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P-074 - O Pavor - William Voltz
P-074 - O Pavor - William Voltz
O PAVOR
Autor
WILLIAN VOLTZ
Tradução
RICHARD PAUL NETO
Digitalização
VITÓRIO
Revisão
ARLINDO_SAN
Um fantasma parece ter embarcado na nave K-262...
O cheiro de suor, sangue, sujeira, animais e terra úmida revolvida; uma massa de
espectadores formada por pequenos funcionários, grandes dignitários, mercadores,
contrabandistas, operários, soldados e nobres; o rugido da luta, o tinir das armas, os gritos
dos animais feridos, as exclamações exaltadas do público... Era este o “espetáculo” na
arena de Rapmaag.
Sob o disfarce de um epanense e se parecendo com uma estátua de anão de
“tamanho descomunal”, Walt Scoobey tocou no braço de Marcus Everson.
— Como vamos localizar nosso contato em meio a esta multidão? — perguntou.
Deixou os olhos rondar sobre o círculo da arena, cuja massa ondulante oferecia um
quadro bastante colorido. Havia poucos lugares vagos.
O Coronel Marcus Everson, um homem de um metro e noventa, que no seu disfarce
não apresentava um aspecto muito melhor que o de seu companheiro, olhou
cautelosamente em torno.
— Ele entrará em contato conosco — respondeu. — Será conveniente falar em voz
baixa. Em hipótese alguma devemos chamar a atenção de quem quer que seja. Tomara
que Goldstein não se esqueça disso.
Um toque de fanfarra impediu-o de prosseguir em suas explicações. Os jogos iriam
começar. Seis robustos soldados arrastaram uma jaula para dentro da área principal do
estádio. Na jaula via-se um animal parecido com um sáurio.
— Será que realmente haverá um idiota que se disponha a lutar contra esse
monstro? — perguntou Scoobey em tom incrédulo.
Sua voz foi sufocada pelo uivo da multidão.
Alguns ajudantes apareceram na pista de luta, a fim de desatrelar os animais de
tração e levá-los para fora da arena.
Assim que todos se colocaram em segurança, alguém que se encontrava no limite da
clareira abriu a jaula usando uma longa corda. O pescoço do monstro parecia uma cobra.
O berreiro do povo ávido de sensação parecia deixá-lo perturbado.
Os guardas espetaram o monstro com longas varas. Conseguiram o que queriam.
Cego de raiva, o monstro saiu da jaula. Nuvens de poeira vermelha levantaram-se.
Sempre que o animal se aproximava da borda da arena, os espectadores das primeiras
filas fugiam apavorados.
Uma porta abriu-se logo abaixo do camarote do rei. Um epanense, que quase
chegava a ser do tamanho de Everson, entrou na arena, recebido por uma verdadeira onda
de aplausos. Para os padrões epanenses era grande. Mantinha os olhos oblíquos
semicerrados, a fim de proteger-se da poeira. As grandes orelhas salientes estavam
cobertas pelo cabelo. O gladiador usava um colete de couro. Na mão direita, segurava
uma espada de lâmina larga.
— Será que pretende enfrentar o monstro com esse palito? — perguntou Scoobey
fora de si. — Isso é suicídio!
Everson completou sem a menor comoção:
— E bastante lamentável, Walt. Aquele sujeito maluco é nosso contato. Nos levará
para junto de Goldstein.
Scoobey ficou nervoso. Sua mão apalpou um lugar embaixo da larga capa colorida,
que substituía o uniforme espacial do Império Solar. Com um gesto rápido, Everson
segurou seu braço.
— Guarde a arma! — ordenou. — Seu disparo pode nos denunciar!
Scoobey voltou a tirar a mão de baixo das vestes.
— Tem certeza de que o homem que vai arriscar a vida lá embaixo é nosso contato?
Everson acenou resolutamente com a cabeça.
— Está vendo o cinto dele? Nele foram bordadas algumas meias-luas. Meia-lua na
arena, é esta a indicação que nos foi dada.
O gladiador epanense cumprimentou o rei. Colocou-se no centro da arena,
esperando que o gigantesco inimigo o avistasse. Na parte visível de seu corpo havia
numerosas cicatrizes.
Um grito prolongado de desafio saiu da boca do lutador. Os olhos pequenos e
estúpidos do animal fitaram-no. O pescoço de cobra virou-se abruptamente. Com a
cabeça estendida para a frente, o monstro precipitou-se sobre o homem solitário.
Toneladas de carne e músculo fizeram o chão estremecer. Quando a fera partiu para o
epanense, ameaçando derrubá-lo, um grito de pavor soou na tribuna.
O homem desviou-se com um salto fantástico. O animal passou por ele, pois não
conseguiu controlar imediatamente o impulso daquela enorme massa. O epanense
levantou-se no mesmo instante. O inimigo veio parar junto ao muro que limitava a arena,
a fim de iniciar outro ataque. O epanense, que lutava pela vida, correu em direção ao
muro.
Everson ouviu Scoobey gemer baixinho. Com o corpo inclinado para a frente, o
oficial mantinha a cabeça apoiada em ambas as mãos.
— Você não acha que isso é uma coisa desumana? — disse Scoobey.
— Tudo é feito espontaneamente — objetou Everson. — Ninguém é obrigado a
lutar contra vontade. Um gladiador ganha mais que um ministro. Provavelmente também
gozam de maior popularidade. E, para isso, arriscam o maior valor que possuem: a vida.
— Goldstein já deveria ter entrado em contato conosco — disse Scoobey com a voz
impaciente. — Está usando a mesma máscara que nós. Muitas vezes não consigo
compreender esses mutantes.
Everson sorriu. Conhecia a mentalidade de Scoobey. Se ninguém o tranqüilizasse, o
oficial seria como uma banana de dinamite que ameaçasse explodir a qualquer momento.
— Goldstein ainda é jovem. Esta é sua primeira missão. Além disso, os telepatas
costumam ser sensíveis e prudentes. Olhe!
O grito de Everson fora causado pela cena que se desenrolava na arena. Seu contato
achava-se de costas contra o muro, com o corpo ligeiramente abaixado. Mantinha a
espada um tanto erguida, e fitava tranqüilamente o monstro que se aproximava. A fera
investiu cegamente contra a pequena criatura que se atrevia a enfrentá-lo. O epanense
colocou-se na proteção do ângulo morto formado pelo muro. E dali desferiu o primeiro
golpe. Atacando obliquamente e de baixo para cima, atingiu o pescoço do animal.
Louco de susto e de dor, o monstro esbarrou na parede de barro. O grito estridente
dos espectadores encheu o estádio. Everson perguntou a si mesmo por que os lugares
mais caros eram justamente os das fileiras de baixo, se estes tornavam-se os mais
perigosos.
O epanense, um homem frio e audacioso, contornou o gigantesco animal. Esquivou-
se habilmente às chicotadas desferidas pela cauda. O animal perdeu-o de vista. Nuvens de
poeira vermelha subiam da arena. O revestimento amarelo do camarote real assumiu uma
tonalidade escura. A multidão voltou a gritar. Everson confessou a contragosto que,
embora a luta apelasse para os instintos mais animalescos, nela havia algo de excitante.
O gladiador lutava com resolução e prudência. Aproveitava-se habilmente da
lerdeza do monstro. Suas armas eram a inteligência e alguns feixes de nervos de aço. A
espada que trazia na mão era apenas o instrumento de execução.
— Está conseguindo! — exclamou Scoobey em tom exaltado. — Por todos os
planetas! Ninguém acreditará nesta história. Todo mundo me chamará de mentiroso.
Everson lançou-lhe um olhar triste.
Teve de esforçar-se para não dizer que Scoobey contava histórias muito mais
incríveis aos cadetes da Academia Espacial, com o rosto mais sério deste mundo.
O duelo aproximava-se do fim. Os movimentos do monstro ficavam cada vez mais
lentos. Sangrava em muitos lugares. O epanense continuava a mover-se com a precisão
de uma máquina. Everson teve a impressão de que o fim da luta tornava-se um espetáculo
degradante; sentiu-se enojado.
Finalmente o gigantesco animal caiu na poeira, e seu sangue deu uma coloração
escura ao solo. O vencedor, radiante, colocou-se diante do camarote real, ergueu o braço
a título de cumprimento. O rei levantou-se. Era uma pequena figura arredondada, de
braços curtos e movimentos apressados. Aplausos frenéticos envolveram o vencedor.
Everson sentiu um gosto desagradável na boca. Centenas de epanenses tomaram a
arena de assalto. O gladiador foi carregado nos ombros pela multidão delirante.
— Acabou — disse Scoobey. — O que vamos fazer?
— Será difícil entrar em contato com ele — admitiu Everson. — Os fãs não o
largarão tão cedo. Acho que foi a atração principal do espetáculo de hoje. Vamos dar uma
olhada nas proximidades do lugar em que está o rei.
— Por quê? — perguntou Scoobey. Rugas de impaciência surgiram em sua testa. —
Quer oferecer uma ovação àquele gorducho?
Everson lançou um olhar para o camarote real. Todas as “eminências” se haviam
levantado. A maior parte dos homens, que rodeavam o rei, era muito mais alta que ele.
Everson perguntou a si mesmo o que diria o homem mais poderoso de Epan se soubesse
da presença de três homens vindos de um planeta situado a mais de dez mil anos-luz. Que
pensamentos lhe viriam à cabeça se visse a nave girino pousada nas proximidades da
cidade, numa área deserta?
— Coloque-se no lugar do agente de uma potência estrangeira — disse Everson em
resposta à pergunta do companheiro. — Onde procuraria ficar?
— É claro que o senhor tem razão — concordou Scoobey. — Alguém que queira
tomar pé neste planeta não irá relacionar-se com o simples homem de rua. Goldstein já
teve tempo de sobra para descobrir se por aqui já surgiram agentes de alguma raça
estranha de astronautas.
Everson ergueu-se lentamente. Mesmo sob o disfarce epanense, sua figura era
imponente. As grandes conquistas dos arcônidas na área da biologia e os extraordinários
produtos farmacêuticos faziam com que esse homem de oitenta e cinco anos parecesse
um robusto cinqüentão. O coronel tinha chance de atingir a idade de cento e quarenta
anos.
— Bem, vamos tentar a sorte — decidiu Everson.
Abriu caminho em direção à saída. Um pequeno epanense de corpo ressequido
interpôs-se em seu caminho.
— Querem ir embora logo depois da luta de Mataal? — perguntou. Sua voz parecia
de pássaro, e nela havia um tom odiento.
Everson, que realizara um hipnotreinamento do dialeto epanense, tal qual Goldstein
e Scoobey, respondeu em tom amável:
— Ficamos entusiasmados com a coragem de Mataal. Nossa terra fica ao norte, nas
proximidades de Aplaag. Mas as arenas de lá não oferecem nada que se compare aos
espetáculos daqui. Esse Mataal é formidável.
Um sorriso esboçou-se no rosto flácido do epanense. Em seus olhos, via-se um
brilho orgulhoso. Everson inclinou a cabeça para o homenzinho e colocou algumas
moedas em seu bolso.
— Temos de voltar logo para Aplaag, amigo. Mas gostaríamos de cumprimentar
Mataal. Acho que o senhor nos poderá ajudar.
O homem lançou-lhe um olhar astuto e sacudiu a cabeça.
— Não posso sair daqui — disse em tom triste. — Preciso controlar os ingressos. Se
abandonar meu posto, perderei o emprego.
Era um homem que mandava numa pequenina área, por isso sentia-se orgulhoso e
importante. Num gesto significativo, bateu no bolso em que Everson colocara as moedas.
O coronel colocou mais algumas.
— Tenho uma idéia — disse o homenzinho imediatamente. — Volte à arena. A
entrada das salas dos gladiadores fica pouco antes da escadaria destinada ao público.
Quem está vigiando essa entrada é Orgabaas, um amigo de minha esposa.
Scoobey deu uma cutucada em Everson e sorriu.
— Deixe isso para lá! — disse o coronel em tom indignado.
— Orgabaas os ajudará — prometeu o epanense. — Naturalmente... — voltou a
bater no bolso.
Everson agradeceu e arrastou Scoobey. Voltaram pelo caminho já percorrido e
encontraram a entrada que lhes fora indicada. Um velho epanense de pernas tortas e pele
muito amarela fechou-lhes o caminho.
— Aonde pensam que vão? — perguntou em tom áspero.
Sem dizer uma palavra, Everson deixou cair algumas moedas nas mãos do homem.
A expressão indignada de seu rosto desapareceu.
— Metade da Galáxia é subornável — constatou Scoobey em tom amargurado.
Mais uma vez, Everson tomou a palavra:
— Queremos falar com Mataal. Somos de Aplaag e gostaríamos de travar
conhecimento com o grande lutador.
Sem dizer uma palavra, Orgabaas apontou para uma porta. Everson mandou que seu
imediato esperasse e entrou sem bater. Sentiu-se envolvido por um cheiro acre de tinta
fresca. A sala estava repleta de epanenses. Mataal achava-se em meio àquela multidão.
Todos falavam ao mesmo tempo. Everson afastou um grupo de jovens epanenses para
penetrar na sala.
Subitamente viu Mataal. O gladiador estava deitado numa esteira azul. Tirara o
colete de couro. Tinha os olhos fechados. Em torno dele, os fanáticos estavam de pé,
agachados, deitados ou ajoelhados e gesticulavam que nem uns loucos.
Everson fez uso de seus fortes braços para avançar até a esteira. Com um sorriso
amável, inclinou-se sobre Mataal.
— Meia-lua na arena — cochichou ao ouvido do epanense.
Mataal abriu os olhos oblíquos. Eram negros e imperscrutáveis. Everson teve a
impressão de que sua imagem se refletiria nesses olhos, desde que se aproximasse
bastante. Enfrentou o olhar indagador. As vozes tornaram-se mais fortes. Todos acharam
que era chegado o momento em que poderiam importunar o lutador com seus desejos ou
perguntas. Mas...
— Meus amigos — disse Mataal com uma voz que, embora fosse suave, penetrava
em todos os cantos da sala. — Façam o favor de retirar-se.
Everson ficou espantado ao ver que a sala se esvaziou num instante. Depois que o
último dos fãs havia desaparecido, Mataal disse:
— São como crianças. Não acha?
Sua voz era agradável e revelava um elevado grau de cultura. Esse homem deveria
ter possibilidade de ganhar dinheiro sem arriscar a vida.
Everson não estava disposto a envolver-se numa discussão sobre os fãs de Mataal.
— Onde está Goldstein? — perguntou em tom lacônico.
Mataal colocou as mãos sobre os ombros do coronel. Everson sentiu a força
inacreditável daqueles braços.
— Eu o levarei para junto dele — disse o epanense em tom solícito. — Acontece
que o senhor nem imagina em que estado se encontra o rapaz.
Essas palavras guardavam um significado funesto, que deixou Everson apavorado.
— Está doente? — perguntou com a voz embargada.
— Devo confessar que não sei — respondeu Mataal. — Acho que está mudado, mas
ele não fala sobre o que lhe aconteceu. Depois de sua chegada, muitas vezes desapareceu
por vários dias. Não sei qual é a tarefa que o senhor lhe confiou, mas há alguns dias,
quando voltou, parecia bastante perturbado. Está quieto e indiferente. Nestes últimos
dias, não saiu mais de minha casa.
Everson refletiu intensamente.
O que poderia ter acontecido com o jovem mutante? Teria entrado em contato com
agentes de outras potências?
— Goldstein disse alguma coisa que leve a concluir que seu estranho
comportamento tem algo a ver com uma terceira pessoa?
— Ele não fala sobre isso — repetiu Mataal. — O senhor verá com seus próprios
olhos. Garanto-lhe que nada falta a seu amigo, e que está gozando de todas as regalias de
hóspede — depois de ligeira pausa, acrescentou: — Se desejar, podemos ir agora.
Everson fez um gesto afirmativo, e Mataal passou por ele, dirigindo-se à porta.
Assim que abriu-a, Walt Scoobey entrou.
— Olá! — disse, olhando Mataal de lado. — Um verdadeiro exército passou por
aqui. Será que toda aquela gente estava lá dentro?
— Walt — disse Everson a meia voz, deixando de lado a língua epanense. — Este
homem acaba de contar que alguma coisa não está em ordem com Goldstein. Pelo que
diz, o mutante parece bastante mudado.
Scoobey cocou as orelhas artificialmente aumentadas. Para demonstrar a admiração
que sentiam por Mataal, os espectadores acorriam de todos os lados. Com a ajuda de
Orgabaas, o lutador conseguiu abrir caminho. Saíram juntos da arena e Mataal levou-os à
cidade.
As construções pelas quais passavam, feitas de barro, madeira ou pedra bruta, eram
mais ou menos suntuosas, segundo as posses dos donos. O meio de transporte consistia
em carros ovais puxados por animais semelhantes a cavalos. Muitas vezes, Mataal
recebia cumprimentos respeitosos.
Caminhavam lado a lado sem dizer uma palavra.
Mataal parou diante de uma casa que se distinguia pelo tamanho descomunal.
— É aqui que eu moro — disse em tom orgulhoso.
Caminhou à frente dos outros. Alguns criados com vestes coloridas abriram as
portas. Mataal sorria.
— É o sinal do êxito do lutador — disse. — Não preciso de cartaz de propaganda.
Foram ao pátio interno e entraram num aposento decorado com muito bom gosto.
Mataal olhou para Everson e depois para Scoobey.
— Aceitam um refresco?
— Queremos ver Goldstein — disse Everson em tom impaciente.
Com um sorriso condescendente, Mataal levou-os a um pequeno aposento, muito
limpo, no qual havia uma cama baixa de madeira onde um jovem estava deitado. Tinha
os olhos muito abertos.
Quando eles entraram, não se moveu. Não fez absolutamente nada.
Era Goldstein.
Na porta, Mataal disse com a voz baixa:
— É claro que não é nenhum epanense; os senhores também não são.
2
Marcus Everson, comandante da K-262, passou a mão pela testa coberta de suor. O
mal-estar cessou, cedendo lugar a uma sensação profunda de satisfação. Girou a poltrona
para o lado de Scoobey. No rosto do pequeno oficial, via-se um sorriso de alívio.
— Conseguimos — disse este. — As coordenadas estão corretas. Estamos quase em
casa, coronel.
Uma única transição separava a nave da Terra. Os dez homens fizeram o que estava
a seu alcance. Conseguiram compensar a falta dos tripulantes atingidos pela paralisia.
Uma nova confiança encheu a alma de Everson. Decidiu realizar o último salto o quanto
antes. Era possível que, até lá, Landi conseguisse reparar o aparelho de telecomunicação.
Everson saltou da poltrona. O primeiro-operador de rádio estava sentado à frente do
aparelho. Everson apenas viu o cabelo negro e crespo por cima do encosto da poltrona.
Landi parecia totalmente absorvido pelo estudo do aparelho defeituoso.
— Dentro de pouco tempo estará em ordem, Landi — disse Everson, dando-lhe uma
pancadinha no ombro.
Sob o toque de sua mão, Landi caiu da poltrona. Ao cair, girou em torno do eixo da
cadeira com uma terrível lentidão. Por um instante, Everson viu o rosto desfigurado e
enrijecido de medo passar bem à sua frente. Enquanto o coronel ainda estava paralisado
pelo choque, a nova vítima caiu de vez ao chão.
Landi estava deitado de costas. A luz refletia-se nos seus olhos muito arregalados. O
Dr. Morton arrastou o operador de rádio para o lugar em que se encontravam os outros
doentes e cobriu-o.
O olhar de Everson caiu sobre uma fita branca que se encontrava embaixo do
aparelho de rádio.
Abaixou-se para pegá-la. Era uma prova de que o aparelho funcionara por um
instante. Todas as mensagens expedidas eram registradas nessas fitas estreitas.
Teria Landi conseguido transmitir uma mensagem pouco antes de ser atingido pelo
misterioso atacante? Conseguira concluir os reparos?
Dedicou sua atenção à fita que tinha na mão. A frase que conseguiu ler deixou
patente que os casos de paralisia não eram nenhuma doença.
Havia alguém na nave que reduzia propositadamente o número dos homens capazes
de entrarem em ação. As palavras vistas por Everson não passavam de uma amarga
ironia!
O instante durante o qual, segundo parecia, o aparelho funcionara perfeitamente,
fora aproveitado para enviar ao espaço uma mensagem mentirosa.
Everson voltou a examinar a falsa mensagem.
Tudo em ordem a bordo da K-262. Everson.
Enfiou a fita no bolso do uniforme. Procurou lembrar-se de quem estivera sentado
ao lado de Landi durante a transição. O lugar de Wolkow ficava à direita e ligeiramente
atrás do assento do operador de rádio. E o de Sternal ficava à esquerda.
Antes que Everson pudesse dizer qualquer coisa, os alarmas automáticos soaram. O
ruído estridente pesou em seus nervos superexcitados. Duas luzes vermelhas acenderam-
se no painel de emergência.
— Coronel! — gritou Scoobey num desespero louco. — Dois conjuntos propulsores
entraram em pane.
Todos falavam e gritavam ao mesmo tempo. Everson sentiu uma vontade irresistível
de cair na poltrona e deixar que os acontecimentos tomassem seu curso.
Os propulsores da Fauna dispunham de vários dispositivos de segurança contra
acidentes de todo tipo. Era altamente improvável que dois conjuntos falhassem ao mesmo
tempo. Se fosse um caso de sabotagem, Everson via-se diante de um enigma insolúvel,
pois ninguém se deslocara no interior da nave. Everson aspirou profundamente. Teria de
mandar dois homens aos compartimentos em que se encontravam as máquinas
defeituosas. Finney, o técnico, não poderia deixar de ir. Wolkow o acompanharia.
Scoobey desligou as sereias.
— Finney! — gritou Everson em meio ao súbito silêncio. — Wolkow!
As luzes do painel de segurança pareciam um par de olhos malévolos.
— Procurem localizar e reparar o defeito. Ajam com cautela. O sistema de
intercomunicação de bordo está ligado. A qualquer momento, poderão entrar em contato
conosco.
Sem demonstrar muito interesse, Finney perguntou:
— E se tivermos de abandonar o local?
— Nesse caso, saiam — disse Everson.
Finney confirmou com um gesto indiferente. Desceu pelas escadas juntamente com
Wolkow. Everson seguiu-os com os olhos, até que os perdesse de vista.
O comandante dirigiu-se aos homens que permaneciam na sala de comando.
— Todos sabemos em que situação nos encontramos — disse. — Apesar disso,
espero que ninguém perca a calma. Por enquanto não temos informações precisas sobre
as avarias. Provavelmente Finney e Wolkow conseguirão pôr as máquinas em ordem.
Fez um sinal para Sternal, que olhava fixamente o painel de emergência.
— Sternal, o senhor esteve sentado ao lado de Landi durante o hipersalto. Notou
alguma coisa de anormal?
— Não senhor — disse o navegador. — Só percebi quando Landi caiu da poltrona.
Ao lembrar-se da cena, engoliu em seco.
— Dr. Morton — disse Everson, dirigindo-se ao médico barbudo. — O senhor
acredita que um de nós possa causar a paralisia? Acha que existe a menor possibilidade
de que seja assim?
— Esse tipo de paralisia pode ser provocado por alguém que disponha dos
necessários recursos e conhecimentos médicos. Esta última parte aplica-se a qualquer um
de nós. Todos aprendemos o necessário para que possamos arranjar-nos sozinhos se
estivermos num planeta deserto. Apesar disso, sou de opinião que o culpado não pertence
à tripulação da nave.
O médico refletiu por um instante.
— Existem varias toxinas que produzem um efeito como este. Acontece que, no
caso de alguns dos tripulantes paralisados, especialmente no de Landi, não vejo como o
veneno poderia ter sido introduzido em seu corpo. Alem disso, submeti todos os doentes
a um exame rigoroso e posso afirmar com segurança absoluta que não houve nenhuma
intoxicação. Ao que tudo indica, ainda resta muita coisa para esclarecer, pois trata-se de
um choque.
— O que está esperando, coronel? — gritou Weiss. Sua mão estendida apontava
para Mataal, que se mantinha sentado, imóvel. — O senhor acaba de ouvir que não pode
ser nenhum dos tripulantes.
— Cale-se! — disse Everson, advertindo o homem exaltado — Como explicar a
pane no telecomunicador e nos dois propulsores? Será que o epanense poderia ter
realizado atos de sabotagem como estes?
A atmosfera estava tensa ao Extremo.
Os homens vigiavam-se mutuamente com uma suspeita cada vez mais intensa. E as
desconfianças recaíram principalmente em Mataal.
— O Dr. Morton aplicará uma injeção no epanense — decidiu Everson. — Ficará
por algum tempo em estado de hibernação. Se durante esse tempo houver outros
desastres, poderemos ter certeza de que nada tem a ver com os casos de paralisia.
Repetiu as mesmas palavras em língua epanense. O ser extraterrano fitou-o com
uma expressão de indiferença.
— É claro que não tenho nada com isso — disse, estreitando os olhos. — Antes que
use a violência, manifesto minha concordância.
Everson fez um sinal para o Dr. Morton. Atrás dele. Fashong soltou um grito de
surpresa. Everson virou-se abruptamente. As duas luzes vermelhas se haviam apagado.
— Não é possível! — exclamou o coronel. — Finney e Wolkow ainda não podem
ter concluído os reparos. Mal podem ter começado.
Uma suspeita horripilante surgiu em sua mente. Deu dois passos e colocou-se à
frente do microfone.
— Finney! — berrou. — Wolkow! Estão ouvindo?
Um silêncio pavoroso espalhou-se pela sala. Everson sentiu as pulsações de seu
coração. Os alto-falantes continuaram silenciosos. Goldstein ergueu-se do leito. Ao que
parecia, nem sabia onde estava, pois seus olhos espantados fitavam os arredores.
— Finney! — voltou a gritar Everson, enquanto sua garganta ameaçava fechar-se.
— Finney! Wolkow!
No seu íntimo sabia que não obteria resposta. Nem Finney nem Wolkow
responderiam. Seus corpos paralisados jaziam em algum lugar da nave. Deviam estar
rígidos, com os olhos muito arregalados. Everson viu o quadro com os olhos de sua
mente... O inimigo invisível revelara uma habilidade tremenda ao afastar os dois homens
do grupo, e ele, Everson, fizera o jogo do mesmo.
— Vou procurá-los — disse Sternal.
O navegador fez menção de sair da sala.
— Pare! — gritou o coronel. — Fique onde está.
Sternal não tomou conhecimento da ordem e prosseguiu imperturbavelmente. Numa
decisão súbita, Everson pegou o paralisador e disparou. Sternal caiu na escada.
— Traga-o para cima, Weiss! — ordenou Everson. — Logo recuperará os sentidos.
Repito: ninguém deverá sair da sala de comando, haja o que houver.
Sentiu-se cansado e desesperado. Os poucos homens que lhe restavam não poderiam
realizar a última transição.
Estavam à mercê do inimigo traiçoeiro.
7
Certa vez nos anos de juventude Everson vira um filme cultural, que mostrava como
os membros de um povo primitivo irrigavam seus campos Faziam um burro magro e
estropiado correr em círculo com os olhos vendados bombeando a água Enquanto o
animal indefeso, martirizado pelos insetos corria ao sol do meio-dia alguns dos nativos se
mantinham inativos à sombra do poço.
Naquele tempo, o tratamento dispensado ao animal provocara uma cólera violenta
em Everson. E agora, que estava encolhido na sua poltrona, tresnoitado, com o rosto
pálido e encovado, sentia uma compreensão ainda mais profunda pelo sofrimento do
burro. Sua situação era semelhante à do quadrúpede que vira no filme. Everson também
se movia em círculo. Parecia estar com os olhos vendados, incapaz de reconhecer a
verdade.
Suas mãos seguraram o copo com o líquido gelado, que o Dr. Morton lhe dera para
animá-lo.
Inoshiro não chegou a recuperar os sentidos. Passou do estado de inconsciência à
misteriosa paralisia. Há poucos minutos Sternal fora atingido também. O homem caíra à
porta da sala de comando, sem emitir qualquer som, como se fosse uma marionete cujo
fio é cortado.
Quase todos estavam transformados em bonecos, encontrando-se sob o poder do
inimigo invisível, que os dirigia segundo sua vontade! Everson lançou um olhar para os
quatro homens que ainda lhe restavam; um deles devia ser o criminoso
Seria o Dr. Morton? O médico era uma verdadeira capacidade e não teria a menor
dificuldade em provocar paralisias desse tipo. Acontece que Everson não conseguia
conceber uma idéia precisa sobre o como. Ou seria Fashong? Era um chinês ágil, que
sempre mostrava um rosto indiferente. Que motivo poderia ter para agir dessa forma?
Poul Weiss? Everson sacudiu a cabeça. Não acreditava que aquele homem tivesse
algo a ver com aquilo. E o mesmo acontecia com Scoobey, que estava encolhido em sua
poltrona, muito cansado, cochilando com os olhos entreabertos.
Mataal estava sob os efeitos da injeção aplicada pelo Dr. Morton. Seria inútil
aplicar-lhe outra dose, pois a inocência do epanense era evidente. E todos os outros
tripulantes achavam-se paralisados. Com exceção de Goldstein. Mas esse rapaz estava
louco.
As chances de descobrir o culpado não eram muito grandes.
Será que havia mais alguma coisa a bordo?
Everson lembrou-se das palavras confusas de Goldstein.
O mutante não dissera em suas fantasias que a morte subira a bordo juntamente com
ele? Será que eram apenas os pressentimentos sombrios de um homem dotado de
faculdades paranormais? Ou haveria realmente um inimigo desconhecido a bordo?
Ao levantar-se, Everson teve a sensação de que estava sendo observado por olhos
desconfiados. Os companheiros deviam desconfiar dele, tal qual ele desconfiava dos
mesmos.
O coronel aproximou-se lentamente de Goldstein. O telepata mantinha os olhos
fechados. Sua respiração era apressada; parecia exaltado. Everson inclinou-se sobre ele.
— Goldstein — disse em voz baixa. — Goldstein, você me ouve?
O mutante abriu os olhos, que apresentavam um brilho febril enquanto fitavam
Everson.
— Calma, rapaz — disse Everson. — Quero conversar com você.
Goldstein ergueu-se abruptamente. Fitou os homens paralisados. Virou o corpo e
apoiou-se sobre os cotovelos.
— Todos estão paralisados — disse apontando nervosamente os corpos. — Daqui a
pouco, todos estarão deitados assim; todos.
— Conte-me alguma coisa sobre isso — pediu Everson em tom insistente.
Goldstein agarrou-se ao comandante. Este sacudiu-o num gesto animador.
— Estamos sendo observados — cochichou o telepata com a voz chorosa. Seus
olhos corriam nervosamente de um lado para outro. — Se eu disser alguma coisa, ele nos
matará.
— Ninguém o matará. De quem está falando? Diga quem está nos observando; fale
logo, Goldstein!
As últimas palavras quase chegaram a soar como um grito.
Um sorriso abobado surgiu no rosto de Goldstein. Por um momento Everson teve
uma sensação estranha; parecia que deixara de notar um pormenor decisivo. Não
conseguia segurar os pensamentos, estes se desfaziam como se alguém os apagasse com
um pano.
— É o Dr. Morton — disse Goldstein com a voz de criança que revela a “novidade”
que ouviu de um adulto. — O Dr. Morton me matará — gritou em tom estridente.
Everson afastou-se do mutante. O Dr. Morton levantou-se com o rosto pálido. Havia
uma expressão séria nos seus olhos azuis quando os mesmos se dirigiram sobre Everson.
O coronel tirou o paralisador.
— O senhor está louco — gritou o médico. — Goldstein está fora de si. Vai
acreditar num louco?
— É um telepata — disse Everson. — Pode ser um telepata louco, mas sabe ler
pensamentos. E desconfia do senhor, doutor. O senhor é a única pessoa a bordo que
poderia colocar-nos numa situação como esta. Seus conhecimentos podem colocar os
doentes nesse estado. Ainda mais que o senhor não foi atingido pela paralisia.
O médico barbudo recuou alguns passos. Levantou os braços, num gesto de
acusação contra Everson.
— Agora já vejo tudo — gritou. — Foi o senhor que fez tudo isso. Que esperto! Se
o senhor me eliminar, ninguém mais poderá impedir sua atuação — fez um sinal para
Scoobey e Weiss. — Ele é o culpado; não tenham a menor dúvida.
Num gesto decidido Everson levantou o paralisador.
— Segurem-no! — berrou o médico, louco de raiva. — Segurem-no, antes que seja
tarde. Não estão percebendo seu jogo diabólico?
Mais tarde, Everson não saberia dizer por que resolvera atirar. Morton cambaleou e
caiu.
— Está apenas paralisado — disse Everson em tom indiferente.
— Não parecia sentir-se culpado — disse Fashong em voz baixa.
— Parecia sentir-se menos culpado que eu? — perguntou Everson.
— Não adianta nada desconfiarmos constantemente uns dos outros — respondeu o
chinês em tom tranqüilo. — Devemos conformar-nos com o fato de que fomos
derrotados. Se tentarmos entrar em contato com o inimigo, talvez descubramos quem é
ele.
— Nosso inimigo só pode ser um louco — disse Everson. — Impede nossa última
transição e, com isso, ele mesmo se condena à morte.
Mataal se recuperava lentamente dos efeitos da injeção. Everson ajudou-o a
levantar-se. O epanense notou que o número dos homens paralizados aumentara.
— Ao que parece sua situação não melhorou — falou com certa ironia. — Ainda
suspeitam de mim?
Everson sacudiu a cabeça.
— Acho que minha idéia não é nada má — disse Fashong em tom obstinado. —
Devemos entrar em contato com nosso inimigo fantasmagórico; não temos outra
alternativa. Vamos capitular.
— Quem vai resolver quando capitularemos sou eu, Fashong — esbravejou
Everson. — Além disso, nosso “amigo” só aparecerá quando ele achar que já chegou a
hora.
Scoobey, que se mantivera em silêncio por muito tempo, ergueu-se de sua poltrona.
Falou como um homem que refletira detidamente sobre um problema e acabara de
encontrar a melhor solução.
— Tenho outro plano, coronel — disse. — Vamos destruir a nave.
Esperou que alguém o contradissesse. Quando viu que ninguém se dispunha a falar,
prosseguiu:
— Faremos a Fauna explodir no espaço. O Comandante Everson poderá confirmar
que isso é possível. É bem verdade que todos morreriam, mas a mesma coisa aconteceria
com nosso inimigo. Com uma ação dessas, poderíamos atraí-lo para fora do esconderijo.
Terá de fazer alguma coisa, a não ser que queira morrer conosco. Não poderá prosseguir
na tática que tem adotado. Antes de mais nada, terá de desistir de nos colocar fora de
ação um após o outro, pois meu plano não lhe deixaria tempo para isso. Obrigaríamos o
inimigo a pôr as cartas na mesa.
— Concordo com sua idéia — exclamou Poul Weiss em tom apaixonado.
Fashong mostrou-se mais cauteloso:
— Isso parece um tanto definitivo. Seu plano não nos deixaria outra alternativa
senão morrermos todos, ou... bem, é justamente sobre esse ou que não sabemos nada.
— Também sou de opinião que não devemos arriscar a nave — disse Everson. —
Ainda temos uma chance de resolver a situação de outra maneira.
Com dois passos. Scoobey colocou-se ao lado de Mataal e levantou-lhe o braço.
— Será que este homem não tem o direito de participar da decisão? Afinal, sua vida
está tão ameaçada quanto a nossa. Vamos dar-lhe a oportunidade de manifestar sua
opinião. É o mínimo que podemos fazer.
— Está bem — disse Everson. — Perguntarei a Mataal.
Relatou em língua epanense o que havia acontecido.
— Destrua a nave — disse Mataal. — Nunca ninguém derrotou um inimigo por
meio da inatividade.
Seus dentes brilharam e o rosto amarelo desfigurou-se numa furiosa resolução.
Everson tinha certeza de que para Mataal o desconhecido era um monstro que poderia ser
vencido na arena com a espada.
— Você ganhou — disse Everson, dirigindo-se ao imediato. — Mataal também
concorda. Ainda vamos perguntar ao Dr. Morton. Não demorará em recuperar os
sentidos.
Scoobey aproximou-se do médico e tocou-o com a ponta do pé.
— O senhor está sem sorte, coronel — disse com a voz débil. — Aqui temos outra
prova de que não podemos esperar mais. O doutor está paralisado. Pretende manter-se
inativo ate que estejamos todos paralisados, coronel?
Everson sentiu vontade de investir com os punhos contra alguma coisa.
— O estado de Morton faz com que as suspeitas recaiam sobre mim — admitiu. —
Por isso concordo com sua idéia.
Scoobey sorriu.
— Muito bem — disse em tom satisfeito. — O senhor sabe o que deve fazer,
coronel. Não podemos executar o plano aqui em cima. Devemos ir até os propulsores.
Sugiro que saiamos juntos da sala de comando. Vamos logo.
Quatro serranos de inteligência superior a média e um gladiador epanense fitaram-
se. Em seus olhares, havia uma concordância muda. Scoobey caminhou à frente dos
demais.
Não chegaram longe...
Seus olhos presenciaram um espetáculo incrível. A escada, que constituía o único
caminho para as outras partes da nave, dissolveu-se à sua frente. Desapareceu sem mais
nem menos, afinou, tornou-se transparente, ficou reduzida a uma visão bastante vaga e
desfez-se de todo.
— Parece que nosso procedimento não agradou ao desconhecido — disse Weiss em
tom seco, olhando por cima da amurada.
No momento, não tinham qualquer possibilidade de sair da sala de comando. Esta se
transformara numa prisão, onde estavam à mercê do implacável inimigo.
Uma risada horrível arrancou-os de suas reflexões. Estremeceram apavorados. Era
Goldstein.
— Vamos dar-lhe uma injeção — disse Scoobey.
— Ele se acalmará logo — disse Everson. — Deve ser um ligeiro ataque.
Que possibilidades lhes restavam? O que poderiam fazer?
Everson sentiu-se totalmente exausto. Via-se diante do inimigo como quem está
privado de toda substância. A aparência dos outros não era diferente. Só o epanense, que
parecia não compreender o que estava acontecendo, não se mostrou abalado.
Everson examinou atentamente o lugar em que poucos minutos antes se encontrara a
escada de alumínio.
Como se poderia explicar o desaparecimento da mesma?
Será que ainda lhes restava alguma chance?
***
Goldstein foi-se recuperando aos poucos do cansaço. O esforço que tivera de fazer
para dissolver em poucos instantes a escada de acesso representara uma carga sobre-
humana.
Não quis deixar passar essa oportunidade de dar uma demonstração de sua força.
Teria de convencer Everson de que era invencível. O moral do pequeno grupo teria de
esfacelar-se peça por peça. Goldstein tinha certeza de que conseguiria.
— Se amarrarmos todas as cobertas, um de nós poderá descer — sugeriu Poul
Weiss.
— Isso não adiantará nada — objetou Everson. — A corda que fabricarmos terá a
mesma sorte da escada.
Fashong disse:
— Gostaria que minha proposta fosse considerada, coronel.
“Se conhecermos o inimigo, será mais fácil surpreendê-lo”, pensou o chinês. “Será
que Everson ainda não compreendeu?”
Goldstein não teve a menor dificuldade em acompanhar esses pensamentos. O
chinês seria o próximo a ser colocado fora de ação. A resolução férrea do asiático e sua
capacidade de conceber um raciocínio preciso, até mesmo numa situação como esta,
poderiam representar um apoio para Everson; e Goldstein não gostava disso.
— Como pretende fazer isso, Fashong? — perguntou Everson. — Quer que use o
sistema de intercomunicação de bordo para manifestar minha disposição de negociar?
Não me parece que nosso adversário esteja dialogando conosco.
— Minhas palavras poderão parecer uma imodéstia — respondeu Fashong. — Notei
que o inimigo age de acordo com certo esquema. Começou por colocar fora de combate
os homens menos importantes e depois foi atingindo os outros. Nós quatro, é claro que
Mataal deve ser excluído, formamos a elite dirigente da nave. Isso não pode ser simples
coincidência.
“Não há dúvida de que o chinês não demorará em descobrir a verdade”, pensou
Goldstein.
Fashong se colocara na pista como um cão de caça. Goldstein quase chegou a sentir
uma ligeira simpatia pelo navegador, que sabia defender-se sem recorrer a qualquer
capacidade paranormal.
— Qual é a finalidade que pode haver nessa seqüência? — perguntou o coronel.
Fashong prosseguiu:
— Em condições normais, seria de supor que um indivíduo dotado de raciocínio
lógico colocaria fora de ação em primeiro lugar as pessoas mais importantes, pois haveria
maior certeza de que estas poderiam opor-lhe alguma resistência. Se não age assim é
porque pretende fazer alguma coisa conosco, ou quer exercer pressão sobre nós. Quer nos
obrigar a desistir. Por que não fazemos a vontade do personagem misterioso, coronel?
Everson levantou a voz ao responder:
— Aconteça o que acontecer, nunca desistirei.
O chinês aproximou-se da mesa do navegador. Escreveu algumas palavras num
pedaço de papel e entregou-o ao comandante.
“Parece que podemos capitular”, leu Goldstein nos pensamentos de Everson. “Está
na hora de desistirmos do jogo.”
Everson amassou o papel e inclinou-se sobre o microfone.
— Estamos dispostos a negociar — disse, falando devagar. — Seja quem for nosso
inimigo, queremos que apareça a fim de que possamos chegar a acordo.
Goldstein soltou uma risadinha de escárnio. Suas energias paranormais entraram em
ação. A caneta moveu-se sobre a mesa de navegação, como se tivesse sido tocada pela
mão de um fantasma. Goldstein dirigiu o bilhete escrito cuidadosamente pela sala de
comando. O papel foi-se aproximando de Everson.
— Olhe, coronel! — gritou Weiss
O bilhete ainda flutuava, quando Everson pegou-o.
Leu-o em voz alta:
— Vão para o inferno!
— Diria que é uma expressão tipicamente humana — observou Fashong em tom de
satisfação.
Goldstein sabia que não dispunha de muito tempo. Não poderia esperar tanto como
fizera com Inoshiro. Sondou cuidadosamente o cérebro do chinês. Bastaria realizar uma
pequena modificação; não precisaria fazer mais nada.
— Isso representa um progresso enorme — resmungou Everson em tom sarcástico.
Fashong falou apressadamente;
— Os fatos só permitem uma conclusão.
Goldstein conhecia as palavras que se seguiriam antes que Fashong as pronunciasse.
Mas ninguém mais as ouviria.
Subitamente, o astronauta franzino estremeceu. Everson soltou um grito e colocou-
se a seu lado.
— Fale! — disse em tom exaltado. — Fale logo, Fashong!
Fashong abriu a boca, mas nenhuma palavra lhe passou pelos lábios. Parecia querer
apontar em determinada direção, mas o braço endureceu a meio caminho e caiu
pesadamente. Everson sentiu o pequeno corpo amolecer em seus braços.
— Ele sabia — disse o coronel. — Reconheceu o inimigo, mas não pôde dizer-nos
quem é. Ficou paralisado que nem os outros.
— Mas ainda conseguiu dizer uma coisa — observou Scoobey. — Mencionou que a
expressão “vão para o inferno” é tipicamente humana. Dali se conclui que um de nós três
é o criminoso — fitou Weiss e Everson, como se quisesse gravar seus rostos. — Aliás,
deve ser um de vocês, pois sei que não sou eu.
Everson foi recuando para um canto. O paralisador surgiu em sua mão.
— Scoobey ou Weiss — disse. — A escolha ficou bastante reduzida.
Weiss soltou uma estrondosa gargalhada.
— É inacreditável! — exclamou. — Vocês podem achar que sou um idiota, mas
tenho a impressão de que é um de vocês.
“Agora vão atacar-se uns aos outros”, pensou Goldstein muito satisfeito.
O que aconteceria quando o próximo homem fosse colocado fora de ação?
O mutante pensava em Scoobey. Everson e Weiss se anulariam mutuamente. O
coronel possuía uma arma. Isso significava que não precisaria preocupar-se com Everson.
O astronauta seria o último. Mataal, que estava sentado tranqüilamente no chão, não
contava. Uma ligeira visão dos pensamentos do epanense apenas mostrou saudades.
Sem que o quisesse, Fashong colocou os três homens numa pista errada. Cada um
deles estava convencido que o autor dos crimes só podia ser um dos outros dois. Everson
desconfiava principalmente de Weiss; Scoobey acreditava que o culpado fosse Everson, e
Weiss estava convencido de que deveria cuidar-se principalmente de Scoobey.
Muito divertido, Goldstein observou os três homens cansados que trocavam olhares
desconfiados. Everson segurava fortemente o paralisador, e Scoobey fez questão de ficar
com as costas livres. Weiss estava sentado no chão e pensava que dificilmente teria uma
oportunidade de defender-se.
— Acho que estamos procedendo como crianças — disse Weiss. — O comandante
acha que pode defender-se com essa arma — um sorriso de desprezo surgiu em seu rosto.
— O senhor sabe perfeitamente que isso é impossível. Em quem vai atirar quando lhe
acontecer o que acaba de suceder com Fashong?
Everson não respondeu. Scoobey moveu a poltrona para cima. Ficou a dois metros
do chão. Weiss levantou os olhos para ele.
— O senhor se sente mais seguro aí em cima? — perguntou ao imediato.
— Minha posição fica mais “esclarecida” — respondeu Scoobey fazendo tom de
mistério.
Estavam metidos numa armadilha. Goldstein nem se esforçou para reprimir a
sensação de triunfo que se apossava de sua mente. Ele, um mutante jovem e inexperiente,
fazia pouco das velhas raposas do espaço. Sua capacidade extraordinária lhe permitia
brincar com eles como se fossem bolinhas de gude que podia fazer rolar na direção que
quisesse. Devia deixar Everson arrasado a ponto de levá-lo a executar prontamente
qualquer ordem que lhe fosse dada. Os outros seguiriam os passos de seu superior.
Se depois dessa “massagem psicológica” Everson não quisesse mostrar-se razoável,
não haveria outra alternativa senão matá-lo. Com a morte de Everson, a nave perderia seu
dirigente intelectual, mas Scoobey era um substituto à altura. Assim que Goldstein
libertasse os astronautas da paralisia de que estavam acometidos, eles se lembrariam com
verdadeiro pavor do que lhes acontecera e não se arriscariam a atacá-lo.
O acaso colocara nas mãos de Goldstein a K-262, e com ela uma excelente
oportunidade de experimentar suas capacidades paranormais e desenvolvê-las. Não seria
fácil abalar o ânimo de Rhodan. Goldstein conhecia o poder desse homem, mas tinha
plena consciência de suas faculdades que, convenientemente desenvolvidas, fariam dele
um homem invencível.
Um sorriso de desprezo surgiu em seu rosto. Não era um absurdo que um homem
que não dispunha de capacidades paranormais desenvolvidas pudesse investir-se nas
funções de dirigente do Império Solar? Goldstein tinha certeza de que o Exército de
Mutantes apenas esperava surgir algum homem bem poderoso de dentro de suas fileiras.
E logo que esse surgisse, assumiria o lugar de Rhodan. Ele, Goldstein, seria esse homem.
Fitou a longa fileira de doentes com uma expressão pensativa. Ali estavam
estendidos, mudos e com o corpo rígido. Seus pensamentos não estavam paralisados.
Giravam em torno do medo, do ódio e do pavor provocado pelos planos de Goldstein.
Agora, que estavam indefesos, “amarrados” ao solo, já conheciam o inimigo. Mas seus
lábios, que ansiavam para gritar o que sabiam, permaneceram mudos. As línguas
recusavam-se a obedecer.
Goldstein penetrou mais profundamente em suas mentes. Tinham a intenção de
submeter-se à vontade do mutante. A disposição estava presente, apenas faltava despertá-
la e intensificá-la. Eles se submeteriam, cheios de ódio e cólera, mas obedeceriam.
O telepata estremeceu ao experimentar a sensação de sua força. Suas idéias tinham
algo de embriagante. Sentiu um profundo desprezo por aqueles homens que se
comunicavam lentamente por meio da palavra falada e viviam no ambiente que os
cercava sem compreendê-lo. Ele enxergava mais longe Eles eram uns primitivos; não
passavam de uma espécie inferior de animal. Para eles, um pedaço de madeira não as
sumia nenhum significado; apenas viam o tamanho, o formato e a cor. Já ele admirava a
textura fina da madeira, a estrutura e o agrupamento das moléculas. Possuía um sentido
adicional, que tateava a estrutura íntima das pequeninas partes. Conhecia suas qualidades,
sabia modificá-las, destruí-las e reconstruí-las.
Por isso era mais que eles. Ultrapassava-os no terreno espiritual, da mesma maneira
que eles ultrapassavam o macaco
— Olá, coronel! — a voz forte de Weiss irrompeu em meio aos pensamentos de
Goldstein, — O senhor está adormecendo.
Everson, que se recostara, empurrou o corpo para a frente. Teve de esforçar-se para
manter os olhos abertos. Passou a mão pelo rosto, como se, com isso, pudesse espantar o
cansaço.
“Não posso dormir”, diziam os pensamentos de Everson captados por Goldstein.
“Agora não posso dormir.”
Scoobey lançou um olhar de espreita pela braçadeira de sua poltrona.
— Não está cansado, Poul? — perguntou. — Até acho você bem disposto.
— Assim, me torno suspeito, não é? — perguntou Weiss em tom irônico. — Um
homem que não esteja tão indisposto deve ter uma boa explicação para seu excelente
estado — Weiss bocejou fortemente. — Se não estivesse com tanto medo, dormiria —
disse.
“Não durma agora, meu velho”, pensou o coronel intensamente.
Weiss realizou um grande esforço para manter-se afastado da parede que o
convidava a encostar-se.
Pareciam agora não suspeitarem uns dos outros.
Goldstein observava aquela gente, que para ele não passava de um bando de
macacos. O comandante, que começava a cambalear de cansaço. Scoobey, pendurado na
poltrona, exausto. Weiss que, de tanto medo e raiva, desenvolvera uma espécie de humor
sinistro. Mataal pensava intensamente na terra natal, da qual estava separado por
distâncias incomensuráveis. Esses pensamentos tornaram-se desagradáveis para
Goldstein, pois reforçavam a sensação estranha que se espalhava em seu íntimo. Não os
perseguiu mais.
— Precisamos descobrir um método de nos mantermos acordados — disse o
imediato.
— Para quê? — perguntou Weiss. — Indique-me um método que me permita
dormir tranqüilo, e veja o que farei.
Olhou para Scoobey com certa esperança no rosto.
— Tem alguma sugestão, Walt? — perguntou Everson em tom áspero.
— Temos de conversar — disse Scoobey. — Devemos falar uns com os outros; só
assim poderemos vencer o cansaço.
— Não contem comigo — objetou Weiss.
— Ninguém lhe pediu que participasse, Poul — respondeu o coronel.
“Era assim que falavam os macacos. Rosnavam na sua linguagem simiesca e
procuravam estabelecer algum tipo de comunicação”, pensou o mutante.
Weiss deixou-se cair no chão e fechou os olhos. Resolvera dormir.
— Pois bem, Walt — disse Everson. — Vamos começar.
Goldstein não demorou muito. Já possuía certa prática e sabia por onde começar.
Scoobey caiu molemente sobre a braçadeira da poltrona.
— Comece — repetiu Everson.
Olhou para cima. A parte superior do corpo de Scoobey estava pendurada sobre a
braçadeira.
— Walt! — gritou o Coronel. — Será que você adormeceu?
Moveu a chave e fez a poltrona descer. O corpo de Scoobey balançava ligeiramente.
Everson aproximou-se. Seu rosto transformou-se numa máscara. Goldstein recuou
instintivamente sob a violência de sua torrente de idéias.
— Weiss! — gritou o coronel com a voz rouca.
Weiss abriu os olhos e viu Everson abaixado ao lado da poltrona. Olhou para
Everson e Scoobey,
— Quer dizer que foi o senhor — disse num tom que quase chegava a ser de alívio.
— Por que me poupou?
O paralisador surgiu na mão de Everson. A postura do coronel era selvagem e seus
olhos exprimiam uma elevada dose de raiva recalcada. Weiss sorriu debilmente. O sorriso
ainda perdurou depois que Everson disparou e o corpo de Weiss foi empurrado para trás
sob o efeito paralisante da arma. O técnico cambaleou e tombou.
— Terminou — disse Everson em voz baixa, falando em epanense.
Mataal não respondeu. O coronel fez a poltrona de Scoobey subir novamente.
— Ele quis ficar lá — disse, dirigindo-se a Mataal. — Somos as únicas pessoas
nesta nave que ainda podem mover-se. Nós, e Goldstein — completou.
9
Uma sonolência benfazeja esteve a ponto de dominar seu espírito semidesperto. Mas
já dormira bastante. A lembrança do longo tempo de descanso mal aproveitado doía em
sua mente. Já se conformara com isso, perdera todas as esperanças e a autoconfiança,
quando a salvação veio inesperadamente.
Seus pensamentos recuaram ainda mais.
Viu diante de si a gigantesca nave espacial, no momento em que era destruída numa
explosão. Lembrou-se de como cambaleara pelo longo corredor...
Estava cercado de outros cientistas. A maior parte deles sangrava pela boca, nariz e
orelhas; estavam quase desmaiados pela súbita descompressão.
Viu à sua frente uma cápsula salva-vidas. Homens e mulheres corriam em direção à
mesma. Cego de dor e tristeza, foi cambaleando em direção à cápsula. Ao redor dele, as
pessoas caíam ao chão e gritavam por socorro, até que a falta de ar abafasse os sons.
Tateando, sentiu a escotilha da minúscula nave salva-vidas. Os olhos injetados de sangue
só conseguiam perceber algumas sombras. Penetrou no pequeno veículo espacial e,
reunindo as últimas forças, acionou a alavanca de catapultagem.
Quando recuperou os sentidos, alguns destroços da grande nave exploradora
pairavam a seu lado.
Foi salvo por uma tremenda coincidência. O desastre acontecera nas proximidades
de um sistema solar. Escolheu o único planeta de oxigênio e pousou. Saiu da cápsula
bastante confiante. Talvez esse mundo fosse habitado por uma raça que conhecia a
navegação espacial, e que poderia ajudá-lo a voltar a seu mundo.
Sofreu uma amarga decepção. Os nativos do planeta eram criaturas inteligentes, mas
encontravam-se nos estágios iniciais da civilização. Mesmo que interviesse no processo
de desenvolvimento para promover o avanço tecnológico, não conseguiria. Conformou-se
com a idéia de viver para sempre nesse planeta. Ativou suas potencialidades psicológicas,
a fim de estudar detidamente os hábitos dos nativos. Já que estava condenado a ficar,
queria levar uma vida relativamente boa. Bastaram algumas modificações de sua
estrutura celular para dar-lhe o aspecto de um epanense, que era o nome dado aos
habitantes desse mundo.
Também se atribuiu um nome: Mataal!
Mais tarde, passou a atuar como lutador de arena. Os êxitos obtidos, graças às suas
faculdades inesgotáveis, logo lhe granjearam a popularidade. Procurou esquecer seu
mundo, mas não conseguia satisfazer-se com a vida primitiva de Epan.
Um belo dia Mataal sofreu um choque tremendo; estabeleceu contato telepático com
alguém.
“Será que entre esses bárbaros existe algum telepata?”, pensou.
Mataal sentiu-se muito satisfeito.
Mas a realidade ultrapassou suas expectativas...
Uma pequena nave espacial acabara de pousar no planeta e largara um telepata nas
proximidades da cidade. Era um jovem pertencente a uma raça estranha, que se
mascarara para adquirir o aspecto de um epanense. O fato desse indivíduo usar máscara
provava que sua raça dominava a telepatia, mas não o processo de reagrupamento
molecular ou celular.
Sua grande chance chegara. Com o auxílio do telepata, conseguiria voltar a seu
planeta. Mesmo que não conseguisse, poderia desempenhar um papel de destaque entre
aquela raça de telepatas. Estava farto da vida primitiva, e ansiava por tarefas grandiosas
que lhe permitissem dar provas de seu valor.
Realizou um estudo cuidadoso do jovem. Através de Goldstein soube dos motivos
de sua presença no planeta. O saber extenso desse jovem sobre o Império Solar em geral,
e Perry Rhodan em particular, espalhou-se à frente de Mataal. Tratava-se de uma raça
jovem e ambiciosa, que começava a espalhar-se pelo Universo.
Há vários milênios os indivíduos da espécie de Mataal também já haviam sido fortes
e numerosos. Agora a situação era diferente. Partindo de um minúsculo sistema solar, os
últimos membros de sua raça realizavam uma espécie de expedição para o espaço
incomensurável, a fim de ampliar ainda mais seus conhecimentos. A raça de Mataal
diminuía constantemente, sem que pudesse fazer nada para impedi-lo. Mataal sabia que
as criaturas de sua estirpe estavam chegando ao fim de uma longa existência.
Justamente por isso, o terrano era sua grande chance, pois lhe permitiria voltar a
participar dos acontecimentos que se desenrolavam no plano cósmico. Descobriu que,
entre os terranos, os indivíduos dotados de recursos psíquicos especiais eram pouco
numerosos.
Mataal não precipitou os acontecimentos. Começou a realizar um trabalho simples,
destinado a preparar o telepata para seus objetivos. Mataal se manteria num plano
secundário. Enquanto Goldstein trabalhasse para ele, poderia observar, aprender e
elaborar seus planos.
Não teve a menor dificuldade em subir a bordo da nave, quando esta veio recolher
Goldstein. Ofereceu aos desconhecidos o espetáculo de uma luta de vida e morte, antes
de permitir que fosse seqüestrado.
Goldstein, que àquela altura não passava de um instrumento passivo nas mãos de
Mataal, entrou em ação. Mataal fizera todos os preparativos. O jovem telepata deveria
acreditar que suas novas faculdades já se encontravam latentes em seu espírito.
Mataal dirigiu-o suavemente para o caminho desejado. Agindo habilmente e sem
que o mutante desconfiasse de nada, desenvolveu idéias megalomaníacas na mente do
rapaz. Os problemas de consciência foram cuidadosamente dispersados por Mataal, a fim
de que se evitassem conflitos existenciais.
Uma única vez, Goldstein conseguira desvencilhar-se do domínio espiritual de
Mataal. Estando absorto na observação dos tripulantes, Mataal quase chegou a perceber
tarde demais que Goldstein procurava avisar o comandante.
Mataal penetrou mais profundamente na mente do mutante, para eliminar a
possibilidade da repetição desse tipo de incidente. Enquanto Goldstein agia na convicção
de conquistar a nave para si, Mataal podia estudar discretamente a mentalidade dos
homens. Teria de aprender, aprender, aprender cada vez mais. Só depois disso, poderia
pensar seriamente em defrontar-se com essa raça, dominá-la e aproveitá-la para as
finalidades que tinha em vista.
Assim que surgiram os primeiros casos de paralisia, as suspeitas recaíram nele.
Contara com isso. Era o ponto crítico que teria de ser vencido. Graças à sua calma e
impassibilidade, conseguiu aplacar as suspeitas. Quando o médico lhe aplicou uma
injeção fez de conta que desmaiara, e os outros caíram no logro.
Os homens começaram a culpar-se uns aos outros. Mataal conheceu grande número
de motivações humanas. Sem dúvida os tipos caracterológicos encontrados no pequeno
grupo permitiam conclusões sobre toda a raça.
Que povo não devia ser este!
Nos pensamentos desses homens espelhava-se a imagem de sua vida e morte, suas
lutas, suas vitórias e derrotas. Mataal soube de casos de alegria e tristeza, humor e
seriedade, amor e ódio. Sentiu-se fascinado por um estilo de vida tão marcado pelos
sentimentos. Como puderam experimentar uma evolução tão explosiva? Mataal acharia
mais lógico que se despedaçassem uns aos outros, pois cada um dos indivíduos à sua
frente parecia carregar ambições próprias.
Mataal nunca soube explicar como alguém conseguira levar essa massa de
individualistas a empenhar-se pelo mesmo objetivo. Uma vez que o pensamento dos
tripulantes não representava nenhum mistério para ele, ficou sabendo que os arcônidas
desempenharam um papel de relevo no desenvolvimento da Humanidade.
As ajudas haviam sido prestadas de maneira pouco espontânea, graças às hábeis
manobras realizadas pelo legendário Perry Rhodan, que andava constantemente na
cabeça daqueles homens.
Perry Rhodan era o homem que estava procurando! Só através dele poderia realizar
seus planos ambiciosos.
Mataal sentia-se admirado: um surpreendente naufrágio espacial daria à sua raça a
possibilidade de voltar a desempenhar um grande papel no desenrolar dos acontecimentos
cósmicos.
Goldstein, que praticamente não sofria a menor restrição em sua liberdade de
movimentos, passou a modificar as concepções que lhe foram sugeridas por Mataal. O
mutante realizou experiências com pseudos-corpos, a fim de experimentar o poder que
exercia sobre os mesmos. Isso representava mais um elemento que o ajudaria a
compreender o comportamento humano. Mataal não impedia que Goldstein cedesse a tais
desejos, pois estes em nada poderiam afetar sua atuação.
Depois que Goldstein paralisara quase todos os astronautas, aproximou-se o
momento em que o comandante não poderia deixar de suspeitar do mutante. Mataal
preparou-se para, se necessário, intervir pessoalmente. Mas Goldstein não revelou o
menor desembaraço ao desempenhar o papel do megalomaníaco ávido de poder que
Mataal lhe atribuíra.
Mataal sentiu o mal-estar que dominava o subconsciente do rapaz. O
comportamento de Goldstein não se harmonizava com seu caráter. A constrição mental
exercida por Mataal tornou-se cada vez mais intensa, a fim de evitar que Goldstein se
afastasse da trilha que lhe fora traçada.
Os homens libertados da paralisia começaram a combater Goldstein. Mataal viu que
agira com muita sabedoria ao utilizar o mutante, pois ele tinha maior capacidade de
prever as reações humanas. Mataal também saberia defender-se, mas não teria tempo para
adquirir novos conhecimentos.
Os pensamentos de Mataal voltaram ao presente. O cansaço cedera. Sentiu-se
disposto e ávido de ação.
Embaixo da sala de comando, pressentiu a leve pulsação de outro pseudo-corpo que
o mutante mantinha escondido. Mataal tinha certeza de que os homens não lhe davam a
menor atenção. Para eles, não passava de um bárbaro, cheio de saudades. Não tiveram
tempo para demonstrar sua compaixão, pois estavam empenhados exclusivamente em
conceber planos de ataque contra Goldstein.
Era de admirar que não desistissem, apesar dos insucessos que já tinham
experimentado. Mataal teria de contar com a possibilidade de que mais tarde iria
defrontar-se com gente de ânimo igual, com homens que jamais desistiriam, mas
prosseguiriam na luta, mesmo que a situação fosse desesperadora.
***
Goldstein retirou o pseudo-corpo lentamente de baixo do estrado da sala de
comando.
O que aconteceria se reunisse as duas porções de matéria? Como se comportariam
as respectivas massas no espaço, fora da nave? Conseguiria manter o controle sobre as
mesmas?
O mutante fez com que o segundo pseudo-corpo se aproximasse. Embora os
tripulantes desejassem, nada lhe poderiam fazer.
Por algum tempo, nas proximidades do lugar em que se encontrava, Goldstein
manteve a porção de matéria formada pela aglutinação de peças da antiga escada.
Realizou um ligeiro exame dos pensamentos dos homens e constatou que não havia
qualquer perigo. Poderia prosseguir tranqüilamente no seu trabalho.
O objeto artificial desapareceu. Goldstein dirigiu-o para o envoltório externo da
nave. Deteve-se. Talvez fosse preferível realizar a experiência na comporta de ar.
Enquanto Goldstein se mantinha de pé atrás da mesa de navegação, contemplando
os arredores com os olhos bem atentos, o pseudo-corpo flutuou para o interior da
comporta. Uma fração da substância paranormal de Goldstein acompanhava o bloco de
matéria e dirigia seus movimentos. Deu certo!
Goldstein levou a aglomeração de matéria para o negrume do espaço infinito.
Depois veio o rompimento dos diques, que liberou uma torrente de águas revoltas...
A parte do espírito de Goldstein, que levara o pseudo-corpo para o espaço,
permaneceu fora da nave... e fora do domínio invisível exercido por Mataal.
Era um fenômeno estranho, que se parecia com o primeiro tatear suave da planta
que rompe a terra.
A primeira conseqüência foi um crescimento doloroso do mal-estar de Goldstein.
Sentiu-se terrivelmente cindido, como se existisse de duas formas diferentes.
Seu espírito subdividiu-se em duas áreas, bem distintas uma da outra.
A parte liberada de sua mente, que se encontrava fora da nave, sustentada pelas
energias paranormais, parecia querer transmitir uma notícia importante. Por absurdo que
pudesse parecer, o espírito de Goldstein entrou em revolta, sua consciência fez esforços
desesperados para não receber a notícia.
O mal-estar cresceu e continuou a crescer. Parecia perfurá-lo e comprimi-lo. A parte
de sua mente, que se subtraíra ao controle de Mataal, lutava com uma obstinação muda
contra o domínio que ainda era exercido sobre ele.
***
Só quando o segundo pseudo-corpo já se encontrava fora da nave, Mataal percebeu
o erro que cometera. Repentinamente viu-se arrancado de sua posição segura. O pânico
inundou sua alma. Só uma ação fulminante poderia salvá-lo. O pavor, que lhe causava a
idéia de numa questão de segundos ter desperdiçado uma formidável oportunidade,
ameaçava paralisá-lo.
A pressão paranormal irradiada pela massa de matéria, que se mantinha no espaço
livre, tornou-se cada vez mais intensa. Sem que o soubesse, Goldstein atirava porções
cada vez maiores de substância paranormal para fora da nave. Dentro de mais alguns
segundos, reconheceria a verdadeira situação.
O pseudo-corpo teria de ser destruído. Mataal reduziu a influência que exercia sobre
o cérebro de Goldstein, para concentrar todas as forças no ataque.
Foi o segundo erro por ele cometido. Enquanto dedicava sua atenção ao que se
passava do lado de fora da comporta de ar, deu tempo a Goldstein para captar uma
informação que a parte liberada de sua mente lhe oferecia com tamanha obstinação.
***
A sensação desagradável de Goldstein transformou-se numa terrível certeza. O
sofrimento mental fê-lo choramingar. Os homens que o cercavam espantaram-se.
Entesaram os corpos, pois esperavam que o mutante revelasse um momento de fraqueza.
Quando Mataal começou a dissolver o pseudo-corpo no espaço, Goldstein
estremeceu.
Naquele instante, um sino parecia arrebentar em sua cabeça. Suspirou aliviado.
Viu tudo com uma terrível nitidez. O que fizera? A que atos se deixara levar? Sentiu
o ódio que o cercava.
Mataal não lhe deixou tempo para novas reflexões. De repente o bloco de matéria
voltou para o interior da K-262. Ao mesmo tempo, voltou a sentir a pressão em seu
cérebro.
Goldstein reconhecera o inimigo e começava a dar-lhe combate. Deixou que parte
de sua energia paranormal fluísse para o pseudo-corpo que flutuava na sala de comando,
a fim de, numa linha mais ampla, enfrentar os ferozes ataques de Mataal.
Os astronautas nem desconfiaram do duelo que se desenrolava à sua frente, mas
invisível para seus olhos. O rosto do jovem mutante desfigurou-se e o suor cobriu sua
testa, mas ninguém disse uma palavra.
O fato de por tanto tempo não ter passado de um instrumento barato na mão de outra
pessoa o fez sentir-se envergonhado.
O dique fora rompido por completo.
Um homem jovem e pertinaz acabara de recuperar a liberdade e estava disposto a
defendê-la. Uma fagulha surgira na mente de Goldstein, transformou-se em chama,
passou a um processo de combustão constante e encheu todos os cantos de seu espírito
consciente.
Precisava vencer Mataal!
***
O bloco de matéria artificialmente aglutinada caiu ruidosamente na comporta de ar.
Mataal levantou-se de um salto. Os pensamentos de Goldstein investiram contra ele.
Eram pensamentos carregados de uma selvageria indomada. Mataal procurou reforçar seu
domínio sobre a mente do terrano, mas já era tarde.
— Mataal! — berrou Goldstein através da sala de comando.
Os homens abaixaram-se como se desconfiassem do que se passava.
— Mataal, já sei tudo.
Mataal começou a tremer. Fez um esforço para conservar a calma. Teria de intervir
pessoalmente. Os astronautas não compreenderam os berros de Goldstein e mantiveram-
se inativos.
Mataal teria de apagar as faculdades que conferira a Goldstein no planeta de Epan.
Depois ocuparia o lugar do mutante.
Isso lhe roubaria o tempo que dedicava às observações, mas aumentaria
consideravelmente sua margem de segurança.
Mataal revolveu impiedosamente os respectivos setores. Agulhas incandescentes
penetravam no cérebro de Goldstein. A tensão mental desfez-se em violentas descargas.
A loucura parecia atingir o rapaz. Mas aquilo apenas durou alguns segundos. Goldstein
logo se transformou no simples telepata de antes.
Foi o terceiro erro de Mataal, e o mais grave de todos.
E também foi seu último erro.
Enquanto Mataal sentia certo alívio, seu fim se aproximava. De um instante para
outro, o pseudo-corpo que se encontrava suspenso sobre a mesa de navegação perdeu a
substância paranormal que o sustentava. Transformou-se num bloco de metal igual a
qualquer outro, que, sob os efeitos da gravitação artificial existente no interior da nave,
pesava várias centenas de quilos.
Transformou-se num bloco de matéria sem vida, que caiu sobre Mataal e o soterrou.
A vítima nem teve tempo para refletir sobre as conseqüências de seu ato. Talvez fosse
bom. Seu fim representava a condenação final de uma raça horripilante ao definhamento
lento e seguro.
***
A rigidez abandonou o corpo de Goldstein. Este pôs o rosto entre as mãos e soluçou.
Um esgotamento total ameaçava dominá-lo. Diante de seus olhos, surgiram contornos
apagados e sombras convulsas. Ouviu a voz de Everson, que deu uma ordem.
Subitamente percebeu que alguém se encontrava a seu lado. Fez um esforço
tremendo e reconheceu o coronel.
— Já passou tudo, Goldstein — disse Everson.
— Foi Mataal — cochichou Goldstein. — Não tive culpa.
— Sei disso, meu filho — disse o comandante. — Está tudo bem. Você deve estar
muito cansado. Quando recuperar as forças, talvez possa remover este bloco enorme da
sala de comando, para que o Dr. Morton possa examinar o cadáver dessa estranha
criatura.
O olhar de Goldstein tornou-se mais claro. Fitou o bloco de matéria que esmagara o
corpo de Mataal. A cabeça ficara intacta e não estava coberta. A morte trouxera-lhe uma
terrível modificação. As duras feições epanenses se haviam transformado num rosto
horrível, com feições de morcego. Parecia um rosto humanóide, desumano, sanguinário.
— Neste ponto não posso ajudá-lo, coronel — disse Goldstein num tom que quase
chegava a ser de felicidade. — Já não sou capaz de mover a matéria.
— Que monstro! — gritou Weiss, aproximando-se cautelosamente dos restos
mortais de Mataal.
— Cale-se! — disse Goldstein em tom de recriminação. — Afinal, o que é que o
senhor entende disso? Não foi nenhum monstro. Eu fui parte dele e compreendo seu
comportamento. Pensava primeiro em sua raça e depois em si mesmo. O senhor não
compreende, Weiss? Não era mau, e muito menos poderia ser chamado de monstro.
Apenas era diferente...
***
**
*
Em O Universo Vermelho, próximo livro
da série, Atlan, mais uma vez, é a figura
central dos acontecimentos emocionantes que
se desenrolam junto à fronteira do universo
dos druufs...