisete Schwade (UFRN)

________________________________________________

Prof.ª Dr.ª Raquel Farias Diniz (UFRN)

iv
Às Marielles, Bertas, Juanas e a todas as mulheres que,

ao se movimentarem, mudam as estruturas da sociedade.

À minha avó Terezinha Pereira da Silva (in memorian).

Escrevo para nos escrever. Para que tu existas.

Para que nenhuma memória-mulher-cabocla seja apagada novamente.

v
Agradecimentos

Os anos de escrita da tese foram embalados por particular angustia, diante do cenário

político de incertezas que se desenhou nos últimos quatro anos no país. A construção de redes

de suporte e trocas políticas e acadêmicas foram essenciais para mim e também explicam a

diversidade dos caminhos pelos quais circulei nesse processo. Tenho, portanto, que agradecer

a muitos grupos e pessoas que de uma forma ou de outra ressoam política, teórica e afetivamente

neste trabalho.

Antes de tudo, gostaria de agradecer a minha orientadora Magda Dimenstein e ao meu

co-orientador Jáder Leite pela parceria de longa data, por confiarem em meu trabalho, pelo

aprendizado, por me permitir voar mantendo os pés no chão.

Agradeço aos professores Maria Juracy Toneli, Raquel Diniz, João Paulo Macedo e

Elisete Schwade por aceitarem participar da banca e realizar a leitura deste trabalho. Sou grata

especialmente à Profª. Elisete, minha primeira orientadora de iniciação científica ainda na

Antropologia e com quem iniciei meus estudos feministas.

Agradeço à CAPES pela concessão da bolsa de estudos que me permitiu a realização da

pesquisa e o estágio de aperfeiçoamento na Espanha.

Ao Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande

do Norte (PPGPsi/UFRN) e todos os seus funcionários, particularmente Cilene e Lizi, que com

tanta paciência me ajudaram a solucionar minhas dúvidas e abacaxis ao longo do caminho.

Às inúmeras amigas potiguares que entenderam minhas ausências em especial Rayssa,

Carol, Tati, Valéria, obrigada por não desistirem de mim. À minha irmã de alma Kamila por

me salvar a vida tantas vezes nesses 10 anos de amizade. À Fábio, Adriana e Carolina por me

ensinarem a levar com leveza tantos momentos de desespero quando estive em Natal. A todos

os colegas de PpgPsi, em especial aos do Grupo “Modos de Subjetivação, Políticas Públicas e


vi
Contextos de Vulnerabilidades”. À Ana Helena, Leda, Martha, Ana Izabel por compartilharem

comigo as dores e as delícias do doutorado. À Maria Laís pela revisão cuidadosa do texto da

tese.

À cidade do Rio de Janeiro que em sua beleza, feiura e contradições me ajudou a ver o

mundo de forma muito mais complexa. Aos companheiros e companheiras da agroecologia no

Rio de Janeiro, da Rede Carioca de Agricultura Urbana, da Militiva, Coletiva Popular de

Mulheres da Zona Oeste e Coletiva Hortelã por se abrirem com tanta generosidade para mim.

Em especial para minhas interlocutoras diretas e indiretas na pesquisa, Ana Santos, Aninha,

Silvia, Mariana, Francis, Mara, Maria, Renata, Elô, Camila, Selma, Maraci, Saney, Jenifer. Para

além de companheiras de luta e “participantes”, vocês são coautoras deste texto que eu espero

que possa contribuir com as lutas no território Zona Oeste, e em outros territórios que resistem

e enfrentam ameaças diariamente. Ao bairro de Vargem Grande e seus moradores, esse ninho

de acolhimento em meio ao caos da cidade.

Às companheiras do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (Instituto PACS),

sobretudo Aline, Marina e Joana com quem pude dialogar diretamente sobre minhas ideias e

contribuíram bastante com a leitura do texto, com os conteúdos, além de facilitarem de diversas

formas os encontros e conversas amplas junto ao grupo de mulheres da Zona Oeste.

Agradeço também aos companheiros do Arranjos Locais Penha, com quem aprendi e

sonhei junto. Ana, Diego, Marcelo, Patrícia, Mari Portilho, Suzana, Cíntia e as equipes de

trabalho que acreditaram nas nossas ideias, muito obrigada. Agradeço também aos moradores

do Complexo da Penha por construírem junto conosco.

Às companheiras do projeto de extensão Diálogos Feministas e Práticas em Psicologia

e Direito, Heloisa, Maria Luiza, Marina, Laisa e Josi por embarcar nessa loucura de construir

ao longo de um ano uma proposta ética e pedagógica feminista para nossas práticas.

vii
Ao grupo de estudos coordenado pelo Prof. Pedro Paulo Bicalho da Universidade

Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e ao grupo PesquisarCOM coordenado pela Prof.ª Márcia

Moraes da Universidade Federal Fluminense (UFF) por me receber e permitir participar das

discussões e leitura do meu trabalho ainda no início.

A Fábio Oliveira e todos integrantes do Laboratório de Ética Animal e Ambiental (LEA-

UFF/UFRJ) pelos instigantes debates e a corajosa atuação pela causa animal e agroecológica

dentro da academia.

Agradeço ainda à pequena família que construí no Rio ao longo desses anos, o pessoal

do Pereirão e agregados, em especial minhas queridas amigas Leticia, Iara e Luana. Agradeço

a Lara Abib pela leitura atenciosa, os puxões de orelha, as levantadas na autoestima, as risadas,

os choros, os carnavais e a parceria que construímos mesmo com todas as nossas loucuras e

complexidades. Fechando o bonde carioca/potiguar, agradeço a Felipe, um grande amigo e

encontro de vida que esteve ao meu lado em boa parte desse processo.

Aos colegas do grupo LAICOS da Universidade Autônoma de Barcelona pelas

contribuições ao meu trabalho e ao Prof. Lupicínio Iñiguez-Rueda por me receber no grupo. Às

amigas Renata, Joyce, Jacqueline e Fang pela acolhida e pelas cervejas e vermuts

compartilhados. Agradeço também ao grupo Brasileirxs Contra o Fascismo por ter me ajudado

a sobreviver a uma eleição difícil estando tão longe de casa, com destaque para as queridas

Paola, Dani e Mariana que foram meu porto seguro em Barcelona. Agradeço a Red Ecofeminista

da Espanha com quem pude dialogar e repensar outros mundos e teorias possíveis a partir de

uma ética feminista e ecológica, em particular às professoras Alicia Puleo e Aimé Tapia

Gonzalez.

Agradeço especialmente a artista libanesa Helena Nehme, autora da maravilhosa arte da

capa. Ela que me faz navegadora e tanto me ensina sobre amor, resistência e liberdade. Que

viii
juntas possamos fortalecer ainda mais os laços de solidariedade entre as mulheres do Oriente

Médio e América Latina.

Agradeço a minha família e aos meus ancestrais, principalmente meus pais, Iris e

Moacyr, que com muito sacrifício e, a despeito de nossas diferenças, foram os maiores

responsáveis por eu conseguir acessar esse lugar de privilégio que é a educação formal. É uma

honra poder doutorar-me em universidade pública brasileira!

As minhas companheiras não-humanas, Nina e Estelita, pelo companheirismo nas

madrugadas de escrita e o carinho de sempre.

Por fim, agradeço a todas as mulheres, negras, brancas, mestiças, lésbicas, indígenas,

trans, cis, pobres, afrontosas, putas, destemidas que lutaram antes de mim para que eu estivesse

aqui. Parafraseando Audre Lorde, que continuemos a ser poderosas e perigosas!

ix
Sumário

Agradecimentos...................................................................................................................................... vi
Sumário ................................................................................................................................................... x
Lista de tabelas ...................................................................................................................................... xii
Lista de figuras ..................................................................................................................................... xiii
Lista de abreviações e siglas ................................................................................................................ xiv
Resumo ................................................................................................................................................. xvi
Abstract ............................................................................................................................................... xvii
Resumen ............................................................................................................................................. xviii
Prólogo .................................................................................................................................................. 20
Introdução: apresentando o campo-tema ........................................................................................... 23
Habitando paisagens.......................................................................................................................... 33
Capítulo 1: Gênero, feminismo(s) e as políticas de subjetivação .......................................................... 42
Identidade, subjetividade e políticas de subjetivação ............................................................ 49
Diálogos a partir dos feminismos pós coloniais .................................................................... 51
Capítulo 2: Percurso metodológico ...................................................................................................... 59
Uma construção a partir do olhar feminista .......................................................................... 59
O aporte da etnografia feminista ........................................................................................... 61
O aporte da Psicologia Social Discursiva.............................................................................. 64
Movimentos da pesquisa ....................................................................................................... 65
1º Mo(vi)mento: Pesquisa documental .......................................................................... 67
2º Mo(vi)mento: aproximação das redes, eventos e encontros da Agroecologia ......... 77
3º Mo(vi)mento: entrevistas com as militantes ............................................................ 79
Capítulo 3: Feminismos e agroecologia: discursos, políticas e movimentações ................................... 84
Eixo I – Organismos internacionais: Gênero, agroecologia e o debate da ONU .................. 88
Eixo II – Movimento agroecológico, gênero e identidade política ..................................... 101
3.2.1. Matrizes teóricas e discursivas ......................................................................................... 104
3.2.2. Movimentos e construção das políticas de agroecologia e gênero ................................... 109
Capítulo 4: A agroecologia urbana e a ocupação das cidades ............................................................. 117
A emergência do movimento agroecológico no Brasil ....................................................... 117
Os caminhos da agricultura familiar de base agroecológica nas cidades ............................ 123
Novas urbanidades: agroecologia e direito a cidade ........................................................... 131
A agricultura urbana no Rio de Janeiro: agroecologia e defesa do território ...................... 137

x
Capítulo 5: Reflexões sobre luta feminista e agroecológica (urbana) ................................................. 149
Eixo I - Lutas feministas pelo direito a cidade na Zona Oeste ........................................... 151
As cidades-empresa e o Estado de Exceção como regra: o caso do Rio de Janeiro .. 154
Cenas de um “legado olímpico” e o urbanismo insurgente de Vila Autódromo ........ 157
Plano Popular das Vargens: a construção de um projeto urbanístico feminista, anti-
racista e agroecológico ............................................................................................................... 167
Eixo II - “Meu corpo é meu território”................................................................................ 173
Eixo III - Feminismo periférico: a construção de uma política a partir das margens .......... 182
5.4. Eixo IV -Produção de conhecimento e luta política das mulheres no movimento
agroecológico ................................................................................................................................. 192
Disputas narrativas e memória da agroecologia ........................................................ 194
Feminismos em disputa ............................................................................................... 204
Domesticar a política .................................................................................................. 207
Últimas considerações ......................................................................................................................... 212
Referências .......................................................................................................................................... 215
Apêndices ............................................................................................................................................ 237
Apêndice A – Convite participação em pesquisa ............................................................................ 237
Apêndice B – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ......................................................... 241

xi
Lista de tabelas

Tabela 1 Objetivos e ferramentas ............................................................................................. 66


Tabela 2 Documentos de referência ......................................................................................... 69
Tabela 3 Redes que compõem a ANA ....................................................................................... 72
Tabela 4 Observação participante em eventos e atividades..................................................... 78
Tabela 5 Roteiro de entrevista semiestruturada ....................................................................... 80
Tabela 6 Lista de participantes entrevistadas .......................................................................... 83
Tabela 7 Apresentação dos eixos de análise dos documentos ................................................. 86
Tabela 8 Descrição dos eixos de análise ................................................................................ 150

xii
Lista de figuras

Figura 1. Painel sobre gênero e agroecologia ........................................................................ 114


Figura 2. Vista aérea do Maciço da Pedra Branca (Fonte:Atlas das Unidades de Conservação
do Estado do Rio de Janeiro, 2015). ....................................................................................... 138
Figura 3. Exemplo de quintal produtivo em Vargem Grande, Rio de Janeiro, 2017............. 140
Figura 4. Exemplo de tecnologia de produção em quintal. Vargem Grande, Rio de Janeiro,
2018. ....................................................................................................................................... 140
Figura 5. Territórios da agricultura familiar agroecológica na cidade do Rio de Janeiro -
Ilustração por Raissa Theberge............................................................................................... 142
Figura 6. Barraca na Feira Orgânica do Rio da Prata, Campo Grande – Rio de Janeiro, 2016.
................................................................................................................................................ 145
Figura 7. Festa de São João durante a Feira da Roça de Vargem Grande – Rio de Janeiro,
2016. ....................................................................................................................................... 146
Figura 8. Bandeira que trata da agroecologia como forma de combater a especulação
imobiliária nas cidades. .......................................................................................................... 148
Figura 9. Vila Autódromo, 2015. ........................................................................................... 157
Figura 10. Quintal Vila Autódromo, 2015. ............................................................................ 160
Figura 11. Ato feminista 08 de março de 2016. ..................................................................... 161
Figura 12. Projeção de edifícios a serem construídos de acordo com o PEU. Vista da Praça
Central de Vargem Grande. Desenho: Canagé Vilhena. ........................................................ 168
Figura 13. Roda de abertura do primeiro encontro da Articulação Plano Popular das Vargens,
2016. ....................................................................................................................................... 170
Figura 14. Mapa território afetivo “corpo-território” Vargem Grande .................................. 175
Figura 15. Oficina “Morar e plantar” em Taboinhas, Vargem Grande. ................................ 186
Figura 16. Panela de moqueca de banana quase vazia na oficina Morar e Plantar................ 187
Figura 17. Mística de abertura da Plenária das Mulheres IV ENA, 2018. ............................ 198
Figura 18. Mística de abertura da Plenária das Mulheres IV ENA, 2018. ............................ 199
Figura 19. Cartaz LGBT no IV ENA ..................................................................................... 211
Figura 20. Cartaz representando as mulheres camponesas, indígenas e negras como guardiãs
dos saberes tradicionais .......................................................................................................... 211

xiii
Lista de abreviações e siglas

AARJ Articulação de Agroecologia do Rio de Janeiro


ANA Articulação Nacional de Agroecologia
APP Articulação Plano Popular das Vargens
AU Agricultura Urbana
CNAU Conselho Nacional de Agricultura Urbana
CONSEA Conselho Nacional de Segurança Alimentar
CPMZO Coletiva Popular de Mulheres da Zona Oeste
CPT Comissão Pastoral da Terra
Declaração de Aptidão ao Pronaf - Programa Nacional de
DAP
Fortalecimento a Agricultura Familiar
ENAU Encontro Nacional de Agricultura Urbana
FAO Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura
MDA Ministério do Desenvolvimento Agrário
Militiva Pesquisa Militante Vargem Grande
MMC Movimento de Mulheres Camponesas
MPA Movimento de Pequenos Agricultores
MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
ONU Organização das Nações Unidas
PACS Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul
PANCs Plantas alimentícias não convencionais
Peapo Políticas Estaduais de Agroecologia e Produção Orgânica
PEU Projeto de Estruturação Urbana
Planapo Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica
PNAE Programa Nacional de Alimentação Escolar
Pnapo Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica
PNUD Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento

xiv
Pronaf Programa Nacional de Fortalecimento a Agricultura Familiar
Rede CAU Rede Carioca de Agricultura Urbana
SPG Sistema Participativo de Garantia

xv
Resumo

Este estudo tem o objetivo de compreender o protagonismo das mulheres no movimento


agroecológico através de suas concepções e práticas. Tomamos a epistemologia feminista
enquanto base teórico-metodológica, buscando considerar os diversos atravessamentos que
caracterizam esses contextos, ao olhar sobre os modos de subjetivação das militantes dentro do
movimento da agroecologia, tanto na esfera nacional, quanto na esfera local ao acompanhar o
movimento popular de mulheres da Zona Oeste do Rio de Janeiro. Como ferramentas
metodológicas, utilizamos a análise de documentos dos movimentos sociais e das políticas de
fomento à agroecologia, entrevistas com as mulheres integrantes do movimento e da observação
participante de eventos, reuniões e do cotidiano das interlocutoras. Os resultados apontam que:
ainda que os movimentos venham construindo narrativas baseadas na importância da
construção dos feminismos e da agroecologia enquanto projetos de transformação social que se
constituem mutuamente, ainda não há um total reconhecimento do protagonismo e dos saberes
aportados pelas mulheres; ao mesmo tempo, políticas e programas internacionais ligados à
Organização das Nações Unidas - ONU mobilizam um discurso institucional do
empoderamento que se refere ao ideário neoliberal considerando o aumento da produção como
caminho para a “igualdade” entre gêneros. Os resultados também mostram que diante do
cenário de crise, militarização e precarização do Estado no Rio de Janeiro, as mulheres
constroem uma política feminista popular desde às margens, ressignificando lugares
subalternizados ao apontarem outras formas de fazer política, produzir conhecimento e ocupar
as cidades. Com isso vemos que a agroecologia se compõe em um plano de saber-poder que, se
de um lado pode ser capturada por discursos que tentam minar seu potencial insurgente, por
outro lado, com as estratégias que vêm sendo construídas especialmente pelas mulheres,
constituem-se como um importante vetor de subjetivação política em meio aos movimentos
sociais da cidade e do campo.

Palavras-chaves: agricultura urbana; epistemologia feminista; agroecologia; direito à cidade,


etnografia.

xvi
Abstract

This study aims to understand the protagonism of women in the agroecological movement
through their conceptions and practices. We take the feminist epistemology as theoretical-
methodological base, seeking to consider the various crossings that characterize these contexts,
to look at the modes of subjectivation of activists within the movement of Agroecology, both in
national sphere, and in the local sphere to following the women’s movement from Rio de
Janeiro’s West Zone. As methodological tools, we use the analysis of documents of social
movements and of the policies of promotion for Agroecology, interviews with activists and the
participant observation of events, meetings and the daily lives of our speakers. The results
indicate that: although the movements are building narratives based on the importance of the
construction of feminisms and agroecology as social transformation projects that constitute each
other, there still isn't a full recognition of the role and knowledge contributed by women; at the
same time, international policies and programmes linked to The United Nations- U.N. mobilized
an institutional discourse of empowerment that refers to neoliberal ideas considering the increase
in production as a way to "equality" between genres. The results also show that in the scenario
of crisis, militarization and precarious State in Rio de Janeiro, women are building a popular
feminist politics from the margins, wich re-significating subalternized places to indicate other
ways of politics, producing knowledge and occupy the cities. With this we see that agroecology
is composed on a know-power that, if on one hand can be captured by speeches that try to
undermine your potential insurgents, on the other hand, with the strategies that are being built
especially from women, as an important vector of political subjectivation amidst urbans and rural
social movements.

Keywords: urban agriculture; feminist epistemology; agroecology; right to the city;


ethnography.

xvii
Resumen

Este estudio pretende comprender el protagonismo de las mujeres en el movimiento


agroecológico a través de sus concepciones y prácticas. Tomamos la epistemología feminista
como base teórica-metodológica, buscando considerar los diversos cruces que caracterizan a
estos contextos, a mirar las formas de subjetivación de militantes del movimiento de la
agroecología, tanto en ámbito nacional y en el ámbito local al acompañar el movimiento popular
de las mujeres de la Zona Oeste de Río de Janeiro. Como herramientas metodológicas,
utilizamos el análisis de los documentos de los movimientos sociales y de las políticas de
promoción de la agroecología, entrevistas con mujeres activistas del movimiento y la
observación participante de eventos, reuniones y la vida cotidiana de las interlocutoras. Los
resultados indican que: aunque los movimientos vienen construyendo narrativas basadas en la
importancia de la construcción de los feminismos y agroecología como proyectos de
transformación complementares, aún no hay un reconocimiento total del papel y el
conocimiento aportado por las mujeres; al mismo tiempo, las políticas internacionales y
programas vinculados a las Naciones Unidas-ONU movilizan un discurso institucional del
empoderamiento que se refiere a las ideas neoliberales, teniendo en cuenta el aumento en la
producción como una manera de generar la "igualdad" entre géneros. Los resultados también
muestran que ante el escenario de crisis, la militarización y la precarización del Estado en Río
de Janeiro, las mujeres construyen una política feminista popular desde los márgenes, dándoles
nuevos sentidos a los lugares que tienen una posición subalterna para indicar otras formas de
política, producir conocimiento y ocupar las ciudades. Con esto vemos que la agroecología está
compuesta en un plan de saber-poder que, si por un lado puede ser capturado por discursos que
intentan socavar su potencial insurgente, por el otro lado, con las estrategias que se van
construyendo especialmente por las mujeres, se constituye como un importante vector de
subjetivación política en medio a los movimientos sociales urbanos y campesinos.

Palabras claves: agricultura urbana; epistemología feminista; agroecología; derecho a la


ciudad; etnografía.

xviii
“Não podemos criar o que não podemos imaginar”

(Movimento Believe.Earth)

“¡Ni la tierra ni las mujeres somos territorios de conquista!”

(Feministas Comunitárias da Bolívia).


xix
20

Prólogo

Gostaria1 de começar este texto contando uma história sobre encontros disparadores que

foram fundamentais na construção das reflexões desta tese. O primeiro encontro se dá no início

do ano de 2012. Nessa época eu estava iniciando a escrita da minha dissertação em Psicologia

na qual eu investigava a relação entre as condições de vida, trabalho e a saúde mental de

mulheres assentadas2 e vinha de um percurso de trabalho em assentamentos rurais no Rio

Grande do Norte, em territórios de vulnerabilidade socioambiental agravada devido a um longo

período de seca no estado, com grandes dificuldades de produção de alimentos, falta de serviços

públicos básicos, o uso indiscriminado de agrotóxicos que faziam com que os agricultores e

agricultoras adoecessem constantemente e outras questões que traziam ainda mais dificuldade

para as populações assentadas, em particular às mulheres devido às desigualdades de gênero

que enfrentavam. Essas questões me traziam muita angustia sobre quais os caminhos na

construção de outras realidades possíveis à sobrevivência da agricultura familiar no estado.

A primeira personagem dessa história é Dona Chagas, moradora do assentamento

Milagres na região da Chapada do Apodi, interior do estado do Rio Grande do Norte. Em um

final de tarde, depois de um café com tapioca e um dedo de prosa na beira do fogão, Chaguinha,

como era conhecida, me mostra com muito orgulho um pé de milho que crescia forte em seu

1
Ao longo da tese utilizamos a 1ª pessoa do singular e do plural. Trata-se de uma escolha deliberada. Buscamos
ressaltar os momentos de reflexão mais coletiva e outros da vivência empírica do campo mais individuais com o
uso da primeira pessoa. Nos inspiramos aqui na escrevivência da escritora Conceição Evaristo, como prática
política e afetiva de escrita de si, a partir das experiências vividas. Sobre escrevivência ver:
http://nossaescrevivencia.blogspot.com/.
2
Dissertação defendida em 2014 no Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFRN orientada pela Prof.ª
Dr.ª Magda Dimenstein e co-orientada pelo Prof. Dr. Jáder Leite sob o título de Gênero, trabalho e saúde mental
entre trabalhadoras rurais assentadas na região do Mato Grande Potiguar. Disponível em
http://www.repositorio.ufrn.br:8080/jspui/bitstream/123456789/17566/1/MariaGSGC_DISSERT.pdf.
21

quintal. A semente do milho, que anos depois fui entender que era uma semente criola, tinha

sido trazida para ela por sua irmã que morava em um assentamento na cidade vizinha.

Apesar da distância, as duas irmãs percorriam de bicicleta a estrada de barro no intuito

de trocar sementes, fofocas, receitas e, assim, iam tecendo uma rede de relações entre os

vizinhos e as duas comunidades em um território que há anos era (e ainda é) ameaçado pelo

projeto de Perímetro Irrigado que o governo federal, através do Ministério da Integração e do

Departamento Nacional de Obras contra a Seca (DNOCS) pretende implantar na região, projeto

esse que vem sendo denunciado pelos moradores devido ao perigo que oferece à manutenção

de centenas de famílias que ali vivem e tiram seu sustento da agricultura familiar.

Foi naquele momento que tive meu primeiro encontro com a agroecologia, embora nem

eu e nem Chaguinha soubéssemos que essa palavra existia. Nesse mesmo ano, meses depois,

conheci o conceito de agroecologia em diálogos com militantes do Movimento dos

Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e com a participação na Cúpula dos Povos, encontro

puxado pelos movimentos sociais que aconteceu em paralelo às discussões da Rio+20 na cidade

do Rio de Janeiro-RJ.

A segunda personagem desses encontros foi Dona Adelina. Dona Adelina é moradora

do Parque Proletário no Rio de Janeiro. Ao migrar ainda jovem do interior da Bahia rumo ao

Rio de Janeiro, ela trouxe consigo os conhecimentos que sua mãe havia lhe ensinado, nos

tempos em que viviam na roça, sobre os chás, garrafadas, xaropes e ervas medicinais.

Nas caminhadas que faz pelo morro, Dona Adelina colhe as plantas que ela reconhece

na rua. Aquilo que para a maioria das pessoas é mato, ela considera remédio e comida. De tanto

produzir seus remédios, ela criou uma espécie de farmácia dentro de casa e começou a distribui-

los pela comunidade, virando uma referência local na promoção de saúde: a “vó das ervas”, a

chamam os meninos que brincam e empinam pipa em frente a calçada da sua casa.
22

Disse-me ela: “Tome esse xarope aqui para sua garganta, minha filha, que esse tempo

está muito seco”. Tomei o xarope, que me lembrou os lambedores que minha mãe fazia quando

eu era criança, e continuei a escutar com admiração as histórias que Dona Adelina

compartilhava comigo. Em um território que sofre violências de vários tipos como a

militarização, tráfico de drogas, racismos e intolerância religiosa, aliadas as violências

institucionais e a ausência de serviços básicos por parte do Estado, Adelina conseguiu

promover, em torno da sua pequena casa, um diálogo considerado quase impossível entre

moradores de diferentes crenças, grupos, ocupações e idades.

Nesse encontro eu já conhecia a agroecologia e já participava do movimento

agroecológico, mas o reconhecimento da potência desse afeto, em um território tão urbanizado

e tão distinto de todas as experiências que eu havia conhecido até então, fizeram-me refletir

sobre uma ética do cuidado que se construía nesses contextos a partir de suas adversidades e

resistências. Esses dois encontros, tão particulares, ambos protagonizados por mulheres em

contextos muito distintos – mas que compartilham um histórico de conflitos e injustiças

socioambientais – apontaram para mim possibilidades de uma construção de relações e visões

de mundo que não passavam necessariamente por aquilo que estava dado de forma massiva no

projeto individualista da sociedade ocidental capitalista. Produziam singularidade, diferenças e

possibilidades de existência de formas outras de sensibilidade e de relação consigo mesmo e

com o outro (Maria Juracy Toneli, Karla Galvão Adrião & Arthur Grimm Cabral, 2012).

Esses encontros, é verdade, vieram na esteira de outros que fui tendo ao longo da vida

com a Pedagogia da Libertação, com movimentos de luta pela terra, com autoras feministas

negras, não-brancas e da América Latina. Dessa forma, fui reconhecendo na articulação dos

movimentos populares de mulheres e do movimento agroecológico, um projeto possível de

construção de outras formas de se relacionar com o mundo e produzir afetos, experiências,

conhecimentos e práticas.
23

É a partir desses encontros, nesse emaranhado que relaciona feminismos, militância,

agroecologia e espaços urbanos, que inicio minha pesquisa de doutorado e me aproximo do

movimento popular de mulheres da Zona Oeste do Rio de Janeiro e da Rede Carioca de

Agricultura Urbana (Rede CAU), movimento social organizado que busca fortalecer a

agricultura e agroecologia urbana na cidade do Rio de Janeiro. Essa rede é constituída por

mulheres organizadas em grupos populares, institutos de pesquisa, organizações não

governamentais, agricultoras urbanas, moradoras de periferias e favelas do Rio de Janeiro. Elas

vêm tecendo redes autônomas e feministas de produção, comercialização e comunicação

agroecológica na cidade.

A pluralidade dos atravessamentos que compõem esse cenário apontam para a

complexidade do nosso campo-tema, conceito elaborado por Peter Spink (2003) que nos ajuda

a enxergar o campo não como um lugar específico, mas enquanto uma processualidade de temas

situados.

No emarenhado desses temas, busco contar algumas das histórias que pude acompanhar

ao longo da pesquisa, trazendo uma reflexão sobre as lutas feministas e agroecológicas nas

cidades e os discursos que se constroem em torno dessas práticas.

Introdução: apresentando o campo-tema

A partir de uma racionalidade de reestruturação urbana de princípios neoliberais, a Zona

Oeste carioca, particularmente os bairros que compreendem a região administrativa da Barra

da Tijuca e da Baixada de Jacarepaguá, vem se tornando o novo centro financeiro e imobiliário

– situado historicamente nas regiões do Centro e Zona Sul – do Rio de Janeiro, aumentando

exponencialmente o valor dessa área no mercado da especulação imobiliária (Renato

Consentino, 2015).
24

A realização de megaeventos como a Copa do Mundo de Futebol da FIFA e os Jogos

Olímpicos e os processos de remoções decorrentes de tais eventos, por exemplo, o caso de Vila

Autódromo3, são talvez a parte mais emblemática desse processo. Nessa região, antigamente

conhecida como Sertão Carioca devido a sua histórica ocupação quilombola e agricultura

familiar, a disputa por território aponta para uma contenda pelos usos e sentidos de ocupação

de uma cidade voltada à produção industrial e o turismo.

Em um cenário marcado por problemas socioambientais e disputas territoriais,

agricultoras e agricultores e movimentos sociais da região vêm se organizando politicamente

reivindicando reconhecimento e políticas de fomento à agricultura familiar e à produção

orgânica no município como uma forma de defesa e ocupação sustentável desse território a

partir do modelo da agroecologia. A agroecologia representa um paradigma de produção

agrícola que visa a reduzir o impacto socioambiental da produção de alimentos, valorizando os

conhecimentos tradicionais e o campesinato enquanto sujeito e forma de organização social,

representando um campo de saberes e práticas integradas que se constitui tanto em uma

tecnologia, quanto um movimento social (Valéria de Marcos, 2007).

No Rio de Janeiro, através da formação da Coletiva Popular de Mulheres da Zona Oeste

(CPMZO), da roda de mulheres da Rede Carioca de Agricultura Urbana - Rede CAU e suas

diversas interlocuções, as mulheres vêm assumindo o protagonismo no movimento

agroecológico, à medida em que vão incorporar a pauta da agroecologia entre suas bandeiras,

apontando não só para a importância da participação das mulheres nesse modelo produtivo, mas

para a inter-relação da agroecologia com outras lutas no contexto urbano, como a luta pelo

3 Comunidade que teve a maior parte das suas famílias removidas para dar lugar a construção do Parque Olímpico
na Zona Oeste do Rio de Janeiro. A resistência dos seus moradores que construíram um projeto popular e autônomo
de urbanização para o território tem grande importância na história da luta pela moradia no Brasil.
25

direito à moradia, de forma que a agroecologia tem sido utilizada enquanto uma estratégia de

mobilização comunitária, articulando diversos grupos e ações em torno desse debate.

Assim como no Rio de Janeiro, chama-se atenção para o protagonismo das mulheres no

debate agroecológico em todo o Brasil. Se durante as décadas de 1980 e 1990, as organizações

não governamentais e as comunidades de agricultura alternativa foram as principais

disseminadoras da agroecologia no país, com a predominância de homens - em geral técnicos

agrícolas – nos espaços decisórios e de lideranças, esse cenário muda drasticamente nos anos

2000, quando os movimentos sociais do campo, principalmente os movimentos sociais

articulados à Via Campesina4, incorporaram a agroecologia como uma de suas principais

bandeiras de luta, trazendo-a àesfera do debate não só sociotécnico, mas também político.

Na construção desse projeto dá-se a emergência das mulheres enquanto sujeitas

políticas5 através do desenvolvimento de tecnologias de cultivo de alimentos e cuidado da terra

que causam menos impacto ambiental; na tessitura de redes de economia local que se baseiam

em relações de confiança, solidariedade e reciprocidade; e fortalecimento de estratégias de

suporte comunitário e defesa de seus territórios. Tal protagonismo aponta não só para a

necessidade do reconhecimento dos saberes das mulheres na construção de sistemas de

produção agroalimentares e de economia alternativos, como traz à tona o debate sobre de que

maneira as desigualdades sociais se relacionam ao modelo de desenvolvimento capitalista e às

formas de exploração do meio ambiente. Através da insígnia “Sem feminismo, não há

4
Movimento internacional de camponeses e povos tradicionais que engloba diversas organizações e movimentos
sociais de todo o mundo e luta por justiça social no campo.

5
Ao adotar uma concepção política da linguagem e da escrita, baseio-me no trabalho) de Letícia Barreto (2015)
para o uso de “sujeitas” nessa concepção, no feminino, ao referir-me às minhas interlocutoras. Da mesma forma,
ao tratar de conjuntos de pessoas onde a maioria forem mulheres, utilizarei a forma feminina para me referir.
26

agroecologia6”, movimentos sociais como a Marcha das Margaridas, o Movimento de Mulheres

Camponesas (MMC) e o grupo de trabalho de Mulheres da Articulação Nacional de

Agroecologia (ANA), têm encabeçado a mobilização por alternativas de desenvolvimento no

Brasil, promovendo as agendas feministas em espaços importantes de negociação de políticas

públicas e de diálogo com a sociedade.

Várias pesquisas apontam que a inserção das mulheres no modo de produção

agroecológico pode ter grande impacto na redução das desigualdades de gênero. Para além da

produção, os debates construídos através do movimento consideram a importância da

valorização do trabalho que é historicamente e majoritariamente desempenhado pelas mulheres

(a agricultura de subsistência, o trabalho do cuidado, o trabalho doméstico), o qual é, muitas

vezes, “invisibilizado”; para a maior participação política das mulheres em movimentos sociais

organizados; além de haver um incentivo, na esfera da organização produtiva, do

compartilhamento de tarefas, de insumos e dos recursos financeiros entre homens e mulheres

de maneira mais equânime (Laetícia Jalil, 2009; Emma Siliprandi, 2015).

É preciso, por outro lado, ter cuidado para não enxergarmos esse processo acriticamente.

Como observa Flávia Ramos (2017), desde os anos de 1990, quando começam os primeiros

estudos no Brasil sobre a participação de mulheres em sistemas agroecológicos, a maior parte

das investigações sobre esse tema toma como incontestáveis o ganho de autonomia e a

representatividade das mulheres que participam no sistema de produção e no movimento

agroecológico. Contudo, muitas das tensões que se desenham dentro dos movimentos e

coletivos aparecem de maneira mais branda em discursos políticos “oficiais” e de lideranças

6
Título da carta política das mulheres da ANA durante o Encontro Nacional de Agroecologia (ENA) em 2014.
Recuperado de https://marchamulheres.wordpress.com/2014/05/19/sem-feminismo-nao-ha-agroecologia-carta-
das-mulheres-no-ena/. Acesso em 23/03/2017.
27

ligadas a movimentos sociais mistos. Nesse sentido, é importante se questionar a quem serve o

apagamento desses conflitos.

Para a artivista7 potiguar Jota Mombaça (2016), o apagamento de conflitos e

desigualdades, seja no âmbito da produção de conhecimento, seja dos movimentos

políticos/sociais, produzem efeitos de silenciamento dos sujeitos subalternizados. Esses

conflitos não deixam de existir, pelo contrário, eles tornam o campo de forças ainda mais tenso

e expõem suas rachaduras. Segundo a teórica indiana Gayatri Spivak (2010), o sujeito

subalterno é aquele que não tem voz política, ou seja, não pode falar nos espaços de poder

instituído, tais como a ciência e instâncias de decisões políticas, tendo a sua voz

permanentemente eclipsada pelos discursos construídos sobre ele.

Sabemos que o fortalecimento das mulheres dentro do movimento não se dá sem

embates no âmbito público e privado e que a produção agroecológica, por si só, não garante a

transformação das relações desiguais de gênero. Além disso, é essencial não homogeneizar as

diferentes formas e experiências das mulheres, mas sim evidenciar a pluralidade e as diferentes

posições de onde partem e vivenciam as relações de poder.

Na esteira do debate sobre gênero e classe que, ainda que com alguma dificuldade, há

décadas vem sendo travado em movimentos progressistas, o acento sobre a interseccionalidade

das opressões, ou seja, a forma como as desigualdades operam a partir dos diferentes

atravessamentos que constituem as sujeitas e os sujeitos, pela raça, pela sexualidade, pela

classe, pela capacidade física, entre outros, vem se institucionalizando e ganhando força dentro

do movimento agroecológico apenas na última década, evidenciando as desigualdades e os

racismos dentro dos próprios movimentos.

7
Artista que faz da sua arte uma forma de ativismo.
28

Diante dessas questões inspiro-me na feminista zimbabuana Anne McClintock (2010)

para reivindicar a importância de enxergar nas encruzilhadas das contradições as estratégias de

mudança que delas podem emergir. São nas contradições que somos convocados a encarar as

desigualdades, incômodos e conflitos, e ressaltar, nos termos colocados pela cientista política

Chantal Mouffe (2005), o caráter agonístico e plural do fazer político.

Diversas correntes teórico-políticas vão chamar atenção para o impacto do modelo de

desenvolvimento capitalista em curso na vida das mulheres e a inter-relação entre o fenômeno

da degradação do meio ambiente e o capitalismo patriarcal: o feminismo liberal por parte das

agências e programas internacionais de fomento, políticas de Estado e o mercado capitalista; o

feminismo marxista e o ecofeminismo por parte dos movimentos sociais se destacam nesse

cenário como matrizes teóricas que vão balizar muitas das discussões.

Diferentes autoras feministas, porém, vão criticar essas correntes teóricas por seus

caracteres supostamente essencialistas, uma vez que, a depender da abordagem, algumas dessas

teorias não problematizam o binarismo de gênero, tampouco questionam o determinismo

biológico dos sexos aceito como algo “natural” (Érika Carcaño Valencia, 2008). Outra

importante crítica, empreendida especialmente pelas feministas pós-coloniais, transfeministas,

negras e de povos originários, refere-se à categoria “mulher” tomada como um conceito

universal que desconsidera as experiências das mulheres não brancas e não cisgêneras e as

complexas relações de opressão a que estão submetidas.

Nessa acepção, é fundamental discutir até que ponto os princípios subjacentes a tais

leituras – do feminismo liberal, do feminismo marxista e do ecofeminismo – ao invés de

promoverem o empoderamento das mulheres, não as mantém presas a um sistema rígido de

gênero, ao naturalizar o cuidado das mulheres com o meio ambiente, mesmo considerando o

caráter contingencial dessas construções.


29

Uma segunda questão refere-se à construção do feminismo e do conceito de gênero no

contexto do movimento ambientalista, agroecológico e das políticas públicas de fomento à

agricultura familiar e orgânica. A apropriação do feminismo – movimento político e teórico

identificado historicamente às mulheres das classes médias urbanas intelectualizadas – pelos

movimentos populares do campo e de mulheres da periferia, por exemplo, mostra como tais

conceitos são formulados dentro de cada contexto específico.

Diante desses impasses, autoras pós-coloniais como Glória Anzaldúa (2005) e María

Lugones (2008) entre outras vão propor outra política feminista que não se apoia na ideia de

natureza dos sexos, mas antes a problematiza, evidenciando que as fronteiras entre

natureza/cultura são arbitrárias, especialmente na contemporaneidade, onde temos a

centralidade do hibridismos e das tecnologias na constituição dos corpos e da nossa

subjetividade.

Questiono-me, dessa maneira, como pensar feminismos que considerem as construções

identitárias nômades, parciais, contraditórias e heterogêneas: é possível prescindir da identidade

no fazer político? Como desenvolver outras narrativas para a construção de um mundo comum

tomando o contexto das mulheres vinculadas à agroecologia? Partindo do entendimento com

Foucault (1986), de que os discursos se estabelecem enquanto práticas que incidem na

construção das subjetividades dos indivíduos e coletivos, faz-se necessário problematizar de

que maneira se dá a constituição dessas sujeitas políticas.

Nesse ponto de vista, creio que mais importante do que discutir a pertinência das

relações entre os conceitos natureza/mulher, é pensar como eles são operados, a partir de

racionalidades específicas que incidem nos modos de subjetivação dos sujeitos. Sendo o

movimento da agroecologia composto por diferentes atores e atrizes, que manipulam

constantemente tais conceitos a partir de suas pautas, quais são, afinal, os discursos sobre

mulheres, gênero e feminismos que estão sendo construídos em torno desse movimento? Como,
30

por outro lado, os feminismos vão se apropriar da pauta agroecológica em suas agendas de luta?

Quais são os efeitos dessas práticas discursivas na vida das mulheres envolvidas no movimento

agroecológico? Até que ponto, as propostas de mudanças nos modelos produtivos conseguem

romper com o modelo tradicional de família e de gênero? Em que medida os territórios são

impactados e modificados através da ação dessas agentes?

Acredito que, ao propor não só a transformação de todo o processo de produção agrícola,

mas reconfigurações das relações capitalistas, racistas, antropocêntricas e patriarcais que

estruturam as ciências, as tecnologias e o socius de maneira geral, o movimento agroecológico

nos dá pistas sobre formas de articulação combativas à tentativa massificadora do projeto

neoliberal ao mesmo tempo em que traz mudanças nas formas de participação política.

A tese aqui sugerida é que as rupturas propostas pela agroecologia podem se constituir

enquanto linhas de fuga ao poder da máquina capitalista de produção de subjetividade – uma

recusa que visa construir novos modos de sensibilidade e criatividade, produtores de uma

subjetividade singular que vão ao encontro da radicalidade das propostas epistemológicas

feministas e pós-coloniais em direção à ética do comum e da pluralidade.

Partindo de tais reflexões, o presente estudo tem como objetivo central compreender o

protagonismo das mulheres no movimento agroecológico em suas concepções e práticas.

Definimos enquanto objetivos específicos:

i. refletir sobre a relação entre feminismos e agroecologia na cidade do Rio de

Janeiro, a partir da emergência das mulheres como sujeitas políticas no

movimento agroecológico;

ii. identificar os discursos em torno dos conceitos de feminismos e gênero dentro

do campo da agroecologia;

iii. analisar as contribuições que vêm sendo construídas pelas mulheres no

movimento da agroecologia;
31

iv. identificar os efeitos da participação política na vida das mulheres;

v. compreender em que medida a agroecologia constitui-se como um processo de

subjetivação política na cidade.

Para tanto, foram acompanhados encontros e mobilizações em torno da agenda

feminista e agroecológica, em especial do movimento popular construído pelas mulheres na

Zona Oeste do Rio de Janeiro por acreditar na representatividade desse grupo em relação às

questões em tela no presente estudo.

Tomo aqui a epistemologia feminista como base teórico-metodológica, além de aportes

da etnografia feminista, da Psicologia Social discursiva, e da perspectiva das teorias pós-

coloniais, buscando considerar os diversos atravessamentos e dinâmicas sociais que

caracterizam esses contextos, ao olhar sobre os modos de subjetivação das agricultoras urbanas

e das militantes dentro do movimento da agroecologia.

Com isso, lanço mão de diferentes ferramentas metodológicas, quais sejam, análise de

documentos dos movimentos sociais e das políticas de fomento à agroecologia, entrevistas com

as mulheres integrantes do movimento e da observação participante de eventos, reuniões e do

cotidiano das minhas interlocutoras. Essas diferentes dimensões serão entendidas não enquanto

fotografias estáticas de um dado cenário, mas como atores imbricados em uma rede de relações,

de uma configuração de elementos, forças e linhas que atuam simultaneamente e de onde podem

emergir dispositivos que fazem ver e falar racionalidades específicas que se (re)configuram

constantemente. Os dispositivos correspondem a rede que se estabelece entre os elementos que

compõem a realidade: instituições, leis, discursos, morais, etc. Eles tencionam, trazem à tona e

provocam agenciamentos (Virgínia Kastrup, & Regina Benevides de Barros, 2010). Dessa

forma, o foco não são os documentos ou entrevistas em si, mas o que eles produzem como

efeitos no agenciamento com outros atores (Bruno Latour, 1994).


32

Assim, não se trata apenas de representação da linguagem, de textos e discursos -

segundo Latour (1994) esse é um dos mal entendidos da leitura crítica a partir das teorias pós-

modernas e da noção de desconstrução. As redes que busco acompanhar são antes “reais como

a natureza, narradas como o discurso, coletivas como a sociedade”. (Latour, 1994, p. 12).

A tese está organizada em uma seção introdutória e mais cinco capítulos. Na introdução,

traço um panorama do campo-tema a ser estudado, assim como busco construir uma reflexão

epistemológica acerca do fazer científico feminista e, mais especificamente, acerca do papel

jogado pela subjetividade numa pesquisa na qual assumo minha não neutralidade, visto que a

escolha do tema de pesquisa, o acesso ao campo-tema e às redes de ativismo são aspectos da

investigação influenciados pela minha própria posicionalidade. Também apresento, no tópico

“Habitando paisagens”, um pouco do meu percurso da pesquisa que foi se moldando ao longo

da minha inserção em campo e diálogo com minhas interlocutoras.

No capítulo 1 desenvolvo os conceitos de gênero, feminismos e subjetividade que serão

centrais para o desenvolvimento do texto, além de apresentar um debate sobre a articulação

entre os conceitos de gênero, raça e colonialidade.

No segundo capítulo, sob o título de “Percusos metodológicos” apresento o desenho

teórico-metodológico da pesquisa, os instrumentos utilizados e as estratégias de análise.

No terceiro capítulo, sob o título “Feminismos e agroecologia: discursos, políticas e

movimentações”, construo, a partir dos resultados da pesquisa, uma análise da produção dos

sentidos dos feminismos no cenário agroecológico.

O quarto capítulo “A agroecologia urbana e a ocupação das cidades” discuto sobre a

relação rural-urbano e sobre o desenvolvimento do paradigma agroecológico nos centros

urbanos, a relação entre agroecologia, urbanidades e formas de subjetivação, além de

apresentar, em seu último tópico, o contexto da cidade do Rio de Janeiro a partir de elementos

empíricos da pesquisa.
33

No quinto capítulo, apresento os eixos de discussão da pesquisa de campo, quais sejam:

mobilização popular das mulheres em defesa do direito à moradia e à cidade a partir da

agroecologia; o corpo-território, os feminismos periféricos e a produção do conhecimento

feminista na agroecologia.

Por fim, desenvolvo minhas considerações finais com uma síntese das questões

discutidas ao longo do trabalho e um balanço sobre a construção do processo de pesquisa.

Com isso, busco contribuir não só com o campo dos estudos feministas e da Psicologia,

mas também pensar o desenvolvimento da pesquisa a partir do olhar das teóricas críticas que

permitam a emergência de outras vozes, especialmente as latino-americanas, para o campo do

saber científico.

Habitando paisagens

Desde o início da construção da tese, um desafio se desenhava no horizonte da pesquisa,

o de habitar diferentes campos-temas e paisagens. Acompanhar movimentações tão complexas

e rizomáticas, articular diferentes cenários, metodologias e apresentar diálogos e conexões que

não estavam dadas a priori, foram processos que se desenharam, por vezes, de forma confusa,

me convocando, todo o tempo, analisar meu percurso na pesquisa.

Pensar o fazer da pesquisa a partir do paradigma feminista não exige só um

posicionamento em campo, mas um certo grau de desprendimento e paciência, pois nem sempre

seus interesses enquanto pesquisador/a vão ao encontro das vontades e necessidades dos grupos

naquele determinado momento. Dessa forma, foram anos de aproximação com o movimento da

agroecologia e, posteriormente, com minhas interlocutoras na cidade do Rio de Janeiro, sendo

necessária uma série de negociações no que se refere a quem, como e onde fazer o estudo.

Minha inserção no cenário da agroecologia urbana no Rio de Janeiro se deu, como


34

mencionado anteriormente, através do contato com a Rede CAU - rede que articula movimentos

e iniciativas de agricultura na cidade do Rio de Janeiro – durante o I ENAU no ano de 2015.

Nesse encontro conheci as experiências de Vargem Grande e Campo Grande, dois bairros da

região Oeste que representam a maior parte da produção da agricultura familiar na cidade.

Através de companheiras do movimento, fui apresentada à Silvia, liderança do

movimento de AU, uma das fundadoras da Associação de agricultores e agricultoras de Vargem

Grande (Agrovargem) e articuladora comunitária do bairro. Silvia foi a responsável por me

introduzir na CPMZO e outros movimentos da região no início de 2016. A CPMZO é resultado

de um longo histórico de lutas dos movimentos sociais na região, sendo que muitas mulheres

que a compõem já eram militantes feministas e de outros movimentos mistos, entretanto, a

organização dessas mulheres enquanto movimento é relativamente recente.

Podemos dizer que o movimento popular de mulheres da Zona Oeste funciona como um

rizoma, que vai sendo composto e reverberando a partir de vários temas, lugares e

engajamentos, sendo articulado por um emaranhado de grupos, agendas políticas e diferentes

atuações, que se atravessam e se constituem mutuamente, não sendo um grupo instituído ou

fechado, mas, de fato, uma rede em movimento.

Retomo aqui o conceito de rizoma de Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995) como um

sistema aberto composto por linhas múltiplas que se articulam em nós, princípios de conexão

que conformam a realidade a partir de qualquer ponto das redes. Os rizomas são compostos por

vetores linguísticos, materiais, afetivos, políticos, econômicos, estéticos, etc. Utilizo o conceito

de rizoma como forma de entender as linhas e os agenciamentos que se atravessam e se

articulam na conjugação desses movimentos.

Considerando a extensão geográfica, a população e a diversidade que caracteriza a

região, chama muita atenção essa construção em rede. Ainda que seja a maior região em termos

de extensão geográfica e a segunda maior em população, percebe-se as relações de parentesco


35

e de conhecimento em algumas áreas. Também soma-se a essa característica a atuação de

algumas organizações na região, em especial o Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul

(Instituto PACS), organização não governamental que estabelece a justiça socioambiental e os

feminismos entre suas linhas de atuação prioritárias e desenvolve trabalho de base com as

mulheres da Zona Oeste, o que ajuda a mobilização de diferentes mulheres e grupos em torno

de pautas comuns do movimento feminista.

É bastante complexo nomear todos os coletivos que se inserem nessa articulação e

acompanhar de perto todos eles, sendo assim, vou me referir nesse trabalho de forma geral ao

movimento popular de mulheres da Zona Oeste, entendendo suas diversas ramificações. Em

minha pesquisa acompanhei mais de perto as mulheres de Vargem Grande, mais

especificamente três grupos que se inserem nesse movimento e têm como pautas principais a

questão da agroecologia e a luta das mulheres: a Feira da Roça de Vargem Grande, a Coletiva

Hortelã e a Pesquisa Militante (Militiva), grupos que apresentarei detalhadamente mais à frente.

Ao participar de uma roda de conversa com as participantes da Pesquisa Militante,

projeto desenvolvido pelo PACS com as mulheres da Zona Oeste, expus ao grupo, formado em

sua maioria por lideranças comunitárias da região, meus objetivos de pesquisa que iam ao

encontro de muitas das ações que seriam desenvolvidas pelas militantes. Assim, fui inserida no

grupo da Pesquisa Militante de Vargem Grande - a Militiva VG, passando a contribuir com as

ações do grupos, organizando eventos, realizando oficinas com as mulheres das comunidades

da região e captando imagens que ajudaram posteriormente no processo de mobilização

comunitária em Vargem Grande. Também me aproximei da Coletiva Hortelã a convite de

Silvia, contribuindo na manutenção da horta comunitária que vem sendo desenvolvida pelo

grupo e com os encontros para discussão de temas como alimentação natural, plantas

medicinais, troca de sementes, entre outros.

Também em Vargem Grande conheci muitas agricultoras e agricultores que


36

comercializam a sua produção na Feira da Roça de Vargem Grande, feira agroecológica auto

organizada na região e que funciona à parte do circuito de feiras orgânicas promovidas pela

Prefeitura do Rio de Janeiro. Essa feira tem um papel central para todas as pessoas envolvidas

direta e indiretamente com a agricultura familiar, para a luta pela defesa do território em

Vargem Grande e ainda para o movimento agroecológico na cidade. A feira não é só um lugar

de comercialização, mas também um símbolo de resistência, um ponto de encontro, de

circulação, palco de importantes debates políticos e de visibilização da agricultura na cidade.

A escolha do nome da feira já marca essa diferenciação, uma vez que “a roça” é

reinvindicada de forma a visibilizar as ruralidades na cidade e apontar que não se trata de uma

feira onde os alimentos orgânicos são o foco, mas sim as relações entre as pessoas e o

pertencimento ao bairro.

Foi a partir da feira que comecei minhas observações de campo no território, dialogando

com as feirantes, conhecendo suas histórias e buscando entender os espaços por elas habitados.

Paralelamente, passei a acompanhar as reuniões da CPMZO e, dos diálogos com esses grupos

surgiram algumas demandas para que eu acompanhasse e contribuísse com o processo de

mobilização comunitária em parceria com as mulheres de Vargem Grande, que eu acatei

compreendendo a importância dessas ações no contexto em questão e também a importância

do meu engajamento como forma de fortalecer meu vínculo com as mulheres da região.

Com o meu engajamento na Coletiva Hortelã e na Militiva, todo o processo da pesquisa

passou a ser construído coletivamente com as mulheres envolvidas nesses grupos, a partir de

uma série de problematizações trazidas por elas mesmas no que se refere às formas tradicionais

de produção de conhecimento que, muitas vezes, reforçam estruturas assimétricas de poder

preponderantes na sociedade capitalista, como o racismo e o sexismo, invisibilizando e

expropriando saberes e práticas transformadoras de grupos, segmentos e classes sociais

marginalizadas. Não só alguns objetivos e estratégias metodológicas foram repensadas e


37

sugeridas pelas minhas interlocutoras, como alguns dos meus pressupostos foram também

questionados em alguns momentos.

Esse processo exigiu-me, por vezes, uma reconfiguração do meu campo de pesquisa e

criou muito desconforto, na medida em que a pesquisa parecia “não mais me pertencer” e muitas

vezes parecia não caminhar, ao mesmo tempo em que eu me via com muitas demandas enquanto

militante, não conseguia um certo distanciamento que julgava necessário para desenvolver

meus objetivos de pesquisa enquanto pesquisadora.

Também percebi que nem sempre meu papel enquanto pesquisadora ficava evidente

para as mulheres que iam se juntando aos grupos. Algumas acreditavam que eu trabalhava numa

organização não governamental, outras achavam que eu trabalhava com alimentos, pois em

muitas das ações coletivas era comum que eu ficasse encarregada de fazer a alimentação. Era

evidente, entretanto, que minha presença não passava despercebida nos espaços. Algumas

dessas angustias foram sendo apaziguadas com o meu engajamento no grupo e com

apresentação de meu projeto de pesquisa às minhas interlocutoras que puderam dar sugestões,

fazer críticas e, principalmente, puderam se colocar em uma construção coletiva do saber

acadêmico.

Além disso, as mudanças que ocorreram em torno do meu campo-tema, com a

progressiva diminuição de subsídios para a agricultura familiar e para a produção orgânica e

agroecológica de alimentos (Portal da Transparência, 2019); a extinção no ano de 2016 do

Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), órgão destinado à promoção do

desenvolvimento da agricultura familiar; o impeachment sofrido pela presidenta Dilma

Rousself em 2016, o assassinato da vereadora Marielle Franco em 2018 e as eleições

presidenciais de 2018 impactaram sobremaneira minhas interlocutoras, a cidade do Rio de

Janeiro e a mim mesma. Foram anos de muito atos na rua, ansiedade, medo e, por vezes,

desesperança.
38

Os agricultores e agricultoras familiares e as mulheres, especificamente, vem sendo

particularmente prejudicadas nessa conjuntura e muitos dos documentos e políticas públicas

usados como referência nesse estudo foram perdendo sua efetividade no âmbito institucional

ou mesmo sendo diretamente ameçadas. Um exemplo disso foi o decreto do presidente Jair

Bolsonaro que em janeiro de 2018 acabou com o Conselho Nacional de Segurança Alimentar

(CONSEA), um dos principais componentes das políticas voltadas para a agricultura familiar,

agroecologia e segurança alimentar no Brasil.

Nessa conjuntura, a construção de redes políticas e feministas me ajudaram a seguir na

tessitura da tese. Destaco, em especial, três experiências que apesar de não comporem

diretamente os dados e as análises desta tese, foram essenciais para as reflexões que foram aqui

desenvolvidas. A primeira foi a experiência do projeto de extensão Diálogos Feministas e

práticas em Psicologia e Direito onde, sob orientação do Prof. Pedro Paulo Bicalho da

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tive a oportunidade de construir com minhas

companheiras, uma proposta de curso voltado para profissionais do Direito e Psicologia a partir

das suas práticas com uma bibliografia quase inteiramente composta de autoras negras,

indígenas, latino-americanas, travestis e transexuais.

A segunda experiência diz respeito ao projeto Arranjos Locais da Penha que tem como

objetivo a promoção da agricultura urbana no Complexo de favelas da Penha no Rio de Janeiro,

onde pude contribuir como proponente das ações e articuladora, percorrendo quintais e

aprendendo com as moradoras da comunidade suas estratégias de sobrevivência em um cenário

de enorme vulnerabilidade.

A terceira, foi a experiência do grupo Mulheres de Aroeira, onde junto a algumas

companheiras da agroecologia buscamos construir um espaço feminista popular através da

culinária quilombola, da agricultura e da arte. Ser convidada a participar desse grupo e poder

cozinhar ao lado de militantes históricas da luta pela moradia e de defesa do território na Zona
39

Oeste do Rio de Janeiro foi uma espécie de validação do meu trabalho enquanto pesquisadora-

militante e, sobretudo, foi essencial no sentido de descortinar os racismos que me constituíam

sem que eu me desse conta.

É inegável que enquanto mulher branca e acadêmica meu corpo carrega os sinais que

no Brasil me permitem acessar lugares de poder e a possibilidade de ter minha voz ouvida. Por

outro lado, isso também gera uma compreensível desconfiança por parte de pessoas que

historicamente foram colocadas à margem, pessoas negras e pobres, que são simbolicamente e

materialmente oprimidas pela branquitude como um sistema de organização social, como

discutirei no primeiro capítulo da tese.

Isso mostra que a pesquisa junto a movimentos sociais apresenta uma série de desafios

éticos e políticos. A ideia de que pesquisadores vão “dar voz” aos sujeitos subalternizados é

uma constante no campo de estudos sobre Direitos Humanos e movimentos sociais. Spivak

(2010), que discute de forma contundente o papel do pesquisador na produção do discurso

contra hegemônico, alerta para o perigo recorrente de se “tirar” a voz dos sujeitos subalternos,

ao tentar falar “sobre” eles. Compreendi que meu papel, enquanto pesquisadora e militante, é

de debater a norma, as racionalidades que sustentam as desigualdades mesmo nas esquerdas e

nos movimentos sociais, de buscar descortinar as estruturas que subjazem tais apagamentos,

apropriações e violências, e dialogar sobre possibilidades de resistência e de recriação de

mundos que vêm sendo tecidas a partir de diferentes estratégias, forças e lugares.

Assim, entendendo que a articulação entre agroecologia e os feminismos populares em

torno da pauta ambiental traz interpelações urgentes para pensar a construção de uma sociedade

mais democrática, sustentável, plural e livre de opressões, busco nesta tese contribuir com esse

debate trazendo à tona o ponto de vista das mulheres envolvidas no movimento agroecológico

urbano.
40

Importante ressaltar que este texto passou por uma banca popular no qual ele foi lido

por minhas interlocutoras que trouxeram suas críticas e considerações. A banca popular é um

dispositivo usado em pesquisas junto a movimentos sociais como forma de produzir

conhecimento que retorne e sirva para os movimentos ou população local. No caso desta tese,

para além da banca propriamente, ou seja, a apresentação do projeto e dos resultados ao grupo,

posso dizer que de fato trata-se de uma produção coletiva de conhecimento, visto que as

contribuições das participantes, escolhas metodológicas e criação de conceitos foram trazidos

por elas.

Algumas das interpelações feitas diziam respeito às contribuições e ao retorno da

pesquisa ao movimento; sobre a importância de desenvolver estratégias de dialogo direto com

o movimento tais como a própria realização de banca popular e publicação de trabalhos de

autoria coletiva e; a importância de trazer à tona os conflitos que surgiam em relação aos

movimentos mistos, ou seja, aqueles construídos ao lado dos homens.

Esse processo, apesar de riquíssimo, foi bastante desafiador e em muitos momentos me

fez refletir sobre como é difícil inclusive apartar a vida pessoal daquele que se propõe a pensar

uma determinada realidade e suas questões de pesquisa. Parece-me afinal, que somos movidos

por angustias, mais do que por certezas. Estando agora há quatro anos mergulhada no processo

de escrita deste texto, enxergo com maior clareza o caráter mutante da minha escrita.

Consciente da não neutralidade e não universalidade da produção de conhecimento,

venho esforçando-me para dar conta de uma série de questões trazidas pelas minhas

interlocutoras, pelo campo da agroecologia/feminismo e pelo contexto sócio-político que

permeia a atual conjuntura brasileira e carioca entendendo que muitas questões necessariamente

ficam de fora, de acordo com meus interesses de estudos, das minhas escolhas teóricas e

políticas e do meu fôlego em dar ou não conta de certas discussões. Por outro lado, minha busca

por contribuir no processo de organização das mulheres, não só enquanto pesquisadora, também
41

me traz desafios e insere-me no contexto de conflitos que o grupo tem de lidar. Tenho buscado

pensar as questões de pesquisa a partir das categorias mobilizadas por minhas interlocutoras,

tendo a cautela de compreender quais problemas de pesquisa o campo-tema me coloca e não o

contrário.

Feita essa apresentação geral, desenvolverei no próximo capítulo alguns conceitos

centrais para a construção desta tese e uma discussão a partir do meu posicionamento enquanto

pesquisadora feminista.
42

Capítulo 1: Gênero, feminismo(s) e as políticas de subjetivação

Neste capítulo teórico, discorro sobre o conceito de gênero, subjetividade e políticas de

subjetivação buscando construir uma ponte entre tais debates e linhas argumentativas que vêm

sendo construídas desde os feminismos pós-coloniais.

Uma das motivações deste estudo é problematizar as condições de existência social das

mulheres e para isso é necessário desprender-se de uma série de concepções universais e

naturalizadas acerca dos fenômenos e estruturas sociais que são forjados ao longo da história.

As ciências humanas têm cultivado, desde muito cedo, o interesse por questões que envolvem

a relação entre homens e mulheres, os papéis sociais atribuídos aos sexos, divisão sexual do

trabalho, status, bem como sobre a sexualidade e as práticas sexuais em diferentes contextos

culturais ao redor do mundo.

A título de exemplo, podemos mencionar o trabalho, já no século XVIII, da escritora e

filósofa de Mary Wollstonecraft (2006) que escreveu em 1792 a obra Uma reindicação pelos

Direitos da Mulher inaugurando o que viria a ser considerado o campo da filosofia feminista;

os estudos de Sigmund Freud ([1905] 2006) e de seus seguidores sobre a sexualidade infantil,

a libido e a formação do inconsciente no início do século XX; as contribuições de Simone de

Beauvoir (2008) que em 1949 lançou O Segundo Sexo, obra fundamental para compreensão da

formação da subjetividade e da cultura a partir da análise das relações entre homens e mulheres

na sociedade ocidental; o trabalho da antropológa Margaret Mead (1998) que em 1928, ao

analisar sexo e temperamento em três sociedades distintas, mostrou que o comportamento de

homens e mulheres não são dados, naturais e universais, e sobretudo, não está relacionado ao

sexo biológico; entre tantos outros autores e autoras.


43

O que confere o estatuto de inovação na abordagem dessas temáticas é a incorporação

do conceito de gênero enquanto estruturante das relações e diferenças entre os sexos, e,

sobretudo, na maneira tal qual essas diferenças são transformadas em desigualdades (Mirian

Grossi, 2010). Embora as reflexões sobre as atribuições sociais, culturais e psicológicas

atribuídas aos sexos tenha um longo histórico de desenvolvimento, o conceito propriamente

dito de papéis sociais de gênero e identidade de gênero foi formulado nos anos de 1950 pelo

psicólogo e sexólogo John Money que fazia uma distinção entre sexo enquanto aspectos

anatômicos, morfológicos e fisiológicos da espécie humana e o gênero enquanto atribuições

sociais e culturais que moldam o comportamento e a identidade dos sujeitos.

Este conceito emerge a partir dos estudos de Money sobre as identidades psicológicas

de pessoas intersexo. É importante situar o contexto do seu desenvolvimento em um cenário

dos Estados Unidos da América pós-guerra de conservadorismo exacerbado com a perseguição

a comunistas e outros “desviantes” (incluindo, claro, homossexuais) em pleno princípio da

Guerra Fria. Nesse cenário predominavam as ideias derivadas das ciências comportamentais

com as quais acreditava-se ser possível incentivar ou eliminar comportamentos através das

técnicas do condicionamento introduzidas com o objetivo de fomentar a aprendizagem de certos

comportamentos em detrimento de outros (João de Oliveira, 2012).

O projeto de Money, portanto, não era o da elaboração de um conceito que contribuísse

com uma abordagem emancipatória em relação às determinações e relações de poder entre os

sexos. Ao contrário, seu estudo levou-o, através de uma série de experimentos feitos a partir de

uma ética e metodologia anti-éticas8, a recomendar práticas de educação dimórficas do ponto

8
O trabalho mais celebre de John refere-se ao caso da “mudança de sexo” de David Remer, garoto que perdeu seu
pênis quando criança e foi criado como menina até a adolescência, nunca tendo se adaptado completamente e
vindo a cometer sucídio. Para ver com profundidade tal caso recomendo a leitura do artigo “Doing Justice to
Someone: Sex Reassignment and Allegories of Transsexuality” de Judith Butler (2001), disponível em:
https://muse.jhu.edu/article/12181.
44

de vista de gênero, aconselhando que crianças intersexo fossem educadas dentro do gênero que

lhes fora atribuído medicamente (Oliveira, 2012).

Décadas depois, a categoria gênero vai ser apropriada pelos estudos de mulheres, pelos

movimentos LGBT+ e, sobretudo, pelos movimentos feministas para se referirem a organização

social das relações entre os sexos (Joan Scott, 1995): “O termo gênero faz parte das tentativas

levadas pela feministas contemporâneas de reivindicar certo campo de definição, para insistir

sobre o caráter inadequado das teorias existentes em explicar desigualdades persistentes entre

homens e mulheres” (Scott, 1995, p. 19).

Pensar como o gênero opera nas relações sociais humanas e de que modo dá sentido a

essa mesma organização são questões cujas respostas estarão sempre dependentes da

perspectiva do gênero enquanto categoria de análise, o que nos remete desde já à pluralidade

de tradições e perspectivas nas abordagens sobre o tema.

Em seu texto clássico “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”, Scott (1995)

distingue três tipos de abordagens teóricas principais com relação à análise do conceito de

gênero. São elas: 1. patriarcado; 2. marxista; 3. pós-estruturalista / e as teorias anglo-americanas

das relações de objeto.

No primeiro tipo de abordagem, o foco central é a condição de subordinação das

mulheres, explicada pela necessidade do macho de dominar as fêmeas, tornando-se chave o

controle pela reprodução. A autora menciona Mary O’brien enquanto uma teórica que define

“a dominação masculina como efeito do desejo dos homens de transcender a sua privação dos

meios de reprodução da espécie” (Scott, 1995, p. 9). Para outras autoras dessa corrente, o foco

deixa de ser a reprodução e passa a ser a sexualidade. Segundo Haraway (2004), autoras como

Catherine Mackinnon comparam o papel da sexualidade para os feminismos àquele que o

trabalho ocupa na teoria marxista.


45

O feminismo marxista é descrito por Scott enquanto tendo uma abordagem histórica.

Contudo, a autora entende como uma limitação o fato de estarem sempre em busca de uma

explicação material para as questões de gênero. Nesse sentido, questões de gênero parecem aqui

serem explicadas a partir da sua relação com as questões que envolvem o modo de produção ou

as estruturas econômicas. A autora menciona a coletânea “Powers of Desire: The Politics Of

Sexuality” (1983), organizada por Christine Stansell e Sharon Thompson Ann Snitow como um

texto importante no sentido de oferecer uma explicação que vai além do modelo anteriormente

mencionado ao abordar as questões de gênero e sexualidade sendo produzida historicamente

em contextos específico.

No terceiro grupo descrito por Scott, a autora aponta duas tradições diferentes, sendo

uma francesa influenciada pelas leituras estruturalistas e pós-estruturalistas de Freud e nas

teorias da linguagem de Lacan, e a outra de tradição anglo-americana, erguendo o que tornou-

se conhecido como teorias de relações de objeto. Conforme Scott, as duas abordagens possuem

em comum o interesse pelos processos de constituição das identidades dos sujeitos, focando

especialmente nas primeiras etapas de desenvolvimento das crianças a fim de compreender a

formação da identidade de gênero. Enquanto que a tradição francesa aponta a centralidade do

papel da linguagem na comunicação, interpretação e representação de gênero, a tradição

britânica enfatiza a influência da experiência concreta, ou o que a criança vê e suas relações

com as pessoas que cuidam dela sendo determinantes para o gênero.

Incluo nesta lista um quarto grupo que dialoga com as teorias pós-estruturalistas, mas

não se restringem ao contexto estadunidense e europeu e que vem redesenhando o entendimento

sobre os conceitos de gênero: os feminismos pós-coloniais sobre os quais comentarei em uma

seção à parte.

Scott afirma que através do conceito de gênero as feministas começaram a encontrar

uma via teórica própria e uma série de aliados no contexto político e científico, o que permitiu
46

articular o gênero enquanto uma categoria de análise. Desta maneira, ela lança mão de um

conceito de gênero que tornou-se uma grande referência dentro desse campo de estudos:

“gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre

os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder”. (Scott, 1995, p.

10).

Em breve apanhado sobre o tema, Grossi (2010) afirma que gênero é uma categoria que

ultrapassa mulheres e homens enquanto objeto de análise. Para a perspectiva pós-estruturalista,

o gênero se constitui enquanto uma linguagem ou um discurso que é compreendido como atos

dotados de significação, o que faz dessa abordagem uma análise da produção de significados.

Numa perspectiva estruturalista, por outro lado, o gênero implica em alteridade. Para que exista

o masculino é necessário haver o feminino. A construção da identidade passa pelo

reconhecimento de que existem pessoas diferentes de “nós”. Aqui, só há dois gêneros, embora

possam ser construídos de múltiplas formas, algo muito diferente da perspectiva pós-moderna,

que compreende o gênero como sendo mutável, principalmente pela possibilidade de

tecnologias que subvertem aquilo que é entendido como “natural”.

Dessa forma, vemos que o conceito de gênero é um conceito em disputa dentro da

academia e do movimento feminista que também deve ser analisado a partir da sua pluralidade.

Nesta tese utilizo o conceito de gênero como forma de falar em poder e na forma que ele se

materializa através das práticas e discursos em nossa sociedade. Parto, por conseguinte, de uma

abordagem de gênero que toma o referencial teórico dos feminismos pós-estruturalistas e pós-

coloniais entendendo que as identidades de gênero, além de não serem universais, não devem

ser encaradas como um atributo individual, mas como um sistema de significados.

A partir dessa concepção, o gênero é visto como efeito de um sexo pré-discursivo que,

através da estilização repetida do corpo e de um conjunto de atos reiterados dentro de um marco

regulador altamente rígido, se congela no tempo produzindo a aparência de uma substância, de


47

uma espécie de ser natural (Adriana Piscitelli, 1996). Por conseguinte, não há identidade de

gênero por trás das expressões do gênero; essa identidade é performativamente constituída,

pelas próprias expressões tidas como seus resultados, de forma que não somente o gênero é

uma criação puramente social que carece de uma “essência” estabelecida através de uma série

de dispositivos socializadores como a ciência, a família, a escola, etc., mas o próprio corpo

humano está sujeito às forças sociais que o moldam e alteram de várias formas (Judith Butler,

2008; Anthony Giddens, 2005).

Deste modo, ao falarmos sobre as categorias “homens” e “mulheres”, não podemos

pensar em sujeitos dados a priori, mas sim em construções discursivas a partir de uma

determinada representação identitária, política e jurídica. De acordo com Butler (2008, p. 20):

Se alguém 'é' mulher, isso certamente não é tudo o que esse alguém é; o termo não logra
ser exaustivo, não porque os traços pré-definidos de gênero da 'pessoa' transcendam a
parafernália específica de seu gênero, mas porque o gênero nem sempre se constitui de
maneira coerente ou consistente nos diferentes contextos históricos, porque o gênero
estabelece interseções com modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais
de identidades discursivamente constituídas.

O conceito de gênero, portanto, só pode ser compreendido enquanto um complexo de

poder-conhecimento-práticas sociais9, sendo impossível dissociá-lo do contexto em que é

construído e reproduzido. Ao pensar relações de poder importante registrar que entendo poder

a partir da perspectiva de Michel Foucault (1986), para quem o poder não é algo que se pode

ter, posto que só existe em ação e se exerce através de discursos e práticas.

Butler(2008) interpreta o gênero enquanto uma prática reguladora que busca uma matriz

sexual onde produz-se sujeitos coerentes no que diz respeito ao gênero/sexo/desejo (Maria

Juracy Toneli & Simone Becker, 2010). Essa matriz se fundamenta em dois princípios básicos:

9
Ao pensar relações de poder importante registrar que entendo poder a partir da perspectiva de Michel Foucault
(1986). Para o autor, poder não é algo que se pode ter, posto que só existe em ação e se exerce através de discursos.
48

a heterossexualidade compulsória e o discurso da diferença (complementar e binária) entre os

sexos. Esses dispositivos criam, conforme Foucault (2009), um “regime de verdade” sobre o

sexo. A identidade de gênero aparece, dessa forma, como uma ficção que confere uma coerência

interna ao sujeito, sendo constantemente atualizada pelos discursos, saberes e práticas de poder

em nossa sociedade.

Chantal Mouffe (1999) também vai denunciar o caráter contingencial das identidades

de gênero, a partir da crítica à essencialização dos sujeitos políticos em seus movimentos. De

acordo com a autora:

(...) cada posição de sujeito se constitui dentro de uma estrutura discursiva


essencialmente instável, posto que se submete a uma variedade de práticas de
articulação que constantemente a subvertem e transformam. Por isso não há nenhuma
posição de sujeito cujos vínculos com outras estejam assegurados de maneira definitiva
e, portanto, não há identidade social que possa ser completa e permanentemente
adquirida. Isso não significa, no entanto, que não possamos reter noções como “classe
trabalhadora”, “homens”, “mulheres”, “negros”, ou outros significantes que se referem
a sujeitos coletivos (Mouffe, 1999, p. 46).

Nessa lógica, Mouffe (1999) critica a categoria ‘mulher’ enquanto uma identidade

estável e pode provocar dúvidas no que se refere à possibilidade da construção de uma política

feminista voltadaàs mulheres. A autora responde a essa questão propondo um projeto de

democracia radical atento às diferentes lutas contra a opressão a partir de matrizes não

essencialistas:

A política feminista deve ser entendida não como uma forma de política projetada para
a realização das mulheres como mulheres, mas como a realização de metas e aspirações
feministas dentro do contexto de uma mais ampla articulação de reivindicações. Essas
metas e aspirações poderiam consistir nas transformações de todos os discursos, práticas
e relações sociais onde a categoria “mulher” estivesse construída de maneira que
implicasse subordinação (Mouffe, 1999, p. 46).

Assim, Mouffe (1999) problematiza concepções que tratam as questões das mulheres

de forma essencializada (genérica ou neutra) ao mesmo tempo em que não nega a necessidade

de uma política que paute a questão da subordinação social das mulheres.


49

Identidade, subjetividade e políticas de subjetivação

Ao discutir gênero enquanto um dispositivo de constituição de si, partimos de uma

concepção de subjetividade enquanto um processo. Essa perspectiva permite uma articulação

com um conjunto de discussões que vem se ampliam no campo da Psicologia Social, qual seja,

de pensar as identidades, os sujeitos e as subjetividades não como realidades substancializadas,

psicologizadas, mas a partir da construção de experiências subjetivas mediante contextos

sociais, culturais e políticos específicos, revelando o caráter contingencial de toda identidade.

Dialogando com Foucault, partimos de uma concepção de subjetividade que se constitui

enquanto um agenciamento de forças e fluxos, como uma linha que se inflexiona a partir dessas

forças e compõe uma dobra, que, como tal, nunca será uma interioridade fechada sobre si

mesma, senão expressão corpórea dos regimes de verdade de um tempo (Foucault, 2000). Dessa

maneira, nesse estudo, trabalho com a ideia de processos/modos de subjetivação e não de

sujeitos enquanto uma realidade em si, buscando entender, conforme Foucault (1995, p. 231)

“os diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornam-se sujeitos”.

Segundo Jáder Leite e Magda Dimenstein (2002, p. 41), “a noção de sujeito e de

indivíduo estão circunscritas ao plano histórico da modernidade, no afã de produzir uma

entidade individualizada que desse sustentação à experiênciamercantil nascente, qual fosse, o

capitalismo”. Tal visão marcou fortemente a constituição da Psicologia enquanto ciência que

assimilou uma concepção hegemônica de sujeito psicológico universalizado (Leite &

Dimenstein, 2002).

A discussão acerca da subjetividade e do sujeito é, portanto, parte integrante da própria

história da ciência psicológica e, no entanto, sua forma de tratamento tem sido de um lado,

situar a subjetividade e o sujeito no plano de uma experiência de universalidade e interioridade


50

psicológica profunda ou, de outro, apontar que os sujeitos nada mais são que reflexos de uma

ordem econômica/social, portanto meros produtos de interações ambientais.

Diferentemente, ao proporem uma perspectiva de entendimento das subjetividades pela

via de sua produção, autores como Gilles Deleuze, Félix Guattari e Michel Foucault vão dar

destaque ao seu caráter polifônico, processual e maquínico, apresentando uma concepção

radicalmente crítica às visões deterministas e essencialistas da experiência subjetiva. Esses

referenciais nos ajudam a pensar sobre a produção de subjetividade nas sociedades capitalistas,

entendidas não somente como “as sociedades qualificadas como capitalistas, mas também as

que vivem numa espécie de dependência e contradependência do capitalismo” (Félix Guattari

& Suely Rolnik, 1986, p. 15). Para Guattari e Rolnik (1986) a subjetividade no sistema

capitalista é produzida com o intuito de instaurar “indivíduos normalizados, articulados uns aos

outros segundo sistemas hierárquicos, sistemas de valores, sistemas de submissão”. (p. 16).

Segundo Luciana Miranda (2005):

A subjetividade é assumida de diferentes formas, no cruzamento de vetores


homogêneos, por indivíduos em suas existências particulares. Pois bem, essas formas
variam entre dois polos: de um lado, a sujeição em relação às instituições produtoras de
subjetividade: família, Estado, trabalho, mídia, marcada pela conformidade, pela
reprodução do idêntico, o achatamento da heterogeneidade, das diferenças, enfim pela
massificação do cotidiano, sinalizando uma produção de subjetividade assujeitada; por
outro lado, a criação de novos processos múltiplos e heterogêneos, que engendram
relações livres e criativas, onde os indivíduos e grupos assumem suas existências de
modo singular, criando outros valores, novas formas de pensar e de agir, viabilizando a
produção de subjetivação singularizadas. São formas paralelas e concomitantes, que
podem lutar no interior de um indivíduo, grupo ou momento histórico (p. 7).

De acordo com Thiago Drummond Moraes (2002), a subjetividade não diz respeito

apenas ao modo de pensar das pessoas, mas também ao seu modo de agir, se portar, desejar,

fazer, sonhar. A subjetividade não está dentro das pessoas, mas “as atravessa, visto que não é

produzida nas pessoas, mas nos encontros entre elas e delas com os aparelhos de poder” (p. 14).

Nessa perspectiva, a fabricação das subjetividades dá-se por uma articulação de inúmeras
51

instâncias que não apresentam primazia ou determinação única nesse processo de produção

(Guattari, 2000).

Aqui, assim como gênero vai ser pensado como um dispositivo, igualmente podemos

pensar raça, classe, e participação política. Esses debates teóricos e políticos não só funcionam

como modos de subjetivar os sujeitos, mas reverberam-se de formas diversas no campo dos

movimentos sociais, das políticas públicas e documentos institucionais e no cotidiano, ao

mesmo tempo em que refletem essas esferas. Na seguinte seção discuto sobre a contribuição

dos feminismos pós-coloniais para o campo dos estudos de gênero e subjetividade e para o

movimento feminista.

Partindo dessas perguntas, discuto nesse capítulo os conceitos de gênero e subjetividade

à luz das teorias feministas pós-coloniais, buscando articular as categorias de gênero, raça e

colonialidade, debate esse esse trazido pelo meu campo-tema e demandado pelas minhas

interlocutoras, servindo de base para as reflexões construídas ao londo desta tese.

Diálogos a partir dos feminismos pós coloniais

A epistemologia e racionalidade ocidentais dominaram o campo da ciência e filosofia

durante dois séculos, até a segunda metade do século XX10, quando vários movimentos teóricos

como o pós-colonialismo, os estudos feministas, os estudos subalternos e o multiculturalismo

ganham folego apontando para a geopolítica do conhecimento expressa na invisibilidade e

apagamento dos saberes produzidos por mulheres, por pessoas não-brancas e pelos países do

10 É importante frisar que vários autores já faziam uma crítica contundente ao colonialismo antes disso, como
Fanon, Cesaire e Memmi.
52

Sul global pós-colonial11. A emergência dos saberes “subalternos” traz uma importante virada

para a produção científica ao contextualizar o campo sociopolítico que envolve a epistemologia

dominante, fazendo emergir outros saberes e sistemas de pensamento, além de questionar

perspectivas teorias e metodologias científicas “universais”.

Importante aqui fazer um breve esclarecimento, pois o campo dos estudos pós-coloniais

é bastante amplo e diverso. O pós-colonialismo inicia-se como um movimento teórico e político

no século XX a partir, principalmente, das contribuições dos trabalhos de Frantz Fannon e Aimé

Césarie. Para os autores pós-coloniais, o colonialismo europeu constitui as identidades a partir

de uma visão etnocêntrica na qual o não-europeu/não-ocidental representa o Outro da

civilização, ou seja, o seu antagonismo, representação do atraso e do não desenvolvimento. Essa

classificação é dada, sobretudo, em termos raciais (isto é, a matriz racial colonial) e patriarcais,

como completa o sociólogo argentino Walter Mignolo (2008).

Como uma vertente do pós-colonialismo, um outro grupo também se desenvolveu

buscando estruturar uma crítica ao pensamento colonial na Índia – o Grupo de Estudos de

Subalternidade Sul-Asiáticos. Esse grupo tem diálogo direto com as teorias pós-estruturalistas

de teóricos franceses como Jacques Derrida, Foucault, Deleuze e Guattari. Os estudos

subalternos começaram no início dos anos de 1980, com o indiano Ranajit Guha1, como uma

intervenção na historiografia sul-asiática, enquanto se tornava um modelo para o subcontinente.

Por último destaco a linha do pensamento decolonial. O pensamento decolonial surgiu

a partir do grupo de estudos subalternos latino-americanos e do grupo de estudos

modernidade/coloniliadade nos anos de 1990, grupos esses constituídos por teóricos latino

11 O termo pós-colonialismo refere-se aqui tanto ao processos emancipatórios a partir do colonialismo dos países
da América, Ásia e África, enquanto forma de dominação político-administrativa, quanto ao movimento teórico
que será analisado ao decorrer do texto.
53

americanos e em diálogo com movimentos sociais no continentente que propuseram um projeto

epistemológico que alterasse a cosmovisão estruturada em uma hierarquização epistêmica

Norte-Sul. Com isso, esse grupo tem o objetivo de produzir conhecimento a partir da práxis e

da realidade da América Latina, de narrativas que foram subalternizadas pelas visões científicas

modernas/coloniais e eurocêntricas. Nessa perspectiva, desloca-se da Europa e dos países do

Norte Global o centro de explicação da sociedade moderna/ocidental, colocando a América

Latina e as classificações raciais como fundamentais para compreendermos não apenas as

sociedades que aqui se formaram e se estabeleceram, mas para a própria formação europeia, a

partir do marcador da conquista colonial. Ou seja, para esses autores, não só a América Latina

se constitui através da colonialidade, mas a própria Europa.

Em que pese, as diferentes correntes teóricas que constituem esse campo de estudos, os

saberes pós-coloniais têm dado a conhecer, através de diferentes desdobramentos teóricos e

implicações políticas, formas outras de ser e de estar no mundo, diversidade esta que tem

conhecido um redobrado interesse em vários contextos, dos movimentos sociais, das culturas

tradicionais e da academia, em vários locais do Sul global, evidenciando que a experiência

social produz e reproduz conhecimento e, ao fazê-lo, pressupõe a presença de várias

epistemologias (Maria Paula Meneses & Iolanda Vasile, 2014).

Para compreender as contribuições dessa linha teórica e política é preciso discutir o

conceito de colonial, colonialidade e de raça. A noção de colonialidade remonta às proposições

do sociólogo peruano Aníbal Quijano (2005) acerca dos padrões de poder que fundamentam

hierarquias no capitalismo global a partir da constituição da ideia de raça, categoria que permeia

todas as dimensões do sistema-mundo, incluindo sua racionalidade específica, o eurocentrismo

e suas classificações derivativas de superior/inferior, desenvolvimento/subdesenvolvimento e

povos civilizados/bárbaros (Santiago Castro-Gomez & Ramón Grosfoguel, 2007). Tal


54

perspectiva nos mostra que a colonialidade não se esgota com o colonialismo, mas o reafirma

enquanto sistema de pensamento.

A colonialidade se expressa na constituição de uma epistemologia ocidental hegemônica

fundada culturalmente no mundo moderno cristão e politicamente no contexto do capitalismo

colonial, que vai invisibilizar e desconsiderar saberes construídos a partir de outros esquemas

de pensamento, estabelecendo-se enquanto saber universal, neutro e atemporal. Muito do que

sabemos sobre o Sul global são reflexo de interpretações cujas raízes são marcadamente

eurocêntricas. Essa hegemonia do pensamento ocidental resulta particularmente visível na

contínua afirmação de uma hierarquia de saberes, produzindo sociedades assumidas como mais

desenvolvidas que outras, reproduzindo-se esta segregação hierárquica em múltiplos lugares:

nas instituições, vocabulário, saberes, imagens, doutrinas, etc. Esse posicionamento reside na

afirmação de uma única ontologia, de uma epistemologia, de uma ética, de um pensamento

único e sua imposição como universal (Meneses & Vasile, 2014). Como nos apontam

Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses (2009), a transformação desse pensamento

no que veio a se estabelecer enquanto a ciência moderna só foi possível com a força da

intervenção política, econômica e militar do colonialismo e do capitalismo modernos que se

impuseram aos povos e culturas não-ocidentais e não cristãos.

Não obstante, as questões de gênero não se inseriram de forma imediata dentro do

campo dos estudos pós-coloniais, entretanto, a partir da construção de pontes entre perspectivas

críticas e em consonância com suas premissas epistemológicas, a perspectiva pós-colonial

passou a incorporar de maneira cada vez mais central a visão crítica e os conceitos das teorias

feministas sobre as questões de gênero (Miriam Adelman, 2007). Partindo de diferentes

perspectivas teóricas, as feministas pós-coloniais vão radicalizar a crítica pós-colonial

compartilhando muitas das preocupações gerais do pós-colonialismo, mas também revisando,


55

questionando, complementando-as, ao evidenciarem a intrínseca relação entre o sistema

colonial e de gênero.

Assim os feminismos pós-coloniais surgem como uma chave de leitura teórica que vem

dar luz às relações gendradas e racializadas a partir de uma perspectiva subalterna e como um

posicionamento que vai questionar as epistemologias fundantes desse campo de saber/poder

propondo um novo paradigma de resistência.

Segundo María Lugones (2008), feminista ligada a linha teórica decolonial, considerar

os traços históricos da organização do gênero no que ela chama de sistema moderno/colonial

de gênero, representado pelo dimorfismo biológico, organização patriarcal e a

heterossexualidade compulsória, é central para uma compreensão diferencial da organização do

gênero em termos raciais. Assim, conforme a autora, a imposição desse sistema de gênero foi

tanto constitutiva da colonialidade do poder quanto a colonialidade do poder foi constitutiva do

sistema de gênero. Portanto, o sistema de gênero moderno e colonial não pode existir sem a

colonialidade do poder, já que a classificação da população em termos de raça é uma condição

necessária para sua possibilidade.

Rita Segato (2018a), por outro lado, discorda com a posição de Lugones e de outras

teóricas decoloniais que se opõe ao uso da categoria gênero por considera-la uma categoria

colonial que reforça as desigualdades. Ela argumenta que gênero e raça são análagos em relação

à estrutura de produção da diferença como desigualdade, ainda que a raça seja uma herença

direta do processo de conquista e colonização e as desigualdades de gênero tenham existido em

todos os continentes, rementendo a pré-história pratiarcal da humanidade. Conforme Segato

(2018a), nomear tais desigualdades: de raça e de gênero é essencial para expô-las e

consequentemente confronta-las. A despeito das diferenças entre essas teóricas, o olhar

feminista pós-colonial também vai recair sobre o feminismo produzido no ocidente, através da

crítica da representação das mulheres não ocidentais como o Outro da cultura de forma tripla:
56

enquanto mulher, enquanto não ocidental e a partir da junção desses dois termos (Aldeman,

2007). Chandra Mohanty (2008) aponta que as feministas ocidentais tomam a cultura de classe

média urbana como norma e classificam as experiências das mulheres negras, indígenas, de

comunidades tradicionais, etc., do Sul global a partir de uma construção discursiva acerca das

mulheres do “terceiro mundo” como necessariamente pobres, ignorantes, domésticas,

exploradas sexualmente e, principalmente, sem agência, ou seja, sem capacidade de pensar e

agir reflexivamente e com intencionalidade sobre a própria vida e as instituições sociais. Nesse

sentido, as mulheres não-brancas do Sul, a partir da interseccionalidade entre raça, classe,

gênero e sexualidade, em sua dupla exclusão, são vistas como não-humanas e não-mulheres.

Esse debate é fundamental para a reflexão sobre como a raça nos constitui

subjetivamente e das desigualdades estruturais que essa classificação social constrói e como,

ainda, tal categoria, articulada ao gênero e à classe vai impactar na vida dos sujeitos.

Essa compreensão dialoga com a teoria da interseccionalidade proposta inicialmente

pela feminista negra estadunidense Kimberlé Crenshaw ao essencialismo das leituras sobre

opressão do feminismo convencional. Crenshaw propõe o conceito de interseccionalidade em

1989 a partir do exame e crítica de casos judiciais sobre os direitos humanos de mulheres. Na

proposta de Crenshaw duas ou mais formas de subordinação determinadas pelo sexismo,

racismo e patriarcado deveriam ser compreendidas enquanto uma interação e não a partir da

superposição de opressões (Marília Ortiz, 2013).

Segundo Conceição Nogueira (2017), o conceito de interseccionalidade busca captar a

complexidade das identidades e das desigualdades sociais a partir de uma perspectiva integrada.

Assim, reconhece a multiplicidade de sistemas de opressão que operam de forma articulada

influenciando questões de gênero, classe social, raça, idade, dentre outras.

Tal qual apresenta Marta Farah (2004), essas referências realçam o caráter histórico das

desigualdades sociais entre homens e mulheres e reconhecem a existência da diversidade no


57

que se refere às questões de gênero. Ao problematizar relações de gênero, as perspectivas pós

estruturalistas problematizam relações de poder e preconizam a incorporação de outras

dimensões analíticas, enquanto marcadores sociais da diferença em nossa sociedade, tais como

raça, classe, geração.

Segundo a teórica indiana Spivak, o sujeito subalterno, em especial as mulheres, não

podem falar, sendo o símbolo máximo do esquecimento da história e da ciência:

Consideramos agora as margens (poder-se-ia também dizer o centro silencioso e


silenciado) do circuito caracterizado por esta violência epistémica: os camponeses e as
camponesas analfabetos, os aborígenes e as camadas mais baixas do subproletariado
urbano. Segundo Foucault e Deleuze (dentro do Primeiro Mundo, na estandardização e
a catalogação do capital socializado, embora não o pareçam admitir) e mutatis mutandis
segundo a ‘feminista terceiromundista’ metropolitana, interessada unicamente na
resistência à lógica capitalista, os oprimidos, quando têm esta possibilidade (e aqui não
podemos ignorar o problema da representatividade) ao longo do caminho para a
solidariedade, através da política das alianças (e aqui estamos dentro duma temática
marxista), podem dizer e conhecer as suas condições. Mas temos que enfrentar agora a
pergunta seguinte: do outro lado da divisão do trabalho internacional em relação ao
capital socializado, no interior e no exterior do circuito da violência epistémica da lei e
da instrução imperialista de suplemento a um texto económico precedente, os
subalternos podem falar? (Spivak, 1999, p. 281).

Dessa forma, a utilização de conceitos ocidentais para pensar as mulheres do Sul global

frequentemente resultaram na reprodução do discurso orientalista, racista e colonialista

(Haraway, 2000). A filósofa Djamila Ribeiro ressalta que “os saberes produzidos pelos

indivíduos de grupos historicamente discriminados, para além de serem contra discursos

importantes, são lugares de potência e configuração do mundo por outros olhares e geografias”

(Ribeiro, 2017, p. 75).

Spivak (1999) elabora um modelo de crítica pós-colonial que contempla

fundamentalmente uma reflexão sobre os instrumentos de poder e as possibilidades de

agenciamento do sujeito subalterno, marcadamente gendrado. Para tanto, ela propõe (1) uma

maneira alternativa e local de pensar os construtos históricos e culturais; (2) o questionamento

das construções discursivas que moldam o pensamento ocidental. Inspirada nessas questões,
58

dois eixos serão centrais na construção do presente estudo: a centralidade do conceito de

tradução cultural e da materialidade do lugar de enunciação. Esses conceitos sobre os quais as

feministas pós-coloniais vêm trabalhando contundentemente são particularmente importantes

quando pensamos a pluralidade do movimento feminista e do movimento agroecológico, e da

construção de uma consciência política baseada na noção de coalizão que permite o

desenvolvimento de novas formas de ação política e de produção de conhecimento.

Desse modo, o diálogo entre o pós-estruturalismo e o campo dos estudos feministas e

pós-coloniais aprofunda o debate epistemológico e permite a emergência de outras formas de

construção do saber científico, como também nos ajuda a complexificar o olhar sobre modos

de produção desubjetividade no capitalismo ocidental moderno ao refletir sobre a colonialidade

enquanto um importante dispositivo. Por outro lado, abre espaço para pensar possibilidades de

construção de fissuras e processos de singularização nesse cenário, entendendo que tais

processos caracterizam-se por fugir aos mecanismos de interiorização dos valores capitalísticos,

independentemente das escalas de valor hegemônicos que nos cercam e espreitam por todos os

lados (Guattari & Rolnik, 1986).

O diálogo entre tais perspectivas - as teorias de gênero a partir da posição pós-

estruturalista e os feminismos pós-coloniais - tem se mostrando bastante pertinente e profícuo,

mas impõe desafios de ordem téorica e metodológica, uma vez que ainda precisa ser

aprofundado. Em termos metodológicos, a posição pós-colonial tem trazido grandes

contribuições aos estudos feministas, em especial em contextos que representam desafios

metodológicos, como as pesquisas junto a movimentos sociais. No próximo capítulo

apresentaremos o desenho metodológico da pesquisa, discutindo alguns desafios e

contribuições que se apresentam na construção de uma investigação a partir de um olhar

feminista.
59

Capítulo 2: Percurso metodológico

Neste capítulo apresentamos o desenho teórico-metodológico utilizado na realização da

pesquisa e as estratégias para a análise dos dados.

Uma construção a partir do olhar feminista

De forma a acompanhar os diversos processos que se desenrolam no contexto estudado

e levando em consideração a dimensão subjetiva dos acontecimentos, a partir de um olhar

politicamente situado, buscamos produzir um diálogo entre a pesquisa enquanto proposta ético-

política e a epistemologia feminista como a radicalidade de alguns pressupostos críticos à

escrita e às formas de se pensar as políticas de pesquisa. Apostamos na necessidade desse

diálogo como forma de descolonizar práticas e saberes hegemônicos, marcados por um certo

esvaziamento crítico, ao serem tomados enquanto regimes de verdade no campo das ciências

humanas.

O que busco na pesquisa-feminista é, portanto, acompanhar movimentos,

metamorfoses, não definidas a partir de um ponto de origem e um alvo a ser atingido, mas como

processos de diferenciação, fazendo emergir as racionalidades que estão em jogo em um

contexto a partir dos dispositivos que as compõem.

A presente pesquisa foi pensada para acontecer na forma de mo(vi)mentos que não

seguem uma lógica de sucessão de etapas, mas que foi sendo realizada a partir dos

acontecimentos trazidos pelo campo, como forma de acompanhar a dimensão processual de

construção da realidade. Assumir tal postura, entretanto, vem sendo um grande desafio,

principalmente nos momentos iniciais da pesquisa que foram marcados por muitas incertezas e

alguns obstáculos exigindo mudanças no andamento do estudo. Essas mudanças se deram, em


60

grande medida, pelo contexto vivenciado no cenário da pesquisa - a Zona Oeste do Rio de

Janeiro - região que vem sendo constantemente ameaçada por projetos de privatização do

território e por uma série de conflitos socioambientais e em meio a um período social e político

bastante conturbado que mobilizou sobremaneira minhas interlocutoras e a mim mesma.

Acredito que a participação em atos políticos, protestos e todo tipo de mobilizações aparece

encarnada, dessa maneira, em minha escrita.

Ao adotar tal postura, advogo que a investigação crítica deve ser toda ela baseada na

reflexibilidade do fazer pesquisa enquanto prática de desconstrução do paradigma da

modernidade baseado na ideia de neutralidade da ciência, entendendo que todo o conhecimento

é parcial e situado (Sofia Neves & Conceição Nogueira, 2005; Haraway, 1995). Acredito,

portanto, que os estudos acadêmicos não devem assumir posturas imparciais, mas politicamente

situadas, tal qual propõe a perspectiva feminista de ciência defendida por autoras como Donna

Haraway (1995).

Essas questões vão de encontro àquilo que a crítica feminista, de uma forma geral, tem

apontado sobre o caráter arbitrário de toda produção de conhecimento, de modo a desconstruir

pressupostos universalistas encontrados no cânone científico moderno, evidenciando que

ciência, e quem a produz, também são portadores/as de marcadores sociais de gênero, raça,

classe, entre outros (Lourdes Bandeira, 2008).

Se os pontos de vista são mediados por nossas posições de fala, é também importante

ressaltar que esta investigação é movida por interesses que são frutos da minha experiência

pessoal, sendo uma pesquisadora jovem feminista que, de alguma forma, representa a

multiplicidade de engajamentos que envolve o campo político em discussão. Minha

aproximação com a agroecologia vai se dar não só através do meu trabalho em assentamentos

rurais da reforma agrária, mas também a partir do meu lugar de consumidora de alimentos

orgânicos e frequentadora de feiras agroecológicas, ativista de movimentos de direito à cidade


61

(como cicloativismo, por exemplo) e que, aos poucos, foi se aproximando e incorporando a

agroecologia e agricultura urbana em seu cotidiano colaborando e articulando experiências de

hortas comunitárias dentro da universidade e do próprio bairro. Portanto, o estar em campo vem

sendo marcado pelo que Carmen Tornquist (2007) chama de “ativismo observante” – um

trocadilho com o método da “observação participante” que evidencia a instabilidade da fronteira

que separa simbolicamente a pesquisadora do seu “objeto de pesquisa”.

Nesse sentido, a oposição entre pesquisadoras(es) e objeto de estudo torna-se incoerente.

As metodologias feministas acrescentam a essa questão a necessidade da responsabilização

política das produções acadêmicas. Desse modo, Neves e Nogueira (2005) propõem o uso da

reflexividade e afirmam que as(os) pesquisadoras(es) feministas devem estar atentas(os) às

relações de poder e às intencionalidades existentes no processo de produção científica.

O aporte da etnografia feminista

Este estudo parte de uma perspectiva qualitativa de pesquisa. Em diálogo com Cecília

Minayo (1994), acredito que pesquisa qualitativa trabalha com o universo de significados,

motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo

das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização

de variáveis quantificáveis. Segundo Norman Denzin e Yvonna Lincoln (2006):

Os pesquisadores qualitativos ressaltam a natureza socialmente construída da realidade,


a íntima relação entre o pesquisador e o que é estudado, e as limitações situacionais que
influenciam a investigação. Esses pesquisadores enfatizam a natureza repleta de valores
da investigação. Buscam soluções para o modo como a experiência social é criada e
adquire significado (p. 23).

Utilizo como base a perspectiva etnográfica de investigação. Como nos sugere Carmem

Lúcia Mattos (2011), a etnografia é um processo guiado, preponderantemente, por uma atitude

questionadora do pesquisador, ou conforme nos diz José Guilherme Magnani (2002), um modo
62

de acercamento e apreensão mais do que um conjunto de procedimentos.

Desta maneira, pode-se dizer que a utilização de técnicas e procedimentos etnográficos

não segue padrões rígidos ou pré-determinados, mas sim, o senso que o etnógrafo desenvolve

a partir do trabalho de campo no contexto social da pesquisa. Os instrumentos de coleta e análise

utilizados nesta abordagem de pesquisa, muitas vezes, têm que ser formuladas ou recriadas para

atender à realidade do trabalho de campo. Assim, na maioria das vezes, o processo de pesquisa

etnográfica será determinado explícita ou implicitamente pelas questões propostas pelo próprio

campo, pelos interlocutores e pelas questões que vão surgindo ao longo do seu

desenvolvimento, como discutido na introdução desta tese. Segundo Mariza Peirano (2014), as

boas etnografias cumprem, pelo menos, três condições:

i) consideram a comunicação no contexto da situação (cf. Malinowski); ii) transformam,


de maneira feliz, para a linguagem escrita o que foi vivo e intenso na pesquisa de campo,
transformando experiência em texto; e iii) detectam a eficácia social das ações de forma
analítica (Peirano, 2014, p. 386).

Para Clifford Geertz, “fazer etnografia é como tentar ler (no sentido de ‘construir uma

leitura de’) um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas

suspeitas e comentários tendenciosos” (Geertz, 1989, p. 20). Assim, em alguma medida, fazer

uma pesquisa etnográfica é construir um quebra-cabeça a partir de uma série de informações,

leituras, observações e sua sensibilidade.

Segundo a antropóloga Urpi Uriarte (2012), o fazer etnográfico consistem em três

momentos principais: a formação, o trabalho de campo e a escrita. O primeiro momento,

refere-se a formação teórica que é a bagagem indispensável para ir a campo, pois a capacidade

de levantar problemas advém da familiaridade com a bibliografia do tema e de determinados

repertórios simbólicos compartilhadas pelo grupo com o qual se quer refletir. O segundo

momento é o do trabalho de campo que refere-se ao momento da interação com os

interlocutores e com o campo-tema com a realização de uma descrição densa e anotações


63

extensivas a partir das observções realizadas. O terceiro momento é o da escrita propriamente

dita, onde sistematizamos, analisamos e interpretamos todas as informações colhidas. Este

momento provavelmente é o mais doloroso para a maioria dos pesquisadores, assim como o

foi para mim. A montagem do quebra-cabeça que caracteriza a escrita etnográfica e os

momentos anteriores de leitura, reflexão e observação nos ajudam a aguçar a nossa

sensibilidade e faz de nós, pesquisadoras, igualmente produtoras dos “dados”.

Com isso, é importante refletir sobre o fazer etnógrafico e as vozes de autoridade na

pesquisa, considerando que a etnografia constituiu-se historicamente como um projeto

colonial de interpretação do outro em quadros explicativos que corresponderiam à realidade

vivida pelo sujeito coletivo pesquisado (Raoni Barbosa, 2016). Como crítica a tal modelo,

várias linhas teóricas foram sendo formuladas no seio da antropologia em prol de um fazer

etnográfico diálogo e polifônico.

James Clifford (2002) questiona: “como um encontro intercultural loquaz e

sobredeterminado, atravessado por relações de poder e propósitos pessoais, pode ser

circunscrito a uma versão adequada de um ‘outro mundo’ mais ou menos diferenciado,

composta por um autor individual?” (Clifford, 2002, p. 210). Ao discutir a questão da

autoridade etnográfica, Clifford propõe um projeto de etnografia que seja resultado de uma

negociação construtiva entre sujeitos conscientes e politicamente significativos, sendo uma

produção colaborativa.

Esse debate vai ao encontro das interpelações feministas à epistemologia abrindo espaço

para a constituição de uma abordagem etnográfica feminista (Carmen Gregorio Gil, 2006). A

etnografia feminista parte da ideia de que a pesquisa e a construção teórica não são esferas

neutras, universais e abstratas, mas estão situadas na contingência da própria experiência e

como tal, reconhece a importância do lócus de enunciação do pesquisador desde seu próprio

corpo generificado e racializado, das suas emoções e sua subjetividade.


64

PARA desenvolver uma etnografia feminista, tomamos alguns princípios:

 a suposição de que todas as relações sociais são de gênero e raça, o que sinifica

que essas categorias são essenciais para entender os lugares sociais dos sujeitos;

 a compreensão de que os comportamentos associados aos gêneros são

construções sociais;

 Os modelos explicativos organizados e coerentes de equilíbrio social são postos

de lado em favor de uma visão da vida social entendida como eventualmente

desordenada, incompleta, fragmentada. Para tanto, pesquisadores feministas

buscam uma forma de etnografia que permita a empatia, a subjetividade e o

diálogo, a fim de explorar melhor os mundos interiores das mulheres, até o ponto

de ajudá-las a expressar (e assim superar) a sua opressão;

 A etnografia é vista como maneira de ampliar a visibilidade de pessoas e sujeitos

coletivos historicamente relegadas às margens da sociedade e da análise social

(Michael Angrosino, 2009).

O aporte da Psicologia Social Discursiva

De acordo com as perguntas e objetivos da pesquisa, utilizo como aporte teórico-

metodológico para a pesquisa e análises a Psicologia Social Discursiva. Segundo Antar

Martínez-Guzmán, Antonio Stecher e Lupicinio Íñiguez-Rueda (2016) a Psicologia Social

Discursiva coloca no centro da investigação a ação social, o modo como as pessoas interagem

umas com as outras cotidianamentee constroem, através de diferentes práticas discursivas, o

mundo social e subjetivo.

O conceito de práticas discursivas é central para esta perpesctiva. Ele deriva do trabalho

de Mikhail Bakhtin (1929/1995) para quem a linguagem é, necessariamente, uma prática social,
65

uma vez que os sentidos são construídos a partir da interação entre duas ou mais vozes. Assim,

as práticas discursivas dizem respeito às formas nas quais as pessoas produzem sentidos e se

posicionam em relações sociais cotidianas (Mary Jane Spink & Benedito Medrado, 2000).

De acordo com Spink e Medrado (2000), as práticas discursivas têm como elementos

constitutivos: a dinâmica, que diz respeito à interação dialógica entre os enunciados; os

enunciados orientados por vozes, ou seja, as expressões em formas de palavras ou sentenças a

partir das quais a interação acontece em uma conversação; as vozes que compreendem os

interlocutores, estejam eles presentes ou sejam referenciados; e os conteúdos, que são os

repertórios interpretativos.

Michael Billig (2008) argumenta que todo diálogo ou comunicação é uma performarce,

ou ainda, um jogo no qual as ações e os posicionamentos entre os interlocutores estão em

constante movimento e que manejam os enunciados criando sentidos de acordo os repertórios

interpretativos que os sujeitos possuem. Com tais ferramentas, buscarei compreender como

essas ações e discursos se constituem mutuamente na esfera de gênero e agroecologia.

Movimentos da pesquisa

Considerando o aportes teórico-metodológicos apresentados anteriormente, entendo que

para problematizar relações cristalizadas de gênero, trabalho, modelos produtivos e organização

coletiva, respeitando o conhecimento e a singularidade dos sujeitos, é necessário antes de tudo

estabelecer um posicionamento ético e político no fazer da pesquisa e da escrita. Assim,

apostamos que, a partir de tais referenciais teórico e metodológico, podemos evidenciar não só

as dimensões psicossociais que envolvem o contexto estudado, mas principalmente os

processos de subjetivação que vão tomando forma no decorrer da pesquisa, a partir de uma

configuração de diversos elementos, forças ou linhas que atuam simultaneamente (Kastrup &
66

Barros, 2010).

Propõe-se na presente pesquisa um desenho metodológico que inclui: (1) análise de

discurso de documentos institucionais e dos movimentos sociais da agroecologia; (2)

observação participante em encontros, conversas informais, reuniões, eventos, mobilizações

políticas; (3) entrevistas semi-estruturadas com mulheres militantes. Na Tabela 1 apresento uma

sistematização dos objetivos, etapas e instrumentos utilizadosde maneira a facilitar o

entendimento por parte do leitor.

Tabela 1

Objetivos e ferramentas

Objetivos Ferramentas

Refletir sobre a relação entre feminismos e Observação participante em feiras, reuniões e


agroecologia na cidade do Rio de Janeiro, a encontros locais;
partir da emergência das mulheres como Entrevistas semi-estruturadas com militantes;
sujeitas políticas no movimento Registros fotográficos.
agroecológico.

Observação participante em eventos locais e


Identificar os discursos em torno dos
nacionais;
conceitos de feminismos e gênero dentro do
Análise dos documentos;
campo da agroecologia
Registros fotográficos.

Analisar as contribuições que vêm sendo


Observação participante em eventos, encontros,
construídas pelas mulheres no movimento da
feiras e no cotidiano das mulheres.
agroecologia .

Identificar os efeitos da participação política Observação participante dos eventos, feiras,


na vida das mulheres. encontros e cotidiano das mulheres;
Entrevistas semi-estruturadas.
67

A seguir, detalho os mo(vi)mentos com os quais o estudo foi construído. Como

mencionado anteriormente, esses movimentos não seguiram uma lógica de etapas, mas foram

se desenrolando a partir das demandas do campo e da pesquisa.

1º Mo(vi)mento: Pesquisa documental

Entendendo que a agroecologia mobiliza atores e sujeitos coletivos diversos que manejam

diferentes pautas e concepções, objetivamos identificar e entender, neste mo(vi)mento, os

sentidos e as matrizes dos discursos em torno dos conceitos de feminismos e gênero dentro da

agroecologia a partir de documentos políticos e institucionais que representam muitas das

diretrizes, pautas, debates e conflitos que atravessam esse campo.

Para tanto, partimos de uma análise discursiva inspirados no trabalho de Peter Spink

(2000) sobre a análise de práticas discursivas em documentos de domínio público. Buscamos,

portanto, identificar os repertórios interpretativos que surgem nos documentos estudados, para

entender os sentidos que vão sendo construídos pelos atores/atrizes e sujeitos coletivos às

questões que atravessam o campo de interesse da presente tese.

Os documentos de domínio público são entendidos aqui como resultados da discussão

e organização entre atores sociais, são produtos da interação com um outro desconhecido,

porém significativo e frequentemente coletivo, refletindo, de tal forma, as práticas discursivas

(Peter Spink, 2000). Desse modo, através dos seus documentos, os movimentos sociais e

instituições produzem discursos, operados através da linguagem escrita ou imagética, que

expressam sentidos e racionalidades que constroem e são construídos nas relações sociais

cotidianas.

Apresento a seguir os instrumentos, os documentos escolhidos, critérios de escolha, além

de descrição de como tal material foi organizado e analisado.


68

Documentos

Os documentos analisados foram eleitos a partir de três eixos de acordo com os

diferentes sujeitos coletivos/atores que os construíram: a) documentos institucionais publicados

por organismos do Estado que pautam a Agroecologia e políticas para mulheres no âmbito

municipal, estadual e também nacional, no sentido de compreender discursos que orientam a

compreensão de política para mulheres e agroecologia nessas diferentes instâncias; b)

documentos relacionados aos movimentos sociais e redes ligadas a Articulação Nacional de

Agroecologia (ANA) – articulação onde se reúnem os principais movimentos e coletivos que

pautam a agroecologia no país; e c) relatórios da Organização das Nações Unidas para a

Alimentação e a Agricultura (FAO), buscando entender, a partir das diferentes posições dos

sujeitos dos discursos, quais narrativas acerca da relação entre gênero e agroecologia vêm sendo

construídas a partir do Estado, dos movimentos sociais e das agências reguladoras

internacionais, respectivamente. Na tabela abaixo, apresentamos quais documentos foram

selecionados:
69

Tabela 2

Documentos de referência

Documentos de referência
Movimentos Sociais
Carta Política do I ENA (Rio, 2002)
Carta Política do II ENA (Recife, 2006)
Carta política III ENA (Juazeiro, 2014)
Carta das Mulheres III ENA (Juazeiro, 2014)
Carta política do IV ENA (Belo Horizonte, 2018)
Políticas
Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (2013)
Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (2013-2015)
Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (2016-2019)
Organismos internacionais
FAO’s programme for gender equality in agriculture and rural development (2016)
Women in agriculture: Closing the gender gap for development (2011)

À continuação, explicito os critérios de escolha e considerações sobre o material com o

qual desenvolvemos nossa análise.

a) Referências a gênero, mulheres e feminismos na Política e no Plano Nacional de

Agroecologia e Produção Orgânica

A Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Pnapo) foi instituída no ano

de 2012 com o decreto nº 7.794, tendo como objetivo de integrar, articular e adequar políticas,

programas e ações indutoras da transição agroecológica e da produção orgânica e de base

agroecológica, contribuindo para o desenvolvimento sustentável e a qualidade de vida da

população, por meio do uso sustentável dos recursos naturais e da oferta e consumo de

alimentos saudáveis.
70

A Pnapo é colocada em prática através de uma série de instrumentos como o crédito

rural, medidas fiscais e tributárias, programas de assistência técnica especializada, e outras

estratégias que são organizadas através dos Planos Nacionais de Agroecologia e Produção

Orgânica (Planapo). Os Planapos são elaborados pela Câmara Interministerial de Agroecologia

e Produção Orgânica (Ciapo) que é composta de forma paritária por membros do poder

executivo federal e por representantes de entidades da sociedade civil, sendo o 1º lançado no

ano de 2013, para o biênio 2013 – 2015 e o 2º tendo sido lançado no ano de 2016 para o triênio

2016-2019.

A Pnapo (2013) e o Planapo (Ciapo, 2013, 2016) são, portanto, frutos do diálogo entre

o Estado, o terceiro setor, agências de fomento e os movimentos sociais que vêm pautando o

desenvolvimento sustentável no país. A partir da instituição da Pnapo, vários estados iniciaram

discussões em torno do desenvolvimento da agroecologia em seus territórios, entretanto, apenas

três estados possuem políticas específicas de desenvolvimento agroecológico, tendo políticas

estaduais de agroecologia e produção orgânica (Peapo): o Rio Grande do Sul, com a instituição

da Peapo em 2014; o Mato Grosso com a instituição da Peapo em 2012 e Minas Gerais com a

implementação da Peapo em 2014. Ao mesmo tempo, tramitam em alguns estados como Bahia,

Rio de Janeiro e São Paulo, projetos de lei visando a criação dessas políticas e a regulamentação

da produção agroecológica.

Dessa forma, optamos por analisar as referências à gênero, mulheres e feminismo na

Pnapo, nas Peapos e no Planapo e os programas que o integra, como o Programa de Assistência

Técnica e Extensão Rural - Ater e o Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar -

Pronaf mulher. Destacamos ainda que, tendo identificado a ausência de marcos legais sobre

Agricultura Urbana -AU (incluindo a legislação de relevância casual, setorial e específica da

AU) e de políticas de incentivo a AU, tive de me restringir aos marcos da agroecologia em

sentido mais amplo.


71

b) Referências a gênero, mulheres e feminismos na ANA

A Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) é um espaço de articulação e

convergência entre movimentos, redes e organizações da sociedade civil engajadas em

experiências concretas de promoção da agroecologia, de fortalecimento da produção familiar e

de construção de alternativas sustentáveis de desenvolvimento rural. Atualmente a ANA

articula vinte e três redes estaduais e regionais, que reúnem centenas de grupos, associações e

organizações não governamentais em todo o país, além de quinze movimentos sociais de

abrangência nacional.

A ANA organiza a sua ação em três frentes. A primeira delas consiste em articular

iniciativas realizadas pelas organizações que a compõem em seus programas de

desenvolvimento local/territorial, promovendo o intercâmbio entre elas. A segunda frente de

ação se refere ao trabalho de incidência sobre as políticas públicas. Através da prática da troca

de experiências e de debates, são identificados os desafios para o desenvolvimento da

agroecologia e elaboradas propostas para a criação e o aprimoramento de políticas públicas que

promovam o aumento de escala da agroecologia nos territórios. Esse esforço tem fortalecido a

ANA como ator político representante do campo agroecológico, legitimado para propor e

negociar o aprimoramento de políticas junto ao governo. A terceira frente de ação da ANA se

refere à comunicação com a sociedade, que busca dar visibilidade à realidade da agricultura

familiar e às propostas defendidas pelo campo agroecológico.

Entre os temas trabalhados pela ANA estão: a construção do conhecimento

agroecológico, notadamente nos campos da Ater, da Educação e da Pesquisa; a conservação e

o uso sustentável da biodiversidade, com foco prioritário nas sementes locais e nos produtos do

extrativismo; o protagonismo das mulheres; o abastecimento e a construção social de mercados;

a soberania e segurança alimentar; a reforma agrária e os direitos territoriais de povos e


72

comunidades tradicionais; o acesso e a gestão das águas; a agricultura urbana e periurbana; a

questão dos agrotóxicos e dos transgênicos; as normas sanitárias para produtos da agricultura

familiar; o crédito para financiamento da agricultura familiar; e a comunicação.

Note-se ainda que, nos anos recentes, a ANA tem estabelecido e estreitado relações de

parceria com outras redes e fóruns que atuam em áreas com forte ligação com a agroecologia,

incluindo a saúde, a soberania e segurança alimentar e nutricional (SSAN), a economia

solidária, a justiça ambiental, o direito à cidade e o feminismo. Essa aproximação tem sido

eficaz na adesão das redes parceiras às propostas e bandeiras do campo agroecológico,

fortalecendo a proposta agroecológica no cenário político brasileiro.

Como forma de dar conta dos objetivos desse estudo, sistematizamos e organizamos

essas redes de acordo com a atuação na área da agroecologia e sobre a questão de gênero. Para

a análise dos discursos institucionais, foram escolhidas as redes e organizações que: a) possuem

a agroecologia como uma de duas linhas de atuação prioritária e possuem algum grupo de

trabalho, setor ou coordenação de gênero ou de mulheres em sua composição; b) tem o

feminismo como atuação prioritária, mas que trabalham com agroecologia, como mostra a

tabela 3.

Tabela 3

Redes que compõem a ANA

Trabalha
Rede GT Gênero diretamente com
agroecologia?
Associação Brasileira de Agroecologia (ABA)
GT gênero Sim
Articulação de Agroecologia do Rio de Janeiro
- Sim
(AARJ)
Associação Brasileira de Saúde Coletiva
GT gênero e saúde Não
(ABRASCO)
73

ANA AMAZÔNIA – Articulação Nacional de


Agroecologia na Amazônia - Sim

Articulação Paulista de Agroecologia (APA) - Sim


Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA) - Sim
Coletivo Nacional de Agricultura Urbana
Plenária de mulheres Sim
(CNAU)
Articulação dos Povos e Organizações
- Não
Indígenas do NE, MG e ES (APOINME )
Coordenação Nacional de Articulação das
- Não
Comunidades Quilombolas – CONAQ
Conselho Nacional das Populações
Extrativistas - CNS - Não

Confederação Nacional dos Trabalhadores na Secretária de Mulheres


Sim
Agricultura – CONTAG Trabalhadoras Rurais
Comissão Pastoral da Terra – CPT - Sim
Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança
GT gênero Sim
Alimentar e Nutriciomal- FBSSAN
Fórum Brasileiro de Economia Solidária -
GT mulheres Sim
FBES
Federação de Esudantes de Agronomia do
- Não
Brasil – FEAB
Federação Nacional do Trabalhadores e
Coordenação de
Trabalhadoras na Agricultura Familiar – Sim
Mulheres
FETRAF
Grupo de Intercâmbio em Agricultura
- Não
Sustentável do Mato Grosso – GIAS
Fórum Cearense Pela Vida no Semiárido –
- Sim
FCVSA
Marcha Mundial de Mulheres – MMM Org. feminista Não
Movimento Interestadual das Quebradeiras de
Org. feminista Sim
Coco Babaçu – MIQCB
Movimento da Mulher Trabalhadora Rural do
Org. feminista Sim
Nordeste
Movimento dos Pequenos Agricultores – MPA Escola feminista Sim
Rede Cerrado - Sim
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
GT de mulheres Sim
Terra – MST
Rede Brasileira de Justiça Ambiental – RBJA - Não
Rede de Mulheres Empreendedoras Rurais da
Org. feminista Sim
Amazônia – RMERA
Rede de Agroecologia Ecovida - Não
74

Levando em consideração os critérios mencionados anteriormente restaram as seguintes

organizações: Associação Brasileira de Agroecologia - ABA;

Coletivo Nacional de Agricultura Urbana - CNAU; Confederação Nacional dos Trabalhadores

na Agricultura – CONTAG; Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e

Nutricional - FBSSAN; Fórum Brasileiro de Economia Solidária - FBES; Federação Nacional

do Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar – FETRAF; Marcha Mundial de

Mulheres – MMM; Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu – MIQCB;

Movimento da Mulher Trabalhadora Rural do Nordeste; Movimento dos Pequenos Agricultores

– MPA; Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST;

Rede de Mulheres Empreendedoras Rurais da Amazônia – RMERA.

O critério de seleção dos documentos foi a existência de referência às palavras “gênero”,

“feminismo(s)” e “mulher(es)” e, no caso dos documentos de políticas para as mulheres ou de

movimentos feministas, referências à palavra “agroecologia”. Ao todo foram encontrados 203

documentos. A maior parte foi encontrada via internet. Também entramos em contato com

lideranças dos movimentos sociais que nos disponibilizaram documentos que não estavam on-

line. Diante do grande volume de documentos encontrados, além de folders, livros, cartilhas e

outros materiais adquiridos a partir da participação em encontros e eventos de agroecologia

entre os anos de 2015 e 2018, selecionamos os documentos que consideramos mais

representativos para refletir sobre as questões a serem trabalhadas no presente estudo.

Dessa forma, elegemos para análise as cartas políticas dos Encontros Nacionais de

Agroecologia (ENAs), as cartas políticas e declarações construídas pelo GT de Mulheres da

ANA, documentos produzidos para a Marcha das Margaridas. A escolha desses documentos

específicos se deu pela relevância que esses movimentos têm no debate e no fortalecimento das

mulheres na agroecologia, sendo esse um eixo prioritário de ação e discussão em todos eles.
75

Também se tratam de movimentos e organizações que representam uma confluência outros

movimentos, o que nos ajuda a ter um panorama geral dos debates que vêm sendo construídos.

c) Referências a gênero, mulheres e feminismos na Organização das Nações Unidas para a

Alimentação e a Agricultura

A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (Food and

Agriculture Organization – FAO) é uma agência das Nações Unidas que tem como objetivo

erradicação da fome no mundo através de ações de liderança e cooperação internacional12. Tem

grande importância no que se refere às diretrizes e políticas voltadas aos sistemas

agroalimentares em todo o mundo, particularmente nos chamados países em desenvolvimento.

Os programas da FAO para alimentação e agricultura dialogam diretamente com instituições

internacionais de fomento e as organizações de Bretton Woods – Banco Mundial e Fundo

Monetário Internacional (FMI) – que pautam os modelos de desenvolvimento globalmente.

Dessa forma, não só a FAO influencia as políticas dos países membros da ONU, como também

define eixos de ações e financiamento que impactam projetos locais nos territórios

desenvolvidos por ONGs, entidades da sociedade civil e movimentos sociais organizados.

Tomamos os documentos produzidos pela FAO para a presente análise como representação

dos discursos construídos no âmbito dos organismos internacionais, devido à posição

estratégica e a importância dessa agência sobre a agenda do desenvolvimento rural e agricultura,

no campo e nas cidades. Vamos nos ater, no presente estudo, aos documentos de referência da

Campanha Mulheres Rurais realizada desde o ano de 2015 pela organização e da qual o Brasil

participa. Os documentos que balizam tal campanha são centrais para entender os programas,

12
“The Food and Agriculture Organization (FAO) is specialized agency of the United Nations that leads
international efforts to defeat hunger”. Disponível em: http://www.fao.org/about/.
76

ações e políticas voltadas para as mulheres na agricultora, pois estabelecem as bases para essas

discussões em nível regional na América Latina.

A partir do levantamento de todo o material e da classificação inicial de acordo com as

instancias onde foram produzidos, quais sejam, movimentos sociais, governo e organismos

internacionais, foi feita uma leitura extensa de cada documento identificando todo o conteúdo

que fazia referência às palavras (a) gênero, (b) mulheres, (c) sexualidade, (d) feminismo e/ou

movimentos feministas.

Feita a identificação de tais referentes, foi realizada uma nova leitura buscando

identificar a partir dos enunciados, as vozes e repertórios argumentativos encontrados ao longo

dos textos em torno de tais termos. Para nos auxiliar com a sistematização dos dados, fizemos

uso do software de tratamento de dados qualitativos QDA Miner versão 5.0.26.

Considerando os objetivos e perguntas de pesquisa, foquei a análise nos repertórios

interpretativos e nos sentidos construídos no movimento a partir da categoria gênero e

feminismos. Utilizei da lógica da inferência adbutiva para relacionar e identificar em tais

repertórios as matrizes discursivas mais amplas que atravessam o campo da agroecologia,

entendendo essas matrizes como as linhas teóricas e as racionalidades que subjazem os

discursos. Para tanto, foram mobilizados os conteúdos prévios sobre as linhas teóricas e

argumentativas comumente referenciados nesse campo.

Partindo de tais referenciais, criamos um quadro de categorização para nos auxilar nas

análises (ver Apêndice 2) considerando (1) as vozes em diálogo no referido documento, (2) os

sentidos mobilizados, (3) os repertórios interpretativos entendidos enquanto analisadores dos

textos, e (4) as matrizes discursivas que se associam ao repertório utilizado.

Utilizando o software QDA Miner, tendo estabelecido previamente as categorias que me

interessavam e as grandes matrizes teóricas que foram identificadas em uma leitura prévia dos
77

documentos, pude agregar e construir um mapa dos enunciados, conforme será apresentado no

capítulo 4 da tese.

2º Mo(vi)mento: aproximação das redes, eventos e encontros da Agroecologia

Com o objetivo de entender como os diferentes atores e movimentos sociais se

organizam em torno da bandeira da agroecologia e da AU, realizei observação participante junto

ao grupo de mulheres da Zona Oeste do Rio de Janeiro em feiras, conversas informais e

reuniões. Também participei de eventos, encontros, congressos e movimentações do

movimento feminista, agroecológico e da AU, além de participar de conferências e

movimentações institucionais que pautavam esses temas. As observações em eventos públicos

nacionais da agroecologia foram realizadas entre agosto de 2015 e junho de 2018, enquanto as

observações relativas aos coletivos de mulheres no Rio de Janeiro foram realizadas entre junho

de 2016 e março de 2018.

A observação participante busca captar o sentido das ocorrências e gestos específicos

dos acontecimentos para situar esses significados em contextos mais amplos. Acontecimentos

singulares, assim, adquirem uma significação mais profunda ou mais geral (Cliffford, 1999, p.

33).

As observações, impressões, diálogos cotidianos foram materiais nos quais me debrucei

para construir minha interpretação do campo-tema estudado. Destaco também os eventos

públicos dos quais participei e que apresento detalhamento na Tabela 4. Esses eventos foram

compreendidos como momentos etnográficos, foram registrados em diário de campo e,

eventualmente, em gravações de vídeo ou áudio e fotografias. Também houve a participação

em inúmeros encontros nos quais não tive o objetivo específico de realizar uma observação

mais sistemática não havendo um registro preciso. Tampouco foram registradas reuniões
78

internas que tratavam de determinados temas que não poderiam ser anotados ou gravados por

questões de segurança interna do grupo, especificamente no caso das observações realizadas

juntos aos coletivos de mulheres da Zona Oeste do Rio.

Tabela 4

Observação participante em eventos e atividades

Evento Organização Local Data

Estádio Mané
11 e
Marcha das Margaridas CONTAG Garrincha, Brasília
12/08/2015
– DF
CNAU, ANA UERJ, Rio de 21 a
I ENAU
e FBSSAN Janeiro – RJ 24/10/2015
Seminário “Corpo,
FEUC, Campo
conhecimento e conflitos: 16 e
Instituto PACS Grande, Rio de
resistências feministas e 17/06/2016
Janeiro – RJ
territórios em disputa”
Roda de conversa “Mulheres Amavag, Vargem
em defesa da vida e pela CPMZO Grande, Rio de 13/08/2016
agroecologia” Janeiro – RJ
Escola Estadual
Teófilo Moreira da
III Encontro para o Plano
APP Vargens Costa, Vargem 03/09/2016
Popular das Vargens
Grande, Rio de
Janeiro – RJ.
Associação de
Militiva Moradores do 30 –
Oficina “Morar e Plantar” Coletiva Vila Taboinhas, 22/01/2017
Hortelã Rio de Janeiro –
RJ.
Entrada BRT Santa
Ato das mulheres da Zona
CPMZO Cruz, Rio de 11/03/2017
Oeste
Janeiro – RJ.
Espaço Raízes do
Encontro da Roda de Brasil, Santa 15 e
Rede CAU
Mulheres da Rede Cau Teresa, Rio de 16/11/2017
Janeiro – RJ.
Espaço Mulheres
Militiva/ de Pedra, Pedra de
Encontro Final da Militiva 28/04/2018
Instituto PACS Guaratiba, Rio de
Janeiro – RJ.
79

Parque Municipal,
Encontro Nacional de 30/05 a
ANA Belo Horizonte -
Agroecologia 03/06/218
MG.

A análise desta etapa foi feita através da leitura sistemática das anotações em diário de

campo, registros fotográficos e gravações à luz do referencial teórico feminista pós-colonial e

da literatura sobre gênero e agroecologia no Brasil. O material derivado da observação

participante contribuiu para ampliar o entendimento das categorias que foram construídas ao

longo dos outros momentos da pesquisa além de nos ajudarem na caracterização do campo-

tema em questão.

3º Mo(vi)mento: entrevistas com as militantes

Segundo Silvia Tedesco, Christian Sade e Luciana Caliman (2014), a entrevista deve

considerar a inseparabilidade dos dois planos da experiência: a experiência de vida e a

experiência pré-refletida ou ontológica. Buscando acompanhar os processos de subjetivação em

curso, parte-se de um ethos da entrevista que não tem por objetivo central a coleta de dados,

mas, como Deleuze e Parnet (1998) nos colocam, como “traçado de um devir” que corresponde

à processualidade da experiência nas suas dimensões de formas e de forças a partir da

construção de um plano comum que se faz no diálogo - momento em que se efetua a intervenção

mútua. Desse modo, “a entrevista busca proliferar a questão mais do que obter a informação”.

(Tedesco, Sade, & Caliman, 2014, p. 110).

Busco com tal ferramenta apreender a rede de significados que as militantes atribuem

às suas experiências em suas narrativas. Segundo Jerome Bruner (1991), organizamos nossa

experiência e nossa memória na forma de narrativas: histórias, desculpas, mitos, razões para

fazer e para não fazer, e assim em diante. As narrativas só podem ser compreendidas se
80

levarmos em conta o contexto social onde o sujeito está inserido. A partir desse trabalho

investigativo em relação à realidade do sujeito é que podemos reconhecer a sociedade e as

dinâmicas históricas, econômicas, políticas, etc., em curso naquele território. As narrativas são,

portanto, formas de apreender as articulações entre a história individual e a história coletiva,

uma ponte entre a trajetória individual e a trajetória social (Silva-Pacheco, Barros, Nogueira &,

Barros, 2007).

Na relação de cumplicidade entre pesquisadores e sujeitos pesquisados encontra-se a

possibilidade daquele que narra sua história experimentar uma ressignificação de seu percurso

e dar continuação à construção de outros sentidos e interpretações frente à sua própria narrativa

(Silva-Pacheco et al., 2007). A ideia é, ao fazer uso dessa ferramenta, suscitar acontecimentos

e acompanhar processos de singularização no território, entendendo tais processos como algo

que “pode conduzir à afirmação de valores num registro particular, independentemente das

escalas de valor que nos cercam e espreitam por todos os lados” (Guattari & Rolnik, 1986, p.

47).

As entrevistas semiestruturadas foram organizadas em quatro partes. Na primeira, as

entrevistadas foram convidadas a construir uma narrativa sobre si mesma, sua história de vida

e como iniciou seu envolvimento nos movimentos sociais e no movimento de agroecologia. Na

segunda parte organizamos as questões em três eixos temáticos: (1) organização familiar; (2)

trabalho e inserção na agroecologia; e (3) participação política. Na T mabela 5 apresento o

roteiro de entrevista utilizado.

Tabela 5

Roteiro de entrevista semiestruturada

PARTE I – PERFIL DAS ENTREVISTADAS

Data de nascimento: _____________


81

Escolaridade:__________________________________
Atividade principal atual: _________________________
Local de trabalho: _________________________________
Participação em movimentos sociais:_______________________

PARTE II – ROTEIRO SEMI-ESTRUTURADO


Perguntas disparadoras:
 Há tempo você é agricultora? Conte como foi seu encontro com o modo de produção
agroecológico.
 Quais motivos te levaram a produzir dessa forma?
 Quais as diferentes que você sente na sua vida e na de sua família a partir do contato com a
agroecologia?

BLOCO I – ORGANIZAÇÃO FAMILIAR


 Como é sua vida em família?
 Você participa da tomada de decisões de assuntos que envolvem sua família? Como é sua
participação?
 Que tarefas são de sua responsabilidade na família? Você recebe alguma ajuda para realizar
suas tarefas em casa? De quem e como é essa ajuda?
 Você acha que ao produzir a partir da agroecologia, mudou alguma coisa em relação às suas
tarefas ou ao seu trabalho? Se sim, a que você atribui essa mudança? Se não, por quê?

BLOCO II – MODOS DE INSERÇÃO NO TRABALHO E AGRICULTURA FAMILIAR


 Você participa do trabalho na agricultura? Como é sua participação?
 Você acha que trabalho de homens e mulheres é diferente na agricultura?
 Qual a importância que o trabalho na agroecologia tem para sua vida?
 Você realiza outro tipo de trabalho ou atividade além da agricultura? Qual?

BLOCO III – PARTICIPAÇÃO POLÍTICA


 Você participou ou participa de encontros ou cursos de formação política? Como foi sua
participação? O que te chamou a atenção nesses eventos?
 Você participa de algum movimento social, associação/cooperativa ou entidade de luta?
Como é sua participação?
 O que você acha da participação das mulheres nos movimentos sociais,
associações/cooperativa e entidades de luta?
 O que mudou em sua vida depois que começou a participar de movimento social,
associação/cooperativa ou entidade de luta?
 Quais as dificuldades que você enfrenta em participar de movimentos sociais,
associações/cooperativa e entidades de luta?
 Você se considera feminista? O que você entende por feminismo?

Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com 7 (sete) militantes do movimento

agroecológico e do movimento popular de mulheres da Zona Oeste. A pesquisa foi pensada

inicialmente para envolver apenas as mulheres que se identificassem enquanto agricultoras,


82

entretanto ao longo dos meses de pesquisa de campo, percebi que o envolvimento dessas

mulheres na agroecologia ia muito além do trabalho agrícola, envolvendo também as esferas da

gastronomia, do artesanato, da assistência técnica e, claro, da militância. As entrevistas foram

realizadas entre setembro de 2016 e julho de 2018.

O critério de escolha das militantes foi o protagonismo de cada uma no território e a

disponibilidade para participação no estudo. Lembro ainda que duas entrevistas foram retiradas

das análises diante do pedido explícito das participantes por motivos de segurança devido às

mudanças na conjuntura política ocorridas desde o assassinato de Marielle Franco e o

fortalecimento de forças paramilitares na região.

Na Tabela 6 apresento a lista da mulheres entrevistadas. Os nomes da maior parte das

entrevistadas foi modificado para preservar suas identidades, entretanto, algumas das lideranças

pediram que seus nomes originais fossem restituídos no texto, como forma de dar visibilidade

a seus respectivos movimentos. As minhas interlocutoras foram informadas previamente sobre

a realização desta investigação que seguiu as normas éticas para pesquisas em Ciências Sociais

e Humanas estabelecidas pelo Sistema CEP/CONEP, resolução nº 510/16. As entrevistas foram

realizadas mediante a leitura conjunta do convite para participar da pesquisa, conforme

Apêndice A, onde explico os objetivos do estudo, a metodologia utilizada e esclareço possíveis

dúvidas das participantes. As mulheres que aceitaram participar do estudo assinaram um Termo

de Consentimento Livre e Esclarecido de Pesquisa (TCLE), conforme consta no Apêndice B.

As entrevistas foram gravadas com a autorização das participantes e foram posteriormente

transcritas pela pesquisadora.


83

Tabela 6

Lista de participantes entrevistadas

Nome Idade Ocupação Grupo

CPMZO/Militiva/ Feira da Roça de VG/


Margarida 41 anos Artesã
Rede CAU

Giovanna 38 anos Artesã Militiva/Coletiva Hortelã/ APP Vargens

CPMZO/ Coletiva Hortelã/ Militiva/ APP


Agricultora
Silvia 52 anos Vargens/ Agrovargem/ Quilombo
Pedagoga
CafundáAstrogilda/ Rede Ecológica

CPMZO/ Militiva/ Agrovargem/ Quilombo


Agricultora
Mara 55 anos do Camorim/ Feira da Roça de VG/ Rede
Artesã
CAU

Maria 68 anos Agricultora Coletiva Hortelã/Feira da Roça de VG

Fátima 40 anos Agricultora CPMZO/ Quilombo Bosque das Caboclas

Agitadora Coletiva Hortelã/ Militiva/ AARJ/ Rede


Ana 35 anos
comunitária CAU/ GT de mulheres da ANA

Após uma leitura inicial das entrevistas e considerando os eixos-temáticos do roteiro

utilizado, construímos com o auxílio do software de tratamento de dados qualitativos QDA

Miner versão 5.0.26 um quadro de categorias que foram aprofundados interpretados à luz do

referencial teórico dos estudos sobre subjetivação e gênero a partir do arcabouço da

Epistemologia Feminista e Pós-colonial e da Psicologia Social Discursiva A categorização será

apresentada no capítulo de análise das entrevistas.


84

Capítulo 3: Feminismos e agroecologia: discursos, políticas e movimentações

No presente capítulo tenho como objetivo mapear os discursos que permeiam os

conceitos de gênero, mulheres e feminismos no cenário da agroecologia. Para tanto, partirei dos

resultados e análises dos documentos que fazem referencia a tais conceitos. Esta seção foi

organizada em duas partes. Na primeira, apresento os resultados gerais da análise e as principais

categorias com as quais irei trabalhar. Na segunda, exponho o primeiro eixo de discussão (1)

Organismos internacionais: Gênero, agroecologia e o debate da ONU onde discuto o histórico

de aproximação desses organismos com o debate da agroecologia e meio ambiente e apresento

os principais sentidos sobre a participação das mulheres na agroecologia e como tais discursos

impactam na efetivação de projetos em organizações não governamentais; no segundo eixo (2)

Movimentos e construção das políticas de agroecologia e gênero onde abordo os discursos dos

movimentos sociais envolvidos na ANA e em consonância com a política e os programas de

agroecologia no Brasil e as matrizes narrativas que são mobilizadas.

Segundo Carol Adamns (2012), as articulações entre o movimento feminista e o

movimento ecológico tem como marco inicial o período que é conhecido como primeira onda

do feminismo13 com as discussões sobre direito dos animais e da natureza dentro do movimento

sufragista no final do século XIX. Entretanto, como argumentam Maria Mies e Vandana Shiva

(1993), as mulheres sempre estiveram à frente das mobilizações contra a destruição ambiental,

sendo impossível apontar um marco temporal preciso. Para as autoras, ao examinar diferentes

13
Não utilizamos nesta tese a classificação dos feminismos em ondas, por considerar que essa narrativa apaga
outros feminismos construídos fora do Ocidente, da academia e por mulheres não-brancas. No entanto, algumas
vezes faremos referência às ondas para marcar discursos, movimentos e períodos históricos específicos.
85

lutas ecológicas históricas em defesa dos territórios em todo o mundo, encontramos à frente

mulheres organizadas criando laços de solidariedade com outras mulheres e povos –

especialmente nas lutas construídas no Sul global por povos originários, comunidades

tradicionais e em contextos não-urbanos – mesmo que muitas vezes não ocupem o papel de

lideranças ou tenham a mesma visibilidade externa em relação aos homens nos movimentos.

Por isso, é difícil delimitar tais marcos, onde se dá início a atuação das mulheres nas lutas

sociais, especificamente no movimento ambiental.

É importante trazer à tona essas críticas e reflexões para não recairmos no perigo de

deslegitimar importantes processos de luta que muitas vezes são colocados à margem da história

por serem construídos por pessoas em posição de subalternidade. No presente tópico

pretendemos construir uma narrativa que parte de outros marcos históricos e temporais e de

outras ideias e concepções de luta para pensar os discursos, políticas e movimentações das

mulheres dentro da agroecologia, a partir do reconhecimento e da sua emergência enquanto

sujeitas políticas nesse cenário, entendendo que uma das principais questões colocadas pelas

mulheres do movimento agroecológico é justamente o seu protagonismo ancestral não

reconhecido no que se refere às práticas dentro do arcabouço da agroecologia.

Com a análise dos documentos elaborados pela Articulação Nacional de Agroecologia,

a política e os planos nacionais de produção orgânica e documentos produzidos pela FAO,

construiu-se uma sistematização dos discursos produzidos acerca da relação entre gênero e

agroecologia para entender quais narrativas e ações então sendo construídas nesse campo.

Diversas correntes teórico-políticas vão chamar atenção para o impacto do modelo de

desenvolvimento capitalista em curso na vida das mulheres e para a inter-relação entre o

fenômeno da degradação do meio ambiente. Na esfera da agroecologia, enquanto prática,

movimento e modelo político, foram identificadas três teorias centrais que vão ser reivindicadas

de formas diversas, de acordo com seus interlocutores e dos espaços de debates. São elas: o
86

feminismo liberal – presente em boa parte dos documentos produzidos por agências e

programas internacionais de fomento, políticas de Estado e o mercado capitalista – o feminismo

marxista e o ecofeminismo – linhas teóricas usadas de forma recorrente por parte dos

movimentos sociais organizados.

É importante ressaltar que, muitas vezes, essas teorias não são diretamente referenciadas

nos discursos, entretanto elas surgem de forma mais ou menos explícita a partir do uso de

determinados conceitos, expressões e leituras sobre questões específicas que podem ser

identificadas dentro dessas linhas discursivas. Em outros momentos vemos o uso de conceitos

que remetem a linhas teóricas que dialogam entre si, e outras onde existem ainda contradições

ou questões não debatidas.

Com ajuda do software QDA Miner e a leitura extensiva dos documentos, foram gerados

três códigos que dizem respeito às matrizes discursivas mais gerais que conformam os

documentos e subcódigos que foram analizados como sentidos mobilizados nos documentos.

Os sentidos também foram classificados de acordo a esfera onde foram produzidos, quais sejam,

movimentos sociais, políticas institucionais e organismos internacionais.

A Tabela 7 mostra os eixos temáticos, os códigos a eles associados e uma breve

descrição dos mesmos.

Tabela 7

Apresentação dos eixos de análise dos documentos

Matrizes discursivas Sentidos


Movimentos
Sociais Igualdade
Mulheres surgem em um discurso de
Perspectiva relacional
- ANA desvantagens e passividade
de gênero
Equidade no acesso aos bens comuns
Uso da categoria de gênero
87

Feminismo marxista
Divisão sexual do trabalho
Protagonismo das mulheres
Construção de saberes a partir do olhar
das mulheres
Ecofeminismo
Corpo-território
Interrelação mulher-natureza
Ética ambiental

Feminismo Construção de feminismos plurais


Interseccional Categoria raça

Matrizes discursivas Sentidos


Protagonismo das mulheres
Políticas Debate relacional de
Construção de conhecimento
gênero
Empoderamento
Matrizes Discursivas Sentidos
Empoderamento
Agências Feminismo liberal
Desenvolvimento das mulheres -
Internacionais
desenvolvimento econômico
Sistema sexo-gênero
Mulheres em relação de passividade

Para construção da categorização entre as principais matrizes interpretei as sentenças

que fazem referência à gênero, feminismo/feminismos, mulher/mulheres à luz dos referenciais

teóricos e construíu-se um quadro de associação entre os códigos que constavam nos

documentos e os debates com quais se relacionam.

Ao analisar os documentos, percebe-se que a ocorrência da categoria “gênero” (n=7) é

proporcionalmente menor em documentos produzidos pelos movimentos sociais do que os

documentos relativos às polítcas (n=11). Por outro lado, a categoria mulher/mulheres aparece

de forma constante em todos os documentos, seja no âmbito dos documentos dos movimentos

(n=47), das políticas (n = 72) e dos organismos internacionais (n=1292).

A categoria feminismo teve cinco ocorrências entre os documentos produzidos pelo

movimentos sociais, nenhuma ocorrência nas políticas e nenhuma ocorrência nos documentos
88

dos organismos. Expressões como sexualidade e diversidade sexual não apareceram em

nenhum documento.

Outras expressões que aparecem com frequência são igualdade, empoderamento e

protagonismo das mulheres. Entretanto, como discutiremos no presente capítulo, nem sempre

essas categorias possuem os mesmos sentidos nos documentos. Na sequência do capítulo

discuto com maior aprofundamento tais sentidos e matrizes discursivas a partir dos sujeitos

coletivos que os mobilizam.

Eixo I – Organismos internacionais: Gênero, agroecologia e o debate da ONU

A equidade de gênero e o desenvolvimento sustentável aparecem, a partir da segunda

metade do século XX, como metas centrais nas agendas políticas de diversos movimentos

sociais assim como de boa parte dos países ocidentais e de agências internacionais de

desenvolvimento. De acordo com Siliprandi (2015), a articulação dessas pautas passou a ganhar

grande visibilidade nos anos de 1990 com a realização do Planeta Fêmea dentro do fórum global

Eco-92, organizado por redes de mulheres ambientalistas para discutir a problemática ambiental

a partir de uma perspectiva de gênero.

A ONU, representada pelas suas agências ONU Mulheres, FAO e Programa das Nações

Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) desempenha um grande papel nesse debate. Desde o

seu início, as Nações Unidas abordam questões relacionadas com o estatuto da mulher através

do trabalho dos seus órgãos, enquanto a Carta das Nações Unidas de 1945 e a Declaração

Universal dos Direitos Humanos de 1948 reconhecem o princípio da igualdade entre homens e

mulheres como fundamental para a promoção dos Direitos Humanos.

O envolvimento histórico da ONU no que se refere aos direitos das mulheres e na

implementação de instrumentos jurídicos pela igualdade de direitos se ampliou para incluir


89

todas as dimensões e desafios da Comisão sobre a Situação da Mulher (CSW), tais como o

desenvolvimento sustentável e o fomento à agricultura familiar.

Na década de 1970, o papel fundamental das mulheres, especialmente no contexto de

esforços para aliviar ou resolver problemas nas questões alimentares, tornou-se mais

amplamente reconhecido. O ponto de virada na história dos assuntos das mulheres no sistema

das Nações Unidas veio em 1985, quando ocorreu a Conferência Mundial de revisão e avaliação

as realizações do Decêncio 1975-1985 das Nações Unidas para as Mulheres em Nairóbi, no

Quênia. Foram adotadas estratégias prospectivas para o avanço das mulheres para até o ano

2000, entre elas o desenvolvimento sustentável e o apoio às mulheres na agricultura.

As ações empreendidas nesse sentido têm sido levadas a cabo prioritariamente pelas

agências FAO e ONU Mulheres, que têm trabalhado nos países do Sul Global a partir de

diversas ações, entre uma das mais importantes a campanha Mulheres Rurais que abarca as

metas definidas pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 17 Objetivos de

Desenvolvimento Sustentável (ODS) que devem ser implementados pelos países membros até

2030. No Brasil, com a extinção da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) em 2015 e

do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) em 2016, a campanha tem servido de base

para a comunicação e ações do Governo Federal para além dos Planapos, como apontam os

movimentos sociais agroecológicos.

Assim, o objetivo no presente tópico é refletir sobre a partir de quais olhares vêm se

estruturando as estratégias de ação instruídas pela FAO e que, em grande medida, impactam na

formulação de políticas institucionais, linhas de financiamento de projetos, projetos de

organizações da sociedade civil, movimentos sociais e, consequentemente, no cotidiano das

pessoas. Diante do volume de material produzido pela Campanha, analisamos os documentos

que serviram de referência para a elaboração da mesma, conforme apresentado no capítulo 2 da


90

tese. Atenho-me aqui especialmente aos relatórios que trazem um panorama das mulheres na

agricultura.

As discussões construídas nos documentos represetam, indiscutivelmente, um avanço

ao constatar as desigualdades de gênero na agricultura e relacionar a desigualdades de gênero

enquanto um impedimento para alcançar o objetivo do desenvolvimento sustentável que

aparece como o norte da maior parte dos documentos da ONU. Esses documentos se destacam

também ao abordarem as relações desiguais de gênero não enquanto um dado biológico, mas

antes uma construção social que pode ser revista e transformada.

Os relatórios notadamente se baseiam na teoria do sistema sexo-gênero da teórica

feminista Gayle Rubin (1975). Nos anos de 1970, Rubin causou grande impacto ao propor uma

teoria que, não só ajudou a consolidar o conceito de gênero enquanto uma esfera “social do

sexo”, mas também mostrou como que os estudos que abordavam a relação entre reprodução e

gênero se ancoravam, em sua maioria, no pressuposto da naturalidade da heterossexualidade.

Um exemplo do impacto das teorias de Rubin e o sistema-gênero, ou perspectiva relacional de

gênero, como pode ser visto no seguinte trecho do relatório da FAO:

Os conceitos de 'sexo' e 'gênero' podem ser confusos, especialmente porque mesmo


especialistas às vezes os usam de forma inconsistente. Sexo refere-se às categorias
biológicas inatas (macho ou fêmea). Gênero refere-se a funções e identidades sociais
associadas com o significado de "homem" ou "mulher". Papéis de gênero são
delimitados por fatores ideológicos, religiosos, étnicos, econômicos e culturais e são um
determinante essencial da distribuição de responsabilidades e recursos entre homens e
mulheres. No entanto, para ser socialmente determinada, esta distribuição pode ser
alterada por medidas sociais deliberadas, incluindo políticas públicas. Cada sociedade é
marcada por diferenças de gênero, mas estas variam muito, dependendo da cultura e
podem mudar drasticamente ao longo do tempo. Sexo é a biologia. Gênero é sociologia.
Sexo é algo fixo. Os papéis de gênero mudam14 (FAO, 2011, p. 16, tradução nossa).

14
“ Los conceptos de “sexo” y “género” pueden ser confusos, sobre todo porque incluso los expertos a veces los
utilizan de forma incoherente. El sexo hace referencia a categorías biológicas innatas (macho o hembra). El género
se refiere a los papeles e identidades sociales asociados con el significado de “hombre” o “mujer”. Los papeles por
razón de género están delimitados por factores ideológicos, religiosos, étnicos, económicos y culturales, y son un
elemento esencial determinante de la distribución de responsabilidades y recursos entre hombres y mujeres. Sin
embargo, al estar socialmente determinada, esta distribución se puede modificar a través de medidas sociales
deliberadas, incluidas las políticas públicas. Toda sociedad está marcada por diferencias de género, pero estas
91

Desta forma, ao entender o sexo como uma matéria-prima, isenta-se de questionamentos

a respeito do seu caráter de construção sociocultural. O sexo fica salvaguardado na sua própria

“natureza”. O gênero, pelo contrário, fica aberto à mudança histórica e, consequentemente, à

agenda de lutas feministas e das ações das políticas de empoderamento (Carlos Eduardo

Henning, 2008).

Também chama atenção a forma como a divisão do trabalho é tratada, sendo o padrão

de produtividade masculina tomada como medida ideal. A título de exemplo, no relatório

Women in agriculture: Closing the gender gap for development (2011) o trabalho doméstico é

apresentado como um empecilho ao trabalho produtivo da mulher. A possibilidade de divisão

dos afazeres domésticos com os homens, entretanto, não é mencionada, pois entraria em

contradição com a proposta do documento, que seria a de igualar a produtividade de mulheres

e homens tendo como modelo o padrão atual, no qual a casa e os filhos são encargos das esposas

e mães. Assim, os fatores que impediriam as mulheres de atingirem esse patamar ou as possíveis

consequências do que é requerido para que se equalize essa produção não são discutidos ou

mencionados.

Percebe-se também que não há uma problematização do próprio conceito do que é

considerado trabalho. A categoria “trabalho” não é uma categoria neutra, ao contrário, ele é

generificado e racializado. A noção moderna de trabalho é fortemente ligada ao conceito

engendrado, desde Adam Smith, pela economia política que relaciona o trabalho ao valor. Karl

Marx e os teóricos marxistas, influenciados por essa concepção de trabalho-valor, acreditam

que o trabalho corresponde à atividade humana que transforma a natureza nos bens necessários

à reprodução social. Na teoria marxista sobre o trabalho, houve uma preocupação acentuada em

varían mucho en función de la cultura y pueden cambiar drásticamente con el tiempo. El sexo es biología. El
género es sociología. El sexo es algo fijo. Los papeles por razón de género cambian”.
92

diferenciar o trabalho produtivo (aquele que produz mais-valia) do reprodutivo (que não produz

mais-valia, mas é essencial para a manutenção do sistema capitalista). Segundo Helena Hirata

e Phillipe Zarifian (2009), essa definição possibilitou avançar na conceituação do trabalho

assalariado, inaugurando a ideia de trabalho como atividade social mensurável e passível de ser

objetivado.

Todavia, em tal caracterização o trabalho doméstico acaba sendo considerado

improdutivo, ainda que a sua contribuição na economia doméstica seja reconhecida. A partir

dos anos de 1970, essa definição passou a ser criticada por partir de um modelo assexuado de

trabalho, em que “o masculino é apresentado como universal e as relações de gênero não são

contempladas, além de se limitar à esfera da produção e de não incluir adequadamente as formas

de trabalho diferentes da assalariada” (Jussara Brito, 2005, p. 881).

As principais linhas estratégicas de atuação sugeridas pela FAO são: promover a

equidade no acesso às terras, insumos, assistência técnica e educação; investimento em

tecnologias e infraestrutura que permitam melhorar a produtividade, para que as mulheres

tenham mais tempo livre para se concentrar em atividades mais produtivas; facilitar a

participação das mulheres rurais dos mercados de trabalho flexíveis e eficientes.

Esse último ponto chama particular atenção. No relatório FAO’s programme for gender

equality in agriculture and rural development (2016), a agência sugere que o mercado

terceirizado se apresenta como uma opção interessante de ingresso das mulheres no trabalho da

agricultura. Sabe-se, entretanto, que em países de capitalismo periférico como o Brasil, as

relações de trabalho terceirizado são extremamente precarizadas e que as mulheres, em especial

as mulheres negras, já somam 71% desse mercado, de acordo com dados do IPEA (2012).

Cristiane Campos, em pesquisa sobre o trabalho das mulheres no agronegócio, mostrou que, ao

invés de melhorar o bem-estar e condições das mulheres e suas famílias, o ingresso das
93

mulheres enquanto trabalhadoras terceirizadas vêm aumentando o fenômeno da feminização da

pobreza no campo (Campos, 2012).

O modelo de desenvolvimento implícito nesses documentos abre espaço para uma série

de questionamentos. Desde 2011, com a entrada na presidência da FAO do brasileiro José

Graziano - uma grande referência no debate sobre a agricultura familiar na América Latina - a

agroecologia e a cooperação sul-sul15 passaram a compor o arcabouço de temas da FAO.

Entretanto, nos documentos analisados, apesar de mencionarem a agroecologia enquanto um

modo de produção que pode diminuir as desigualdades de gênero e que deve ser promovida,

ainda assim ela não aparece como um objetivo ou como estratégia prioritária.

Importante ressaltar que no campo da agricultura a FAO foi uma das entidades que

promoveram a implementação da Revolução Verde em todo o mundo. Tal revolução foi o

processo de modernização agrícola que, por meio do desenvolvimento de tecnologias como o

uso de sementes transgênicas, fertilização química do solo e utilização de máquinas no campo,

levou ao imediato aumento da produção. Ao mesmo tempo, porém, trouxe à tona problemas

ligados à produção em grande escala: empobrecimento dos solos pelas monoculturas, aumento

do uso de agrotóxicos, precarização das relações de trabalho no campo, poluição das águas,

entre outras questões que há décadas vêm sendo denunciadas por lideranças políticas,

pesquisadores, movimentos sociais e organizações ligadas à esfera ambiental e da saúde em

todo o mundo (Fernando Carneiro et al., 2015).

Muitos autores e militantes, como o agrônomo e pesquisador Francisco Caporal (2017),

apontam para as incongruências da agência que, ao mesmo tempo que criou um programa

“agroecologia para os pobres” e alerta para a enorme crise de abastecimento de água potável e

15 Cooperação Sul-Sul é a modalidade de cooperação técnica internacional que se dá entre países em


desenvolvimento, que compartilham desafios e experiências semelhantes. Ela difere da tradicional Cooperação
Norte-Sul (onde países desenvolvidos do Hemisfério Norte colaboram com países em desenvolvimento do
Hemisfério Sul).
94

desmatamento no Brasil, continua com o seu apoio à agricultura industrial de altos insumos e à

agricultura irrigada para a produção e exportação de grãos para a pecuária e que consome 70%

da água doce do planeta.

Apesar do termo “feminismo” não aparecer em nenhum dos documentos da FAO que

foram analisados, pode-se identificar que os discursos balizadores desses documentos são

pautados pelo chamado feminismo liberal. O feminismo liberal ganha força a partir do final dos

anos 80 no Brasil associado à esfera governamental e do capital internacional, como o Banco

Mundial e agências internacionais de fomento de pesquisas e serviços. De acordo com Mary

Castro (2009), essas agências privilegiam projetos a varejo, estimulando o enfoque de políticas

de identidade ou para constituintes específicos, sem análise crítica de sistemas, totalidades

sociais, indo de encontro a um modelo neoliberal de produção de subjetividades (Castro, 2009).

Essa tendência vêm ganhando também espaço nas elaborações e reelaborações dos

documentos de conferências e convenções internacionais, no âmbito das Nações Unidas. Um

dos aspectos mais criticados no âmbito do feminismo liberal é a ideia universal de mulher. Os

atravessamentos e desigualdades de raça e classe, por exemplo, raramente aparecem como um

eixo de atuação, sendo muitas vezes apenas apresentados como um cenário sem uma discussão

aprofundada das questões que envolvem tais desigualdades. Um exemplo disso está no fato de

que, nos relatórios analisados, não existe menção à raça e apenas uma menção à etnia.

Tampouco há menções relativas à sexualidade, ou ainda, aos desafios enfretados por mulheres

LGBT+ nesses contextos.

Ainda que em relatórios e materiais produzidos pela ONU esses atravessamentos

estejam presentes, a não menção de tais desigualdades aponta para uma visão homogênea do

que seria a mulher no meio rural ou da agricultora familiar. Como, afinal, pensar o

desenvolvimento das mulheres, sem considerar tais desigualdades?


95

Assim, coloca-se em questão aqui se as políticas propostas, todas de cunho produtivista

(aumento de crédito, maior uso de insumos e de tecnologia,etc.), seriam as mais eficazes para

alcançar os objetivos enunciados pela FAO.

Mulheres, empoderamento e biopolítica

Em pesquisa junto a militantes da Marcha das Margaridas, Rita Maciazeki Gomes

(2017) identificou o tensionamento entre os discursos hegemônicos produzidos sobre mulheres

rurais e agricultoras familiares, em geral relacionados com a ideia de mulheres ligada à família

e ao cuidado familiar ou, na esfera de movimentos e espaços progressitas, focados na questão

da mulher enquanto produtora. Segundo suas interlocutoras, essas narrativas conformam, de

alguma maneira, as ações desenvolvidas pelos movimentos, ações governamentais, a partir do

que é esperado do “ser mulher” nesse contexto.

Esses discursos também podem ser identificados nos documentos analisados a partir da

construção de uma narrativa sobre a pobreza, sobre as mulheres e sobre a agricultura familiar

ora com um sentido de passividade, ora com a ideia das mulheres e da família vistos como

empreendedores.

De acordo com Flávia Lemos et al. (2015), diversas organizações internacionais e

agências multilaterais propõem a formação de um mercado de supostas habilidades e

competências ditas femininas, nos quais os direitos são mercantilizados e transformados em

oportunidades econômicas e sociais de trabalho informal para geração de renda nessa lógica

difundida por estes órgãos e entidades, articuladamente com equipamentos e organizações

brasileiras.
96

Em o “Nascimento da Biopolítica,” Foucault (2008) discute como o neoliberalismo

passa a ser uma leitura econômica para uma forma de racionalidade que vai constituir os sujeitos

no capitalismo a partir de uma sociedade feita de “unidades-empresas”:

O homo oeconomicus é um empresário, e um empresário de si mesmo. Essa coisa é tão


verdadeira que, praticamente, o objeto de todas as análises que fazem os neoliberais será
substituir, a cada instante, o homo oeconomicus parceiro da troca por um homo
oeconomicus empresário de si mesmo, sendo ele próprio seu capital, sendo para si
mesmo seu produtor, sendo para si mesmo a fonte de [sua] renda (Foucault, 2008, p.
131).

Em tal racionalidade, o sujeito de direitos se torna menos importante que o econômico

e, quando é ativado, sempre o é para figurar como mercado e empresa da cidadania (Lemos et

al., 2015).

Nesse sentido, vemos a atuação e os discursos propagados por agências multilareais

parecem ir ao encontro do que Foucault (2008) chama de biopolítica do poder, ao incidir na

vida das mulheres através do controle dos seus corpos e assujeitamentos das suas atividades.

Em sua obra Vigiar e Punir, Foucault (2015) discute, a partir do seu método genealógico,

o poder e as técnicas de domínio dos corpos: a disciplinar e a biopolítica. Enquanto a técnica

disciplinar opera no âmbito das instituições (escolas, prisões, hospitais, quartel, fábricas etc.) e

se dirige ao corpo individual, que deve ser vigiado, treinado e ocasionalmente punido, a

biopolítica é dirigida às populações e atua via uma série de intervenções reguladoras dos

processos próprios da vida, como nascimento, morte, reprodução e doença. O conceito de

biopolítica chama a atenção para três aspectos articulados entre si: (1) um ou mais discursos de

verdade sobre os seres vivos e um conjunto de autoridades consideradas competentes para falar

aquela verdade; (2) as estratégias de intervenção sobre a existência coletiva em nome da vida e

da morte; e (3) os modos de subjetivação, através dos quais os indivíduos são levados a governar

a si próprios, em nome da vida ou da saúde individual ou coletiva (Alessandra Hernandez &

Ceres Victoria, 2018).


97

Essas tecnologias de constituição de uma determinada racionalidade acerca dos sujeitos

e de família pode ser vista em projetos e discursos de agências multilaterais , especialmente no

que se refere às linhas de atuação com as mulheres voltadas para questão da produção e das

mulheres enquanto gestoras da casa e da família, uma noção é especialmente mobilizada: a

ideia de “empoderamento”.

A palavra empoderamento vem ganhando grande repercursão na última década, tendo

grande presença midiática, desde peças publicitárias de grandes empresas, em discursos oficiais

de grandes autoridades, em campanhas institucionais, entre outros.

De acordo com a Entidade das Nações Unidas para Igualdade de Gênero e o

Empoderamento das Mulheres (ONU Mulheres, 2014), a equidade de gênero é considerada um

direito humano, sendo o empoderamento das mulheres uma ferramenta indispensável para

promover o desenvolvimento e a redução da pobreza. Assim como o conceito de gênero, o

conceito de empoderamento pode ter várias compreensões. Conforme Peter Oakley e Andrew

Clayton (2003), o termo tornou-se “lugar-comum”, sendo usado em diversas estratégias de

diferentes atores, desde as organizações comunitárias de base e organizações não

governamentais, até as agências multilaterais como o Banco Mundial. Dessa forma, o termo

vem se divorciado de uma real compreensão, assim como a literatura que se seguiu (Oakley &

Clayton, 2003.

O conceito de empoderamento tem sua gênese nos movimentos feministas de base,

sendo apropriado posteriormente pela academia, ganhando espaço nas perspectivas que

discutem o poder (Cecília Sardenberge, 2006). No entanto, esse termo não está restrito à questão

de gênero, sendo utilizado em vários campos, como nas políticas públicas, movimentos sociais,

na área de saúde, etc.

Sardenberge (2006) chama atenção para alguns pontos que considera essencial para

pensar criticamente as questões que o discurso sobre empoderamento mobiliza:


98

a) para se “empoderar” alguém ter que ser antes “desempoderado”; b) ninguém


“empodera” outrem –isto é, trata-se de um ato auto-reflexivo de “empoderar-se” , ou
seja, a si própria (pode-se, porém “facilitar” o desencadear desse processo, pode-se criar
as condições para tanto); c) empoderamento tem a ver com a questão da construção da
autonomia, da capacidade de tomar decisões de peso em relação às nossas vidas, de
levá-las a termo e, portanto, de assumir controle sobre nossas vidas; d) empoderamento
é um processo, não um simples produto. Não existe um estágio e empoderamento
absoluto. As pessoas são empoderadas, ou desempoderadas em relação a outros, ou
então, em relação a si próprias anteriormente (Sardenberge, 2006, pp. 3 – 4).

Silvana Mariano e Cassia Carloto (2009) destacam a associação necessária entre o

conceito de empoderamento e a crítica aos essencialismos como forma de se atingir as

condições necessárias para a redução das desigualdades de gênero.

Para nortear as políticas de promoção da equidade de gênero no mundo, a ONU

Mulheres (2014) define o empoderamento de gênero a partir de cinco dimensões e respectivas

categorias: participação econômica/autonomia (desemprego, renda, atividade econômica,

salário); oportunidade econômica (licença maternidade, benefícios, disponibilidade de creches,

empregos); empoderamento político (mulheres no Executivo, no Legislativo, participação em

movimentos sociais); avanço educacional (média de escolaridade, matrículas, alfabetização);

saúde e bem-estar (partos assistidos, taxa de fertilidade, índice de mortalidade materna,

mortalidade infantil, eficácia do governo na redução da pobreza e desigualdades).

Partindo dessas dimensões, vemos que o exercício da autonomia (entendida enquanto

autonomia econômica) está intrinsecamente relacionado ao empoderamento. De acordo com

Diana Deere (2002), o processo de empoderamento e busca pela autonomia das mulheres

depende da possibilidade do acesso tanto aos bens econômicos quanto ao poder, o que pode

possibilitar uma modificação das relações desiguais entre homens e mulheres, sendo

precondição para que essa igualdade aconteça.

Entretanto, nos últimos anos, muitas teóricas feministas vêm criticando a noção de

empoderamento, em especial, da forma que tal conceito é usado por organizações tais quais
99

ONU e FMI (Rute Baquero, 2012). Algumas das principais críticas empreendidas por tais

feministas considera que o empoderamento é, muitas vezes, usado como forma de instrumentar

o trabalho das mulheres e que essa noção refere-se a uma construção de projetos individuais,

uma espécie de empreendedorismo dos sujeitos, desconsiderando a importância de modos de

solidariedade e desenvolvimento comunais e, muitas vezes, despolitizando o entendimento dos

cenários de vulnerabilidade em que os sujeitos estão inseridos – a esse fenômeno chamaremos

aqui de “projetismo”, devido às normativas hierárquicas que são impostas por projetos e linhas

de financiamento institucionais.

A normatização do empoderamento individual enquanto modelo de construção para a

promoção da igualdade de gênero tem várias consequências, para além do problema da própria

ideia de “igualdade” a qual discutimos anteriormente. Talvez uma das consequências mais

perceptíveis dá-se na esfera da institucionalização de projetos e linhas de financiamento.

Considerando que os organismos multilaterais e internacionais são responsáveis por definir

linhas de trabalho e financiamentos específicos e que muitas organizações dependem de tais

apoios para a atuação e mediação na agroecologia, essas questões impactam sobremaneira nas

esferas locais e podem constituir-se em assujeitamento das práticas dos agricultores e

agricultoras, por exemplo, definindo tipos de plantios, metodologias de trabalho e até sistemas

de organização locais e especificamente para as mulheres ao designar determinados lugares e

práticas generificados de trabalho, cuidado e organização familiar.

Para Flávia Lemos et al. (2015), o empoderamento enquanto tática se aproxima no

neoliberalismo da designada responsabilidade social, que utilitariamente opera uma articulação

entre público e privado no plano do financiamento, regulação e execução de políticas sociais.

A feminista decolonial Yuderkys Espinosa-Miñoso (2009) chama atenção para os

efeitos desses processos nas práticas e organizações locais, efeitos esses que para a feminista

decolonial têm relação direta com a colonização discursiva que ocorre em relação aos
100

feminismos no continente. Tal colonização não é fruto apenas das feministas do Norte ou das

agência de cooperação bilateral, mas se alimenta da cumplicidade dos feminismos hegemônicos

do Sul, historicamente construídos por mulheres brancas/mestiças, heterossexuais, urbanas e

burguesas.

Em diálogo com o trabalho da teórica hondurenha Breny Mendoza, Espinosa-Miñoso

(2009) argumenta que as feministas latino-americanas construíram as suas discussões tomando

como base o feminismo anglo-saxão (seja radical, liberal ou marxista) para construir suas

organizações e abordagens alternativas para a mudança social e cultural. A centralidade dessas

concepções podem ser vistas nos projetos executados que partem de uma concepção ocidental

de emancipação que também teve consequências desastrosas na instalação de objetivos

políticos produtivos exclusivamente para mulheres de determinados tipos, origens e

sexualidade.

Além disso, a autora acredita que os feminismos hegemónicos ocidentas têm servido de

base para a instrumentalização dos trabalhos das mulheres pobres, negras e rurais a partir das

normativas de agências internacionais e organizações bilaterais. Ainda segundo a autora, o

patrocínio da ONU e dos organismos bilaterais e multilaterais de financiamento através dos

projetos “para o desenvolvimento” que passaram a ser prioritário desde o encontro da ONU

Mulher em Pequim no ano de 1995, impulsionaram a multiplicação de organizações formadas

por lideranças feministas advindas de meios privilegiados e acadêmicos em desconexão com às

liderenças feministas de base, implicando em um processo de especialização, profissionalização

e tecnocratização do feminismo, trazendo uma maior fragmentação e sectarização das lutas e

do movimento.

Assim, consolidou-se uma “elite feminista” que, em aliança com as lideranças dos

países do Norte, determinam, em espaços acessíveis para poucas, os caminhos do movimento

em negociação com os poderes econômicos mundiais representados nas instâncias e


101

mecanismos transnacionais de tomada de decisões. Isso tem relação direta entre quem é (se

sente) ou não autorizada a falar enquanto feminista. Para a autora, o projetismo cria

determinadas narrativas sobre as mulheres do Sul que as colocam em um lugar de agência ao

terem de performar determinadas condutas, em uma espécie de neocolonialismo institucional:

Una vez más ellas quedan folcluidas entre los discursos hegemónicos de los planes
neocoloniales e imperialistas pensados para el Sur y los de sus representantes feministas
del Norte y del Sur global. Si la afrodescendiente o la indígena o mestiza, madre o
lesbiana, trabajadora precarizada, campesina o fuera del mercado laboral, estudiante o
analfabeta, monolingüe, bilingüe, expulsada por la pobreza o por la guerra a países del
primer mundo… si ellas son nombradas, si ellas son objeto de discursos y políticas,
aunque las feministas “comprometidas” del Sur y del Norte “hablen por ella”…ella
definitivamente no está ahí (Espinosa-Miñoso, 2009, p. 51).

Já Safira Ammann (2003) vai ressaltar que a mulher se tornou a guardiã moral da

comunidade e da sociedade para os organismos internacionais, sendo carcterizada enquanto

mãe, dona de casa e esposa benevolente. Por isto, os economistas e administradores políticos

passaram a recomendar o desenvolvimento comunitário mediado pelo empoderamento das

mulheres em prol da capitalização dessas supostas características e atributos ditos femininos.

Eixo II – Movimento agroecológico, gênero e identidade política

Apesar de corresponderem a diferentes instâncias, os movimentos sociais e a ONU,

além de outras agências multilaterais, dialogam e impactam diretamente na formulação das

políticas de produção agroecológica. A relação dessas esferas pode, entretanto, ser entendida a

partir dos modos de subjetivação que produzem, não só para quem faz parte do movimento,

mas de uma maneira mais ampla na sociedade, uma vez que constroem determinados discursos

sobre alimentação, modos de vida e luta política.

Vemos que nos movimentos que compõem a ANA, de maneira geral, há uma primazia

dos debates sobre gênero e classe, ainda que as mulheres construam suas pautas específicas a
102

partir de outros atravessamentos. A participação das mulheres em locais antes entendidos como

“masculinos” como sindicatos e movimentos pela reforma agrária tencionam a dicotomia

público e privado. As mulheres não só serão responsáveis por pautar que as relações “privadas”

são políticas, mas constroem outro conceito mesmo de como fazer política, como veremos a

frente.

Ao analisar dos documentos construídos na esfera dos movimentos sociais, é possível

identificar uma forte ênfase em um discurso do “nós” mulheres do movimento agroecológico

versus “eles” homens representantes do agronegócio. Às vezes essa dicotomia também se

apresenta para tratar da esfera interna dos movimentos, mas em menor escala, sendo mais

visível em casos de conflitos específicos. Observação semelhante foi feita por Gomes (2017)

que argumenta que os movimentos de trabalhadoras rurais mobilizam em seus discursos formas

de identicação política.

Segundo Marco Aurélio Prado (2008, p. 59):

Os processos de mobilização social podem inaugurar ações coletivas para mudança


social; porém, para tal, são necessários três aspectos fundamentais da constituição das
identidades políticas: o processo de identificação coletiva, a passagem das relações de
subordinação para a consciência da condição da opressão e a delimitação de fronteiras
políticas entre grupos sociais (“nós” versus “eles”).

Junto a Prado (2008), entendo que estes aspectos são definidores do processo de

mobilização social e que colaboram na constituição de identidades políticas. A mobilização

social implica, em uma visão não essencialista dos elementos psicossociais, em um processo

articulatório que não pode ser determinado nem estruturalmente nem previamente, pois ele

dependerá das formas de articulação necessárias para sua sobrevivência.

Os discursos dos documentos também podem ser entendidos dentro desse processo,

visto que eles também vão se constituindo e modificando a partir das mobilizações. Isso pode

ser visto na forma como debates que antes não eram mencionados nos documentos produzidos
103

pela ANA, tais como o da interseccição entre gênero e raça, vão ser centrais a partir da

interpelação dos sujeitos em movimento, como pode ser visto na carta produzida no último

ENA que tem no debate de raça um lugar central, com a reinvidicação da identidade política

negra como um importante dispositivo de luta e reinvidação.

Já Walter Mignolo (2008) irá propor o conceito de “identidade em política” para

entender como, a partir de uma determinada experiência de subalternidade, os sujeitos

imbricados em relações coloniais, e desde esse lugar, vão mobilizar identidades políticas de

forma estratégica. Há, nesses conceitos, uma diferença fundamental em relação à concepção de

política de identidade e na essencialização dos sujeitos. Essas identidades políticas constituem-

se e produzem sujeitos em movimento, a partir do entendimento do seu caráter mutável,

estratégico e arbitrário. Têm, neste sentido, uma potência no sentido do processo de

subjetivação dos sujeitos em política. Para Gomes (2017, p. 133):

a identidade política, neste caso, é vista de um lado como uma ferramenta que permite
a unidade do grupo, como movimento de reivindicação de direitos e, de outro, uma
ferramenta produtora de estilhaçamento, estranhamento e resistência frente aos jogos de
forças que imprimem a estagnação em matrizes identitárias fixas a partir da
homogeneização e a normatização dos corpos. A “identidade” passa a ser compreendida
via (des)identificação.

Este processo, entretanto, tampouco pode ser essencializado. Ao mesmo tempo que as

identidades políticas podem servir como modos de subjetivação que rompem com a

normatização dos corpos e com a homogeneização das experiências, os discursos e ações

mobilizados coletivamente por movimentos sociais e pelas políticas em jogo podem constituir-

se dentro de uma matriz de uma subjetividade militante enrijecida e capturada a partir de uma

normatização do ser militante (Leite & Dimenstein, 2010).

Através desses debates busco entender como se conformam esses processos no

atravessamento dos documentos produzidos pelos movimentos sociais que compõem a ANA e

quais as matrizes teóricas e discursivas que vêm sendo mobilizadas nesse cenário, como elas
104

produzem esses sujeitos militantes e como as mulheres jogam e mobilizam esses discursos em

suas lutas.

3.2.1. Matrizes teóricas e discursivas

Os discursos dos movimentos sociais organizados acerca da atuação das mulheres na

agroecologia são frutos de debates entre teorias e práticas políticas em um campo de ideias que

vem se construindo entre os feminismos e a ecologia desde, pelo menos, os anos de 1970.

Uma das principais contribuições para esse campo foi dada por Sherry Ortner em seu

texto “Está a mulher para o homem como a natureza para a cultura,” de 1979. Ortner retoma

nesse trabalho os apontamentos de Simone de Beauvoir em O Segundo Sexo acerca da

“universalidade” da subordinação feminina. Para Beauvoir ([1949] 2008), não existe destino

biológico, psíquico ou sócio econômico natural às mulheres que explique o seu status de

inferioridade em relação aos homens na sociedade, mas sim uma construção civilizatória que

qualifica de maneira diferenciada homens e mulheres, sendo o sexo feminino sempre visto

como o Outro em relação ao sexo masculino considerado como padrão.

Ortner (1979) se apóia na ideia de Beauvoir de que as mulheres possuem uma

“animalidade” manifesta devida à sua fisiologia ligada aos processos reprodutivos. Com isso,

Ortner acredita que o status secundário das mulheres na sociedade reside na sua identificação

simbólica a algo que é desvalorizado em todas as culturas - a natureza – como algo que

representa o primitivo, inferior. Os homens, por outro lado, seriam identificados com a cultura,

ou seja, são vistos como aqueles que controlam, transcendem e modificam a natureza. Contudo,

por participarem do social, as mulheres seriam reconhecidas como intermediárias entre a cultura

e natureza, em uma escalada de transcendência inferior à do homem, manifesta, por exemplo,


105

na educação de seres humanos ainda em formação - as crianças - que estariam, portanto, mais

próximas ao estado original da natureza.

Esse posicionamento será revisto por várias autoras feministas que vão considerar a

relação entre natureza e sexo feminino traçada por Ortner como essencialista, binarista e

heteronormativa, de forma que a própria autora, em entrevista concedida no ano de 2006,

assume as críticas levantadas sobre seu trabalho (Guita Grim Debert & Heloisa Buarque de

Almeida, 2006). Por sua vez, Marilyn Strathern ([1980] 2014) vai criticar o uso dos conceitos

ocidentais de natureza e cultura como conceitos universais que se aplicam a todas as sociedades

e possuem a mesma carga simbólica que eles carregam em nosso pensamento, de forma que

conferimos a nossa realidade ao sistema daqueles que estudamos. Para a autora, natureza e

cultura são conceitos extremamente relativizados cujo significado último deve ser derivado de

seu lugar no interior de uma metafisica específica, não existindo, portanto, um significado único

para natureza e cultura, apenas uma matriz de contrastes.

Os diferentes construtos ocidentais acerca dessa dinâmica mostram que, além de uma

oposição estática, a relação entre natureza e cultura pressupõe uma tensão e um processo

coníinuo de constituição mútua. A autora aponta quatro consequências que advêm da equação

entre natureza e feminino: 1) as mulheres são mais naturais que os homens; 2) as faculdades

femininas naturais podem ser controladas por estratégias culturais; 3) as mulheres são

consideradas inferiores; 4) elas têm potencial para feitos gerais.

Em relação à Ortner, Strathern argumenta que a autora ignora a polivalência das

categorias natureza e cultura, recaindo em uma dicotimização e universalização de um

determinado entendimento sobre tais categorias. Como mencionado anteriormente, em que pese

as críticas tecidas ao seu trabalho, Ortner vai influenciar diretamente diversas correntes teóricas

que vão pensar a questão de gênero em sua relação com a questão ambiental, como o

Ambientalismo Feminista e o Ecofeminismo que se destaca nesse cenário como a matriz teórica
106

que vai balizar muitas das discussões dos movimentos de mulheres ambientalistas, tendo se

tornado central no debate sobre ecologia e gênero em todo o mundo.

O termo Ecofeminismo foi usado pela primeira vez por D’Eaubonne em 1974. De

acordo com Siliprandi (2015), D’Eaubonne defende nesse trabalho, de forma até então inédita,

uma proposta claramente feminista para as questões ambientais. Essa autora tratava de uma

série de temas caros ao movimento feminista, problematizando as políticas de controle de

natalidade e a forma como o modelo econômico produtivista dominado pelos homens e o padrão

de alto consumo dos países desenvolvidos tinha um caráter sexista e racista submetendo

principalmente as mulheres dos países pobres ao mesmo tempo em que contaminava o planeta

e esgotava os recursos naturais (Siliprandi, 2015). Durante as décadas seguintes, diversos

grupos políticos e teóricas ecofeministas vão desenvolver e problematizar essas e outras

questões, pautando gradativamente uma agenda feminista no cenário do movimento

ambientalista.

Em que pese as diferenças entre suas correntes, o Ecofeminismo, em especial o de

Terceiro Mundo representado pela indiana Vandana Shiva, vai criticar a apropriação masculina

da agricultura e da reprodução, pensando as consequências do desenvolvimento industrial,

militar e capitalista na vida das mulheres que por desempenharem o papel do cuidado e da

reprodução, são as mais atingidas por esse sistema (Puleo, 2004).

Um dos seus impactos das ideias ecofeministas pode ser sentido no que Raquel Passos

(2016) chama de ideologia do “familismo” dentro dos movimentos que lutam pela valorização

da agricultura familiar. Para Passos (2016), o “familismo” se traduz em uma visão ideal de

família, em que as pessoas mantêm entre si fortes laços de complementariedade, mas

permanecem articuladas por um poder central, exercido pelo “marido/pai”. Essa ideologia

também permeia, de maneira geral, os programas e políticas sociais, onde, o foco está

claramente na figura feminina enquanto mãe, gestante e/ou lactante, sem necessariamente
107

promover a sua autonomia e inserção produtiva, reforçando o papel tradicional da mulher como

dona de casa e cuidadora do lar, através da instrumentalização do trabalho considerado

feminino.

Autoras feministas, porém, vão criticar essas correntes teóricas por seus caráteres

supostamente essencialistas. Podemos classificá-las, a partir da sistematização proposta por

Paola Bachetta (2009), como teorias de matriz binária, uma vez que não problematizam o

binarismo de gênero, tampouco questionam o determinismo biológico dos sexos aceitado como

algo “natural” (Carcaño Valencia, 2008). Na esfera dos discursos produzidos a partir dos

movimentos sociais, esses eixos teóricos ficam mais difusos, especialmente à medida que

debates sobre sexualidade e pós-colonialidade ganha força.

Outra importante crítica, empreendida especialmente pelas feministas pós-coloniais,

refere-se à categoria “mulher” tomada como um conceito universal que desconsidera as

experiências das mulheres não brancas e não-cissexuais e as relações de dupla opressão a que

estão submetidas. No campo da agroecologia a categoria mulher aparece, na maior parte das

vezes, como um dado a priori. São, principalmente, as mulheres negras a interpelarem, através

dos movimentos sociais, esse campo e passaram a tensionar a questão racial e, posteriormente,

as questões de identidade de gênero e sexualidade.

Há também uma crítica à visão teórica do Ecofeminismo por seu caráter supostamente

essencialista ao considerar que as diferenças entre os gêneros estariam enraizadas na própria

natureza de homens e mulheres, de forma que dessas analogias e complementaridades

resultariam hierarquias políticas. Berenice Bento (2006) acrescenta que as concepções

universalizantes sobre gênero e dominação patriarcal, presentes no discurso de boa parte dos

movimentos feministas considerados clássicos ou de segunda onda, reforçam a essencialização

da identidade feminina, por apontarem para um processo de dominação masculina ligado a uma

suposta condição biológica inerente às mulheres.


108

Para Hélène Cixous (1995), os modelos binários de explicação do mundo reforçam

assimetrias na distribuição de poder, na medida em que sempre um dos termos é mais valorizado

que o outro, necessariamente, um aparece como a norma, enquanto o outro é, simplesmente, o

“outro”. É nesta mesma perspectiva que muitas pensadoras feministas argumentam que é

justamente por meio dessas dicotomias que as mulheres têm sido construídas como outras, de

maneira que estão sempre sendo apontadas apenas como tudo aquilo que os homens não são.

Uma terceira chave de leitura que tem sido usado por parte dos movimentos sociais, mas

vem perdendo espaço para as discussões do ecofeminismo é o feminismo socialista/marxista.

Para Castro (2009), apesar de exercerem uma prática política diametralmente opostas, o

feminismo liberal e os feminismos socialistas guardam semelhanças:

A referência no feminismo de corte liberal e social-democrata é a uma mulher genérica,

desterrada da classe e da classe-e-raça. Mas, em tendências do feminismo socialista que se

pautam por leituras acríticas do marxismo, também se aporta a uma mulher proletária genérica,

sem circulação na raça ou em outras identidades marcadas por sistemas político-econômico-

culturais de opressão. As relações sociais entre os sexos, vetor do conceito de gênero, se bem

que socialmente demarcadas, portanto condicionadas pela estrutura de classes, pela luta de

classes e pelo lugar das mulheres na classe, não definiriam sujeitos sexuados, nem os sujeitos

sexual/socialmente se autodefinem, apenas no plano da organização da economia (Castro, 2009,

p. 35).

Essas tendências podem ser observadas também no campo da agroecologia no Brasil e

se constituem como forma de subjetivação política, além de materializarem-se em forma de

programas e ações.
109

3.2.2. Movimentos e construção das políticas de agroecologia e gênero

Como mencionei anteriormente, a partir das demandas trazidas pelos movimentos

sociais, uma série de programas e incentivos governamentais passam a ser implementados para

o desenvolvimento da agroecologia enquanto matriz tecnológica para a produção da agricultura

familiar no Brasil, com uma considerável ênfase no reconhecimento das mulheres nesse

processo. Entre algumas dessas ações, destacam-se a Política Nacional de Agroecologia e

Produção Orgânica – Pnapo de 2012 e o I Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica

– Planapo de 2013, que têm como uma de suas diretrizes a redução das desigualdades de gênero,

por meio de ações e programas que promovem a autonomia econômica das mulheres. De acordo

com o Planapo:

Elas atuam como principais protagonistas na segurança alimentar e são responsáveis


pela produção agroecológica nos quintais e roças próximos da casa. Também preservam
e transmitem, de geração a geração, sua experiência no manejo da água, produção de
alimentos, recursos florestais, solos, sementes, recursos energéticos e técnicas de
conservação correspondentes (Planapo, 2013, p. 221).

No III Encontro Nacional de Agroecologia (III ENA) realizado em maio de 2014 na

cidade de Juazeiro – Bahia, foi lançada a Carta das Mulheres da Agroecologia, construída a

partir da plenária das mulheres da ANA. A carta, intitulada “Sem feminismo, não há

agroecologia”, declara que:

As mulheres inventaram a agroecologia, elas constroem agroecologia assim como suas


mães e avós que a praticavam mesmo sem saber este nome. Mas foi a resistência delas
que garantiu a existência de diversidade de sementes e práticas que hoje permitem que
estejamos aqui e que de outra forma teriam se perdido pela difusão da revolução verde
(Carta de Mulheres da Agroecologia, 2014, n.p.).

Ao reivindicarem o protagonismo feminino e feminista na prática da agroecologia, as

mulheres da ANA trazem à tona não só o debate sobre o modelo de desenvolvimento capitalista,

como também problematizam as desigualdades de gênero na agricultura familiar.


110

Em que pese a grande diversidade de dinâmicas sociais, econômicas e políticas que

perpassam as áreas rurais, os estudos sobre campesinato apontam para assimetria de poder entre

homens e mulheres nesses contextos, expressas na violência de gênero, no controle sobre a

sexualidade feminina, na baixa representação em instâncias de participação política, e

principalmente na invisibilidade do trabalho feminino no campo, sendo o homem comumente

visto como o “chefe” da família, responsável por organizar a produção e tomar as decisões a

ela relativas (Costa, Dimenstein & Leite, 2014; Beatriz Heredia & Rosangela Citrão, 2006). Por

isso, apesar de defenderem o modelo camponês16, com o resgate de valores tradicionais do

campo, as mulheres da agroecologia apontam para a necessidade de transformação do ideal de

família existente, em direção a uma proposta mais democrática que respeite todos os sujeitos

em seus desejos e necessidades (Siliprandi, 2015). O mesmo pode ser pensado no contexto da

agroecologia urbana, que também vai trabalhar com a ideia de resgate dos valores tradicionais

na esfera da cidade, entendendo mulher como aquela que mais sofre com a degradação

ambiental e com o crescimento urbano desordenado.

Autoras como Júlia Serrano (2014), Siliprandi (2015) e Jalil (2009) vêm apontando que

os projetos agroecológicos possibilitam um maior empoderamento das mulheres, uma vez que

dão visibilidade e abrem espaço para valorização do seu trabalho, por tratar-se de um sistema

produtivo mais participativo, sustentável e que prioriza a agricultura de subsistência praticada

nos quintais, espaço historicamente ocupado pelas trabalhadoras rurais. Além disso, ao

tomarem a frente na luta pela agroecologia, as mulheres ocupam espaços importantes de

mobilização social e política.

16
Um dos aspectos mais importantes do modelo agroecológico é a revitalização da “cultura camponesa”, com o
“resgate dos valores que os camponeses construíram ao longo de sua história, tendo como base a solidariedade e
igualdade entre si” (Silipandri, 2009, p. 243)
111

Entretanto, o processo de transição agroecológico, por si só, não parece suficiente para

uma mudança efetiva nas relações familiares e de gênero e da divisão sexual do trabalho no

campo. Siliprandi (2015) questiona até que ponto as propostas de mudanças nos modelos

produtivos conseguem romper com as formas tradicionais de família, onde as relações de poder

entre os seus membros estão rigidamente estabelecidas, e se as práticas agroecológicas são mais

favoráveis a um projeto emancipatório das mulheres.

Em pesquisa junto a uma comunidade em fase de transição agroecológica no Paraná,

Reginaldo Magalhães (2005) percebeu que as mulheres se encarregavam da produção

agroecológica, no entanto, uma vez que tal produção passava a gerar lucro, era comum que o

recurso fosse administrado pelos maridos e/ou que os homens tomassem a frente do processo.

Já Patrícia Mourão (2008) mostra que, mesmo em comunidades onde todos se engajam em um

tipo de produção agroecológica, ainda é presente a divisão sexual do trabalho em que os homens

se encarregam da produção de produtos que trazem mais lucro, enquanto às mulheres é dado o

trabalho da produção alimentar da família. É importante também considerar que, muitas vezes,

a participação das mulheres em movimentos políticos e sua inclusão produtiva pode significar

um aumento da carga de trabalho para as mesmas ou acentuar uma série de conflitos na esfera

privada.

Além disso, os significados referentes à mobilização política em torno do projeto

agroecológico são diferentes para homens e mulheres, o que se constitui, muitas vezes, em

diferentes projetos que nem sempre dialogam entre si. Processo semelhante é apontado por

Schwade (2014) que, ao estudar a trajetória de mulheres militantes do MST, percebeu que a

dinâmica da produção de prática e representações associadas aos papéis masculinos e femininos

é portadora de singularidades, ainda que em referência a um mesmo projeto militante.

A necessidade de estabelecer um diálogo entre o movimento feminista e a pauta da

agroecologia aparece de forma constante em diversos espaços do movimento, em sua identidade


112

visual, nos discursos, pautas, etc. Dentro da ANA e em várias das redes que a compõem é

estabelecida a paridade de gênero entre os componentes das esferas deliberativas.

A articulação política das mulheres da ANA se dá em torno de alguns eixos principais

como: sementes e transgênicos; sociobiodiversidade; construção do conhecimento

agroecológico; educação do campo; financiamento e agroecologia; reforma agrária e

reconhecimento dos territórios das comunidades tradicionais; agroecologia, abastecimento e

construção social dos mercados; normas sanitárias; saúde e agrotóxicos, reconhecimento do

cuidado feito através de plantas medicinais, entre outros. Para além dessas pautas, comuns ao

movimento agroecológico como um todo, as mulheres da ANA trazem questões específicas.

Durante a Marcha das Margaridas realizada no ano de 2015 na cidade de Brasília, um

debate central presente nas plenárias foi o fortalecimento da perspectiva feminista dentro do

movimento agroecológico: descentralizar e crescer os coletivos de mulheres, garantir paridade

e sempre pautar o debate das mulheres nos espaços do movimento, indo além da equidade

quantitativa para pensar na participação qualitativa e já existente das mulheres no debate da

agricultura familiar, além de trazer aportes das suas experiências, visibilizar o protagonismo,

mapear ações, práticas e organização.

É interessante notar que, mesmo não se tratando de uma mobilização oficialmente

feminista, esse é um termo que estará presente em quase todas os debates e bandeiras de luta

das trabalhadoras rurais dentro da Marcha, sendo que no chamamento oficial da Marcha

realizado pela Contag, a palavra feminista só aparece duas vezes, quando são apresentados em

seus objetivos políticos a necessidade de realizar “uma crítica ao modelo de desenvolvimento

hegemônico a partir de uma perspectiva feminista.” (CONTAG, 2015, p. 5).

Em uma das plenárias realizadas na Marcha, cujo tema era agroecologia, onde mulheres

lançaram uma carta em que declaram seus princípios e objetivos, o feminismo vai estar presente

em todas as discussões realizadas:


113

Quando falamos das mulheres na construção da Agroecologia estamos pensando na terra


e no seu cuidado, na defesa do território soberano, na dimensão dos saberes populares,
na relação do cuidado com o alimento sadio e justo e a compreensão do nosso corpo e
da nossa comunidade também como territórios soberanos. Estamos falando das lutas das
mulheres por direito à terra, no trabalho das mulheres na garantia da soberania alimentar
de seus familiares, comunidades e território. Estamos falando da luta das mulheres pela
saúde na sua integralidade e dos desafios que enfrentam cotidianamente nessa
empreitada pela garantia de direitos. (CARTA..., ANO, p. xx ou n.p.)

Assim, elas trazem visibilidade aos conhecimentos das mulheres no campo

agroecológico, mas também trazendo à tona as desigualdades de gênero com que se confrontam

cotidianamente: a violência sexual, a violência obstétrica, a violência simbólica, a violência nos

espaços públicos que dificulta nossa livre circulação pela cidade, as violações de direitos no

campo da saúde, dentre outros (Ver Figura 817). Nesse momento também foi lançada uma

moção de repúdio ao Projeto de Lei (PL) 5069/13 que dificulta o atendimento a mulheres que

estiveram em situação de violência sexual, determinando o fim da distribuição de pílulas do dia

seguinte e obrigando as mulheres a fazerem um Boletim de Ocorrência antes de receberem os

cuidados médicos necessários.

17
Todas as imagens foram feitas por mim, salvo quando forem referenciadas.
114

Figura 1. Painel sobre gênero e agroecologia

Outra questão importante debatida na plenária da Agroecologia na Marcha das

Margaridas foi protagonizada por mulheres do coletivo nacional de agricultura urbana e se

refere à não naturalização do trabalho do cuidado como uma responsabilidade das mulheres. As

mulheres declaram que:

Essa ideia, relacionada à imagem do instinto materno e do cuidado pode ser bonita, mas
às vezes viola nosso direito de escolher os papéis que queremos assumir tanto na
agricultura e na produção como nas nossas próprias vidas e no mundo, reproduzindo a
sobrecarga de trabalho sobre nós. Não podemos afirmar de antemão o papel das
mulheres como as grandes cuidadoras de todos e tudo. Pois, muitas vezes, isso não é
uma escolha e nos deixa de fora nos papéis de tomada de decisões, nas falas e na
ocupação de espaços políticos. Precisamos romper com a construção social do que é ser
mulher, e qual o seu papel.

Dessa forma, percebe-se uma problematização das ideias propagadas por algumas

correntes, em especial as de inspiração “espiritual”, dentro do ecofeminismo. Assim, as

mulheres oriundas dos meios urbanos evidenciam a tensão existente entre as diferentes

concepções da pauta feminista ao reivindicarem o direito de escolha com discussões acerca de

temas que historicamente foram vistos como tabu dentro do movimento de mulheres
115

camponesas, como a visão do aborto como uma questão de saúde pública e direito das mulheres

ao seu corpo, sendo utilizada constantemente a ideia de direito ao corpo como metáfora para a

questão de direito aos territórios em disputa no campo. Assim, vemos que a ideia de corpo

enquanto território privilegiado de luta, algo já bastante discutido dentro do movimento

feminista como um todo, desponta dentro da agroecologia e do discurso ambientalista com uma

grande carga simbólica, ligada à questão da natureza.

A relação entre o movimento feminista, ambiental e principalmente agroecológico

chama atenção para as interseções que esses movimentos trazem em suas bandeiras de luta e os

múltiplos engajamentos políticos das pessoas que compõem esse cenário. Nesse sentido, vemos

que os discursos sobre gênero e o entendimento sobre o que é feminismo são muito diversos e

estão em constante negociação dentro do movimento e a partir da construção de objetivos em

comum. Nesse contexto, é importante problematizar como se dá a constituição dessas sujeitas

políticas, entendendo como os saberes, presentes nas práticas da agroecologia, compõem as

subjetividades dos sujeitos que a formam e quais são, de fato, os impactos desse modelo de

produção na vida das comunidades, das mulheres militantes e de suas famílias.

Nesse sentido, vale questionar até que ponto os princípios subjacentes a tais leituras –

do feminismo liberal, do feminismo marxista e do ecofeminismo – ao invés de promoverem o

empoderamento das mulheres, não as mantém presas a um sistema rígido de gênero, ao

naturalizar o cuidado das mulheres com o meio ambiente, mesmo considerando o caráter

contingencial dessas construções.

De maneira geral, percebemos com as analises dos documentos realizada nesse capítulo,

que as normativas das agências internacionais, especificamente a partir da ONU, tem grande

peso na formulação não só das ações de organizações que trabalham diretamente com os

organismos através de seus fundos de investimento, mas também dos próprios movimentos

sociais que hora se autonomizam, hora contam com a ação de instituições mediadoras como
116

organizações não governamentais para desenvolver suas ações. Na esfera específica da ANA,

essa institucionalização esteve diretamente ligada aos governos dos Partidos dos Trabalhadores,

o que também teve grande impacto no que foi construído enquanto política e programa de

agroecologia.

Percebemos que os discursos sobre igualdade e binarismo de gênero são mobilizados

em todas as esferas, sem questionamentos sobre tais conceitos, apesar de haver uma

problematização por parte dos movimentos de mulheres da agroecologia sobre a ideia de

igualdade e desenvolvimento como objetivo a ser alcançado na luta das mulheres. Por outro

lado, os documentos da FAO não questionam tais conceitos e incentivam a produção individual

como forma de “empoderamento”. Vemos ainda que há um reforço de um discurso homogêneo

sobre o que é ser mulher na agroecologia, com ênfase à esfera do cuidado familiar.

Discuto no próximo capítulo alguns dessas aproximações entre o feminismo e

agroecologia através das questões surgidas no movimento de mulheres da Zona Oeste e na

constituição dessas mulheres enquanto protagonistas na luta agroecológica urbana no Rio de

Janeiro.
117

Capítulo 4: A agroecologia urbana e a ocupação das cidades

Neste capítulo desenvolvo um debate sobre a agroecologia no contexto das cidades. Na

primeira seção, teórica, apresento a emergência do movimento agroecológico no Brasil a partir

dos seus marcos históricos mais importantes; no segundo segmento abordo como a

agroecologia chega nos meios urbanos e suas contribuições; na terceira apresento uma

discussão sobre a agroecologia urbana e a constituição de outras formas de ocupação das

cidades ao refletir sobre a produção de subjetividade e políticas; na última seção construo uma

apresentação a partir de dados empíricos, do contexto cenário da agroecologia e agricultura

urbana na cidade do Rio de Janeiro.

Com isso, busco compreender como a agroecologia e mais especificamente a

agroecologia urbana que se constitui a partir dos movimentos sociais de agricultores familiares

impacta e modifica o fazer político, a formação de redes e a experiência de cidade.

A emergência do movimento agroecológico no Brasil

No período após a 2ª Guerra Mundial, dá-se a emergência de novos temas nas pautas

sociais e políticas globais, entre eles a pauta ambiental que ganha força a partir da percepção

dos efeitos da atividade capitalista com o aumento da poluição, contaminação dos solos, da

água e do ar, acidentes radioativos, desmatamento e a extinção de espécies de plantas e animais.

Da mesma forma, assistimos uma crescente preocupação em relação à grande desigualdade


118

social provocada pelos sistemas socioeconômicos vigentes, a diferença no acesso aos recursos

naturais e ao conhecimento.

Em 1962, Rachel Carlson publica seu famoso livro Primavera Silenciosa, no qual

questiona o modelo agrícola convencional e sua crescente dependência do petróleo como matriz

energética. Já em 1972, é realizada a Conferência Internacional sobre Meio Ambiente de

Estocolmo que marca a entrada da temática ambiental na agenda internacional.

Um dos maiores marcos dessa emergência refere-se ao lançamento do informe do Clube

de Roma em 1972, “Os limites do crescimento,” que foi responsável por mudar a direção dos

debates ambientais que vinham se desenvolvendo na esfera internacional até então, trazendo à

baila pela primeira vez o conceito de “desenvolvimento sustentável”, o qual discutiremos

detalhamente ao longo do capítulo. Já na década de 1980, os movimentos ecológicos vão

contribuir para levar a crítica ao capitalismo industrial à esfera pública e promover um ideário

emancipatório que muda os rumos da história política do campo ambiental.

No Brasil, temos como marco inicial do movimento ecológico na décadas de 1970, em

setores específicos da sociedade, como trabalhadores de organizações civis e, ainda, na esteira

de movimentos de contracultura e comunidades alternativas. Nos anos de 1980, assiste-se ao

crescimento do movimento de Agricultura Alternativa no país que ganha força com a realização

de três Encontros Brasileiros de Agricultura Alternativa (EBASS), nos anos de 1981, 1984 e

1987. Segundo Bernal e Martins (2015), os dois primeiros EBASS concentram-se no debate

acerca dos aspectos tecnológicos e na degradação ambiental provocada pelo modelo agrícola

trazido pela Revolução Verde, o que se refletia nas diversas correntes de agricultura alternativa

que surgiram naquela época: agricultura orgânica, agricultura biodinâmica, agricultura natural,

agricultura biológica etc.

Já o terceiro encontro privilegiou o debate sobre as condições sociais da produção

agrícola, sobrepondo as questões políticas e sociais sobre as questões ecológicas e técnicas. A


119

partir do terceiro EBAA, foram realizados diversos Encontros Regionais de Agricultura

Alternativa (ERAAA), nos quais os problemas ambientais decorrentes da produção

convencional de alimentos passaram a ser associados ao sistema capitalista. Os aspectos

socioeconômicos, juntamente com os aspectos ecológicos e técnicos, passaram a compor a

pauta do debate sobre a produção de alimentos em todo o mundo (Airton Pianna, 1999).

Ainda nos anos de 1970/1980, vemos a retomada dos movimentos camponeses e das

lutas sociais no campo, a partir da abertura democrática. Surgem importantes movimentos como

o MST, é criada a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e há a implantação das Comunidades

Eclesiais de Base (CEBs), gestando um novo Sindicalismo no qual se discutia, de maneira

crítica, as transformações que ocorriam no campo e uma proposta para uma agricultura

alternativa à revolução verde. O movimento ambientalista brasileiro ganha um caráter ainda

mais combativo, popular e sindical a partir do Movimento Seringueiro que, através da liderança

de Chico Mendes18, vai lutar pela criação de reservas extrativistas pautando a importância da

proteção ambiental para a reprodução dos povos da Amazônia.

Nos anos seguintes, na década de 1990, surgem diversas ONGS que objetivam pensar

formas alternativas de trabalho agrícola em todas as regiões do país, como o Projeto

Tecnologias Alternativas-FASE (PTA-FASE), os Centros de Tecnologia Alternativa (CTA) e

a Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA). No mesmo período,

em 1992, é realiza no Rio de Janeiro a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente

e o Desenvolvimento, também conhecida como Eco-92, Cúpula da Terra ou Rio-92. Essa

conferencia vai colocar a pauta ambiental no centro da agenda política internacional com o

Brasil assumindo um lugar de protagonista nesse processo.

18
Líder do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, no Acre, do qual foi presidente até seu assassinato em
1988, devido à sua luta em prol da proteção do meio ambiente na Amazônia.
120

Aos poucos, a agroecologia vai se estabelecer também como campo científico e

substituir a agricultura alternativa enquanto estratégia produtiva “sustentável”. Em 1989, cria-

se o Consórcio Latino-Americano de Agroecologia e Desenvolvimento Sustentável

(CLADES). No final dos anos 90, surgem a Rede Ecovida de Agroecologia e a Articulação no

Semiárido Brasileiro (ASA). Inicia-se no Brasil, a partir dos anos 2000, os Encontros Nacionais

de Agroecologia e a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), espaço de articulação entre

redes e organizações voltadas para a promoção da agroecologia, além dos Congressos

Brasileiros de Agroecologia (CBA) realizados a partir de 2003, promovidos por instituições de

ensino, pesquisa e extensão rural, sendo criada em 2004 a Associação Brasileira de

Agroecologia (ABA).

Ainda no início dos anos 2000, os movimentos sociais passam a se apropriar

sobremaneira dos discursos e práticas da agroecologia, em especial os movimentos de luta pela

terra ligados à Via Campesina, como o MST, o Movimento de Pequenos Agricultores (MPA)

e o MMC, que entendem a agroecologia como uma estratégia de luta em prol da justiça

socioambiental, sendo essa uma de suas principais bandeiras de luta. Para Felipe José

Comunello (2012) o protagonismo dos movimentos sociais no campo da agroecologia

corresponde a um quarto momento do movimento ecológico no Brasil.

Com a invasão dos transgênicos no mercado de sementes agrícolas e a expansão do

modelo agroexportador baseado no domínio das multinacionais sobre as sementes e insumos

agroquímicos, há um aumento do desmatamento das florestas com a expansão da fronteira

agrícola, fazendo com que o Brasil se tornasse líder mundial no consumo de agrotóxicos

(Carneiro et al., 2015). A adoção de modelos de produção ambientalmente insustentável e

socialmente injusta tem, dessa forma, levado à exaustão dos recursos naturais disponíveis e a

expulsão de famílias do campo. Diante desse cenário, cresce também o movimento de


121

resistência dos movimentos socioambientais a partir da reivindicação do modelo camponês e

agroecológico de produção e de gestão da vida.

Podemos dizer que existem no Brasil pelo menos dois campos e entendimentos

majoritários sobre agroecologia: o campo técnico-científico e o dos movimentos sociais. Essa

polissemia reflete a abrangência desse debate, que gradativamente vem ganhando espaço

também no que se refere às discussões na esfera ética e política (Luiz Antonio Norder et al.,

2016).

Nas últimas duas décadas a agroecologia brasileira foi caracterizada pela questão

ambiental (tecnologias produtivas e de manejo dos recursos de baixo impacto), pela justiça

social, pautando a economia solidária e o acesso à terra, e pela institucionalização em forma de

políticas públicas. A primeira lei brasileira sobre a agricultura ecológica data de 1999 e, poucos

anos depois, em 2003 o termo agroecologia é incluído como parte dos sistemas orgânicos de

produção na Lei nº 10.831 que dispõe sobre o sistema orgânico de produção agropecuária.

Na esfera global, a FAO e a Organização Mundial de Saúde (OMS) vêm pautando, cada

vez mais o debate da agroecologia como uma questão de saúde e de segurança alimentar.

Localmente, percebe-se durante os governos do presidente Luis Inácio Lula e da presidenta

Dilma Rousseff do Partido dos Trabalhadores e com a emergência dos governos de esquerda

em toda a América do Sul que a agroecologia passa a estabelecer-se enquanto política de Estado

e seus militantes a compor quadros governamentais e de instituições públicas.

Essa institucionalização da agroecologia vem sendo vista com cautela por movimentos

de base com o uso dos saberes agroecológicos na perspectiva do uso técnico para os interesses

do capital. Em entrevista cedida ao site do MST19 em 2015, Peter Rosset, liderança da Via

Campesina internacional, frisou que a questão agroecológica vive um cenário de disputa com

19
Disponível em: http://www.mst.org.br/2015/06/26/via-campesina-critica-apropriacao-da-agroecologia-pelo-
capital.html
122

dois processos distintos: o da institucionalidade a partir dos simpósios da FAO em que a aposta

é consolidar uma agroecologia comercial; e o dos movimentos sociais, composto por uma série

de saberes entre diferentes setores da sociedade, tais como os povos originários e trabalhadores

rurais que “buscam alcançar o consenso de uma agroecologia transformadora, de resistência e

de luta popular” (n.p.).

Nesse sentido é notório que nos últimos anos a economia verde tem se apropriado do

discurso agroecológico como estratégia de expansão de mercado a partir da maior

conscientização da população sobre as questões ambientais. A economia verde é definida pelo

Programa das Nações Unidos para o Meio Ambiente (PNUMA) como uma economia que

promove a melhoria do bem-estar humano e a igualdade, e, ao mesmo tempo, reduz os riscos

ambientais e a escassez ecológica, ou seja, a economia verde é uma forma de desenvolvimento

empreendido pelo poder público, organismos e agências internacionais e setores empresariais

que defendem a possibilidade de conciliação entre desenvolvimento econômico e conservação

ambiental, o que também dá-se o nome de desenvolvimento sustentável (Rede Jubileu Sul

Brasil, 2012).

A economia verde (ou desenvolvimento sustentável) tem sido chamada por diversos

movimentos de esquerda, ambientais e pelo movimento agroecológico de “capitalismo verde”

pela mercantilização dos recursos naturais que ela pressupõe. Para Sevilla Guzmán e Gonzalez

Molina (2005):

A única solução para o problema socioambiental que atravessamos está num manejo
ecológico dos recursos naturais, em que apareça a dimensão social e política que traz a
agroecologia e que esteja baseada na agricultura sustentável que surge do modelo
camponês em sua busca por uma soberania alimentar (Guzmán & Molina, 2005, p. 11).

Nesse sentido, o movimento agroecológico vai apontar para a necessidade de pensar

outras formas de lidar com a questão socioambiental para além do modelo de desenvolvimento

hegemônico, questionando a possibilidade de promover justiça socioambiental no capitalismo.


123

Assim, vemos que o movimento agroecológico surge no Brasil em meio a um debate

maior sobre a questão ambiental e vai ganhando diversos contornos na medida que diferentes

atores sociais entram em cena. A complexidade de temas, atuações e estratégias contempladas

pela agroecologia abre espaço para novas formas de viver a questão ambiental não só no que se

refere à produção agrícola no meio rural, mas também sobre como incorporar a agroecologia

na esfera urbana, pensando a produção de alimentos, mas também redes de comercialização,

integração comunitária e formas de ocupação urbana como veremos no próximo tópico.

Os caminhos da agricultura familiar de base agroecológica nas cidades

Para Lara Oliveira (2016), a dificuldade de compreender o funcionamento da agricultura

familiar deve-se ao seu caráter essencialmente complexo e multifuncional, não sendo apenas

uma forma de produção, mas um modelo de reprodução da vida. Sua heterogeneidade pode ser

atribuída, em certa medida, à capacidade dessa agricultura reinventar-se e adaptar-se às novas

configurações nos territórios.

Em termos gerais, podemos dizer que a agricultura familiar constitui-se como um modo

de produção onde trabalho, terra e família encontram-se intimamente relacionados. Nas duas

últimas décadas ocorreram mudanças em termos de políticas públicas para a agricultura familiar

no Brasil. Em síntese, de acordo com Catia Grisa e Sérgio Schneider (2015), num primeiro

momento, essa forma social passa a ser vista como relevante na produção de alimentos e na

geração de empregos, mas ainda sob o referencial agrícola predominante. No segundo

momento, a partir de reivindicações dos movimentos sociais e sindicais sobre a diversidade

dessa agricultura, é criada uma série de programas cujos referenciais são sociais e assistenciais,

voltados para o enfrentamento à pobreza rural. A terceira geração das políticas públicas para a

agricultura familiar orienta-se para a construção de mercados, via programas institucionais


124

como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação

Escolar (PNAE), e reconhece o papel da agricultura familiar na segurança ambiental e na

sociobiodiversidade. Nessa última, tem destaque a participação de atores vinculados à

segurança alimentar e à agroecologia, gestores públicos e representantes de movimentos sociais

e sindicais.

É evidente que a luta por direitos empreendida pelos movimentos sociais vem resultando

em mudanças da atitude do Estado no que se refere às políticas públicas agrícolas. Contudo,

apesar dos avanços, essas políticas ainda não contemplam a heterogeneidade de atores e

práticas, menos ainda, quando se trata da agricultura produzida em meios urbanos.

Não são raros os casos de localidades com forte potencial agrícola que foram engolidas

pela crescente urbanização. Com isso, as famílias cujo sustento depende da atividade agrícola

e têm suas propriedades localizadas em área urbana, sofrem diversas ameaças para sua

reprodução, tais como especulação imobiliária, pobreza, desigualdade social, desemprego,

violência, segregação espacial e ausência de mobilidade. Além disso, suas dificuldades são

agravadas por não serem consideradas na formulação das políticas públicas.

Por outro lado, a proximidade com um grande mercado consumidor pode ser vista como

uma oportunidade para garantir a sobrevivência dessa produção. Ademais, a agricultura urbana,

apoiada pelo poder público, pode contribuir para a segurança e soberania alimentar de

comunidades em situação de vulnerabilidade. Entretanto, para a elaboração de políticas

públicas adequadas, é necessário compreender a diversidade de estratégias desenvolvidas por

essas famílias para garantir seu sustento através da atividade agrícola, mas os estudos sobre

agricultura urbana ainda são recentes e escassos.

De acordo com o relatório “Perspectivas da Urbanização Mundial” (World

Urbanization Prospects) produzido pela Divisão das Nações Unidas para a População do

Departamento dos Assuntos Económicos e Sociais/United Nacion Division for Economic and
125

Social Affairs (DESA, 2015), 54% da população mundial vive em áreas urbanas, uma proporção

que se espera venha a aumentar para 66 % em 2050. O relatório também aponta para a previsão

de que em 2030, 80% da população urbana estará concentrada em cidades de países em

desenvolvimento, sendo esse processo de urbanização intimamente ligado ao crescimento da

pobreza e da insegurança alimentar.

Atualmente, quase um terço da população mundial vive em favelas e ocupações

informais. Dados da FAO (2009) mostram que os pobres urbanos, em especial mulheres e

crianças por razões que discutiremos à frente, são os mais afetados no que refere a falta de

segurança alimentar, pois dependem quase exclusivamente da compra de alimentos, geralmente

importados ou trazidos de áreas rurais cada vez mais distantes dos centros urbanos, estando

submetidos às variações de preços e de renda, o que compromete o poder de compra, a

variedade, a quantidade e a qualidade dietética, componentes que somados às condições de vida

e trabalho têm contribuído para o aumento da desnutrição e de doenças crônicas. Tais números,

somados ao agravamento das crises climática, energética, alimentar e social, que vem ocorrendo

desde os anos de 1990, evidenciam a insustentabilidade do modelo de gestão ambiental e da

urbanização não planejada em escala global.

Nesse cenário, experiências de produção e consumo sustentável de produtos agrícolas

nas cidades vêm aumentando e ganhando visibilidade em todo o mundo. Para Adriana Aquino

e Renato Assis (2007), a associação quase instantânea que é feita entre agricultura e meio rural

pode levar a uma impressão de incompatibilidade entre agricultura e meio urbano, entretanto,

a AU não é uma atividade recente e sempre se expressou nas áreas urbanas, mesmo que muitas

vezes restrita a pequenos quintais produtivos, hortas em escolas, em associações de moradores,

etc.

A AU tem despertado um crescente interesse, tanto dos urbanistas quanto dos

pesquisadores e responsáveis por elaboração de políticas públicas, na medida em que se


126

apresenta como uma estratégia que pode contribuir para o desenvolvimento de cidades

produtivas e ecológicas, que promovam segurança alimentar e nutricional. Para além da questão

alimentar, a prática da AU está relacionada também com o lazer, a saúde, a cultura, a economia

e o reordenamento urbano sustentável (Alain Santandreu & Ivana Lovo, 2007).

Mas afinal, o que caracteriza a AU?

Embora o conceito de AU ainda esteja em construção, já vem sendo utilizado por

organismos internacionais, como o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento

(PNUD) e pela FAO, além de diversas organizações não governamentais e governos do mundo

inteiro. A questão conceitual da AU passa pelo questionamento sobre o que há de próprio nessa

prática, para que ela seja considerada objeto de investigação e de políticas específicas. De

acordo com Santandreu e Lovo (2007), a AU inclui a produção, a transformação e a prestação

de serviços para gerar produtos agrícolas e pecuários voltados ao auto consumo, trocas e

doações ou comercialização, (re) aproveitando-se, de forma eficiente e sustentável, dos recursos

e insumos locais (solo, água, resíduos, mão-de-obra, saberes etc.), em espaços interurbanos,

urbanos ou periurbanos, estando vinculadas às dinâmicas urbanas ou das regiões metropolitanas

e articuladas com a gestão territorial e ambiental das cidades. É importante destacar que não é

a localização urbana que distingue a agricultura urbana da agricultura rural, senão o fato de que

está integrada e interage com o ecossistema urbano (Aquino & Assis, 2007).

No Brasil diversos atores sociais têm se mobilizado em torno da prática de AU, como o

terceiro setor, associações comunitárias, incubadoras de empreendimentos sociais voltadas para

beneficiários do Programa Bolsa Família, etc., entretanto, como mostra Bruno Prado (2012),

essa agricultura ainda tem sido pouco valorizada, ou até desconsiderada, pelo poder público,

especialmente no que se refere ao reconhecimento das iniciativas de AU como uma forma de

agricultura familiar. Isso pode ser expresso pela ausência de uma Lei ou marco regulatório da
127

AU20 e pela dificuldade de obtenção da Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP), o que

inviabiliza a inclusão desses produtores em programas de fortalecimento da agricultura familiar

como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação

Escolar (PNAE), programas estes que com a extinção do Ministério do Desenvolvimento

Agrário (MPA) estão sob ameaça de desaparecer.

Isso acontece porque mesmo se enquadrando no perfil necessário para emissão da DAP,

realizando atividade agrícola de base familiar, o fato desses agricultores estarem mais próximos

à realidade urbana põe em cheque alguns critérios utilizados para acessarem este documento,

em especial naquelas cidades onde o Plano Diretor Municipal não reconhece existência de áreas

rurais.

Diante dessas questões, o conceito de AU vêm ganhando uma força nos últimos anos,

fazendo com que vários produtores se identifiquem como agricultores urbanos e se organizem

em redes de produção, comercialização e beneficiamento, além de reivindicarem o

reconhecimento de suas práticas através de políticas, subsídios e uma legislação específica de

fomento à AU. Ao mesmo tempo esse movimento vem pautando a importância do

desenvolvimento da AU a partir paradigma da agroecologia, levando em consideração a inter-

relação homem - cultivo - animal - meio ambiente e as facilidades da infraestrutura urbanística

que propiciam a estabilidade da força de trabalho e a produção diversificada de cultivos e

animais durante todo o ano, baseadas em práticas sustentáveis que permitem a reciclagem dos

resíduos (Grupo Nacional de Agricultura Urbana [GNAU], 2001).

Desse modo, o sistema de produção orgânico de base agroecológica é considerado

especialmente apropriado para o contexto urbano posto que: a) a baixa dependência de insumos

externos facilita a adoção de agricultura em pequena escala; b) possibilita aumento de renda

20
Atualmente um projeto de lei, o PL 906/2015, que busca regular a AU no país está em tramitação na Câmara dos
Deputados.
128

para as famílias produtoras ao agregar valor aos produtos e ampliar o mercado, facilitando a

comercialização; c) promove a segurança alimentar e a saúde das pessoas envolvidas por

possibilitar a produção e o consumo de alimentos sem agrotóxicos; d) tem a capacidade de

manter e/ou recuperar a biodiversidade dos agroecossistemas do entorno (Aquino & Assis,

2007).

Assim, não apenas a perspectiva econômica e produtiva, mas a noção de

multifuncionalidade da agricultura (Annelise Fernandez, 2014) deve ser adotada para a

compreensão da relevância da agricultura familiar de base agroecológica nas áreas urbanas,

considerando seus impactos nas dimensões identitárias, de subsistência, bem-estar, conservação

da natureza, sociabilidade e reconhecimento dos sujeitos envolvidos.

A AU e as múltiplas questões envolvidas em sua prática abrem espaço para uma

discussão sobre os modos de vida promovidos pelo espaço urbano em sua relação com o rural,

relação esta que por muito tempo foi compreendida a partir da ideia de uma oposição mútua.

Prado (2015), entretanto, traz um debate interessante sobre tal relação a partir de um conjunto

de fenômenos que refutam as profecias alardeadas pelos teóricos do desenvolvimento rural e

da Sociologia Rural clássica que previam o inexorável desaparecimento das comunidades e dos

modos de vida considerados rurais:

O processo de modernização da agricultura não só não confirmou tais previsões, como


hoje se veem reafirmados – não sem obstáculos, é importante constatar – os modos de
vida do mundo rural e do campesinato em conexões inéditas com as cidades e regiões
metropolitanas. Nestas, que por muito tempo foram entendidas como ápice do projeto
modernizante, do consumo acelerado e da desconexão com a natureza, assistimos à
generalizada emergência de práticas que respondem contrariamente àquele projeto, seja
na valorização dos meios alternativos de transporte, na retomada do uso dos espaços
públicos ou nos movimentos sociais que reivindicam o direito a uma outra cidade
(Bruno Prado, 2015, p. 6).

É nesse contexto, portanto, que a AU (entendida no presente trabalho a partir do

paradigma agroecológico) emerge enquanto um importante conceito político e uma tecnologia


129

alternativa de desenvolvimento que, junto a outras estratégias como a multiplicação de redes

coletivas de consumo e das feiras agroecológicas, sinalizam para o público das cidades uma

série de possibilidades e práticas mais sustentáveis inspiradas no modo de vida “campesino”

como a valorização do consumo de alimentos frescos e da produção de agricultura familiar, a

relação direta entre os produtores e os consumidores, fortalecimento das relações locais e

territoriais, etc.
21
Assim, ao mesmo tempo em que o Capitalismo Mundial Integrado amplia a

hegemonia de um determinado modelo de desenvolvimento, assiste-se ao aparecimento de

vários contramovimentos e estratégias de resistência, como a agroecologia, o movimento de

direito à cidade, os movimentos pela reforma agrária e o movimento de AU, que não possuem

um formato único e tão pouco têm causas inteiramente comuns, mas mobilizam sujeitos e

coletivos, tanto nos campos quanto nas cidades, evidenciando a grande confluência das crises

que afligem as sociedades contemporâneas.

Nesse sentido, faz-se necessário ampliar o debate acerca das conexões entre rural e

urbano e suas dinâmicas geográficas, sociais e produtivas. Essa discussão, já muito

desenvolvida no âmbito dos estudos sobre desenvolvimento rural, vem ganhando novos

contornos a partir do século XXI, pois, como nos aponta Carneiro (2007), a noção de dualidade

entre o rural e o urbano tem se demonstrado limitada e insuficiente para dar conta da realidade

das sociedades contemporâneas.

Se os espaços rurais já foram compreendidos como áreas cuja principal função era

fornecer alimentos baratos e em grandes quantidades para os consumidores urbanos, as

mudanças em curso nas dinâmicas sociais, econômicas e culturais do meio rural, a partir dos

processos de modernização da produção agrícola e de crescente urbanização, ganham novos

21
Conceito de Guattari (1989) que se refere a produção de subjetividade e sistema de governo no contexto global.
130

significados à luz de questões políticas emergentes ligadas aos temas da soberania e da

segurança alimentar, da agroecologia e dos modos de produção da agricultura familiar, de forma

que as categorias simbólicas “rural” e “urbano”, e as representações sociais que as envolvem,

se desestabilizam, impossibilitando a definição de uma fronteira clara (Prado, 2015; Maria José

Carneiro, 2008).

Entretanto, esse processo não resulta no desaparecimento do universo do rural e na

descaracterização das culturas locais rurais a partir de uma homogeneização da cultura no

sentido da urbanização, como se o campo e a cidade fossem “estágios respectivamente inicial

e final de uma mudança qualitativa” (Sahlins, 1997, p. 113). Pelo contrário, para Sahlins (1997)

a cultura é dinâmica e implica na reelaboração constante em todas as esferas do social, de forma

que a expansão da sociedade industrial e a adaptação à cidade não significam uma opção por

esse modo de vida. Seja no caso das migrações do campo para a cidade ou em localidades que

existe uma relação de troca intensa entre esses universos, os sistemas simbólicos de referência,

como mostra o autor, quase sempre remetem à terra natal ou ao contexto local de partida, como

fonte de valores e de identidades herdadas que conforma as ações e atitudes de quem vive fora.

Além de um espaço geográfico e administrativo, tomando emprestada a noção de

território vivo de Milton Santos (2008), entendemos que o território é o lugar de construção de

relações pessoais, sociais, políticas e culturais que influenciam o modo da vida das pessoas que

o habitam.

No território também se expressam necessidades e potencialidades das pessoas que o

vivenciam, resultando diferentes modos de apropriação do espaço. Como reflexo das relações

sociais, os territórios são objetos e agentes de mudanças sociais e, portanto, devem ser

compreendidos como realidades vivas que ganham sentido pelo habitar de seus moradores. De

acordo com Dirce Koga (2003):


131

A apropriação do território diz respeito ao aspecto interventivo realizado pelos homens,


criando e recriando significados em torno dessa apropriação cotidiana. Nesse sentido,
utiliza-se também o termo territorialidade, como uma maneira singular de se apropriar,
fazer uso da terra, do território. Dessa forma, a territorialidade se faz pelos significados
e ressignificações que os sujeitos vão construindo em torno de suas experiências de vida
em dado território (Koga, 2003, p. 38).

Partindo dessas considerações entendemos que o território engloba dimensões materiais

e subjetivas, pois são lugares de experiências vividas através dos significados e representações

individuais e também compartilhadas.

Assim vemos devemos pensar as categorias “rural” e “urbano” como representações

sociais, a partir de determinadas formas de apropriação o dos recursos materiais, naturais e

simbólicos, sendo a agroecologia uma expressão dessa mútua constituição. Nesse sentido, ao

pensar a agroecologia nas cidades, como apontam Júlio Suzuki e Vincent Berdoulay (2016), já

não estamos mais falando, apenas, da dimensão produtiva dos cultivos:

(...) do seu significado utópico de outra cidade, em que se busca criar outra relação com
o verde e a biodiversidade, bem como de estabelecer novos parâmetros de relação entre
os citadino e com o ambiente urbano, em que a ajuda e a troca de conhecimentos, tão
presentes na tradição rural, estejam presentes na expansão da agricultura urbana em suas
diversas e variadas faces como mediação necessária para o futuro da sociedade urbana,
semeando cidades novas cidades (Suzuki & Berdoulay, 2016, p. 11).

Novas urbanidades: agroecologia e direito a cidade

As cidades são invenção humana por excelência. Nelas, a humanidade refaz o mundo

em que vive, a partir dos seus desejos, e é nela que esta humanidade está condenada a viver

(Robert Park, 1973). Como argumentam Manuela Romero e Maria Helena Zamora (2016), é

impossível pensar a subjetividade humana contemporânea separada da experiência urbana.

Com suas infinitas possibilidades e acontecimentos, as cidades são espaços privilegiados para

as múltiplas possibilidades do “ser” e “estar no mundo”, são megamáquinas produtoras de


132

subjetividade individual e coletiva, que “engendram, por meio de equipamentos materiais e

imateriais, a existência humana sob todos os aspectos”. (Guattari, 1992, p. 152).

Guattari (1992) apresenta os aspectos de produção de subjetividade pelas cidades a

partir do paradoxo da desterritorialização (com a globalização e grande circulação de pessoas,

discursos publicitários, tecnologias) e homogeneização dos modos de ser e existir. Em um

mesmo sentido, vários autores de diferentes áreas, como Arquitetura, Urbanismo, Psicologia e

Antropologia, vêm discutindo o modo hegemônico que opera a administração do corpo da

cidade, a partir da ideia de “espetacularização urbana” como uma construção da experiência

urbana, que é pautada por princípios segregadores e despolitizadores, que lhe conferem um

sentido mercadológico, turístico e consumista (Fabiana Britto & Paola Jacques, 2009).

A espetacularização urbana pode ser entendida como o processo de construção da cidade

por meio de uma arquitetura espetacular e um urbanismo integrado aos padrões éticos e

estéticos da mundialização (Izabela Teobaldo, 2010). Esse processo tem como efeito o

empobrecimento da experiência urbana dos seus habitantes e, à medida que os espaços públicos

vão sendo esvaziados, a cidade aos poucos deixa de ser o espaço da diversidade, com um

progressivo abandono do social e da urbanidade ou, como aponta Eliana Kuster (2014, p. 54),

“uma decadência do sentido de cidade”. Para Britto e Jacques (2009), esse modo de

subjetivação manifesta-se na formulação dos discursos e comportamentos que permeiam e, até

mesmo, fundamentam desde os planejamentos e ações da administração pública das cidades até

as próprias relações mais íntimas de seus habitantes.

Nos regimes de subjetivação urbana do neoliberalismo, a vida coletiva das cidades é

sobrepujada pelo domínio do privado. Crescem as práticas de segregação social em nome do

desenvolvimento urbano, valendo-se de técnicas sofisticadas de vigilância, policiamento e

arquitetura, que incluem a criminalização da pobreza e o cerceamento dos espaços públicos

(Fernanda Amador & Daniel Fernandes, 2016). Questionamo-nos, dessa forma, sobre as
133

possibilidades de construção de subjetividades singulares e singularizantes que escapem às

modelizações dominantes na cidade.

Ao mesmo tempo em que são alvos de regimes de subjetivação ancorados em

dispositivos capitalistas, as cidades e seus habitantes são atravessados por conflitos,

heterogeneidades e resistências. À medida em que os regimes de subjetivação hegemônicos se

alargam, surgem, cada vez mais, estratégias de resistência que articulam direito, cidade e bem-

estar como diferentes expressões de uma ética que tem como ponto de partida a experiência da

diferença (Rodrigo Silva, 2003). Esses processos de resistência têm sido comumente abarcados

a partir da ideia de direito à cidade. Esse conceito, amplamente utilizado por movimentos

sociais e agentes governamentais, é um termo em disputa, no que se refere à abrangência dos

seus significados e pautas de reivindicação que comtempla.

O conceito de direito à cidade surge com o filósofo e sociólogo marxista francês Henri

Lefebvre ([1968]2001) como uma crítica ao urbanismo positivista e ao processo de alienação

dos cidadãos das questões urbanas, encaradas exclusivamente a partir dos vieses administrativo,

técnico e científico, que são fruto de relações econômicas de dominação e de políticas

urbanísticas, por meio das quais o Estado ordena e controla os indivíduos, que são vistos

enquanto objetos e não como sujeitos do espaço social. Para além do debate acadêmico, em

todo o mundo, o direito à cidade tem sido utilizado para reivindicar questões tais como o direito

à moradia, saneamento básico e mobilidade, além de ser utilizado como forma de defesa às

diversas possibilidades de ocupação das cidades.

No Brasil, o movimento pelo direito à cidade ganha força por meio do Movimento

Nacional de Reforma Urbana (MNRU), que em sua articulação consegue, junto a outros

movimentos e atores políticos, garantir a inclusão do capítulo sobre Política Urbana na

Constituição de 1988. Porém, a regulamentação do direito humano à cidade só acontece a partir

da implementação, em 2001, do Estatuto das Cidades, que institui a política urbana brasileira e
134

efetiva no ordenamento jurídico, o direito a cidades sustentáveis, entendido “como o direito à

terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos

serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações [...]” (Lei Federal

nº 10.257, 2001).

A despeito do reconhecimento formal de tais direitos, as cidades brasileiras seguem

sendo cenários de perpetuação de desigualdades econômicas e sociais, “sendo sua população,

em sua maioria, privada ou limitada – em virtude de suas características econômicas, sociais,

culturais, étnicas, de gênero e idade – de satisfazer suas necessidades básicas” (Carta Mundial

Pelo Direito a Cidade, 2006, p. 1). Como consequência, os novos atores que se agregaram às

lutas urbanas no período recente, para além de defender a implementação do Estatuto da Cidade,

passaram a difundir o direito à cidade como forma de unificar pautas que possuem formas de

expressão fragmentadas. Essa nova narrativa tem sido bem recebida e potencializada nos

espaços de articulação política, com destaque para aqueles que reúnem acadêmicos,

organizações não governamentais e movimentos sociais.

É importante ressaltar que o direito à cidade não pode ser resumido aos objetivos e

direitos individuais de ordem prática, tais como moradia e transporte, mas precisa considerar a

dimensão do comum, de abertura ao outro, de acolhimento à multiplicidade e que produz um

funcionamento difícil de capturar. Para David Harvey (2012):

O direito à cidade está muito longe da liberdade individual de acesso a recursos urbanos:
é o direito de mudar a nós mesmos pela mudança da cidade. Além disso, é um direito
comum antes de individual já que esta transformação depende inevitavelmente do
exercício de um poder coletivo de moldar o processo de urbanização. A liberdade de
construir e reconstruir a cidade e a nós mesmos é, como procuro argumentar, um dos
mais preciosos e negligenciados direitos humanos (Harvey, 2012, p. 74).

Nesse sentido, esse conceito nos instiga a pensar sobre quais resistências podem ser

construídas a partir de estratégias que potencializem diferentes possibilidades de ocupar,

experienciar e pensar a cidade, não só como práticas individuais, mas principalmente enquanto
135

um projeto amplo de ressignificação das relações construídas no e com o espaço urbano,

enquanto “cidades-devires-revolucionários” (Amador & Fernandes 2016, p. 253).

Compartilhando dessas inquietações, diversos atores vêm construindo pontes entre o

movimento de agricultura urbana e o direito à cidade, entendendo que ambos compartilham de

pautas ou convergem no sentido da tessitura de cidades sustentáveis. O direito à cidade aparece

no título da carta política do I Encontro Nacional de Agricultura Urbana (ENAU) 22, realizado,

em 2015, na cidade do Rio de Janeiro; nos documentos oficiais da 5ª Conferência Nacional de

Segurança Alimentar e Nutricional, intitulada de “Comida de verdade no campo e na cidade” e

como uma das frentes de trabalho da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), principal

espaço de articulação entre redes e organizações voltadas para a promoção da agroecologia no

país.

É nesse sentido que podemos pensar, para além do conceito de “novas ruralidades” –

largamente utilizado na Geografia e Sociologia rural para designar a ampliação das

possibilidades do rural para além da esfera da produção agrícola –, uma ideia de “novas

urbanidades”, para entender como as noções de “rural” e “campesinato” são acionadas e

ressignificadas de forma a valorizar maneiras de habitar as cidades que consideram a

sustentabilidade enquanto um direito humano à cidade.

Na esteira desse processo, assiste-se em todo o mundo a proliferação de experiências de

AU em configurações e cenários diversos. Uma das mais conhecidas e exitosas iniciativas de

AU, no que se refere à promoção de segurança e soberania alimentar, é a desenvolvida por Cuba

desde os anos de 1990. A ilha possui uma política pública nacional de produção de alimentos

orgânicos, de manejo de resíduos sólidos e compostagem através da formação de cooperativas

de produção. Outra iniciativa reconhecida pela sua abrangência é a de Vancouver, no Canadá,

22
“Agricultura Urbana e Direito à Cidade: Cultivando Saúde e Comida de Verdade”.
136

onde, desde 2003, por meio de uma política municipal de apoio a um sistema alimentar “justo

e sustentável” – o Plano de Ação Alimentar – e a formação do Conselho de Política Alimentar

de Vancouver, observou-se o número de hortas comunitárias crescer. A cidade classificou a

agricultura urbana como uma prioridade-chave para o desenvolvimento local, com impactos

significativos na promoção da alimentação saudável, da educação ambiental, geração de renda

e integração comunitária, especialmente em bairros com maior vulnerabilidade

socioeconômica.

Movimentos autônomos também chamam atenção, como a Jardinagem de Guerrilha

(Guerrilla Garden)23, movimento social transnacional com experiências documentadas em

mais de 30 países. As ações desse movimento incluem a ocupação de áreas ociosas nas cidades

para o desenvolvimento de hortas coletivas com a produção voltada para o consumo dos

moradores do entorno e estratégias de intervenção urbana por meio da arte para a

conscientização ambiental em grandes cidades. Em geral, essas hortas são constituídas em

bairros periféricos ou de áreas extremamente urbanizadas, com pouca área verde disponível.

Com mais de 30 anos, esse movimento contabiliza importantes ganhos, com a desapropriação

e construção de parques e áreas próprias para plantio reconhecidas pelo Estado em cidades

como Berkeley e Nova Iorque, nos Estados Unidos.

No Brasil, metrópoles como São Paulo e Belo Horizonte possuem políticas municipais

voltadas para a produção agrícola, ao mesmo tempo em que o número de experiências de

produção autônoma e coletiva se multiplica em diversas cidades. No Rio de Janeiro, esse

movimento vem ocorrendo, principalmente, em duas frentes: no reconhecimento da agricultura

familiar tradicional realizada na cidade e no desenvolvimento de novas iniciativas com hortas

23
Ver http://www.guerrillagardening.org/.
137

comunitárias e em quintais familiares, que confluem no fortalecimento de uma rede de ativistas

e agricultores(as) urbanos(as), como veremos a seguir.

A agricultura urbana no Rio de Janeiro: agroecologia e defesa do território

O Rio de Janeiro é a segunda maior cidade do país e conta hoje com aproximadamente

7 milhões de habitantes (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2011). De

acordo com levantamento do Sos Mata Atlantica e Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais

(Sos Mata Atlantica & INPE, 2015), o Rio de Janeiro ainda conta com uma área de mata

atlântica de 30%, considerada alta em uma grande metrópole. Entretanto, suas áreas verdes e

cultiváveis, assim como dos demais municípios da região metropolitana, vêm sofrendo drástica

e sistemática redução ao longo dos anos, principalmente devido ao avanço da urbanização e de

ocupações informais.

A sua maior área verde encontra-se na zona oeste que abriga alguns dos bairros mais

nobres da cidade como Barra da Tijuca e Recreio dos Bandeirantes, mas é composta em sua

maioria por bairros periféricos ou com características periurbanas. Essa região é cortada por um

grande maciço florestal, o Maciço da Pedra Branca que atravessa 17 bairros da cidade (ver

Figura 1). Considerada a maior reserva florestal urbana do mundo é no território do Maciço da

Pedra Branca – área que já foi conhecida como o Sertão Carioca, por contar com um grande

número de agricultores familiares, se constituindo historicamente como a área rural do

município – que está concentrada boa parte da produção da agricultura familiar da região. No

entanto, a paisagem rural do entorno vem dando lugar a loteamentos urbanos periféricos

impulsionados pela especulação imobiliária, pela política de remoção de favelas das áreas

nobres da cidade para a periferia, e pela implantação de polos industriais e grandes eventos

como a Copa do Mundo e as Olimpíadas.


138

Figura 2. Vista aérea do Maciço da Pedra Branca (Fonte: Atlas das Unidades de Conservação

do Estado do Rio de Janeiro, Instituto Estadual do Ambiente-INEA, 2015).

É no Maciço da Pedra Branca que agricultores e agricultoras têm se mobilizado na busca

por reconhecimento da prática agrícola realizada em espaços da cidade e sua inserção em

políticas públicas voltadas para a agricultura familiar. Além da natureza exuberante, guarda

parte da história e da memória do Rio de Janeiro. Ali vivem descendentes de populações vindas

de países africanos e foram escravizadas trabalhando em antigas fazendas da região. Também

estão presentes muitos descedentes de migrantes europeus que se instalaram na região no século

XIX.

As atividades agrícolas do maciço estão concentradas, especialmente, nas localidades

de Rio da Prata (bairro de Campo Grande), Taquara, Ilha de Guaratiba e Vargem Grande

(|Annelise Fernandez, 2014). Estima-se que existam cerca de 120 pequenos produtores no

Maciço da Pedra Branca, os quais, ainda que em condições extremamente desfavoráveis e sendo

quase desconhecidos para a maior parte da população da cidade (Bruno Prado, Claudemar

Mattos & Annelise Fernandez, 2012). Seu sustento é baseado na produção e comercialização
139

de bananas, caquis, macaxeira/aipim e hortaliças, além de plantas nativas como a taioba e a

bertalha. Quanto ao processo de ocupação desse território Fernandez nos conta que:

Em 1974, uma parcela significativa deste território foi transformado em Parque Estadual
da Pedra Branca (PEPB), totalizando cerca de 16% da área do município. Pode-se
entender a criação desta unidade de conservação como uma interferência do Estado
sobre as disputas entre os usos rurais e urbanos que ali se estabeleceram desde a década
de 1930 e que, na década de 60 e 70, se tornam marcantes, com a integração viária da
cidade, a expansão e consolidação das relações capitalistas no país as quais se refletem
no plano da cidade e alteram o lugar e a importância desta pequena agricultura no
conjunto das atividades econômicas desenvolvidas (Fernandez, 2014, pp. 1-2).

Na vertente de Vargem Grande do Maciço – área onde reside a maior parte das minhas

interlocutoras - a banana é o item mais importante para o sustento das famílias. Considerada

lavoura de mercado, é cultivada junto a outros produtos direcionados ao autoconsumo, que

também podem ser comercializados, como: macaxeira/aipim, milho, chuchu, jiló, limão e

taioba.

De acordo com Oliveira (2016), a prática agrícola dessas famílias possui fortes traços

de tradicionalidade, decorrentes das condições históricas em que essa agricultura se

desenvolveu e das adequações diante das restrições ambientais. Algumas características

reforçam a afirmação de tal tradicionalidade, como o “uso de técnicas ambientais de baixo

impacto, formas equitativas de organização social e traços culturais que são seletivamente

reafirmados e reelaborados” (Juliana Santilli, 2005, p. 15). Um exemplo disso são as práticas e

tecnologias de cultivos nos quintais produtivos (Ver Figuras 2 e 3).


140

Figura 3. Exemplo de quintal produtivo em Vargem Grande, Rio de Janeiro, 2017.

Figura 4. Exemplo de tecnologia de produção em quintal. Vargem Grande, Rio de Janeiro,

2018.
141

Não existem, de acordo com o plano diretor municipal, áreas consideradas rurais na

cidade do Rio de Janeiro, de forma que a categoria AU é abraçada por boa parte dos agricultores

e utilizada na reivindicação de direitos (Morgana Maselli, 2015). Entretanto, os dados do

penúltimo Censo Agropecuário do IBGE24 (2006) evidenciam a relevância da agricultura na

cidade: concentrando 53% da população da Região Metropolitana, o município do Rio de

Janeiro apresentava há 13 anos atrás, 1.055 estabelecimentos agrícolas, sendo 790 da

agricultura familiar.

Com base no Estatuto da Terra, lei elaborada em 1964, a destinação dada ao imóvel é

que o define como sendo imóvel rural ou urbano. A prática das atividades no meio rural deve

ser interpretada como prática de atividade extrativa vegetal, agrícola, pecuária ou

agroindustrial, independentemente do zoneamento urbano realizado pelo município, assim, o

agricultor que desenvolve suas atividades em “imóvel rural”, mas, localizado no “meio urbano”

atende as condições para se enquadrar como agricultor familiar ou empreendedor familiar rural

(Oliveira, 2016).

Na articulação e no fortalecimento da agroecologia no estado do Rio de Janeiro, destaca-

se o trabalho de diversas organizações como a organização AS-PTA, a AARJ, a Rede Fitovida

e, principalmente, da Rede CAU, movimento surgido em 2009 que se insere dentro da ANA e

do CNAU com a missão de fomentar a agricultura nos espaços urbanos reunindo mais de 30

organizações, das quais participam agricultores, associações e cooperativas, representantes de

instituições de pesquisa e ensino, grupos populares e entidades civis. A Figura 04 retrata as

relações presentes no território construídas pela atuação em rede desses coletivos. Essas

experiências nos fazem reconhecer que há muito mais trabalhadores rurais do que imaginamos

mesmo nas cidades e nos espaços mais urbanizados (Jan D. Ploeg, 2008).

24
O último Censo agropecuário foi realizado entre os anos de 2017 e 2018, entretanto seus resultados finais e
detalhamentos de dados por municípios ainda não estão disponíveis.
142

Figura 5. Territórios da agricultura familiar agroecológica na cidade do Rio de Janeiro -

Ilustração por Raissa Theberge.25

Uma das estratégias da Rede CAU é o fortalecimento das organizações dos agricultores

familiares no município, especialmente na região do Maciço da Pedra Branca que conta com

três associações: A Associação dos Lavradores e Criadores de Jacarepaguá (ALCRI) criada em

1986 e refundada em 1998 por incentivo da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural

(Emater-RJ); a Associação de Agricultores Orgânicos da Pedra Branca no Rio da Prata

(Agroprata), criada em 2003, por estímulo da ONG Roda Viva; e a Associação de Agricultores

Orgânicos de Vargem Grande (Agrovargem), criada em 2007, no contexto de atuação do

Projeto Profito-FIOCRUZ no maciço. Essas duas últimas organizações – Agroprata e

Agrovargem– são claramente orientadas por princípios agroecológicos.

25
Recuperado de http://aspta.org.br/wp-content/uploads/2015/10/catalogo_PRODUTOS-DA-GENTE_web.pdf.
143

A Agroprata nasceu com a identidade de associação para a produção orgânica e seus

produtores criaram a primeira feira do gênero da cidade: a Feira Orgânica de Campo Grande.

Por incentivo do Profito, as três associações do Maciço desenvolveram sistemas agroflorestais

de plantas medicinais e se articularam em redes de participação política que envolvem os

sistemas agroalimentares, como nos conta Fernandez (2014). Já a Agrovargem, entre essas

associações, destaca-se por ser a mais atuante politicamente e contar com o maior número de

agricultores familiares envolvidos, tendo trinta famílias associadas e que participam ativamente

da Rede CAU.

Apesar de alguns dos produtores que integram a Rede CAU participarem do Circuito

Carioca de Feiras Orgânicas26, a Rede vem assumindo um papel crítico à tal circuito de

comercialização apontando que, apesar de venderem alimentos orgânicos, essas feiras não têm

caráter agroecológico, contando com muitos atravessadores que não levam em consideração a

perspectiva da economia solidária, não dão preferência aos produtos locais e, em geral, cobram

preços muito altos pelos seus produtos.

De fato, em algumas ocasiões em que participei dessas feiras enquanto consumidora,

em bairros considerados de classe média alta como Botafogo e Flamengo, os preços dos

alimentos chegavam a se comparar com os preços de alimentos orgânicos encontrados em

supermercados, que chegam a custar 300% a mais do que os alimentos convencionais como nos

26 “O Circuito Carioca de Feiras Orgânicas é fruto de parceria entre organizações da sociedade civil e a SEDES
(Secretaria Especial de Desenvolvimento Econômico Solidário), da Prefeitura do Rio de Janeiro. O Circuito
Carioca agrega produtores e comercializadores de alimentos orgânicos (livres de agrotóxicos) com o objetivo de
ofertá-los à população de maneira direta e por valores mais acessíveis. Atualmente quatro organizações são
responsáveis pelo Circuito: ABIO, que coordena as feiras orgânicas dos bairros Glória, Ipanema, Leblon, Peixoto,
Barra da Tijuca I, Jardim Botânico, Tijuca, Leopoldina e Arpoador; ESSÊNCIA VITAL, que coordena as feiras
orgânicas dos bairros Flamengo, Botafogo, Laranjeiras, Urca e Tijuca II; AS-PTA, que coordena a feira orgânica
da Freguesia; AULA, que coordena a feira da Ilha do Governador. A SEDES permanece em diálogo democrático
com outros grupos ligados à agroecologia e trabalha pela ampliação do Circuito com sua chegada em novos bairros
cariocas”. Retirado de https://www.google.com/maps/d/viewer?hl=en_US&mid=15uXgybFEblF-
1N6Hv_TW2NMCPxU.
144

mostra a pesquisa realizada por Instituto Terra Mater (2016). Naturalmente, nessas feiras é

comum a circulação de um público mais restrito e elitizado, movido por questões que envolvem

a saúde e o bem-estar pessoal, sem necessariamente engajar-se à responsabilidade

socioambiental (Fátima Portilho et al., 2011).

Sendo assim, a Rede CAU, passa a organizar um circuito alternativo de comercialização

baseado no paradigma agroecológico, através da participação na Rede Ecológica, um

movimento social constituído por grupos de consumidores que, visando o consumo ético,

solidário e ecológico, realizam compras coletivas diretamente dos pequenos produtores; e das

feiras agroecológicas, quais sejam: a Feira Agroecológica da Freguesia, a Feira Orgânica de

Campo Grande, a Feira Orgânica da Leopoldina, Feira da Roça de Nova Iguaçu e a Feira Josué

de Castro dentro da Fiocruz, além de apoiarem a Feira Orgânica e Agroecológica de

Guapimirim e de Magé.

Nota-se algumas particularidades nessas feiras em relação às mencionadas

anteriormente. Elas se localizam em bairros mais afastados do Centro e da Zona Sul carioca e

mais próximos aos produtores, reforçando a produção e comércio locais. Como consequência,

tem-se preços mais baixos nos produtos e um público de consumidores mais diversificado no

que se refere à classe social, aos bairros de onde vêm e à consciência ou não acerca da questão

ambiental.

As feiras se apresentam como espaços de comercialização que representam um ponto

central no fortalecimento e visibilidade da Rede atraindo e conscientizando mais consumidores

sobre o que é a agroecologia urbana e sobre a importância do consumo de alimentos orgânicos

comprados direto dos produtores. Além disso, são momentos de socialização, trocas e encontros

entre produtores, consumidores e população local, que suscitam uma série de acontecimentos.

Nas feiras agroecológicas, também chamadas no movimento da agroecologia como feiras de

“sabores e saberes”, é comum acontecerem sarais de poesia, rodas de música, de autocuidado e


145

massagem, etc. (Ver Figuras 5 e 6). Nas palavras de Silvia, militante da Rede CAU e integrante

da Agrovargem: “ a feira é nosso quilombo urbano”.

Figura 6. Barraca na Feira Orgânica do Rio da Prata, Campo Grande – Rio de Janeiro, 2016.27

27
Fonte: Feira Agroecológica de Campo Grande – RJ, 2016 (Página de Facebook).
146

Figura 7. Festa de São João durante a Feira da Roça de Vargem Grande – Rio de Janeiro,

2016.

Outra importante estratégia de consolidação da agroecologia urbana no Rio de Janeiro

é a participação da Rede no Sistema Participativo de Garantia (SPG), um mecanismo de

certificação através do controle social, sociedade civil e órgãos do estado, da produção orgânica.

Por não se tratar de uma certificação privada e de custo elevado, tal qual a Certificação IBD de

Produtos Orgânicos, o SPG ajuda os agricultores a diminuirem seus custos repassando seus

produtos por um valor mais baixo ao mercado, chegando, a depender do produto e da época,

mais barato do que os produtos da agricultura convencional.

A Rede CAU também conta com alguns grupos de trabalho temáticos que ajudam a

organização interna do grupo em torno das mais diversas pautas. Nesse sentindo, destaca-se

dentro da Rede que as mulheres vêm assumindo um importante papel ao formarem um grupo

de trabalho só para discussão desse tema. Além de serem a maioria, elas também protagonizam

a luta na forma de lideranças. No ano de 2015, as mulheres da Rede CAU se juntaram a outros
147

coletivos de agricultura urbana no Brasil formando o grupo de mulheres da agroecologia urbana

onde são elaboradas alternativas para a agricultura urbana a parir de uma perspectiva de gênero.

Apesar dessa complexa teia de estratégias e atores atuando na agroecologia urbana no

Rio de Janeiro, ainda não há, um programa ou política em nível estadual e/ou municipal de

incentivo direto à AU no Rio de Janeiro, sendo essa a maior bandeira de luta da Rede CAU e

de todos envolvidos. Só recentemente, no ano de 2013, após pressão da sociedade civil, foi

criada a Secretaria Especial de Abastecimento e Segurança Alimentar (SEAB) que tem como

objetivo promover a agricultura, pecuária, atividade pesqueira, aquicultura, abastecimento e

segurança alimentar no município.

Assim, como argumenta Fernandez (2014), percebe-se que a invisibilidade da AU no

Rio de Janeiro é resultado de um longo processo de disputas pelo poder de definir usos no

espaço da cidade, que afirmou os usos urbanos, turísticos, especulativos e industriais em

detrimento do rural e do agrícola e da ideia da cidade como um espaço plural, voltado para

todos os tipos possíveis de usos e ocupações. Dessa forma, a agroecologia urbana representa

também um espécie de resistência aos processos de gentrificação urbana e especulação

imobiliária que ocorrem em todas grandes cidades brasileiras, especialmente no Rio de Janeiro

– que hoje em dia possui os valores de metro quadrados mais caros do país – como mostra a

emblemática bandeira produzida pela Rede CAU (Ver Figura 7).


148

Figura 8. Bandeira que trata da agroecologia como forma de combater a especulação

imobiliária nas cidades.

Com isso, vemos que agricultura urbana de base agroecológica não se refere apenas a

uma estratégia de produção que possibilita outras formas que não as hegemônicas de ocupar os

centros urbanos, mas também mobiliza suas atrizes e atores em redes de atuação política e

sociabilidade. Na construção dessas redes, há um encontro entre diferentes modos de vida,

identidades políticas e posições sociais que impactam e constituem mutualmente os sujeitos

envolvidos, os territórios e a cidade, tanto na esfera da micropolítica dos sujeitos, quanto na

esfera institucional, movendo, ainda que com uma série de barreiras, as políticas urbanas e a

estética das cidades, sendo como um importante vetor de sunjetivação política em meio aos

movimentos sociais da cidade e do campo.


149

Capítulo 5: Reflexões sobre luta feminista e agroecológica (urbana)

No presente capítulo tenho com objetivos (1) refletir sobre a relação entre feminismos e

agroecologia na cidade do Rio de Janeiro, a partir da emergência das mulheres como sujeitas

políticas no movimento agroecológico; (2) identificar os efeitos da participação política na vida

das mulheres; (3) e analisar as contribuições que as mulheres trazema partir das suas formas de

mobilização política e construção do conhecimento.

Sua construção se deu a partir das entrevistas e observações participantes realizadas na

pesquisa de campo. Foram definidos quatro eixos de análise que considero centrais para

entender as formas como esses movimentos têm convergindo em suas pautas. Eles se referem

aos debates trazidos pelas mulheres no movimento agroecológico, considerando a

especificidade desse debate feito nas cidades.

As análises foram organizadas em quatro eixos de discussão: Eixo I - Lutas feministas

pelo direito a cidade; Eixo II - Meu corpo é meu território; Eixo III - Feminismos periféricos;

Eixo IV - Produção de conhecimento e luta política das mulheres na agroecologia. Na Tabela

8, apresento resumidamente cada eixo de análise e as principais categorias analíticas

mobilizadas pelas mulheres e discutidas no texto.


150

Tabela 8

Descrição dos eixos de análise

Eixo Categorias Descrição

Aborda as resistências projeto de

Precariedade precariedade institucional no Rio


Eixo I - Lutas feministas
Urbanismo Insurgente de Janeiro através da
pelo direito a cidade
Racismo convergência entre agroecologia

e luta por moradia.

Trata de como, a partir do

Eixo II - Meu corpo é meu Território conceito de corpo-território, as

território Subjetivação política mulheres constroem um

vivências, memória e lutas.

Apresenta a crítica formulada

pelos movimentos populares de


Eixo III - Feminismos Feminismos
mulheres aos feminismos e seus
periféricos Domésticar a política
discursos, reinventando tais

conceitos.

Trata da importância da
Eixo IV - Produção de
Lugar de fala enunciação para a construção de
conhecimento e luta política
Epistemologia um saber localizado e descolonial
das mulheres na
Colonialidade a partir das disputas no
agroecologia
movimento agroecológico.
151

Eixo I - Lutas feministas pelo direito a cidade na Zona Oeste

Há décadas, movimentos feministas e do direito à cidade e teóricas de diversas áreas

como o urbanismo e geografia vêm denunciando as desigualdades e a “cegueira de gênero” da

arquitetura das cidades que, ao se colocarem de forma “neutra” em relação à política urbana,

sem considerarem essas questões, são na verdade construídas por homens e para os homens a

partir de seus padrões de vivência da cidade – importante frisar que falamos nessa equação

principalmente de homens brancos, cisgêneros e heteronormativos, corpos considerados a

norma na sociedade capitalista ocidental. Nesse sentido, nos questionamos, quais são os efeitos

dessas invisibilidades nos corpos dissidentes que habitam as cidades a partir de suas margens e

periferias.

São principalmente as mulheres negras e periféricas as responsáveis por trazer à tona

esse debate nos movimentos sociais a partir de formas próprias e plurais de organização e de

uma convergência entre diferentes lutas. Essas mulheres articulam as violências a que seus

territórios estão submetidos como parte das violências de gênero que atingem os seus corpos,

em especial das mulheres não-brancas, assinalando a relação indissociável entre essas

dimensões.

As mulheres da Zona Oeste carioca, através dos seus diferentes contextos e espaços de

luta, afirmam a importância de pensar a dimensão do bem-viver, da espiritualidade, tradição,

ancestralidade e afeto no debate sobre as políticas urbanas. Ao reivindicarem outros usos

possíveis de ocupação da cidade, a partir da politização das práticas cotidianas que

ressignificam lugares historicamente subalternizados, como o da agricultura e da cozinha,

constroem, na luta agroecológica periférica e feminista, outras formas de experiência urbana

em direção a modos de vida mais sustentáveis e plurais.


152

Ao refletirmos sobre as maneiras que as mulheres habitam esse território e violações a

que estão submetidas no espaço da cidade, buscamos entender como a agroecologia urbana

pode colaborar para a construção do direito à cidade e à moradia a partir do olhar das mulheres.

Com isso, buscamos trazer novos elementos para pensar a construção do debate sobre cidades

mais democráticas, plurais, produtivas e seguras para as mulheres e de políticas urbanas que

considerem de forma mais ampla os sentidos de viver a cidade, a partir de outros olhares.

Neste eixo discuto como as mulheres vêm da Zona Oeste do Rio de Janeiro fazem frente

às disputas territoriais na cidade, a partir da confluência entre a luta pela moradia e a

agroecologia. Para enteder a confluência desses temas, é preciso traçar um panorama da trama

complexa de redes que compõem o cenário da agroecologia no Rio de Janeiro, assim como as

redes de engajamento das mulheres. Acompanhando as mobilizações e essas redes, tracei um

mapa tanto das estratégias produtivas quanto dos espaços de engajamento em que minhas

interlocutoras se inserem.

Assim, foram identificadas estratégias de organização produtiva e políticas das mulheres no

movimento agroecológico da Zona Oeste, quais sejam: agriculturas nos quintais produtivos,

artesanato, bananais feministas, cozinha local tradicional, Feira da Roça de Vargem Grande,

plantas medicinais e medicina tradicional, quilombos e rede de consumo responsável.

Como forma de facilitar o entendimento por parte dos(as) leitores(as), farei uma

apresentação dos grupos, coletivos e redes nas quais minhas interlocutoras estão inseridas:

 Agrovargem – associação de agricultoras e agricultores agroecológicos de Vargem Grande;

 Articulação de Agroecologia do Rio de Janeiro (AARJ) - movimento de organizações da

sociedade que a partir da identificação, sistematização e mapeamento de experiências

procura se articular no estado com o objetivo de fortalecer as iniciativas agroecológicas;


153

 Articulação Plano Popular das Vargens (APP Vargens) – articulação de moradores das

regiões atingidas pelo projeto do PEU das Vargens. Visa a construção de uma

contraproposta popular para o plano de urbanização da região;

 Bananais “feministas” – bananais localizados no alto do Maciço da Pedra Branca/Parque

Estadual da Pedra Branca que são cuidados por mulheres;

 Coletiva Hortelã – coletiva formada por mulheres de Vargem Grande e adjacências que tem

por objetivo realização de uma horta comunitária e da multiplicação nas hortas nos quintais

das mulheres da região;

 Coletiva Popular de Mulheres da Zona Oeste (CPMZO) – articulação que envolve mulheres

e organizações de vários bairros da região Oeste do Rio de Janeiro na luta por justiça social

e direitos a partir de um feminismo popular e “periférico”;

 Feira da Roça de Vargem Grande – feira agroecológica organizada pela Agrovargem na

praça central de Vargem Grande;

 Quilombo Bosque das Caboclas – área reivindicada enquanto quilombo pelos moradores da

comunidade Bosque dos Caboclos no bairro de Campo Grande. É usado no feminino para

marcar o início da ocupação da área pelas mulheres no início do século XX e pela histórica

liderança feminina na comunidade;

 Quilombo Cafundá Astrogilda – quilombo reconhecido em 2015 pela Fundação Cultural

Palmares localizado em Vargem Grande na área do Maciço da Pedra Branca/Parque

Estadual da Pedra Branca. O nome do quilombo remete à matriarca da família Santos

Mesquita que iniciaram a ocupação da área, descendentes de africanos que vieram trabalhar

como escravos na fazenda cafeeira Vargem Grande que deu nome ao bairro;

 Militiva – grupo de pesquisa “militante” de Vargem Grande. Esse grupo, apoiado pelo

Instituto PACS, tem realizado ações de fortalecimento comunitário com o objetivo de


154

mapear grupos de resistência política na região visando a construção de um plano de

comunicação popular;

 Rede Carioca de Agricultura Urbana (Rede CAU) – rede que articula diversos grupos,

experiências e agricultores com o objetivo de visibilizar e fortalecer a agricultura realizada

na cidade do Rio de Janeiro;

 Rede Ecológica – movimento social que visa fortalecer a agroecologia a partir da formação

de grupos de consumo consciente no Rio de Janeiro.

Essas redes se constituem mutuamente, sendo impossível fazer uma separação entre elas, já

que muitas militantes integram várias ao mesmo tempo ou já o fizeram em algum momento.

Nas seguintes sessões desenvolvo um debate buscando apresentar a atuação das mulheres

em rede na construção da luta por moradia, em defesa do território e pela agroecologia no

contexto da especulação imboliária, precarização do Estado e militarização na cidade do Rio de

Janeiro.

As cidades-empresa e o Estado de Exceção como regra: o caso do Rio de Janeiro

Segundo o geógrafo marxista David Harvey (2009), há uma relação intrínseca entre as

cidades da modernidade e o processo de acumulação capitalista. O capitalismo organiza os

territórios e as formas de habitar e experienciar as cidades a partir da lógica da maior

rentabilidade do uso dos solos enquanto mercadorias.

Para o urbanista Carlos Vainer (2013), o urbanismo contemporâneo se baseia no modelo

da cidade-empresa, a partir da ideia de competitividade e lucro. A cidade é vista, dessa forma,

como uma mercadoria, um artigo de luxo, de forma que “vender a cidade” tornou-se uma das

principais funções dos governos locais. Cada vez mais a ideia do prefeito gestor e empresário

é valorizada, como caminho para solução dos problemas urbanos. Para Raquel Rolnik (2015),
155

o argumento da eficiência da cidade do empreendedorismo foi um dos fatores que contribuiu

com a mudança de um discurso sobre direitos sociais e da cidadania para um discurso de

inclusão social pelo consumo.

A instauração da cidade-empresa constitui, em tudo e por tudo, uma negação radical da

cidade enquanto espaço político – enquanto polis: “na empresa reina o pragmatismo, o realismo,

o sentido prático; e a produtivização é a única lei” (Vainer, 2002, p. 91).

Nesse regime, “as cidades em competição buscam por todos os meios aumentar seu

poder de atração para manter ou desenvolver sua capacidade de inovação e difusão" (Jordi Borja

& Manuel de Forn, 1996, p. 33). Os regimes de exceção gradativamente se tornam novas formas

de ordenamento urbano: não obstante o funcionamento (formal) dos mecanismos e instituições

típicas da república democrática representativa, os aparatos institucionais formais

progressivamente abdicam de parcela de suas atribuições e poderes.

À medida em que a lei torna-se mais “flexível”, parcelas crescentes de funções públicas

do Estado são transferidas a agências livres de burocracia e controle político, ou seja, para o

setor privado. No Brasil, esse processo, ao que Vainer (2013) nomeia de “democracia direta do

capital”, efetiva os regimes de exceção através de PPP e uma série de dispositivos jurídicos.

Esse processo aponta para o que podemos chamar de “crise urbana”. Os protestos

ocorridos em Junho de 2013, não à toa, tiveram início com a reivindicação pelo Passe Livre,

sendo a questão do transporte público um dos nós da política urbana brasileira. O modelo de

cidade que não considera as periferias, concentrando oportunidades econômicas e sociais nos

Centros, aliado a projetos de expansão das cidades rumo a áreas sem estrutura urbana, foi nas

últimas décadas alimentado por uma política de suporte à circulação de automóveis privados e

na manutenção de um sistema de transporte coletivo precário (Rolnik, 2015).

A política urbana posta em prática no Rio de Janeiro nas últimas décadas é um dos

maiores exemplos desses processos e das suas consequências. Se por um lado o Rio de Janeiro
156

possui um longo histórico de expropriação territorial pelo capital, por outro, sempre conviveu

com práticas insurgentes de construção do seu território. As favelas e periferias são exemplos

de cidades que se constituem à margem do planejamento urbano.

Os processos históricos de segregação que levaram as populações mais empobrecidas a

ocuparem as periferias e favelas no Rio de Janeiro, reconhecidas como os lugares permitidos

aos pobres na cidade, trouxeram grandes consequências, entre elas o aumento do narcotráfico

enquanto possibilidade de ascensão social e econômica para essas populações aliado ao

aumento do poder repressivo e de militarização da vida cotidiana nesses territórios, e à

criminalização da pobreza.

As remoções de comunidades, a proibição de ambulantes em vias públicas e de blocos

de carnaval em comunidades periféricas, a desativação de linhas de transporte que ligam as

periferias à pontos turísticos, são todos exemplos dessa nova face totalitária que vem sendo

imposta no Rio de Janeiro.

Diante desse cenário, movimentos de luta por moradia e pelo direito à cidade propõem

alternativas ao projeto urbanístico posto em prática na cidade. Um importante exemplo dessas

mobilizações é a elaboração de planos urbanísticos populares. Na Zona Oeste eles vêm sendo

encabeçados pelas mulheres em uma confluência entre feminismos, agroecologia e direito à

moradia, como veremos a seguir.


157

Cenas de um “legado olímpico” e o urbanismo insurgente de Vila Autódromo

Rio de Janeiro, setembro de 2015.

Figura 9. Vila Autódromo, 2015.

Chegamos em Vila Autódromo às 08:30 da manhã e fomos recebidos por Sandra, uma

das lideranças da luta contra a remoção da comunidade. Éramos um grupo de militantes de

movimentos sociais do campo da esquerda vindo de diversas partes do país. Enquanto Sandra

nos contava um pouco da história da luta local, meus olhos percorriam o cenário de escombros,

pó e paredes quase destruídas que ecoavam memórias de um território de resistência.

Caminhando pelas ruas de barro via-se cabras, galinhas, porcos, gatos e cachorros. Quase não

havia gente.

Somos convidadas a conhecer a casa de Dona Penha, outra importante liderança. Em

junho de 2015, a imagem de Dona Penha com o nariz sangrando depois de ter sido quebrado
158

pelos golpes de cassetete de um guarda municipal, enquanto tentava impedir uma das

demolições feitas pela Prefeitura, rodou o mundo.

No seu quintal cheio de plantas e árvores frutíferas, Dona Penha, uma paraibana de

aparência frágil, fala mansa e sorriso largo, nos conta sua história. Ela vem se acostumando,

nos últimos anos, a receber visitas de militantes, pesquisadores, estudantes e setores da mídia

para falar de como seu desejo de permanecer no território, onde criou sua família desde que

migrou para tentar a vida no Rio de Janeiro há quase 20 anos, tornou-se um símbolo da luta

pela moradia e do espólio das Olímpiadas no Brasil. Na comunidade que existia desde os anos

1960 e onde antes habitavam cerca de 600 famílias, restaram 20 famílias que faziam frente ao

projeto de remoção das casas que dariam lugar às obras de infraestrutura para a Vila Olímpica.

Dona Penha hospedava naquele momento outra moradora, Mariza, que teve sua casa

derrubada sem aviso prévio ao sair para uma consulta médica na semana anterior. Mariza

perdeu vários pertences, remédios e economias em dinheiro que ficaram soterrados entre os

escombros. Só lhe sobraram os móveis que foram levados para o depósito da Prefeitura.

Ao sair da casa de Dona Penha, caminhamos mais um pouco e Sandra aponta para a

Lagoa de Jacarepaguá que margeia a comunidade. Na outra margem pode-se ver a Cidade do

Rock, estrutura sede do Festival Rock in Rio e dos jogos pan-americanos de 2007, que também

seria sede dos jogos olímpicos. “Mais um presente para família Medina28, os donos da Barra”,

disse alguém em tom de brincadeira.

Perto da lagoa, encontramos Dona Denise que morava há quase 40 anos em Vila

Autódromo. Ela nos mostra com orgulho o seu quintal produtivo e fala do uso das plantas que

cultiva: uma árvore de aroeira que usa dores no estômago, hortelã-pimenta para dores na cabeça,

28
A família Medina em questão é a mesma de Roberto Medina, publicitário dono do festival Rock in Rio e de uma
série de empreendimentos imobiliários na região da Barra da Tijuca e Jacarepaguá e que, supostamente, gozaria
de muito prestigio e influencia dentro do governo municipal do Rio de Janeiro.
159

erva cidreira para acalmar-se. Ela é uma das moradoras que afirmava de forma mais veemente

o desejo de permanecer na comunidade. “- Deus me livre de apartamento. É uma gaiola! Como

vou levar meus bichos e minhas plantas para um apartamento? Não é natural, nem para eles,

nem para mim. Como eu ia sobreviver sem minhas plantas? Morei quase minha vida toda nessa

casa, graças a Deus! Eu preciso de um quintal. São minhas plantas que protegem a minha casa.”.

Reflete, quando questionada sobre a possibilidade de negociar com a prefeitura para inserir-se

no Programa Minha Casa Minha Vida.

Paramos para almoçar a refeição preparada por uma das moradoras quando tivemos a

notícia que a obra que estava sendo erguida ao lado da comunidade avançara em direção ao

território de Vila Autódromo. Eles haviam erguido sem aviso prévio um tapume colado a

mesinha de Pingue Pongue feita de concreto que ficava na praça construída coletivamente pelos

moradores. Ao chegar na praça, nos deparamos com Dona Penha em cima da mesa discutindo

com funcionários da obra – um prédio muito alto, envidraçado que contrastava completamente

com o cenário da comunidade do qual era vizinho.

Os moradores e moradoras nos contam que aos poucos a obra avançava, muitas vezes

durante a noite, sem respeitar os processos de negociação com a comunidade. Também era

comum que, ao derrubar uma casa as máquinas de forma acidental, ou não, derrubavam um

pedaço do muro ou danificavam partes das casas de moradores que não estavam em processo

de desocupação, tornando a convivência dentro da comunidade cada vez mais difícil. Além

disso, a quantidade de entulho, sujeira e falta de infraestrutura agrava a situação e tornava a

comunidade mais vulnerável a proliferação de doenças. Por isso, muitas famílias com crianças

pequenas haviam decidido partir ou levar os filhos para ficarem com parentes moradores de

outros lugares da cidade.


160

Depois de cerca de uma e meia de discussão com os trabalhadores da obra, finalmente

os moradores decidem derrubar o tapume, demarcando o seu território. Depois desse episódio

deixamos nós também nossas mensagens nos muros das casas já desocupadas e nos despedimos.

Figura 10. Quintal Vila Autódromo, 2015.


161

Rio de Janeiro, 08 de março de 2016.

Figura 11. Ato feminista 08 de março de 2016.

No dia 08 de março chegam várias notificações de mensagens trocadas em grupos de

WhatsApp. Eram fotos de Vila Autódromo. A casa de Dona Penha, que não aceitou abandonar

sua casa e negociar com a Prefeitura, fora demolida nas primeiras horas da manhã. Naquele

mesmo dia estava marcada uma sessão especial na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de

Janeiro (ALERJ) por ocasião do Dia Internacional da Mulher onde Dona Penha seria uma das

homenageadas.

Cheguei perto das 16 horas na ALERJ ponto de concentração do ato. Era meu primeiro

08 de março na cidade. Encontrei algumas conhecidas na escadaria da Assembleia. Uma amiga

que compunha o bloco das mães que participaram do ato, o grupo “Mães e crias na luta29”, me

29Coletivo formado a partir das manifestações das mulheres contra o então presidente da Câmara Federal, o ex-
deputado federal Eduardo Cunha do PMDB, e o projeto de lei (PL5069/13) que busca tipificar como crime contra
a vida o anúncio de meio abortivo e prevê penas específicas para quem induz a gestante à prática de aborto, o que,
segundo os críticos a tal proposta, seria uma forma de dificultar o acesso a métodos contraceptivos de emergência
e aumentar a criminalização ao aborto, inclusive em casos onde a prática é permitida por lei, como em casos onde
há perigo de morte para mãe, de gravidez decorrente de uma violência sexual e em casos anencefalia do feto.
162

contava que pela primeira vez elas estavam conseguindo uma forma de organização coletiva

para falar sobre maternidade e política e levar as crianças para os atos que estavam acontecendo

com certa regularidade desde meados de 2015. As ameaças de retrocesso em relação aos direitos

das mulheres que tramitavam no Congresso, a revolta diante das medidas que estavam sendo

tomadas para a realização dos Jogos Olímpicos na cidade e a iminência do golpe de Estado

contra a presidente eleita Dilma Rousseff nos empurrava, mais do que nunca, a tomar as ruas.

Encontro companheiras da Rede CAU e da CPMZO. Havia uma grande expectativa

sobre a possível participação ou fala de Penha no ato e na sessão em sua homenagem. No

mesmo dia o então Prefeito Eduardo Paes anunciou um projeto de urbanização para Vila

Autódromo, mas mudou o local da Coletiva marcada para falar sobre o projeto por,

supostamente, temer as possíveis retaliações que poderia sofrer.

Eram quase 18 horas quando Dona Penha apareceu na concentração do ato e falou sobre

a perda da sua casa naquela manhã e sobre a importância das resistências das mulheres. A

imagem daquela senhora de 50 anos, homenageada e violentada por instituições do Estado no

mesmo dia, no Dia Internacional das Mulheres, era mais um capítulo trágico da política de

gentrificação e exclusão social levada a cabo pela prefeitura do Rio de Janeiro.

Vila Autódromo é, possivelmente, o maior símbolo de resistência aos impactos da

realização de megaeventos na cidade do Rio de Janeiro e das políticas de remoção que

acompanham toda a constituição da cidade. Sua história começa com uma ocupação de

pescadores nas margens do Rio Jacarepaguá nos anos de 1960. Nos anos 1970, trabalhadores

da obra do Autódromo Internacional Nelson Piquet (mais conhecido como Autódromo de

Jacarepaguá) e migrantes nordestinos começaram a se instalar no território que, aos poucos, foi
163

se constituindo como um bairro “informal” no coração da expansão imobiliária para média e

alta renda no Rio de Janeiro – a Barra da Tijuca.

A Vila Autódromo está localizada em uma área de propriedade do Governo do Estado

do Rio de Janeiro. No terreno, também público, contíguo ao assentamento foi construído o

Parque Olímpico, principal concentraçãode equipamentos esportivos das Olimpíadas 2016

(Fernanda Sanchéz, Fabrício Oliveira &, Poliana Monteiro, 2016). Com o projeto de

desenvolvimento da Zona Oeste levado a cabo pelo prefeito então César Maia nos anos 1990,

a comunidade sofreu as primeiras ameaças de remoção. Já em 1993, em ação ajuizada no

Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro pelo procurador do município e depois prefeito, Eduardo

Paes, a Prefeitura requereu a retirada total da comunidade alegando “dano estético e ambiental”.

Nesse período, Vila Autódromo articulou sua defesa jurídica e impediu a remoção,

demonstrando a fragilidade dos argumentos municipais (Vainer et al., 2016). Apesar disso,no

final dos anos 1990, Vila Autódromo recebeu concessão estatal para o direito real de uso do

solo por 99 anos prorrogáveis e no ano de 2005 foi transformada em uma Área Especial de

Interesse Social30 do município, através da lei complementar nº 74/2005.

A partir de 2009, com a eleição do Rio de Janeiro enquanto sede das Olimpíadas que

viriam a ocorrer no ano de 2016, as ameaças de possíveis remoções tornaram-se mais presentes.

Com a justificativa de atender às exigências do Comitê Olímpico Internacional (COI), o plano

de desenvolvimento estratégico e o Dossiê de Candidatura elaborado originalmente pela

Prefeitura para a região, propôs entre outras coisas a remoção de 6 comunidades que atingiriam

diretamente mais de 3.500 famílias (Comitê Especial de Legado Urbano [CELU], 2009).

30
Área de Especial Interesse Social, a que apresenta terrenos não utilizados ou subutilizados e considerados
necessários à implantação de programas habitacionais de baixa renda ou, ainda, aquelas ocupadas por favelas,
loteamentos irregulares e conjuntos habitacionais, destinadas a programas específicos de urbanização e
regularização fundiária (Capítulo II- da Política Habitacional, Seção VI- Da lei de Uso e Ocupação do Solo, Áreas
de Especial Interesse, Artigo 107, Item II, Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro, 1992).
164

O plano da Prefeitura previa demolir o autódromo para construir o Parque Olímpico,

uma série de obras públicas em seu entorno e a remoção completa da população de Vila

Autódromo que seria transferida para apartamentos em uma unidade de conjunto habitacional

do programa “Minha Casa, Minha Vida”, apartamentos esses que seriam, em geral, muito

menores do que as residências ocupadas na comunidade, conforme observaram Sanchez et al.

(2016).

O edital para a construção do Parque Olímpico previa que o consórcio que ganhasse a

licitação teria o direito a utilizar 70% do terreno para construção de projetos imobiliários que

incluiriam edifícios comerciais, residenciais e hotéis, o que traria um aumento considerável da

ocupação que seria permitida a partir de alterações específicas na legislação urbana. O

consórcio que saiu vitorioso foi formado por duas das maiores empreiteiras do país, Odebrecht

e Andrade Gutierrez31, e pela empresa Carvalho Hosken S.A., proprietária de diversos imóveis

na Barra da Tijuca.

A partir da articulação da Associação de Moradores e Pescadores de Vila Autódromo

(AMPAVA) com organizações de defesa dos Direitos Humanos, movimentos sociais no

Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro e com a assessoria técnica de duas

universidades públicas, as moradoras e moradores de Vila Autódromo apresentaram em 2013

o Plano Popular de Vila Autódromo, um plano de desenvolvimento urbano, econômico, social

e cultural para a comunidade fruto de dois anos de estudo e discussões.

Esse plano trouxe uma alternativa, a partir de um ponto de vista técnico, ao plano do

governo municipal para que a comunidade não precisasse ser removida, diante do discurso

oficial sobre a impossibilidade de realização dos Jogos sem a remoção de Vila Autódromo com

31
Empreiteiras envolvidas no escândalo deflagrado pela Operação Lava Jato em 2014. De acordo com
levantamento feito pelo Instituto Mais Democracia (2013), essas empreiteiras foram responsáveis ou estiveram
envolvidas na maior parte dos grandes projetos da Copa do Mundo de 2014 e Jogos Olímpicos, tais as obras do
Porto Maravilha, do BRT Transolímpica e da reforma do Estádio João Havelange (Engenhão).
165

argumentos relacionados à proteção ambiental e a impossibilidade de um projeto de

urbanização (Sanchez et al., 2016).

Para responder aos argumentos contrários feitos pela prefeitura, uma nova versão do

Plano Popular foi apresentada. Entretanto, frente à mobilização popular, a prefeitura passou a

negociar os processos de forma individual. Boatos de que alguns moradores receberiam mais

do que outros geravam desconfianças. Havia também o medo de que quem não aceitasse

negociar com a prefeitura, poderia ser removido sem receber nenhum tipo de indenização. Esse

clima de incertezas e falta de informações, fez com que muitas famílias abandonassem a

comunidade. De 600 famílias que ali residiam no início do processo, restaram 20. Contudo, a

resistência dessas 20 famílias representou uma vitória diante da gigantesca aparelhagem pública

e privada que ameaçavam a permanência de Vila Autódromo. Entretanto, o projeto de

urbanização proposto no Plano Popular não foi contemplado em sua totalidade no projeto de

urbanização final posto em prática no território.

Foi construído pela comunidade um museu, o Museu das Remoções, cujo lema “memória

não se remove” garantiu mais uma frente de luta aos moradores, agora na chave da memória local

como caminho de disputa da cidade. Além das ruínas que contam uma parte da história de Vila

Autódromo, se mantiveram a igreja e a sede da AMPAVA que foram reformadas.

Uma das reivindicações dos moradores foi que as casas construídas para receber as

famílias que permaneceram tivessem, todas elas, um espaço para quintal. Grande parte das

famílias de Vila Autódromo tinham como prática a agricultura familiar nos quintais, geralmente

organizados pelas mulheres. Entretanto, a pauta da agricultura urbana e necessidade desse tema

enquanto um eixo de construção para o Plano Popular só surgiu ao longo do processo de

fortalecimento do debate sobre agricultura urbana e agroecologia trazido pela Rede CAU. Em

conversa com algumas militantes e moradoras, uma delas me relatou que: “É uma pena que a

gente não tenha se atentado antes para a questão da agricultura em Vila Autódromo. O pessoal
166

da universidade [as equipes técnicas da UFF e UFRJ] não tinha experiência com esse tema e a

gente ainda não tinha amadurecido o conceito de agroecologia à época da elaboração. Mas

sempre tivemos um vínculo muito grande com os nossos quintais”. Na agricultura urbana os

quintais têm grande importância, pois são os principais espaços de plantio, criação de animais

de pequeno porte e cultivo de árvores frutíferas. Em texto de autoria coletiva da Rede Cau, é

possível perceber a dimensão dessa importância:

Para nós que integramos a Rede Carioca de Agricultura Urbana, ter um quintal
produtivo é possibilitar a resiliência futura ao território. O valor da terra nua, não
impermeabilizada por asfalto, cimento, grama diz respeito a capacidade futura da cidade
reagir a acidentes ambientais extremos. Grande parte do impacto das enchentes urbanas
é resultado da impermeabilização do solo. E, sem terra agricultável a cidade ficará mais
e mais dependente do fornecimento externo de alimento e água. Relembramos o
provérbio indígena: “afinal dinheiro não se come” (Rede Cau, blog Sertão Carioca,
2014, n.p.).

Além dos quintais agroecológicos, outras tecnologias sociais sustentáveis eram

desenvolvidas à época das remoções em Vila Autódromo como a horta comunitária Espaço de

Referência em Agroecologia, projeto coordenado pelo Campus Fiocruz Mara Atlântica desde

2013. O projeto passou a ser liderado pelas mulheres de Vila Autódromo e a partir dessa

experiência vários intercâmbios agroecológicos foram organizados entre as mulheres de Vila

Autódromo e as mulheres de outras comunidades da Zona Oeste. Junto com a horta, um sistema

de fossa verde32 também foi construído pelos moradores em algumas casas.

A resistência de Vila Autódromo e a experiência da elaboração do Plano Popular

apontam para a possibilidade de construção de um urbanismo insurgente (James Holston, 2016)

a partir da mobilização popular. O urbanismo insurgente diz respeito as experiências autônomas

de organização e criação de urbanidades à margem do poder do Estado e seu ordenamento ou

em lugares onde o Estado está presente apenas em seu aparelhamento repressor.

32
Tratamento de efluente doméstico de forma eficiente, possibilitando plantio de espécies frutíferas em sua base
constituída de solo orgânico, auxiliando no processo de tratamento.
167

Vila Autódromo constrói, a partir das suas tecnologias de construção de um modelo de

cidade próprios, um novo sentido à moradia popular, inspirando outras experiências de

urbanismo insurgente e a construção de Planos Populares de urbanização no Rio de Janeiro,

como no caso do Plano Popular das Vargens, como veremos a seguir.

Plano Popular das Vargens: a construção de um projeto urbanístico feminista, anti-

racista e agroecológico

Em 2015, no último dia de atividades da Câmara Municipal, duas decisões abriram

caminho para profundas mudanças no território conhecido como Vargens que integram a

Subprefeitura da Barra da Tijuca. A aprovação da Lei Complementar 160/15, que flexibiliza

exigências para a regularização dos condomínios; e o envio, pela prefeitura, do Projeto de Lei

140, que trata dos parâmetros para a Operação Urbana Consorciada33 (OUC) no local – modelo

de investimento em infraestrutura urbana através de parceira público-privada (PPP) semelhante

ao utilizado nas obras do Porto Maravilha iniciadas em 2011 – e define uma nova versão ao

projeto suspenso desde 2009, do Plano de Estruturação Urbana (PEU) das Vargens que também

ficaria conhecido como Vargens Maravilha em alusão ao Porto Maravilha.

O PEU não apenas trouxe uma série de questionamentos sobre os impactos que poderia

trazer, mas também levantou suspeitas sobre sua legalidade com o estudo de viabilidade da PPP

sendo realizado pelas empreiteiras Odebrecht e Queiroz Galvão. A operação, seria viabilizada

através da comercialização de Certificados de Potencial Adicional de Construção (CEPACS),

meios com os quais as construtoras se comprometem com o pagamento de contrapartidas em

33
Conjunto de intervenções e medidas coordenadas pelo Poder Público municipal, com a participação dos
proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores privados, cujo objetivo é alcançar, em uma área,
transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a valorização ambiental. Trata-se de um dos
instrumentos de viabilização da política urbana a serem realizados com a participação de particulares (Parágrafo
1º do artigo 32, Estatuto da Cidade, 2001).
168

troca do direito de construir edifícios acima do controle de uso de solo previsto pelo plano

diretor para a área especifica. Na prática, esse projeto permitiria a construção de edificações

muito mais altas do que as previstas para essa região que resguarda a maior área verde da cidade

e possui uma forte cultura de agricultura familiar (ver Figura ).

Figura 12. Projeção de edifícios a serem construídos de acordo com o PEU. Vista da Praça

Central de Vargem Grande. Desenho: Canagé Vilhena.

Representações de grupos de moradores ao Ministério Público do Rio de Janeiro

questionaram a falta de participação popular na construção do projeto e a ausência de estudo

ambiental e de impacto de vizinhança e a ausência de plano detalhado de desenvolvimento.

Inspirados na mobilização de Vila Autódromo, um grupo de moradoras das Vargens, criaram a

Articulação Popular das Vargens, articulando diversos movimentos sociais para construírem

uma contraproposta ao PEU pautada participação popular e num projeto de urbanização que

contemplasse as culturas e tradições da região, com especial ênfase a questão da agroecologia.


169

Participaram diretamente dessa construção a Agrovargem, a Associação dos Moradores e

Remanescentes do Quilombo de Vargem Grande (Quilombo Vargem), o Quilombo Astrogilda,

a Rede CAU, Rede Ecológica, Coletiva Hortelã, a Associação de Moradores e Amigos de

Vargem Grande – AMAVAG, o Conselho Consultivo do Parque Estadual da Pedra Branca,

além de instancias de assessoria técnica da UFRJ e UFF.

O Plano Popular das Vargens foi construído em um ano e meio de encontros, estudos e

mobilizações populares em quase todas das 29 comunidades que seriam atingidas pelo projeto

da prefeitura. Assim, se constitui em um instrumento de luta política contra a “mercantilização

da cidade”, a partir de um trabalho de identificação dos problemas e demandas dos moradores.

Se, por um lado, ele convoca uma denúncia e embate na esfera judicial, por outro apresenta

uma ferramenta institucional alternativa construída através do protagonismo popular. Para as

questões aqui discutidas me interessa chamar atenção para os principais eixos de articulação

destacados no texto do Plano:

O direito inalienável à moradia e ao plantar; o direito à cidade em termos de


infraestrutura e mobilidade urbana; o direito à água e à agroecologia; e o direito de
participar das decisões sobre o nosso destino. Atravessando todos esses eixos se
estrutura também o direito das mulheres e a luta antirracista porque compreendemos que
no rol de todas as opressões as quais somos submetidos, é preciso priorizar os setores
mais vulneráveis a partir de um recorte de gênero, raça e classe. O resultado desse
primeiro documento é apenas o ponto de partida para alçarmos nossos voos no sentido
de construirmos um outro mundo possível (Articulação Popular das Vargens, 2017, p.
7).

De acordo com o Plano os projetos urbanísticos propostos pela prefeitura “devem ser

reconhecidos como parte de uma política racista, que atua no sentido de promover o

branqueamento da região, não reconhecendo seus moradores, suas origens e ancestralidade, e

sua identidade cultural” (Articulação Popular das Vargens, 2017, p. 10).


170

Figura 13. Roda de abertura do primeiro encontro da Articulação Plano Popular das Vargens,

2016.

Assim, distante da ideia de uma pretensa neutralidade propagada pelo urbanismo

hegemônico, o Plano Popular das Vargens nos convoca à urgência de pensar um projeto de

cidade a partir das margens, dos sujeitos que são subalternizados e sobre quem os efeitos da

segregação da cidade capitalista recaem com mais força e violência. Nesse sentido, pensar uma

cidade de direitos e plural, é pensar um urbanismo comprometido com o debate antirracista, de

classe e de gênero, que considere as práticas culturais da população, a participação popular e

democrática e o acesso ao direito humano à moradia digna e aos recursos essenciais a vida.

Em meados de 2017 o PEU das Vargens perdeu força e passou a não ser visto como

projeto prioritário pela prefeitura. Ao conversar com Maraci, uma das lideranças da APP

Vargens, sobre com o projeto da prefeitura “estacionou”, ela me relata que:

Gostaria de pensar que essa foi uma vitória nossa, mas a verdade é que eles ficaram é
sem dinheiro mesmo [em referência à crise no setor imobiliário deflagrada após
escândalos políticos envolvendo as empreiteiras Odebrecht e Andrade Gutierrez]. Na
171

verdade, a nossa maior vitória foi conseguir construir essa articulação comunitária de
mulheres. Antes éramos só eu e outra companheira, hoje já somos um grupo que não
tem mais medo de homem nenhum (Maraci, 2018, diário de campo).

De fato, todo o processo de construção do Plano passou pelo protagonismo quase total

das mulheres. No grupo que estava à frente da organização das ações da APP Vargens eram 10

mulheres entre 15 membros. Na APP Vargens como um todo, elas também eram maioria. De

acordo com Mariana, outra militante da articulação, isso fez toda a diferença no processo de

construção dos debates, desde pensar a metodologia à escrita do Plano, passando pelas questões

trazidas no texto. Um acontecimento ocorrido no início do processo de organização da

articulação é bastante representativo desse processo.

Um dos militantes da articulação, um professor da rede pública, começou a relacionar-

se com uma menor de idade. Ao ser questionado por algumas mulheres da articulação acerca

dessa postura, ele recusou-se a dialogar sobre o tema. Nesse momento houve um evidente

“racha” entre os homens e as mulheres do grupo. Para Mariana, questionar essas posturas é

essencial na construção da mobilização popular. Segundo ela: “não é possível construir um

projeto de cidade sem machismo se a gente não consegue pautar essas questões dentro dos

nossos próprios coletivos” (Mariana, 2016, caderno de campo).

Em uma das oficinas para a construção do Plano, na comunidade de Taboinhas, Maraci

argumentou sobre a importância do olhar das mulheres para pensar o direito à cidade e à

moradia. Para elas, o pensamento das mulheres seria “agroecológico”. Ela lembra de seus dois

casamentos para explicar como os homens não entendiam a relação entre morar e plantar:

Os homens insistiam comigo que pra eu tinha que botar cimento porque tinha muito
mato[no quintal], e eu brigava e dizia ‘não, eu preciso do mato’, mas nunca tinha de fato
uma horta, uma coisa estruturada, era bem bagunçado, então você olhava e realmente
parecia mato, mas na minha cabeça não é mato (...) Hoje eu tenho uma horta que me
alimenta todos os dias, né, que eu vou lá, eu converso com elas, aquele cheiro me dá
saúde e animo pra continuar e junto com isso fui descobrindo o movimento da
agroecologia (Maraci, 2016, diário de campo).
172

Silvia brinca ao dizer que a agroecologia, entretanto, não é só plantar mudinhas no

quintal. Para ela, trata-se, sobretudo de uma síntese de um projeto político de uma cidade

voltado a “todes”.

Nesse sentido, um dos eixos sobre os quais o Plano Popular se estrutura é o “Morar e

Plantar” e “Agroecologia” que têm como algumas propostas: garantir área suficiente para

urbanização com qualidade de vida nas comunidades, garantindo sempre que necessária a

incorporação de áreas vazias à área da comunidade para desadensamento habitacional, com

reassentamento o local, e para espaços e equipamentos públicos associados à moradia.; realizar

a urbanização e regularização fundiária com base em Planos Populares Locais: com o

reconhecimento da realidade local e do direito das pessoas de decidirem sobre como querem

morar e como querem viver; a garantia da função social e ambiental (considerando diretrizes

agroecológicas) de terrenos vazios ou subutilizados, em dívida com o poder público, ou de

origem ilegal, destinando-os para moradia social, uso público e para a produção – coletiva e

comunitária – de alimentos; normas urbanísticas que respeitem e incentivem as formas de vida

tradicionais da região, reconhecendo a agricultura no urbano, nas áreas de moradia, em espaços

coletivos, comunitários e públicos; o fortalecimento da produção de alimentos em comunidades

e bairros populares, buscando soluções adequadas para cada realidade local através dos Planos

Locais, tais como quintais produtivos e espaços coletivos de plantio; fortalecimento as feiras e

produtores locais; e identificar e disseminar experiências agroecológicas em favelas, fortalecer

práticas existentes e disseminar formas de produção em espaços físicos restritos. Essas

propostas vão, portanto, na contramão da ideia de que as cidades são apenas espaços de

consumo e produção industrial nas quais se baseiam as grandes metrópoles brasileiras.

Sobre esse processo de resistência e construção das lutas políticas pelo direito à cidade

e à moradia na Zona Oeste, Silvia sintetiza:


173

É muito importante que se diga, em outro momento precisamos aprofundar essa


contradição, que essa é uma região que foi muito reivindicada por um discurso
ambiental fortíssimo e que protegia a floresta. (...) Então, meus antepassados nasceram
dos Quilombos do Maciço da Pedra Branca e viveram lá até que em 1974, a ditadura
militar impõe uma linha. 100 metros se protege o ambiente. De 99,9 pra baixo se
consome tudo. Aí, um belo dia, minha parentela, quando ainda assistíamos a TV, RJ
TV, anuncia que 5 mil moradores serão removidos do maciço da Pedra Branca. E um
urbanista, esqueci o nome dele, sabe o que ele disse? Desafiou a gente: “lá na zona oeste
não tem movimento social”. Ou seja, ele tava achando que ia ser mole, fácil, fácil (Silvia
Baptista, 2016, diário de campo).

Com isso, vemos que a luta por moradia em articulação com a agroecologia que vem

sendo construída pelas mulheres modifica o modelo padrão de moradia popular que vem sendo

utilizado no Brasil, trazendo como elementos centrais o direito à terra, ao plantio, às relações

de pertencimento locais afetando diretamente na qualidade do uso habitacional, além de propor

uma metodologia de governança local e formulação de projetos urbanos constituídos de forma

colaborativa com ênfase para os projetos elaborados pelos moradores e moradoras, com ênfase

nas demandas dos grupos mais vulnerabilizados, quais sejam, as mulheres e os jovens.

Eixo II - “Meu corpo é meu território”

O movimento feminista vem há várias décadas reivindicando a politização da esfera do

privado, apontando que o espaço da casa, do corpo e das relações íntimas deve ser debatido e

tomado como bandeira de luta. Em 1989, a artista-plástica estadunidense Barbara Kruguer

lançou o seu trabalho mais famoso, intitulado “Your body is a battleground”, em português, “o

seu corpo é um campo de batalha” onde se vê a imagem em preto e branco de modelo branca

encontrada em uma revista de moda para mulheres com a metade de seu rosto invertido em

negativo e a colagem dos dizeres que remetem aos slogans publicitários, como forma de

problematizar o ideal de beleza propagado nas revistas.


174

Essa obra, assim como o mote “o pessoal é político” amplamente utilizado pelas

feministas a partir da segunda metade do século XX, nos aponta para a rede de relações, campos

de forças e agenciamentos que nos atravessam enquanto corpo que habita uma determinada

sociedade, tempo, contexto: “Nossos corpos são nossos eus; os corpos são mapas de poder e

identidade” (Haraway, 2000, p. 96). Para Haraway (2000, 1995) entender como esse corpo se

constitui é também construir uma teoria da diferença social entendendo as condições históricas

e produção e reprodução do conhecimento produzido sobre ele.

Nas rodas de conversa realizadas na Coletiva Hortelã, a discussão sobre o que elas

chamam de “corpo-território” foi reivindicada para entender o contexto de acirramento dos

conflitos ambientais e a forma como a violência perpetrada pelo modelo dominante de

desenvolvimento representa para elas uma forma de violência que avança sobre seus corpos.

Em uma dessas rodas decidimos construir um mapa da nossa relação com o território de Vargem

Grande. Francis iniciou o processo contornando a sua mão em uma cartolina desposta no chão.

Ainda na cartolina ela desenhou veias em suas mãos. Ela explicou para o grupo que essas veias

eram a representação dos muitos rios que banhavam a região. Para ela não havia forma melhor

de mostrar como ela era parte daquele território e vice-versa.

Essa intervenção espontânea de Francis levou a uma construção coletiva de um mapa

afetivo do grupo em relação ao território e ao que a Coletiva representava. Eventualmente, essa

experiência de construção tornou-se uma ferramenta metodológica para trabalhar em rodas e

oficinas na Zona Oeste.

Meses depois, as mulheres de Vargem Grande envolvidas na experiência da Militiva

constituíram uma linha do tempo das suas mobilizações tendo como base o desenho da mão de

Francis.
175

Figura 14. Mapa território afetivo “corpo-território” Vargem Grande

A noção de território engloba dimensões materiais e subjetivas, pois são lugares de

experiências vividas através dos significados e representações individuais e também

compartilhadas sobre determinada territorialidade.

Dessa forma, as mulheres da Coletiva ampliam a compreensão sobre o corpo enquanto

primeiro território de resistência e luta política. Para Silvia, quilombola, agricultora e feminista

de 55 anos que integra a coletiva: “para ser militante, é necessário que antes de tudo, recuperar

o poder sobre o próprio corpo”.

Nesse sentindo, há uma entendimento de que para mapear as ameaças e conflitos sobre

os territórios é preciso que haja uma imersão das mulheres em suas próprias histórias, situando

sua existência enquanto corpo-território que sofre pressões e ameaças diversas, mas que

encontra, nas práticas cotidianas, estratégias para avançar em sua autonomia individual e

coletiva. Essas estratégias vão aparecer de formas diversas a partir do resgate de uma série de
176

saberes e práticas ligados a ideia de campesinato trazida no movimento da agroecologia, a partir

da valorização dos saberes tradicionais acerca das ervas medicinais e das plantas alimentícias

não-convencionais (PANCs), nas práticas de ginecologia natural, nos rituais de comensalidade

e no resgaste das histórias que remetem à ancestralidade quilombola na região.

O modelo camponês – entendido de forma ampla como modelos familiares de produção

agrícola e extrativista – surge no contexto da agroecologia como uma construção de um ideal

de relações sociais e de produção que tem como centro a solidariedade e a igualdade entre os

sujeitos (Siliprandi, 2015). Esse modelo camponês é reivindicado pelas mulheres que compõem

o movimento, ao mesmo tempo em que é constantemente questionado em especial no que se

refere às relações de gênero e ao ideal de família camponês e da agricultura familiar. Por isso,

as mulheres vão pautar em suas discussões, questões como a invisibilidade do trabalho feminino

na agricultura, o não compartilhamento das tarefas domésticas e do cuidado com os filhos e a

importância de valorizar o trabalho de todos os membros da família na agricultura.

Ao mesmo tempo, somam-se a essas questões, problemáticas referentes ao espaço

urbano (ou próximo à cidade) em que vivem e que, em diferentes graus, podem ser reconhecidas

na realidade de qualquer grande metrópole latino americana, tais como a violência urbana, a

presença de milícias, a favelização e a dificuldade de locomoção entre os bairros da cidade

(existem poucas opções de transporte público para chegar no bairro de Vargem Grande, de

forma que uma viagem até o centro do Rio de Janeiro pode levar cerca de três horas).

As relações de gênero e familiares aparecem como um eixo importante a ser pensado,

na agroecologia e na agricultura urbana, sendo as mulheres grandes protagonistas na esfera

política. Entretanto nem todas se dizem feministas ou entendem a relação direta entre a luta

feminista e a agroecologia, sendo esse um discurso mais presente as mulheres que são

lideranças.
177

Esses impasses foram se delineando para o grupo desde a primeira reunião que

aconteceu no terreno da casa de uma das integrantes. A ideia desse encontro era de começar a

discutir e planejar uma horta coletiva que seria cuidada pela coletiva. Essa horta seria feita no

terreno de Eliane, uma das integrantes da coletiva. Nessa ocasião, o marido de Eliane ofereceu

a ajuda de um amigo engenheiro químico para dar assessoria técnica às mulheres, visto a

experiência que ele já tinha com o assunto. Entretanto, no diálogo com esse profissional, as

mulheres debateram entre si e perceberam que esse tipo de assessoria, hierarquizada, de alguém

de fora do grupo e feita por um homem, não lhes serviria. Segundo elas, o assessor não

respeitava a autonomia e que elas tinham sobre agricultura em seus quintais, motivo que fez

com que elas se organizassem para contratar os serviços de uma assessora técnica que trabalha

com sistemas agroflorestais e implantação de hortas orgânicas, além de ser militante feminista

e do movimento de agricultura urbana do Rio de Janeiro.

Sobre esse impasse, vale a pena salientar que Eliane se engajou na coletiva e nos grupos

de mulheres de Vargem Grande por ser consumidora da feira e agricultora, apesar de não ter a

agricultura como seu meio de subsistência e ser oriunda da classe média, tendo como bairro de

origem o Recreio dos Bandeirantes, um dos bairros mais valorizados do Rio de Janeiro. Para

Silvia, o fato da coletiva ser formada por mulheres de classes sociais diferentes traz muita

potência ao grupo, pois possibilita a troca de saberes entre as mulheres, além de ser uma

estratégia de fortalecimento político e que mostra a importância de aproximar o discurso

ecológico às classes populares. Esse encontro, porém, não se dá sem embates acerca dos

diferentes entendimentos acerca dos objetivos do grupo, do tipo de feminismo e da forma que

a agroecologia é pensada, chegando a conflitos mais duros em algumas ocasiões.

Em um dos encontros, uma das integrantes da coletiva que é ligada ao movimento de

alimentação viva, afirmou não haver diferenças entre as mulheres que compunham o grupo, de

forma que questões como feminismo e a crise política do país em meio ao golpe de Estado, não
178

deveriam acontecer naquele espaço que deveria pautar questões relativas à saúde, alimentação

e autocuidado. Nesse momento, Silvia foi enfática ao afirmar que não integraria uma coletiva

onde as mulheres brancas e de classe média não reconhecessem seus privilégios e onde o

cenário político e social não pudessem ser discutidos, pois isso afetava diretamente a vida de

todas, em especial das mulheres negras e pobres, reivindicando a interseccionalidade como uma

ferramenta importante para entender as relações de opressão que ocorrem inclusive em espaços

de luta.

Após esse incômodo inicial gerado pela presença do engenheiro químico e essa

discussão sobre insterseccionalidade das opressões e das lutas, elas passaram a discutir de forma

mais contundente questões como as relações de gênero e as relações de poder e saber a que

estavam submetidas; sobre a importância de ter uma coletiva de mulheres; e se o grupo era ou

não uma organização feminista. Até então, não estava realmente claro para todas, qual era a

importância de ter um grupo composto exclusivamente de mulheres para discutir essas

questões.

Sobre esse estranhamento, Maria Rosa, integrante da coletiva que ajudou a formar o

grupo junto às mulheres da feira, relata que, incialmente muitas mostraram estranheza e

trataram com certo deboche a ideia de ter um grupo composto só por mulheres que tinha por

objetivos plantar e discutir questões relativas a agroecologia, ao território e às suas vivências.

Nesse momento, algumas mulheres, já envolvidas há longa data com espaços de

militância política, se colocaram enquanto feministas e pontuam a importância de assumir esse

posicionamento político, enquanto outras, algumas agricultoras e que trabalham fazendo

alimentos para venda na feira, não se reconhecem enquanto tal. Essa discussão foi retomada

nas rodas de conversa da coletiva, onde foi possível notar uma maior apropriação do termo por

algumas integrantes da coletiva que passaram a se assumir enquanto tal, principalmente diante
179

de três acontecimentos que foram se dando ao longo dos encontros e podem ser pensados como

analisadores desse processo.

O primeiro acontecimento relaciona-se diretamente com a organização da coletiva,

ainda sobre o terreno de Eliane, onde elas vêm construindo a horta. Em uma das reuniões das

mulheres, um conhecido de Eliane surgiu e pediu para conversar com ela na frente de todas.

Questionando-a sobre o objetivo das mulheres no terreno, ele seguiu em tom de ameaça,

alegando que as mulheres do grupo eram “posseiras” e que ele conversaria com o filho mais

velho de Eliane para que ele impedisse a mãe de construir uma horta coletiva em seu terreno.

Posteriormente ao acontecido, as mulheres fizeram uma mística ressaltando os laços

afetivos e a produção imaterial dos encontros que elas estavam realizando, entendendo que essa

“invasão” foi motivado pelo mesmo possuir um pensamento ideológico “de direita” e patriarcal

tendo um entendimento diferente sobre o uso da terra e do fazer político. Maria, militante

feminista que integra a coletiva falou da importância delas realizarem essas rodas de conversa

antes e em paralelo ao “botar a mão” na terra:

Quando propus a realização dessas oficinas, eu queria que esses conflitos aparecessem
antes da gente cavar a terra e colocar as coisas lá, eu estava dando uma chance para
aparecer e apareceu... e sempre aparece. Se não aparecer é porque você não está fazendo
a coisa certa. O velho Paulo Freire nos ensinou, se o poder não se enunciar é porque
estamos fazendo alguma coisa errada (Maria, entrevista concedida em 2016).

O segundo acontecimento-analisador diz respeito a ameaça que uma das mulheres que

compõem a coletiva e que também é militante feminista e da luta contra o PEU das Vargens,

sofreu em sua casa em repressão a sua postura de luta. Sobre esse acontecimento, surgiram

várias reflexões que dizem respeito a maneira que as questões políticas atingem de forma

diferente homens e mulheres militantes. Por que ela não foi ameaçada num lugar público como

são os homens, em um palanque, na rua? Por que o artifício da família é sempre usado como

uma estratégia para se aproximar e atingir as mulheres? No plano simbólico, essa ameaça
180

atingiu fortemente todo o grupo, mostrando a fragilidade e a violência a que as mulheres que

integram espaços de militância estão expostas.

Para Saney, agricultura e quilombola, essa violência expressa uma forma “masculina”

de fazer política que se opõe os modos de organização das mulheres e reflete uma longa história

de opressões machistas e racistas. Várias vezes a importância da criação de uma rede de cuidado

foi pautada pelas mulheres do grupo como parte da prática de militância política e na vida

cotidiana diante desse cenário de vulnerabilidade e de muito adoecimento físico, algo que é

constante em quase todas as mulheres da coletiva. Segundo Mariana, jovem feminista:

As organizações populares precisam aprender com as mulheres sobre a ética do cuidado,


mas não de uma forma que sobrecarregue ainda mais as mulheres. Essa é a nossa forma
de fazer política, uma construção histórica já elaborada por nós. É uma questão a ser
trazida e vivenciada pelos movimentos sociais (Mariana, entrevista concedida em 2016).

Nesse sentido Maraci, agricultora e militante quilombola, acredita que:

Quanto mais a gente se posiciona à frente de alguma coisa, mais você se torna
vulnerável. São vários desafios, mas não eu não quero me permitir ficar cansada, pois
ao mesmo tempo em que a luta cansa, também é uma força grande (Maraci, entrevista
concedida em 2016).

Assim vemos que ao mesmo tempo em que a militância política pode trazer uma

importante dimensão de empoderamento, ela também surge constantemente nos discursos

associados à sobrecarga e à vulnerabilidade que a dimensão da luta pode trazer. Pensar o

cuidado é, portanto, uma dimensão fundamental da luta feminista e agroecológica.

Pensar o cuidado como um estado afetivo vital, uma obrigação ética e um trabalho

prático tem estado desde muito cedo no cerne dos estudos feministas, tanto nas ciências sociais

quanto na teoria política; este esforço tornou-se mais perceptível com o aumento do interesse

pelas “éticas do cuidado”. Enquanto é justo dizer que o cuidado tem sido e continua a ser um

aspecto essencial do caráter transformador da política feminista e de formas alternativas de

organização, o “cuidar” também é comum na moralização cotidiana. Pensar o cuidado como


181

um estado afetivo vital, uma obrigação ética e um trabalho prático tem estado desde muito cedo

no cerne dos estudos feministas, tanto nas ciências sociais quanto na teoria política. Enquanto

é justo dizer que o cuidado tem sido e continua a ser um aspecto essencial do caráter

transformador da política feminista e de formas alternativas de vida e organização (Bellacasa,

2012).

Em mundos feitos de formas e processos interdependentes e heterogêneos de vida e

matéria, cuidar de alguma coisa ou de alguém é inevitavelmente criar relação. Neste sentido,

cuidar guarda o peculiar significado de ser uma “obrigação não normativa” (Bellacasa, 2012):

é concomitante à vida – não algo forçado aos seres vivos por uma ordem moral; ainda assim,

obriga, já que para que a vida seja vivida ela precisa ser nutrida. Isso significa que o cuidado é

de alguma forma inevitável: embora nem todas as relações possam ser definidas como

cuidadosas, nenhuma poderia subsistir sem cuidado.

As mulheres do movimento agroecológico – particularmente as mulheres campesinas,

indígenas, quilombolas, ribeirinhas – trazem fortemente esse debate para o movimento. Da

concepção de reciprocidade entre as relações de cuidado entre humanos e não-humanos,

constrói-se um outro “nós” que não passam por uma visão hegemônica das relações com a

natureza. São visões singulares dos feminismos e da agroecologia com as quais há uma

reivindicação do reconhecimento das suas práticas e modos de vida.

Um terceiro acontecimento-analisador ocorreu mais uma vez a partir de um elemento

externo à coletiva: em um grupo de mobilização comunitária dos moradores de Vargem Grande,

um dos companheiros de militância passou a se relacionar com uma jovem menor de idade do

bairro. Diante do desconforto causado por essa relação, algumas companheiras que integram a

coletiva e também o grupo comunitário problematizaram esse fato junto ao companheiro e

posteriormente junto à menina. Tal postura, entretanto, foi considerada “radical e exagerada”,
182

de forma que o feminismo reivindicado pelas militantes soaria como “uma luta contra os

homens”. Assim, o companheiro e outros dois militantes se retiraram do grupo.

Esse conflito acabou criando um atrito interno na coletiva, pois várias companheiras se

sentiram desrespeitas ao não serem consultadas, já que se trataram de uma questão do bairro e

das mulheres, ao mesmo tempo em que consideraram que a autonomia da garota sobre esse

caso foi desconsiderada. Por outro lado, algumas militantes apoiaram a decisão, considerando

a importância de denunciar e desnaturalizar essas práticas. Para Mariana, moradora de Vargem

Grande e militante feminista que integra a coletiva: “(...) a gente tem que enfrentar essa crise

sem transformamos o grande problema que é a reprodução das estruturas machistas e

patriarcais, principalmente em ambientes de esquerda que se propõem a construir outros pactos

civilizatórios”.

Assim, vemos que as mulheres estão construindo um outro conceito de território e um

novo fazer político, a partir desse corpo-território-político que ganha novos significados e

potência a através do encontro com o paradigma agroecológico como estratégia de luta e

reprodução da vida.

Eixo III - Feminismo periférico: a construção de uma política a partir das margens

“ -Viemos disputar essa cidade!” É com essa frase que Ana Santos, mulher negra, 35

anos, articuladora social, cozinheira e agricultora urbana me relata uma oficina sobre educação,

racismo e juventude construída junto aos adolescentes da Escola Estadual Teófilo Fernandes

em Vargem Grande.

Nascida e criada em São Gonçalo, Baixada Fluminense, Ana mudou-se para a capital

para fazer faculdade de administração. Com o tempo começou a trabalhar na área de produção

cultural chegando a “faturar alto” como diz, mas se encantou com o movimento agroecológico
183

e largou seu emprego e a faculdade para se dedicar à agricultura, à culinária e à educação

ambiental. Ana construiu uma série de estratégias de promoção da agroecologia e da soberania

alimentar no Complexo de Favelas da Penha, onde morou por quase 10 anos. Ana era

responsável pela organização e manutenção de uma das poucas feiras de produtos orgânicos e

agroecológicos em favelas da cidade.

Hoje moradora de Vargem Grande, ela fez questão de marcar a importância da

existência de uma barraca feminista na feira. Para ela, a partir do diálogo com quem sente na

pele as contradições da cidade capitalista e da ocupação dos espaços institucionalizados pode

poder é possível construir outras possibilidades de cidadania urbana a partir das margens e da

experiência dos sujeitos subalternizados:

Você começa a entender que a cidade é partida mas que você não é você se retraindo,
se colocando pra, que isso é o contrário, né? É você se posicionando e se colocando cada
vez mais na sua cidade. Né? Tem que me engolir! Não é eu que tenho que sair porque
tô te incomodando. Isso pode ser muito simples mas isso é do caralho, isso é do caralho,
assim. Você entender que vai ter que dividir aqui comigo, tá entendendo? (Ana Santos,
entrevista concedida em 2018).

A partir da sua experiência enquanto um corpo de mulher favelada, um corpo negro na

cidade, Ana apresenta o sentido de uma cidade partida, mas também de uma cidade que está

sendo o tempo todo disputada.

Nesse contexto, mais uma vez, as mulheres dos movimentos populares e da

agroecologia, a partir de articulações comunitárias em defesa dos bens comuns aliados as

esferas do cuidado, dos saberes tradicionais, etc., vêm apontando para a construção de

estratégias políticas, epistemológicas e críticas próprias que contribui para o diálogo em torno

da formulação de um projeto ético político feminista que questione todos os sistemas de

opressão (Rosendo, 2012).

“Feminismo periférico” é uma expressão usada por Saney Souza, militante do CPMZO,

para descrever a luta das mulheres da Zona Oeste. O feminismo periférico parte do olhar
184

“subalterno” questionando as formas estabelecidas de vivenciar a política e a cidade e

reivindicando um feminismo latino-americano que necessariamente considera as intersecções

de classe e raça no que se refere às desigualdades sociais. Nesse sentido, relaciona-se com

outros feminismos periféricos pós-coloniais que vêm crescendo na América do Sul como o

feminismo comunitário. O “termo feminismo comunitário” foi criado por Julieta Paredes,

feminista descolononial boliviana/aimará para pensar a luta organizada das mulheres de setores

populares e indígenas da América Latina. Uma das características desse movimento é o rechaço

a identidade de gênero e ao conceito de feminismo europeu pós-Revolução Francesa:

Una vez descolonizado y desneoliberalizado, consideramos irnprescindible recuperar la


denuncia feminista del género para desmontar el patriarcado que es más antiguo que
lacolonización y elreoliberalismo. Es un enfoque que plantea acabar con la socialización
de lasmujeresen género femenino y la socialización de los hombres en el género
masculino (Paredes, 2010, p. 73).

Ao questionar a constituição de gênero, retoma a problematização sobre os sistema de

pensamentos que fundam a sociedade colonial, ao mesmo tempo que a autora problematiza a

ideia de uma sociedade pré-colonial na qual não haveriam hierarquias de gênero. O encontro

da opressão pré-colombiana com a opressão europeia contra as mulheres é denominado por

Paredes de “entroncamento patriarcal”. Essa ideia vai de encontro à crítica de Haraway (1995)

ao feminismo socialista que vem à tona a partir do debate prós estruturalista e pós-colonial:

Estamos dolorosamente conscientes do que significa ter um corpo historicamente


constituído. Mascom a perda da inocência sobre nossa origem, tampouco existequalquer
expulsão do Jardim do Éden. Nossa política perde oconsolo da culpa juntamente com a
naivetéda inocência (Haraway, 2000, p. 51)

O resgate à memória e à ancestralidade, entretanto, é um dos “eixos de ação” do

feminismo comunitário, assim como na agroecologia e no feminismo periférico da Zona Oeste.

Esse resgate é uma maneira de construir uma coalisão de mulheres em torno de elementos

comuns entre as mulheres e ao mesmo tempo que uma “consciência de oposição” nos termos

de Chela Sandoval, uma proposta de "consciência diferencial", conceito proposto como


185

substituto do conceito de "identidade", um tipo de habilidade que poderia dar ao movimento

social e suas tecnologias os "vínculos capazes de entrelaçar as mentes divididas da academia

do Primeiro Mundo, de articular territórios" (Sandoval, 2004, p. 87).

Nesse sentido, durante uma oficina chamada “Morar e Plantar” realizada pela Coletiva

Hortelã com as mulheres da comunidade de Taboinhas em Vargem Grande que tinha como

objetivo engajar as mulheres da comunidade em torno da relação entre a agricultura urbana e o

direito à moradia, chamou-me atenção a forma que Silvia reivindica sua ligação com o território

e com sua ancestralidade: “Estamos aqui promovendo o morar com um sentindo cultural,

promovendo nossas memórias. Nós não somos Europa, nem queremos ser. Somos indígenas e

quilombolas” (Silvia, diário de campo).

Essa oficina foi organizada diretamente por Silvia, Renata (integrante da militiva), por

mim e por duas lideranças locais da comunidade. Fizemos duas visitas durante a semana na

comunidade pedindo que as mulheres que fossem participar levassem elementos do que

consideram a luta local das mulheres de Taboinhas. Elas levaram fotos, plantas dos quintais,

frutas e artesantos. Construímos uma mandala com tais elementos posicionada no meio da nossa

roda coletiva.
186

Figura 15. Oficina “Morar e plantar” em Taboinhas, Vargem Grande.

Taboinhas é uma ocupação localizada dentro de Vargem Grande, sendo uma das

comunidades de possível de remoção com o PEU. A oficina em questão objetivava fazer uma

articução entre a APP e a comunidade para que a mobilização popular dos moradores fosse

fortalecida diante de possíveis ameaças de remoção. Silvia, militante história da luta por

moradia, já conhecia o território há décadas, mas lamentava que não podia “adentrar” sozinha

na comunidade devido aos embates do poder local. Além disso, parte da associação de

moradores não se opunha a uma possível remoção e defendiam que fazer acordos de

indenizações com a prefeitura seria o melhor caminho.

Assim, a oficina foi pensada para trabalhar o fortalecimento comunitário, mas sem falar

diretamente de questões mais “polêmicas” em comunidade, em especial, porque parte de nós

erámos estrageiras naquele contexto. Entretanto sabíamos que nosso trabalho teria de ser com

as mulheres que eram as grandes responsáveis pela manutenção e defesa da comunidade,

mesmo que não o fizessem de forma conscientemente política.


187

Para tanto, aproveitamos os elementos simbólicos mobilizados pelas mulheres e fizemos

uma cozinha coletiva na associação de moradores da comunidade. Não só a cozinha estava

aberta à todas que chegassem, mas a comida preparada também. Muitas crianças vieram com

suas mães e aprenderam a fazer “refrigerante” natural feito com cenoura e água gaseificada,

enquanto suas mães traziam vsilhas de casa para levar um pouco da comida, enquando

conversávamos todas juntas em volta da mesa. Essa estratégia foi fundamental para aproximar

a comunidade do movimento de mulheres. Ainda que não tenhamos falado diretamente da

palavra “feminismo” uma das mulheres me confessou em tom de brincadeira: “eu achava que

feminista era aqueleasmulhé (sic) que não gosta de homem e não sabe cozinhar, mas tô vendo

que não é assim, que têm umas coisas importantes mesmo, que faz a gente pensar sobre esse

negócio das mulheres, né, porque tem assim, muita coisa errada né” (diário de campo, 2017).

Figura 16. Panela de moqueca de banana quase vazia na oficina Morar e Plantar.

Dá mesma forma é interessante notar que, não obstante as várias questões que

atravessam e mobilizam minhas interlocutoras da pesquisa e os coletivos de mulheres dos quais

fazem parte, enquanto algumas mulheres possuem múltiplos engajamentos em espaços de


188

militância – no âmbito da luta pela agroecologia, pelo direito à moradia, contra o PEU das

Vargens, pela questão quilombola – outras foram se reconhecendo enquanto militantes

feministas ao longo dos encontros.

Quando questionada sobre sua relação com o movimento feminista, Francis, uma de

minhas interlocutoras, disse que só descobriu feminista há poucos anos, a partir dos

movimentos populares na Zona Oeste e da agroecologia, mas que sempre foi feminista, sem

saber: “Eu não me sentia autorizada a dizer que era feminista, nunca tinha lido nada sobre isso,

até entender que só era pra ser feminista bastava ser mulher (risos)” (Francis, entrevista

concedida em 2016). Da mesma forma outra interlocutora, Silvia, sempre brincava nas reuniões

dizendo que só havia lido as três primeiras páginas do Segundo Sexo de Simone de Beauvoir e

que, portanto, não poderia ser considerada feminista. Já Maria, agricultora de 54 anos de idade,

ao ser questionada se ela se considera feminista, respondeu-me que: “Sim, mas uma feminista

feminina que não exclui o homem”.

Percebe-se nessas falas o não reconhecimento dessas mulheres com a ideia

“hegemônica” sobre o movimento feminista, como algo ligado as elitas brancas, de classe

média, ou ainda como um movimento de repúdio aos homens e aos signos ligados à ideia de

feminilidade.

No Seminário Resistências Feministas, organizado pelo Instituto PACS, Silvia fez

novamente uma fala que aponta para a importância da luta feminista a partir do olhar das

mulheres da periferia e da relação com a memória e o território:

Eu estou bastante mexida com o que a gente está fazendo. Tirando o centro político e
trazendo pra periferia. Eu cresci o centro político pra mim sendo na Cinelândia. Só [as
avenidas] Rio Branco, Presidente Vargas. Fui parte da construção da imensa marcha
negra de 1988. Mas o Centro era o centro. Agora o centro político pra gente é Zona
Oeste (Silvia, diário de campo).
189

O mote usado pelo movimento de mulheres da Zona Oeste “A Zona Oeste existe e

resiste!” também mostra a importância, sobremaneira, da construção de movimento que parte

da periferia.

A agroecologia surge como uma fator importante nesse processo de construção de um

olhar político da periferia e dos sujeitos subalternos, como podemos ver na fala da agricultora

Maraci durante o Seminário Resistências Feministas:

O que a gente pode dizer de agroecologia? Traz a agricultora, o agricultor, a juventude,


a mulher pra dentro da história da luta ambiental. As periferias da cidade do Rio de
Janeiro estão com condição de reinventar as suas lutas (Maraci, diário de campo).

A agroecologia é também entendida como uma forma de resignificar a relação das

pessoas com o território em que vivem e de repensar as relações sociais, de educação, de

trabalho e de alimentação, para além da questão da produção. Silvia exalta a importância da

agroecologia como uma forma alternativa de construir a luta política:

Sou muito agradecida ao campo da agroecologia que traz essa potência enorme, de estar
existindo aqui, a gente sabe que a barbárie está no limite, mas eu estou vivenciando essa
outra realidade de construção de alternativas de uma economia real, de realmente
construir a vida. Eu não sou inocente, conheço bem os riscos, mas o que motiva a
levantar é essa terra de cuidados que a gente constrói e aí eu acho que a gente deve
esclarecer nossas possibilidades de resistência e expansão dessa rede de cuidados, de
solidariedade pragmática e construção de outro mundo e eu sinto que eu vivo esse outro
mundo (Silvia, diário de campo).

A centralidade que as crianças têm nas reuniões e encontros de agroecologia é um

exemplo significativo desse processo. Na coletiva, criou-se uma metodologia de trabalho com

as crianças pequenas que acompanham suas mães nas reuniões – a ciranda agroecológica – onde

as mães e outras mulheres vão se revezando no cuidado que é sempre discutido coletivamente.

Dessa forma, a alimentação, o espaço, a linguagem e a organização de todos os encontros é

pensada de forma a integra-las, dialogando diretamente com as crianças maiores, questionando

sobre o que elas entendem sobre os temas tratados nos encontros, sobre como eles preferem
190

plantar, sobre como elas podem contribuir para os encontros, interferindo o mínimo possível da

interação entre as crianças.

Outra dimensão essencial é a da alimentação e dos rituais de comensalidade entre o

grupo. Todas as reuniões iniciam-se com uma mística onde uma das participantes faz um suco

verde com grãos germinados, frutas e folhas orgânicas. Em um segundo momento, elas formam

um roda onde dão as mãos e reafirmam seus compromissos com o grupo. Então começam a

roda de conversa, o planejamento da horta e os encaminhamentos para os próximos encontros.

Alimentação aparece, dessa forma, como uma questão central nas falas das

interlocutoras e no discurso da agroecologia como um todo. As mulheres se referem à

alimentação e à saúde, sua e das suas famílias, como as principais motivações para se engajarem

na agroecologia, ressaltando que a agroecologia é essencial para a segurança e soberania

alimentar. Aliado a ideia de resgate das culturas alimentares “tradicionais” elas também

experimentam formas alternativas de alimentação, como a alimentação crua, a alimentação

viva, o slowfood e o vegetarianismo, evidenciando os diversos atravessamentos que compõem

esse contexto, entre o rural e o urbano.

Os rituais de comensalidade são centrais nesse cenário – o “comer junto” é um fator de

sociabilidade, além de ser uma forma de chamar a atenção para a importância da alimentação

consciente para aqueles que ainda não adeririam à produção e ao consumo de produtos

agroecológicos, dessa forma, vemos que existe uma politização da esfera do privado (a

alimentação) e do consumo.

Assim, os rituais de comensalidade são mecanismos para a consolidação da

solidariedade grupal, pois envolvem a partilha não só de alimentos, mas de significados: é o

momento de conversar sobre as atividades ocorridas ou por acontecer, estabelecer novos

contatos ou simplesmente “jogar conversa fora”. No contexto das reuniões da coletiva, na feira

e nos encontros de agroecologia é comum ter grandes “cafés-da-manhã agroecológicos”, onde


191

percebe-se que partilhar alimentos é também partilhar sentidos atribuídos aos principais

significantes em jogo, como sororidade34, corpo e alimentação. Deste modo, a comensalidade

é politizada ao serem atribuídos valores políticos à partilha e feitura dos alimentos a serem

compartilhados (Carmo, 2013).

Há uma busca por uma alimentação consciente, assim como um resgate do uso e

consumo de gênero alimentícios tradicionais esquecidos ou pouco usados como a taioba e ora-

pro-nóbis, assim como uma valorização dos saberes das medicinas tradicionais, com a

disseminação do uso de ervas, chás, lambedores e xaropes caseiros que remetem à ideia de

ancestralidade, um aspecto importante para entender a formação da identidade e o vínculo

dessas mulheres com o bairro em que vivem.

A culinária é, portanto, uma das grandes estratégias de mobilização desses grupos.

Participei algumas vezes de oficinas de beneficiamento de frutas na feira, além de ter cozinhado

em alguns encontros organizados pela coletiva e pela Militiva. Nessas ocasiões realizamos uma

“cozinha de transição agroecológica” misturando alimentos “naturais” com alimentos como

pães, salgados e sobremesas, como forma de atrair mais pessoas para experimentar. A comida,

sem dúvida, mobiliza as comunidades, ao mesmo tempo em que é um elemento que remete aos

lugares tradicionalmente identificados como femininos. Essa relação, entretanto, ganha outros

significados nesses movimentos. Um de minhas interlocutoras relatou-me em uma conversa

informal que, durante toda a vida rechaçou o espaço da cozinha e da culinária, pois para ela,

isso a identificava com o a ideia de mulher submissa e do lar. Entretanto, a partir do momento

que ela entrou no movimento da agroecologia, ela percebeu a potência que a cozinha tem para

agregar pessoas em torno de uma causa em comum.

34
Sororidade vem de sóror, que significa irmã em latim. Essa expressão é utilizada no movimento feminista para
designar uma solidariedade que seria própria das mulheres, assim como a fraternidade se referiria à solidariedade
entre fraters– irmãos.
192

Percebemos, assim, que as lutas de resistência em que essas mulheres na agroecologia

urbana estão envolvidas – pelo reconhecimento da agricultura na cidade do Rio de Janeiro, pelo

acesso à políticas públicas de incentivo à agricultura familiar, contra a implantação do PEU das

Vargens e a especulação imobiliária - apontam para um norte comum, qual seja, um modelo de

desenvolvimento com relações de menor impacto no que se refere a produção/distribuição de

alimentos e a apropriação da natureza e que fuja à lógica capitalista que se apoia na reprodução

das desigualdades socioeconômicas, raciais e sexistas.

5.4. Eixo IV - Produção de conhecimento e luta política das mulheres no movimento

agroecológico

A visibilidade dos movimentos e ações de mulheres campesinas se confundem com o

fortalecimento da agenda feminista no movimento ambientalista brasileiro (e na América Latina

como um todo) e com a consolidação da agroecologia enquanto projeto em comum de vários

movimentos sociais de esquerda. A resistência das mulheres em defesa dos seus territórios é,

entretanto, ancestral (Mies & Shiva, 1993). Ao analisar o histórico de lutas locais contra a

destruição do meio ambiente ao redor do mundo, as mulheres sempre aparecem na linha de

frente e em maior número, mesmo quando não são reconhecidas como principais lideranças. A

luta das mulheres indianas no Movimento Chipko pela proteção das suas florestas; a resistência

das campesinas bolivianas contra o processo de privatização das águas que ficou conhecida

como “a guerra da água” no país; a mobilização das mulheres em Altamira contra a construção

da barragem de Belo Monte; e a experiência das mulheres quenianas em torno do Movimento

Cinturão Verde, são alguns exemplos de como, a partir dos seus diferentes contextos, as

mulheres, especialmente em áreas periféricas e rurais, comunidades tradicionais e povos

originários do Sul Global, constroem laços de solidariedade e mobilização social que se


193

mostram centrais na luta pela justiça socioambiental, ao apontarem a relação entre a

mercantilização da natureza e da vida e as desigualdades de gênero.

As ações coletivas levadas a cabo no Brasil através dos movimentos de mulheres

campesinas e da agroecologia apontam para propostas éticas, epistemológicas e políticas

atravessadas por debates ecofeministas, agroecológicos e descoloniais na construção de

feminismos campesinos, quilombolas, indígenas, comunitários, periféricos e populares.

A frase “sem feminismo, não há agroecologia”, foi um mote construído a partir da

organização do GT Mulheres da ANA no VIII Congresso Brasileiro de Agroecologia realizado

em Porto Alegre no ano de 2013, como forma de chamar atenção para as desigualdades de

gênero dentro do movimento agroecológico e na agricultura familiar, tais como a invisibilidade

do trabalho das mulheres nas áreas rurais, a sobrecarga de trabalho doméstico, e o apagamento

e a apropriação dos saberes produzidos por mulheres, apontando as contradições dentro do

movimento ao mesmo tempo em que põe em cheque a ideia de neutralidade do conhecimento

técnico e científico.

Entretanto, como argumentam Márcia Lima e Vanessa de Jesus (2017), apesar dos

avanços no debate de gênero, ainda não há a incorporação dessa categoria enquanto uma

dimensão central para pensar a agroecologia pela maior parte dos teóricos e do movimento

como um todo. As questões de gênero aparecem de forma marginal, e muitas vezes são

encaradas como questões que só interessam às mulheres. A seguir, propomos uma reflexão

sobre quem é autorizado a falar e quais conhecimentos são considerados válidos, levantando

algumas pistas sobre o processo de invisibilização dos problemas de gênero na esfera da

agroecologia.
194

Disputas narrativas e memória da agroecologia

A artivista e intelectual Grada Kilomba em seu livro Plantation Memories: episodes of

every day racism de 2010, desenvolve um instigante exercício de reflexão sobre a potência da

fala a partir do lugar subalterno, apresentando outros pontos de vista sobre a questão levantada

por Spivak. Esse exercício nos leva a entender como os conceitos de conhecimento e ciência

não são neutros, como já discutimos anteriormente, mas estão intrinsecamente relacionados ao

poder e à autoridade racial e de gênero. Nesse sentido, Kilomba nos lança questionamentos

importantes:

O que é conhecimento? Que conhecimento é reconhecido como tal? E qual


conhecimento não é reconhecido? Que conhecimento é esse? Quem é autorizado a ter
conhecimento? E quem não é? Que conhecimento tem sido parte das agendas
acadêmicas? Quais conhecimentos não fazem parte? Que conhecimento é esse? Quem
está autorizado a ter esse conhecimento? Quem não está? Quem pode ensinar esse
conhecimento? Quem não pode? Quem habita a academia? Quem está às margens? E,
finalmente: quem pode falar?35 (Kilomba, 2010, p. 27, Tradução de Anne Quiangala 36).

Esse debate expõe, deste modo, as desigualdades, fissuras e tensões não só no campo

do discurso científico, mas também na esfera dos movimentos sociais, evidenciando as

dimensões de colonialidade, racismo e sexismo que até os discursos progressistas e do campo

da esquerda podem assumir. Apresentamos a seguir duas cenas que exemplificam como essas

desigualdades atravessam todas as esferas, incluindo o movimento agroecológico e suas

tecnologias.

35
“What knowledge is being acknowledged as such? And what knowledge is not? What knowledge has been made
part of academic agendas? And what knowledge has not? Whose knowledge is this? Who is acknowledged to have
the knowledge? And who is not? Who can teach knowledge? And who cannot? Who is at the centre? And who
remains outside, at the margins? ”
36
Disponível em: http://www.pretaenerd.com.br/2016/01/traducao-quem-pode-falar-grada-kilomba.html.
195

Cena 1

No grandioso auditório do Centro de Convenções Ulysses Guimarães em Brasília,

alguns dos mais reconhecidos nomes da agroecologia no mundo reuniram-se para apresentar o

Painel Memória da Agroecologia no X Congresso Brasileiro de Agroecologia (CBA) / VI

Latino-Americano de Agroecologia realizado em outubro de 2017. O painel tinha como

objetivo fazer um resgate da construção da agroecologia na América Latina, abordando as

origens, desafios, conquistas e caminhos futuros da agroecologia na região.

O coordenador do painel, talvez a mais importante referência teórica da agroecologia na

América Latina, o chileno Miguel Altieri inicia sua fala narrando sua perspectiva sobre o

desenvolvimento da agroecologia na América Latina e apresenta os demais participantes da

mesa, importantes pesquisadores e técnicos vindos do México, Cuba, Espanha, Brasil e Estados

Unidos.

Logo após a apresentação inicial, as mulheres do painel “Sem Feminismo não há

agroecologia” que estava ocorrendo paralelamente em outro auditório, fizeram uma intervenção

para protestar sobre a composição do painel – todos homens brancos – e questionar a ausência

de mulheres e de representantes das juventudes e de comunidades tradicionais. As saias feitas

de chita, os lenços nos cabelos, os panos lilases, os punhos fechados e erguidos, os cartazes, as

palavras de luta, tudo contrasta com as roupas de cores neutras, o academicismo e a postura do

painel que estava sendo realizado. Ao ocuparem o auditório, elas denunciam que narrar uma

memória da agroecologia sem as mulheres, é contar uma história pela metade e questionam:

qual história vem sendo contada, afinal?

O painel prossegue com as falas dos convidados e recebe algumas outras intervenções

e questionamentos ao final sobre a organização do evento, sobre como a mesa foi pensada e o

porquê dessa representação, além de falas sobre a importância da educação do campo e outros
196

conhecimentos para a memória da agroecologia. Um comentário assinado por Joanna Lessa no

blog37 do evento aonde constam as relatorias dos painéis e mesas, chamou atenção em especial

por destacar algumas das tensões em jogo no referido painel (segue trecho abaixo):

(...) ações e falas da coordenação da mesa, que me pareceu pouco agroecológica. Além
de ter simplesmente cortado as falas inscritas pelo argumento do tempo, desvalorizou
as primeiras falas realizadas, qualificando-as como “discursos” e pedindo que as pessoas
passassem a fazer perguntas. Isso se agravou com a resposta a questão colocada por uma
participante sobre a presença das mulheres. A resposta foi que havia o planejamento de
uma mulher na mesa que não pode vir de Cuba, mas acrescentou que por outro lado,
não era possível “mudar a história”, que tinha sido feita predominantemente por
homens. A fala evidencia a grande contradição: para inserir as mulheres, só vale a
história oficial, não vale os primórdios, inclusive apontados na mesa pelo palestrante de
Cuba, quando afirmou que os primeiros laboratórios eram as áreas cuidadas pelas
camponesas (os pátios). Já para engrandecer a “Logia”, consideramos as Tecnologias
Alternativas, o Movimento Campesino a Campesino, entre outros. (...) como
construímos a memória da Agroecologia, apenas como Logia ou como prática,
movimento e construção de sujeitos? (Lessa, Relatoria do X CBA, 2017).

O uso do sufixo “logia” para designar um campo do saber, de estudos ou uma teoria, no

sentido trazido pela autora do comentário, sugere que o painel se referiu a uma representação

da história oficial da agroecologia, construída através de conhecimentos técnicos e científicos,

em espaços ocupados historicamente e majoritariamente por homens.

Importante ter em mente que o CBA, realizado pela Associação Brasileira de

Agroecologia (ABA) e o Congresso Latino-americano de Agroecologia, organizado pela

Sociedade Científica Latina Americana de Agroecologia (SOCLA) foram eventos incialmente

idealizados dentro das universidades e são realizados, em grande parte, por setores ligados a

produção do conhecimento científico no país e no continente reunindo “acadêmicos, técnicos,

estudantes e agricultores organizados”, proporcionando “uma ampla discussão com troca de

experiências, apresentação de trabalhos científicos e encaminhamentos que contribuem para os

37
Disponível em https://relatosagroecologia2017.itbio3.org/atividades/at27-painel-ii-memoria-da-agroecologia/.
197

direcionamentos estratégicos destes setores” 38


. Nesse sentido, eles se distinguem dos ENA,

encontros idealizados e realizados pelos movimentos sociais como uma forma de fortalecer o

movimento agroecológico, suas pautas e a troca de saberes a partir de quem constrói as

experiências nos territórios.

O conflito gerado no painel sobre a memória da agroecologia evidenciou as tensões

existentes acerca dos lugares de fala nas diversas esferas da agroecologia, particularmente a

partir dos marcadores de gênero e raça. Esse acontecimento disparou vários debates,

especialmente dentro do GT Mulheres da ANA. Como resposta, mulheres das 5 regiões

brasileiras construíram suas próprias memórias na agroecologia a partir dos seus respectivos

territórios. Na mística39 de abertura realizada na plenária das mulheres do IV ENA, em maio de

2018, cada região levou uma representação de sua memória na agroecologia que apareceram

braços do rio que formavam, ao se juntarem, o “rio da vida das mulheres” na agroecologia.

Nesses “rios” podíamos ver nomes de movimentos, acontecimentos e mulheres das

respectivas regiões que foram essenciais para a construção da agroecologia. Nomes como

Margarida Alves, sindicalista paraibana assassinada nos anos 1980 por defender os direitos dos

trabalhadores e trabalhadoras rurais; Ana Primavesi, agrônoma austro-brasileira pioneira no

estudo sobre manejo ecológico dos solos no país desde os anos de 1960; a Articulação Nacional

de Mulheres Trabalhadoras Rurais, movimento criado nos anos 1990 que foi fundamental para

o reconhecimento das mulheres campesinas enquanto trabalhadoras; e acontecimentos

importantes como a ocupação realizada pelas mulheres da Via Campesina na plantação de

eucaliptos transgênicos no Rio Grande do Sul; foram alguns dos nomes e elementos trazidos na

38
Disponível em http://agroecologia2017.com/apresentacao/.
39
A mística é um ritual político de integração entre os participantes do movimento, visando a reprodução de um
capital simbólico e a construção da identidade do sujeito militante (Vieira, 2008). O uso da mística foi herdado
dos movimentos eclesiais de base e hoje é disseminado por diversos grupos políticos de esquerda na América
Latina (Costa & Schwade, 2015).
198

memória das mulheres, junto a vários nomes menos reconhecidos, além de trazer a memória de

grupos comumente deixados de fora das histórias oficiais, de comunidades campesinas e

indígenas, de onde advém as bases das práticas agroecológicas.

Figura 17. Mística de abertura da Plenária das Mulheres IV ENA, 2018.


199

Figura 18. Mística de abertura da Plenária das Mulheres IV ENA, 2018.

Após o encontro dos rios, a mística continuou com o encontro entre uma representação

de Oxum – orixá feminina que na mitologia das religiões de matriz ioruba cuida das águas doces

– e as mulheres da nação indígena Xucuru de Pernambuco, que invocaram seus encantados 40

para uma benção ao Rio Doce, atingindo pela lama após o rompimento da barragem da

Mineradora Samarco em Mariana, em uma das maiores tragédias ambientais da história do

Brasil. As falas que se seguem, tratam da relação entre os rios, os corpos das mulheres e suas

memórias. O lema “A nossa luta é todo dia! Somos memória da agroecologia” foi trazida como

reafirmação da importância das mulheres no desenvolvimento da agroecologia frente aos casos

40
Espíritos dos antepassados que habitam a natureza sagrada.
200

de apagamento das mulheres na história, como acontecido no Painel do CBA e a fala de Altieri

sobre a inexistência de mulheres nos primórdios da agroecologia na América Latina.

Cena 2

Em dezembro de 2013 Francisco Caporal, outra grande referência da agroecologia no

Brasil, em e-mail que circulou nas redes de agroecologia, questiona o uso do feminismo

enquanto teoria crítica na agroecologia e a forma como os movimentos feministas se apropriam

da agroecologia enquanto um projeto feminista afirmando que se há uma defesa de que a

agroecologia tem suas “bases nas culturas indígenas e no campesinato (historicamente

patriarcal e machista) ”, afrase “não existe agroecologia sem feminismo” não se sustentaria.

Essa mensagem eletrônica gerou uma carta aberta41 em resposta assinada por 60

mulheres militantes e diversas organizações. Na carta, elas apontam que a teoria feminista

crítica busca questionar os sistemas de pensamento existentes à luz dos pressupostos destes

mesmos sistemas, mostrando as suas incoerências, nesse sentido, assumem as contradições e as

estruturas machistas que subjazem as culturas campesinas e indígenas, ao mesmo tempo em

que convocam a agroecologia a se debruçar sobre essas questões e provocam a reflexão se é

possível construir justiça socioambiental com uma distribuição de recursos e poder entre

homens e mulheres. Por fim, afirmam que os referenciais teóricos trazidos pelo feminismo são

essenciais para o conjunto de conhecimentos manejados no campo agroecológico, pois

permitem “explicitar e combater as formas como a opressão de gênero se manifesta” (Carta

Aberta, dezembro de 2013).

Nas cenas apresentadas, a autoridade do discurso técnico-científico é reivindicada de

forma que há uma diminuição dos conhecimentos e práticas construídos pelas mulheres, vistos

41
Disponível em: https://acervo.racismoambiental.net.br/2013/12/19/carta-aberta-a-francisco-caporal-sem-
feminismo-nao-ha-agroecologia/.
201

como não científicos – Caporal, por exemplo, ressalta a necessidade de uma “vigilância

epistemológica” como forma de criticar o uso das teorias feministas como chave de leitura no

campo agroecológico. Entretanto, se pensarmos a agroecologia para além da ciência

institucional, é possível reconhecer diversas contribuições das mulheres para esse campo do

saber.

Movimentos de trabalhadoras rurais como o MMC foram os primeiros a se contrapor ao

uso de sementes transgênicas no Brasil. As mulheres sempre souberam que seriam as mais

prejudicadas com o uso dessas sementes, pois seriam afastadas dos centros de decisão e

transformadas em mão-de-obra preconizada e não especializada. Sabiam também que a

biodiversidade é essencial para manter a saúde nutricional das suas famílias, por isso

desenvolveram uma tecnologia de cultivo própria, plantando várias espécies diferentes com

combinações específicas e sem separação de diferentes plantas em seus quintais. Esse tipo de

plantação sempre foi criticado por técnicos agropecuários que o consideravam um tipo de

plantio “desordenado” e que gerava pouco excedente para venda. Hoje, contudo, é o modelo

colocado em prática nos plantios agroecológicos de maneira geral, de pequena, média e grande

escala. As mulheres sabiam ainda da importância dos conhecimentos sobre as ervas medicinais

como forma de cuidado, sendo as maiores perpetuadoras desses saberes. E principalmente,

como mencionado anteriormente, foram as mulheres as maiores responsáveis por trazer a

importância da reflexão sobre diversidade de gênero, sexualidade e raça ao movimento como

forma de ampliar o projeto de justiça social defendido pela agroecologia.

Deste modo, é urgente questionar qual história da agroecologia vem sendo contada e

quais tecnologias são validadas, se os conhecimentos construídos pelas mulheres e,

posteriormente desenvolvidos pela academia, não estão sendo visibilizados. Aqui é importante

retomar que, como colocam as feministas negras e descoloniais, não é possível separar a

dimensão de gênero da dimensão racial e, consequentemente, da dimensão de classe. É inegável


202

que quando falamos da memória das mulheres na agroecologia estamos falando da memória,

dos saberes e práticas desenvolvidos historicamente por mulheres campesinas, negras e

indígenas principalmente.

Como argumenta Kilomba (2010), as hierarquias sempre serviram para silenciar vozes

subalternas:

Quando eles falam é científico. Quando falamos é não científico.


universal/específico
objetivo/subjetivo
racional/emocional
imparcial/parcial
Eles têm fatos, nós temos opiniões
Eles têm conhecimento, nós temos experiências42.
(Kilomba, p. 28, 2010, tradução de Anne Quiangala).

Essa hierarquia, como defende a autora, define quem pode falar. Quando mulheres não

brancas e campesinas – sujeitas historicamente subalternizadas – são colocadas à margem da

memória da agroecologia – um campo de saberes, práticas e políticas que se propõem a

construir um olhar crítico sobre as estruturas de poder e saber hegemônicas – evidencia-se como

os saberes produzidos pelos sujeitos subalternos desestabilizam as narrativas oficiais e a

epistemologia ocidental dominante. Como aponta a filósofa panamenha Linda Alcoff (2016), a

epistemologia impõe o domínio da discursividade no ocidente, situada numa posição de

autoridade que lhe permite julgar, por exemplo, o conhecimento reivindicado por movimentos

sociais, as ontologias de povos originários, a prática médica de povos colonizados e até mesmo

relatos de experiência em primeira pessoa de todos os tipos. Não é à toa que Caporal reivindica

42
“When they speak it is scientific. When we speak is unscientific.
objective / subjective;
neutral / personal;
rational / emotional;
impartial / partial;
they have facts, we have opinions;
they have knowledge, we have experiences”.
203

a vigilância epistemológica para justificar sua crítica ao feminismo enquanto uma teoria dentro

do arcabouço da agroecologia.

Assim, cabe questionar se é possível construir a agroecologia enquanto projeto de

transformação social sem romper com as epistemologias dominantes. Não se trata, entretanto,

de negar a importância da epistemologia – e especificamente da ciência – para o

desenvolvimento de alternativas de desenvolvimento e de pensamento, especialmente em um

campo discursivo onde pesquisas científicas são desacreditadas – o que Alcoff (2016) chama

de “ceticismo por conveniência” – por discursos de ódio ou de extremistas religiosos, sendo

chamadas de “ideológicas” por assumirem uma posição que vai contra interesses políticos e

econômicos dominantes – um exemplo recente são os questionamentos feitos por políticos

ligados à bancada ruralista do Congresso Nacional em relação às pesquisas realizadas por

instituições como a Fiocruz que mostram uma série de malefícios do uso e consumo de

agrotóxicos e que vieram à tona a partir dos debates travados na Câmara dos Deputados com a

votação do Projeto de Lei 6299/02, considerado pelos movimentos sociais e instituições que

defendem a saúde da população, a sustentabilidade e soberania alimentar como o Pacote do

Veneno que visa, entre outros pontos, ampliar o uso de agrotóxicos no Brasil.

Trata-se antes de retomar o projeto normativo de aprimorar a produção do conhe-

cimento. Nesse sentido, fica evidente a necessidade de investir no projeto de descolonização

dos saberes e dos discursos na agroecologia, e que tal processo passa, necessariamente, por

colocar os olhares dos grupos subalternizados, notadamente as mulheres negras, indígenas e

camponesas, no centro do debate a partir dos seus lócus de enunciação.


204

Feminismos em disputa

Outro aspecto que gostaríamos de destacar a partir das cenas apresentadas diz respeito

às formas com que as mulheres vêm construindo suas narrativas nesse contexto histórico de

silenciamento de suas narrativas e apropriação dos seus saberes. As duas ações realizadas pelas

mulheres nos eventos, tanto no X CBA quanto no IV ENA, são frutos da organização autônoma

e horizontal que prescindem das lideranças de representantes autorizadas. Embora mobilizem-

se em torno de pautas em comum e que componham coletivamente as ações políticas, nem todas

se identificam necessariamente enquanto feministas, mas sim enquanto coletivos ou grupos de

mulheres. Ainda que exista afinidades com partidos de esquerda, as organizações das ações

coletivas de mulheres não se fundam ou são pautadas por questões e estruturas burocráticas-

partidárias.

Apesar de dialogarem e estarem alinhadas com a agenda agroecológica, elas não se

restringem às pautas trazidas pelos coletivos mistos, principalmente no que se refere à agenda

dos coletivos que compõem a ANA, ampliando, sobremaneira, os debates e as intersecções de

temas que atravessam o campo da agroecologia. A partir das interpelações trazidas ao

movimento, as práticas e a esfera técnica-científica as desigualdades de gênero são postas em

questão e em suas intersecções de raça, classe e de políticas do saber.

Essas interpelações não vão surgir apenas em esferas mistas, mas também em coletivo

de mulheres que integram a agroecologia na realização de ações coletivas. Um exemplo disso

diz respeito à uma outra cena ocorrida também durante a roda de conversa “Sem feminismo,

não há agroecologia” no IV ENA. Nessa ocasião, um grupo de mulheres quilombolas ressaltou

que apesar do gradativo protagonismo das mulheres na esfera do movimento, esse era o

primeiro ENA onde a maioria das participantes vinha das experiências, ou seja, eram
205

agricultoras, cozinheiras, indígenas, quilombolas, e não ocupavam o lugar de técnicas e

pesquisadoras, e que o GT de Mulheres da ANA deveria espelhar essa realidade.

A partir dessa interpelação, um grupo de mulheres negras propôs a mudança do mote

político “Sem feminismo não há agroecologia” do singular para o plural “Sem feminismos não

há agroecologia”, mudança que desde então vem sendo incorporada gradativamente pelo GT e

pelo movimento como um todo. A partir dessa intervenção constituiu-se o grupo “Pretas na

agroecologia” que reúne mulheres negras e também indígenas que vêm trazendo suas demandas

e questões políticas a partir dos feminismos “plurais e populares”. Esse ponto é particularmente

central para entender as ações coletivas de mulheres na esfera da agroecologia pois, como

aponta bell hooks (2017), o feminismo foi apropriado ao longo da história em seu caráter mais

acadêmico com o predomínio de mulheres brancas, perdendo, de acordo com a autora, muito

de sua potência política de transformação social desde as bases.

O feminismo branco acadêmico, como aponta María Lugones (2008), é comumente

associado às suas diferentes “ondas” 43 que contam de maneira linear a história do feminismo

branco no Ocidente. Entretanto, a autora argumenta que essa narrativa não corresponde às

experiências de luta das mulheres latino-americanas e do Sul global, sendo uma forma de

apagamento das resistências que vêm historicamente sendo construídas por essas mulheres.

Essa crítica também foi realizada pelas mulheres negras do IV ENA, à medida que elas afirmam

não se reconhecerem nessa leitura hegemônica dos feminismos.

A reivindicação de feminismos plurais, não acadêmicos ou técnicos, e que partem da

experiência não só das mulheres brancas, mas das mulheres negras e indígenas, aponta para

43
As ondas do feminismo correspondem a uma leitura teórica em que a primeira onda estaria ligada às lutas pelo
sufrágio das mulheres na Europa do século XIX, a segunda refere-se às lutas por direitos e igualdade a partir do
século XX e a terceira refere-se aos movimentos pela pluralidade das identidades e categorias políticas dentro dos
feminismos a partir dos anos de 1980. Recentemente autoras como Heloisa Buarque de Hollanda (2018) têm
proposto a existência de uma quarta onda que estaria relacionada ao uso massivo da internet para organização,
conscientização e propagação dos ideais feministas.
206

uma construção de outras narrativas possíveis. No mesmo sentido, quando as mulheres fazem

uso de símbolos da cosmovisão indígena e africana, como observado na cena 2 ocorrida durante

o IV ENA, percebemos a importância da construção de uma narrativa não hegemônica que

dialoga não apenas com visões de mundo não-ocidentais, mas com elementos referentes à

espiritualidade que são comumente rechaçados em movimentos feministas brancos acadêmicos

ou em movimentos progressistas que fazem uma leitura da religiosidade enquanto uma

estratégia de dominação ligada ao discurso patriarcal judaico-cristão44. Por tal razão, hooks

(2017) faz uma distinção entre a religiosidade enquanto estrutura de poder hierárquico – que no

Ocidente é majoritariamente ligado ao cristianismo – e à espiritualidade relacionada às visões

de mundo que não são alicerçadas exclusivamente na racionalidade moderna ocidental que,

segundo a autora, seria também uma instituição colonial.

Já a filósofa mexicana Aimé González (2018a) aponta como para mulheres indígenas

no território latino-americano (ao qual ela irá referir-se como Abya Yala45) é impossível separar

a esfera da espiritualidade da esfera política e do conhecimento, uma vez que, para estes povos,

essas esferas constituem-se mutuamente. A espiritualidade, portanto, é vista como uma forma

de construção de uma noção do comum entre o coletivo, de fortalecimento de uma narrativa

histórica de povos subalternizados e ferramenta de mobilização política e social.

Como argumentam González (2018a) e Rita Segato (2016), as cosmovisões afro-

ameríndias e campesinas latino-americanas são mais centradas na construção do comunitário,

com foco prioritário nas condições de vulnerabilidade socioambiental e na precariedade dos

44
Sendo os movimentos de Teologia da Libertação na América Latina uma notável exceção nesse contexto.
45
O nome AbyaYala advém da língua Kuna, falada pelo povo de mesmo nome que habita parte da Colombia e
Panamá. Ela significa “Terra madura” sendo utilizado como um sinônimo para América. Esse termo vem sendo
usado como uma autodesignação dos povos originários do continente como contraponto a América expressão que
se consagra a partir de finais do século XVIII e inícios do século XIX por meio das elites crioulas para se afirmarem
em contraponto aos conquistadores europeus no bojo do processo de independência (PORTO-GONÇALVES,
2016).
207

serviços básicos de atenção à saúde e educação, realidade presente nesses territórios. Por outro

lado, tampouco é possível homogeneizar a experiência das mulheres que compõem a

agroecologia, uma vez que seus contextos são diversos, assim como os problemas que

enfrentam.

Ainda que consideremos as desigualdades e atravessamentos nesse contexto, vemos que

as pautas e as práticas construídas pelas principalmente pelas mulheres campesinas, negras,

quilombolas e indígenas no contexto da agroecologia interpelam o campo agroecológico e os

feminismos a partir de suas experiências de subalternidade, pobreza e vulnerabilidade ecológica

o que, como postula González (2018b, p. 3, tradução nossa) “levanta questões éticas sobre o

que comemos, o que usamos, onde é produzido e o que as mulheres estão pagando por isso (...)

São questões que o feminismo não havia levantado46”.

Domesticar a política

As ações coletivas protagonizadas pelas mulheres apontam também para uma distinção

em relação aos movimentos de minorias baseados na noção de identidade enquanto suporte do

sujeito de direitos. Reconhecem a importância da luta por direitos, mas compreendem que tão

importante quanto a conquista de direitos é o reconhecimento de seus saberes, a promoção de

novas formas de vida, as quais sejam capazes de criticar as formas hegemônicas, conectando

essas questões à exploração socioambiental, soberania alimentar, acesso aos bens comuns como

terra e água e respeito às suas cosmovisões. Assim, percebemos que há por parte dessas

46
“Así que plantean cuestiones éticas de lo que comemos, lo que usamos, dónde se produce y qué están pagando
las mujeres por eso (….) Son cuestiones que el feminismo no se había planteado”.
208

mulheres um processo elaboração política das suas práticas cotidianas e tradicionais que surgem

como proposta de construção de um projeto ético e político.

Tal qual acontece na esfera do “feminismo periférico” reinvindicado pelas mulheres da

Zona Oeste do Rio de Janeiro, esse feminismo que é trazido, tanto em uma ética política quanto

estética, parte de um paradigma outro de construção de coalizões políticas feministas.

Segato (2016) aponta para a potência desses processos que ela chama de “domesticar a

política” em referência a consigna feminista dos anos 1960 “o privado é político”. Segato

argumenta que na passagem à modernidade e a conformação das republicas na América Latina

teve como um dos seus efeitos a derrubada do espaço doméstico comunitário que se

enclausurou, se privatizou e se transformou em íntimo. Esse espaço, do comunitário, era o lugar

central do exercício político das mulheres. O modo de fazer política tornou-se público, pautado

por etiquetas de distância que simulam uma falsa neutralidade. Nesse momento a posição das

mulheres sofreu uma caída abrupta e a história das práticas políticas das mulheres foi derrocada.

Onde encontrou continuidade, tratou-se de uma continuidade sem retórica de valor que a

amparasse. O valor do político acabou sequestrado pela esfera pública e pelo Estado com seus

protocolos modernos.

Dessa maneira, o âmbito que, no senso comum, é o espaço vital das mulheres, seu

espaço de trabalho e sociabilidade, perde sua força de espaço de política, prestígio e poder,

sendo considerado o outro do Estado e do público, entendidos como lugares por excelência do

exercício da política, dominados pelos homens (Segato, 2018b).

Assim, segundo a antropóloga argentina, domesticar a política significa desburocratiza-

la, refundá-la construindo uma atuação política que não se refere prioritariamente e somente à

esfera estatal e/ou institucional. Não se trata de uma tradução do doméstico em termos públicos

como foi proposto pelo movimento feminista nos anos de 1960, mas do caminho oposto, de
209

resgatar a politicidade do comunitário e do doméstico como estratégias de atuação frente à

falência institucional e a incapacidade do Estado de defender a vida humana e ambiental.

Para a autora, esse é um marco que difere a atuação política dos homens e das mulheres.

Ao referir-se à emergência dos movimentos feministas contemporâneos na América Latina ela

argumenta que a política das mulheres corresponde a outra forma de estar no mundo, a partir

de “estratégias de proteção de vida mais festivas e eficientes” 47 (Segato, 2018b, p. 3, tradução

nossa). Desse modo, ela advoga pelo reconhecimento e reutilização da pluralidade de espaços

e politicidades, com a importancia do embate e atuação política tanto na esfera pública e

institucional quanto no reconhecimento das lutas que não passam por esses espaços, trazendo

elementos do estado e doméstico para repensar os modos hegemônicos que se entende por

construir política.

É comum em eventos relacionados ao campo da agroecologia a incorporação de

elementos que remetem à esfera do doméstico e do comunitário. No IV ENA, a esfera do

cuidado coletivizado das crianças no evento foi um dos temas trazidos pelas mulheres, para que

elas pudessem participar das mesas, rodas de conversas e ações coletivas no encontro. Com

isso, instituiu-se um ciranda infantil, espaço aberto gerido pelas crianças e adultos voluntários

que, além de construirem um espaço de cuidado, também permitiu que as crianças presentes

pudessem desenvolver brincadeiras e jogos que dialogavam diretamente com os temas

discutidos no encontro, como alimentação, educação ambiental e o cuidado com os animais.

A questão da alimentação é outro elemento que dialoga diretamente com essa ideia.

Durante o encontro, foi construída uma cozinha coletiva, aberta e voluntária onde os

participantes faziam as principais refeições do dia. Para a constituição dessa cozinha, os homens

foram incentivados a se voluntariar uma vez que as mulheres nos núcleos de organização do IV

47
“formas de protección de la vida más festivas y eficientes”.
210

ENA denunciaram o fato de que são elas, em geral, as responsáveis por pensar no bem-estar,

no cuidado e na alimentação de todos, tanto em encontros institucionais quanto durante

encontros construídos por militantes. Segundo elas, reforçar esse espaço como um dos únicos

lugares onde as mulheres ocupam a agroecologia, é afastá-las da possibilidade de serem

reconhecidas na esfera de produção e do embate político, ainda que a alimentação seja

reconhecidamente uma pauta essencial no movimento.

Não a toa, esses dois pontos – o cuidado coletivo com as crianças e a cozinha coletiva –

foram destacados pelas mulheres que compoem o GT de mulheres da ANA e empreendimentos

agroecológicos, mostrando que a partir de outras formas de construir políticas, as mulheres têm

visibilizado suas demandas interpelando o campo da agroecologia. No entanto, esses seguem

sendo pontos de tensão dentro da organização das ações coletivas, visto que o engajamento dos

homens nem sempre é espontâneo ou ainda, como relatado por algumas militantes, que eles

“não sabiam o que fazer” nessas situações, demandando a coordenação de militantes mulheres

nesses espaços.

Os elementos levantados em nossa investigação nos mostram que, apesar de se tratar de

um campo que busca descontruir com o paradigma moderno de hierarquização de saberes e

práticas, não há um consenso acerca do reconhecimento do protagonismo e dos saberes

aportados pelas mulheres na agroecologia, em especial quando se trata do campo institucional

da ciência. Nesse contexto, cabe questionar se é possível construir a agroecologia enquanto

projeto de transformação social sem romper com as epistemologias dominantes e sem as

desigualdades, apropriações e silenciamentos das contribuições dos saberes constituídos pelas

mulheres.
211

Figura 19. Cartaz LGBT no IV ENA

Figura 20. Cartaz representando as mulheres camponesas, indígenas e negras como guardiãs

dos saberes tradicionais


212

Últimas considerações

Uma pesquisa nunca está acabada, mas sempre em processo a partir das questões que

vão surgindo em campo, em leituras, discussões, etc. Ainda assim, acredito que o processo

desenvolvido nos aponta para alguns caminhos.

Busquei neste trabalho analisar o protagonismo das mulheres no movimento

agroecológico a nível nacional e local na cidade do Rio de Janeiro. Para isso, desenvolvi uma

reflexão sobre a relação entre feminismos e feminismos e agroecologia a partir da emergência

das mulheres como sujeitas políticas no movimento agroecológico; identifiquei os discursos em

torno dos conceitos de feminismos e gênero dentro do campo da agroecologia; analisei as

contribuições que vêm sendo construídas pelas mulheres no movimento da agroecologia;

vislumbrei os efeitos da participação política na vida das mulheres; e busquei compreender em

que medida a agroecologia constitui-se como um processo de subjetivação política na cidade.

No primeiro momento, analisei documentos que faziam referência a gênero e

agroecologia no âmbito da ANA, das políticas institucionais do governo Federal e dos relatórios

da FAO. Os resultados apontaram que as políticas e programas voltados para as mulheres no

âmbito da agroecologia baseiam-se, em sua maioria, na ideia de mulher enquanto mãe e

cuidadora ligada à natureza, de maneira que a diferença sexual é, ainda, utilizada nas

argumentações em prol de cidadania e promoção de direitos para as mulheres. Percebe-se três

linhas majoritárias nesse campo discursivo: o Ecofeminismo e Feminismo Marxista por parte

dos movimentos sociais; e o Feminismo Liberal por parte das agências financiadoras e governo,

havendo uma grande ênfase na questão da autonomia econômica das mulheres.


213

Acredito que esses discursos, em especial os relativos aos Feminismos Liberais e

agências de financiamento internacional e das políticas que chamei de “projetismo” operam

como um vetor de controle biopolítico das mulheres, instrumentam o trabalho das mulheres

agricultoras e criam uma separação dos feminismos de suas bases, criando uma ideia de que

apenas mulheres que trabalham ou estudam os feminismos podem estar autorizadas a falar

como tal.

Na esfera dos movimentos, aponta-se a necessidade de criar um debate a partir de outras

linhas discursivas que articulem raça, gênero e colonialidade, propondo um projeto político que

fuja aos binarismos e ao ideário burguês de “igualdade”.

Os elementos levantados em nossa investigação nos mostram ainda que, apesar de se

tratar de um campo que busca descontruir com o paradigma moderno de hierarquização de

saberes e práticas, não há um consenso acerca do reconhecimento do protagonismo e dos

saberes aportados pelas mulheres na agroecologia, em especial quando se trata do campo

institucional da ciência. Nesse sentido, cabe questionar se é possível construir a agroecologia

enquanto projeto de transformação social sem romper com as epistemologias dominantes e sem

as desigualdades, apropriações e silenciamentos das contribuições dos saberes constituídos

pelas mulheres.

Frente a isso, as mulheres da agroecologia, em diálogo com os feminismos plurais, com

as tradições campesinas e cosmovisões afro-ameríndias, vêm construindo conhecimentos e

estratégias políticas que deslocam os lugares instituídos de saber e poder e ressignificam tais

tradições. Assim, elas tornam evidente a necessidade de investir no projeto de descolonização

dos saberes e dos discursos na agroecologia e dos feminismos identificados por elas como

“acadêmicos” ,“muito radicais” ou “contra os homens”. Tal processo passa, necessariamente,

por trazer à tona os saberes, práticas e estratégias políticas construídos por grupos
214

subalternizados, notadamente as mulheres negras, indígenas e camponesas, no centro do debate

a partir dos seus lócus de enunciação.

Os racismos em suas diversas formas surgem de maneira central na leitura dessas

mulheres sobre a experiência da vida no Rio de Janeiro, entendida como uma cidade partida. A

Zona Oeste é uma região majoritariamente negra da cidade, e, para elas, isso impacta

diretamente sobre os projetos de transformação urbana que vêm sendo construídos na região

como uma forma de “higienização social”. Desse modo, a agroecologia não só é uma forma de

trabalho e de obter alimento na cidade, mas representa simbolicamente a resistência dos

“quilombos urbanos” que se formam a partir das feiras da roça e dos quintais produtivos.

Com isso vemos que a agroecologia se compõe em um plano de saber-poder que, se de

um lado pode ser capturada por discursos que tentam minar seu potencial insurgente, por outro

lado, com as ações coletivas que vêm sendo construídas, especialmente pelas mulheres, que

possuem uma visão “glocal” de seus territórios, em uma ação rizomática, tecem redes com

outras lutas e paisagens de resistência - a exemplo da questão da segurança alimentar, do

feminismo e do direito à cidade com a luta contra os processos de gentrificação urbana e

especulação imbobiliária - coloca o movimento de agroecologia urbana como um importante

vetor de subjetivação política em meio aos movimentos sociais da cidade e do campo.


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Apêndices

Apêndice A – Convite participação em pesquisa

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

Informações às participantes:

1 – Convite
Você está sendo convidada a participar da pesquisa Agecologia, subjetividade e feminismos:
corpos políticos e (re)existências frente aos conflitos socioambientais na Zona Oeste do
Rio de Janeiro. Antes de decidir se participará, é importante que você entenda porque o estudo
está sendo feito e o que ele envolverá. Reserve um tempo para ler cuidadosamente as
informações a seguir e faça perguntas se algo não estiver claro ou se quiser mais informações.
Não tenha pressa de decidir se deseja ou não participar desta pesquisa.

2 – O que é o projeto?
O projeto consiste em pesquisar as estratégias e os significados das lutas das mulheres em torno
da agroecologia na Zona Oeste do Rio de Janeiro.

3 – Qual é o objetivo do estudo?


Analisar os discursos e práticas em torno dos conceitos de feminismo(s) e gênero dentro do
movimento da Agroecologia considerando os efeitos subjetivos dessas práticas discursivas na
vida das mulheres.
238

4 – Por que você foi escolhida?


Você foi escolhida devido a importância da sua participação em grupos de produção, consumo
e articulação agroecológica e/ou em grupos de mobilização de mulheres na Zona Oeste carioca.

5 – Eu tenho que participar?


Você é quem decide se gostaria de participar ou não desta pesquisa. Se decidir participar, você
receberá esta folha de informações para guardar e deverá assinar um termo de consentimento.
Mesmo se você decidir participar, você ainda tem a liberdade de se retirar das atividades a
qualquer momento e sem dar justificativas.

6 – O que acontecerá comigo se eu participar? O que eu tenho que fazer?


Convidaremos as participantes a pensarem sobre seu cotidiano, sobre a participação em espaços
de produção e de militância político, trazendo seus incômodos, duvidas, questões e
pensamentos no momento da entrevistas. Não haverá nenhum custo ou quaisquer
compensações financeiras para as participantes do estudo.

7 – O que é exigido de mim nesse estudo?


Só o desejo de participar.

8 – Quais são os efeitos colaterais ao participar do estudo?


Visto que entrevistas psicológicas podem causar desconforto, haverá um risco mínimo na
participação nesta pesquisa, mas como sua participação trata-se somente de responder a alguns
inventários, não se acredita na possibilidade de danos decorrentes dessa participação. As
informações produzidas neste estudo serão divulgadas após a finalização da pesquisa, com a
garantia total do sigilo e não identificação das participantes.

9 – Quais são os possíveis benefícios de participar?


Tem-se como benefício às participantes da pesquisa poder construir reflexões e argumentos
para enfrentar práticas e políticas que estão engessadas no que se refere aos movimentos sociais,
colocando à tona suas contradições, possibilitando a construção de diferentes estratégias e
formas de fazer política. Ao refletir sobre o que atualmente vivem na esfera pública e privada,
239

repensando as relações de gênero e a prática da agroecologia, as mulheres contribuem tanto


para o fortalecimento dos movimentos feminista e agroecológico, quanto para o diálogo desses
campos nas esferas do Estado, na construção de políticas públicas.

Para a Psicologia, apresenta-se o beneficio de uma pesquisa-intervenção sobre os movimentos


sociais a partir da pesquisa de gênero, pensando os efeitos subjetivos desses processos. Dessa
forma, esse estudo busca produzir e atualizar dados sobre questões importantes e ainda pouco
pesquisadas no campo da Psicologia.

10 – O que acontece quando o estudo termina?


A pesquisadora fará uma devolutiva no campo sobre os resultados, com apresentação de dados,
reflexões e apontamentos sobre o tema pesquisado.

11 – Minha participação neste estudo será mantida em sigilo?


Suas respostas serão tratadas de forma anônima e confidencial, isto é, em nenhum momento
será divulgado o seu nome em qualquer fase do estudo. Quando for necessário exemplificar
determinada situação, sua privacidade será assegurada uma vez que seu nome será substituído
de forma aleatória. Os dados coletados serão utilizados apenas nesta pesquisa e os resultados
divulgados em eventos e/ou revistas científicas. Os instrumentos da pesquisa serão arquivados
na própria instituição (Departamento de Psicologia, UFRN) em local seguro e privado.

12 – Contato para informações adicionais


Se você precisar de informações adicionais sobre a participação na pesquisa:
Pós-Graduação em Psicologia - Campus Universitário - Lagoa Nova - Natal/RN - 59078-
970
E-mail: secppgpsi@gmail.com - Telefones: (84) 3215.3590 - Ramal 203
Pesquisadora Responsável: Maria da Graça Silveira Gomes da Costa
Tel: (21) 9900-1890, email: mariaggomes@gmail.com
Orientadora: Profa. Dra. Magda Diniz Bezerra Dimenstein

13 – Remunerações financeiras
Nenhum incentivo ou recompensa financeira está previsto pela sua participação nesta pesquisa.
***
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Obrigada por ler estas informações. Se desejar participar deste estudo, assine o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido anexo e devolva-o à pesquisadora. Você deve guardar uma
cópia destas informações e do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para seu próprio
registro.
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Apêndice B – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE


PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

1 – Confirmo que li e entendi a folha de informações para o estudo acima e que tive a
oportunidade de fazer perguntas.

2 – Entendo que minha participação, é voluntária e que sou livre para retirar meu consentimento
a qualquer momento, sem precisar dar explicações, e sem que meu tratamento médico ou
direitos legais sejam afetados.

3 – Concordo em participar da pesquisa acima.

Nome da participante: _______________________________________


Assinatura da participante: ____________________________
Data: ____/____/___

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