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27/3/2009 A DESCONSTRUÇÃO DA RACIONALID…

A DESCONSTRUÇÃO DA RACIONALIDADE INSTRUMENTAL:


EMERGÊNCIA DE UM NOVO PARADIGMA, A VIDA
1. UMA RETROSPECTIVA ATUAL

Ao (re)pensarmos a universidade, estamos voltando nos sobre o nosso próprio ser e fazer; estamos procurando a
nossa identidade numa sociedade magnetizada pela categoria universal da mudança "irresistível". As três perguntas da
existência humana -de onde viemos, quem somos e para onde vamos- projetam-se como incertezas e horizontes. Elas
são abrangentes demais para pretender exauri-las e resultam tão imprescindíveis que não temos como evitá-las.

Um olhar retrospectivo sobre a nossa origem não resolve os desafios a que estamos enfrentados, mas pode iluminar o
modo como fazê-lo. Sem mais dilações, num vertiginoso salto, situemo-nos na segunda metade do século XII. É aí que,
desde uma perspectiva cronológica, se estabelece habitualmente a origem da universidade como instituição. As cidades
(burgos) estão-se consolidando. Uma nova classe social amadurece e cresce: comerciantes, artesãos, homens e
mulheres livres que fogem do regime de servidão feudal, se refugiam no novo espaço de liberdade oferecido pelos
muros dos muitos burgos que se espalham ao longo das principais rotas comercias da Europa. Novas instituições
nascem e se estruturam: os diversos ofícios se organizam em grêmios, confrarias ou universitas para definir seu saber,
hierarquizar suas funções e estabelecer um regime legal próprio.

Muitas mudanças culturais e sócias históricas estão acontecendo, de entre elas podemos destacar, para nossa
temática, a importância da criação da escola de tradutores de Toledo, Espanha. A dinastia dos Abasidas, fundada em
750, que transferiu sua capital de Damasco a Bagdag, teve uma preocupação especial por traduzir o conjunto da ciência
e da filosofia helênica para o árabe, umas vezes diretamente, outras mediante o siríaco. Euclides, Arquimedes, Tolomeo,
Hipócrates, Galeno, Aristóteles, Teofrastro, Alejandro de Afrodisia e outros autores gregos puderam ser conhecidos e
estudados pelos árabes, enquanto para a região européia eles permaneciam desconhecidos ou só eram acessíveis
mediante referências secundárias. Foi em Toledo -conquistada pelo reino de Castela em 1085- onde se iniciou a
tradução destas obras para o latim. Uma significativa quantidade de obras clássicas antes desconhecidas foram
transcritas do árabe, do grego e do hebraico: as obras de Aristóteles, glosadas e compendiadas por filósofos árabes
como Alquendi, Alfarabi, Avice, Algazel y Averroes; as obras de Euclides, Tolomeo, Galeno e Hipócrates com comentários
e notas de El Joarzmi, Albatenio, Avicena, Averroes, Alpetragio. Toledo, no século XI, constitui o grande eco divulgador
das fontes originais do saber clássico que ficaram desconhecidas durante séculos pelo atraso e ignorância do que hoje
chamamos Europa. Os saberes do mundo islâmico, assim como os de Bizâncio, começam a influenciar de forma
decisiva nos novos grupos sociais dos burgos. Europa, nesse momento, constituía uma região subdesenvolvida, com
um profundo atraso cultural, social e economicamente periférica. O grande eixo econômico e cultural da época estava
formado por Bizâncio, Damasco, Bagdag e a Índia.

Nos pequenos burgos da toda Europa nasce uma nova instituição: a catedral. As agulhas góticas se elevam como
sinais de uma nova época de mudanças radicais. Elas simbolizam muito mais do que um estilo artístico. Representam
uma nova instituição que começa a concentrar o saber e o poder que durante a alta Idade Média foi quase monopólio
dos mosteiros. As catedrais, apoiadas pelas novas classes emergentes dos burgos, atraem para si o ensino dos
principais saberes da época: o trivium (gramática, retórica e dialética) e o quadrivium (aritmética, astronomia, música,
geometria). A vida econômica e social dos burgos revela uma complexidade até então inédita naquelas latitudes.
Surgem novos desafios e há uma imperiosa necessidade de dar resposta para eles.

E universidade é uma dessas criações sócio-históricas que emerge no contexto de grandes mudanças e desafios. O
nome de Universitas tinha o significado de corporação ou comunidade de pessoas agrupadas sob o mesmo regime
legal. Era sinônimo de corpus, consortium, collegium, communio, societas. Na Idade Média existia uma grande confusão
legal, cada um tinha o direito de ser julgado segundo a lei romana ou segundo seu próprio código teutônico. Neste
contexto os profissionais de qualquer estamento trataram de organizar-se em grêmios ou universitas com o objetivo de
definir sua situação legal. Mestres e estudantes, na sua maioria estrangeiros, tinham que reclamar uma carta ou
privilégio que precisara seus direitos e legalizara uma corporação a fim de tratar em igualdade de condições com os
conselhos legislativos das cidades. Universitas não significava que ali se lecionassem todas as disciplinas (universae
facultates) -que é o sentido atual do termo universidade-, mas que todos os mestres e alunos estavam de algum modo
associados. Até o século XIV não começou a se usar o nome de Universitas. O nome original do que hoje denominamos
Universidade era o de Studium Generale, isso é, lugar de estudo, aberto a todos os alunos de qualquer país.

Toda instituição universitária possuía caráter universal num duplo sentido: enquanto que admitia estudantes e mestres
de todas as nações, e enquanto que dava títulos ou graus válidos universalmente, de modo que aquele que recebia
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numa universidade a licentia docendi, podia, sem outros requisitos, lecionar em qualquer universidade.

Não existe uma origem comum para todas as universidades. Porém todas elas surgem nos burgos e com uma relação
direta, indireta ou contra a nova instituição da catedral. Em muitos casos, a princípio de forma voluntária e quase
espontânea, sob a cobertura da catedral, os pensadores mais renomados foram atraídos para divulgar seus
ensinamentos. Deste modo se constituíram as cátedras. No início eram simples escolas catedralícias. Durante um
tempo conviveram com outro tipo de escolas como as monacais e as palacianas (estas últimas só se desenvolveram de
fato durante a corte dos carolíngios e dos Otões) e também se têm notícias de algumas escolas particulares e
municipais, principalmente na Itália, para o ensino do direito. De todo esse conjunto, as escolas catedralícias foram as
que mais prosperam. Embora a origem de muitas universidades não está vinculada diretamente à escola catedralícia -é
o caso da Universidade de Paris-, estas foram o embrião que, a partir do núcleo emergente do burgo, atraiu, deu coesão,
redimensionou e estruturou de modo sólido e eficaz os saberes até então fragmentados numa multiplicidade de
indivíduos e estamentos.

As escolas de Studium Generale se multiplicaram ao extremo de exigir uma normatização da docência. Deste modo se
instituiu a faculdade de conferir a licentia docendi ubique a fim de acreditar a idoneidade daqueles que se apresentavam
como mestres do saber. É assim que se constituíram organicamente as primeiras universidades. A data das mais
antigas das universidades não resulta possível precisá-la. Salerno, Bolonia, Paris, Montpellier, Orleáns e Oxford
remontam suas origens ao século XII. Já no século XIII encontramos constituídas as universidades de Angers e
Toulouse (1229), na França, Cambridge na Inglaterra (1209), na, Espanha, Palencia (1212), Salamanca (antes de 1293)
y Lérida (1300), em Portugal, Coimbra o Lisboa (1288), na Itália, Pádua (1222), Nápoles (1224), Siena, Plasencia (1246).
Roma e Avignon tiveram universidade desde (1303). Na Alemánia, Praga (1347), Heidelberg (1385). Na Austria, Viena
(1365), em Polônia, Cracóvia (1364).

2. A VIGÊNCIA DOS POR QUÊS

Por que surgiram as universidades? Quais são os fatores que propiciaram a criação desta nova instituição social? Sem
dúvida no surgimento da universidade convergem uma multiplicidade de fatores econômicos, sociais, políticos,
religiosos, geográficos, demográficos, científicos..., difícil de determinar. O objetivo deste trabalho não é analisar de
modo exaustivo cada um deles. Pretendemos destacar alguns dos aspectos menos estudados e que não entanto
possuem certa relevância para poder entender vários dos desafios que a universidade enfrenta hoje.

Habitualmente se analisa a universidade desde uma perspectiva eurocéntrica, como se ela fosse uma criação
absolutamente original do ocidente. Não existe dúvida que, enquanto instituição, ela adquiriu rasgos originais e
identidade diferenciada. Porém não é menos verdade que ao estudar o processo de sua gênese, habitualmente se
ignoraram influências decisivas e determinantes. É o caso da influência que as escolas alcorânicas existentes nas
principais mesquitas, institucionalizadas durante séculos de prática, exerceram na gestação das escolas de Studium
Generale. As escolas alcorânicas, desde os tempos dos Abasidas em Bagdad e dos Omeyas em Córdoba,
concentravam o saber da sua sociedade, investigavam, criavam novos conhecimentos e os divulgavam num sistema
organizado de professores e alunos. Elas constituíam os principais centros do saber das sociedades mais evoluídas da
época.

A co-relação existente entre a mesquita e a catedral, enquanto instituições entorno às quais se teceram os principais
saberes da época, não é mera casualidade nem um simples mimetismo sociológico. O fato de ambas serem as
instituições religiosas principais de suas respectivas sociedades, é um indicativo da hegemonia dos saberes que nelas
se constituíram. A teologia era, sem dúvida, o saber hegemônico de ambas sociedades. Pouco importa que as
diferenças de credos fossem significativas. Em ambas sociedades a teologia, enquanto saber hegemônico, impunha
seus objetivos ao conjunto das áreas de conhecimento, direcionava suas metodologias, orientava seus conteúdos,
selecionava suas hipóteses, normatizava suas conclusões. Todo conhecimento era referido, em última instância, ao
paradigma teológico como modelo orientador e estruturador do seu ser e seu fazer.

Esta hegemonia teológica não é algo específico destes dois modelos sociais e culturais -o cristão e o islâmico. Na
verdade ela se perde na noite dos tempos e, com variáveis, se expande ao conjunto das geografias conhecidas. Era no
templo do deus Asclépio onde se lecionava a medicina, nos templos egípcios se concentravam e divulgavam o conjunto
dos saberes da época, a sabedoria babilônica estava intrinsecamente unida a sua mitologia e se desenvolvida
institucionalmente nos templos, a mesma coisa acontecia, com diferenças específicas, no resto das culturas
conhecidas.

As conseqüências negativas que a hegemonia e a tutela do saber teológico acarretou para o conjunto das áreas de
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conhecimento são bastante conhecidas. A modernidade européia se caracterizou, entre outras coisas, pela busca da
autonomia das diversas áreas do conhecimento respeito da tutela que o saber teológico impunha. Essa busca de
autonomia desencadeou um processo centrífugo de fragmentação do conhecimento onde, de tempo em tempo, novos
saberes foram constituídos, definiram-se novos objetos de estudo e se confeccionaram novos métodos de investigação.
A universidade foi uma das instituições que de forma mais ativa contribuiu para este processo. A autonomia dos saberes
foi uma das grandes conquistas da universidade. Ela possibilitou o crescimento em profundidade de cada área de
conhecimento, embora se perdesse a visão de totalidade. Este processo de autonomia dos saberes próprio da
universidade ocidental, não foi realizado na maioria das escolas alcorânicas. Ainda na atualidade, uma grande parte das
universidades, assim como as sociedades, que assumem uma inspiração islâmica impõem uma tutela estrita do saber
teológico (o Alcorão) sobre o conjunto das áreas de conhecimento.

Hoje nem a universidade nem o conjunto das sociedades impregnadas pelos paradigmas da modernidade sofrem
mais a tutela do saber teológico. Este, numa reação pendular, foi relegado desdenhosamente à intimidade das
consciências e com grande dificuldade se lhe reconhece um estatuto acadêmico.

3. A INSTRUMENTALIZAÇÃO DOS SABERES

Se todos nos congratulamos da autonomia conseguida respeito à tutela teológica, talvez, na euforia do nosso paradigma
racional, não tenhamos tomado consciência suficiente que, num processo crescente e abrangente, uma nova forma de
tutela hegemônica se estruturou entorno dos diversos saberes da universidade e penetrou no conjunto do tecido social.
De que estamos falando? Daquela que foi entronizada como a grande deusa da emancipação iluminista: a
racionalidade. Resulta evidente que não pretendemos questionar a pertinência nem a importância -por outro lado
absolutamente imprescindível- da racionalidade para a construção do conhecimento e da práxis. O que pretendemos é
refletir sobre os modos como essa racionalidade se configurou no modelo criado pela modernidade. Especificamente
queremos debater o papel hegemônico e tutelar que a racionalidade instrumental adquiriu sobre o conjunto das áreas
do conhecimento.

A universidade atual está inserida dentro de um processo social de extensão e intensificação da racionalidade
instrumental. A validez dos conhecimentos, dos saberes, dos valores, das criações, do ser e do fazer humano, está
mediatizada pelos resultados práticos que delas possam se extrair. Por sua vez, a racionalidade instrumental determina
o mérito de um resultado quando se ajusta aos ditados da produtividade, da eficácia, da eficiência, da utilidade, da
lucratividade... A racionalidade instrumental infeccionou o conjunto dos saberes definindo os objetos de estudo que se
consideram interessantes, especificando as questões a serem pensadas, induzindo o modo de abordagem,
discriminando os embasamentos teóricos úteis, delimitando as metodologias eficazes a serem aplicadas,
normatizando os resultados que se consideram aceitáveis. Ela se entronizou com hegemonia sobre o conjunto dos
saberes; identifica-se como um meta-conhecimento que tutela o conjunto das reflexões. A racionalidade instrumental
não é uma área específica do conhecimento, ela se imiscui no modo de produção de todos os saberes e os direciona
segundo o paradigma de verdade por ela definido.

Não desconhecemos que existem aspectos positivos dentro de uma certa dose de racionalidade instrumental. A
eficácia, a utilidade, a eficiência, a lucratividade, etc. têm seu sentido e são referenciais necessários para muitas
atividades e formas de conhecimento. Porém questionamos a tutela ideológica, o imperativo de verdade, que eles
impõem à sociedade e especificamente ao conjunto das áreas de conhecimento desenvolvidas na universidade.
Enquanto meta-saber, a racionalidade instrumental se configurou como uma nova ideologia que submete o resto das
áreas do conhecimento a seus ditados. Embora seus referenciais sejam relativos, pois constituem uma alternativa
possível entre outras, se apresentam com um certo caráter absoluto e com pretensão de serem universais e
universalizáveis. A incidência de esse novo autoritarismo ideológico se manifesta de forma mais intensa e perversa na
área das humanidades. Para começar, o conjunto das áreas de conhecimento das humanidades, para obter um mínimo
de estatus social e acadêmico, teve que colocar o substantivo precedente de "ciências" (humanas), carregando sobre si
o peso ideológico que representa tal apelativo. É uma submissão que vai além do significado semântico e normatiza a
totalidade do processo de reflexão e de criação das diversas áreas de conhecimento das humanidades.

Com esta crítica não podemos, nem devemos, desconhecer a importância inestimável de muitas contribuições que as
chamadas ciências empíricas e o modelo de racionalidade instrumental por elas desenvolvido realizaram para o
conjunto das humanidades. Porém não podemos, nem devemos, elevar determinadas contribuições positivas e
positivistas ao grau de novas crenças dogmáticas que devem ser observadas com nova fidelidade agora não mais
religiosa e sim racional e aceitá-las com um novo espírito de submissão lógica.

De todos os saberes que a racionalidade instrumental ampliou e intensificou existe um que destaca sobre os demais e
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consegue direcionar o resto: a racionalidade econômica. O saber econômico é sem dúvida a área do conhecimento
onde a racionalidade instrumental conseguiu desenvolver-se de modo mais intenso e com mais eficácia. Os
paradigmas da racionalidade instrumental se fundem e confundem, em nosso modelo social, com os objetivos e
métodos da racionalidade econômica. Esse novo império ideológico vai penetrando tanto de modo sub-reptício como de
forma explícita no conjunto dos saberes. Ele vai desde o uso semântico até os resultados pretendidos. Deste modo a
universidade deixa de ser uma instituição educativa, estritamente criadora de conhecimento e formadora de pessoas,
para adquirir a imagem de uma empresa. Ela desenvolve um produto que vende a uns clientes; por sua vez, numa
sociedade competitiva, deve pleitear fatias de mercado e sair à procura de potenciais clientes; seu produto deve adaptar-
se à lei da oferta e da demanda; deve produzir aquilo que o mercado demanda e compra; seu produto final deve ajustar-
se às mudanças de interesse que o mercado e a clientela impõe; o resultado final deve traduzir-se em lucratividade,
elevação de benefícios, maximização das vendas, etc. Cada universidade possuiu um certo grau de autonomia para
relativizar ao mínimo ou absolutizar ao máximo o paradigma da empresa, mas o novo absolutismo da racionalidade
econômica, embutido no próprio modelo social, subjuga o ser da universidade dentro do modelo empresarial.

A racionalidade instrumental, sob a hegemonia atual da racionalidade econômica, impregna a totalidade do processo de
pesquisa de qualquer área de conhecimento. As humanidades não conseguem escapar a este processo. Arroladas
pela (i)racionalidade do mercado, para existirem ou meramente subsistirem, devem submeter-se aos ditados da oferta e
da demanda social, da utilidade, do prático, do rentável. Sua metodologia de pesquisa está calcada pelo empirismo
positivista; os órgãos oficiais e governamentais uniformizam o conjunto dos saberes a partir da universalização destes
modelos de pesquisa. Os resultados solicitados ou valorizados são aqueles que mais se ajustam aos ditados da
utilidade social, da rentabilidade econômica, da mensurabilidade objetiva.

Mais uma vez, queremos matizar que esta crítica à racionalidade econômica não invalida as contribuições positivas que
ela realiza para uma boa gestão institucional e uma necessária administração de recursos, nem nos impede de
reconhecer a importância deste saber no conjunto dos conhecimentos.

4. SABER E PODER

A hegemonia e tutela de uma área de conhecimento sobre o conjunto dos saberes não se realiza de forma aleatória ou
voluntarista; existe uma inextricável relação que liga o saber ao poder. As formas de poder socialmente instituídas
produzem saberes que reforçam seus estatus, e, de igual modo, os diversos saberes constituem mecanismos e
técnicas de poder que legitimam e consolidam as já existentes. Porém os saberes não se restringem a legitimar o
poder existente, eles, no processo de sua própria constituição, podem criar novas formas de poder.

A racionalidade instrumental configurou-se no modelo social da modernidade como algo muito mais que um meta-
saber, ela se solidificou como uma forma de poder. Os objetivos definidos estrategicamente pela racionalidade
submetem de forma instrumental ao conjunto dos elementos a ela referidos, que passam a ser meros instrumentos ao
serviço dos resultados previstos. Sendo que a racionalidade econômica tece de forma imperativa o conjunto das
relações sociais, esses objetivos estrategicamente definidos (racionalmente programados) identificam-se com
lucratividade, benefícios, vantagem, proveito, utilidade, rendimento, etc. Deste modo, o crescimento, o progresso, o
desenvolvimento, a expansão, constituem objetivos em si mesmos. Não se questiona que tipo de crescimento, para
onde se dirige o progresso, o que se entende por desenvolvimento, qual é a qualidade da expansão. Esses objetivos
são mensuráveis e avaliados por índices econômicos. Os saberes a serem desenvolvidos devem integrar-se, de um
modo ou de outro, na estratégia global definida pela racionalidade econômica e pelas formas de poder por ela
constituídas. Este modo de racionalidade instrumentaliza o corpo, o espaço, o tempo, os valores, os sentimentos, as
relações humanas, a pessoa, a sociedade, a natureza, a Vida no seu conjunto, como meros elementos subserventes
dos objetivos estratégicos principais.

A universidade, como instituição criadora e divulgadora de conhecimento, é articulada estrategicamente dentro desses
objetivos previamente definidos pela racionalidade instrumental. Esta se auto-define como um meta-saber natural ou
universal que se situa além de qualquer tipo de valoração ética o de hermeneusis resignificativa. Ela se configura como
um meta-saber natural imune à hermenêutica social. Pelo contrário qualquer modelo social ou forma de conhecimento
deve ajustar-se aos ditados "naturais" da racionalidade instrumental, pois são eles que definem o êxito ou fracasso de
uma determinada ação ou empreendimento. Deste modo a racionalidade instrumental articula a criação dos saberes
com as formas de poder instituídas, tecendo, a cada passo, uma rede mais espessa que legitima os mecanismos de
poder existentes como formas naturais de ser e existir a sociedade, de igual modo os saberes estrategicamente
constituídos são apresentados como conhecimentos naturalmente imprescindíveis para nossa existência como
pessoas e como sociedade.

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Poderíamos nos estender longamente em considerações sobre a análise das amplas e "nefastas" implicações que a
tutela hegemônica da racionalidade instrumental, de modo particular a racionalidade econômica, exerce sobre o modelo
atual da universidade e especificamente sobre as ciências humanas. Porém o modelo de debate previsto não o permite,
e queremos deixar um espaço para uma discussão mais ampla assim como para outras contribuições.

5. AS POSSIBILIDADES DE UM PARADIGMA EMERGENTE

Ao pensar a refundamentação das ciências humanas quisemos retrotaer-nos aos primórdios da universidade com o
objetivo de entender melhor alguns dos desafios que nós enfrentamos hoje. A este respeito resulta evidente que
devemos partir na busca da superação da nova tutela ideológica imposta pela racionalidade instrumental. De algum
modo, devemos construir um pós-iluminismo. Isso não significa invalidar o papel da racionalidade -como pretendem as
tendências do niilismo extremo-, mas relativizá-lo e inserir novos paradigmas que estão além da mera racionalidade.
Nesta empreitada está em jogo não só o papel da universidade, mas o próprio modelo de sociedade e inclusive o futuro
da humanidade.

Como construir esse pós-iluminismo? Onde estão os novos paradigmas? Como conseguir que eles se insiram na
universidade e no conjunto da sociedade? São questões amplas, complexas que demandam um amplo esforço coletivo
e um longo tempo para serem efetivadas. Desde nossa limitada perspectiva, podemos oferecer algumas contribuições.

Onde estão os novos paradigmas? A racionalidade não constitui uma dimensão dispensável da pessoa nem da
sociedade, porém a mera racionalidade possui uma dinâmica de normatização absolutizadora do conjunto da vida. A
pura racionalidade fragmenta analiticamente a realidade, disseca a vida em conhecimentos instrumentais, asfixia o todo
em definições lógicas, direciona utilitariamente a ação humana. A racionalidade estratégica não é só uma perversão do
uso da racionalidade. A mera racionalidade leva inerente a dinâmica da instrumentalidade. Isso não quer dizer que ela
não possua outras potencialidades. A racionalidade crítica tem a possibilidade de questionar a racionalidade
instrumental; isso desde dentro da própria racionalidade. Porém é preciso discernir se aquilo que denominamos de
racionalidade crítica existe como pura racionalidade, ou se a racionalidade crítica não é a resultante da interação do
imaginário e o logos, do simbolismo e da razão. Esta é a nossa premissa. A partir dessa interação, que implica símbolo
e racionalidade, intuímos a possibilidade de construir e refundamentar o conhecimento e a sociedade.

A racionalidade está impregnada pela dimensão simbólica do ser humano. Este, contrariando a definição tradicional,
não é um mero "ser racional". Ele é um ser também simbólico. Nele se integram, de forma tensional, a razão e o
símbolo, o mito e o logos, de tal modo que sua racionalidade é intrinsecamente simbólica e seu simbolismo é
necessariamente racional. Eis por que podemos definir ao ser humano como um ser essencialmente mito-lógico.

Esta relação entre mito e logos, razão e símbolo, não se resolve com a eliminação de uma das dimensões, nem se
dissolve na soma de ambos. Ela se desenvolve sempre na implicação de ambas as dimensões (co-implicação). A
pessoa e a sociedade, levados pelo puro simbolismo, desembocam na superstição e no fanatismo; impulsionados pela
mera racionalidade, criam o dogmatismo e o autoritarismo.

O desafio de um pós-iluminismo que supere a racionalidade instrumental e não desemboque num puro niilismo
efêmero, precisa integrar a dimensão simbólica e a racionalidade. Para tal fim é preciso recolocar a racionalidade
instrumental no seu devido lugar: o instrumental. Ela é que dever ser instrumentalizada como um método a serviço de
um objetivo mais amplo. Esse objetivo maior não pode ser definido pela própria instrumentalização da razão. Ele
emerge da hemernêutica da Vida. A Vida como objetivo último, central e orientador, deve refundamentar o conjunto dos
saberes e conhecimentos. A Vida deve ser instituída como categoria mito-lógica que não pode ser delimitada,
regulamentada nem dissecada racionalmente, mas também não se dilui na transitoriedade fútil do sem sentido, nem se
identifica com as fantasias irreais ou com o irracionalismo volátil.

A Vida como sentido, sentimento e vontade das pessoas e da sociedade deve ser o novo paradigma articulador do
conjunto dos conhecimentos e saberes. As novas formas de poder que de aí emergirem, contribuirão para reforçar o
núcleo central da Vida e desenvolvê-la para um horizonte aberto e imprevisível de possibilidades de ser. A universidade
como instituição, e as ciências humanas como saber, estão chamados a resgatar o cerne aglutinador da Vida como um
novo modelo de pensamento, atuação, organização, progresso, evolução ou crescimento. A Vida não permite usar
critérios contabilistas nem mercantilistas para definir sua evolução ou crescimento, é outro paradigma e são outros
critérios os que devem ser implementados no conjunto dos saberes. A Vida não pode ser submetida estrategicamente
aos ditados de outros objetivos, sejam estes racionais ou irracionais. Ela constitui o núcleo que aglutina e estrutura
todas as demais estratégias de desenvolvimento humano, de conhecimento, de relação, de produção, de investigação.

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A Vida não pode ser determinada pela mera racionalidade, pois a pura racionalidade a instrumentaliza e engessa como
um meio. Ela também não pode ser associada a simples categoria simbólica, metafórica ou estética, pois possui uma
entidade própria que requer compreensão e ação. A Vida foge a todos os dogmatismos racionalistas que pretendem se
apropriar dela, e supera todos os fanatismos irracionais que a negam. A Vida envolve todas as categorias lógicas das
diversas áreas de conhecimento que nunca conseguem esgotar suas indefinidas possibilidades de ser, e desconstrói
as alucinações impossíveis da irrefrenável fantasia humana. A Vida engloba e transcende as categorias de todas as
áreas científicas: biologia, medicina, genética, física, astronomia...; ela é, de fato, o paradigma configurador do conjunto
das racionalidades sociais: economia, sociologia, psicologia, política, educação, tecnologias de todo tipo, etc. A Vida
constitui o sem fundo inesgotável de possibilidades de ser da pessoa e da sociedade; um sem fundo inexaurível do qual
emergem as indefinidas possibilidades hermêneuticas de entender o mundo, construir valores, estruturar a sociedade,
configurar as relações, tecer sentidos da existência e imaginar um horizonte infinito e absoluto de existência.

Castor Bartolomé Ruiz


castor@bage.unisinos.br

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