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Natal
2019
Maria da Graça Silveira Gomes da Costa
Doutora em Psicologia.
Natal
2019
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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes -
CCHLA
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Universidade Federal do Rio Grande do Norte
BANCA EXAMINADORA:
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Às Marielles, Bertas, Juanas e a todas as mulheres que,
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Agradecimentos
Os anos de escrita da tese foram embalados por particular angustia, diante do cenário
político de incertezas que se desenhou nos últimos quatro anos no país. A construção de redes
de suporte e trocas políticas e acadêmicas foram essenciais para mim e também explicam a
diversidade dos caminhos pelos quais circulei nesse processo. Tenho, portanto, que agradecer
a muitos grupos e pessoas que de uma forma ou de outra ressoam política, teórica e afetivamente
neste trabalho.
co-orientador Jáder Leite pela parceria de longa data, por confiarem em meu trabalho, pelo
Agradeço aos professores Maria Juracy Toneli, Raquel Diniz, João Paulo Macedo e
Elisete Schwade por aceitarem participar da banca e realizar a leitura deste trabalho. Sou grata
do Norte (PPGPsi/UFRN) e todos os seus funcionários, particularmente Cilene e Lizi, que com
Carol, Tati, Valéria, obrigada por não desistirem de mim. À minha irmã de alma Kamila por
me salvar a vida tantas vezes nesses 10 anos de amizade. À Fábio, Adriana e Carolina por me
ensinarem a levar com leveza tantos momentos de desespero quando estive em Natal. A todos
comigo as dores e as delícias do doutorado. À Maria Laís pela revisão cuidadosa do texto da
tese.
À cidade do Rio de Janeiro que em sua beleza, feiura e contradições me ajudou a ver o
Mulheres da Zona Oeste e Coletiva Hortelã por se abrirem com tanta generosidade para mim.
Em especial para minhas interlocutoras diretas e indiretas na pesquisa, Ana Santos, Aninha,
Silvia, Mariana, Francis, Mara, Maria, Renata, Elô, Camila, Selma, Maraci, Saney, Jenifer. Para
além de companheiras de luta e “participantes”, vocês são coautoras deste texto que eu espero
que possa contribuir com as lutas no território Zona Oeste, e em outros territórios que resistem
e enfrentam ameaças diariamente. Ao bairro de Vargem Grande e seus moradores, esse ninho
sobretudo Aline, Marina e Joana com quem pude dialogar diretamente sobre minhas ideias e
contribuíram bastante com a leitura do texto, com os conteúdos, além de facilitarem de diversas
Agradeço também aos companheiros do Arranjos Locais Penha, com quem aprendi e
sonhei junto. Ana, Diego, Marcelo, Patrícia, Mari Portilho, Suzana, Cíntia e as equipes de
trabalho que acreditaram nas nossas ideias, muito obrigada. Agradeço também aos moradores
e Direito, Heloisa, Maria Luiza, Marina, Laisa e Josi por embarcar nessa loucura de construir
ao longo de um ano uma proposta ética e pedagógica feminista para nossas práticas.
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Ao grupo de estudos coordenado pelo Prof. Pedro Paulo Bicalho da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e ao grupo PesquisarCOM coordenado pela Prof.ª Márcia
Moraes da Universidade Federal Fluminense (UFF) por me receber e permitir participar das
UFF/UFRJ) pelos instigantes debates e a corajosa atuação pela causa animal e agroecológica
dentro da academia.
Agradeço ainda à pequena família que construí no Rio ao longo desses anos, o pessoal
do Pereirão e agregados, em especial minhas queridas amigas Leticia, Iara e Luana. Agradeço
a Lara Abib pela leitura atenciosa, os puxões de orelha, as levantadas na autoestima, as risadas,
os choros, os carnavais e a parceria que construímos mesmo com todas as nossas loucuras e
encontro de vida que esteve ao meu lado em boa parte desse processo.
amigas Renata, Joyce, Jacqueline e Fang pela acolhida e pelas cervejas e vermuts
compartilhados. Agradeço também ao grupo Brasileirxs Contra o Fascismo por ter me ajudado
a sobreviver a uma eleição difícil estando tão longe de casa, com destaque para as queridas
Paola, Dani e Mariana que foram meu porto seguro em Barcelona. Agradeço a Red Ecofeminista
da Espanha com quem pude dialogar e repensar outros mundos e teorias possíveis a partir de
uma ética feminista e ecológica, em particular às professoras Alicia Puleo e Aimé Tapia
Gonzalez.
capa. Ela que me faz navegadora e tanto me ensina sobre amor, resistência e liberdade. Que
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juntas possamos fortalecer ainda mais os laços de solidariedade entre as mulheres do Oriente
Agradeço a minha família e aos meus ancestrais, principalmente meus pais, Iris e
Moacyr, que com muito sacrifício e, a despeito de nossas diferenças, foram os maiores
responsáveis por eu conseguir acessar esse lugar de privilégio que é a educação formal. É uma
Por fim, agradeço a todas as mulheres, negras, brancas, mestiças, lésbicas, indígenas,
trans, cis, pobres, afrontosas, putas, destemidas que lutaram antes de mim para que eu estivesse
ix
Sumário
Agradecimentos...................................................................................................................................... vi
Sumário ................................................................................................................................................... x
Lista de tabelas ...................................................................................................................................... xii
Lista de figuras ..................................................................................................................................... xiii
Lista de abreviações e siglas ................................................................................................................ xiv
Resumo ................................................................................................................................................. xvi
Abstract ............................................................................................................................................... xvii
Resumen ............................................................................................................................................. xviii
Prólogo .................................................................................................................................................. 20
Introdução: apresentando o campo-tema ........................................................................................... 23
Habitando paisagens.......................................................................................................................... 33
Capítulo 1: Gênero, feminismo(s) e as políticas de subjetivação .......................................................... 42
Identidade, subjetividade e políticas de subjetivação ............................................................ 49
Diálogos a partir dos feminismos pós coloniais .................................................................... 51
Capítulo 2: Percurso metodológico ...................................................................................................... 59
Uma construção a partir do olhar feminista .......................................................................... 59
O aporte da etnografia feminista ........................................................................................... 61
O aporte da Psicologia Social Discursiva.............................................................................. 64
Movimentos da pesquisa ....................................................................................................... 65
1º Mo(vi)mento: Pesquisa documental .......................................................................... 67
2º Mo(vi)mento: aproximação das redes, eventos e encontros da Agroecologia ......... 77
3º Mo(vi)mento: entrevistas com as militantes ............................................................ 79
Capítulo 3: Feminismos e agroecologia: discursos, políticas e movimentações ................................... 84
Eixo I – Organismos internacionais: Gênero, agroecologia e o debate da ONU .................. 88
Eixo II – Movimento agroecológico, gênero e identidade política ..................................... 101
3.2.1. Matrizes teóricas e discursivas ......................................................................................... 104
3.2.2. Movimentos e construção das políticas de agroecologia e gênero ................................... 109
Capítulo 4: A agroecologia urbana e a ocupação das cidades ............................................................. 117
A emergência do movimento agroecológico no Brasil ....................................................... 117
Os caminhos da agricultura familiar de base agroecológica nas cidades ............................ 123
Novas urbanidades: agroecologia e direito a cidade ........................................................... 131
A agricultura urbana no Rio de Janeiro: agroecologia e defesa do território ...................... 137
x
Capítulo 5: Reflexões sobre luta feminista e agroecológica (urbana) ................................................. 149
Eixo I - Lutas feministas pelo direito a cidade na Zona Oeste ........................................... 151
As cidades-empresa e o Estado de Exceção como regra: o caso do Rio de Janeiro .. 154
Cenas de um “legado olímpico” e o urbanismo insurgente de Vila Autódromo ........ 157
Plano Popular das Vargens: a construção de um projeto urbanístico feminista, anti-
racista e agroecológico ............................................................................................................... 167
Eixo II - “Meu corpo é meu território”................................................................................ 173
Eixo III - Feminismo periférico: a construção de uma política a partir das margens .......... 182
5.4. Eixo IV -Produção de conhecimento e luta política das mulheres no movimento
agroecológico ................................................................................................................................. 192
Disputas narrativas e memória da agroecologia ........................................................ 194
Feminismos em disputa ............................................................................................... 204
Domesticar a política .................................................................................................. 207
Últimas considerações ......................................................................................................................... 212
Referências .......................................................................................................................................... 215
Apêndices ............................................................................................................................................ 237
Apêndice A – Convite participação em pesquisa ............................................................................ 237
Apêndice B – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ......................................................... 241
xi
Lista de tabelas
xii
Lista de figuras
xiii
Lista de abreviações e siglas
xiv
Pronaf Programa Nacional de Fortalecimento a Agricultura Familiar
Rede CAU Rede Carioca de Agricultura Urbana
SPG Sistema Participativo de Garantia
xv
Resumo
xvi
Abstract
This study aims to understand the protagonism of women in the agroecological movement
through their conceptions and practices. We take the feminist epistemology as theoretical-
methodological base, seeking to consider the various crossings that characterize these contexts,
to look at the modes of subjectivation of activists within the movement of Agroecology, both in
national sphere, and in the local sphere to following the women’s movement from Rio de
Janeiro’s West Zone. As methodological tools, we use the analysis of documents of social
movements and of the policies of promotion for Agroecology, interviews with activists and the
participant observation of events, meetings and the daily lives of our speakers. The results
indicate that: although the movements are building narratives based on the importance of the
construction of feminisms and agroecology as social transformation projects that constitute each
other, there still isn't a full recognition of the role and knowledge contributed by women; at the
same time, international policies and programmes linked to The United Nations- U.N. mobilized
an institutional discourse of empowerment that refers to neoliberal ideas considering the increase
in production as a way to "equality" between genres. The results also show that in the scenario
of crisis, militarization and precarious State in Rio de Janeiro, women are building a popular
feminist politics from the margins, wich re-significating subalternized places to indicate other
ways of politics, producing knowledge and occupy the cities. With this we see that agroecology
is composed on a know-power that, if on one hand can be captured by speeches that try to
undermine your potential insurgents, on the other hand, with the strategies that are being built
especially from women, as an important vector of political subjectivation amidst urbans and rural
social movements.
xvii
Resumen
xviii
“Não podemos criar o que não podemos imaginar”
(Movimento Believe.Earth)
Prólogo
Gostaria1 de começar este texto contando uma história sobre encontros disparadores que
foram fundamentais na construção das reflexões desta tese. O primeiro encontro se dá no início
do ano de 2012. Nessa época eu estava iniciando a escrita da minha dissertação em Psicologia
período de seca no estado, com grandes dificuldades de produção de alimentos, falta de serviços
públicos básicos, o uso indiscriminado de agrotóxicos que faziam com que os agricultores e
agricultoras adoecessem constantemente e outras questões que traziam ainda mais dificuldade
que enfrentavam. Essas questões me traziam muita angustia sobre quais os caminhos na
final de tarde, depois de um café com tapioca e um dedo de prosa na beira do fogão, Chaguinha,
como era conhecida, me mostra com muito orgulho um pé de milho que crescia forte em seu
1
Ao longo da tese utilizamos a 1ª pessoa do singular e do plural. Trata-se de uma escolha deliberada. Buscamos
ressaltar os momentos de reflexão mais coletiva e outros da vivência empírica do campo mais individuais com o
uso da primeira pessoa. Nos inspiramos aqui na escrevivência da escritora Conceição Evaristo, como prática
política e afetiva de escrita de si, a partir das experiências vividas. Sobre escrevivência ver:
http://nossaescrevivencia.blogspot.com/.
2
Dissertação defendida em 2014 no Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFRN orientada pela Prof.ª
Dr.ª Magda Dimenstein e co-orientada pelo Prof. Dr. Jáder Leite sob o título de Gênero, trabalho e saúde mental
entre trabalhadoras rurais assentadas na região do Mato Grande Potiguar. Disponível em
http://www.repositorio.ufrn.br:8080/jspui/bitstream/123456789/17566/1/MariaGSGC_DISSERT.pdf.
21
quintal. A semente do milho, que anos depois fui entender que era uma semente criola, tinha
sido trazida para ela por sua irmã que morava em um assentamento na cidade vizinha.
de trocar sementes, fofocas, receitas e, assim, iam tecendo uma rede de relações entre os
vizinhos e as duas comunidades em um território que há anos era (e ainda é) ameaçado pelo
Departamento Nacional de Obras contra a Seca (DNOCS) pretende implantar na região, projeto
esse que vem sendo denunciado pelos moradores devido ao perigo que oferece à manutenção
de centenas de famílias que ali vivem e tiram seu sustento da agricultura familiar.
Foi naquele momento que tive meu primeiro encontro com a agroecologia, embora nem
eu e nem Chaguinha soubéssemos que essa palavra existia. Nesse mesmo ano, meses depois,
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e com a participação na Cúpula dos Povos, encontro
puxado pelos movimentos sociais que aconteceu em paralelo às discussões da Rio+20 na cidade
do Rio de Janeiro-RJ.
A segunda personagem desses encontros foi Dona Adelina. Dona Adelina é moradora
do Parque Proletário no Rio de Janeiro. Ao migrar ainda jovem do interior da Bahia rumo ao
Rio de Janeiro, ela trouxe consigo os conhecimentos que sua mãe havia lhe ensinado, nos
tempos em que viviam na roça, sobre os chás, garrafadas, xaropes e ervas medicinais.
Nas caminhadas que faz pelo morro, Dona Adelina colhe as plantas que ela reconhece
na rua. Aquilo que para a maioria das pessoas é mato, ela considera remédio e comida. De tanto
produzir seus remédios, ela criou uma espécie de farmácia dentro de casa e começou a distribui-
los pela comunidade, virando uma referência local na promoção de saúde: a “vó das ervas”, a
chamam os meninos que brincam e empinam pipa em frente a calçada da sua casa.
22
Disse-me ela: “Tome esse xarope aqui para sua garganta, minha filha, que esse tempo
está muito seco”. Tomei o xarope, que me lembrou os lambedores que minha mãe fazia quando
eu era criança, e continuei a escutar com admiração as histórias que Dona Adelina
promover, em torno da sua pequena casa, um diálogo considerado quase impossível entre
e tão distinto de todas as experiências que eu havia conhecido até então, fizeram-me refletir
sobre uma ética do cuidado que se construía nesses contextos a partir de suas adversidades e
resistências. Esses dois encontros, tão particulares, ambos protagonizados por mulheres em
de mundo que não passavam necessariamente por aquilo que estava dado de forma massiva no
com o outro (Maria Juracy Toneli, Karla Galvão Adrião & Arthur Grimm Cabral, 2012).
Esses encontros, é verdade, vieram na esteira de outros que fui tendo ao longo da vida
com a Pedagogia da Libertação, com movimentos de luta pela terra, com autoras feministas
negras, não-brancas e da América Latina. Dessa forma, fui reconhecendo na articulação dos
conhecimentos e práticas.
23
Agricultura Urbana (Rede CAU), movimento social organizado que busca fortalecer a
agricultura e agroecologia urbana na cidade do Rio de Janeiro. Essa rede é constituída por
agroecológica na cidade.
complexidade do nosso campo-tema, conceito elaborado por Peter Spink (2003) que nos ajuda
a enxergar o campo não como um lugar específico, mas enquanto uma processualidade de temas
situados.
No emarenhado desses temas, busco contar algumas das histórias que pude acompanhar
ao longo da pesquisa, trazendo uma reflexão sobre as lutas feministas e agroecológicas nas
– situado historicamente nas regiões do Centro e Zona Sul – do Rio de Janeiro, aumentando
Consentino, 2015).
24
Olímpicos e os processos de remoções decorrentes de tais eventos, por exemplo, o caso de Vila
Autódromo3, são talvez a parte mais emblemática desse processo. Nessa região, antigamente
conhecida como Sertão Carioca devido a sua histórica ocupação quilombola e agricultura
familiar, a disputa por território aponta para uma contenda pelos usos e sentidos de ocupação
orgânica no município como uma forma de defesa e ocupação sustentável desse território a
(CPMZO), da roda de mulheres da Rede Carioca de Agricultura Urbana - Rede CAU e suas
agroecológico, à medida em que vão incorporar a pauta da agroecologia entre suas bandeiras,
apontando não só para a importância da participação das mulheres nesse modelo produtivo, mas
para a inter-relação da agroecologia com outras lutas no contexto urbano, como a luta pelo
3 Comunidade que teve a maior parte das suas famílias removidas para dar lugar a construção do Parque Olímpico
na Zona Oeste do Rio de Janeiro. A resistência dos seus moradores que construíram um projeto popular e autônomo
de urbanização para o território tem grande importância na história da luta pela moradia no Brasil.
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direito à moradia, de forma que a agroecologia tem sido utilizada enquanto uma estratégia de
Assim como no Rio de Janeiro, chama-se atenção para o protagonismo das mulheres no
agrícolas – nos espaços decisórios e de lideranças, esse cenário muda drasticamente nos anos
bandeiras de luta, trazendo-a àesfera do debate não só sociotécnico, mas também político.
que causam menos impacto ambiental; na tessitura de redes de economia local que se baseiam
suporte comunitário e defesa de seus territórios. Tal protagonismo aponta não só para a
produção agroalimentares e de economia alternativos, como traz à tona o debate sobre de que
4
Movimento internacional de camponeses e povos tradicionais que engloba diversas organizações e movimentos
sociais de todo o mundo e luta por justiça social no campo.
5
Ao adotar uma concepção política da linguagem e da escrita, baseio-me no trabalho) de Letícia Barreto (2015)
para o uso de “sujeitas” nessa concepção, no feminino, ao referir-me às minhas interlocutoras. Da mesma forma,
ao tratar de conjuntos de pessoas onde a maioria forem mulheres, utilizarei a forma feminina para me referir.
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agroecológico pode ter grande impacto na redução das desigualdades de gênero. Para além da
vezes, “invisibilizado”; para a maior participação política das mulheres em movimentos sociais
É preciso, por outro lado, ter cuidado para não enxergarmos esse processo acriticamente.
Como observa Flávia Ramos (2017), desde os anos de 1990, quando começam os primeiros
das investigações sobre esse tema toma como incontestáveis o ganho de autonomia e a
agroecológico. Contudo, muitas das tensões que se desenham dentro dos movimentos e
6
Título da carta política das mulheres da ANA durante o Encontro Nacional de Agroecologia (ENA) em 2014.
Recuperado de https://marchamulheres.wordpress.com/2014/05/19/sem-feminismo-nao-ha-agroecologia-carta-
das-mulheres-no-ena/. Acesso em 23/03/2017.
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ligadas a movimentos sociais mistos. Nesse sentido, é importante se questionar a quem serve o
conflitos não deixam de existir, pelo contrário, eles tornam o campo de forças ainda mais tenso
e expõem suas rachaduras. Segundo a teórica indiana Gayatri Spivak (2010), o sujeito
subalterno é aquele que não tem voz política, ou seja, não pode falar nos espaços de poder
instituído, tais como a ciência e instâncias de decisões políticas, tendo a sua voz
embates no âmbito público e privado e que a produção agroecológica, por si só, não garante a
transformação das relações desiguais de gênero. Além disso, é essencial não homogeneizar as
diferentes formas e experiências das mulheres, mas sim evidenciar a pluralidade e as diferentes
Na esteira do debate sobre gênero e classe que, ainda que com alguma dificuldade, há
das opressões, ou seja, a forma como as desigualdades operam a partir dos diferentes
atravessamentos que constituem as sujeitas e os sujeitos, pela raça, pela sexualidade, pela
classe, pela capacidade física, entre outros, vem se institucionalizando e ganhando força dentro
7
Artista que faz da sua arte uma forma de ativismo.
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mudança que delas podem emergir. São nas contradições que somos convocados a encarar as
desigualdades, incômodos e conflitos, e ressaltar, nos termos colocados pela cientista política
da degradação do meio ambiente e o capitalismo patriarcal: o feminismo liberal por parte das
feminismo marxista e o ecofeminismo por parte dos movimentos sociais se destacam nesse
cenário como matrizes teóricas que vão balizar muitas das discussões.
Diferentes autoras feministas, porém, vão criticar essas correntes teóricas por seus
caracteres supostamente essencialistas, uma vez que, a depender da abordagem, algumas dessas
biológico dos sexos aceito como algo “natural” (Érika Carcaño Valencia, 2008). Outra
universal que desconsidera as experiências das mulheres não brancas e não cisgêneras e as
Nessa acepção, é fundamental discutir até que ponto os princípios subjacentes a tais
gênero, ao naturalizar o cuidado das mulheres com o meio ambiente, mesmo considerando o
movimentos populares do campo e de mulheres da periferia, por exemplo, mostra como tais
Diante desses impasses, autoras pós-coloniais como Glória Anzaldúa (2005) e María
Lugones (2008) entre outras vão propor outra política feminista que não se apoia na ideia de
natureza dos sexos, mas antes a problematiza, evidenciando que as fronteiras entre
subjetividade.
no fazer político? Como desenvolver outras narrativas para a construção de um mundo comum
Nesse ponto de vista, creio que mais importante do que discutir a pertinência das
relações entre os conceitos natureza/mulher, é pensar como eles são operados, a partir de
racionalidades específicas que incidem nos modos de subjetivação dos sujeitos. Sendo o
constantemente tais conceitos a partir de suas pautas, quais são, afinal, os discursos sobre
mulheres, gênero e feminismos que estão sendo construídos em torno desse movimento? Como,
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por outro lado, os feminismos vão se apropriar da pauta agroecológica em suas agendas de luta?
Quais são os efeitos dessas práticas discursivas na vida das mulheres envolvidas no movimento
agroecológico? Até que ponto, as propostas de mudanças nos modelos produtivos conseguem
romper com o modelo tradicional de família e de gênero? Em que medida os territórios são
neoliberal ao mesmo tempo em que traz mudanças nas formas de participação política.
A tese aqui sugerida é que as rupturas propostas pela agroecologia podem se constituir
recusa que visa construir novos modos de sensibilidade e criatividade, produtores de uma
Partindo de tais reflexões, o presente estudo tem como objetivo central compreender o
movimento agroecológico;
do campo da agroecologia;
movimento da agroecologia;
31
Zona Oeste do Rio de Janeiro por acreditar na representatividade desse grupo em relação às
caracterizam esses contextos, ao olhar sobre os modos de subjetivação das agricultoras urbanas
Com isso, lanço mão de diferentes ferramentas metodológicas, quais sejam, análise de
documentos dos movimentos sociais e das políticas de fomento à agroecologia, entrevistas com
cotidiano das minhas interlocutoras. Essas diferentes dimensões serão entendidas não enquanto
fotografias estáticas de um dado cenário, mas como atores imbricados em uma rede de relações,
de uma configuração de elementos, forças e linhas que atuam simultaneamente e de onde podem
emergir dispositivos que fazem ver e falar racionalidades específicas que se (re)configuram
compõem a realidade: instituições, leis, discursos, morais, etc. Eles tencionam, trazem à tona e
provocam agenciamentos (Virgínia Kastrup, & Regina Benevides de Barros, 2010). Dessa
forma, o foco não são os documentos ou entrevistas em si, mas o que eles produzem como
segundo Latour (1994) esse é um dos mal entendidos da leitura crítica a partir das teorias pós-
modernas e da noção de desconstrução. As redes que busco acompanhar são antes “reais como
a natureza, narradas como o discurso, coletivas como a sociedade”. (Latour, 1994, p. 12).
A tese está organizada em uma seção introdutória e mais cinco capítulos. Na introdução,
traço um panorama do campo-tema a ser estudado, assim como busco construir uma reflexão
jogado pela subjetividade numa pesquisa na qual assumo minha não neutralidade, visto que a
“Habitando paisagens”, um pouco do meu percurso da pesquisa que foi se moldando ao longo
movimentações”, construo, a partir dos resultados da pesquisa, uma análise da produção dos
apresentar, em seu último tópico, o contexto da cidade do Rio de Janeiro a partir de elementos
empíricos da pesquisa.
33
feminista na agroecologia.
Por fim, desenvolvo minhas considerações finais com uma síntese das questões
Com isso, busco contribuir não só com o campo dos estudos feministas e da Psicologia,
mas também pensar o desenvolvimento da pesquisa a partir do olhar das teóricas críticas que
saber científico.
Habitando paisagens
não estavam dadas a priori, foram processos que se desenharam, por vezes, de forma confusa,
posicionamento em campo, mas um certo grau de desprendimento e paciência, pois nem sempre
seus interesses enquanto pesquisador/a vão ao encontro das vontades e necessidades dos grupos
naquele determinado momento. Dessa forma, foram anos de aproximação com o movimento da
necessária uma série de negociações no que se refere a quem, como e onde fazer o estudo.
mencionado anteriormente, através do contato com a Rede CAU - rede que articula movimentos
Nesse encontro conheci as experiências de Vargem Grande e Campo Grande, dois bairros da
região Oeste que representam a maior parte da produção da agricultura familiar na cidade.
de um longo histórico de lutas dos movimentos sociais na região, sendo que muitas mulheres
Podemos dizer que o movimento popular de mulheres da Zona Oeste funciona como um
rizoma, que vai sendo composto e reverberando a partir de vários temas, lugares e
Retomo aqui o conceito de rizoma de Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995) como um
sistema aberto composto por linhas múltiplas que se articulam em nós, princípios de conexão
que conformam a realidade a partir de qualquer ponto das redes. Os rizomas são compostos por
vetores linguísticos, materiais, afetivos, políticos, econômicos, estéticos, etc. Utilizo o conceito
região, chama muita atenção essa construção em rede. Ainda que seja a maior região em termos
algumas organizações na região, em especial o Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul
feminismos entre suas linhas de atuação prioritárias e desenvolve trabalho de base com as
mulheres da Zona Oeste, o que ajuda a mobilização de diferentes mulheres e grupos em torno
acompanhar de perto todos eles, sendo assim, vou me referir nesse trabalho de forma geral ao
especificamente três grupos que se inserem nesse movimento e têm como pautas principais a
questão da agroecologia e a luta das mulheres: a Feira da Roça de Vargem Grande, a Coletiva
Hortelã e a Pesquisa Militante (Militiva), grupos que apresentarei detalhadamente mais à frente.
projeto desenvolvido pelo PACS com as mulheres da Zona Oeste, expus ao grupo, formado em
sua maioria por lideranças comunitárias da região, meus objetivos de pesquisa que iam ao
encontro de muitas das ações que seriam desenvolvidas pelas militantes. Assim, fui inserida no
grupo da Pesquisa Militante de Vargem Grande - a Militiva VG, passando a contribuir com as
ações do grupos, organizando eventos, realizando oficinas com as mulheres das comunidades
Silvia, contribuindo na manutenção da horta comunitária que vem sendo desenvolvida pelo
grupo e com os encontros para discussão de temas como alimentação natural, plantas
comercializam a sua produção na Feira da Roça de Vargem Grande, feira agroecológica auto
organizada na região e que funciona à parte do circuito de feiras orgânicas promovidas pela
Prefeitura do Rio de Janeiro. Essa feira tem um papel central para todas as pessoas envolvidas
direta e indiretamente com a agricultura familiar, para a luta pela defesa do território em
Vargem Grande e ainda para o movimento agroecológico na cidade. A feira não é só um lugar
A escolha do nome da feira já marca essa diferenciação, uma vez que “a roça” é
reinvindicada de forma a visibilizar as ruralidades na cidade e apontar que não se trata de uma
feira onde os alimentos orgânicos são o foco, mas sim as relações entre as pessoas e o
pertencimento ao bairro.
Foi a partir da feira que comecei minhas observações de campo no território, dialogando
com as feirantes, conhecendo suas histórias e buscando entender os espaços por elas habitados.
Paralelamente, passei a acompanhar as reuniões da CPMZO e, dos diálogos com esses grupos
do meu engajamento como forma de fortalecer meu vínculo com as mulheres da região.
passou a ser construído coletivamente com as mulheres envolvidas nesses grupos, a partir de
uma série de problematizações trazidas por elas mesmas no que se refere às formas tradicionais
sugeridas pelas minhas interlocutoras, como alguns dos meus pressupostos foram também
Esse processo exigiu-me, por vezes, uma reconfiguração do meu campo de pesquisa e
criou muito desconforto, na medida em que a pesquisa parecia “não mais me pertencer” e muitas
vezes parecia não caminhar, ao mesmo tempo em que eu me via com muitas demandas enquanto
militante, não conseguia um certo distanciamento que julgava necessário para desenvolver
Também percebi que nem sempre meu papel enquanto pesquisadora ficava evidente
para as mulheres que iam se juntando aos grupos. Algumas acreditavam que eu trabalhava numa
organização não governamental, outras achavam que eu trabalhava com alimentos, pois em
muitas das ações coletivas era comum que eu ficasse encarregada de fazer a alimentação. Era
evidente, entretanto, que minha presença não passava despercebida nos espaços. Algumas
dessas angustias foram sendo apaziguadas com o meu engajamento no grupo e com
apresentação de meu projeto de pesquisa às minhas interlocutoras que puderam dar sugestões,
acadêmico.
Janeiro e a mim mesma. Foram anos de muito atos na rua, ansiedade, medo e, por vezes,
desesperança.
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usados como referência nesse estudo foram perdendo sua efetividade no âmbito institucional
ou mesmo sendo diretamente ameçadas. Um exemplo disso foi o decreto do presidente Jair
Bolsonaro que em janeiro de 2018 acabou com o Conselho Nacional de Segurança Alimentar
(CONSEA), um dos principais componentes das políticas voltadas para a agricultura familiar,
tessitura da tese. Destaco, em especial, três experiências que apesar de não comporem
diretamente os dados e as análises desta tese, foram essenciais para as reflexões que foram aqui
práticas em Psicologia e Direito onde, sob orientação do Prof. Pedro Paulo Bicalho da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tive a oportunidade de construir com minhas
companheiras, uma proposta de curso voltado para profissionais do Direito e Psicologia a partir
das suas práticas com uma bibliografia quase inteiramente composta de autoras negras,
A segunda experiência diz respeito ao projeto Arranjos Locais da Penha que tem como
onde pude contribuir como proponente das ações e articuladora, percorrendo quintais e
de enorme vulnerabilidade.
culinária quilombola, da agricultura e da arte. Ser convidada a participar desse grupo e poder
cozinhar ao lado de militantes históricas da luta pela moradia e de defesa do território na Zona
39
Oeste do Rio de Janeiro foi uma espécie de validação do meu trabalho enquanto pesquisadora-
É inegável que enquanto mulher branca e acadêmica meu corpo carrega os sinais que
no Brasil me permitem acessar lugares de poder e a possibilidade de ter minha voz ouvida. Por
outro lado, isso também gera uma compreensível desconfiança por parte de pessoas que
historicamente foram colocadas à margem, pessoas negras e pobres, que são simbolicamente e
Isso mostra que a pesquisa junto a movimentos sociais apresenta uma série de desafios
éticos e políticos. A ideia de que pesquisadores vão “dar voz” aos sujeitos subalternizados é
uma constante no campo de estudos sobre Direitos Humanos e movimentos sociais. Spivak
contra hegemônico, alerta para o perigo recorrente de se “tirar” a voz dos sujeitos subalternos,
ao tentar falar “sobre” eles. Compreendi que meu papel, enquanto pesquisadora e militante, é
nos movimentos sociais, de buscar descortinar as estruturas que subjazem tais apagamentos,
mundos que vêm sendo tecidas a partir de diferentes estratégias, forças e lugares.
torno da pauta ambiental traz interpelações urgentes para pensar a construção de uma sociedade
mais democrática, sustentável, plural e livre de opressões, busco nesta tese contribuir com esse
debate trazendo à tona o ponto de vista das mulheres envolvidas no movimento agroecológico
urbano.
40
Importante ressaltar que este texto passou por uma banca popular no qual ele foi lido
por minhas interlocutoras que trouxeram suas críticas e considerações. A banca popular é um
conhecimento que retorne e sirva para os movimentos ou população local. No caso desta tese,
para além da banca propriamente, ou seja, a apresentação do projeto e dos resultados ao grupo,
posso dizer que de fato trata-se de uma produção coletiva de conhecimento, visto que as
por elas.
autoria coletiva e; a importância de trazer à tona os conflitos que surgiam em relação aos
fez refletir sobre como é difícil inclusive apartar a vida pessoal daquele que se propõe a pensar
uma determinada realidade e suas questões de pesquisa. Parece-me afinal, que somos movidos
por angustias, mais do que por certezas. Estando agora há quatro anos mergulhada no processo
de escrita deste texto, enxergo com maior clareza o caráter mutante da minha escrita.
venho esforçando-me para dar conta de uma série de questões trazidas pelas minhas
permeia a atual conjuntura brasileira e carioca entendendo que muitas questões necessariamente
ficam de fora, de acordo com meus interesses de estudos, das minhas escolhas teóricas e
políticas e do meu fôlego em dar ou não conta de certas discussões. Por outro lado, minha busca
por contribuir no processo de organização das mulheres, não só enquanto pesquisadora, também
41
me traz desafios e insere-me no contexto de conflitos que o grupo tem de lidar. Tenho buscado
pensar as questões de pesquisa a partir das categorias mobilizadas por minhas interlocutoras,
contrário.
centrais para a construção desta tese e uma discussão a partir do meu posicionamento enquanto
pesquisadora feminista.
42
subjetivação buscando construir uma ponte entre tais debates e linhas argumentativas que vêm
Uma das motivações deste estudo é problematizar as condições de existência social das
naturalizadas acerca dos fenômenos e estruturas sociais que são forjados ao longo da história.
As ciências humanas têm cultivado, desde muito cedo, o interesse por questões que envolvem
a relação entre homens e mulheres, os papéis sociais atribuídos aos sexos, divisão sexual do
trabalho, status, bem como sobre a sexualidade e as práticas sexuais em diferentes contextos
filósofa de Mary Wollstonecraft (2006) que escreveu em 1792 a obra Uma reindicação pelos
Direitos da Mulher inaugurando o que viria a ser considerado o campo da filosofia feminista;
os estudos de Sigmund Freud ([1905] 2006) e de seus seguidores sobre a sexualidade infantil,
Beauvoir (2008) que em 1949 lançou O Segundo Sexo, obra fundamental para compreensão da
formação da subjetividade e da cultura a partir da análise das relações entre homens e mulheres
homens e mulheres não são dados, naturais e universais, e sobretudo, não está relacionado ao
sobretudo, na maneira tal qual essas diferenças são transformadas em desigualdades (Mirian
dito de papéis sociais de gênero e identidade de gênero foi formulado nos anos de 1950 pelo
psicólogo e sexólogo John Money que fazia uma distinção entre sexo enquanto aspectos
Este conceito emerge a partir dos estudos de Money sobre as identidades psicológicas
Guerra Fria. Nesse cenário predominavam as ideias derivadas das ciências comportamentais
com as quais acreditava-se ser possível incentivar ou eliminar comportamentos através das
sexos. Ao contrário, seu estudo levou-o, através de uma série de experimentos feitos a partir de
8
O trabalho mais celebre de John refere-se ao caso da “mudança de sexo” de David Remer, garoto que perdeu seu
pênis quando criança e foi criado como menina até a adolescência, nunca tendo se adaptado completamente e
vindo a cometer sucídio. Para ver com profundidade tal caso recomendo a leitura do artigo “Doing Justice to
Someone: Sex Reassignment and Allegories of Transsexuality” de Judith Butler (2001), disponível em:
https://muse.jhu.edu/article/12181.
44
de vista de gênero, aconselhando que crianças intersexo fossem educadas dentro do gênero que
Décadas depois, a categoria gênero vai ser apropriada pelos estudos de mulheres, pelos
social das relações entre os sexos (Joan Scott, 1995): “O termo gênero faz parte das tentativas
levadas pela feministas contemporâneas de reivindicar certo campo de definição, para insistir
sobre o caráter inadequado das teorias existentes em explicar desigualdades persistentes entre
Pensar como o gênero opera nas relações sociais humanas e de que modo dá sentido a
essa mesma organização são questões cujas respostas estarão sempre dependentes da
perspectiva do gênero enquanto categoria de análise, o que nos remete desde já à pluralidade
Em seu texto clássico “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”, Scott (1995)
distingue três tipos de abordagens teóricas principais com relação à análise do conceito de
controle pela reprodução. A autora menciona Mary O’brien enquanto uma teórica que define
“a dominação masculina como efeito do desejo dos homens de transcender a sua privação dos
meios de reprodução da espécie” (Scott, 1995, p. 9). Para outras autoras dessa corrente, o foco
deixa de ser a reprodução e passa a ser a sexualidade. Segundo Haraway (2004), autoras como
O feminismo marxista é descrito por Scott enquanto tendo uma abordagem histórica.
Contudo, a autora entende como uma limitação o fato de estarem sempre em busca de uma
explicação material para as questões de gênero. Nesse sentido, questões de gênero parecem aqui
serem explicadas a partir da sua relação com as questões que envolvem o modo de produção ou
Sexuality” (1983), organizada por Christine Stansell e Sharon Thompson Ann Snitow como um
texto importante no sentido de oferecer uma explicação que vai além do modelo anteriormente
em contextos específico.
No terceiro grupo descrito por Scott, a autora aponta duas tradições diferentes, sendo
se conhecido como teorias de relações de objeto. Conforme Scott, as duas abordagens possuem
em comum o interesse pelos processos de constituição das identidades dos sujeitos, focando
Incluo nesta lista um quarto grupo que dialoga com as teorias pós-estruturalistas, mas
seção à parte.
uma via teórica própria e uma série de aliados no contexto político e científico, o que permitiu
46
articular o gênero enquanto uma categoria de análise. Desta maneira, ela lança mão de um
conceito de gênero que tornou-se uma grande referência dentro desse campo de estudos:
“gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre
os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder”. (Scott, 1995, p.
10).
Em breve apanhado sobre o tema, Grossi (2010) afirma que gênero é uma categoria que
o gênero se constitui enquanto uma linguagem ou um discurso que é compreendido como atos
dotados de significação, o que faz dessa abordagem uma análise da produção de significados.
Numa perspectiva estruturalista, por outro lado, o gênero implica em alteridade. Para que exista
reconhecimento de que existem pessoas diferentes de “nós”. Aqui, só há dois gêneros, embora
possam ser construídos de múltiplas formas, algo muito diferente da perspectiva pós-moderna,
academia e do movimento feminista que também deve ser analisado a partir da sua pluralidade.
Nesta tese utilizo o conceito de gênero como forma de falar em poder e na forma que ele se
materializa através das práticas e discursos em nossa sociedade. Parto, por conseguinte, de uma
abordagem de gênero que toma o referencial teórico dos feminismos pós-estruturalistas e pós-
coloniais entendendo que as identidades de gênero, além de não serem universais, não devem
A partir dessa concepção, o gênero é visto como efeito de um sexo pré-discursivo que,
uma espécie de ser natural (Adriana Piscitelli, 1996). Por conseguinte, não há identidade de
gênero por trás das expressões do gênero; essa identidade é performativamente constituída,
pelas próprias expressões tidas como seus resultados, de forma que não somente o gênero é
uma criação puramente social que carece de uma “essência” estabelecida através de uma série
de dispositivos socializadores como a ciência, a família, a escola, etc., mas o próprio corpo
humano está sujeito às forças sociais que o moldam e alteram de várias formas (Judith Butler,
pensar em sujeitos dados a priori, mas sim em construções discursivas a partir de uma
determinada representação identitária, política e jurídica. De acordo com Butler (2008, p. 20):
Se alguém 'é' mulher, isso certamente não é tudo o que esse alguém é; o termo não logra
ser exaustivo, não porque os traços pré-definidos de gênero da 'pessoa' transcendam a
parafernália específica de seu gênero, mas porque o gênero nem sempre se constitui de
maneira coerente ou consistente nos diferentes contextos históricos, porque o gênero
estabelece interseções com modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais
de identidades discursivamente constituídas.
construído e reproduzido. Ao pensar relações de poder importante registrar que entendo poder
a partir da perspectiva de Michel Foucault (1986), para quem o poder não é algo que se pode
Butler(2008) interpreta o gênero enquanto uma prática reguladora que busca uma matriz
sexual onde produz-se sujeitos coerentes no que diz respeito ao gênero/sexo/desejo (Maria
Juracy Toneli & Simone Becker, 2010). Essa matriz se fundamenta em dois princípios básicos:
9
Ao pensar relações de poder importante registrar que entendo poder a partir da perspectiva de Michel Foucault
(1986). Para o autor, poder não é algo que se pode ter, posto que só existe em ação e se exerce através de discursos.
48
sexos. Esses dispositivos criam, conforme Foucault (2009), um “regime de verdade” sobre o
sexo. A identidade de gênero aparece, dessa forma, como uma ficção que confere uma coerência
interna ao sujeito, sendo constantemente atualizada pelos discursos, saberes e práticas de poder
em nossa sociedade.
Chantal Mouffe (1999) também vai denunciar o caráter contingencial das identidades
Nessa lógica, Mouffe (1999) critica a categoria ‘mulher’ enquanto uma identidade
estável e pode provocar dúvidas no que se refere à possibilidade da construção de uma política
democracia radical atento às diferentes lutas contra a opressão a partir de matrizes não
essencialistas:
A política feminista deve ser entendida não como uma forma de política projetada para
a realização das mulheres como mulheres, mas como a realização de metas e aspirações
feministas dentro do contexto de uma mais ampla articulação de reivindicações. Essas
metas e aspirações poderiam consistir nas transformações de todos os discursos, práticas
e relações sociais onde a categoria “mulher” estivesse construída de maneira que
implicasse subordinação (Mouffe, 1999, p. 46).
Assim, Mouffe (1999) problematiza concepções que tratam as questões das mulheres
de forma essencializada (genérica ou neutra) ao mesmo tempo em que não nega a necessidade
com um conjunto de discussões que vem se ampliam no campo da Psicologia Social, qual seja,
enquanto um agenciamento de forças e fluxos, como uma linha que se inflexiona a partir dessas
forças e compõe uma dobra, que, como tal, nunca será uma interioridade fechada sobre si
mesma, senão expressão corpórea dos regimes de verdade de um tempo (Foucault, 2000). Dessa
sujeitos enquanto uma realidade em si, buscando entender, conforme Foucault (1995, p. 231)
“os diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornam-se sujeitos”.
capitalismo”. Tal visão marcou fortemente a constituição da Psicologia enquanto ciência que
Dimenstein, 2002).
história da ciência psicológica e, no entanto, sua forma de tratamento tem sido de um lado,
psicológica profunda ou, de outro, apontar que os sujeitos nada mais são que reflexos de uma
via de sua produção, autores como Gilles Deleuze, Félix Guattari e Michel Foucault vão dar
referenciais nos ajudam a pensar sobre a produção de subjetividade nas sociedades capitalistas,
entendidas não somente como “as sociedades qualificadas como capitalistas, mas também as
& Suely Rolnik, 1986, p. 15). Para Guattari e Rolnik (1986) a subjetividade no sistema
capitalista é produzida com o intuito de instaurar “indivíduos normalizados, articulados uns aos
outros segundo sistemas hierárquicos, sistemas de valores, sistemas de submissão”. (p. 16).
De acordo com Thiago Drummond Moraes (2002), a subjetividade não diz respeito
apenas ao modo de pensar das pessoas, mas também ao seu modo de agir, se portar, desejar,
fazer, sonhar. A subjetividade não está dentro das pessoas, mas “as atravessa, visto que não é
produzida nas pessoas, mas nos encontros entre elas e delas com os aparelhos de poder” (p. 14).
Nessa perspectiva, a fabricação das subjetividades dá-se por uma articulação de inúmeras
51
instâncias que não apresentam primazia ou determinação única nesse processo de produção
(Guattari, 2000).
Aqui, assim como gênero vai ser pensado como um dispositivo, igualmente podemos
pensar raça, classe, e participação política. Esses debates teóricos e políticos não só funcionam
como modos de subjetivar os sujeitos, mas reverberam-se de formas diversas no campo dos
mesmo tempo em que refletem essas esferas. Na seguinte seção discuto sobre a contribuição
dos feminismos pós-coloniais para o campo dos estudos de gênero e subjetividade e para o
movimento feminista.
à luz das teorias feministas pós-coloniais, buscando articular as categorias de gênero, raça e
colonialidade, debate esse esse trazido pelo meu campo-tema e demandado pelas minhas
durante dois séculos, até a segunda metade do século XX10, quando vários movimentos teóricos
apagamento dos saberes produzidos por mulheres, por pessoas não-brancas e pelos países do
10 É importante frisar que vários autores já faziam uma crítica contundente ao colonialismo antes disso, como
Fanon, Cesaire e Memmi.
52
Sul global pós-colonial11. A emergência dos saberes “subalternos” traz uma importante virada
Importante aqui fazer um breve esclarecimento, pois o campo dos estudos pós-coloniais
no século XX a partir, principalmente, das contribuições dos trabalhos de Frantz Fannon e Aimé
classificação é dada, sobretudo, em termos raciais (isto é, a matriz racial colonial) e patriarcais,
Subalternidade Sul-Asiáticos. Esse grupo tem diálogo direto com as teorias pós-estruturalistas
subalternos começaram no início dos anos de 1980, com o indiano Ranajit Guha1, como uma
modernidade/coloniliadade nos anos de 1990, grupos esses constituídos por teóricos latino
11 O termo pós-colonialismo refere-se aqui tanto ao processos emancipatórios a partir do colonialismo dos países
da América, Ásia e África, enquanto forma de dominação político-administrativa, quanto ao movimento teórico
que será analisado ao decorrer do texto.
53
Norte-Sul. Com isso, esse grupo tem o objetivo de produzir conhecimento a partir da práxis e
da realidade da América Latina, de narrativas que foram subalternizadas pelas visões científicas
sociedades que aqui se formaram e se estabeleceram, mas para a própria formação europeia, a
partir do marcador da conquista colonial. Ou seja, para esses autores, não só a América Latina
Em que pese, as diferentes correntes teóricas que constituem esse campo de estudos, os
implicações políticas, formas outras de ser e de estar no mundo, diversidade esta que tem
conhecido um redobrado interesse em vários contextos, dos movimentos sociais, das culturas
do sociólogo peruano Aníbal Quijano (2005) acerca dos padrões de poder que fundamentam
hierarquias no capitalismo global a partir da constituição da ideia de raça, categoria que permeia
perspectiva nos mostra que a colonialidade não se esgota com o colonialismo, mas o reafirma
colonial, que vai invisibilizar e desconsiderar saberes construídos a partir de outros esquemas
sabemos sobre o Sul global são reflexo de interpretações cujas raízes são marcadamente
contínua afirmação de uma hierarquia de saberes, produzindo sociedades assumidas como mais
nas instituições, vocabulário, saberes, imagens, doutrinas, etc. Esse posicionamento reside na
único e sua imposição como universal (Meneses & Vasile, 2014). Como nos apontam
Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses (2009), a transformação desse pensamento
no que veio a se estabelecer enquanto a ciência moderna só foi possível com a força da
campo dos estudos pós-coloniais, entretanto, a partir da construção de pontes entre perspectivas
passou a incorporar de maneira cada vez mais central a visão crítica e os conceitos das teorias
colonial e de gênero.
Assim os feminismos pós-coloniais surgem como uma chave de leitura teórica que vem
dar luz às relações gendradas e racializadas a partir de uma perspectiva subalterna e como um
Segundo María Lugones (2008), feminista ligada a linha teórica decolonial, considerar
gênero em termos raciais. Assim, conforme a autora, a imposição desse sistema de gênero foi
sistema de gênero. Portanto, o sistema de gênero moderno e colonial não pode existir sem a
Rita Segato (2018a), por outro lado, discorda com a posição de Lugones e de outras
teóricas decoloniais que se opõe ao uso da categoria gênero por considera-la uma categoria
colonial que reforça as desigualdades. Ela argumenta que gênero e raça são análagos em relação
à estrutura de produção da diferença como desigualdade, ainda que a raça seja uma herença
feminista pós-colonial também vai recair sobre o feminismo produzido no ocidente, através da
crítica da representação das mulheres não ocidentais como o Outro da cultura de forma tripla:
56
enquanto mulher, enquanto não ocidental e a partir da junção desses dois termos (Aldeman,
2007). Chandra Mohanty (2008) aponta que as feministas ocidentais tomam a cultura de classe
média urbana como norma e classificam as experiências das mulheres negras, indígenas, de
comunidades tradicionais, etc., do Sul global a partir de uma construção discursiva acerca das
agir reflexivamente e com intencionalidade sobre a própria vida e as instituições sociais. Nesse
gênero e sexualidade, em sua dupla exclusão, são vistas como não-humanas e não-mulheres.
Esse debate é fundamental para a reflexão sobre como a raça nos constitui
subjetivamente e das desigualdades estruturais que essa classificação social constrói e como,
ainda, tal categoria, articulada ao gênero e à classe vai impactar na vida dos sujeitos.
pela feminista negra estadunidense Kimberlé Crenshaw ao essencialismo das leituras sobre
1989 a partir do exame e crítica de casos judiciais sobre os direitos humanos de mulheres. Na
racismo e patriarcado deveriam ser compreendidas enquanto uma interação e não a partir da
complexidade das identidades e das desigualdades sociais a partir de uma perspectiva integrada.
Tal qual apresenta Marta Farah (2004), essas referências realçam o caráter histórico das
dimensões analíticas, enquanto marcadores sociais da diferença em nossa sociedade, tais como
Dessa forma, a utilização de conceitos ocidentais para pensar as mulheres do Sul global
(Haraway, 2000). A filósofa Djamila Ribeiro ressalta que “os saberes produzidos pelos
importantes, são lugares de potência e configuração do mundo por outros olhares e geografias”
agenciamento do sujeito subalterno, marcadamente gendrado. Para tanto, ela propõe (1) uma
das construções discursivas que moldam o pensamento ocidental. Inspirada nessas questões,
58
construção do saber científico, como também nos ajuda a complexificar o olhar sobre modos
enquanto um importante dispositivo. Por outro lado, abre espaço para pensar possibilidades de
processos caracterizam-se por fugir aos mecanismos de interiorização dos valores capitalísticos,
independentemente das escalas de valor hegemônicos que nos cercam e espreitam por todos os
mas impõe desafios de ordem téorica e metodológica, uma vez que ainda precisa ser
feminista.
59
politicamente situado, buscamos produzir um diálogo entre a pesquisa enquanto proposta ético-
diálogo como forma de descolonizar práticas e saberes hegemônicos, marcados por um certo
esvaziamento crítico, ao serem tomados enquanto regimes de verdade no campo das ciências
humanas.
metamorfoses, não definidas a partir de um ponto de origem e um alvo a ser atingido, mas como
A presente pesquisa foi pensada para acontecer na forma de mo(vi)mentos que não
seguem uma lógica de sucessão de etapas, mas que foi sendo realizada a partir dos
construção da realidade. Assumir tal postura, entretanto, vem sendo um grande desafio,
principalmente nos momentos iniciais da pesquisa que foram marcados por muitas incertezas e
grande medida, pelo contexto vivenciado no cenário da pesquisa - a Zona Oeste do Rio de
Janeiro - região que vem sendo constantemente ameaçada por projetos de privatização do
território e por uma série de conflitos socioambientais e em meio a um período social e político
Acredito que a participação em atos políticos, protestos e todo tipo de mobilizações aparece
Ao adotar tal postura, advogo que a investigação crítica deve ser toda ela baseada na
é parcial e situado (Sofia Neves & Conceição Nogueira, 2005; Haraway, 1995). Acredito,
portanto, que os estudos acadêmicos não devem assumir posturas imparciais, mas politicamente
situadas, tal qual propõe a perspectiva feminista de ciência defendida por autoras como Donna
Haraway (1995).
Essas questões vão de encontro àquilo que a crítica feminista, de uma forma geral, tem
ciência, e quem a produz, também são portadores/as de marcadores sociais de gênero, raça,
Se os pontos de vista são mediados por nossas posições de fala, é também importante
ressaltar que esta investigação é movida por interesses que são frutos da minha experiência
pessoal, sendo uma pesquisadora jovem feminista que, de alguma forma, representa a
aproximação com a agroecologia vai se dar não só através do meu trabalho em assentamentos
rurais da reforma agrária, mas também a partir do meu lugar de consumidora de alimentos
(como cicloativismo, por exemplo) e que, aos poucos, foi se aproximando e incorporando a
hortas comunitárias dentro da universidade e do próprio bairro. Portanto, o estar em campo vem
sendo marcado pelo que Carmen Tornquist (2007) chama de “ativismo observante” – um
política das produções acadêmicas. Desse modo, Neves e Nogueira (2005) propõem o uso da
Este estudo parte de uma perspectiva qualitativa de pesquisa. Em diálogo com Cecília
Minayo (1994), acredito que pesquisa qualitativa trabalha com o universo de significados,
motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo
das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização
Utilizo como base a perspectiva etnográfica de investigação. Como nos sugere Carmem
Lúcia Mattos (2011), a etnografia é um processo guiado, preponderantemente, por uma atitude
questionadora do pesquisador, ou conforme nos diz José Guilherme Magnani (2002), um modo
62
não segue padrões rígidos ou pré-determinados, mas sim, o senso que o etnógrafo desenvolve
utilizados nesta abordagem de pesquisa, muitas vezes, têm que ser formuladas ou recriadas para
atender à realidade do trabalho de campo. Assim, na maioria das vezes, o processo de pesquisa
etnográfica será determinado explícita ou implicitamente pelas questões propostas pelo próprio
campo, pelos interlocutores e pelas questões que vão surgindo ao longo do seu
desenvolvimento, como discutido na introdução desta tese. Segundo Mariza Peirano (2014), as
Para Clifford Geertz, “fazer etnografia é como tentar ler (no sentido de ‘construir uma
suspeitas e comentários tendenciosos” (Geertz, 1989, p. 20). Assim, em alguma medida, fazer
refere-se a formação teórica que é a bagagem indispensável para ir a campo, pois a capacidade
repertórios simbólicos compartilhadas pelo grupo com o qual se quer refletir. O segundo
momento provavelmente é o mais doloroso para a maioria dos pesquisadores, assim como o
vivida pelo sujeito coletivo pesquisado (Raoni Barbosa, 2016). Como crítica a tal modelo,
várias linhas teóricas foram sendo formuladas no seio da antropologia em prol de um fazer
autoridade etnográfica, Clifford propõe um projeto de etnografia que seja resultado de uma
produção colaborativa.
Esse debate vai ao encontro das interpelações feministas à epistemologia abrindo espaço
para a constituição de uma abordagem etnográfica feminista (Carmen Gregorio Gil, 2006). A
etnografia feminista parte da ideia de que a pesquisa e a construção teórica não são esferas
como tal, reconhece a importância do lócus de enunciação do pesquisador desde seu próprio
a suposição de que todas as relações sociais são de gênero e raça, o que sinifica
que essas categorias são essenciais para entender os lugares sociais dos sujeitos;
construções sociais;
diálogo, a fim de explorar melhor os mundos interiores das mulheres, até o ponto
Discursiva coloca no centro da investigação a ação social, o modo como as pessoas interagem
O conceito de práticas discursivas é central para esta perpesctiva. Ele deriva do trabalho
de Mikhail Bakhtin (1929/1995) para quem a linguagem é, necessariamente, uma prática social,
65
uma vez que os sentidos são construídos a partir da interação entre duas ou mais vozes. Assim,
as práticas discursivas dizem respeito às formas nas quais as pessoas produzem sentidos e se
posicionam em relações sociais cotidianas (Mary Jane Spink & Benedito Medrado, 2000).
De acordo com Spink e Medrado (2000), as práticas discursivas têm como elementos
partir das quais a interação acontece em uma conversação; as vozes que compreendem os
repertórios interpretativos.
Michael Billig (2008) argumenta que todo diálogo ou comunicação é uma performarce,
interpretativos que os sujeitos possuem. Com tais ferramentas, buscarei compreender como
Movimentos da pesquisa
apostamos que, a partir de tais referenciais teórico e metodológico, podemos evidenciar não só
processos de subjetivação que vão tomando forma no decorrer da pesquisa, a partir de uma
configuração de diversos elementos, forças ou linhas que atuam simultaneamente (Kastrup &
66
Barros, 2010).
políticas; (3) entrevistas semi-estruturadas com mulheres militantes. Na Tabela 1 apresento uma
Tabela 1
Objetivos e ferramentas
Objetivos Ferramentas
mencionado anteriormente, esses movimentos não seguiram uma lógica de etapas, mas foram
Entendendo que a agroecologia mobiliza atores e sujeitos coletivos diversos que manejam
sentidos e as matrizes dos discursos em torno dos conceitos de feminismos e gênero dentro da
Para tanto, partimos de uma análise discursiva inspirados no trabalho de Peter Spink
portanto, identificar os repertórios interpretativos que surgem nos documentos estudados, para
entender os sentidos que vão sendo construídos pelos atores/atrizes e sujeitos coletivos às
e organização entre atores sociais, são produtos da interação com um outro desconhecido,
(Peter Spink, 2000). Desse modo, através dos seus documentos, os movimentos sociais e
expressam sentidos e racionalidades que constroem e são construídos nas relações sociais
cotidianas.
Documentos
por organismos do Estado que pautam a Agroecologia e políticas para mulheres no âmbito
Alimentação e a Agricultura (FAO), buscando entender, a partir das diferentes posições dos
sujeitos dos discursos, quais narrativas acerca da relação entre gênero e agroecologia vêm sendo
selecionados:
69
Tabela 2
Documentos de referência
Documentos de referência
Movimentos Sociais
Carta Política do I ENA (Rio, 2002)
Carta Política do II ENA (Recife, 2006)
Carta política III ENA (Juazeiro, 2014)
Carta das Mulheres III ENA (Juazeiro, 2014)
Carta política do IV ENA (Belo Horizonte, 2018)
Políticas
Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (2013)
Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (2013-2015)
Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (2016-2019)
Organismos internacionais
FAO’s programme for gender equality in agriculture and rural development (2016)
Women in agriculture: Closing the gender gap for development (2011)
de 2012 com o decreto nº 7.794, tendo como objetivo de integrar, articular e adequar políticas,
população, por meio do uso sustentável dos recursos naturais e da oferta e consumo de
alimentos saudáveis.
70
estratégias que são organizadas através dos Planos Nacionais de Agroecologia e Produção
e Produção Orgânica (Ciapo) que é composta de forma paritária por membros do poder
ano de 2013, para o biênio 2013 – 2015 e o 2º tendo sido lançado no ano de 2016 para o triênio
2016-2019.
A Pnapo (2013) e o Planapo (Ciapo, 2013, 2016) são, portanto, frutos do diálogo entre
o Estado, o terceiro setor, agências de fomento e os movimentos sociais que vêm pautando o
estaduais de agroecologia e produção orgânica (Peapo): o Rio Grande do Sul, com a instituição
da Peapo em 2014; o Mato Grosso com a instituição da Peapo em 2012 e Minas Gerais com a
implementação da Peapo em 2014. Ao mesmo tempo, tramitam em alguns estados como Bahia,
Rio de Janeiro e São Paulo, projetos de lei visando a criação dessas políticas e a regulamentação
da produção agroecológica.
Pnapo, nas Peapos e no Planapo e os programas que o integra, como o Programa de Assistência
Pronaf mulher. Destacamos ainda que, tendo identificado a ausência de marcos legais sobre
articula vinte e três redes estaduais e regionais, que reúnem centenas de grupos, associações e
abrangência nacional.
A ANA organiza a sua ação em três frentes. A primeira delas consiste em articular
ação se refere ao trabalho de incidência sobre as políticas públicas. Através da prática da troca
promovam o aumento de escala da agroecologia nos territórios. Esse esforço tem fortalecido a
ANA como ator político representante do campo agroecológico, legitimado para propor e
refere à comunicação com a sociedade, que busca dar visibilidade à realidade da agricultura
o uso sustentável da biodiversidade, com foco prioritário nas sementes locais e nos produtos do
questão dos agrotóxicos e dos transgênicos; as normas sanitárias para produtos da agricultura
Note-se ainda que, nos anos recentes, a ANA tem estabelecido e estreitado relações de
parceria com outras redes e fóruns que atuam em áreas com forte ligação com a agroecologia,
solidária, a justiça ambiental, o direito à cidade e o feminismo. Essa aproximação tem sido
Como forma de dar conta dos objetivos desse estudo, sistematizamos e organizamos
essas redes de acordo com a atuação na área da agroecologia e sobre a questão de gênero. Para
a análise dos discursos institucionais, foram escolhidas as redes e organizações que: a) possuem
a agroecologia como uma de duas linhas de atuação prioritária e possuem algum grupo de
feminismo como atuação prioritária, mas que trabalham com agroecologia, como mostra a
tabela 3.
Tabela 3
Trabalha
Rede GT Gênero diretamente com
agroecologia?
Associação Brasileira de Agroecologia (ABA)
GT gênero Sim
Articulação de Agroecologia do Rio de Janeiro
- Sim
(AARJ)
Associação Brasileira de Saúde Coletiva
GT gênero e saúde Não
(ABRASCO)
73
documentos. A maior parte foi encontrada via internet. Também entramos em contato com
lideranças dos movimentos sociais que nos disponibilizaram documentos que não estavam on-
line. Diante do grande volume de documentos encontrados, além de folders, livros, cartilhas e
Dessa forma, elegemos para análise as cartas políticas dos Encontros Nacionais de
ANA, documentos produzidos para a Marcha das Margaridas. A escolha desses documentos
específicos se deu pela relevância que esses movimentos têm no debate e no fortalecimento das
mulheres na agroecologia, sendo esse um eixo prioritário de ação e discussão em todos eles.
75
movimentos, o que nos ajuda a ter um panorama geral dos debates que vêm sendo construídos.
Alimentação e a Agricultura
Agriculture Organization – FAO) é uma agência das Nações Unidas que tem como objetivo
Dessa forma, não só a FAO influencia as políticas dos países membros da ONU, como também
define eixos de ações e financiamento que impactam projetos locais nos territórios
Tomamos os documentos produzidos pela FAO para a presente análise como representação
no campo e nas cidades. Vamos nos ater, no presente estudo, aos documentos de referência da
Campanha Mulheres Rurais realizada desde o ano de 2015 pela organização e da qual o Brasil
participa. Os documentos que balizam tal campanha são centrais para entender os programas,
12
“The Food and Agriculture Organization (FAO) is specialized agency of the United Nations that leads
international efforts to defeat hunger”. Disponível em: http://www.fao.org/about/.
76
ações e políticas voltadas para as mulheres na agricultora, pois estabelecem as bases para essas
instancias onde foram produzidos, quais sejam, movimentos sociais, governo e organismos
internacionais, foi feita uma leitura extensa de cada documento identificando todo o conteúdo
que fazia referência às palavras (a) gênero, (b) mulheres, (c) sexualidade, (d) feminismo e/ou
movimentos feministas.
Feita a identificação de tais referentes, foi realizada uma nova leitura buscando
dos textos em torno de tais termos. Para nos auxiliar com a sistematização dos dados, fizemos
discursos. Para tanto, foram mobilizados os conteúdos prévios sobre as linhas teóricas e
Partindo de tais referenciais, criamos um quadro de categorização para nos auxilar nas
análises (ver Apêndice 2) considerando (1) as vozes em diálogo no referido documento, (2) os
interessavam e as grandes matrizes teóricas que foram identificadas em uma leitura prévia dos
77
documentos, pude agregar e construir um mapa dos enunciados, conforme será apresentado no
capítulo 4 da tese.
nacionais da agroecologia foram realizadas entre agosto de 2015 e junho de 2018, enquanto as
observações relativas aos coletivos de mulheres no Rio de Janeiro foram realizadas entre junho
dos acontecimentos para situar esses significados em contextos mais amplos. Acontecimentos
singulares, assim, adquirem uma significação mais profunda ou mais geral (Cliffford, 1999, p.
33).
públicos dos quais participei e que apresento detalhamento na Tabela 4. Esses eventos foram
em inúmeros encontros nos quais não tive o objetivo específico de realizar uma observação
mais sistemática não havendo um registro preciso. Tampouco foram registradas reuniões
78
internas que tratavam de determinados temas que não poderiam ser anotados ou gravados por
Tabela 4
Estádio Mané
11 e
Marcha das Margaridas CONTAG Garrincha, Brasília
12/08/2015
– DF
CNAU, ANA UERJ, Rio de 21 a
I ENAU
e FBSSAN Janeiro – RJ 24/10/2015
Seminário “Corpo,
FEUC, Campo
conhecimento e conflitos: 16 e
Instituto PACS Grande, Rio de
resistências feministas e 17/06/2016
Janeiro – RJ
territórios em disputa”
Roda de conversa “Mulheres Amavag, Vargem
em defesa da vida e pela CPMZO Grande, Rio de 13/08/2016
agroecologia” Janeiro – RJ
Escola Estadual
Teófilo Moreira da
III Encontro para o Plano
APP Vargens Costa, Vargem 03/09/2016
Popular das Vargens
Grande, Rio de
Janeiro – RJ.
Associação de
Militiva Moradores do 30 –
Oficina “Morar e Plantar” Coletiva Vila Taboinhas, 22/01/2017
Hortelã Rio de Janeiro –
RJ.
Entrada BRT Santa
Ato das mulheres da Zona
CPMZO Cruz, Rio de 11/03/2017
Oeste
Janeiro – RJ.
Espaço Raízes do
Encontro da Roda de Brasil, Santa 15 e
Rede CAU
Mulheres da Rede Cau Teresa, Rio de 16/11/2017
Janeiro – RJ.
Espaço Mulheres
Militiva/ de Pedra, Pedra de
Encontro Final da Militiva 28/04/2018
Instituto PACS Guaratiba, Rio de
Janeiro – RJ.
79
Parque Municipal,
Encontro Nacional de 30/05 a
ANA Belo Horizonte -
Agroecologia 03/06/218
MG.
A análise desta etapa foi feita através da leitura sistemática das anotações em diário de
participante contribuiu para ampliar o entendimento das categorias que foram construídas ao
longo dos outros momentos da pesquisa além de nos ajudarem na caracterização do campo-
tema em questão.
Segundo Silvia Tedesco, Christian Sade e Luciana Caliman (2014), a entrevista deve
curso, parte-se de um ethos da entrevista que não tem por objetivo central a coleta de dados,
mas, como Deleuze e Parnet (1998) nos colocam, como “traçado de um devir” que corresponde
construção de um plano comum que se faz no diálogo - momento em que se efetua a intervenção
mútua. Desse modo, “a entrevista busca proliferar a questão mais do que obter a informação”.
Busco com tal ferramenta apreender a rede de significados que as militantes atribuem
às suas experiências em suas narrativas. Segundo Jerome Bruner (1991), organizamos nossa
experiência e nossa memória na forma de narrativas: histórias, desculpas, mitos, razões para
fazer e para não fazer, e assim em diante. As narrativas só podem ser compreendidas se
80
levarmos em conta o contexto social onde o sujeito está inserido. A partir desse trabalho
dinâmicas históricas, econômicas, políticas, etc., em curso naquele território. As narrativas são,
uma ponte entre a trajetória individual e a trajetória social (Silva-Pacheco, Barros, Nogueira &,
Barros, 2007).
possibilidade daquele que narra sua história experimentar uma ressignificação de seu percurso
e dar continuação à construção de outros sentidos e interpretações frente à sua própria narrativa
(Silva-Pacheco et al., 2007). A ideia é, ao fazer uso dessa ferramenta, suscitar acontecimentos
que “pode conduzir à afirmação de valores num registro particular, independentemente das
escalas de valor que nos cercam e espreitam por todos os lados” (Guattari & Rolnik, 1986, p.
47).
entrevistadas foram convidadas a construir uma narrativa sobre si mesma, sua história de vida
segunda parte organizamos as questões em três eixos temáticos: (1) organização familiar; (2)
Tabela 5
Escolaridade:__________________________________
Atividade principal atual: _________________________
Local de trabalho: _________________________________
Participação em movimentos sociais:_______________________
entretanto ao longo dos meses de pesquisa de campo, percebi que o envolvimento dessas
disponibilidade para participação no estudo. Lembro ainda que duas entrevistas foram retiradas
das análises diante do pedido explícito das participantes por motivos de segurança devido às
entrevistadas foi modificado para preservar suas identidades, entretanto, algumas das lideranças
pediram que seus nomes originais fossem restituídos no texto, como forma de dar visibilidade
a realização desta investigação que seguiu as normas éticas para pesquisas em Ciências Sociais
dúvidas das participantes. As mulheres que aceitaram participar do estudo assinaram um Termo
Tabela 6
Miner versão 5.0.26 um quadro de categorias que foram aprofundados interpretados à luz do
conceitos de gênero, mulheres e feminismos no cenário da agroecologia. Para tanto, partirei dos
resultados e análises dos documentos que fazem referencia a tais conceitos. Esta seção foi
categorias com as quais irei trabalhar. Na segunda, exponho o primeiro eixo de discussão (1)
os principais sentidos sobre a participação das mulheres na agroecologia e como tais discursos
Movimentos e construção das políticas de agroecologia e gênero onde abordo os discursos dos
movimento ecológico tem como marco inicial o período que é conhecido como primeira onda
do feminismo13 com as discussões sobre direito dos animais e da natureza dentro do movimento
sufragista no final do século XIX. Entretanto, como argumentam Maria Mies e Vandana Shiva
(1993), as mulheres sempre estiveram à frente das mobilizações contra a destruição ambiental,
sendo impossível apontar um marco temporal preciso. Para as autoras, ao examinar diferentes
13
Não utilizamos nesta tese a classificação dos feminismos em ondas, por considerar que essa narrativa apaga
outros feminismos construídos fora do Ocidente, da academia e por mulheres não-brancas. No entanto, algumas
vezes faremos referência às ondas para marcar discursos, movimentos e períodos históricos específicos.
85
lutas ecológicas históricas em defesa dos territórios em todo o mundo, encontramos à frente
especialmente nas lutas construídas no Sul global por povos originários, comunidades
tradicionais e em contextos não-urbanos – mesmo que muitas vezes não ocupem o papel de
lideranças ou tenham a mesma visibilidade externa em relação aos homens nos movimentos.
Por isso, é difícil delimitar tais marcos, onde se dá início a atuação das mulheres nas lutas
É importante trazer à tona essas críticas e reflexões para não recairmos no perigo de
deslegitimar importantes processos de luta que muitas vezes são colocados à margem da história
pretendemos construir uma narrativa que parte de outros marcos históricos e temporais e de
outras ideias e concepções de luta para pensar os discursos, políticas e movimentações das
sujeitas políticas nesse cenário, entendendo que uma das principais questões colocadas pelas
construiu-se uma sistematização dos discursos produzidos acerca da relação entre gênero e
agroecologia para entender quais narrativas e ações então sendo construídas nesse campo.
movimento e modelo político, foram identificadas três teorias centrais que vão ser reivindicadas
de formas diversas, de acordo com seus interlocutores e dos espaços de debates. São elas: o
86
feminismo liberal – presente em boa parte dos documentos produzidos por agências e
marxista e o ecofeminismo – linhas teóricas usadas de forma recorrente por parte dos
É importante ressaltar que, muitas vezes, essas teorias não são diretamente referenciadas
nos discursos, entretanto elas surgem de forma mais ou menos explícita a partir do uso de
determinados conceitos, expressões e leituras sobre questões específicas que podem ser
identificadas dentro dessas linhas discursivas. Em outros momentos vemos o uso de conceitos
que remetem a linhas teóricas que dialogam entre si, e outras onde existem ainda contradições
Com ajuda do software QDA Miner e a leitura extensiva dos documentos, foram gerados
três códigos que dizem respeito às matrizes discursivas mais gerais que conformam os
documentos e subcódigos que foram analizados como sentidos mobilizados nos documentos.
Os sentidos também foram classificados de acordo a esfera onde foram produzidos, quais sejam,
Tabela 7
Feminismo marxista
Divisão sexual do trabalho
Protagonismo das mulheres
Construção de saberes a partir do olhar
das mulheres
Ecofeminismo
Corpo-território
Interrelação mulher-natureza
Ética ambiental
documentos relativos às polítcas (n=11). Por outro lado, a categoria mulher/mulheres aparece
de forma constante em todos os documentos, seja no âmbito dos documentos dos movimentos
movimentos sociais, nenhuma ocorrência nas políticas e nenhuma ocorrência nos documentos
88
nenhum documento.
protagonismo das mulheres. Entretanto, como discutiremos no presente capítulo, nem sempre
discuto com maior aprofundamento tais sentidos e matrizes discursivas a partir dos sujeitos
metade do século XX, como metas centrais nas agendas políticas de diversos movimentos
sociais assim como de boa parte dos países ocidentais e de agências internacionais de
desenvolvimento. De acordo com Siliprandi (2015), a articulação dessas pautas passou a ganhar
grande visibilidade nos anos de 1990 com a realização do Planeta Fêmea dentro do fórum global
Eco-92, organizado por redes de mulheres ambientalistas para discutir a problemática ambiental
A ONU, representada pelas suas agências ONU Mulheres, FAO e Programa das Nações
Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) desempenha um grande papel nesse debate. Desde o
seu início, as Nações Unidas abordam questões relacionadas com o estatuto da mulher através
do trabalho dos seus órgãos, enquanto a Carta das Nações Unidas de 1945 e a Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948 reconhecem o princípio da igualdade entre homens e
todas as dimensões e desafios da Comisão sobre a Situação da Mulher (CSW), tais como o
esforços para aliviar ou resolver problemas nas questões alimentares, tornou-se mais
amplamente reconhecido. O ponto de virada na história dos assuntos das mulheres no sistema
das Nações Unidas veio em 1985, quando ocorreu a Conferência Mundial de revisão e avaliação
Quênia. Foram adotadas estratégias prospectivas para o avanço das mulheres para até o ano
As ações empreendidas nesse sentido têm sido levadas a cabo prioritariamente pelas
agências FAO e ONU Mulheres, que têm trabalhado nos países do Sul Global a partir de
diversas ações, entre uma das mais importantes a campanha Mulheres Rurais que abarca as
Desenvolvimento Sustentável (ODS) que devem ser implementados pelos países membros até
2030. No Brasil, com a extinção da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) em 2015 e
para a comunicação e ações do Governo Federal para além dos Planapos, como apontam os
Assim, o objetivo no presente tópico é refletir sobre a partir de quais olhares vêm se
estruturando as estratégias de ação instruídas pela FAO e que, em grande medida, impactam na
tese. Atenho-me aqui especialmente aos relatórios que trazem um panorama das mulheres na
agricultura.
aparece como o norte da maior parte dos documentos da ONU. Esses documentos se destacam
também ao abordarem as relações desiguais de gênero não enquanto um dado biológico, mas
feminista Gayle Rubin (1975). Nos anos de 1970, Rubin causou grande impacto ao propor uma
teoria que, não só ajudou a consolidar o conceito de gênero enquanto uma esfera “social do
sexo”, mas também mostrou como que os estudos que abordavam a relação entre reprodução e
14
“ Los conceptos de “sexo” y “género” pueden ser confusos, sobre todo porque incluso los expertos a veces los
utilizan de forma incoherente. El sexo hace referencia a categorías biológicas innatas (macho o hembra). El género
se refiere a los papeles e identidades sociales asociados con el significado de “hombre” o “mujer”. Los papeles por
razón de género están delimitados por factores ideológicos, religiosos, étnicos, económicos y culturales, y son un
elemento esencial determinante de la distribución de responsabilidades y recursos entre hombres y mujeres. Sin
embargo, al estar socialmente determinada, esta distribución se puede modificar a través de medidas sociales
deliberadas, incluidas las políticas públicas. Toda sociedad está marcada por diferencias de género, pero estas
91
a respeito do seu caráter de construção sociocultural. O sexo fica salvaguardado na sua própria
agenda de lutas feministas e das ações das políticas de empoderamento (Carlos Eduardo
Henning, 2008).
Também chama atenção a forma como a divisão do trabalho é tratada, sendo o padrão
Women in agriculture: Closing the gender gap for development (2011) o trabalho doméstico é
dos afazeres domésticos com os homens, entretanto, não é mencionada, pois entraria em
e homens tendo como modelo o padrão atual, no qual a casa e os filhos são encargos das esposas
e mães. Assim, os fatores que impediriam as mulheres de atingirem esse patamar ou as possíveis
consequências do que é requerido para que se equalize essa produção não são discutidos ou
mencionados.
considerado trabalho. A categoria “trabalho” não é uma categoria neutra, ao contrário, ele é
engendrado, desde Adam Smith, pela economia política que relaciona o trabalho ao valor. Karl
que o trabalho corresponde à atividade humana que transforma a natureza nos bens necessários
à reprodução social. Na teoria marxista sobre o trabalho, houve uma preocupação acentuada em
varían mucho en función de la cultura y pueden cambiar drásticamente con el tiempo. El sexo es biología. El
género es sociología. El sexo es algo fijo. Los papeles por razón de género cambian”.
92
diferenciar o trabalho produtivo (aquele que produz mais-valia) do reprodutivo (que não produz
mais-valia, mas é essencial para a manutenção do sistema capitalista). Segundo Helena Hirata
assalariado, inaugurando a ideia de trabalho como atividade social mensurável e passível de ser
objetivado.
improdutivo, ainda que a sua contribuição na economia doméstica seja reconhecida. A partir
dos anos de 1970, essa definição passou a ser criticada por partir de um modelo assexuado de
trabalho, em que “o masculino é apresentado como universal e as relações de gênero não são
tenham mais tempo livre para se concentrar em atividades mais produtivas; facilitar a
Esse último ponto chama particular atenção. No relatório FAO’s programme for gender
equality in agriculture and rural development (2016), a agência sugere que o mercado
terceirizado se apresenta como uma opção interessante de ingresso das mulheres no trabalho da
as mulheres negras, já somam 71% desse mercado, de acordo com dados do IPEA (2012).
Cristiane Campos, em pesquisa sobre o trabalho das mulheres no agronegócio, mostrou que, ao
invés de melhorar o bem-estar e condições das mulheres e suas famílias, o ingresso das
93
O modelo de desenvolvimento implícito nesses documentos abre espaço para uma série
Graziano - uma grande referência no debate sobre a agricultura familiar na América Latina - a
modo de produção que pode diminuir as desigualdades de gênero e que deve ser promovida,
ainda assim ela não aparece como um objetivo ou como estratégia prioritária.
Importante ressaltar que no campo da agricultura a FAO foi uma das entidades que
levou ao imediato aumento da produção. Ao mesmo tempo, porém, trouxe à tona problemas
ligados à produção em grande escala: empobrecimento dos solos pelas monoculturas, aumento
do uso de agrotóxicos, precarização das relações de trabalho no campo, poluição das águas,
entre outras questões que há décadas vêm sendo denunciadas por lideranças políticas,
apontam para as incongruências da agência que, ao mesmo tempo que criou um programa
“agroecologia para os pobres” e alerta para a enorme crise de abastecimento de água potável e
desmatamento no Brasil, continua com o seu apoio à agricultura industrial de altos insumos e à
agricultura irrigada para a produção e exportação de grãos para a pecuária e que consome 70%
Apesar do termo “feminismo” não aparecer em nenhum dos documentos da FAO que
foram analisados, pode-se identificar que os discursos balizadores desses documentos são
pautados pelo chamado feminismo liberal. O feminismo liberal ganha força a partir do final dos
Castro (2009), essas agências privilegiam projetos a varejo, estimulando o enfoque de políticas
Essa tendência vêm ganhando também espaço nas elaborações e reelaborações dos
dos aspectos mais criticados no âmbito do feminismo liberal é a ideia universal de mulher. Os
eixo de atuação, sendo muitas vezes apenas apresentados como um cenário sem uma discussão
aprofundada das questões que envolvem tais desigualdades. Um exemplo disso está no fato de
que, nos relatórios analisados, não existe menção à raça e apenas uma menção à etnia.
Tampouco há menções relativas à sexualidade, ou ainda, aos desafios enfretados por mulheres
estejam presentes, a não menção de tais desigualdades aponta para uma visão homogênea do
que seria a mulher no meio rural ou da agricultora familiar. Como, afinal, pensar o
(aumento de crédito, maior uso de insumos e de tecnologia,etc.), seriam as mais eficazes para
rurais e agricultoras familiares, em geral relacionados com a ideia de mulheres ligada à família
Esses discursos também podem ser identificados nos documentos analisados a partir da
construção de uma narrativa sobre a pobreza, sobre as mulheres e sobre a agricultura familiar
ora com um sentido de passividade, ora com a ideia das mulheres e da família vistos como
empreendedores.
oportunidades econômicas e sociais de trabalho informal para geração de renda nessa lógica
brasileiras.
96
passa a ser uma leitura econômica para uma forma de racionalidade que vai constituir os sujeitos
e, quando é ativado, sempre o é para figurar como mercado e empresa da cidadania (Lemos et
al., 2015).
vida das mulheres através do controle dos seus corpos e assujeitamentos das suas atividades.
Em sua obra Vigiar e Punir, Foucault (2015) discute, a partir do seu método genealógico,
disciplinar opera no âmbito das instituições (escolas, prisões, hospitais, quartel, fábricas etc.) e
se dirige ao corpo individual, que deve ser vigiado, treinado e ocasionalmente punido, a
biopolítica é dirigida às populações e atua via uma série de intervenções reguladoras dos
biopolítica chama a atenção para três aspectos articulados entre si: (1) um ou mais discursos de
verdade sobre os seres vivos e um conjunto de autoridades consideradas competentes para falar
aquela verdade; (2) as estratégias de intervenção sobre a existência coletiva em nome da vida e
da morte; e (3) os modos de subjetivação, através dos quais os indivíduos são levados a governar
que se refere às linhas de atuação com as mulheres voltadas para questão da produção e das
ideia de “empoderamento”.
grande presença midiática, desde peças publicitárias de grandes empresas, em discursos oficiais
direito humano, sendo o empoderamento das mulheres uma ferramenta indispensável para
conceito de empoderamento pode ter várias compreensões. Conforme Peter Oakley e Andrew
governamentais, até as agências multilaterais como o Banco Mundial. Dessa forma, o termo
vem se divorciado de uma real compreensão, assim como a literatura que se seguiu (Oakley &
Clayton, 2003.
sendo apropriado posteriormente pela academia, ganhando espaço nas perspectivas que
discutem o poder (Cecília Sardenberge, 2006). No entanto, esse termo não está restrito à questão
de gênero, sendo utilizado em vários campos, como nas políticas públicas, movimentos sociais,
Sardenberge (2006) chama atenção para alguns pontos que considera essencial para
Diana Deere (2002), o processo de empoderamento e busca pela autonomia das mulheres
depende da possibilidade do acesso tanto aos bens econômicos quanto ao poder, o que pode
possibilitar uma modificação das relações desiguais entre homens e mulheres, sendo
Entretanto, nos últimos anos, muitas teóricas feministas vêm criticando a noção de
empoderamento, em especial, da forma que tal conceito é usado por organizações tais quais
99
ONU e FMI (Rute Baquero, 2012). Algumas das principais críticas empreendidas por tais
feministas considera que o empoderamento é, muitas vezes, usado como forma de instrumentar
o trabalho das mulheres e que essa noção refere-se a uma construção de projetos individuais,
aqui de “projetismo”, devido às normativas hierárquicas que são impostas por projetos e linhas
de financiamento institucionais.
promoção da igualdade de gênero tem várias consequências, para além do problema da própria
ideia de “igualdade” a qual discutimos anteriormente. Talvez uma das consequências mais
apoios para a atuação e mediação na agroecologia, essas questões impactam sobremaneira nas
agricultoras, por exemplo, definindo tipos de plantios, metodologias de trabalho e até sistemas
efeitos desses processos nas práticas e organizações locais, efeitos esses que para a feminista
decolonial têm relação direta com a colonização discursiva que ocorre em relação aos
100
feminismos no continente. Tal colonização não é fruto apenas das feministas do Norte ou das
burguesas.
como base o feminismo anglo-saxão (seja radical, liberal ou marxista) para construir suas
concepções podem ser vistas nos projetos executados que partem de uma concepção ocidental
sexualidade.
Além disso, a autora acredita que os feminismos hegemónicos ocidentas têm servido de
base para a instrumentalização dos trabalhos das mulheres pobres, negras e rurais a partir das
projetos “para o desenvolvimento” que passaram a ser prioritário desde o encontro da ONU
do movimento.
Assim, consolidou-se uma “elite feminista” que, em aliança com as lideranças dos
mecanismos transnacionais de tomada de decisões. Isso tem relação direta entre quem é (se
sente) ou não autorizada a falar enquanto feminista. Para a autora, o projetismo cria
Una vez más ellas quedan folcluidas entre los discursos hegemónicos de los planes
neocoloniales e imperialistas pensados para el Sur y los de sus representantes feministas
del Norte y del Sur global. Si la afrodescendiente o la indígena o mestiza, madre o
lesbiana, trabajadora precarizada, campesina o fuera del mercado laboral, estudiante o
analfabeta, monolingüe, bilingüe, expulsada por la pobreza o por la guerra a países del
primer mundo… si ellas son nombradas, si ellas son objeto de discursos y políticas,
aunque las feministas “comprometidas” del Sur y del Norte “hablen por ella”…ella
definitivamente no está ahí (Espinosa-Miñoso, 2009, p. 51).
Já Safira Ammann (2003) vai ressaltar que a mulher se tornou a guardiã moral da
mãe, dona de casa e esposa benevolente. Por isto, os economistas e administradores políticos
políticas de produção agroecológica. A relação dessas esferas pode, entretanto, ser entendida a
partir dos modos de subjetivação que produzem, não só para quem faz parte do movimento,
mas de uma maneira mais ampla na sociedade, uma vez que constroem determinados discursos
Vemos que nos movimentos que compõem a ANA, de maneira geral, há uma primazia
dos debates sobre gênero e classe, ainda que as mulheres construam suas pautas específicas a
102
partir de outros atravessamentos. A participação das mulheres em locais antes entendidos como
público e privado. As mulheres não só serão responsáveis por pautar que as relações “privadas”
são políticas, mas constroem outro conceito mesmo de como fazer política, como veremos a
frente.
apresenta para tratar da esfera interna dos movimentos, mas em menor escala, sendo mais
visível em casos de conflitos específicos. Observação semelhante foi feita por Gomes (2017)
que argumenta que os movimentos de trabalhadoras rurais mobilizam em seus discursos formas
de identicação política.
Junto a Prado (2008), entendo que estes aspectos são definidores do processo de
social implica, em uma visão não essencialista dos elementos psicossociais, em um processo
articulatório que não pode ser determinado nem estruturalmente nem previamente, pois ele
Os discursos dos documentos também podem ser entendidos dentro desse processo,
visto que eles também vão se constituindo e modificando a partir das mobilizações. Isso pode
ser visto na forma como debates que antes não eram mencionados nos documentos produzidos
103
pela ANA, tais como o da interseccição entre gênero e raça, vão ser centrais a partir da
interpelação dos sujeitos em movimento, como pode ser visto na carta produzida no último
ENA que tem no debate de raça um lugar central, com a reinvidicação da identidade política
imbricados em relações coloniais, e desde esse lugar, vão mobilizar identidades políticas de
forma estratégica. Há, nesses conceitos, uma diferença fundamental em relação à concepção de
a identidade política, neste caso, é vista de um lado como uma ferramenta que permite
a unidade do grupo, como movimento de reivindicação de direitos e, de outro, uma
ferramenta produtora de estilhaçamento, estranhamento e resistência frente aos jogos de
forças que imprimem a estagnação em matrizes identitárias fixas a partir da
homogeneização e a normatização dos corpos. A “identidade” passa a ser compreendida
via (des)identificação.
Este processo, entretanto, tampouco pode ser essencializado. Ao mesmo tempo que as
identidades políticas podem servir como modos de subjetivação que rompem com a
mobilizados coletivamente por movimentos sociais e pelas políticas em jogo podem constituir-
se dentro de uma matriz de uma subjetividade militante enrijecida e capturada a partir de uma
atravessamento dos documentos produzidos pelos movimentos sociais que compõem a ANA e
quais as matrizes teóricas e discursivas que vêm sendo mobilizadas nesse cenário, como elas
104
produzem esses sujeitos militantes e como as mulheres jogam e mobilizam esses discursos em
suas lutas.
agroecologia são frutos de debates entre teorias e práticas políticas em um campo de ideias que
vem se construindo entre os feminismos e a ecologia desde, pelo menos, os anos de 1970.
Uma das principais contribuições para esse campo foi dada por Sherry Ortner em seu
texto “Está a mulher para o homem como a natureza para a cultura,” de 1979. Ortner retoma
“universalidade” da subordinação feminina. Para Beauvoir ([1949] 2008), não existe destino
biológico, psíquico ou sócio econômico natural às mulheres que explique o seu status de
inferioridade em relação aos homens na sociedade, mas sim uma construção civilizatória que
qualifica de maneira diferenciada homens e mulheres, sendo o sexo feminino sempre visto
“animalidade” manifesta devida à sua fisiologia ligada aos processos reprodutivos. Com isso,
Ortner acredita que o status secundário das mulheres na sociedade reside na sua identificação
simbólica a algo que é desvalorizado em todas as culturas - a natureza – como algo que
representa o primitivo, inferior. Os homens, por outro lado, seriam identificados com a cultura,
ou seja, são vistos como aqueles que controlam, transcendem e modificam a natureza. Contudo,
por participarem do social, as mulheres seriam reconhecidas como intermediárias entre a cultura
na educação de seres humanos ainda em formação - as crianças - que estariam, portanto, mais
Esse posicionamento será revisto por várias autoras feministas que vão considerar a
relação entre natureza e sexo feminino traçada por Ortner como essencialista, binarista e
assume as críticas levantadas sobre seu trabalho (Guita Grim Debert & Heloisa Buarque de
Almeida, 2006). Por sua vez, Marilyn Strathern ([1980] 2014) vai criticar o uso dos conceitos
ocidentais de natureza e cultura como conceitos universais que se aplicam a todas as sociedades
e possuem a mesma carga simbólica que eles carregam em nosso pensamento, de forma que
conferimos a nossa realidade ao sistema daqueles que estudamos. Para a autora, natureza e
cultura são conceitos extremamente relativizados cujo significado último deve ser derivado de
seu lugar no interior de uma metafisica específica, não existindo, portanto, um significado único
Os diferentes construtos ocidentais acerca dessa dinâmica mostram que, além de uma
oposição estática, a relação entre natureza e cultura pressupõe uma tensão e um processo
coníinuo de constituição mútua. A autora aponta quatro consequências que advêm da equação
entre natureza e feminino: 1) as mulheres são mais naturais que os homens; 2) as faculdades
femininas naturais podem ser controladas por estratégias culturais; 3) as mulheres são
determinado entendimento sobre tais categorias. Como mencionado anteriormente, em que pese
as críticas tecidas ao seu trabalho, Ortner vai influenciar diretamente diversas correntes teóricas
que vão pensar a questão de gênero em sua relação com a questão ambiental, como o
Ambientalismo Feminista e o Ecofeminismo que se destaca nesse cenário como a matriz teórica
106
que vai balizar muitas das discussões dos movimentos de mulheres ambientalistas, tendo se
O termo Ecofeminismo foi usado pela primeira vez por D’Eaubonne em 1974. De
acordo com Siliprandi (2015), D’Eaubonne defende nesse trabalho, de forma até então inédita,
uma proposta claramente feminista para as questões ambientais. Essa autora tratava de uma
natalidade e a forma como o modelo econômico produtivista dominado pelos homens e o padrão
de alto consumo dos países desenvolvidos tinha um caráter sexista e racista submetendo
principalmente as mulheres dos países pobres ao mesmo tempo em que contaminava o planeta
ambientalista.
Terceiro Mundo representado pela indiana Vandana Shiva, vai criticar a apropriação masculina
militar e capitalista na vida das mulheres que por desempenharem o papel do cuidado e da
Um dos seus impactos das ideias ecofeministas pode ser sentido no que Raquel Passos
(2016) chama de ideologia do “familismo” dentro dos movimentos que lutam pela valorização
da agricultura familiar. Para Passos (2016), o “familismo” se traduz em uma visão ideal de
permanecem articuladas por um poder central, exercido pelo “marido/pai”. Essa ideologia
também permeia, de maneira geral, os programas e políticas sociais, onde, o foco está
claramente na figura feminina enquanto mãe, gestante e/ou lactante, sem necessariamente
107
promover a sua autonomia e inserção produtiva, reforçando o papel tradicional da mulher como
feminino.
Autoras feministas, porém, vão criticar essas correntes teóricas por seus caráteres
Paola Bachetta (2009), como teorias de matriz binária, uma vez que não problematizam o
binarismo de gênero, tampouco questionam o determinismo biológico dos sexos aceitado como
algo “natural” (Carcaño Valencia, 2008). Na esfera dos discursos produzidos a partir dos
movimentos sociais, esses eixos teóricos ficam mais difusos, especialmente à medida que
experiências das mulheres não brancas e não-cissexuais e as relações de dupla opressão a que
estão submetidas. No campo da agroecologia a categoria mulher aparece, na maior parte das
vezes, como um dado a priori. São, principalmente, as mulheres negras a interpelarem, através
dos movimentos sociais, esse campo e passaram a tensionar a questão racial e, posteriormente,
Há também uma crítica à visão teórica do Ecofeminismo por seu caráter supostamente
universalizantes sobre gênero e dominação patriarcal, presentes no discurso de boa parte dos
da identidade feminina, por apontarem para um processo de dominação masculina ligado a uma
assimetrias na distribuição de poder, na medida em que sempre um dos termos é mais valorizado
“outro”. É nesta mesma perspectiva que muitas pensadoras feministas argumentam que é
justamente por meio dessas dicotomias que as mulheres têm sido construídas como outras, de
maneira que estão sempre sendo apontadas apenas como tudo aquilo que os homens não são.
Uma terceira chave de leitura que tem sido usado por parte dos movimentos sociais, mas
Para Castro (2009), apesar de exercerem uma prática política diametralmente opostas, o
pautam por leituras acríticas do marxismo, também se aporta a uma mulher proletária genérica,
culturais de opressão. As relações sociais entre os sexos, vetor do conceito de gênero, se bem
que socialmente demarcadas, portanto condicionadas pela estrutura de classes, pela luta de
classes e pelo lugar das mulheres na classe, não definiriam sujeitos sexuados, nem os sujeitos
p. 35).
programas e ações.
109
sociais, uma série de programas e incentivos governamentais passam a ser implementados para
familiar no Brasil, com uma considerável ênfase no reconhecimento das mulheres nesse
– Planapo de 2013, que têm como uma de suas diretrizes a redução das desigualdades de gênero,
por meio de ações e programas que promovem a autonomia econômica das mulheres. De acordo
com o Planapo:
cidade de Juazeiro – Bahia, foi lançada a Carta das Mulheres da Agroecologia, construída a
partir da plenária das mulheres da ANA. A carta, intitulada “Sem feminismo, não há
mulheres da ANA trazem à tona não só o debate sobre o modelo de desenvolvimento capitalista,
perpassam as áreas rurais, os estudos sobre campesinato apontam para assimetria de poder entre
visto como o “chefe” da família, responsável por organizar a produção e tomar as decisões a
ela relativas (Costa, Dimenstein & Leite, 2014; Beatriz Heredia & Rosangela Citrão, 2006). Por
família existente, em direção a uma proposta mais democrática que respeite todos os sujeitos
em seus desejos e necessidades (Siliprandi, 2015). O mesmo pode ser pensado no contexto da
agroecologia urbana, que também vai trabalhar com a ideia de resgate dos valores tradicionais
na esfera da cidade, entendendo mulher como aquela que mais sofre com a degradação
Autoras como Júlia Serrano (2014), Siliprandi (2015) e Jalil (2009) vêm apontando que
os projetos agroecológicos possibilitam um maior empoderamento das mulheres, uma vez que
dão visibilidade e abrem espaço para valorização do seu trabalho, por tratar-se de um sistema
nos quintais, espaço historicamente ocupado pelas trabalhadoras rurais. Além disso, ao
16
Um dos aspectos mais importantes do modelo agroecológico é a revitalização da “cultura camponesa”, com o
“resgate dos valores que os camponeses construíram ao longo de sua história, tendo como base a solidariedade e
igualdade entre si” (Silipandri, 2009, p. 243)
111
Entretanto, o processo de transição agroecológico, por si só, não parece suficiente para
uma mudança efetiva nas relações familiares e de gênero e da divisão sexual do trabalho no
campo. Siliprandi (2015) questiona até que ponto as propostas de mudanças nos modelos
produtivos conseguem romper com as formas tradicionais de família, onde as relações de poder
entre os seus membros estão rigidamente estabelecidas, e se as práticas agroecológicas são mais
agroecológica, no entanto, uma vez que tal produção passava a gerar lucro, era comum que o
recurso fosse administrado pelos maridos e/ou que os homens tomassem a frente do processo.
Já Patrícia Mourão (2008) mostra que, mesmo em comunidades onde todos se engajam em um
tipo de produção agroecológica, ainda é presente a divisão sexual do trabalho em que os homens
se encarregam da produção de produtos que trazem mais lucro, enquanto às mulheres é dado o
trabalho da produção alimentar da família. É importante também considerar que, muitas vezes,
a participação das mulheres em movimentos políticos e sua inclusão produtiva pode significar
um aumento da carga de trabalho para as mesmas ou acentuar uma série de conflitos na esfera
privada.
agroecológico são diferentes para homens e mulheres, o que se constitui, muitas vezes, em
diferentes projetos que nem sempre dialogam entre si. Processo semelhante é apontado por
Schwade (2014) que, ao estudar a trajetória de mulheres militantes do MST, percebeu que a
visual, nos discursos, pautas, etc. Dentro da ANA e em várias das redes que a compõem é
cuidado feito através de plantas medicinais, entre outros. Para além dessas pautas, comuns ao
debate central presente nas plenárias foi o fortalecimento da perspectiva feminista dentro do
e sempre pautar o debate das mulheres nos espaços do movimento, indo além da equidade
agricultura familiar, além de trazer aportes das suas experiências, visibilizar o protagonismo,
feminista, esse é um termo que estará presente em quase todas os debates e bandeiras de luta
das trabalhadoras rurais dentro da Marcha, sendo que no chamamento oficial da Marcha
realizado pela Contag, a palavra feminista só aparece duas vezes, quando são apresentados em
Em uma das plenárias realizadas na Marcha, cujo tema era agroecologia, onde mulheres
lançaram uma carta em que declaram seus princípios e objetivos, o feminismo vai estar presente
agroecológico, mas também trazendo à tona as desigualdades de gênero com que se confrontam
espaços públicos que dificulta nossa livre circulação pela cidade, as violações de direitos no
campo da saúde, dentre outros (Ver Figura 817). Nesse momento também foi lançada uma
moção de repúdio ao Projeto de Lei (PL) 5069/13 que dificulta o atendimento a mulheres que
17
Todas as imagens foram feitas por mim, salvo quando forem referenciadas.
114
refere à não naturalização do trabalho do cuidado como uma responsabilidade das mulheres. As
Essa ideia, relacionada à imagem do instinto materno e do cuidado pode ser bonita, mas
às vezes viola nosso direito de escolher os papéis que queremos assumir tanto na
agricultura e na produção como nas nossas próprias vidas e no mundo, reproduzindo a
sobrecarga de trabalho sobre nós. Não podemos afirmar de antemão o papel das
mulheres como as grandes cuidadoras de todos e tudo. Pois, muitas vezes, isso não é
uma escolha e nos deixa de fora nos papéis de tomada de decisões, nas falas e na
ocupação de espaços políticos. Precisamos romper com a construção social do que é ser
mulher, e qual o seu papel.
Dessa forma, percebe-se uma problematização das ideias propagadas por algumas
mulheres oriundas dos meios urbanos evidenciam a tensão existente entre as diferentes
temas que historicamente foram vistos como tabu dentro do movimento de mulheres
115
camponesas, como a visão do aborto como uma questão de saúde pública e direito das mulheres
ao seu corpo, sendo utilizada constantemente a ideia de direito ao corpo como metáfora para a
questão de direito aos territórios em disputa no campo. Assim, vemos que a ideia de corpo
feminista como um todo, desponta dentro da agroecologia e do discurso ambientalista com uma
chama atenção para as interseções que esses movimentos trazem em suas bandeiras de luta e os
múltiplos engajamentos políticos das pessoas que compõem esse cenário. Nesse sentido, vemos
que os discursos sobre gênero e o entendimento sobre o que é feminismo são muito diversos e
subjetividades dos sujeitos que a formam e quais são, de fato, os impactos desse modelo de
Nesse sentido, vale questionar até que ponto os princípios subjacentes a tais leituras –
naturalizar o cuidado das mulheres com o meio ambiente, mesmo considerando o caráter
De maneira geral, percebemos com as analises dos documentos realizada nesse capítulo,
que as normativas das agências internacionais, especificamente a partir da ONU, tem grande
peso na formulação não só das ações de organizações que trabalham diretamente com os
organismos através de seus fundos de investimento, mas também dos próprios movimentos
sociais que hora se autonomizam, hora contam com a ação de instituições mediadoras como
116
organizações não governamentais para desenvolver suas ações. Na esfera específica da ANA,
essa institucionalização esteve diretamente ligada aos governos dos Partidos dos Trabalhadores,
o que também teve grande impacto no que foi construído enquanto política e programa de
agroecologia.
em todas as esferas, sem questionamentos sobre tais conceitos, apesar de haver uma
igualdade e desenvolvimento como objetivo a ser alcançado na luta das mulheres. Por outro
lado, os documentos da FAO não questionam tais conceitos e incentivam a produção individual
sobre o que é ser mulher na agroecologia, com ênfase à esfera do cuidado familiar.
Janeiro.
117
dos seus marcos históricos mais importantes; no segundo segmento abordo como a
agroecologia chega nos meios urbanos e suas contribuições; na terceira apresento uma
cidades ao refletir sobre a produção de subjetividade e políticas; na última seção construo uma
agroecologia urbana que se constitui a partir dos movimentos sociais de agricultores familiares
No período após a 2ª Guerra Mundial, dá-se a emergência de novos temas nas pautas
sociais e políticas globais, entre eles a pauta ambiental que ganha força a partir da percepção
dos efeitos da atividade capitalista com o aumento da poluição, contaminação dos solos, da
social provocada pelos sistemas socioeconômicos vigentes, a diferença no acesso aos recursos
naturais e ao conhecimento.
Em 1962, Rachel Carlson publica seu famoso livro Primavera Silenciosa, no qual
questiona o modelo agrícola convencional e sua crescente dependência do petróleo como matriz
de Roma em 1972, “Os limites do crescimento,” que foi responsável por mudar a direção dos
debates ambientais que vinham se desenvolvendo na esfera internacional até então, trazendo à
contribuir para levar a crítica ao capitalismo industrial à esfera pública e promover um ideário
crescimento do movimento de Agricultura Alternativa no país que ganha força com a realização
de três Encontros Brasileiros de Agricultura Alternativa (EBASS), nos anos de 1981, 1984 e
1987. Segundo Bernal e Martins (2015), os dois primeiros EBASS concentram-se no debate
acerca dos aspectos tecnológicos e na degradação ambiental provocada pelo modelo agrícola
trazido pela Revolução Verde, o que se refletia nas diversas correntes de agricultura alternativa
que surgiram naquela época: agricultura orgânica, agricultura biodinâmica, agricultura natural,
pauta do debate sobre a produção de alimentos em todo o mundo (Airton Pianna, 1999).
Ainda nos anos de 1970/1980, vemos a retomada dos movimentos camponeses e das
lutas sociais no campo, a partir da abertura democrática. Surgem importantes movimentos como
crítica, as transformações que ocorriam no campo e uma proposta para uma agricultura
mais combativo, popular e sindical a partir do Movimento Seringueiro que, através da liderança
de Chico Mendes18, vai lutar pela criação de reservas extrativistas pautando a importância da
Nos anos seguintes, na década de 1990, surgem diversas ONGS que objetivam pensar
em 1992, é realiza no Rio de Janeiro a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente
conferencia vai colocar a pauta ambiental no centro da agenda política internacional com o
18
Líder do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, no Acre, do qual foi presidente até seu assassinato em
1988, devido à sua luta em prol da proteção do meio ambiente na Amazônia.
120
(CLADES). No final dos anos 90, surgem a Rede Ecovida de Agroecologia e a Articulação no
Semiárido Brasileiro (ASA). Inicia-se no Brasil, a partir dos anos 2000, os Encontros Nacionais
Agroecologia (ABA).
terra ligados à Via Campesina, como o MST, o Movimento de Pequenos Agricultores (MPA)
e o MMC, que entendem a agroecologia como uma estratégia de luta em prol da justiça
socioambiental, sendo essa uma de suas principais bandeiras de luta. Para Felipe José
agrícola, fazendo com que o Brasil se tornasse líder mundial no consumo de agrotóxicos
socialmente injusta tem, dessa forma, levado à exaustão dos recursos naturais disponíveis e a
Podemos dizer que existem no Brasil pelo menos dois campos e entendimentos
polissemia reflete a abrangência desse debate, que gradativamente vem ganhando espaço
também no que se refere às discussões na esfera ética e política (Luiz Antonio Norder et al.,
2016).
Nas últimas duas décadas a agroecologia brasileira foi caracterizada pela questão
ambiental (tecnologias produtivas e de manejo dos recursos de baixo impacto), pela justiça
políticas públicas. A primeira lei brasileira sobre a agricultura ecológica data de 1999 e, poucos
anos depois, em 2003 o termo agroecologia é incluído como parte dos sistemas orgânicos de
produção na Lei nº 10.831 que dispõe sobre o sistema orgânico de produção agropecuária.
Na esfera global, a FAO e a Organização Mundial de Saúde (OMS) vêm pautando, cada
vez mais o debate da agroecologia como uma questão de saúde e de segurança alimentar.
Dilma Rousseff do Partido dos Trabalhadores e com a emergência dos governos de esquerda
em toda a América do Sul que a agroecologia passa a estabelecer-se enquanto política de Estado
Essa institucionalização da agroecologia vem sendo vista com cautela por movimentos
de base com o uso dos saberes agroecológicos na perspectiva do uso técnico para os interesses
do capital. Em entrevista cedida ao site do MST19 em 2015, Peter Rosset, liderança da Via
Campesina internacional, frisou que a questão agroecológica vive um cenário de disputa com
19
Disponível em: http://www.mst.org.br/2015/06/26/via-campesina-critica-apropriacao-da-agroecologia-pelo-
capital.html
122
dois processos distintos: o da institucionalidade a partir dos simpósios da FAO em que a aposta
é consolidar uma agroecologia comercial; e o dos movimentos sociais, composto por uma série
de saberes entre diferentes setores da sociedade, tais como os povos originários e trabalhadores
Nesse sentido é notório que nos últimos anos a economia verde tem se apropriado do
Programa das Nações Unidos para o Meio Ambiente (PNUMA) como uma economia que
ambiental, o que também dá-se o nome de desenvolvimento sustentável (Rede Jubileu Sul
Brasil, 2012).
A economia verde (ou desenvolvimento sustentável) tem sido chamada por diversos
pela mercantilização dos recursos naturais que ela pressupõe. Para Sevilla Guzmán e Gonzalez
Molina (2005):
A única solução para o problema socioambiental que atravessamos está num manejo
ecológico dos recursos naturais, em que apareça a dimensão social e política que traz a
agroecologia e que esteja baseada na agricultura sustentável que surge do modelo
camponês em sua busca por uma soberania alimentar (Guzmán & Molina, 2005, p. 11).
outras formas de lidar com a questão socioambiental para além do modelo de desenvolvimento
maior sobre a questão ambiental e vai ganhando diversos contornos na medida que diferentes
pela agroecologia abre espaço para novas formas de viver a questão ambiental não só no que se
refere à produção agrícola no meio rural, mas também sobre como incorporar a agroecologia
familiar deve-se ao seu caráter essencialmente complexo e multifuncional, não sendo apenas
uma forma de produção, mas um modelo de reprodução da vida. Sua heterogeneidade pode ser
Em termos gerais, podemos dizer que a agricultura familiar constitui-se como um modo
de produção onde trabalho, terra e família encontram-se intimamente relacionados. Nas duas
últimas décadas ocorreram mudanças em termos de políticas públicas para a agricultura familiar
no Brasil. Em síntese, de acordo com Catia Grisa e Sérgio Schneider (2015), num primeiro
momento, essa forma social passa a ser vista como relevante na produção de alimentos e na
dessa agricultura, é criada uma série de programas cujos referenciais são sociais e assistenciais,
voltados para o enfrentamento à pobreza rural. A terceira geração das políticas públicas para a
e sindicais.
É evidente que a luta por direitos empreendida pelos movimentos sociais vem resultando
apesar dos avanços, essas políticas ainda não contemplam a heterogeneidade de atores e
Não são raros os casos de localidades com forte potencial agrícola que foram engolidas
pela crescente urbanização. Com isso, as famílias cujo sustento depende da atividade agrícola
e têm suas propriedades localizadas em área urbana, sofrem diversas ameaças para sua
violência, segregação espacial e ausência de mobilidade. Além disso, suas dificuldades são
Por outro lado, a proximidade com um grande mercado consumidor pode ser vista como
uma oportunidade para garantir a sobrevivência dessa produção. Ademais, a agricultura urbana,
apoiada pelo poder público, pode contribuir para a segurança e soberania alimentar de
essas famílias para garantir seu sustento através da atividade agrícola, mas os estudos sobre
Urbanization Prospects) produzido pela Divisão das Nações Unidas para a População do
Departamento dos Assuntos Económicos e Sociais/United Nacion Division for Economic and
125
Social Affairs (DESA, 2015), 54% da população mundial vive em áreas urbanas, uma proporção
que se espera venha a aumentar para 66 % em 2050. O relatório também aponta para a previsão
informais. Dados da FAO (2009) mostram que os pobres urbanos, em especial mulheres e
crianças por razões que discutiremos à frente, são os mais afetados no que refere a falta de
importados ou trazidos de áreas rurais cada vez mais distantes dos centros urbanos, estando
e trabalho têm contribuído para o aumento da desnutrição e de doenças crônicas. Tais números,
somados ao agravamento das crises climática, energética, alimentar e social, que vem ocorrendo
nas cidades vêm aumentando e ganhando visibilidade em todo o mundo. Para Adriana Aquino
e Renato Assis (2007), a associação quase instantânea que é feita entre agricultura e meio rural
pode levar a uma impressão de incompatibilidade entre agricultura e meio urbano, entretanto,
a AU não é uma atividade recente e sempre se expressou nas áreas urbanas, mesmo que muitas
etc.
apresenta como uma estratégia que pode contribuir para o desenvolvimento de cidades
produtivas e ecológicas, que promovam segurança alimentar e nutricional. Para além da questão
alimentar, a prática da AU está relacionada também com o lazer, a saúde, a cultura, a economia
(PNUD) e pela FAO, além de diversas organizações não governamentais e governos do mundo
inteiro. A questão conceitual da AU passa pelo questionamento sobre o que há de próprio nessa
prática, para que ela seja considerada objeto de investigação e de políticas específicas. De
de serviços para gerar produtos agrícolas e pecuários voltados ao auto consumo, trocas e
e insumos locais (solo, água, resíduos, mão-de-obra, saberes etc.), em espaços interurbanos,
e articuladas com a gestão territorial e ambiental das cidades. É importante destacar que não é
a localização urbana que distingue a agricultura urbana da agricultura rural, senão o fato de que
está integrada e interage com o ecossistema urbano (Aquino & Assis, 2007).
No Brasil diversos atores sociais têm se mobilizado em torno da prática de AU, como o
beneficiários do Programa Bolsa Família, etc., entretanto, como mostra Bruno Prado (2012),
essa agricultura ainda tem sido pouco valorizada, ou até desconsiderada, pelo poder público,
agricultura familiar. Isso pode ser expresso pela ausência de uma Lei ou marco regulatório da
127
Isso acontece porque mesmo se enquadrando no perfil necessário para emissão da DAP,
realizando atividade agrícola de base familiar, o fato desses agricultores estarem mais próximos
à realidade urbana põe em cheque alguns critérios utilizados para acessarem este documento,
em especial naquelas cidades onde o Plano Diretor Municipal não reconhece existência de áreas
rurais.
Diante dessas questões, o conceito de AU vêm ganhando uma força nos últimos anos,
fazendo com que vários produtores se identifiquem como agricultores urbanos e se organizem
animais durante todo o ano, baseadas em práticas sustentáveis que permitem a reciclagem dos
especialmente apropriado para o contexto urbano posto que: a) a baixa dependência de insumos
20
Atualmente um projeto de lei, o PL 906/2015, que busca regular a AU no país está em tramitação na Câmara dos
Deputados.
128
para as famílias produtoras ao agregar valor aos produtos e ampliar o mercado, facilitando a
manter e/ou recuperar a biodiversidade dos agroecossistemas do entorno (Aquino & Assis,
2007).
discussão sobre os modos de vida promovidos pelo espaço urbano em sua relação com o rural,
relação esta que por muito tempo foi compreendida a partir da ideia de uma oposição mútua.
Prado (2015), entretanto, traz um debate interessante sobre tal relação a partir de um conjunto
da Sociologia Rural clássica que previam o inexorável desaparecimento das comunidades e dos
coletivas de consumo e das feiras agroecológicas, sinalizam para o público das cidades uma
territoriais, etc.
21
Assim, ao mesmo tempo em que o Capitalismo Mundial Integrado amplia a
direito à cidade, os movimentos pela reforma agrária e o movimento de AU, que não possuem
um formato único e tão pouco têm causas inteiramente comuns, mas mobilizam sujeitos e
coletivos, tanto nos campos quanto nas cidades, evidenciando a grande confluência das crises
Nesse sentido, faz-se necessário ampliar o debate acerca das conexões entre rural e
desenvolvida no âmbito dos estudos sobre desenvolvimento rural, vem ganhando novos
contornos a partir do século XXI, pois, como nos aponta Carneiro (2007), a noção de dualidade
entre o rural e o urbano tem se demonstrado limitada e insuficiente para dar conta da realidade
Se os espaços rurais já foram compreendidos como áreas cuja principal função era
mudanças em curso nas dinâmicas sociais, econômicas e culturais do meio rural, a partir dos
21
Conceito de Guattari (1989) que se refere a produção de subjetividade e sistema de governo no contexto global.
130
se desestabilizam, impossibilitando a definição de uma fronteira clara (Prado, 2015; Maria José
Carneiro, 2008).
e final de uma mudança qualitativa” (Sahlins, 1997, p. 113). Pelo contrário, para Sahlins (1997)
que a expansão da sociedade industrial e a adaptação à cidade não significam uma opção por
esse modo de vida. Seja no caso das migrações do campo para a cidade ou em localidades que
existe uma relação de troca intensa entre esses universos, os sistemas simbólicos de referência,
como mostra o autor, quase sempre remetem à terra natal ou ao contexto local de partida, como
fonte de valores e de identidades herdadas que conforma as ações e atitudes de quem vive fora.
território vivo de Milton Santos (2008), entendemos que o território é o lugar de construção de
relações pessoais, sociais, políticas e culturais que influenciam o modo da vida das pessoas que
o habitam.
vivenciam, resultando diferentes modos de apropriação do espaço. Como reflexo das relações
sociais, os territórios são objetos e agentes de mudanças sociais e, portanto, devem ser
compreendidos como realidades vivas que ganham sentido pelo habitar de seus moradores. De
e subjetivas, pois são lugares de experiências vividas através dos significados e representações
simbólicos, sendo a agroecologia uma expressão dessa mútua constituição. Nesse sentido, ao
pensar a agroecologia nas cidades, como apontam Júlio Suzuki e Vincent Berdoulay (2016), já
(...) do seu significado utópico de outra cidade, em que se busca criar outra relação com
o verde e a biodiversidade, bem como de estabelecer novos parâmetros de relação entre
os citadino e com o ambiente urbano, em que a ajuda e a troca de conhecimentos, tão
presentes na tradição rural, estejam presentes na expansão da agricultura urbana em suas
diversas e variadas faces como mediação necessária para o futuro da sociedade urbana,
semeando cidades novas cidades (Suzuki & Berdoulay, 2016, p. 11).
As cidades são invenção humana por excelência. Nelas, a humanidade refaz o mundo
em que vive, a partir dos seus desejos, e é nela que esta humanidade está condenada a viver
(Robert Park, 1973). Como argumentam Manuela Romero e Maria Helena Zamora (2016), é
Com suas infinitas possibilidades e acontecimentos, as cidades são espaços privilegiados para
mesmo sentido, vários autores de diferentes áreas, como Arquitetura, Urbanismo, Psicologia e
urbana, que é pautada por princípios segregadores e despolitizadores, que lhe conferem um
sentido mercadológico, turístico e consumista (Fabiana Britto & Paola Jacques, 2009).
por meio de uma arquitetura espetacular e um urbanismo integrado aos padrões éticos e
estéticos da mundialização (Izabela Teobaldo, 2010). Esse processo tem como efeito o
empobrecimento da experiência urbana dos seus habitantes e, à medida que os espaços públicos
vão sendo esvaziados, a cidade aos poucos deixa de ser o espaço da diversidade, com um
progressivo abandono do social e da urbanidade ou, como aponta Eliana Kuster (2014, p. 54),
“uma decadência do sentido de cidade”. Para Britto e Jacques (2009), esse modo de
mesmo, fundamentam desde os planejamentos e ações da administração pública das cidades até
(Fernanda Amador & Daniel Fernandes, 2016). Questionamo-nos, dessa forma, sobre as
133
alargam, surgem, cada vez mais, estratégias de resistência que articulam direito, cidade e bem-
estar como diferentes expressões de uma ética que tem como ponto de partida a experiência da
diferença (Rodrigo Silva, 2003). Esses processos de resistência têm sido comumente abarcados
a partir da ideia de direito à cidade. Esse conceito, amplamente utilizado por movimentos
O conceito de direito à cidade surge com o filósofo e sociólogo marxista francês Henri
dos cidadãos das questões urbanas, encaradas exclusivamente a partir dos vieses administrativo,
urbanísticas, por meio das quais o Estado ordena e controla os indivíduos, que são vistos
enquanto objetos e não como sujeitos do espaço social. Para além do debate acadêmico, em
todo o mundo, o direito à cidade tem sido utilizado para reivindicar questões tais como o direito
à moradia, saneamento básico e mobilidade, além de ser utilizado como forma de defesa às
No Brasil, o movimento pelo direito à cidade ganha força por meio do Movimento
Nacional de Reforma Urbana (MNRU), que em sua articulação consegue, junto a outros
da implementação, em 2001, do Estatuto das Cidades, que institui a política urbana brasileira e
134
serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações [...]” (Lei Federal
nº 10.257, 2001).
culturais, étnicas, de gênero e idade – de satisfazer suas necessidades básicas” (Carta Mundial
Pelo Direito a Cidade, 2006, p. 1). Como consequência, os novos atores que se agregaram às
lutas urbanas no período recente, para além de defender a implementação do Estatuto da Cidade,
passaram a difundir o direito à cidade como forma de unificar pautas que possuem formas de
expressão fragmentadas. Essa nova narrativa tem sido bem recebida e potencializada nos
espaços de articulação política, com destaque para aqueles que reúnem acadêmicos,
É importante ressaltar que o direito à cidade não pode ser resumido aos objetivos e
direitos individuais de ordem prática, tais como moradia e transporte, mas precisa considerar a
O direito à cidade está muito longe da liberdade individual de acesso a recursos urbanos:
é o direito de mudar a nós mesmos pela mudança da cidade. Além disso, é um direito
comum antes de individual já que esta transformação depende inevitavelmente do
exercício de um poder coletivo de moldar o processo de urbanização. A liberdade de
construir e reconstruir a cidade e a nós mesmos é, como procuro argumentar, um dos
mais preciosos e negligenciados direitos humanos (Harvey, 2012, p. 74).
Nesse sentido, esse conceito nos instiga a pensar sobre quais resistências podem ser
experienciar e pensar a cidade, não só como práticas individuais, mas principalmente enquanto
135
no título da carta política do I Encontro Nacional de Agricultura Urbana (ENAU) 22, realizado,
como uma das frentes de trabalho da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), principal
país.
É nesse sentido que podemos pensar, para além do conceito de “novas ruralidades” –
possibilidades do rural para além da esfera da produção agrícola –, uma ideia de “novas
AU, no que se refere à promoção de segurança e soberania alimentar, é a desenvolvida por Cuba
desde os anos de 1990. A ilha possui uma política pública nacional de produção de alimentos
22
“Agricultura Urbana e Direito à Cidade: Cultivando Saúde e Comida de Verdade”.
136
onde, desde 2003, por meio de uma política municipal de apoio a um sistema alimentar “justo
agricultura urbana como uma prioridade-chave para o desenvolvimento local, com impactos
socioeconômica.
mais de 30 países. As ações desse movimento incluem a ocupação de áreas ociosas nas cidades
para o desenvolvimento de hortas coletivas com a produção voltada para o consumo dos
bairros periféricos ou de áreas extremamente urbanizadas, com pouca área verde disponível.
Com mais de 30 anos, esse movimento contabiliza importantes ganhos, com a desapropriação
e construção de parques e áreas próprias para plantio reconhecidas pelo Estado em cidades
No Brasil, metrópoles como São Paulo e Belo Horizonte possuem políticas municipais
23
Ver http://www.guerrillagardening.org/.
137
O Rio de Janeiro é a segunda maior cidade do país e conta hoje com aproximadamente
acordo com levantamento do Sos Mata Atlantica e Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
(Sos Mata Atlantica & INPE, 2015), o Rio de Janeiro ainda conta com uma área de mata
atlântica de 30%, considerada alta em uma grande metrópole. Entretanto, suas áreas verdes e
cultiváveis, assim como dos demais municípios da região metropolitana, vêm sofrendo drástica
ocupações informais.
A sua maior área verde encontra-se na zona oeste que abriga alguns dos bairros mais
nobres da cidade como Barra da Tijuca e Recreio dos Bandeirantes, mas é composta em sua
maioria por bairros periféricos ou com características periurbanas. Essa região é cortada por um
grande maciço florestal, o Maciço da Pedra Branca que atravessa 17 bairros da cidade (ver
Figura 1). Considerada a maior reserva florestal urbana do mundo é no território do Maciço da
Pedra Branca – área que já foi conhecida como o Sertão Carioca, por contar com um grande
município – que está concentrada boa parte da produção da agricultura familiar da região. No
entanto, a paisagem rural do entorno vem dando lugar a loteamentos urbanos periféricos
impulsionados pela especulação imobiliária, pela política de remoção de favelas das áreas
nobres da cidade para a periferia, e pela implantação de polos industriais e grandes eventos
Figura 2. Vista aérea do Maciço da Pedra Branca (Fonte: Atlas das Unidades de Conservação
políticas públicas voltadas para a agricultura familiar. Além da natureza exuberante, guarda
parte da história e da memória do Rio de Janeiro. Ali vivem descendentes de populações vindas
estão presentes muitos descedentes de migrantes europeus que se instalaram na região no século
XIX.
de Rio da Prata (bairro de Campo Grande), Taquara, Ilha de Guaratiba e Vargem Grande
(|Annelise Fernandez, 2014). Estima-se que existam cerca de 120 pequenos produtores no
Maciço da Pedra Branca, os quais, ainda que em condições extremamente desfavoráveis e sendo
quase desconhecidos para a maior parte da população da cidade (Bruno Prado, Claudemar
Mattos & Annelise Fernandez, 2012). Seu sustento é baseado na produção e comercialização
139
bertalha. Quanto ao processo de ocupação desse território Fernandez nos conta que:
Em 1974, uma parcela significativa deste território foi transformado em Parque Estadual
da Pedra Branca (PEPB), totalizando cerca de 16% da área do município. Pode-se
entender a criação desta unidade de conservação como uma interferência do Estado
sobre as disputas entre os usos rurais e urbanos que ali se estabeleceram desde a década
de 1930 e que, na década de 60 e 70, se tornam marcantes, com a integração viária da
cidade, a expansão e consolidação das relações capitalistas no país as quais se refletem
no plano da cidade e alteram o lugar e a importância desta pequena agricultura no
conjunto das atividades econômicas desenvolvidas (Fernandez, 2014, pp. 1-2).
Na vertente de Vargem Grande do Maciço – área onde reside a maior parte das minhas
interlocutoras - a banana é o item mais importante para o sustento das famílias. Considerada
também podem ser comercializados, como: macaxeira/aipim, milho, chuchu, jiló, limão e
taioba.
De acordo com Oliveira (2016), a prática agrícola dessas famílias possui fortes traços
impacto, formas equitativas de organização social e traços culturais que são seletivamente
reafirmados e reelaborados” (Juliana Santilli, 2005, p. 15). Um exemplo disso são as práticas e
2018.
141
Não existem, de acordo com o plano diretor municipal, áreas consideradas rurais na
cidade do Rio de Janeiro, de forma que a categoria AU é abraçada por boa parte dos agricultores
agricultura familiar.
Com base no Estatuto da Terra, lei elaborada em 1964, a destinação dada ao imóvel é
que o define como sendo imóvel rural ou urbano. A prática das atividades no meio rural deve
agricultor que desenvolve suas atividades em “imóvel rural”, mas, localizado no “meio urbano”
atende as condições para se enquadrar como agricultor familiar ou empreendedor familiar rural
(Oliveira, 2016).
e, principalmente, da Rede CAU, movimento surgido em 2009 que se insere dentro da ANA e
do CNAU com a missão de fomentar a agricultura nos espaços urbanos reunindo mais de 30
relações presentes no território construídas pela atuação em rede desses coletivos. Essas
experiências nos fazem reconhecer que há muito mais trabalhadores rurais do que imaginamos
mesmo nas cidades e nos espaços mais urbanizados (Jan D. Ploeg, 2008).
24
O último Censo agropecuário foi realizado entre os anos de 2017 e 2018, entretanto seus resultados finais e
detalhamentos de dados por municípios ainda não estão disponíveis.
142
Uma das estratégias da Rede CAU é o fortalecimento das organizações dos agricultores
familiares no município, especialmente na região do Maciço da Pedra Branca que conta com
1986 e refundada em 1998 por incentivo da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural
(Agroprata), criada em 2003, por estímulo da ONG Roda Viva; e a Associação de Agricultores
25
Recuperado de http://aspta.org.br/wp-content/uploads/2015/10/catalogo_PRODUTOS-DA-GENTE_web.pdf.
143
produtores criaram a primeira feira do gênero da cidade: a Feira Orgânica de Campo Grande.
sistemas agroalimentares, como nos conta Fernandez (2014). Já a Agrovargem, entre essas
associações, destaca-se por ser a mais atuante politicamente e contar com o maior número de
agricultores familiares envolvidos, tendo trinta famílias associadas e que participam ativamente
da Rede CAU.
Apesar de alguns dos produtores que integram a Rede CAU participarem do Circuito
Carioca de Feiras Orgânicas26, a Rede vem assumindo um papel crítico à tal circuito de
comercialização apontando que, apesar de venderem alimentos orgânicos, essas feiras não têm
caráter agroecológico, contando com muitos atravessadores que não levam em consideração a
perspectiva da economia solidária, não dão preferência aos produtos locais e, em geral, cobram
em bairros considerados de classe média alta como Botafogo e Flamengo, os preços dos
supermercados, que chegam a custar 300% a mais do que os alimentos convencionais como nos
26 “O Circuito Carioca de Feiras Orgânicas é fruto de parceria entre organizações da sociedade civil e a SEDES
(Secretaria Especial de Desenvolvimento Econômico Solidário), da Prefeitura do Rio de Janeiro. O Circuito
Carioca agrega produtores e comercializadores de alimentos orgânicos (livres de agrotóxicos) com o objetivo de
ofertá-los à população de maneira direta e por valores mais acessíveis. Atualmente quatro organizações são
responsáveis pelo Circuito: ABIO, que coordena as feiras orgânicas dos bairros Glória, Ipanema, Leblon, Peixoto,
Barra da Tijuca I, Jardim Botânico, Tijuca, Leopoldina e Arpoador; ESSÊNCIA VITAL, que coordena as feiras
orgânicas dos bairros Flamengo, Botafogo, Laranjeiras, Urca e Tijuca II; AS-PTA, que coordena a feira orgânica
da Freguesia; AULA, que coordena a feira da Ilha do Governador. A SEDES permanece em diálogo democrático
com outros grupos ligados à agroecologia e trabalha pela ampliação do Circuito com sua chegada em novos bairros
cariocas”. Retirado de https://www.google.com/maps/d/viewer?hl=en_US&mid=15uXgybFEblF-
1N6Hv_TW2NMCPxU.
144
mostra a pesquisa realizada por Instituto Terra Mater (2016). Naturalmente, nessas feiras é
comum a circulação de um público mais restrito e elitizado, movido por questões que envolvem
movimento social constituído por grupos de consumidores que, visando o consumo ético,
solidário e ecológico, realizam compras coletivas diretamente dos pequenos produtores; e das
Campo Grande, a Feira Orgânica da Leopoldina, Feira da Roça de Nova Iguaçu e a Feira Josué
Guapimirim e de Magé.
anteriormente. Elas se localizam em bairros mais afastados do Centro e da Zona Sul carioca e
mais próximos aos produtores, reforçando a produção e comércio locais. Como consequência,
tem-se preços mais baixos nos produtos e um público de consumidores mais diversificado no
que se refere à classe social, aos bairros de onde vêm e à consciência ou não acerca da questão
ambiental.
comprados direto dos produtores. Além disso, são momentos de socialização, trocas e encontros
entre produtores, consumidores e população local, que suscitam uma série de acontecimentos.
massagem, etc. (Ver Figuras 5 e 6). Nas palavras de Silvia, militante da Rede CAU e integrante
Figura 6. Barraca na Feira Orgânica do Rio da Prata, Campo Grande – Rio de Janeiro, 2016.27
27
Fonte: Feira Agroecológica de Campo Grande – RJ, 2016 (Página de Facebook).
146
Figura 7. Festa de São João durante a Feira da Roça de Vargem Grande – Rio de Janeiro,
2016.
certificação através do controle social, sociedade civil e órgãos do estado, da produção orgânica.
Por não se tratar de uma certificação privada e de custo elevado, tal qual a Certificação IBD de
Produtos Orgânicos, o SPG ajuda os agricultores a diminuirem seus custos repassando seus
produtos por um valor mais baixo ao mercado, chegando, a depender do produto e da época,
A Rede CAU também conta com alguns grupos de trabalho temáticos que ajudam a
organização interna do grupo em torno das mais diversas pautas. Nesse sentindo, destaca-se
dentro da Rede que as mulheres vêm assumindo um importante papel ao formarem um grupo
de trabalho só para discussão desse tema. Além de serem a maioria, elas também protagonizam
a luta na forma de lideranças. No ano de 2015, as mulheres da Rede CAU se juntaram a outros
147
onde são elaboradas alternativas para a agricultura urbana a parir de uma perspectiva de gênero.
Rio de Janeiro, ainda não há, um programa ou política em nível estadual e/ou municipal de
incentivo direto à AU no Rio de Janeiro, sendo essa a maior bandeira de luta da Rede CAU e
de todos envolvidos. Só recentemente, no ano de 2013, após pressão da sociedade civil, foi
criada a Secretaria Especial de Abastecimento e Segurança Alimentar (SEAB) que tem como
Rio de Janeiro é resultado de um longo processo de disputas pelo poder de definir usos no
detrimento do rural e do agrícola e da ideia da cidade como um espaço plural, voltado para
todos os tipos possíveis de usos e ocupações. Dessa forma, a agroecologia urbana representa
imobiliária que ocorrem em todas grandes cidades brasileiras, especialmente no Rio de Janeiro
– que hoje em dia possui os valores de metro quadrados mais caros do país – como mostra a
Com isso, vemos que agricultura urbana de base agroecológica não se refere apenas a
uma estratégia de produção que possibilita outras formas que não as hegemônicas de ocupar os
centros urbanos, mas também mobiliza suas atrizes e atores em redes de atuação política e
esfera institucional, movendo, ainda que com uma série de barreiras, as políticas urbanas e a
estética das cidades, sendo como um importante vetor de sunjetivação política em meio aos
No presente capítulo tenho com objetivos (1) refletir sobre a relação entre feminismos e
agroecologia na cidade do Rio de Janeiro, a partir da emergência das mulheres como sujeitas
das mulheres; (3) e analisar as contribuições que as mulheres trazema partir das suas formas de
pesquisa de campo. Foram definidos quatro eixos de análise que considero centrais para
entender as formas como esses movimentos têm convergindo em suas pautas. Eles se referem
pelo direito a cidade; Eixo II - Meu corpo é meu território; Eixo III - Feminismos periféricos;
Tabela 8
conceitos.
Trata da importância da
Eixo IV - Produção de
Lugar de fala enunciação para a construção de
conhecimento e luta política
Epistemologia um saber localizado e descolonial
das mulheres na
Colonialidade a partir das disputas no
agroecologia
movimento agroecológico.
151
arquitetura das cidades que, ao se colocarem de forma “neutra” em relação à política urbana,
sem considerarem essas questões, são na verdade construídas por homens e para os homens a
partir de seus padrões de vivência da cidade – importante frisar que falamos nessa equação
norma na sociedade capitalista ocidental. Nesse sentido, nos questionamos, quais são os efeitos
dessas invisibilidades nos corpos dissidentes que habitam as cidades a partir de suas margens e
periferias.
esse debate nos movimentos sociais a partir de formas próprias e plurais de organização e de
uma convergência entre diferentes lutas. Essas mulheres articulam as violências a que seus
territórios estão submetidos como parte das violências de gênero que atingem os seus corpos,
dimensões.
As mulheres da Zona Oeste carioca, através dos seus diferentes contextos e espaços de
que estão submetidas no espaço da cidade, buscamos entender como a agroecologia urbana
pode colaborar para a construção do direito à cidade e à moradia a partir do olhar das mulheres.
Com isso, buscamos trazer novos elementos para pensar a construção do debate sobre cidades
mais democráticas, plurais, produtivas e seguras para as mulheres e de políticas urbanas que
considerem de forma mais ampla os sentidos de viver a cidade, a partir de outros olhares.
Neste eixo discuto como as mulheres vêm da Zona Oeste do Rio de Janeiro fazem frente
agroecologia. Para enteder a confluência desses temas, é preciso traçar um panorama da trama
complexa de redes que compõem o cenário da agroecologia no Rio de Janeiro, assim como as
mapa tanto das estratégias produtivas quanto dos espaços de engajamento em que minhas
interlocutoras se inserem.
movimento agroecológico da Zona Oeste, quais sejam: agriculturas nos quintais produtivos,
artesanato, bananais feministas, cozinha local tradicional, Feira da Roça de Vargem Grande,
Como forma de facilitar o entendimento por parte dos(as) leitores(as), farei uma
apresentação dos grupos, coletivos e redes nas quais minhas interlocutoras estão inseridas:
Articulação Plano Popular das Vargens (APP Vargens) – articulação de moradores das
regiões atingidas pelo projeto do PEU das Vargens. Visa a construção de uma
Coletiva Hortelã – coletiva formada por mulheres de Vargem Grande e adjacências que tem
por objetivo realização de uma horta comunitária e da multiplicação nas hortas nos quintais
Coletiva Popular de Mulheres da Zona Oeste (CPMZO) – articulação que envolve mulheres
e organizações de vários bairros da região Oeste do Rio de Janeiro na luta por justiça social
Quilombo Bosque das Caboclas – área reivindicada enquanto quilombo pelos moradores da
comunidade Bosque dos Caboclos no bairro de Campo Grande. É usado no feminino para
marcar o início da ocupação da área pelas mulheres no início do século XX e pela histórica
Mesquita que iniciaram a ocupação da área, descendentes de africanos que vieram trabalhar
como escravos na fazenda cafeeira Vargem Grande que deu nome ao bairro;
Militiva – grupo de pesquisa “militante” de Vargem Grande. Esse grupo, apoiado pelo
comunicação popular;
Rede Carioca de Agricultura Urbana (Rede CAU) – rede que articula diversos grupos,
Rede Ecológica – movimento social que visa fortalecer a agroecologia a partir da formação
Essas redes se constituem mutuamente, sendo impossível fazer uma separação entre elas, já
que muitas militantes integram várias ao mesmo tempo ou já o fizeram em algum momento.
Nas seguintes sessões desenvolvo um debate buscando apresentar a atuação das mulheres
Janeiro.
Segundo o geógrafo marxista David Harvey (2009), há uma relação intrínseca entre as
como uma mercadoria, um artigo de luxo, de forma que “vender a cidade” tornou-se uma das
principais funções dos governos locais. Cada vez mais a ideia do prefeito gestor e empresário
é valorizada, como caminho para solução dos problemas urbanos. Para Raquel Rolnik (2015),
155
cidade enquanto espaço político – enquanto polis: “na empresa reina o pragmatismo, o realismo,
Nesse regime, “as cidades em competição buscam por todos os meios aumentar seu
poder de atração para manter ou desenvolver sua capacidade de inovação e difusão" (Jordi Borja
& Manuel de Forn, 1996, p. 33). Os regimes de exceção gradativamente se tornam novas formas
À medida em que a lei torna-se mais “flexível”, parcelas crescentes de funções públicas
do Estado são transferidas a agências livres de burocracia e controle político, ou seja, para o
setor privado. No Brasil, esse processo, ao que Vainer (2013) nomeia de “democracia direta do
capital”, efetiva os regimes de exceção através de PPP e uma série de dispositivos jurídicos.
Esse processo aponta para o que podemos chamar de “crise urbana”. Os protestos
ocorridos em Junho de 2013, não à toa, tiveram início com a reivindicação pelo Passe Livre,
sendo a questão do transporte público um dos nós da política urbana brasileira. O modelo de
cidade que não considera as periferias, concentrando oportunidades econômicas e sociais nos
Centros, aliado a projetos de expansão das cidades rumo a áreas sem estrutura urbana, foi nas
últimas décadas alimentado por uma política de suporte à circulação de automóveis privados e
A política urbana posta em prática no Rio de Janeiro nas últimas décadas é um dos
maiores exemplos desses processos e das suas consequências. Se por um lado o Rio de Janeiro
156
possui um longo histórico de expropriação territorial pelo capital, por outro, sempre conviveu
com práticas insurgentes de construção do seu território. As favelas e periferias são exemplos
aos pobres na cidade, trouxeram grandes consequências, entre elas o aumento do narcotráfico
criminalização da pobreza.
periferias à pontos turísticos, são todos exemplos dessa nova face totalitária que vem sendo
Diante desse cenário, movimentos de luta por moradia e pelo direito à cidade propõem
mobilizações é a elaboração de planos urbanísticos populares. Na Zona Oeste eles vêm sendo
Chegamos em Vila Autódromo às 08:30 da manhã e fomos recebidos por Sandra, uma
movimentos sociais do campo da esquerda vindo de diversas partes do país. Enquanto Sandra
nos contava um pouco da história da luta local, meus olhos percorriam o cenário de escombros,
Caminhando pelas ruas de barro via-se cabras, galinhas, porcos, gatos e cachorros. Quase não
havia gente.
junho de 2015, a imagem de Dona Penha com o nariz sangrando depois de ter sido quebrado
158
pelos golpes de cassetete de um guarda municipal, enquanto tentava impedir uma das
No seu quintal cheio de plantas e árvores frutíferas, Dona Penha, uma paraibana de
aparência frágil, fala mansa e sorriso largo, nos conta sua história. Ela vem se acostumando,
nos últimos anos, a receber visitas de militantes, pesquisadores, estudantes e setores da mídia
para falar de como seu desejo de permanecer no território, onde criou sua família desde que
migrou para tentar a vida no Rio de Janeiro há quase 20 anos, tornou-se um símbolo da luta
pela moradia e do espólio das Olímpiadas no Brasil. Na comunidade que existia desde os anos
1960 e onde antes habitavam cerca de 600 famílias, restaram 20 famílias que faziam frente ao
projeto de remoção das casas que dariam lugar às obras de infraestrutura para a Vila Olímpica.
Dona Penha hospedava naquele momento outra moradora, Mariza, que teve sua casa
derrubada sem aviso prévio ao sair para uma consulta médica na semana anterior. Mariza
perdeu vários pertences, remédios e economias em dinheiro que ficaram soterrados entre os
escombros. Só lhe sobraram os móveis que foram levados para o depósito da Prefeitura.
Ao sair da casa de Dona Penha, caminhamos mais um pouco e Sandra aponta para a
Lagoa de Jacarepaguá que margeia a comunidade. Na outra margem pode-se ver a Cidade do
Rock, estrutura sede do Festival Rock in Rio e dos jogos pan-americanos de 2007, que também
seria sede dos jogos olímpicos. “Mais um presente para família Medina28, os donos da Barra”,
Perto da lagoa, encontramos Dona Denise que morava há quase 40 anos em Vila
Autódromo. Ela nos mostra com orgulho o seu quintal produtivo e fala do uso das plantas que
cultiva: uma árvore de aroeira que usa dores no estômago, hortelã-pimenta para dores na cabeça,
28
A família Medina em questão é a mesma de Roberto Medina, publicitário dono do festival Rock in Rio e de uma
série de empreendimentos imobiliários na região da Barra da Tijuca e Jacarepaguá e que, supostamente, gozaria
de muito prestigio e influencia dentro do governo municipal do Rio de Janeiro.
159
erva cidreira para acalmar-se. Ela é uma das moradoras que afirmava de forma mais veemente
vou levar meus bichos e minhas plantas para um apartamento? Não é natural, nem para eles,
nem para mim. Como eu ia sobreviver sem minhas plantas? Morei quase minha vida toda nessa
casa, graças a Deus! Eu preciso de um quintal. São minhas plantas que protegem a minha casa.”.
Reflete, quando questionada sobre a possibilidade de negociar com a prefeitura para inserir-se
Paramos para almoçar a refeição preparada por uma das moradoras quando tivemos a
notícia que a obra que estava sendo erguida ao lado da comunidade avançara em direção ao
território de Vila Autódromo. Eles haviam erguido sem aviso prévio um tapume colado a
mesinha de Pingue Pongue feita de concreto que ficava na praça construída coletivamente pelos
moradores. Ao chegar na praça, nos deparamos com Dona Penha em cima da mesa discutindo
com funcionários da obra – um prédio muito alto, envidraçado que contrastava completamente
Os moradores e moradoras nos contam que aos poucos a obra avançava, muitas vezes
durante a noite, sem respeitar os processos de negociação com a comunidade. Também era
comum que, ao derrubar uma casa as máquinas de forma acidental, ou não, derrubavam um
pedaço do muro ou danificavam partes das casas de moradores que não estavam em processo
de desocupação, tornando a convivência dentro da comunidade cada vez mais difícil. Além
comunidade mais vulnerável a proliferação de doenças. Por isso, muitas famílias com crianças
pequenas haviam decidido partir ou levar os filhos para ficarem com parentes moradores de
os moradores decidem derrubar o tapume, demarcando o seu território. Depois desse episódio
deixamos nós também nossas mensagens nos muros das casas já desocupadas e nos despedimos.
WhatsApp. Eram fotos de Vila Autódromo. A casa de Dona Penha, que não aceitou abandonar
sua casa e negociar com a Prefeitura, fora demolida nas primeiras horas da manhã. Naquele
mesmo dia estava marcada uma sessão especial na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de
Janeiro (ALERJ) por ocasião do Dia Internacional da Mulher onde Dona Penha seria uma das
homenageadas.
Cheguei perto das 16 horas na ALERJ ponto de concentração do ato. Era meu primeiro
que compunha o bloco das mães que participaram do ato, o grupo “Mães e crias na luta29”, me
29Coletivo formado a partir das manifestações das mulheres contra o então presidente da Câmara Federal, o ex-
deputado federal Eduardo Cunha do PMDB, e o projeto de lei (PL5069/13) que busca tipificar como crime contra
a vida o anúncio de meio abortivo e prevê penas específicas para quem induz a gestante à prática de aborto, o que,
segundo os críticos a tal proposta, seria uma forma de dificultar o acesso a métodos contraceptivos de emergência
e aumentar a criminalização ao aborto, inclusive em casos onde a prática é permitida por lei, como em casos onde
há perigo de morte para mãe, de gravidez decorrente de uma violência sexual e em casos anencefalia do feto.
162
contava que pela primeira vez elas estavam conseguindo uma forma de organização coletiva
para falar sobre maternidade e política e levar as crianças para os atos que estavam acontecendo
com certa regularidade desde meados de 2015. As ameaças de retrocesso em relação aos direitos
das mulheres que tramitavam no Congresso, a revolta diante das medidas que estavam sendo
tomadas para a realização dos Jogos Olímpicos na cidade e a iminência do golpe de Estado
contra a presidente eleita Dilma Rousseff nos empurrava, mais do que nunca, a tomar as ruas.
mesmo dia o então Prefeito Eduardo Paes anunciou um projeto de urbanização para Vila
Autódromo, mas mudou o local da Coletiva marcada para falar sobre o projeto por,
Eram quase 18 horas quando Dona Penha apareceu na concentração do ato e falou sobre
a perda da sua casa naquela manhã e sobre a importância das resistências das mulheres. A
mesmo dia, no Dia Internacional das Mulheres, era mais um capítulo trágico da política de
acompanham toda a constituição da cidade. Sua história começa com uma ocupação de
pescadores nas margens do Rio Jacarepaguá nos anos de 1960. Nos anos 1970, trabalhadores
Jacarepaguá) e migrantes nordestinos começaram a se instalar no território que, aos poucos, foi
163
(Fernanda Sanchéz, Fabrício Oliveira &, Poliana Monteiro, 2016). Com o projeto de
desenvolvimento da Zona Oeste levado a cabo pelo prefeito então César Maia nos anos 1990,
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro pelo procurador do município e depois prefeito, Eduardo
Paes, a Prefeitura requereu a retirada total da comunidade alegando “dano estético e ambiental”.
Nesse período, Vila Autódromo articulou sua defesa jurídica e impediu a remoção,
demonstrando a fragilidade dos argumentos municipais (Vainer et al., 2016). Apesar disso,no
final dos anos 1990, Vila Autódromo recebeu concessão estatal para o direito real de uso do
solo por 99 anos prorrogáveis e no ano de 2005 foi transformada em uma Área Especial de
A partir de 2009, com a eleição do Rio de Janeiro enquanto sede das Olimpíadas que
viriam a ocorrer no ano de 2016, as ameaças de possíveis remoções tornaram-se mais presentes.
Prefeitura para a região, propôs entre outras coisas a remoção de 6 comunidades que atingiriam
diretamente mais de 3.500 famílias (Comitê Especial de Legado Urbano [CELU], 2009).
30
Área de Especial Interesse Social, a que apresenta terrenos não utilizados ou subutilizados e considerados
necessários à implantação de programas habitacionais de baixa renda ou, ainda, aquelas ocupadas por favelas,
loteamentos irregulares e conjuntos habitacionais, destinadas a programas específicos de urbanização e
regularização fundiária (Capítulo II- da Política Habitacional, Seção VI- Da lei de Uso e Ocupação do Solo, Áreas
de Especial Interesse, Artigo 107, Item II, Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro, 1992).
164
uma série de obras públicas em seu entorno e a remoção completa da população de Vila
Autódromo que seria transferida para apartamentos em uma unidade de conjunto habitacional
do programa “Minha Casa, Minha Vida”, apartamentos esses que seriam, em geral, muito
(2016).
O edital para a construção do Parque Olímpico previa que o consórcio que ganhasse a
licitação teria o direito a utilizar 70% do terreno para construção de projetos imobiliários que
consórcio que saiu vitorioso foi formado por duas das maiores empreiteiras do país, Odebrecht
e Andrade Gutierrez31, e pela empresa Carvalho Hosken S.A., proprietária de diversos imóveis
na Barra da Tijuca.
Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro e com a assessoria técnica de duas
Esse plano trouxe uma alternativa, a partir de um ponto de vista técnico, ao plano do
governo municipal para que a comunidade não precisasse ser removida, diante do discurso
oficial sobre a impossibilidade de realização dos Jogos sem a remoção de Vila Autódromo com
31
Empreiteiras envolvidas no escândalo deflagrado pela Operação Lava Jato em 2014. De acordo com
levantamento feito pelo Instituto Mais Democracia (2013), essas empreiteiras foram responsáveis ou estiveram
envolvidas na maior parte dos grandes projetos da Copa do Mundo de 2014 e Jogos Olímpicos, tais as obras do
Porto Maravilha, do BRT Transolímpica e da reforma do Estádio João Havelange (Engenhão).
165
Para responder aos argumentos contrários feitos pela prefeitura, uma nova versão do
Plano Popular foi apresentada. Entretanto, frente à mobilização popular, a prefeitura passou a
negociar os processos de forma individual. Boatos de que alguns moradores receberiam mais
do que outros geravam desconfianças. Havia também o medo de que quem não aceitasse
negociar com a prefeitura, poderia ser removido sem receber nenhum tipo de indenização. Esse
clima de incertezas e falta de informações, fez com que muitas famílias abandonassem a
comunidade. De 600 famílias que ali residiam no início do processo, restaram 20. Contudo, a
resistência dessas 20 famílias representou uma vitória diante da gigantesca aparelhagem pública
urbanização proposto no Plano Popular não foi contemplado em sua totalidade no projeto de
Foi construído pela comunidade um museu, o Museu das Remoções, cujo lema “memória
não se remove” garantiu mais uma frente de luta aos moradores, agora na chave da memória local
como caminho de disputa da cidade. Além das ruínas que contam uma parte da história de Vila
Uma das reivindicações dos moradores foi que as casas construídas para receber as
famílias que permaneceram tivessem, todas elas, um espaço para quintal. Grande parte das
famílias de Vila Autódromo tinham como prática a agricultura familiar nos quintais, geralmente
organizados pelas mulheres. Entretanto, a pauta da agricultura urbana e necessidade desse tema
fortalecimento do debate sobre agricultura urbana e agroecologia trazido pela Rede CAU. Em
conversa com algumas militantes e moradoras, uma delas me relatou que: “É uma pena que a
gente não tenha se atentado antes para a questão da agricultura em Vila Autódromo. O pessoal
166
da universidade [as equipes técnicas da UFF e UFRJ] não tinha experiência com esse tema e a
gente ainda não tinha amadurecido o conceito de agroecologia à época da elaboração. Mas
sempre tivemos um vínculo muito grande com os nossos quintais”. Na agricultura urbana os
quintais têm grande importância, pois são os principais espaços de plantio, criação de animais
de pequeno porte e cultivo de árvores frutíferas. Em texto de autoria coletiva da Rede Cau, é
Para nós que integramos a Rede Carioca de Agricultura Urbana, ter um quintal
produtivo é possibilitar a resiliência futura ao território. O valor da terra nua, não
impermeabilizada por asfalto, cimento, grama diz respeito a capacidade futura da cidade
reagir a acidentes ambientais extremos. Grande parte do impacto das enchentes urbanas
é resultado da impermeabilização do solo. E, sem terra agricultável a cidade ficará mais
e mais dependente do fornecimento externo de alimento e água. Relembramos o
provérbio indígena: “afinal dinheiro não se come” (Rede Cau, blog Sertão Carioca,
2014, n.p.).
desenvolvidas à época das remoções em Vila Autódromo como a horta comunitária Espaço de
Referência em Agroecologia, projeto coordenado pelo Campus Fiocruz Mara Atlântica desde
2013. O projeto passou a ser liderado pelas mulheres de Vila Autódromo e a partir dessa
Autódromo e as mulheres de outras comunidades da Zona Oeste. Junto com a horta, um sistema
32
Tratamento de efluente doméstico de forma eficiente, possibilitando plantio de espécies frutíferas em sua base
constituída de solo orgânico, auxiliando no processo de tratamento.
167
racista e agroecológico
caminho para profundas mudanças no território conhecido como Vargens que integram a
exigências para a regularização dos condomínios; e o envio, pela prefeitura, do Projeto de Lei
140, que trata dos parâmetros para a Operação Urbana Consorciada33 (OUC) no local – modelo
ao utilizado nas obras do Porto Maravilha iniciadas em 2011 – e define uma nova versão ao
projeto suspenso desde 2009, do Plano de Estruturação Urbana (PEU) das Vargens que também
O PEU não apenas trouxe uma série de questionamentos sobre os impactos que poderia
trazer, mas também levantou suspeitas sobre sua legalidade com o estudo de viabilidade da PPP
sendo realizado pelas empreiteiras Odebrecht e Queiroz Galvão. A operação, seria viabilizada
33
Conjunto de intervenções e medidas coordenadas pelo Poder Público municipal, com a participação dos
proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores privados, cujo objetivo é alcançar, em uma área,
transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a valorização ambiental. Trata-se de um dos
instrumentos de viabilização da política urbana a serem realizados com a participação de particulares (Parágrafo
1º do artigo 32, Estatuto da Cidade, 2001).
168
troca do direito de construir edifícios acima do controle de uso de solo previsto pelo plano
diretor para a área especifica. Na prática, esse projeto permitiria a construção de edificações
muito mais altas do que as previstas para essa região que resguarda a maior área verde da cidade
Figura 12. Projeção de edifícios a serem construídos de acordo com o PEU. Vista da Praça
Articulação Popular das Vargens, articulando diversos movimentos sociais para construírem
uma contraproposta ao PEU pautada participação popular e num projeto de urbanização que
O Plano Popular das Vargens foi construído em um ano e meio de encontros, estudos e
mobilizações populares em quase todas das 29 comunidades que seriam atingidas pelo projeto
Se, por um lado, ele convoca uma denúncia e embate na esfera judicial, por outro apresenta
questões aqui discutidas me interessa chamar atenção para os principais eixos de articulação
De acordo com o Plano os projetos urbanísticos propostos pela prefeitura “devem ser
reconhecidos como parte de uma política racista, que atua no sentido de promover o
Figura 13. Roda de abertura do primeiro encontro da Articulação Plano Popular das Vargens,
2016.
hegemônico, o Plano Popular das Vargens nos convoca à urgência de pensar um projeto de
cidade a partir das margens, dos sujeitos que são subalternizados e sobre quem os efeitos da
segregação da cidade capitalista recaem com mais força e violência. Nesse sentido, pensar uma
democrática e o acesso ao direito humano à moradia digna e aos recursos essenciais a vida.
Em meados de 2017 o PEU das Vargens perdeu força e passou a não ser visto como
projeto prioritário pela prefeitura. Ao conversar com Maraci, uma das lideranças da APP
Gostaria de pensar que essa foi uma vitória nossa, mas a verdade é que eles ficaram é
sem dinheiro mesmo [em referência à crise no setor imobiliário deflagrada após
escândalos políticos envolvendo as empreiteiras Odebrecht e Andrade Gutierrez]. Na
171
verdade, a nossa maior vitória foi conseguir construir essa articulação comunitária de
mulheres. Antes éramos só eu e outra companheira, hoje já somos um grupo que não
tem mais medo de homem nenhum (Maraci, 2018, diário de campo).
De fato, todo o processo de construção do Plano passou pelo protagonismo quase total
das mulheres. No grupo que estava à frente da organização das ações da APP Vargens eram 10
mulheres entre 15 membros. Na APP Vargens como um todo, elas também eram maioria. De
acordo com Mariana, outra militante da articulação, isso fez toda a diferença no processo de
construção dos debates, desde pensar a metodologia à escrita do Plano, passando pelas questões
se com uma menor de idade. Ao ser questionado por algumas mulheres da articulação acerca
dessa postura, ele recusou-se a dialogar sobre o tema. Nesse momento houve um evidente
“racha” entre os homens e as mulheres do grupo. Para Mariana, questionar essas posturas é
projeto de cidade sem machismo se a gente não consegue pautar essas questões dentro dos
argumentou sobre a importância do olhar das mulheres para pensar o direito à cidade e à
moradia. Para elas, o pensamento das mulheres seria “agroecológico”. Ela lembra de seus dois
casamentos para explicar como os homens não entendiam a relação entre morar e plantar:
Os homens insistiam comigo que pra eu tinha que botar cimento porque tinha muito
mato[no quintal], e eu brigava e dizia ‘não, eu preciso do mato’, mas nunca tinha de fato
uma horta, uma coisa estruturada, era bem bagunçado, então você olhava e realmente
parecia mato, mas na minha cabeça não é mato (...) Hoje eu tenho uma horta que me
alimenta todos os dias, né, que eu vou lá, eu converso com elas, aquele cheiro me dá
saúde e animo pra continuar e junto com isso fui descobrindo o movimento da
agroecologia (Maraci, 2016, diário de campo).
172
quintal. Para ela, trata-se, sobretudo de uma síntese de um projeto político de uma cidade
voltado a “todes”.
Nesse sentido, um dos eixos sobre os quais o Plano Popular se estrutura é o “Morar e
Plantar” e “Agroecologia” que têm como algumas propostas: garantir área suficiente para
urbanização com qualidade de vida nas comunidades, garantindo sempre que necessária a
reconhecimento da realidade local e do direito das pessoas de decidirem sobre como querem
morar e como querem viver; a garantia da função social e ambiental (considerando diretrizes
origem ilegal, destinando-os para moradia social, uso público e para a produção – coletiva e
e bairros populares, buscando soluções adequadas para cada realidade local através dos Planos
Locais, tais como quintais produtivos e espaços coletivos de plantio; fortalecimento as feiras e
propostas vão, portanto, na contramão da ideia de que as cidades são apenas espaços de
Sobre esse processo de resistência e construção das lutas políticas pelo direito à cidade
Com isso, vemos que a luta por moradia em articulação com a agroecologia que vem
sendo construída pelas mulheres modifica o modelo padrão de moradia popular que vem sendo
utilizado no Brasil, trazendo como elementos centrais o direito à terra, ao plantio, às relações
colaborativa com ênfase para os projetos elaborados pelos moradores e moradoras, com ênfase
nas demandas dos grupos mais vulnerabilizados, quais sejam, as mulheres e os jovens.
privado, apontando que o espaço da casa, do corpo e das relações íntimas deve ser debatido e
lançou o seu trabalho mais famoso, intitulado “Your body is a battleground”, em português, “o
seu corpo é um campo de batalha” onde se vê a imagem em preto e branco de modelo branca
encontrada em uma revista de moda para mulheres com a metade de seu rosto invertido em
negativo e a colagem dos dizeres que remetem aos slogans publicitários, como forma de
Essa obra, assim como o mote “o pessoal é político” amplamente utilizado pelas
feministas a partir da segunda metade do século XX, nos aponta para a rede de relações, campos
de forças e agenciamentos que nos atravessam enquanto corpo que habita uma determinada
sociedade, tempo, contexto: “Nossos corpos são nossos eus; os corpos são mapas de poder e
identidade” (Haraway, 2000, p. 96). Para Haraway (2000, 1995) entender como esse corpo se
constitui é também construir uma teoria da diferença social entendendo as condições históricas
Nas rodas de conversa realizadas na Coletiva Hortelã, a discussão sobre o que elas
desenvolvimento representa para elas uma forma de violência que avança sobre seus corpos.
Em uma dessas rodas decidimos construir um mapa da nossa relação com o território de Vargem
Grande. Francis iniciou o processo contornando a sua mão em uma cartolina desposta no chão.
Ainda na cartolina ela desenhou veias em suas mãos. Ela explicou para o grupo que essas veias
eram a representação dos muitos rios que banhavam a região. Para ela não havia forma melhor
constituíram uma linha do tempo das suas mobilizações tendo como base o desenho da mão de
Francis.
175
primeiro território de resistência e luta política. Para Silvia, quilombola, agricultora e feminista
de 55 anos que integra a coletiva: “para ser militante, é necessário que antes de tudo, recuperar
Nesse sentindo, há uma entendimento de que para mapear as ameaças e conflitos sobre
os territórios é preciso que haja uma imersão das mulheres em suas próprias histórias, situando
sua existência enquanto corpo-território que sofre pressões e ameaças diversas, mas que
encontra, nas práticas cotidianas, estratégias para avançar em sua autonomia individual e
coletiva. Essas estratégias vão aparecer de formas diversas a partir do resgate de uma série de
176
da valorização dos saberes tradicionais acerca das ervas medicinais e das plantas alimentícias
de relações sociais e de produção que tem como centro a solidariedade e a igualdade entre os
sujeitos (Siliprandi, 2015). Esse modelo camponês é reivindicado pelas mulheres que compõem
refere às relações de gênero e ao ideal de família camponês e da agricultura familiar. Por isso,
as mulheres vão pautar em suas discussões, questões como a invisibilidade do trabalho feminino
urbano (ou próximo à cidade) em que vivem e que, em diferentes graus, podem ser reconhecidas
na realidade de qualquer grande metrópole latino americana, tais como a violência urbana, a
(existem poucas opções de transporte público para chegar no bairro de Vargem Grande, de
forma que uma viagem até o centro do Rio de Janeiro pode levar cerca de três horas).
política. Entretanto nem todas se dizem feministas ou entendem a relação direta entre a luta
feminista e a agroecologia, sendo esse um discurso mais presente as mulheres que são
lideranças.
177
Esses impasses foram se delineando para o grupo desde a primeira reunião que
aconteceu no terreno da casa de uma das integrantes. A ideia desse encontro era de começar a
discutir e planejar uma horta coletiva que seria cuidada pela coletiva. Essa horta seria feita no
terreno de Eliane, uma das integrantes da coletiva. Nessa ocasião, o marido de Eliane ofereceu
a ajuda de um amigo engenheiro químico para dar assessoria técnica às mulheres, visto a
experiência que ele já tinha com o assunto. Entretanto, no diálogo com esse profissional, as
mulheres debateram entre si e perceberam que esse tipo de assessoria, hierarquizada, de alguém
de fora do grupo e feita por um homem, não lhes serviria. Segundo elas, o assessor não
respeitava a autonomia e que elas tinham sobre agricultura em seus quintais, motivo que fez
com que elas se organizassem para contratar os serviços de uma assessora técnica que trabalha
com sistemas agroflorestais e implantação de hortas orgânicas, além de ser militante feminista
Sobre esse impasse, vale a pena salientar que Eliane se engajou na coletiva e nos grupos
de mulheres de Vargem Grande por ser consumidora da feira e agricultora, apesar de não ter a
agricultura como seu meio de subsistência e ser oriunda da classe média, tendo como bairro de
origem o Recreio dos Bandeirantes, um dos bairros mais valorizados do Rio de Janeiro. Para
Silvia, o fato da coletiva ser formada por mulheres de classes sociais diferentes traz muita
potência ao grupo, pois possibilita a troca de saberes entre as mulheres, além de ser uma
ecológico às classes populares. Esse encontro, porém, não se dá sem embates acerca dos
diferentes entendimentos acerca dos objetivos do grupo, do tipo de feminismo e da forma que
alimentação viva, afirmou não haver diferenças entre as mulheres que compunham o grupo, de
forma que questões como feminismo e a crise política do país em meio ao golpe de Estado, não
178
deveriam acontecer naquele espaço que deveria pautar questões relativas à saúde, alimentação
e autocuidado. Nesse momento, Silvia foi enfática ao afirmar que não integraria uma coletiva
onde as mulheres brancas e de classe média não reconhecessem seus privilégios e onde o
cenário político e social não pudessem ser discutidos, pois isso afetava diretamente a vida de
todas, em especial das mulheres negras e pobres, reivindicando a interseccionalidade como uma
ferramenta importante para entender as relações de opressão que ocorrem inclusive em espaços
de luta.
Após esse incômodo inicial gerado pela presença do engenheiro químico e essa
discussão sobre insterseccionalidade das opressões e das lutas, elas passaram a discutir de forma
mais contundente questões como as relações de gênero e as relações de poder e saber a que
estavam submetidas; sobre a importância de ter uma coletiva de mulheres; e se o grupo era ou
não uma organização feminista. Até então, não estava realmente claro para todas, qual era a
questões.
Sobre esse estranhamento, Maria Rosa, integrante da coletiva que ajudou a formar o
grupo junto às mulheres da feira, relata que, incialmente muitas mostraram estranheza e
trataram com certo deboche a ideia de ter um grupo composto só por mulheres que tinha por
alimentos para venda na feira, não se reconhecem enquanto tal. Essa discussão foi retomada
nas rodas de conversa da coletiva, onde foi possível notar uma maior apropriação do termo por
algumas integrantes da coletiva que passaram a se assumir enquanto tal, principalmente diante
179
de três acontecimentos que foram se dando ao longo dos encontros e podem ser pensados como
ainda sobre o terreno de Eliane, onde elas vêm construindo a horta. Em uma das reuniões das
mulheres, um conhecido de Eliane surgiu e pediu para conversar com ela na frente de todas.
Questionando-a sobre o objetivo das mulheres no terreno, ele seguiu em tom de ameaça,
alegando que as mulheres do grupo eram “posseiras” e que ele conversaria com o filho mais
velho de Eliane para que ele impedisse a mãe de construir uma horta coletiva em seu terreno.
afetivos e a produção imaterial dos encontros que elas estavam realizando, entendendo que essa
“invasão” foi motivado pelo mesmo possuir um pensamento ideológico “de direita” e patriarcal
tendo um entendimento diferente sobre o uso da terra e do fazer político. Maria, militante
feminista que integra a coletiva falou da importância delas realizarem essas rodas de conversa
Quando propus a realização dessas oficinas, eu queria que esses conflitos aparecessem
antes da gente cavar a terra e colocar as coisas lá, eu estava dando uma chance para
aparecer e apareceu... e sempre aparece. Se não aparecer é porque você não está fazendo
a coisa certa. O velho Paulo Freire nos ensinou, se o poder não se enunciar é porque
estamos fazendo alguma coisa errada (Maria, entrevista concedida em 2016).
O segundo acontecimento-analisador diz respeito a ameaça que uma das mulheres que
compõem a coletiva e que também é militante feminista e da luta contra o PEU das Vargens,
sofreu em sua casa em repressão a sua postura de luta. Sobre esse acontecimento, surgiram
várias reflexões que dizem respeito a maneira que as questões políticas atingem de forma
diferente homens e mulheres militantes. Por que ela não foi ameaçada num lugar público como
são os homens, em um palanque, na rua? Por que o artifício da família é sempre usado como
uma estratégia para se aproximar e atingir as mulheres? No plano simbólico, essa ameaça
180
atingiu fortemente todo o grupo, mostrando a fragilidade e a violência a que as mulheres que
Para Saney, agricultura e quilombola, essa violência expressa uma forma “masculina”
de fazer política que se opõe os modos de organização das mulheres e reflete uma longa história
de opressões machistas e racistas. Várias vezes a importância da criação de uma rede de cuidado
foi pautada pelas mulheres do grupo como parte da prática de militância política e na vida
cotidiana diante desse cenário de vulnerabilidade e de muito adoecimento físico, algo que é
Quanto mais a gente se posiciona à frente de alguma coisa, mais você se torna
vulnerável. São vários desafios, mas não eu não quero me permitir ficar cansada, pois
ao mesmo tempo em que a luta cansa, também é uma força grande (Maraci, entrevista
concedida em 2016).
Assim vemos que ao mesmo tempo em que a militância política pode trazer uma
Pensar o cuidado como um estado afetivo vital, uma obrigação ética e um trabalho
prático tem estado desde muito cedo no cerne dos estudos feministas, tanto nas ciências sociais
quanto na teoria política; este esforço tornou-se mais perceptível com o aumento do interesse
pelas “éticas do cuidado”. Enquanto é justo dizer que o cuidado tem sido e continua a ser um
um estado afetivo vital, uma obrigação ética e um trabalho prático tem estado desde muito cedo
no cerne dos estudos feministas, tanto nas ciências sociais quanto na teoria política. Enquanto
é justo dizer que o cuidado tem sido e continua a ser um aspecto essencial do caráter
2012).
matéria, cuidar de alguma coisa ou de alguém é inevitavelmente criar relação. Neste sentido,
cuidar guarda o peculiar significado de ser uma “obrigação não normativa” (Bellacasa, 2012):
é concomitante à vida – não algo forçado aos seres vivos por uma ordem moral; ainda assim,
obriga, já que para que a vida seja vivida ela precisa ser nutrida. Isso significa que o cuidado é
de alguma forma inevitável: embora nem todas as relações possam ser definidas como
constrói-se um outro “nós” que não passam por uma visão hegemônica das relações com a
natureza. São visões singulares dos feminismos e da agroecologia com as quais há uma
um dos companheiros de militância passou a se relacionar com uma jovem menor de idade do
bairro. Diante do desconforto causado por essa relação, algumas companheiras que integram a
posteriormente junto à menina. Tal postura, entretanto, foi considerada “radical e exagerada”,
182
de forma que o feminismo reivindicado pelas militantes soaria como “uma luta contra os
Esse conflito acabou criando um atrito interno na coletiva, pois várias companheiras se
sentiram desrespeitas ao não serem consultadas, já que se trataram de uma questão do bairro e
das mulheres, ao mesmo tempo em que consideraram que a autonomia da garota sobre esse
caso foi desconsiderada. Por outro lado, algumas militantes apoiaram a decisão, considerando
Grande e militante feminista que integra a coletiva: “(...) a gente tem que enfrentar essa crise
civilizatórios”.
novo fazer político, a partir desse corpo-território-político que ganha novos significados e
reprodução da vida.
Eixo III - Feminismo periférico: a construção de uma política a partir das margens
“ -Viemos disputar essa cidade!” É com essa frase que Ana Santos, mulher negra, 35
anos, articuladora social, cozinheira e agricultora urbana me relata uma oficina sobre educação,
racismo e juventude construída junto aos adolescentes da Escola Estadual Teófilo Fernandes
em Vargem Grande.
Nascida e criada em São Gonçalo, Baixada Fluminense, Ana mudou-se para a capital
para fazer faculdade de administração. Com o tempo começou a trabalhar na área de produção
cultural chegando a “faturar alto” como diz, mas se encantou com o movimento agroecológico
183
alimentar no Complexo de Favelas da Penha, onde morou por quase 10 anos. Ana era
responsável pela organização e manutenção de uma das poucas feiras de produtos orgânicos e
existência de uma barraca feminista na feira. Para ela, a partir do diálogo com quem sente na
poder é possível construir outras possibilidades de cidadania urbana a partir das margens e da
Você começa a entender que a cidade é partida mas que você não é você se retraindo,
se colocando pra, que isso é o contrário, né? É você se posicionando e se colocando cada
vez mais na sua cidade. Né? Tem que me engolir! Não é eu que tenho que sair porque
tô te incomodando. Isso pode ser muito simples mas isso é do caralho, isso é do caralho,
assim. Você entender que vai ter que dividir aqui comigo, tá entendendo? (Ana Santos,
entrevista concedida em 2018).
cidade, Ana apresenta o sentido de uma cidade partida, mas também de uma cidade que está
esferas do cuidado, dos saberes tradicionais, etc., vêm apontando para a construção de
estratégias políticas, epistemológicas e críticas próprias que contribui para o diálogo em torno
“Feminismo periférico” é uma expressão usada por Saney Souza, militante do CPMZO,
para descrever a luta das mulheres da Zona Oeste. O feminismo periférico parte do olhar
184
de classe e raça no que se refere às desigualdades sociais. Nesse sentido, relaciona-se com
outros feminismos periféricos pós-coloniais que vêm crescendo na América do Sul como o
feminismo comunitário. O “termo feminismo comunitário” foi criado por Julieta Paredes,
feminista descolononial boliviana/aimará para pensar a luta organizada das mulheres de setores
populares e indígenas da América Latina. Uma das características desse movimento é o rechaço
pensamentos que fundam a sociedade colonial, ao mesmo tempo que a autora problematiza a
ideia de uma sociedade pré-colonial na qual não haveriam hierarquias de gênero. O encontro
Paredes de “entroncamento patriarcal”. Essa ideia vai de encontro à crítica de Haraway (1995)
ao feminismo socialista que vem à tona a partir do debate prós estruturalista e pós-colonial:
Esse resgate é uma maneira de construir uma coalisão de mulheres em torno de elementos
comuns entre as mulheres e ao mesmo tempo que uma “consciência de oposição” nos termos
Nesse sentido, durante uma oficina chamada “Morar e Plantar” realizada pela Coletiva
Hortelã com as mulheres da comunidade de Taboinhas em Vargem Grande que tinha como
direito à moradia, chamou-me atenção a forma que Silvia reivindica sua ligação com o território
e com sua ancestralidade: “Estamos aqui promovendo o morar com um sentindo cultural,
promovendo nossas memórias. Nós não somos Europa, nem queremos ser. Somos indígenas e
Essa oficina foi organizada diretamente por Silvia, Renata (integrante da militiva), por
mim e por duas lideranças locais da comunidade. Fizemos duas visitas durante a semana na
comunidade pedindo que as mulheres que fossem participar levassem elementos do que
consideram a luta local das mulheres de Taboinhas. Elas levaram fotos, plantas dos quintais,
frutas e artesantos. Construímos uma mandala com tais elementos posicionada no meio da nossa
roda coletiva.
186
Taboinhas é uma ocupação localizada dentro de Vargem Grande, sendo uma das
comunidades de possível de remoção com o PEU. A oficina em questão objetivava fazer uma
articução entre a APP e a comunidade para que a mobilização popular dos moradores fosse
fortalecida diante de possíveis ameaças de remoção. Silvia, militante história da luta por
moradia, já conhecia o território há décadas, mas lamentava que não podia “adentrar” sozinha
na comunidade devido aos embates do poder local. Além disso, parte da associação de
moradores não se opunha a uma possível remoção e defendiam que fazer acordos de
Assim, a oficina foi pensada para trabalhar o fortalecimento comunitário, mas sem falar
erámos estrageiras naquele contexto. Entretanto sabíamos que nosso trabalho teria de ser com
aberta à todas que chegassem, mas a comida preparada também. Muitas crianças vieram com
suas mães e aprenderam a fazer “refrigerante” natural feito com cenoura e água gaseificada,
enquanto suas mães traziam vsilhas de casa para levar um pouco da comida, enquando
conversávamos todas juntas em volta da mesa. Essa estratégia foi fundamental para aproximar
palavra “feminismo” uma das mulheres me confessou em tom de brincadeira: “eu achava que
feminista era aqueleasmulhé (sic) que não gosta de homem e não sabe cozinhar, mas tô vendo
que não é assim, que têm umas coisas importantes mesmo, que faz a gente pensar sobre esse
negócio das mulheres, né, porque tem assim, muita coisa errada né” (diário de campo, 2017).
Figura 16. Panela de moqueca de banana quase vazia na oficina Morar e Plantar.
Dá mesma forma é interessante notar que, não obstante as várias questões que
militância – no âmbito da luta pela agroecologia, pelo direito à moradia, contra o PEU das
Quando questionada sobre sua relação com o movimento feminista, Francis, uma de
minhas interlocutoras, disse que só descobriu feminista há poucos anos, a partir dos
movimentos populares na Zona Oeste e da agroecologia, mas que sempre foi feminista, sem
saber: “Eu não me sentia autorizada a dizer que era feminista, nunca tinha lido nada sobre isso,
até entender que só era pra ser feminista bastava ser mulher (risos)” (Francis, entrevista
concedida em 2016). Da mesma forma outra interlocutora, Silvia, sempre brincava nas reuniões
dizendo que só havia lido as três primeiras páginas do Segundo Sexo de Simone de Beauvoir e
que, portanto, não poderia ser considerada feminista. Já Maria, agricultora de 54 anos de idade,
ao ser questionada se ela se considera feminista, respondeu-me que: “Sim, mas uma feminista
“hegemônica” sobre o movimento feminista, como algo ligado as elitas brancas, de classe
média, ou ainda como um movimento de repúdio aos homens e aos signos ligados à ideia de
feminilidade.
novamente uma fala que aponta para a importância da luta feminista a partir do olhar das
Eu estou bastante mexida com o que a gente está fazendo. Tirando o centro político e
trazendo pra periferia. Eu cresci o centro político pra mim sendo na Cinelândia. Só [as
avenidas] Rio Branco, Presidente Vargas. Fui parte da construção da imensa marcha
negra de 1988. Mas o Centro era o centro. Agora o centro político pra gente é Zona
Oeste (Silvia, diário de campo).
189
O mote usado pelo movimento de mulheres da Zona Oeste “A Zona Oeste existe e
da periferia.
olhar político da periferia e dos sujeitos subalternos, como podemos ver na fala da agricultora
Sou muito agradecida ao campo da agroecologia que traz essa potência enorme, de estar
existindo aqui, a gente sabe que a barbárie está no limite, mas eu estou vivenciando essa
outra realidade de construção de alternativas de uma economia real, de realmente
construir a vida. Eu não sou inocente, conheço bem os riscos, mas o que motiva a
levantar é essa terra de cuidados que a gente constrói e aí eu acho que a gente deve
esclarecer nossas possibilidades de resistência e expansão dessa rede de cuidados, de
solidariedade pragmática e construção de outro mundo e eu sinto que eu vivo esse outro
mundo (Silvia, diário de campo).
exemplo significativo desse processo. Na coletiva, criou-se uma metodologia de trabalho com
as crianças pequenas que acompanham suas mães nas reuniões – a ciranda agroecológica – onde
as mães e outras mulheres vão se revezando no cuidado que é sempre discutido coletivamente.
sobre o que elas entendem sobre os temas tratados nos encontros, sobre como eles preferem
190
plantar, sobre como elas podem contribuir para os encontros, interferindo o mínimo possível da
grupo. Todas as reuniões iniciam-se com uma mística onde uma das participantes faz um suco
verde com grãos germinados, frutas e folhas orgânicas. Em um segundo momento, elas formam
um roda onde dão as mãos e reafirmam seus compromissos com o grupo. Então começam a
Alimentação aparece, dessa forma, como uma questão central nas falas das
alimentação e à saúde, sua e das suas famílias, como as principais motivações para se engajarem
alimentar. Aliado a ideia de resgate das culturas alimentares “tradicionais” elas também
sociabilidade, além de ser uma forma de chamar a atenção para a importância da alimentação
consciente para aqueles que ainda não adeririam à produção e ao consumo de produtos
agroecológicos, dessa forma, vemos que existe uma politização da esfera do privado (a
alimentação) e do consumo.
contatos ou simplesmente “jogar conversa fora”. No contexto das reuniões da coletiva, na feira
percebe-se que partilhar alimentos é também partilhar sentidos atribuídos aos principais
é politizada ao serem atribuídos valores políticos à partilha e feitura dos alimentos a serem
Há uma busca por uma alimentação consciente, assim como um resgate do uso e
consumo de gênero alimentícios tradicionais esquecidos ou pouco usados como a taioba e ora-
pro-nóbis, assim como uma valorização dos saberes das medicinas tradicionais, com a
disseminação do uso de ervas, chás, lambedores e xaropes caseiros que remetem à ideia de
Participei algumas vezes de oficinas de beneficiamento de frutas na feira, além de ter cozinhado
em alguns encontros organizados pela coletiva e pela Militiva. Nessas ocasiões realizamos uma
pães, salgados e sobremesas, como forma de atrair mais pessoas para experimentar. A comida,
sem dúvida, mobiliza as comunidades, ao mesmo tempo em que é um elemento que remete aos
lugares tradicionalmente identificados como femininos. Essa relação, entretanto, ganha outros
informal que, durante toda a vida rechaçou o espaço da cozinha e da culinária, pois para ela,
isso a identificava com o a ideia de mulher submissa e do lar. Entretanto, a partir do momento
que ela entrou no movimento da agroecologia, ela percebeu a potência que a cozinha tem para
34
Sororidade vem de sóror, que significa irmã em latim. Essa expressão é utilizada no movimento feminista para
designar uma solidariedade que seria própria das mulheres, assim como a fraternidade se referiria à solidariedade
entre fraters– irmãos.
192
urbana estão envolvidas – pelo reconhecimento da agricultura na cidade do Rio de Janeiro, pelo
acesso à políticas públicas de incentivo à agricultura familiar, contra a implantação do PEU das
Vargens e a especulação imobiliária - apontam para um norte comum, qual seja, um modelo de
alimentos e a apropriação da natureza e que fuja à lógica capitalista que se apoia na reprodução
agroecológico
movimentos sociais de esquerda. A resistência das mulheres em defesa dos seus territórios é,
entretanto, ancestral (Mies & Shiva, 1993). Ao analisar o histórico de lutas locais contra a
frente e em maior número, mesmo quando não são reconhecidas como principais lideranças. A
luta das mulheres indianas no Movimento Chipko pela proteção das suas florestas; a resistência
das campesinas bolivianas contra o processo de privatização das águas que ficou conhecida
como “a guerra da água” no país; a mobilização das mulheres em Altamira contra a construção
Cinturão Verde, são alguns exemplos de como, a partir dos seus diferentes contextos, as
em Porto Alegre no ano de 2013, como forma de chamar atenção para as desigualdades de
do trabalho das mulheres nas áreas rurais, a sobrecarga de trabalho doméstico, e o apagamento
técnico e científico.
Entretanto, como argumentam Márcia Lima e Vanessa de Jesus (2017), apesar dos
avanços no debate de gênero, ainda não há a incorporação dessa categoria enquanto uma
dimensão central para pensar a agroecologia pela maior parte dos teóricos e do movimento
como um todo. As questões de gênero aparecem de forma marginal, e muitas vezes são
encaradas como questões que só interessam às mulheres. A seguir, propomos uma reflexão
sobre quem é autorizado a falar e quais conhecimentos são considerados válidos, levantando
agroecologia.
194
every day racism de 2010, desenvolve um instigante exercício de reflexão sobre a potência da
fala a partir do lugar subalterno, apresentando outros pontos de vista sobre a questão levantada
por Spivak. Esse exercício nos leva a entender como os conceitos de conhecimento e ciência
não são neutros, como já discutimos anteriormente, mas estão intrinsecamente relacionados ao
poder e à autoridade racial e de gênero. Nesse sentido, Kilomba nos lança questionamentos
importantes:
Esse debate expõe, deste modo, as desigualdades, fissuras e tensões não só no campo
da esquerda podem assumir. Apresentamos a seguir duas cenas que exemplificam como essas
tecnologias.
35
“What knowledge is being acknowledged as such? And what knowledge is not? What knowledge has been made
part of academic agendas? And what knowledge has not? Whose knowledge is this? Who is acknowledged to have
the knowledge? And who is not? Who can teach knowledge? And who cannot? Who is at the centre? And who
remains outside, at the margins? ”
36
Disponível em: http://www.pretaenerd.com.br/2016/01/traducao-quem-pode-falar-grada-kilomba.html.
195
Cena 1
alguns dos mais reconhecidos nomes da agroecologia no mundo reuniram-se para apresentar o
América Latina, o chileno Miguel Altieri inicia sua fala narrando sua perspectiva sobre o
mesa, importantes pesquisadores e técnicos vindos do México, Cuba, Espanha, Brasil e Estados
Unidos.
agroecologia” que estava ocorrendo paralelamente em outro auditório, fizeram uma intervenção
para protestar sobre a composição do painel – todos homens brancos – e questionar a ausência
de chita, os lenços nos cabelos, os panos lilases, os punhos fechados e erguidos, os cartazes, as
palavras de luta, tudo contrasta com as roupas de cores neutras, o academicismo e a postura do
painel que estava sendo realizado. Ao ocuparem o auditório, elas denunciam que narrar uma
memória da agroecologia sem as mulheres, é contar uma história pela metade e questionam:
O painel prossegue com as falas dos convidados e recebe algumas outras intervenções
e questionamentos ao final sobre a organização do evento, sobre como a mesa foi pensada e o
porquê dessa representação, além de falas sobre a importância da educação do campo e outros
196
blog37 do evento aonde constam as relatorias dos painéis e mesas, chamou atenção em especial
por destacar algumas das tensões em jogo no referido painel (segue trecho abaixo):
(...) ações e falas da coordenação da mesa, que me pareceu pouco agroecológica. Além
de ter simplesmente cortado as falas inscritas pelo argumento do tempo, desvalorizou
as primeiras falas realizadas, qualificando-as como “discursos” e pedindo que as pessoas
passassem a fazer perguntas. Isso se agravou com a resposta a questão colocada por uma
participante sobre a presença das mulheres. A resposta foi que havia o planejamento de
uma mulher na mesa que não pode vir de Cuba, mas acrescentou que por outro lado,
não era possível “mudar a história”, que tinha sido feita predominantemente por
homens. A fala evidencia a grande contradição: para inserir as mulheres, só vale a
história oficial, não vale os primórdios, inclusive apontados na mesa pelo palestrante de
Cuba, quando afirmou que os primeiros laboratórios eram as áreas cuidadas pelas
camponesas (os pátios). Já para engrandecer a “Logia”, consideramos as Tecnologias
Alternativas, o Movimento Campesino a Campesino, entre outros. (...) como
construímos a memória da Agroecologia, apenas como Logia ou como prática,
movimento e construção de sujeitos? (Lessa, Relatoria do X CBA, 2017).
O uso do sufixo “logia” para designar um campo do saber, de estudos ou uma teoria, no
sentido trazido pela autora do comentário, sugere que o painel se referiu a uma representação
idealizados dentro das universidades e são realizados, em grande parte, por setores ligados a
37
Disponível em https://relatosagroecologia2017.itbio3.org/atividades/at27-painel-ii-memoria-da-agroecologia/.
197
encontros idealizados e realizados pelos movimentos sociais como uma forma de fortalecer o
existentes acerca dos lugares de fala nas diversas esferas da agroecologia, particularmente a
partir dos marcadores de gênero e raça. Esse acontecimento disparou vários debates,
brasileiras construíram suas próprias memórias na agroecologia a partir dos seus respectivos
2018, cada região levou uma representação de sua memória na agroecologia que apareceram
braços do rio que formavam, ao se juntarem, o “rio da vida das mulheres” na agroecologia.
respectivas regiões que foram essenciais para a construção da agroecologia. Nomes como
Margarida Alves, sindicalista paraibana assassinada nos anos 1980 por defender os direitos dos
estudo sobre manejo ecológico dos solos no país desde os anos de 1960; a Articulação Nacional
de Mulheres Trabalhadoras Rurais, movimento criado nos anos 1990 que foi fundamental para
eucaliptos transgênicos no Rio Grande do Sul; foram alguns dos nomes e elementos trazidos na
38
Disponível em http://agroecologia2017.com/apresentacao/.
39
A mística é um ritual político de integração entre os participantes do movimento, visando a reprodução de um
capital simbólico e a construção da identidade do sujeito militante (Vieira, 2008). O uso da mística foi herdado
dos movimentos eclesiais de base e hoje é disseminado por diversos grupos políticos de esquerda na América
Latina (Costa & Schwade, 2015).
198
memória das mulheres, junto a vários nomes menos reconhecidos, além de trazer a memória de
Após o encontro dos rios, a mística continuou com o encontro entre uma representação
de Oxum – orixá feminina que na mitologia das religiões de matriz ioruba cuida das águas doces
para uma benção ao Rio Doce, atingindo pela lama após o rompimento da barragem da
Brasil. As falas que se seguem, tratam da relação entre os rios, os corpos das mulheres e suas
memórias. O lema “A nossa luta é todo dia! Somos memória da agroecologia” foi trazida como
40
Espíritos dos antepassados que habitam a natureza sagrada.
200
de apagamento das mulheres na história, como acontecido no Painel do CBA e a fala de Altieri
Cena 2
Brasil, em e-mail que circulou nas redes de agroecologia, questiona o uso do feminismo
patriarcal e machista) ”, afrase “não existe agroecologia sem feminismo” não se sustentaria.
Essa mensagem eletrônica gerou uma carta aberta41 em resposta assinada por 60
mulheres militantes e diversas organizações. Na carta, elas apontam que a teoria feminista
crítica busca questionar os sistemas de pensamento existentes à luz dos pressupostos destes
possível construir justiça socioambiental com uma distribuição de recursos e poder entre
homens e mulheres. Por fim, afirmam que os referenciais teóricos trazidos pelo feminismo são
forma que há uma diminuição dos conhecimentos e práticas construídos pelas mulheres, vistos
41
Disponível em: https://acervo.racismoambiental.net.br/2013/12/19/carta-aberta-a-francisco-caporal-sem-
feminismo-nao-ha-agroecologia/.
201
como não científicos – Caporal, por exemplo, ressalta a necessidade de uma “vigilância
epistemológica” como forma de criticar o uso das teorias feministas como chave de leitura no
institucional, é possível reconhecer diversas contribuições das mulheres para esse campo do
saber.
uso de sementes transgênicas no Brasil. As mulheres sempre souberam que seriam as mais
prejudicadas com o uso dessas sementes, pois seriam afastadas dos centros de decisão e
biodiversidade é essencial para manter a saúde nutricional das suas famílias, por isso
desenvolveram uma tecnologia de cultivo própria, plantando várias espécies diferentes com
combinações específicas e sem separação de diferentes plantas em seus quintais. Esse tipo de
plantação sempre foi criticado por técnicos agropecuários que o consideravam um tipo de
plantio “desordenado” e que gerava pouco excedente para venda. Hoje, contudo, é o modelo
colocado em prática nos plantios agroecológicos de maneira geral, de pequena, média e grande
escala. As mulheres sabiam ainda da importância dos conhecimentos sobre as ervas medicinais
Deste modo, é urgente questionar qual história da agroecologia vem sendo contada e
posteriormente desenvolvidos pela academia, não estão sendo visibilizados. Aqui é importante
retomar que, como colocam as feministas negras e descoloniais, não é possível separar a
que quando falamos da memória das mulheres na agroecologia estamos falando da memória,
indígenas principalmente.
Como argumenta Kilomba (2010), as hierarquias sempre serviram para silenciar vozes
subalternas:
Essa hierarquia, como defende a autora, define quem pode falar. Quando mulheres não
construir um olhar crítico sobre as estruturas de poder e saber hegemônicas – evidencia-se como
epistemologia ocidental dominante. Como aponta a filósofa panamenha Linda Alcoff (2016), a
autoridade que lhe permite julgar, por exemplo, o conhecimento reivindicado por movimentos
sociais, as ontologias de povos originários, a prática médica de povos colonizados e até mesmo
relatos de experiência em primeira pessoa de todos os tipos. Não é à toa que Caporal reivindica
42
“When they speak it is scientific. When we speak is unscientific.
objective / subjective;
neutral / personal;
rational / emotional;
impartial / partial;
they have facts, we have opinions;
they have knowledge, we have experiences”.
203
a vigilância epistemológica para justificar sua crítica ao feminismo enquanto uma teoria dentro
do arcabouço da agroecologia.
transformação social sem romper com as epistemologias dominantes. Não se trata, entretanto,
campo discursivo onde pesquisas científicas são desacreditadas – o que Alcoff (2016) chama
chamadas de “ideológicas” por assumirem uma posição que vai contra interesses políticos e
instituições como a Fiocruz que mostram uma série de malefícios do uso e consumo de
agrotóxicos e que vieram à tona a partir dos debates travados na Câmara dos Deputados com a
votação do Projeto de Lei 6299/02, considerado pelos movimentos sociais e instituições que
Veneno que visa, entre outros pontos, ampliar o uso de agrotóxicos no Brasil.
dos saberes e dos discursos na agroecologia, e que tal processo passa, necessariamente, por
Feminismos em disputa
Outro aspecto que gostaríamos de destacar a partir das cenas apresentadas diz respeito
às formas com que as mulheres vêm construindo suas narrativas nesse contexto histórico de
silenciamento de suas narrativas e apropriação dos seus saberes. As duas ações realizadas pelas
mulheres nos eventos, tanto no X CBA quanto no IV ENA, são frutos da organização autônoma
se em torno de pautas em comum e que componham coletivamente as ações políticas, nem todas
mulheres. Ainda que exista afinidades com partidos de esquerda, as organizações das ações
coletivas de mulheres não se fundam ou são pautadas por questões e estruturas burocráticas-
partidárias.
restringem às pautas trazidas pelos coletivos mistos, principalmente no que se refere à agenda
Essas interpelações não vão surgir apenas em esferas mistas, mas também em coletivo
diz respeito à uma outra cena ocorrida também durante a roda de conversa “Sem feminismo,
que apesar do gradativo protagonismo das mulheres na esfera do movimento, esse era o
primeiro ENA onde a maioria das participantes vinha das experiências, ou seja, eram
205
político “Sem feminismo não há agroecologia” do singular para o plural “Sem feminismos não
há agroecologia”, mudança que desde então vem sendo incorporada gradativamente pelo GT e
pelo movimento como um todo. A partir dessa intervenção constituiu-se o grupo “Pretas na
agroecologia” que reúne mulheres negras e também indígenas que vêm trazendo suas demandas
e questões políticas a partir dos feminismos “plurais e populares”. Esse ponto é particularmente
central para entender as ações coletivas de mulheres na esfera da agroecologia pois, como
aponta bell hooks (2017), o feminismo foi apropriado ao longo da história em seu caráter mais
acadêmico com o predomínio de mulheres brancas, perdendo, de acordo com a autora, muito
associado às suas diferentes “ondas” 43 que contam de maneira linear a história do feminismo
branco no Ocidente. Entretanto, a autora argumenta que essa narrativa não corresponde às
experiências de luta das mulheres latino-americanas e do Sul global, sendo uma forma de
apagamento das resistências que vêm historicamente sendo construídas por essas mulheres.
Essa crítica também foi realizada pelas mulheres negras do IV ENA, à medida que elas afirmam
experiência não só das mulheres brancas, mas das mulheres negras e indígenas, aponta para
43
As ondas do feminismo correspondem a uma leitura teórica em que a primeira onda estaria ligada às lutas pelo
sufrágio das mulheres na Europa do século XIX, a segunda refere-se às lutas por direitos e igualdade a partir do
século XX e a terceira refere-se aos movimentos pela pluralidade das identidades e categorias políticas dentro dos
feminismos a partir dos anos de 1980. Recentemente autoras como Heloisa Buarque de Hollanda (2018) têm
proposto a existência de uma quarta onda que estaria relacionada ao uso massivo da internet para organização,
conscientização e propagação dos ideais feministas.
206
uma construção de outras narrativas possíveis. No mesmo sentido, quando as mulheres fazem
uso de símbolos da cosmovisão indígena e africana, como observado na cena 2 ocorrida durante
dialoga não apenas com visões de mundo não-ocidentais, mas com elementos referentes à
estratégia de dominação ligada ao discurso patriarcal judaico-cristão44. Por tal razão, hooks
(2017) faz uma distinção entre a religiosidade enquanto estrutura de poder hierárquico – que no
de mundo que não são alicerçadas exclusivamente na racionalidade moderna ocidental que,
Já a filósofa mexicana Aimé González (2018a) aponta como para mulheres indígenas
no território latino-americano (ao qual ela irá referir-se como Abya Yala45) é impossível separar
a esfera da espiritualidade da esfera política e do conhecimento, uma vez que, para estes povos,
essas esferas constituem-se mutuamente. A espiritualidade, portanto, é vista como uma forma
44
Sendo os movimentos de Teologia da Libertação na América Latina uma notável exceção nesse contexto.
45
O nome AbyaYala advém da língua Kuna, falada pelo povo de mesmo nome que habita parte da Colombia e
Panamá. Ela significa “Terra madura” sendo utilizado como um sinônimo para América. Esse termo vem sendo
usado como uma autodesignação dos povos originários do continente como contraponto a América expressão que
se consagra a partir de finais do século XVIII e inícios do século XIX por meio das elites crioulas para se afirmarem
em contraponto aos conquistadores europeus no bojo do processo de independência (PORTO-GONÇALVES,
2016).
207
serviços básicos de atenção à saúde e educação, realidade presente nesses territórios. Por outro
agroecologia, uma vez que seus contextos são diversos, assim como os problemas que
enfrentam.
o que, como postula González (2018b, p. 3, tradução nossa) “levanta questões éticas sobre o
que comemos, o que usamos, onde é produzido e o que as mulheres estão pagando por isso (...)
Domesticar a política
As ações coletivas protagonizadas pelas mulheres apontam também para uma distinção
sujeito de direitos. Reconhecem a importância da luta por direitos, mas compreendem que tão
novas formas de vida, as quais sejam capazes de criticar as formas hegemônicas, conectando
essas questões à exploração socioambiental, soberania alimentar, acesso aos bens comuns como
terra e água e respeito às suas cosmovisões. Assim, percebemos que há por parte dessas
46
“Así que plantean cuestiones éticas de lo que comemos, lo que usamos, dónde se produce y qué están pagando
las mujeres por eso (….) Son cuestiones que el feminismo no se había planteado”.
208
mulheres um processo elaboração política das suas práticas cotidianas e tradicionais que surgem
Zona Oeste do Rio de Janeiro, esse feminismo que é trazido, tanto em uma ética política quanto
Segato (2016) aponta para a potência desses processos que ela chama de “domesticar a
política” em referência a consigna feminista dos anos 1960 “o privado é político”. Segato
teve como um dos seus efeitos a derrubada do espaço doméstico comunitário que se
central do exercício político das mulheres. O modo de fazer política tornou-se público, pautado
por etiquetas de distância que simulam uma falsa neutralidade. Nesse momento a posição das
mulheres sofreu uma caída abrupta e a história das práticas políticas das mulheres foi derrocada.
Onde encontrou continuidade, tratou-se de uma continuidade sem retórica de valor que a
amparasse. O valor do político acabou sequestrado pela esfera pública e pelo Estado com seus
protocolos modernos.
Dessa maneira, o âmbito que, no senso comum, é o espaço vital das mulheres, seu
espaço de trabalho e sociabilidade, perde sua força de espaço de política, prestígio e poder,
sendo considerado o outro do Estado e do público, entendidos como lugares por excelência do
la, refundá-la construindo uma atuação política que não se refere prioritariamente e somente à
esfera estatal e/ou institucional. Não se trata de uma tradução do doméstico em termos públicos
como foi proposto pelo movimento feminista nos anos de 1960, mas do caminho oposto, de
209
Para a autora, esse é um marco que difere a atuação política dos homens e das mulheres.
argumenta que a política das mulheres corresponde a outra forma de estar no mundo, a partir
nossa). Desse modo, ela advoga pelo reconhecimento e reutilização da pluralidade de espaços
institucional quanto no reconhecimento das lutas que não passam por esses espaços, trazendo
elementos do estado e doméstico para repensar os modos hegemônicos que se entende por
construir política.
cuidado coletivizado das crianças no evento foi um dos temas trazidos pelas mulheres, para que
elas pudessem participar das mesas, rodas de conversas e ações coletivas no encontro. Com
isso, instituiu-se um ciranda infantil, espaço aberto gerido pelas crianças e adultos voluntários
que, além de construirem um espaço de cuidado, também permitiu que as crianças presentes
A questão da alimentação é outro elemento que dialoga diretamente com essa ideia.
Durante o encontro, foi construída uma cozinha coletiva, aberta e voluntária onde os
participantes faziam as principais refeições do dia. Para a constituição dessa cozinha, os homens
foram incentivados a se voluntariar uma vez que as mulheres nos núcleos de organização do IV
47
“formas de protección de la vida más festivas y eficientes”.
210
ENA denunciaram o fato de que são elas, em geral, as responsáveis por pensar no bem-estar,
encontros construídos por militantes. Segundo elas, reforçar esse espaço como um dos únicos
Não a toa, esses dois pontos – o cuidado coletivo com as crianças e a cozinha coletiva –
agroecológicos, mostrando que a partir de outras formas de construir políticas, as mulheres têm
sendo pontos de tensão dentro da organização das ações coletivas, visto que o engajamento dos
homens nem sempre é espontâneo ou ainda, como relatado por algumas militantes, que eles
“não sabiam o que fazer” nessas situações, demandando a coordenação de militantes mulheres
nesses espaços.
mulheres.
211
Figura 20. Cartaz representando as mulheres camponesas, indígenas e negras como guardiãs
Últimas considerações
Uma pesquisa nunca está acabada, mas sempre em processo a partir das questões que
vão surgindo em campo, em leituras, discussões, etc. Ainda assim, acredito que o processo
agroecológico a nível nacional e local na cidade do Rio de Janeiro. Para isso, desenvolvi uma
agroecologia no âmbito da ANA, das políticas institucionais do governo Federal e dos relatórios
cuidadora ligada à natureza, de maneira que a diferença sexual é, ainda, utilizada nas
linhas majoritárias nesse campo discursivo: o Ecofeminismo e Feminismo Marxista por parte
dos movimentos sociais; e o Feminismo Liberal por parte das agências financiadoras e governo,
como um vetor de controle biopolítico das mulheres, instrumentam o trabalho das mulheres
agricultoras e criam uma separação dos feminismos de suas bases, criando uma ideia de que
apenas mulheres que trabalham ou estudam os feminismos podem estar autorizadas a falar
como tal.
linhas discursivas que articulem raça, gênero e colonialidade, propondo um projeto político que
enquanto projeto de transformação social sem romper com as epistemologias dominantes e sem
pelas mulheres.
estratégias políticas que deslocam os lugares instituídos de saber e poder e ressignificam tais
dos saberes e dos discursos na agroecologia e dos feminismos identificados por elas como
por trazer à tona os saberes, práticas e estratégias políticas construídos por grupos
214
mulheres sobre a experiência da vida no Rio de Janeiro, entendida como uma cidade partida. A
Zona Oeste é uma região majoritariamente negra da cidade, e, para elas, isso impacta
diretamente sobre os projetos de transformação urbana que vêm sendo construídos na região
como uma forma de “higienização social”. Desse modo, a agroecologia não só é uma forma de
“quilombos urbanos” que se formam a partir das feiras da roça e dos quintais produtivos.
um lado pode ser capturada por discursos que tentam minar seu potencial insurgente, por outro
lado, com as ações coletivas que vêm sendo construídas, especialmente pelas mulheres, que
possuem uma visão “glocal” de seus territórios, em uma ação rizomática, tecem redes com
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Apêndices
Informações às participantes:
1 – Convite
Você está sendo convidada a participar da pesquisa Agecologia, subjetividade e feminismos:
corpos políticos e (re)existências frente aos conflitos socioambientais na Zona Oeste do
Rio de Janeiro. Antes de decidir se participará, é importante que você entenda porque o estudo
está sendo feito e o que ele envolverá. Reserve um tempo para ler cuidadosamente as
informações a seguir e faça perguntas se algo não estiver claro ou se quiser mais informações.
Não tenha pressa de decidir se deseja ou não participar desta pesquisa.
2 – O que é o projeto?
O projeto consiste em pesquisar as estratégias e os significados das lutas das mulheres em torno
da agroecologia na Zona Oeste do Rio de Janeiro.
13 – Remunerações financeiras
Nenhum incentivo ou recompensa financeira está previsto pela sua participação nesta pesquisa.
***
240
Obrigada por ler estas informações. Se desejar participar deste estudo, assine o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido anexo e devolva-o à pesquisadora. Você deve guardar uma
cópia destas informações e do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para seu próprio
registro.
241
1 – Confirmo que li e entendi a folha de informações para o estudo acima e que tive a
oportunidade de fazer perguntas.
2 – Entendo que minha participação, é voluntária e que sou livre para retirar meu consentimento
a qualquer momento, sem precisar dar explicações, e sem que meu tratamento médico ou
direitos legais sejam afetados.