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Do foge-foge às ilustrações ep

Insistem para que escreva uma nota, por curta que seja, uma nota.
Uma nota que acrescente, subentendem. Mas uma nota que acrescente
só um novo P A, subentendo eu. Subentendidos à parte, sobram umas
anotações.

Dez anos após a realização “Prática[s] de Arquitectura”, editar um


registo da multiplicidade de acontecimentos que, em circunstância
escolar, agitaram e movimentaram colectivo e acção – e já agora,
Escola – nada tem de saudade ou nostálgico, antes cumprir o que
à data ficou por cumprir do contrato de financiamento – o que está
em causa é, pois, um agradecimento, mesmo que tardio. E (a)largado
à bolina deste, transita a chama do quanto a escola nos importa, mesmo
agora que todos estamos fora, ou talvez mesmo especialmente por isso.

Sublinho escola. Escola que nos marcou no quotidiano e na causa, na


vivência e no estudo, nas práticas do projecto, investigação, escrita.
Escola que se procurou merecer, acordando (n)um quotidiano de
aprendizagem libertadora duma formação aberta à relação entre
lugares e tempos, entre geografias e saberes. Um desafio, um exercício
que nem sempre se fizeram macios, presente o que o aparelho
institucional burocratiza, maquina, como património disciplinar e
cultural a reproduzir à saciedade como alma, memória, material, sob
um ventilador de comunidade participada.

Aprendizagem libertadora formação aberta que (e)laboraram


comprometidas nesse e por esse praticar de (in)fidelidade que
dá corpo ao agir da vocação que espacializa temporalizando
e temporaliza espacializando – criação, pensamento, conhecimento.
Aprendizagem libertadora formação aberta que, na (des)locação
projectiva desse comum que formou escola, cultivaram uma
atenção futurante – condição mínima de “distância” operativa,
de comunicação e intervenção de projecto crítico de futuros de figurino.

I
Ou não fosse “esse comum que formou escola” algo que se colheu e Prática[s] de Arquitectura
soltou na “Sala 35”; algo que se fez “árvore, caminho, tanque antes
da casa” numa lição de resistência pela cidadania da arquitectura,
Projecto | Investigação | Escrita
pela expressão da autonomia de um saber, de uma competência.
Ou não fosse esse comum alimento do gesto político que faz da
arquitectura voz, comunicação, casa, na medida em que desenho é
sedimento e distância, construção corporal e mental, histórica
e cultural – vida como propositiva e sinteticamente lhe chamava
Távora com uma naturalidade desconcertante. Manuel Mendes

Estar dentro da escola, estar fora da escola, pesem especificidades Presente a condição histórica de um lugar, de uma comunidade
de tempos e de estâncias, de gerações e de experiências, configuram particular – o Porto – queremos tomar como referência a
um movimento de complementaridades de circunstâncias – na “aventura comum percorrida por três personagens”1 – Fernando
vocação, na causa, no serviço, o lugar é o mesmo, como o problema Távora, Álvaro Siza, Eduardo Souto de Moura – e por um círculo
em essência é o mesmo: variável de amigos. Uma experiência que partilhou, que partilha,
“Projecto, casa, escola”. o sonho de resgatar Portugal do seu isolamento e, ao mesmo
“Para o caderno do arquitecto bricoleur”. tempo não renunciar à sua identidade histórica – projecção de
“Arquitectura e mirada, projecto e distância – construção e uma prática da arquitetura que se libertou, que se liberta, das
movimento de uma coerência aventurosa”. formas históricas, mas não do carácter profundo da sua cultura.
Sinal e sedimento de uma identidade não linear, talvez sejam
Estar dentro estar fora é o problema. Talvez melhor, é (ainda) parte tão só a reunião de gestos de simplicidade de quem procura
do problema. Uma parte, reforço, já que é no acolhimento do outro (procurou) processo e pauta para a elevação da cultura do lugar,
que criação, pensamento, conhecimento se descobrem e se fazem para a transformação de uma paisagem – desassossegos da arte
projecto, investigação, escrita, realização: gestos de humildade da casa-mãe, a Arquitectura.
e simplicidade, desafio e (dis)senso, de quem prossegue processo,
de quem persegue pauta para desassossegos da arte da casa-mãe – Arquitectura que é afinal um modo de aprender a modificar
a Arquitectura –, na dinâmica transformadora da paisagem política, a circunstância criando nova circunstância, foi, tem sido,
social, geo-cultural do que talvez se possa nomear de casa Mundo princípio e experiência, manifesto e espaço de uma cumplicidade
casa comum. mínima para (a)firmar um projecto para o ofício da arquitectura,
estendido, transportado e traduzido, sem grande distância criativa
Estar dentro estar fora não é parte do problema. mas com mágica convicção, como atmosfera festiva, como abraço
“Un cuarto también es un texto”. instalador de prática de escola. Prática mansamente cultivada
como escola hospitaleira e plural na evolução do “território
Viva a casa Tótó. da arquitectura”.2

Porto, 25 de Outubro de 2022 Mas na agitação dessa condição ou na inteligibilidade desse


processo, temos como seguro que os passos de hoje ou próximos
interseccionam, atravessam, tocam diferentes confabulações
e derivações, cruzamentos e desvios.

1 DORIGATI, Remo, “Prólogo”, Eduardo Souto Moura, conversas com estudantes.


Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 1008.
2 GREGOTTI, Vittorio, Il Territorio dell’Architettura. Milano: Feltrinelli, 1977 (1966).

II III
Hoje, sabemo-lo bem, aquela aventura serve a muitas outras
hospitalidades, de muitos outros lugares, de muitos outros
praticáveis de conhecimento e desenho, de estudo e investigação, de
ensino e aprendizagem. É que em boa verdade “fazer um projecto
é construir uma distância objecto-sujeito para, nesta distanciação,
inventarmo-nos a nós próprios e, simultaneamente, o projecto”.3

Hoje, talvez seja instrutivo e operativo aceitar que projecto,


investigação, pensamento são estações problemáticas na agitação
do argumento e na manifestação de sentido da marca “Escola
do Porto”.

Hoje, talvez seja exigência: libertar o projecto na evolução da


arquitectura enquanto encontro controverso entre prática disciplinar
e experiência artística – criação, pensamento, conhecimento;
averiguar, problematizar na investigação sobre a capacidade
propositiva da arquitectura para a definição de lugares, a produção de
significados, a sinalização de uma linguagem; tematizar, aprofundar
na história o sentido de fundação, de perturbação, de (in)fidelidade
do que o que aqui se foi proporcionando e partilhando como
arquitectura, como escola, como lugar.

Criação, pensamento, conhecimento são, seguramente, condição


disponibilidade de acolhimento do outro: gestos de simplicidade
de quem prossegue processo e pauta para desassossegos da arte da
casa-mãe – a Arquitectura – na transformação de uma paisagem.

À mobilidade dos significados e à complexidade dos materiais


que se oferecem à construção da arquitectura, de que forma
servir criativamente o destino desta como expressão e projecção
física da imaginação, como experimentação e experiência, como
conhecimento e acontecimento, sem subverter a sua “coerência
aventurosa” pela manipulação arbitrária e/ou abusiva da
complexidade dos materiais que a movimentam, que a constroem?

3 VALDERRAMA APARICIO, Luz, La Construcción de la Mirada: Trés Distancias.


Sevilla: Universidad de Sevilla/Secretariado de Publicaciones, 2004.

IV
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Prática[s] de Arquitectura
Projecto | Investigação | Escrita
Fevereiro 2023
Prática[s] de Arquitectura
Projecto | Investigação | Escrita Manuel Mendes I
Preâmbulo Colectivo Prática[s] de Arquitectura 13
Para o caderno do Arquitecto Bricoleur
A Estufa Doméstica João Gaspar 21
Inhabiting, pleasure and luxury for all Jean-Philippe Vassal 31
Arquitectura Resgatada
Inquietações disciplinares a partir de três estímulos
recentes Nuno Travasso 35
Da “prática”: a motivação nos constrangimentos
Joana Restivo, Filipe Moreira da Silva 65
Siete pilares, parámetros, palabras. Federico Soriano 69
Arquitectura, Feitiço e Território.
Matéria e impulso de libertação na obra baiana de
Lina Bo Bardi Godofredo Pereira 83
Los tiempos de la arquitectura Francisco Jarauta 91
da Produção da Arquitectura Diogo Silva 97
Alison + Peter Smithson, Urban Structuring:
Un análisis terminológico Maurici Pla 105
Fragmentos ilustrados sobre a ‘Escola do Porto’
Alexandre Alves Costa 117
Projecto, casa, escola. Orlando Gilberto-Castro 135
Bairrismo/Universalidade:
A Escola do Porto Jorge Figueira 139
Living in Berlin
Notas de um processo projetual
António Pedro Faria, Marisa Oliveira, Tiago Ascensão 149
O Ensino Moderno da Arquitectura na Escola do Porto:
fundamentos para a Escola de Coimbra
Gonçalo Canto Moniz 161
Souvenir de Constantinople.
Notas sobre arquitectura e (estetização da) política.
Pedro Levi Bismarck 189
Correspondências José Miguel Rodrigues 201
História Marta Oliveira 227
Arquitectura e mirada, projecto e distância
– construção e movimento de uma coerência
aventurosa Luz Fernández Valderrama 239
Casa Totó
experiências de projecto para uma casa comum
Luís Piteira 265
Un cuarto también es un texto Luis Martínez Santa-María 279
Preâmbulo

Colectivo Prática[s]
de Arquitectura

O colectivo Prática[s] de Arquitectura nasce de um conjunto


de acções e acontecimentos espontâneos, dinamizados ou
participados por alunos e professores da Faculdade de Arquitectura
da Universidade do Porto (FAUP), a partir de 2008, que faziam
parte da rotina da Escola e dos seus intervenientes durante aquele
período.

A grande maioria dessas acções e acontecimentos surgiriam em


resposta a um contexto de agitação mundial, do país, do ensino
superior e da arquitectura. O despontar de uma crise estrutural,
económica, social e política, a nível global; a demonstração das
desigualdades sociais, que apenas se tornavam mais visíveis, bem
como da fragilidade do país perante esses acontecimentos; o
desemprego; a emigração massiva, que incluía o pessoal qualificado,
que incluía os arquitectos e que incluía os jovens arquitectos; a
vigência do “Processo de Bolonha”; as mudanças dos estatutos,
dos meios de financiamento e das figuras legais das instituições do
ensino superior, com graves prejuízos para a sua independência
científica e de investigação; a perda, por parte dos estudantes,
do assento em órgãos de gestão da Faculdade, que já tinha sido
precedida pela perda da paridade entre alunos e professores nos
mesmos órgãos.

Preâmbulo | Colectivo Prática[s] de Arquitectura


Havia, então, uma procura pela consciência de um mundo exterior,
de uma pluralidade, de uma heterogeneidade, de uma diversidade,
de uma relação na diferença, que eram possíveis de observar na
forma como o mundo artístico ia construindo o paradigma da
contemporaneidade – o tema político, a preocupação com as
questões sociais, os novos modos de associação, a transversalidade
das práticas, a intersecção entre disciplinas, a reciclagem de
materiais, as novas tecnologias e o digital. Imperava a consciência
de que tudo estava a mudar muito rapidamente e que era urgente
reflectir, adaptar, agir.

13
Destes acontecimentos informais, que fundam progressivamente o O impacto interno que tiveram é difícil de quantificar e talvez até
colectivo, permite ainda a memória fazer referência aos encontros de identificar. Foi, em todo o caso, um impacto sentido, não apenas
Participa(ção) Agora, dinamizados por alunos de 3º ano, que sentiam pelo seu contributo individual mas também pelo valor do conjunto
o apelo de explorar a validade e importância dos processos que formaram. Assim, em 2012, reuniram-se neste ciclo:
participativos/participados; às publicações, como Corda e Dédalo,
que se dinamizavam dentro da Associação de Estudantes da Gonçalo Canto Moniz - 29 de Fevereiro
Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (AEFAUP), Marta Oliveira - 29 de Fevereiro
num momento em que a mesma se via comprometida com a José Miguel Rodrigues - 29 de Fevereiro
discussão da escola e da cidade; ou ao Colectivo de Arquitectos do Jorge Figueira - 1 de Março
Norte, que juntava arquitectos e estudantes de arquitectura, para Jacques Lucan - 15 de Março
debater a profissão, as condições laborais, a importância do serviço Maurici Pla - 26 de Abril
público, a exclusão e o acesso dos vários sectores da população à Luis Martínez Santa-María - 3 de Maio
arquitectura qualificada. Luz Fernández Valderrama - 17 de Maio
Federico Soriano - 24 de Maio
Paralelamente, a discussão nos trabalhos desenvolvidos pelos Jean-Philippe Vassal - 29 de Maio
alunos em Teoria 2 (ou Espaço Habitável e Formas de Residência, Alexandre Alves Costa - 31 de Maio
na versão pré-Bolonha), leccionada pelo Professor Manuel Mendes,
será a razão pela qual se explica que tenha sido este professor a Com vista a informar estas iniciativas e a prolongá-las no tempo, uma
dar corpo formal ao colectivo e a ocupar o lugar de coordenador equipa de investigação, dentro do colectivo Prática[s], organizou
científico. A discussão fomentada nas aulas foi progressivamente para cada sessão um caderno complementar à lição, distribuído à
ocupando outros espaços e tempos, e, assim, foi ganhando assistência. Este conjunto de materiais adicionais tomou a forma de
regularidade a reunião do grupo de trabalho. fascículos, reunidos numa caixa de cartão sintomaticamente ilustrada
a spray e stencil.
*
*
2011 é o ano em que o grupo de trabalho ganha nome e se
constitui enquanto colectivo, e é curiosamente o ano em que Em 2013, devido aos programas de mobilidade, a continuidade
Portugal recorre ao apoio financeiro da troika, o ano em que da actividade do colectivo foi garantida por um novo grupo de
é iniciada a demolição do Bairro do Aleixo e o ano em que a estudantes. Realizou-se, então, a exposição “uma escola do Porto por
direcção da FAUP proíbe a livre afixação de cartazes nas paredes conhecer: realidade, história, projecto”. Da exposição faziam parte
da Faculdade. alguns trabalhos para o Concurso para a Obtenção do Diploma de
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

Arquitecto (CODA) de arquitectos formados pela Escola Superior


É também o ano em que se cruzam fortuitamente os planos de Belas Artes do Porto (ESBAP), nascidos cerca de 1930, que se
acumulados de ouvir outras vozes com a vontade de um novo encontravam depositados no Centro de Documentação da FAUP.

Preâmbulo | Colectivo Prática[s] de Arquitectura


grupo de estudantes de tomar as rédeas possíveis da sua formação.
Discutido amplamente entre o colectivo, o seu coordenador Ao colectivo coube a preparação do dispositivo expositivo e
científico, pares e entidades externas, o Ciclo de Lições saiu o trabalho de recolha e selecção documental que, para além dos
do papel em direcção à comunidade escolar. Um conjunto de CODA, incluiu também outros trabalhos dos mesmos arquitectos,
personalidades, dificilmente acessível num mesmo âmbito, já realizados no contexto da sua prática profissional.
ganhou forma, presença, voz. Ao longo do ano lectivo, essas
vozes permitiram alargar o quotidiano escolar e, ao acontecerem Integraram a exposição os seguintes trabalhos:
à noite, foi possível dar às lições um ritmo mais justo e alcançar Alcino Soutinho - CODA, Museu de Artes e Tradições
um público mais abrangente e comprometido. Populares, Campo Alegre, Porto, 1959; Casa de Férias na Praia Suave-Mar,
Esposende, 1965; Habitação José Pinto A. Soutinho, 1968;

14 15
Alcino Soutinho, Álvaro Siza, Augusto Amaral e Lagoa redigidos contemporaneamente ao Ciclo de Lições e em intersecção
Henriques - Monumento aos Calafates, Porto, 1959; com as matérias aí leccionadas, na sequência de programas de
Alfredo Matos Ferreira - CODA, Edifício de Habitação, intercâmbio, da realização das suas dissertações de Mestrado ou de
Rua Arquitecto Marques da Silva, Porto, 1973; Quinta da Barca Doutoramento, ou da sua entrada na vida profissional, e que dão
D'Alva, Joanamigo, Freixo de Espada à Cinta, 1950-2005; nota sobre o seu exercício de arquitectura (projecto, investigação e
Álvaro Siza - CODA, Habitação Rui Feijó, Moledo, 1965; escrita). É a partir desta intersecção/relação extemporânea que o
António Menéres - CODA, Da Renovação Urbana, livro se compromete com o tema da exposição – uma escola do Porto
Adaptação do Forte de Leça, Porto, 1961; por conhecer –, não com a publicação directa dos conteúdos, mas com
Augusto Amaral - CODA, Grupo Residencial Operário, o retomar da sua proposição à luz da contemporaneidade.
Matosinhos, 1960; Os autores foram convidados a introduzir os seus contributos com
Francisco Melo - CODA, Casa na Praia, Esmoriz, 1958; um preâmbulo que contextualize a oportunidade dos seus textos
Francisco Melo e Jorge Gigante - Uma Moradia, Praça Teixeira na actualidade. Passados dez anos, continua-se a compreender
Lopes, Porto, 1959; Duas Habitações, Rua de Costa Cabral, 1961; a pertinência das matérias tratadas – a condição profissional, a
Joaquim Sampaio - CODA, Uma Habitação, Rua do condição artística, o papel da Universidade, a transversalidade ou a
Padrão, Porto, 1970; autonomia do conhecimento, a globalização, o ambiente.
João Serôdio - CODA, Bloco de Habitação em Ala Com a dispersão geográfica e profissional que uma década
Contínua, Rua Alferes Barros Cerqueira, Santo Tirso, 1957; pressupõe, o colectivo propôs-se espontaneamente ao retomar dos
Jorge Gigante - CODA, Uma Habitação para um Industrial, trabalhos, materializando a vontade de concluir o projecto. Apenas
Estrada Nacional 222, Avintes, 1958; dispondo do excedente de financiamento do IJUP que serviu para
José Dias - CODA, Recuperação de Aldeias, Espinhosela, custear a impressão, a produção da publicação foi integralmente
Bragança, 1963; realizada pelo colectivo – recolha de conteúdos, estruturação,
José Forjaz - CODA, Complexo Cooperativo na Granja de montagem, revisão de textos, paginação – sem recurso a trabalho
Mourão, 1966; externo/profissional.
José Pulido Valente - CODA, Casa Rua das Mercês, Porto, A ordenação e hierarquização de conteúdos, que se reflectem
1963; no índice, quis ter como referência a rotina em que se vivia na
Rolando Torgo - CODA, Uma Habitação Rural, Amarante, Escola no período original do Prática[s] – reunidos num todo em
1961; Concurso para o Plano de Pormenor da zona da Vila de dinâmica heterogénea, com uma estrutura fluida e livre, agita-se,
Amarante afectada pela albufeira da Barragem do Rio Tâmega, 1982; propõe-se o conflito, o manifesto, a intersecção de matérias.
Vitor Figueiredo - CODA, Habitação, em S. João do Projecto. Investigação. Escrita.
Estoril, 1959; Caixa Geral de Depósitos, Beja; Conjunto de
Habitações Secundárias, Cabanas de Tavira, Algarve. *
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

Inaugurada com uma conversa com o arquitecto Alcino Soutinho, a Para quem possa tomar agora o primeiro contacto com estes
exposição foi acompanhada por um conjunto de folhas de sala com materiais, ou para quem esteja a ser relembrado do seu despontar

Preâmbulo | Colectivo Prática[s] de Arquitectura


informação sobre os projectos expostos e entrevistas realizadas a há dez anos, não é um legado fechado e estanque que pretendemos
alguns dos seus autores, dando-lhes voz e contexto. partilhar. É uma vontade de intersecção, de contaminação, uma
vontade de tornar mais complexo e mais rico aquilo que fazemos.
* É um entusiasmo e um estado de questionamento que se podem
manter para lá dos anos. É um repto: o repto de que se continue a
Dez anos após o primeiro acto público do projecto, oferece-se esta fazer projecto, a fazer investigação, a fazer escrita para além das salas
publicação como reunião e partilha dos contributos decorrentes do de aula, para além das paredes da escola, para além da nossa esfera
Ciclo de Lições. Assim, marcam presença os textos resultantes das primária. Se a arquitectura é feita de prática[s], então que se faça
lições do ciclo internacional, da autoria dos conferencistas; e textos praticando: praticando a liberdade e o sentido crítico, praticando o
da autoria dos membros do Colectivo e de outros alumni da FAUP, pensamento, o diálogo, a proposição.

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Passaram dez anos desde o início da componente pública do O colectivo Prática[s] de Arquitectura agradece:
Prática[s], como sempre lhe chamámos. Dez anos desde o momento
em que decidimos colectivamente manifestar uma falta e a vontade aos co-organizadores do projecto, Associação de Estudantes
de a preencher, de lhe dar sentido. Decisão entusiasmada de sujar as da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (AEFAUP)
paredes (e as páginas) brancas, de propor o conflito como elemento e Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (FAUP);
operativo, desejável na formação de arquitectura e de cidadania.
à Investigação Jovem da Universidade do Porto (IJUP), pelo
Quisemos o que não nos era dado conhecer, o que não tinha lugar
apoio atribuído através do Concurso para Projectos Pluridisciplinares do
nos planos de estudos. Quisemos coisas outras, sem outro intuito
IJUP 2011, financiado pelo protocolo U.Porto/Banco Santander
que não o de nos colocarmos noutros lugares, de nos testarmos, de
Totta;
nos munirmos de mais ferramentas. Quisemos partilhar as nossas
inquietações e os nossos esforços – e a Faculdade é, e queremos que aos intervenientes no Ciclo de Lições, que dispuseram
seja, um espaço onde isso pode acontecer. generosamente do seu tempo para contribuírem para estas sessões
e que responderam de forma mais receptiva do que o expectável;
O conjunto de lições que então dava corpo público ao projecto ao público, que, adquirindo bilhete para o Ciclo de Lições,
ocupou o mesmo auditório que as aulas de todos os dias e, por proporcionou condições para a sua realização;
esse motivo, fez o espaço crescer. Aquelas lições. Naquele auditório.
Só desta forma poderiam as nossas inquietações revelar-se um aos patrocinadores e apoios do Ciclo de Lições;
manifesto; só dando à escuta aquelas pessoas naquele lugar. Assim, aos autores que fizeram parte da exposição, especialmente
foi possível percebermos melhor o que fazíamos: questionar, pôr aos entrevistados;
em causa, discutir os limites, a liberdade de pensamento e de prática
à Teresa Godinho, pelo apoio incansável na disponibilização
perante um contrato escolar invisível, tácito, auto-determinado.
e preparação do material do Centro de Documentação da FAUP;
Criámos o espaço para colocar em diálogo o projecto: projecto,
investigação e escrita. Demo-nos permissão para olhar de frente as aos autores dos contributos da presente publicação, pela sua
margens e perceber que não estávamos sós. disponibilidade, amabilidade e paciência;
ao professor Manuel Mendes.
Hoje, encerramos este ciclo da mesma forma que o abrimos: com
o mesmo entusiasmo, com o mesmo sentimento de que algo ainda
está em falta, com ainda mais questões por responder, e com a
mesma vontade de conferir pluralidade à prática numa escola que
continua a ser [a] nossa.
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

Preâmbulo | Colectivo Prática[s] de Arquitectura


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... em busca do tempo perdido mas com bolos de arroz no lugar Para o caderno do Arquitecto Bricoleur
de madalenas
A Estufa Doméstica
Recuperar a efeméride das Prática[s] de Arquitectura, e com ela este
texto que na altura recuperava a escrita da tese1, a qual recuperava
a construção de uma pequena estufa que em si é uma recuperação
de materiais e experiências de arranjos anteriores, à parte da
vertigem proustiana, é um exercício que só me pode fazer recuperar
os agradecimentos ao colectivo das Prática[s] de Arquitectura. João Gaspar
Primeiríssimo por esse momento de arejo da escola que foram as
14 lições, a fazer lembrar a barrela de fim de inverno nas casas de
campo, o sacudir os tapetes e o passar a cera no soalho, aquele
cheirinho.... E depois por me porem em cima da mesa proposições
deixadas na prateleira durante 10 anos.
O guia de bricoleur que o texto pretendia enunciar está por fazer
e pode ser particularmente pertinente pensá-lo à luz dos dias de
hoje. Tirar a bricolage da escala doméstica e colocá-la ao serviço da
prática profissional nunca me pareceu tão motivado, seja escassez,
seja pelos mecanismos que ela tem ao seu serviço: os bancos de
materiais, os serviços de desmontagem, as análises de ciclos de vida
dos edifícios. À falta desse guia fica o enunciado. Peço tolerância
para a verdura às vezes indecifrável da escrita, mudá-la agora era
desmanchá-la.

Para o caderno do Arquitecto Bricoleur. A Estufa doméstica | João Gaspar


Do processo de bricolage
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

“O bricoleur dedica-se a realizar um grande número de tarefas,


mas, distintamente do engenheiro, não subordina cada uma
1 Este artigo é elaborado a partir de uma secção da dissertação de mestrado “O que
delas à disponibilidade de matérias-primas e ferramentas
faz uma casa?” apresentada à FAUP . O texto é mantido na sua integridade tendo sido
concebidas e obtidas segundo a finalidade do projecto. Seu
apenas corrigidos alguns aspectos de forma a poder ser apresentado isoladamente.
universo de instrumentos é limitado e as regras do jogo são
Entre a multiplicidade de conteúdo da dissertação integra-se a construção de
sempre as de actuar com ‘qualquer coisa que esteja à mão’,
uma pequena estufa, experiência que se revelaria simultaneamente laboratório de
isto é, com uma sucessão de ferramentas e materiais que é
experimentação de algumas das teses levantadas nesse trabalho e objecto de estudo
sempre finita e que é também heterogénea (…).”1
indutor de outros desvios, captador de outros temas para o corpo analítico. Esta
experiência é assumida como instrumento para a reflexão sobre os territórios de
expansão da arquitectura, apontando a intervenção sobre a casa em curso e os modos
de operar da bricolage como elementos potenciadores da acção do arquitecto sobre o 1 Claude Levi-Strauss; “Pensamento selvagem’’, citado por Iñaki Abalos, Boa vida.
espaço [já] construído. Visita guiada às casas da modernidade, p. 105.

20 21
“Sempre gostei de trabalhar com as sobras, de converter as a bricolage encontra o seu potencial de realização.4
sobras em coisas(…). Sempre achei que as sobras tinham O processo contínuo de recolha e reciclagem, antes de se
muito humor.”2 comprometer com demandas globais de sustentabilidade (e deve ser
consciente delas), serve os apelos desse meio que envolve o bricoleur,
O processo de bricolage envolve uma inversão de papéis de responde ao local: seja às necessidades dos sujeitos-habitantes, seja
subordinação entre o material e o desenho, não existe um leque às possibilidades e angariação de matéria-prima.
virtualmente indeterminado de recursos que servirão as opções A obra de bricolage não pode exigir a premeditação e a definição
do projecto; são os próprios materiais acumulados ao longo de prévia do projecto convencional, a concepção do arranjo
anos, segundo o seu emprego potencial, que em última instância continua durante a execução da obra, cede às potencialidades e às
condicionam as opções da obra. limitações que aí podem surgir (e por certo surgirão). No entanto,
O processo começa assim muito antes de se ter notícia do o arquitecto bricoleur não está demitido dos níveis mínimos de
propósito da obra, das necessidades ou das intenções que a exigência, o seu processo intuitivo, o seu espaço à improvisação,
convocarão. A recolha de tudo o que possa vir a servir, resultado terá que ser sempre submetido à intenção primeira de renovar e
das construções e destruições anteriores, marca a rotina do bricoleur. enriquecer existências;5 a obra de bricoleur não está isenta da busca
O sucesso da obra depende da multiplicidade e heterogeneidade (como qualquer obra) pela consistência, deve ser insistente na
desses materiais disponíveis, assim como da capacidade de ler as construção da compatibilidade dos elementos que a compõem,
suas potenciais formas de agregação. Não obstante, tal colecção é em especial dada a heterogeneidade que os caracterizam.
em si parte da casa, é lugar de particular intensidade pois reserva Numa obra de bricolage o detrimento de tal busca pela consistência,
simultaneamente a memória de estados anteriores da casa (de onde desse compromisso com a qualidade da montagem produzida,
tais peças provieram), como potencialidades de estados futuros (na vota-a à condição de obra de “chanato”6, o que poderá fazer dela
especulação da oportunidade de novas aplicações de tais materiais). um factor de degradação do ambiente que se propunha enriquecer.
Esta densidade emotiva do armazém é facilmente experimentada O bricoleur deve assim fazer uso de uma precisão na colagem
no percorrer de um ferro-velho, em que se torna inevitável projectar dos elementos de que se compõe a obra; uma pragmática
as vidas que se compuseram com tais peças. O elo entre o objecto da possibilidade, na resposta ao necessário com o que está
portador de uma história e a pessoa é de tal forma cultivado que, disponível. A formação desta precisão, desta eficácia da obra de
por vezes, a manutenção da posse de parte do acervo deve-se bricolage poder-se-á servir dos instrumentos convencionais da
apenas à sua condição afectiva, esgotada que se encontra qualquer arquitectura, de ensaio e simulação de possibilidades: o desenho,
potencial utilidade. a simulação virtual, o ensaio táctil e a intuição construtiva diante a

Para o caderno do Arquitecto Bricoleur. A Estufa doméstica | João Gaspar


A esta colecção de “matérias-primas” acumuladas corresponde matéria poderão trazer à produção do bricoleur esse rigor do arranjo.
um conjunto de ferramentas, igualmente angariadas ao longo do A heterogeneidade do processo da bricolage, dos materiais e
tempo, que não deverão ser demasiado especializadas, para que o das ferramentas, guarda uma empatia com a heterogeneidade
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

bricoleur a possa operar sem o recurso a técnicos. e multiplicidade que reconhecemos na experiência da casa.
O meio ideal do bricoleur não é a natureza perdida do paraíso ou Esta forma de intervenção imediata sobre espaço da casa
da Floresta Negra3, porque aí não haveria matéria e ferramenta constitui uma resposta directa às flutuações das exigências do
disponível para as suas realizações. O meio híbrido, proliferado de habitar. A bricolage é parte integrante da experiência de habitar,
contaminações, de processos de transformação contínuos, é onde

4 Nota: a casa que alberga esta estufa encontra na sua proximidade com um parque
industrial desactivado donde proveio substancial parte da colecção, e da qual conta já
2 Andy Warhol; The philosophy of Andy Warhol (...) citado por Iñaki Abalos, op. cit. com um sem número de aplicações.
p. 127. 5 nota: expressão de Merleau-Ponty citada por Iñaki Abalos, em Boa vida, página 105:
3 Os termos destacados pelas aspas referem-se a temas abordados anteriormente, “[o universo de instrumentos da bricolage] é resultado contingente de todas as ocasiões
no decorrer da tese: “natureza perdida no paraíso” refere-se às indagações de Joseph para renovar e enriquecer existências.”
Rykwert sobre a morada de Adão no Paraíso, e a Floresta Negra refere-se à cabana de 6 “Chanato: s.m. sapateiro reles, sapato velho, cigarro ordinário.” Dicionário da Língua
Martin Heidegger que albergou as suas reflexões sobre a autenticidade do habitar. Portuguesa; Porto Editora; 5ª edição.

22 23
é um processo aberto, contínuo, que se reformula a cada nova Da Montagem
aquisição e seu reemprego.
A esfera expressiva da obra de bricolage parece dominar sobre a
da eficácia técnica: seja pelos elementos de que se que compõe,
que evocam experiências anteriores que se tornarão povoadoras
privilegiadas do território imaterial da casa; seja pela carga afectiva
associada à construção por meios próprios que se promove
vínculo entre a pessoa e o espaço físico. A relação do cliente
com o arquitecto bricoleur deve instituir-se assim de um princípio
de cordialidade, o arquitecto, intervindo na casa em curso, deve
05 Montagem da estrutura defronte da oficina.
preservar o território do habitante que continuará a moldar o 06 Preparação do local de implantação.
seu espaço em busca de arranjos cada vez mais consistentes. 07 Implantação.
Assim a intervenção do arquitecto na obra de bricolage encontra 08 Aplicação da película plástica.
o seu maior potencial em momentos chave de refundação da 09 Conclusão da obra

casa, em que o habitante não encontra resposta justa nas lógicas


distantes do mercado (i)mobiliário ou do design. O olhar do bricoleur deve percorrer os armazéns antes de qualquer
cometimento; mas tais colecções que albergam estão também
Do processo de bricolage alojadas no espírito que trata de compor a próxima obra com os
instrumentos do inconsciente. Tal plano não é composto por um
traçado rigoroso, mas antes por uma solução de montagem, uma
compatibilidade entre algumas peças-chave que serão a ignição
da obra.
Os constantes ajustes/incorporações durante a obra, o ensaio em
tempo real das possibilidades são dados assumidos à partida.
O leque de oportunidade é tal que atinge a improbabilidade
limite; o uso futuro de uma peça é tão indeterminado quanto as
01 e 02 Oficina que partilha o barracão com a Peugeot 404 e o curral das ovelhas.
necessidades que a irão votar à nova função.
03 e 04 Coberto onde se conserva (parte da) a colecção; este abrigo é igualmente O processo de construção desta estufa é prova da indeterminação

Para o caderno do Arquitecto Bricoleur. A Estufa doméstica | João Gaspar


construído pelos processos da bricolage (a cobertura transita de uma demolição de um do processo da bricolage: tanto no que respeita à sua convocação,
parque industrial vizinho, os apoios verticais são de uma sonda de água. não sabemos se foi o recente apego ao cultivo, se foi a peculiaridade
do material disponível que iniciou o processo; quanto à natureza
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

A recolha e armazenagem é parte integrante de um modo de dos materiais que a compõem: cavaletes das gaiolas de um aviário
vida, quando se trata da gestão das colecções, “guarda o que não desactivado tornam-se os suportes verticais; um esqueleto de
que presta, saberás o que é preciso”. Com o mesmo tempo com um toldo de uma esplanada é a cobertura. (Ainda poderíamos
que se constrói o espólio, se constrói a oficina, se colecionam encontrar mais algumas recuperações improváveis, uma antiga
ferramentas, tendencialmente analógicas, à excepção de algumas calha da ração é incubadora de sementes, as ripas de suporte do
eléctricas, sempre sob a condição acessíveis a um utilizador não plástico são um antigo tecto falso da casa em Caxias do tio). O
especializado. processo de bricolage inclui em si a satisfação da necessidade de
expansão de território, faz parte do habitar uma casa; assim ele
não deve ser demitido de um desfrute, de um recorrente recurso
à pausa para contemplar os resultados e especular os progressos
futuros, pausas que quando possível devem incluir uma cerveja e
uma sombra.

24 25
O assentamento de uma peça sobre a terra está irremediavelmente arquitectura do imediato, se reconhece um valor da permanência,
associado à nossa condição de ser habitante, tal momento ainda que ele seja relativo à variabilidade-limite da envolvente
comporta qualquer coisa de primitivo: o convite à terra para vegetal.
receber a obra do homem. Esta estufa representa um grau-zero A aprendizagem do modo de usar ditou a deslocação da estufa
dessa nossa condição humana de construtores. Esta é a nossa uns metros a norte para a livrar da sombra das sebes que então
primeira intervenção que aparece numa imagem de satélite. cresceram, e uma reconstrução madura que permitiu melhorar
O saque do direito ao céu e as raízes decepadas da terra a que a algumas soluções.
habitação por andares nos vota, fazem-nos esquecer a condição
de medeio entre estes elementos que tem a arquitectura. Da estufa doméstica aos territórios da bricolage

Da vida e da manutenção A estufa-doméstica emprega os processos de bricolage além do seu


campo “convencional” da pequena renovação e de manutenção
operada pelo próprio habitante. Tal condição pode constituí-
la como contributo válido para avaliar os modos de operar do
arquitecto bricoleur.
A casa-quinta que alberga a estufa – como em todas as casas-quinta –
face às exigências do seu trabalho de produção, é propensa a
coleccionar ferramentas e materiais dos quais depende o sucesso
de muitas operações de manutenção e reparação necessárias.
O ritmo desta casa é marcado pelos compromissos com o dia,
10 e 11 Primeiro inverno.
12 e 13 Último verão. mas, dependendo da sazonalidade, sobra tempo que tende a ser
empregado na casa, nessa aspiração constante de renovar ou
A fase embrionária da odisseia agrícola dos sujeitos habitantes enriquecer existências. A apropriação dos seus recintos é parte
afectos a esta estufa, votaram-na a uma fase de “quarentena” integrante do habitar da casa-quinta, para isso o espaço não pode
após a conclusão da obra. A resistência à sua ampla ocupação foi ser escasso, as condições de expansão devem ser garantidas. Tal
prolongada pelo inverno rigoroso que se seguiu. Uma aparente disponibilidade para o trabalho da casa para colecção de peças
predisposição para estivar as culturas junto às faces laterais, múltiplas de casas anteriores, não encontra a mesma oportunidade
através de sucessivas prateleiras, era contrariada pelo contacto nas “casas de milhões”7 que nem por isso dispensam a mesma

Para o caderno do Arquitecto Bricoleur. A Estufa doméstica | João Gaspar


directo com a película plástica que, encontrando-se à temperatura necessidade de renovar ou enriquecer existências a que a bricolage
exterior, as “queimava”. tende a responder eficazmente.
No entanto, a benesse dos meses amenos e o apuramento A escassez de oportunidade para a bricolage a que as curtas casas de
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do modo de usar, depressa expandiram os seus resultados. O milhões se vêem votadas abrange igualmente a esfera expressiva,
sucesso da germinação de sementes amplia o ritmo produtivo de limita a realização e a inventividade do habitar.
toda a horta; valência que se soma ao cultivo de alguma planta Outro tipo de abordagem se exige nestes contextos, a procura da
mais frágil. A maturidade destes agricultores domésticos levou possibilidade da bricolage na casa da cidade pode alinhar-se com
à incorporação de um sistema de regulação da renovação de ar uma nova categoria de prestação de serviços. A constituição de
(por meios estritamente analógicos: abertura/fecho das abas uma entidade – chamemos-lhe oficina – dedicada à manutenção
da cobertura), assim como a um entendimento das “zonas de
conforto” dentro da própria estufa.
Dadas as provas da eficácia técnica, a esfera expressiva que 7 Nota: o termo “casas de milhões” é usado repetidamente ao longo da dissertação

reconhecemos integrar o processo de bricolage, encontra também que alberga este artigo, dando, inclusivé, nome a um dos seus blocos, este termo

aqui a sua manifestação. Aparte da gratificação que constituiu refere-se à habitação na grande cidade, cujas premissas de consistência da obra e

o seu processo de montagem, o imaginário da visita à horta é entendimento das necessidades de habitar se encontra recorrentemente diminuída face

dominado pela sua presença vigilante. Também aqui, nesta às premissas económicas que a norteiam.

26 27
e transformação da instalação doméstica poderia colmatar o elo
em falta para a possibilidade da bricolage em espaços domésticos
limitados. Tal oficina deveria contar com a capacidade de recolher
e armazenar o material decorrente das intervenções. Não faltaria
em tal oficina o conjunto de ferramentas que encontrámos nesta
casa-quinta, cuja operação poderia ser delegada ao habitante, ao
arquitecto ou a parceiros.
A especulação dos recortes de tal oficina não nos deve dispersar,
mas poderemos encontrar outras formas de alargar o seu
espectro de acção alinhadas com essa necessidade de aumentar
as valências da casa da cidade. A oficina, constituindo-se lugar-
comum a várias casas, poderia encontrar formas de permuta
(temporárias ou permanentes) de componentes ou espaços que
compatibilizassem as diferentes necessidades dos seus sujeitos
habitantes.
À semelhança do processo da bricolage, não devemos avançar
demais na determinação dos modos em que tal oficina se haveria
de constituir, talvez seja a altura de avançar para a obra, com o
cometimento, matéria e ferramentas disponíveis e esperar pelas
indicações da circunstância.

Para o caderno do Arquitecto Bricoleur. A Estufa doméstica | João Gaspar


Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

28 29
Inhabiting, pleasure and luxury for all

Jean-Philippe Vassal,
Lacaton & Vassal
Inhabiting implies pleasure, generosity, the freedom to occupy a
space, beyond the functional.
It challenges us to think about the possibilities and capacities of the
space around and in front of us.
Designing architecture on the basis of the notion of inhabiting
means to construct space from the inside, and not from the outside.
This sets down an intention for precision and attention.

Inhabiting first concerns housing, but more broadly, any space of


use.
Every place is inhabited, whether private or public: an office, a
school, a museum, the park where we walk.
The space for living must be generous, comfortable, adaptable,
flexible, luxurious and affordable.

The dwelling must offer the inhabitant opportunities to move


around, to appropriate space, offer freedom of usage to generate
possibilities of evolution and interpretation.

Inhabiting, pleasure and luxury for all | Jean-Philippe Vassal, Lacaton & Vassal
In general, the standards of housing are too small, too restricting..

We think it is necessary, in every project, to create living spaces as big


Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

as possible, much more generous than the standards or the defined


programs, to multiply the space for use and foster appropriation,
to create intermediate spaces, between the public and the private.
Enlarging does not mean wasting. It means inventing room and
going beyond the norms which reduce the living space.
It means building larger, within the same budget as the standard.

Large spaces bring a vital feeling of freedom.


A dwelling must offer extra space, as much extra space as
programmed space.
This extra space is a non-defined space, free for-use. It is added to
the traditional spaces of the dwelling or to the programmed space
and the combination of both allows freedom and appropriation.

30 31
Every dwelling must have a privative outside space, as a balcony, IMAGES
a terrace, a winter garden, which offers the possibility of living
outside, of having a garden, like in a single house. 01 Philippe Ruault.

Building larger means building double, within the same cost to be


affordable for everyone, to create other possibilities, other freedom,
new ways of inhabiting.
Building double, for any program, to loosen the constraints, to
loosen norms and to allow more uses and improvisation.

A dwelling should give the same facilities as a villa.


The idea of luxury is therefore redefined in terms of generosity,
freedom of use and pleasure.
Our aim is to redevelop in cities the concept of villas (houses with
gardens), in a dense urban context.
Offering twice more space to each person, is necessary and an
essential condition to any project of densification.
Density, high-rise, are not only compatible with a better quality
of life, but they also offer solutions for a greater generosity of
individual space, for the revitalization of community life, for the
pleasure of inhabiting in cities.

All this applies for new housing, but also in the transformation and
improvement of existing buildings, to enhance their values, bring
them a new permanent quality and create optimal conditions for
inhabiting.

Inhabiting, pleasure and luxury for all | Jean-Philippe Vassal, Lacaton & Vassal
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

01 An apartment’s balcony.
Transformation of housing block, Tour Bois le Pretre, Paris.

32 33
O texto que agora se publica foi escrito em 2013, por reacção a três Arquitectura Resgatada
estímulos distintos, quase coincidentes no tempo, que tiveram a virtude Inquietações disciplinares a partir de três estímulos recentes
de expressar de modo contrastante diferentes posições sobre um
debate que se instalava então no seio disciplinar.
Estávamos no pico da crise económica e financeira, e perante o
seu forte impacto tanto nas condições de vida da população em
geral como no sector do imobiliário e da construção em particular.
Os arquitectos deparavam-se com a ausência de encomenda,
com a alteração dos modos de produção e com o desemprego. Nuno Travasso
Ao mesmo tempo, emergiam formas alternativas de praticar a
profissão e de procurar intervir em resposta aos muitos problemas Nota Prévia
sociais que se tornavam evidentes. Estas práticas alternativas
constituíam-se também como críticas aos modos de actuar das O texto que se segue é uma reacção suscitada por três estímulos recentes:
décadas anteriores que, à luz do novo contexto, eram lidas como * Conversa #2 do ciclo Cidade Resgatada1 promovido pela Ordem
totalmente desfasadas das reais necessidades da sociedade que dos Arquitectos - Secção Regional Norte. Uma conversa entre
deveriam servir. Foi este contexto que levou à instalação de um Alexandre Alves Costa e Álvaro Domingues com moderação de
debate em torno da função social do arquitecto, dos modos de Manuel Carvalho, na Biblioteca de Serralves a 22 de Maio de 2013.
exercer a profissão e dos limites da disciplina. * Editorial do Jornal Arquitectos nº 247, Maio-Agosto de 2013, com
O tempo passou, e o debate fez o seu caminho, tornando este texto o título “Combate e Táctica” e respectivo resumo apresentado na
desactualizado. Valerá agora apenas enquanto testemunho de um capa da mesma publicação sob o título “Combate”, escritos por
momento específico, razão pela qual se optou por publicar o texto André Tavares e Diogo Seixas Lopes, directores da actual equipa
na sua versão original – com a excepção de umas vírgulas em falta e editorial da publicação da Ordem dos Arquitectos.
da actualização da fonte de dois textos citados que a volatilidade da * Re-Act Urban Festival – Take1, promovido pela revista Dédalo.
internet tinha tornado inacessíveis. Evento composto por um workshop e um ciclo de conferências
Entretanto, também o contexto social, económico e político fez o seu e debates, que teve lugar no auditório da Junta de Freguesia de
caminho. Assistimos à concentração e intensificação do investimento Campanhã e na Faculdade de Arquitectura do Porto, entre 23 e 27
na reabilitação dos principais centros históricos, destinada ao turismo de Maio de 2013.
e à habitação de luxo; processo este em grande parte mobilizado pelas Três estímulos, encerrando três discursos distintos que, pelos
políticas públicas. Para os arquitectos, voltou a haver encomenda privada; seus contrastes, me conduziram a uma reflexão, talvez demasiado
e esperam ainda pela reanimação do investimento público prometido extemporânea e pouco fundamentada, certamente demasiado
pelo PRR. A concentração do investimento levou ao súbito aumento ingénua – mas que segue.
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

dos valores fundiários e dos preços da construção; originando uma


séria crise no acesso à habitação, que se agrava com as consequências
económicas da pandemia e da guerra. Agora, procuram-se novas
1 De acordo com a organização, e tal como se pode ler no folheto informativo
respostas para mais esta situação de crise, e importa perceber em
que anunciava a conversa, “[o] O Ciclo de Conferências e de Conversas Públicas,
que medida os arquitectos estão comprometidos com tal procura.

Arquitectura Resgatada | Nuno Travasso


denominado A Cidade Resgatada, organizado pela Ordem dos Arquitectos - Secção
Afinal, talvez o texto não esteja assim tão desactualizado.
Regional Norte (Pelouros da Cultura, Comunicação e projecto Norte 41º), aprofunda o
debate, iniciado em 2012, sobre os processos de Regeneração Urbana, à escala nacional
e internacional. Com este debate não se pretende apenas ‘resgatar’ o protagonismo
dos centros consolidados; deseja-se abarcar a cidade mais alargada, sobretudo as
franjas e os vazios pós-industriais, procurando perceber o seu papel estratégico nessa
regeneração. Deseja-se, enfim, que esses processos sejam participados e debatidos
interdisciplinarmente, englobando os contributos do Urbanismo, da Arquitectura, do
Paisagismo, da Geografia, da Sociologia, e da Antropologia.”

34 35
1 | Cidade Resgatada – Conversa #2: Invade-nos assim uma dúvida inquietante: face ao cenário de
aparente ausência de um programa ou de uma visão de futuro
Impasse comum a perseguir, qual o papel que se espera que os arquitectos
desempenhem? De que forma devem, no exercício do seu ofício,
Na conversa entre um arquitecto – Alexandre Alves Costa – e participar na sociedade da qual são parte integrante? O que lhes
um geógrafo – Álvaro Domingues – falou-se exclusivamente de resta senão esperar por um programa que julguem válido, aceitando
política. a cidade tal como ela se vai fazendo e desfazendo a cada dia;
Alexandre Alves Costa lançou o mote. Partindo do nome do ciclo aceitando, por isso, a própria degradação lenta mas contínua da democracia?
de conferências e conversas, o arquitecto defendeu que “a cidade
não está resgatada”. Estará apenas “quando for dos cidadãos”,
quando estes tiverem voz e tomarem realmente nas suas mãos os I Seminário Internacional de Arquitectura de Compostela e a
destinos da cidade que habitam e constroem. É por esta razão autonomia disciplinar
que Alves Costa considera não ser possível entender a desordem
que encontra no espaço urbano contemporâneo como resultado O discurso de Alexandre Alves Costa segue de perto os princípios que
inevitável de dinâmicas e processos instalados, dado tal desordem estiveram na base da criação do I Seminário Internacional de Arquitectura
ser, antes de mais, reflexo, reificação e representação de uma de Compostela.3 A 27 de Setembro de 1976 pelas 10h00, o seminário
organização política e social acentuadamente desigual e injusta, dirigido por Aldo Rossi iniciava-se com as palavras do próprio:
resultado de décadas de governação devedora dos princípios “Nos finais dos anos 50, pouco depois do final da guerra,
neoliberais. Considera por isso ser inaceitável qualquer análise quebrou-se a bela visão da arquitectura do Movimento
que contribua para a legitimação ou estetização da desordem Moderno; esta bela visão não deveria retornar nunca mais./
implementada. A análise do contexto contemporâneo deverá, Qual era esta visão? Aquela que, confundindo moral e estética,
sim, contribuir para informar a necessária construção de um política e técnica, pensava e via na arquitectura o elemento
novo projecto de sociedade e de cidade a perseguir. Um projecto capaz de redimir os conflitos sociais./[…] As polémicas entre
partilhado que trace um rumo e guie o desenho. Nesta linha, arquitectura democrática, socialista e fascista dissolveram-se
conclui: “não ter um projecto e uma acção constante de construção sob estas ruínas; a arquitectura voltava a ser técnica ou arte e,
da cidade que se faz e desfaz a cada dia, é aceitar a degradação lenta portanto, instrumento./[…] Hoje sabemos que não existe uma
mas contínua da própria democracia.” arquitectura moderna enquanto tal mas apenas programas a
Alves Costa clarifica, no entanto, que a participação na construção abordar e problemas a resolver.”
de uma tal visão partilhada de futuro ultrapassa as competências E acrescentava: “No estudo da cidade e da tipologia, da
próprias do trabalho do arquitecto.2 Aos arquitectos cabe interpretar arquitectura e da história, devem filtrar-se todos os problemas
e dar forma a um programa dado. Ir para além desta fronteira e do homem e da sociedade que nós, enquanto técnicos e apenas
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participar na definição do desígnio que o informa é extravasar os enquanto técnicos, não podemos resolver.”4
limites disciplinares. Será uma acção legítima e até necessária, em
que todos os indivíduos se deverão envolver, enquanto cidadãos,
3 O I Seminário de Arquitectura de Compostela, organizado pelo Colegio Oficial de
políticos ou activistas – mas não enquanto arquitectos.
Arquitectos de Galicia e dirigido por Aldo Rossi, decorreu em Santiago de Compostela entre

Arquitectura Resgatada | Nuno Travasso


27 de Setembro e 9 de Outubro de 1976, tendo contado com cerca de cento e cinquenta
2 Actualmente, os modos de exercício da profissão, assim como os actos próprios participantes, entre estudantes de arquitectura e jovens arquitectos, de várias nacionalidades.
da profissão de arquitecto, configuram um abrangente campo de práticas e formas Tratou-se de um seminário de projecto, onde cinco grupos desenvolveram propostas de
de intervenção, que vão muito para além da prática de projecto dentro dos moldes intervenção para cinco áreas contíguas ao casco histórico de Santiago de Compostela. Para
tradicionais do profissional liberal (cf. “Estatuto da Ordem dos Arquitectos” Decreto- além das sessões de projecto, incluiu um intenso programa de conferências, projecção de
Lei nº 176/98, de 3 de Julho, Capítulo VI: Exercício da profissão). No entanto, ao falar filmes e visitas de estudo.
d’o arquitecto e da sua prática, Alves Costa refere-se exclusivamente a essa imagem de 4 ROSSI, Aldo, “Introducción” in Proyecto y Ciudad Histórica: I Seminario Internacional
arquitecto projectista enquanto profissional independente. O mesmo entendimento – de Arquitectura en Compostela (ed. TARRAGÓ, Salvador; BERAMENDI, Justo).
focado na prática projectual – será assumido ao longo do presente texto. Santiago de Compostela: COAG, 1977, p. 15-16.

36 37
Estávamos em 1976. Acabava de ser demolido o último bloco comunidades significantes a partir da invenção arquitectónica, tal
do Pruitt-Igoe. Com ele ruía também a crença na capacidade como prometia o Manifesto de Doorn6. A convicção numa prática
da arquitectura para transformar, moldar e determinar a de arquitectura entendida como intervenção social e política associava-
sociedade5. As experiências dos primeiros modernistas não se agora à profunda desilusão que resultava das suas concretizações
haviam criado o homem novo com que sonhavam. Também os materiais, conduzindo a disciplina a um tempo de reflexão autocrítica.
seguidores do Team 10 se mostravam incapazes de criar novas Uma reflexão informada pelos princípios estruturalistas de inspiração
linguística e pela crítica da Escola de Frankfurt, que afastava a
arquitectura de uma prática projectual em cuja eficácia já não acreditava.
5 A demolição do complexo habitacional Pruitt-Igoe iniciou-se a 16 de Março
Eduardo Souto de Moura viria mais tarde a afirmar pertencer “a uma
de 1972, estendendo-se até 1976. Em 1977, Charles Jencks declara o dia e a hora
geração que cresceu na ideia da arquitectura enquanto ciência social,
da morte da Arquitectura Moderna, identificando-a com o momento da segunda e
como parte de uma ideologia segundo a qual seria necessário partir
mais mediática demolição (15 de Julho de 1972, às 15h32). Para o autor, o fim
da análise para chegar a uma síntese, princípio que tanto era válido
do Pruitt-Igoe representava o fracasso do projecto modernista e da ideia de uma
para a leitura estruturalista como para a marxista./Todo o suporte
nova arquitectura como motor da reinvenção da sociedade. Seria esta a base
teórico assentava no pressuposto de que era necessário observar a
do projecto: “[…] o estilo purista do complexo habitacional, como metáfora
realidade para poder modificá-la, e que só graças à observação analítica
do hospital limpo e salubre, pretendia, pela força do exemplo, induzir nos seus
a arquitectura se poderia manifestar; ou então que seria necessário
habitantes as virtudes correspondentes. A boa forma deveria dar origem ao
conhecer a história para poder intervir no seu rumo, fundando novos
bom conteúdo, ou pelo menos, à boa conduta; o desenho inteligente do espaço
movimentos./Do ponto de vista da teoria disciplinar, no entanto, nos
abstracto deveria promover comportamentos sãos.” (JENCKS, Charles, Le
tempos em que estudei, era o vazio total.”7
Langage de L’Architecture Post-Moderne. Paris: Denoël, 1984, p. 10). O projecto
Foi em busca dos instrumentos de que sentia falta que Souto de Moura
falhou ante a multiplicação de problemas sociais, forte criminalidade e profunda
rumou a Santiago de Compostela em Setembro de 1976,8 juntamente
degradação das construções e espaços públicos, que conduziram à sua demolição.
com Adalberto Dias, Teresa Fonseca e Graça Nieto Guimarães.
O Pruitt-Igoe passou a ser apresentado como prova da ideia que então se
Como afirmou Salvador Tarragó, secretário do 1º SIAC, “o
generalizava: a da incapacidade da arquitectura para promover a emergência
Seminário de Santiago pretendia ser o primeiro passo de uma
da nova sociedade sonhada, e da associação das experiências modernistas a
formulação colectiva e internacional de uma nova e velha maneira
múltiplos problemas sociais de que foram consideradas culpadas. Tal visão esteve
de entender a arquitectura”9, assim como a proposta de uma nova
na base do recuo face aos princípios modernistas e, sobretudo, do afastamento
da arquitectura em relação aos temas sociais e políticos onde sentia ter falhado.
Para Katharine Bristol, o mito do Pruitt-Igoe (e de toda a ideia de fracasso 6 O Manifesto de Doorn, redigido em Janeiro de 1954, foi a base da primeira declaração
da aventura modernista que o envolve) assenta na manutenção da ideia de conjunta do grupo Team 10. Sob o título Habitat, o documento elege a criação de
que a sua degradação material e social foi responsabilidade do projecto de comunidades como principal objecto da investigação disciplinar e objectivo primeiro
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arquitectura. Contrariando esta visão, a autora analisa a história daquele da acção dos arquitectos, remetendo para segundo plano o estudo da casa enquanto
complexo habitacional, salientando a responsabilidade das instituições sociais e entidade autónoma. No oitavo e último ponto do manifesto afirma-se “a adequação de
políticas e suas decisões no processo, e conclui: “A defesa de que o fracasso do uma qualquer solução deverá vir do campo da invenção arquitectónica mais do que da
Pruitt-Igoe foi consequência da agenda para uma reforma social seguidora das antropologia social” (SMITHSON, Alison; SMITHSON, Peter,“Habitat” in Team 10:
ideias de Le Corbusier e do CIAM, não só pressupõe que o desenho do espaço 1953-81, in Search of a Utopia of the Present (ed. RISSELADA, Max; HEUVEL, Dirk van

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físico é central para o sucesso ou falhanço da habitação social, mas também que den). Rotterdam: NAi Publishers, 2005, p. 42).
o projecto implementado visava levar a cabo a agenda social dos arquitectos. 7 SOUTO de MOURA, Eduardo,“Su Aldo Rossi” in Dopo Aldo Rossi, d’Architettura
Aquilo que esta visão esconde é a passividade dos arquitectos face a uma nº23, Abril 2004, p. 185.
agenda mais ampla baseada não na ideia de uma reforma social radical, mas na 8 “Quanto ao meu percurso pessoal, se Siza me forneceu os instrumentos ‘mecânicos’
economia política da St. Louis do pós-guerra e em práticas de segregação social. de projecto, Rossi deu-me a ‘epistemologia’, o suporte conceptual para a leitura da
O Pruitt-Igoe foi moldado por estratégias de guetização e revitalização do centro realidade e do projecto. De um modo geral, Rossi teve uma grande influência na
urbano – estratégias que não emanaram dos arquitectos, mas do sistema no qual arquitectura portuguesa.” (idem, ibid. p. 188).
eles desenvolvem a sua prática.” (BRISTOL, Katharine,“The Pruitt-Igoe Myth”, in 9 TARRAGÓ, Salvador,“Opiniones sobre el 1er SIAC”, 2C Construcción de la ciudad nº8,
Journal of Architectural Education vol.44 nº3, Maio 1991, p. 170). Março 1977, p. 61.

38 39
forma de ensino, de uma nova escola.10 O que se propunha era um Esta é a base de uma arquitectura que se apresenta com a falsa modéstia
exercício projectual que assentasse exclusivamente num conjunto de ser simplesmente a resposta técnica adequada a uma solicitação
de argumentos teóricos e instrumentos metodológicos que se bem definida. Confiança técnica, realismo na figuração de uma relação
consideravam como próprios do ofício de arquitecto: princípios clara entre forma e função, tensão e rigor, mas também segurança e
tipológicos e morfológicos, domínio dos sistemas construtivos, confiança […]”12 Iñaki Ábalos designou esta ideia de arquitectura como
análise das condições físicas do terreno e da evolução da sua pragmática.13 Ignasi Solà-Morales conotou-a com o liberalismo.14
ocupação, conhecimento da história da arquitectura. “Os outros O rumo dominante – ou pelo menos aquele que obteve maior
aspectos ou dimensões que intervêm no projecto foram expressamente reconhecimento nos principais fóruns académicos e profissionais – foi
afastados para nos obrigar a valermo-nos, nestas circunstâncias, dos no sentido de um discurso, de uma investigação e de uma prática
recursos específicos do nosso campo disciplinar e evitar, dentro do que encontravam os problemas, as referências e as soluções no
possível, justificações de difícil contestação ou controle dentro da interior da própria disciplina, focada agora na exploração dos
ciência arquitectónica.”11 princípios morfológicos e tipológicos, dos sistemas construtivos,
Rossi continuava assim a sua busca, iniciada havia mais de uma dos métodos projectuais e da história da arquitectura. Com o
década, pela transposição, para o domínio da arquitectura, dos afastamento de todos os temas considerados como externos,
princípios do pensamento estruturalista, então dominante. o objecto da prática disciplinar tornava-se a própria disciplina,
Defendia a criação de um conhecimento autónomo capaz de o enriquecimento do saber arquitectónico. Nas palavras de Ignasi
sustentar a arquitectura enquanto disciplina de carácter científico de Solà-Morales, a arquitectura surgia como “um universo
independente dos argumentos, métodos e instrumentos com suficiente em si mesmo, que se alimentava da sua própria
origem noutras disciplinas que, à data, pareciam dominar o campo história e que surgia desde o interior das suas próprias regras
da arquitectura. Visava a (re)construção de um saber arquitectónico e protocolos, do mesmo modo que Minerva quando, recriando
obtido pela sua depuração das componentes ideológicas e políticas. o mito hermafrodita na elegância do mundo clássico, nasceu da
Um saber próprio, específico e autónomo que fosse património da cabeça de Zeus.”15
disciplina e base fundamental tanto do discurso académico como
da prática projectual. *
Esta visão acabaria por ter grande aceitação, face ao impasse em que a
disciplina se encontrava. Aos arquitectos não se pedia já a impossível Tornemos a Compostela, trinta e cinco anos depois. Numa
tarefa de moldar a sociedade ou de assumir a direcção da revolução entrevista a Peter Eisenman,16 publicada no El País a 11 de
política. Aos arquitectos voltava-se a pedir que desenhassem edifícios. Setembro de 2011, sobre o seu projecto para a Cidade da
A ideia do exercício da profissão enquanto prestação de um serviço Cultura em Santiago de Compostela – encomenda de 1999 do
técnico generalizou-se. Um serviço cada vez mais competente, seguro e governo regional galego liderado por Manuel Fraga, antigo
responsável, que dá forma a um programa, apresentado por um cliente, ministro de Franco e fundador da Aliança Popular, antecessora
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respeitando as circunstâncias do lugar e as condicionantes orçamentais, do actual Partido Popular – a jornalista e historiadora Anatuxa
através do domínio dos instrumentos próprios do ofício. Ignasi de Zabalbeasca pergunta ao arquitecto se ele acredita “que os
Solà-Morales fala de “[u]ma ideia, convicta e segura, da possibilidade
real de controlar quantitativamente os requerimentos de um programa
12 SOLÀ-MORALES, Ignasi, “De la autonomía a lo intempestivo” in Diferencias: Topografía
arquitectónico para lhe dar resposta de um modo elegante e económico.

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de la arquitectura contemporánea. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 1996, p. 100.
13 Cf. ÁBALOS, Iñaki, “A bigger splash: la casa del pragmatismo” in La Buena Vida: Visita
10 Visava-se o alargamento das experiências que Rossi vinha implementando em Itália guiada a las casas de la modernidad. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2001; pp. 165-195.
e na Suíça. Nas palavras de Tarragó: “A metodologia desenvolvida pelas mais avançadas 14 “Liberalismo” é subtítulo do texto “De la autonomía a lo intempestivo” de Ignasi
escolas de arquitectura italianas ou suíças oferece a vantagem de repensar de raiz a Solà-Morales (op. cit., pp. 96-101)
disciplina própria da arquitectura, pelo que acreditámos que seria interessante propor 15 Idem, ibid., p. 90.
como orientação, sem mitificações, esta nova forma de trabalho para o 1º SIAC, como 16 Refira-se, por curiosidade, que Peter Eisenman integrava o programa do 1º SIAC
se de uma nova escola de arquitectura se tratasse.” (idem, ibid. p. 62). como conferencista. No entanto, o arquitecto americano não pôde comparecer, tendo
11 (Idem, ibid. p. 62). esta sido a única alteração ao ambicioso programa de conferências do seminário.

40 41
governos conservadores são melhores para a arquitectura do que transformações sociais e à radicalização das contestações sindicais,
os de esquerda.” Eisenman responde: assim como o descrédito da política social-democrata acabariam por
“Alto e claro: sim. O consenso não constrói nada de bom. E os ser rentabilizados por uma linha conservadora e liberal que prometia
governos de direita preocupam-se menos com o consenso. a construção de uma nova classe média acessível a todos por via
Tudo aquilo que construímos que tem algum valor, fizemo- do esforço individual, agora incentivado e premiado20. Contra uma
lo com governos conservadores: Ohio, Arizona, Alemanha, economia regulada e directamente dirigida pelo Estado, defendia-se
Itália, Galiza… Os governos conservadores têm a consciência a iniciativa privada e a liberalização do sistema económico. Contra
do valor financeiro da arquitectura e estão dispostos a correr o estabelecimento de direitos uniformizados pela negociação
riscos porque não se sentem obrigados a justificar-se perante os colectiva, promovia-se a competição, a meritocracia e a mobilidade
cidadãos. Essa, creio, é a diferença entre a direita e a esquerda: social do indivíduo. Contra um Estado detentor e distribuidor
perante quem se sentir responsável pelo que se faz.”17 dos recursos disponíveis, apostava-se na difusão da propriedade
No momento em que, fechando-se sobre si mesma, a prática da e do capital pelos particulares: casas, acções e poupanças21. Margaret
arquitectura passa a ter por objectivo primeiro servir a própria Thatcher chamou-lhe capitalismo popular22.
arquitectura, no momento em que o sistema que promove e envolve Desenhava-se um novo caminho que conduziria a profundas
a produção de determinada obra passa a ser olhado como um meio mudanças nas estruturas económicas, sociais e políticas,
para servir e enriquecer a disciplina, o mais provável é que a prática alimentadas pelos mercados financeiros, cada vez mais descolados
arquitectónica esteja a ser instrumento do dito sistema. da economia de produção, assentes na difusão de crédito e guiados
Depois de perguntar, por duas vezes, se a Cidade da Cultura se tratava por modelos matemáticos fornecidos pelos estudos de sistemas
de um projecto político e de, por duas vezes, Eisenman ter respondido complexos que então emergiam. Um cenário, tornado possível
que apenas procurava cumprir um programa, Zabalbeasca insiste: pelo desenvolvimento de performativos sistemas computacionais
“Com este cliente, com este orçamento e um ano depois da inauguração e novas tecnologias de informação, que foi impulsionado por um
do Guggenheim: acreditou não estar a fazer um projecto político?”18

20 “[…] se ‘valores de classe média’ incluírem o incentivo à diversidade e escolha


individual, a concessão de incentivos justos e recompensas pela competência e trabalho
1976-2006: trinta não tão gloriosos19
árduo, a manutenção de barreiras eficazes contra o poder excessivo do Estado e a
crença na ampla distribuição da propriedade privada, então são exactamente esses
Em 1976, o cenário era de crise e descrença no modelo até aí vigente –
valores que eu procuro defender.” (THATCHER, Margaret, “My Kind of Tory Party”
não só no campo da arquitectura mas também, e sobretudo, no
in Daily Telegraph, 30 Janeiro 1975. Em linha <http://www.margaretthatcher.org/
quadro social, económico e político.
document/102600>, acedido em Abril 2013).
O Maio de 68 elevara a liberdade e os anseios do indivíduo a
21 “Significa incentivos, porque sabemos bem que o crescimento, a força económica da
valores centrais. O fim de Bretton Woods e o choque petrolífero de
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nação nasce do esforço do seu povo. O seu povo precisa de incentivos para trabalhar o
1973 mergulhavam as economias ocidentais numa profunda crise
mais arduamente que lhe seja possível. […] Significa uma cada vez mais ampla difusão da
que viria a pôr em causa o aparente consenso a que se assistia nas
propriedade, de casas, de acções, de poupanças. […] Chamam a isto Thatcherismo; é, na
principais economias da Europa Ocidental em torno do modelo de
verdade, o mais básico senso comum […]” (THATCHER, Margaret, Entrevista dirigida
Estado Social de inspiração keynesiana. O temor face às aceleradas
por Sir Robin Day, programa Panorama da BBC1, 8 Junho 1987. Em linha <http://www.

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margaretthatcher.org/document/106647>, acedido em Abril 2013).
17 EISENMAN, Peter, “No se puede ser un arquitecto intransigente”, in El País, 11 22 Nigel Lawson, membro dos governos de Margaret Thatcher desde 1979, e
Setembro 2011. Entrevista por Anatxu Zabalbeascoa. Em linha:<http://elpais.com/ Chanceler (equivalente ao Ministro da Finanças) entre 1983 e 1989, afirmou nas suas
diario/2010/09/11/babelia/1284163962_850215.html> acedido em Junho 2013. memórias: “‘Capitalismo do povo’ [people’s capitalism] foi um termo cunhado por mim.
18 Idem, ibid. Margaret Thatcher gostou da ideia, mas não daquela formulação precisa, que lhe soava
19 O termo Trinta Gloriosos refere-se usualmente às três décadas de franco crescimento que demasiado comunista […]. Corrigiu-a para ‘capitalismo popular’ [popular capitalism]
se seguiram à Segunda Guerra Mundial, nas principais economias mundiais. A designação que, assim modificada, se tornou elemento fundamental do reportório do discurso dos
foi cunhada em 1979 por Jean Fourastié no seu livro Les Trente Glorieuses: Ou la révolution Conservadores.” (LAWSON, Nigel,The view from nº11: Memoirs of a tory radical. London:
invisible de 1946 à 1975. Bantam Press, 1992, p. 224).

42 43
processo simétrico – aparentemente dual – de uma acentuada Em Portugal, a 10 de Fevereiro de 1976 – na sequência da
globalização acompanhada por uma crescente individuação. reorientação política resultante do 25 de Novembro – é criado
É neste quadro ideológico em ascensão que se deve entender o Ministério da Habitação, Urbanismo e Construção que se
a política nacional a que Nuno Serra chamou revolução da casa justificava, essencialmente, com a necessidade de reanimar
própria23. Uma política, iniciada exactamente em 1976, que e reestruturar o sector da construção civil como meio para
teve por base um longo programa de incentivo à aquisição de relançar a economia em tempo de crise, tendo em consideração
casa própria, assente num abrangente sistema de poupança a importante incorporação de produção nacional que
e de crédito bancário com condições fortemente apelativas, caracterizava o sector, assim como a elevada percentagem de
directamente financiado pelo Orçamento de Estado. E se numa postos de trabalho dele dependentes. Tratava-se ainda de uma
primeira fase pós-25 de Abril este programa pode ser lido como cedência à forte pressão que os empresários da construção civil
resposta directa aos anseios e direitos da população relativos exerciam sobre o governo, vindo estes a ocupar os principais
ao acesso à habitação, ele terá sobretudo de ser compreendido lugares no interior do novo ministério25.
como parte de uma ampla reestruturação política e económica, O incentivo à aquisição de habitação própria surgiu, desde
na qual os sectores da banca e da construção assumiriam um logo, como instrumento de apoio ao sector. Deste modo,
papel fulcral, e da qual sairiam francamente beneficiados. O respondia-se também aos anseios de amplas camadas da
resultado óbvio foi a explosão do crédito à habitação24 e a forte população e contrariavam-se os interesses dos proprietários
dinamização de um acelerado processo de expansão urbana rentistas, olhados como exploradores à luz dos ideais de Abril.
essencialmente guiado pela promoção privada. Os apoios públicos transferiram-se, assim, da promoção
directa da urbanização e edificação, para o financiamento às
famílias compradoras. Os programas de habitação pública que
haviam recebido forte impulso no período pós-revolucionário
– e dos quais se destaca o SAAL (Serviço de Apoio Ambulatório
Local) – esvaziavam-se agora, tornando-se residuais.
Catorze dias após a criação do novo ministério, lançava-se então
um programa de crédito bancário destinado à aquisição de
habitação própria com condições especialmente favoráveis: prazos
alargados e juros baixos, variáveis em função dos rendimentos
dos requerentes. Os juros mais reduzidos correspondiam a um
financiamento público suportado directamente pelo Orçamento
de Estado. Nos anos que se seguiram, o programa foi revisto,
tornando-se mais abrangente e atractivo.
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Em 1978, o país encontrava-se mergulhado numa grave crise


económica e financeira, resultado da turbulência da mudança

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23 Em 1970, o regime de ocupação em casa própria correspondia a cerca de 48% do 25 “No novo ministério, os postos de relevo foram ocupados por antigos
parque habitacional. Em 2001, este número ascendia a 76%. Nuno Serra chamou a esta responsáveis do Grémio de Industriais da Construção Civil, uma estrutura
rápida mutação “revolução da casa própria”. SERRA, Nuno, “Revolução da casa própria: corporativa muito ligada aos promotores imobiliários. As medidas adoptadas, a
a centralidade da habitação na economia do endividamento”. Comunicação apresentada partir de então, vão no sentido da substituição da promoção pública e de custos
no colóquio Portugal entre Desassossegos e Desafios, CES, Coimbra, 17 de Fevereiro de 2011. controlados (“apoio à pedra”) pelo financiamento às pessoas e às famílias (“apoio à
24 Entre 1976 e 1980 – os primeiros anos do programa de crédito bonificado – a média pessoa”) para a aquisição de casa própria no mercado livre.” (FERREIRA, António
anual de créditos concedidos foi de 28 000; em 1999 este valor atingia os 233 485 contratos. Fonseca – “Anos de 1970-1980: do Fundo de Fomento da Habitação ao Instituto
De modo similar, em 1991 o crédito à habitação absorvia 15,5% do Rendimento Disponível Nacional da Habitação” in PORTAS, Nuno (coord.), Habitação para o Maior Número:
das Famílias; em 2002 este valor ascendia aos 74,5%. Portugal, os anos de 1950-1980. Lisboa: IHRU, 2014, p. 116.).

44 45
de regime e da crise internacional26. Em Maio do mesmo ano, No entanto, as reformas estruturais a que o país se via agora
o FMI chegava a Portugal para um programa de assistência obrigado não visavam apenas responder à agenda neoliberal do
de um ano. Voltaria depois, para nova intervenção, entre 7 de FMI. A intervenção externa tinha como objectivo prioritário
Outubro de 1983 e 28 de Fevereiro de 1985. O acordo impunha guiar Portugal no seu processo de adesão à CEE, iniciado
restrições ao regime de crédito bonificado cuja aplicação se em 1977; processo que impunha a profunda redefinição do
tornou mais contida. No entanto, os anos de ajuda externa modelo económico e financeiro, no sentido da unificação
teriam consequências mais amplas no que toca ao incentivo com o sistema comunitário. Esta aproximação obrigava a
à promoção imobiliária. uma total reestruturação do sector bancário – nacionalizado
O FMI começava então a aplicar os princípios que viriam mais desde Março de 1975 – tendo em conta a sua importância
tarde a ser identificados como Consenso de Washington.27 para o apoio à economia nacional no processo de adesão ao
mercado único e, mais tarde, na gestão da entrada na moeda
única europeia. Com a abertura da banca à iniciativa privada,
26 Ana Bela Nunes elenca os principais factores que conduziram à crise nacional. No
em 1984, iniciava-se um processo gradual de reformulação,
decorrente do contexto internacional, destaca o aumento no preço das importações
privatização e liberalização do sistema bancário, que se
contribuindo para o défice da balança comercial; a redução na emigração; a redução das
estenderia por mais de uma década.
remessas dos emigrantes; a redução no turismo. No que toca a factores internos, refere a
É este cenário que permite perceber o forte incentivo à compra
despesa pública decorrente de um conjunto de medidas de carácter social que a emergência
de habitação que se seguiria. Em 1986, findo o programa
revolucionária impunha, como o aumento dos salários (25% de aumento dos salários reais
de apoio externo e assinada a adesão à CEE, o regime de
entre 1973 e 1975) e a criação súbita de um sistema de segurança social que procurava seguir
crédito bonificado era claramente reforçado: as taxas de juro
os princípios do Estado Providência existente nas economias europeias mais desenvolvidas;
foram reduzidas, o financiamento público aumentado e o
a fixação dos preços de serviços e bens essenciais em níveis artificialmente baixos como
programa alargado ao apoio à aquisição de habitação para
combate à inflação; a política de nacionalizações que levou ao aumento significativo do
residência secundária ou para arrendamento, assim como
sector empresarial do Estado e consequente dificuldade no seu financiamento; o resgate
para aquisição de terrenos destinados à construção28. Ao
de muitas pequenas e médias empresas em dificuldades; a fuga de capitais resultante tanto
mesmo tempo, o regime era associado a um novo sistema de
do contexto económico como do contexto político; a descolonização, conduzindo a uma
contas poupança-habitação29 que oferecia elevadas taxas de
quebra acentuada nas exportações antes dirigidas para as colónias; o aumento repentino
juro e um amplo conjunto de isenções e benefícios fiscais.
da população decorrente da chegada de mais de 600 000 retornados. (cf. NUNES, Ana
Em 1989, o sistema seria fortalecido com novos benefícios
Bela,The International Monetary Fund’s stand-by arrangements with Portugal: An ex-ante application of the
fiscais e com a segurança de que todos os detentores de contas
Washington Consensus? Lisboa: GHES-ISEG, 2011. Em linha <https://www.repository.utl.pt/
teriam acesso a crédito habitação, sob garantia do Fundo de
bitstream/10400.5/2871/1/GHES-DT-44.pdf>, acedido em Abril de 2013).
Estabilidade Financeira da Segurança Social. Criou-se mesmo
27 O termo Consenso de Washington foi cunhado pelo economista John Williamson em 1989
um programa de prémios, directamente financiados pelo
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para designar o conjunto de reformas estruturais que foram a base dos vários programas
Orçamento de Estado, que duplicava o montante depositado
de apoio externo a um conjunto de países da América Latina a braços com graves crises
em determinado número de contas sorteadas mensalmente.
económicas na década de 1980. Estas políticas correspondiam a um consenso entre as
Era já claro que tais medidas não eram guiadas por uma
visões para a economia das grandes instituições financeiras sediadas em Washington,
política de habitação. Os objectivos que as justificavam
nomeadamente, FMI, Banco Mundial e Reserva Federal dos EUA. Tal consenso sintetizava-se em
estavam expressos nos diplomas legais que se sucediam,

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dez princípios basilares de actuação: disciplina fiscal; redução e redireccionamento da despesa
pública contrariando uma política de subsídios; reforma tributária; liberalização das taxas
de juro; política cambial competitiva; liberalização do mercado; abertura ao investimento 28 Até à publicação do Decreto-Lei nº328-B/86 de 30 de Setembro o regime de
estrangeiro directo; privatização da banca e das empresas públicas; desregulação da economia; crédito à habitação era exclusivamente dirigido à aquisição de residência principal.
garantia dos direitos de propriedade. O termo Consenso de Washington viria a ser rapidamente 29 Seguindo o mesmo princípio do regime de crédito, o saldo das novas contas poupança-
generalizado como designação da linha de política económica neoliberal que então se habitação poderia ser mobilizado para aquisição de habitação própria permanente, de
difundia. Tal como Ana Bela Nunes (op. cit.) demonstra, os programas de ajuda externa habitação própria secundária, ou de prédio ou fracção destinada a arrendamento, assim como
aplicados em Portugal de 1978 e de 1983-1985, surgem como uma aplicação destes mesmos para a realização de obras de construção, recuperação, beneficiação ou ampliação de prédios
princípios, ainda numa fase inicial da sua definição. ou fracções de prédio de habitação (cf. nº1, art. 5º do Decreto-Lei 35/86 de 3 de Março).

46 47
onde se aludia à “necessidade de preservação dos equilíbrios Mas o incremento na construção não ficou circunscrito ao imobiliário
macroeconómicos.”30 Para além da continuação do apoio ao residencial. Nos anos que se seguiram à adesão à CEE, e em particular
sector da construção como meio de criação de emprego e durante a década de 1990, assistiu-se à multiplicação de novos infantários,
dinamização da economia, pretendia-se também “fomentar a escolas, faculdades, centros de saúde, hospitais, serviços de apoio social,
poupança das famílias, de forma a que o aumento possível complexos desportivos, teatros, museus, centros culturais, … – um
dos salários reais não se converta, por inteiro, em excessos vasto leque de equipamentos que, juntamente com as novas redes infra-
de consumo, reflectindo-se assim negativamente ao nível do estruturais, vieram dar suporte e incentivo ao crescimento urbano que
défice externo.”31 Ou seja, no quadro da integração europeia, se verificava. O forte investimento público, em grande parte suportado e
marcado pelo expectável aumento do nível de vida, mas promovido por fundos comunitários,32 que visava desenvolver, reestruturar
também pela abertura ao mercado externo, era necessário e aumentar a competitividade dos territórios nacionais, resultou num largo
que o enriquecimento esperado não se materializasse num conjunto de obras – novamente, um claro apoio ao sector da construção –
dramático aumento das importações. Daí a necessidade de que surgia como imagem dos novos tempos de desenvolvimento e progresso.
encontrar mecanismos que permitissem reter em solo nacional Foi ainda durante este período, já no final da década de 1990, que se
parte substancial do rendimento disponível. A promoção da afirmou a aposta nos projectos urbanos, dos quais a Expo98 e o programa
poupança e a drenagem dos recursos existentes para o sector POLIS serão os exemplos de maior relevo. Trataram-se, em geral, de
da construção – como sector pouco aberto à concorrência acções de transformação urbana de grande fôlego e visibilidade que se
externa – surgia como fórmula simples e eficaz. Tratava-se queriam catalisadoras de uma dinâmica de regeneração de maior escala
igualmente de uma fórmula largamente benéfica para a banca. e que obrigavam à articulação entre investimento público e privado. A
De facto, o programa de créditos subsidiados oferecia aos operação associada aos Jogos Olímpicos de Barcelona oferecia o exemplo
bancos elevado rendimento, ao mesmo tempo que a promoção a seguir. Os mecanismos a utilizar haviam já sido introduzidos no início
da poupança garantia a capitalização do sistema. Condições da década de 1980 pela mão de Margaret Thatcher, com a criação de
essenciais num tempo em que se redesenhava todo o sistema, figuras como as Sociedades de Desenvolvimento Urbano. O principal
que se desejava robusto, capaz de suportar a liberalização do objectivo do investimento público – e dos planos – passava a ser o de
sector, a abertura à concorrência externa, o cumprimento das atrair capital privado, em especial aquele ligado à promoção imobiliária
normas internacionais e a adesão à moeda única. Exigia-se apontada às classes médias solventes que floresciam e que se pretendia
também que se tratasse de um negócio francamente apelativo, fixar nas áreas urbanas alvo de regeneração33. A acção de planeamento
capaz de atrair investidores que garantissem o sucesso do seria agora guiada pelas regras dos mercados que procurava atrair e o seu
processo de privatização que se impunha. A privatização da sucesso medido pela sua capacidade de alavancar investimento privado.34
banca estendeu-se de 1989 a 1997, precisamente os anos de
maior incentivo à aquisição de habitação.
32 Cf. MATEUS, Augusto, coord., 25 Anos de Portugal Europeu: A economia, a sociedade e
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os fundos estruturais. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2013, pp. 488-492.
33 Cf. WARD, Stephen, Planning and Urban Change. London/Thousand Oaks/New Delhi: Sage, 2004, pp.188-191.
34 Em resposta a um conflito instalado entre a Sociedade de Reabilitação Urbana do Porto
e o Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (principal accionista da SRU-Porto), 1462
signatários apresentaram, em Maio de 2013, uma carta aberta ao Governo de Portugal sob o título

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Em Defesa do Crescimento Económico e do Respeito pelo Porto onde se defende a actuação da SRU.
Como argumento fundamental, pode ler-se:
“Até à data, por cada euro de investimento público executado neste projecto, os privados
investiram, em reabilitação urbana, uma média de dez euros. Mas casos há, como no Quarteirão
das Cardosas, onde este exercício ainda é bem mais expressivo. Neste caso, no fim de 2012,
30 Preâmbulo Decreto-Lei 382/89 de 6 Novembro, que revê o regime de contas o investimento privado atingia já cerca de 90 milhões de euros, sendo o investimento público
poupança-habitação. líquido inferior a 6 milhões de euros. / Em conclusão, no Quarteirão das Cardosas, por cada
31 Preâmbulo Decreto-Lei 35/86 de 3 de Março, que cria o regime de contas euro de investimento da ‘Porto Vivo, SRU’ os privados investiram, até ao momento, cerca de 15
poupança-habitação. euros.” (Em linha <cartaaberta.cm-porto.pt> acedido em Junho 2013).

48 49
* Construía-se assim uma nova cidade, enquanto celebração das
conquistas agora alcançadas. Conquistas tantas vezes associadas a
Interessa, portanto, ter presente que não é possível desligar a arquitectura uma aparente superação da luta de classes, num mundo novo, onde
do sistema social, económico e político que a produz; sistema do qual todos teriam a possibilidade de cumprir os seus desejos e onde,
a arquitectura é não só representação mas também, inevitavelmente, por demasiadas ocasiões, não se reconheceu (nem construiu) o
meio de construção e de reprodução. espaço do outro – aquele que não tinha a possibilidade, os meios
E, de facto, esta relação esteve longe de se limitar, nas últimas décadas, ou a vontade para lutar por uma acelerada ascensão social, ou
ao papel que o sector da construção desempenhou na reestruturação aquele que não partilhava a ideologia que se tornara dominante –
do sistema bancário ou no crescimento da economia nacional. As simplesmente considerado como auto-excluído.
tipologias e imagens que se generalizaram, publicaram e copiaram Estes foram, pois, os anos da autonomia disciplinar. E foram anos
foram expressão dos princípios e valores do regime que se solidificava. gloriosos para os arquitectos portugueses: multiplicaram-se
A afirmação da propriedade privada e do espaço do indivíduo; a as encomendas e as obras, houve reconhecimento nacional e
procura do conforto, do novo, da novidade; a exclusividade, a distinção, internacional. Sucederam-se as publicações e os prémios.
a estabilidade, a segurança, a autonomia, a sofisticação, o progresso,
o sucesso – foram princípios que, através de imagens e de discursos,
estiveram na base de uma promoção imobiliária que participou 2 | Editorial do Jornal Arquitectos nº 247:
activamente na construção de um novo imaginário colectivo, A arquitectura refém de si própria
inseparável da ascensão das novas classes médias que encontravam na
mobilidade social, resultado do mérito individual, o sentido primeiro da Em 2007, explode nos Estados Unidos da América a crise dos
acção de cada indivíduo35. Por seu lado, os novos edifícios públicos, no subprime, originada no seio do regime de crédito bancário à habitação,
seu optimismo, extroversão e diversidade, apareciam como celebração alastrando-se rapidamente à escala global para se transformar
do novo Estado, aberto e democrático, finalmente capaz de oferecer numa ampla e complexa crise económica e financeira com efeitos
aos seus cidadãos os serviços ambicionados. O Estado não procurava especialmente gravosos no nosso país.
já fazer-se representar por uma imagem uniforme e codificada. O No sector da construção, a quebra foi dramática. A forte
novo Estado queria-se gestor e dinamizador da acção dos indivíduos desvalorização do imobiliário, a limitação de crédito, a diminuição
que constroem o país. Cada edifício surgia como símbolo das novas do rendimento das famílias e a acentuada incerteza conduziram à
capacidades nacionais, exemplos da mais elevada qualidade, que estagnação do investimento privado. A situação em que as finanças
expressavam o mérito e a competência dos seus autores. Esta ideia de públicas se encontraram – depois de uma primeira tentativa de
qualidade estendeu-se ao desenho do espaço público nas múltiplas acções reacção expansionista – e o consequente programa de ajuda externa
de regeneração de áreas urbanas que se generalizaram a partir da década travaram abruptamente todo o investimento público.
de 1990. Como aponta Manuel Delgado, à ideia de rua enquanto espaço A alteração no sector da construção parece, no entanto, não se
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

de encontro, apropriação, conflito e reivindicação, opôs-se a noção de resumir a uma temporária falta de investimento. Tal como na
espaço público de qualidade, expressão de civilidade, cortesia e representação, década de 1970, o tempo de crise é tempo de crítica às políticas
entendidos como protocolos consensuais mínimos numa sociedade seguidas nas décadas anteriores. Questiona-se um modelo de
marcada por acentuados processos de individuação e mobilidade social.36 crescimento em grande parte assente no imobiliário residencial,
transformado em mero produto financeiro, que ultrapassou

Arquitectura Resgatada | Nuno Travasso


largamente as necessidades efectivas da população e não soube
35 “[…] a cidade urbanizada contribui para dar toda a sua lógica a uma sociedade
aproveitar as estruturas já existentes. Questionam-se os exageros
liberal que instaura o indivíduo como origem e fim do sentido, indivíduo esse que se
do investimento público em vastas redes infra-estruturais e na
move em função de seu próprio projecto por meio das referências abstractas múltiplas
multiplicação de equipamentos cuja manutenção se torna agora
que a urbanização o força a inserir na vida quotidiana.” (RÉMY, Jean; VOYÉ, Liliane,
demasiado onerosa. Multiplicam-se as imagens do fim abrupto do
A Cidade: Rumo a uma nova definição? Porto: Edições Afrontamento, 1994, p. 98).
tempo de crescimento e de uma retirada apressada e sem plano
36 DELGADO, Manuel, “Espacio Público: Discurso, Arquitectura y Acción”.
Conferência inserida no ciclo A Cidade Resgatada, organizada pela OASRN. Auditório de
Serralves, 15 de Maio de 2013.

50 51
aparente37: empreitadas interrompidas tornadas novas ruínas; disciplinares. Um momento de expansão que, de acordo com os
equipamentos e serviços encerrados. Sucedem-se precipitadas autores, deverá sempre assegurar a preservação do saber disciplinar
acusações de desperdício e de irresponsabilidade. As mesmas dado que “se os arquitectos prescindem da base estruturante do seu
imagens que foram celebração de progresso tornam-se agora saber, correm o risco de se dissolver noutros campos profissionais,
símbolos do tempo de optimismo inconsequente que nos ou numa lógica de mercado que já não os contempla.”39
conduziu à situação actual. Uma vez mais, o discurso fecha-se sobre si mesmo, enredando-se
Para os arquitectos, as consequências são profundas: escasseia a no interior da disciplina. Perante o contexto de crise profunda e
encomenda, encerram os escritórios, disparam o desemprego, a generalizada, a reflexão sobre o modo de intervenção dos arquitectos
emigração e a procura de actividades alternativas. A crise instala-se na assume aqui como objectivo principal a garantia de trabalho para
classe profissional, tal como se instala em muitos outros sectores da os membros da corporação profissional e toma como preocupação
população. máxima a protecção do saber arquitectónico.
Ao mesmo tempo, tem-se assistido à crescente visibilidade de um
conjunto de práticas que assumem uma posição crítica em relação *
àqueles que foram os modelos vigentes do exercício da profissão
ao longo dos últimos anos. Práticas exploratórias que procuram Na presente situação, a arquitectura está longe de poder ser
posicionamentos mais operativos ou mais consonantes com o considerada inútil. Num momento marcado pela dramática escassez
contexto actual e que parecem contribuir para a expansão dos de recursos; num momento em que se verifica uma crescente
limites do saber e da acção disciplinares. dificuldade no acesso à habitação; num momento em que se torna
O número 247 do Jornal Arquitectos dá conta de algumas dessas evidente a urgência de reabilitar significativos conjuntos urbanos
práticas. Na capa da publicação, o resumo do editorial, sob o título profundamente degradados, e em que se torna clara a necessidade
‘Combate’, coloca a questão nos seguintes termos: de encontrar fórmulas capazes de assegurar a manutenção e
“A arquitectura está refém da sua suposta inutilidade: perante o consolidação de vastas áreas urbanizadas resultantes do crescimento
impasse social que habitamos, outros saberes fazem valer melhor as explosivo das últimas décadas; num momento em que se assiste
suas competências. Essa concorrência […] gera fricções e alternativas a uma alteração nos actores, dinâmicas e modos de produção, e
à prática profissional. A arquitectura e os arquitectos têm de entrar à revisão do sistema económico e financeiro que suportava o
num território de combate, um combate difícil por ser fundamental sector da construção; num momento em que se torna patente uma
preservar as bases do saber arquitectónico […]”38 transformação nos imaginários, anseios e práticas quotidianas da
Para André Tavares e Diogo Seixas Lopes, directores do JA, os novos população, dos quais as tipologias e imagens da edificação e espaços
modos de exercício da profissão que aí se publicam parecem surgir, colectivos são sempre expressão: neste momento, a arquitectura
antes de mais, como reacção à escassez de encomenda dentro dos – enquanto disciplina e enquanto prática – é, não só útil, como
moldes tradicionais, obrigando à procura de campos alternativos de necessária e urgente, na procura de novos modelos de intervenção
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

actuação, numa tentativa de conquista de territórios a outros domínios capazes de responder às novas circunstâncias.
Sê-lo-á, no entanto, apenas quando o discurso disciplinar
estabelecer como objecto os problemas que se encontram no
37 Em 2011, António Figueiredo fazia notar que a abordagem à crise que estava
seu exterior, aqueles com que a sociedade se debate no dia-a-dia.
(e está) a ser seguida parecia não configurar ou possibilitar uma retirada estratégica
Sê-lo-á apenas quando tomar por objectivo a exploração dos modos

Arquitectura Resgatada | Nuno Travasso


que pudesse apoiar uma reorientação dos recursos e modos de actuar mais adaptada
mais operativos de mobilizar o seu saber e a sua capacidade de
à situação presente e, sobretudo, ao previsível contexto futuro. Neste sentido, o
acção na abordagem a tais problemas: algo que obriga a questionar
economista alertava para a aparente possibilidade de uma “retirada caótica sem espaço
as práticas estabelecidas e os limites auto-impostos que, tal como
para sinais de orientação estratégica de novos comportamentos” (FIGUEIREDO,
patente no discurso de Alves Costa, conduzem hoje a disciplina a
António Manuel,“Economia do(s) território(s) e sustentabilidade”. Comunicação
uma situação de bloqueio.
apresentada no VIII Congresso Ibérico de Urbanismo. A Mudança do Ciclo: Um Novo
Urbanismo. Covilhã, 27-29 Outubro 2011).
38 TAVARES, André; SEIXAS LOPES, Diogo, “Combate” in Jornal Arquitectos n.º 247,
Maio-Agosto 2013. 39 Idem, ibid., p. 85.

52 53
Ao contrário, ao persistir em afastar-se de uma sociedade em particular, por muitos espanhóis42: não passara ainda um ano da
acelerada transformação, que reclama toda a participação possível, morte de Franco e o país atravessava uma fase de transição rumo
é o discurso disciplinar que declara a sua própria inutilidade. A à democracia, esperando ainda as primeiras eleições livres desde
arquitectura torna-se refém de si própria. 1936. A revolução portuguesa de 1974 surgia como um exemplo
de liberdade e de acção a perseguir. O SAAL era um símbolo deste
I Seminário Internacional de Arquitectura de Compostela e a processo, que a participação dos portugueses no seminário tornava
urgência da acção ainda mais presente.43
A imagem do arquitecto apresentada pelo SAAL tanto se afastava
O método proposto por Aldo Rossi e seus assistentes no 1º do demiurgo que procura desenhar as estruturas sociais e os modos
SIAC, como meio para o estabelecimento de uma nova prática de de habitar, visando a construção de uma nova sociedade por ele
arquitectura e um novo entendimento da disciplina, não foi aceite idealizada; como negava a ideia de um técnico neutro, apartado
de modo consensual. O seminário tornou-se espaço de conflito e de qualquer intervenção social ou política, ocupado apenas com a
de intensa discussão sobre os modos de exercício da profissão40. composição formal e a solução construtiva dos seus edifícios. Ao
Muitos dos participantes contestaram a visão e o método seguidos contrário, o arquitecto surgia como parte de um colectivo e actuava
que viam como demasiado redutores e afastados da realidade em conjunto com outros profissionais e com os moradores numa
local, ao não contemplarem qualquer informação ou aproximação acção partilhada, colocando o seu saber e a sua capacidade operativa
relativas à situação política e económica, às estruturas sociais ou ao serviço da efectiva melhoria das condições de vida da população
aos problemas e às reivindicações dos habitantes de Santiago mal alojada, mas também ao serviço de uma nova ideia de cidade e
de Compostela, para os quais ensaiavam novas propostas de do sonho de uma sociedade por vir.
intervenção. Defendiam que tal posição conduzia a uma prática Os modos de actuação destes arquitectos estiveram longe de ser
académica e laboratorial que acabava por redundar num evidente uniformes ou consensuais. Foram tempos de invenção de novos
formalismo, desconectado de qualquer contexto específico, e métodos e de busca da posição de cada actor dentro do novo
reclamavam o contacto directo com associações e organizações cenário. Tempos de criação e exploração de novos processos.
locais que se pudessem estabelecer como interlocutores e informar Tentativa, erro, teste.
os projectos a desenvolver. Mas foram sobretudo – e aí houve uniformidade – tempos de um
A reacção destes participantes era, em grande parte, fruto do amplo envolvimento com os movimentos populares e de uma
ambiente que então se vivia. Em Setembro de 1976, o programa acção intensamente comprometida, resultado da ânsia de participar,
SAAL encontrava-se no seu auge. Avançavam as primeiras com o seu saber e ofício, num movimento que era maior do que
obras e multiplicavam-se as publicações internacionais sobre o a intervenção individual de cada um e que, por isso mesmo, lhe
processo que fazia a Europa sonhar41. Um sonho partilhado, em conferia sentido. Nunca abandonaram os instrumentos próprios
da profissão. No entanto, o desenho não foi guiado apenas pelas
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

suas próprias regras internas, mas também pelos contributos


40 O teor desta discussão torna-se claro nas oito declarações finais apresentadas no
e reivindicações dos moradores e pelos princípios e valores de
seminário e que fazem diferentes avaliações dos trabalhos decorridos (TARRAGÓ,
uma sociedade em turbulenta transformação. Na verdade, esta
Salvador; BERAMENDI, Justo (ed.), Proyecto y Ciudad Histórica: I Seminario Internacional
relação – entre o desenho e aquilo que o justificava – foi muitas
de Arquitectura en Compostela. Santiago de Compostela: COAG, 1977, pp. 291-301);
vezes complexa, confusa e pouco sustentada44, mas era o reflexo

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assim como pela memória descritiva do grupo de trabalho da área de estudo San
Clemente da qual faziam parte os quatro portugueses e que critica as direcções
impostas pelos orientadores Bruno Reichlin e Fabio Reinhard (idem, ibid. pp. 260- especialmente dedicadas ao momento revolucionário que a arquitectura portuguesa atravessava.
269). O ambiente de conflito é ainda referido nos textos publicados no n.º 8 na 42 A grande maioria dos participantes era de nacionalidade espanhola.
revista 2C sobre o seminário, onde se esclarece o seu teor e se dá nota de que terão 43 Para além de Adalberto Dias, Eduardo Souto Moura, Graça Nieto Guimarães e
sido amplamente divulgados (“Proyecto y Ciudad Histórica: El 1er SIAC” in 2C Teresa Fonseca que integravam um dos grupos de projecto, estiveram ainda presentes,
Construcción de la ciudad nº 8, Março 1977, pp. 52-66). como conferencistas, Álvaro Siza Vieira, José Charters, Artur Pires Martins, José da
41 Refira-se, por exemplo, o dossier publicado sobre o processo SAAL na Lotus International Nóbrega e José Lopo Prata. Todos envolvidos, à data, no processo SAAL.
nº10 (1975); ou a L’Architecture d’Aujourd’hui n.º 185 (1976) e a Casabella n.º 419 (1976) 44 Bruno Reichlin, um dos coordenadores do grupo em que participaram os quatro

54 55
possível da necessidade de agir imposta pela “pressão da urgência 3 | Re-Act Urban Festival – Take 1:
das necessidades reais”45. Antes de mais, era necessário participar, Em busca do resgate da arquitectura
com as ferramentas disponíveis. Alexandre Alves Costa chamou-lhe
“urgência do desenho”46. Sob o título Who lives next door?, o décimo número da revista Dédalo
E aí, a disciplina não correu risco de dissolução. Pelo contrário, parte da “recusa da abstracção e generalização de princípios, fins
ampliou-se, cresceu, ganhou solidez, operatividade e sentido. e meios” e da consciência de que toda a intervenção sobre o
espaço urbano deve assentar “não só nas características físicas
* do lugar mas também nas condições e aspirações daqueles que
o habitam”50 , para se propor reflectir, explorar e testar práticas
A 27 de Outubro de 1976, precisamente um mês após o início do que procurem envolver os moradores locais não só no processo
seminário de Compostela, saía o despacho que viria a corresponder criativo mas também na própria acção sobre o espaço público,
à extinção do programa SAAL47. Em 1978, Alves Costa concluía o que é, também, seu.
seu primeiro texto sobre a experiência do SAAL no Porto com as Foi este o mote do Re-Act Urban Festival – Take 1, promovido pela
seguintes palavras: Dédalo #10 que decorreu no Porto entre 23 e 27 de Maio de 2013.
“Para os arquitectos não deve estar próxima a concretização das O evento compôs-se de um workshop51 e de um ciclo de conferências
suas propostas, nem sequer a conclusão das iniciadas. Arquitectos e debates que visou a reflexão a partir das práticas desenvolvidas por
que dramaticamente não podem utilizar as novas ferramentas, um amplo conjunto de arquitectos, artistas e sociólogos, nacionais e
adquiridas justamente no momento em que a sua crise histórica internacionais, que aí se reuniram para as partilhar e discutir52.
parecia ultrapassada e a Arquitectura encontrava, por se não ter Estas práticas estão longe de ser uniformes, seja nos objectivos, seja
demitido, a sua dimensão autêntica.”.48 nos modos de actuação, exibindo, aliás, diferentes graus de coerência
Mais tarde o autor clarificaria a razão desta aparente impotência: ou consequência na acção. Apesar disso – e lembrando aqui as
“[…] não são os arquitectos que decidem trabalhar para o povo, é apresentações feitas por parte dos arquitectos presentes – torna-se
o poder político e económico que decide para quem os arquitectos possível destacar algumas características que se evidenciaram como
trabalham […]o arquitecto trabalha para quem lhe paga e é assim se transversais às várias experiências partilhadas.
quiser ou tiver de produzir.”49 Ficou desde logo evidente a inconformidade face aos modelos
Estaremos nós assim tão dependentes? de exercício da profissão estabelecidos, em particular no que
toca à relação entre cliente e arquitecto, em que este é visto
como mero prestador de serviços. De facto, a maior parte dos
exemplos apresentados não resultaram de uma encomenda
portugueses, comentaria mais tarde (em conversa informal com o autor deste texto) a
directa ou de um qualquer concurso público, com programa e
dificuldade que sentiu na tentativa de compreender a relação entre o discurso, marcadamente
orçamento previamente determinados. Os meios de iniciar a
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

político, dos arquitectos do Porto, e o desenho do qual tal discurso era supostamente suporte.
acção multiplicam-se: workshops, festivais, convites de associações
45 ALVES COSTA, Alexandre, Conferência inserida no ciclo Prática[s] de Arquitectura:
Projecto, Investigação, Escrita. FAUP, 31 de Maio de 2012.
46 Idem, ibid. 50 “Who Lives Next Door: Call for Papers”. Em linha <http://www.issuu.com/
47 Despacho ministerial conjunto do Ministério da Administração Interna e do revista.dedalo/docs/briefing_final_cor>.

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Ministério da Habitação, Urbanismo e Construção, assinado a 27 de Outubro de 1976 51 O workshop teve por objectivo a procura de propostas para uma intervenção no
e publicado em Suplemento do Diário da República I Série, nº253 de 28 de Outubro espaço público de uma área deprimida da freguesia de Campanhã, no Concelho do
de 1976. O Despacho transfere para as câmaras municipais a direcção das acções do Porto, a realizar em Outubro de 2013, visando testar na prática os princípios que estão
SAAL, o que, na prática, correspondeu à extinção do processo. na base do lançamento da Dédalo #10.
48 ALVES COSTA, Alexandre, “Intervenção Participada na Cidade: A experiência do 52 Estiveram presentes, como tutores do workshop e participantes no ciclo de conferências e
Porto” in Alexandre Alves Costa: Candidatura ao prémio Jean Tschumi UIA 2005(ed. MILHEIRO, debates, representantes dos colectivos Ateliermob, Collectif Etc, Cascoland, EXYZT, Failed
Ana Vaz; AFONSO, João). Lisboa: Ordem dos Arquitectos/Caleidoscópio, 2005, p. 29. Architecture, Like Architects, Makerlab, Map-It, Os Espacialistas, Studio Weave, Todo por
49 ALVES COSTA, Alexandre,“Os modernos são em geral superiores aos antigos” in Textos la Praxis e projecto WOOL, e ainda Bernardo Amaral, Gabriela Vaz Pinheiro, Inês Moreira,
Datados. Coimbra: Edições do Departamento de Arquitectura da FCTUC, 2007; p. 54. Marco Mendes, Nuno Travasso, Pedro Bismarck e Patrícia Azevedo.

56 57
várias para integrar acções colectivas ou, em grande parte dos produzir efeito, de operar transformação. Agente é também aquele
casos, intervenções desencadeadas por iniciativa dos próprios que age em nome de outrem ou de algo.
autores. E esta maior independência em relação aos mecanismos Aplicando o conceito ao campo da arquitectura, Nishat Awan,
tradicionais da encomenda parece dotar os arquitectos de uma Tatjana Schneider e Jeremy Till clarificam que, neste âmbito, o
maior liberdade e intencionalidade na escolha das acções em que agente actua “(…)com e em nome de outros: não no sentido de
se pretendem envolver. uma simples reacção aos interesses de curto prazo de clientes e
Nesta linha, a acção dos arquitectos amplia-se, envolvendo promotores guiados pelo mercado, mas no sentido de responder
também a sua participação na definição do programa e na aos anseios e necessidades de longo prazo de uma multiplicidade de
procura dos meios de financiamento e realização, num processo outros, aqueles que constroem, habitam, ocupam e experienciam a
criativo que tende a envolver diferentes actores. Torna-se claro arquitectura e o espaço social.”53
o abandono da ideia do criador individual. As práticas são, em Para os autores, esta ideia de agência obriga à superação da oposição
geral, colectivas e, em grande parte das vezes, de carácter inter ou entre a acção individual e o sistema, que tem dominado o discurso
transdisciplinar, sendo a autoria e a responsabilidade partilhadas académico. Nesta óptica, a produção e transformação do espaço não
pelos vários membros de um grupo no qual se procura igualmente podem ser entendidas como resultado da acção de um indivíduo único
envolver, desde o início, aqueles a quem se destina a acção: os enquanto génio criador isolado de um contexto específico; tal como
habitantes ou usufrutuários do espaço alvo de intervenção. Os não podem ser consideradas como consequência inevitável de um
arquitectos surgem, assim como co-criadores e, sobretudo, como sistema social, económico e político que domina e determina o rumo
mediadores ou activadores de um processo colectivo do qual eles dos acontecimentos independentemente das acções e decisões de
próprios são parte integrante. cada indivíduo, o qual seria, assim, desresponsabilizado. Ao contrário,
Estas práticas questionam igualmente o papel central e quase exclusivo reconhece-se a capacidade da acção individual para actuar de modo
que o edifício – enquanto objecto, ou simplesmente enquanto imagem – transformador sobre o sistema, ainda que de forma muito parcial; ao
parece ter assumido no discurso ou nas práticas correntes. Não se trata mesmo tempo que se insiste que tal acção será tanto mais efectiva
aqui de abandonar as ferramentas próprias da disciplina ou o foco na quanto mais tomar em conta todos os actores, dinâmicas, limites e
leitura, desenho e intervenção sobre o espaço. Trata-se, sim, de dirigir a condicionantes impostos pelo sistema; quanto mais partir de um
atenção, não tanto para o resultado material da acção, mas sobretudo para conhecimento fundo destas estruturas e agir a partir delas, dentro delas.
os efeitos por ela produzidos. Neste sentido, ganha especial interesse o Parece assim tornar-se pouco operativa a divisão entre, por um lado,
trabalho sobre todo o processo, do qual a intervenção física resultante uma prática entendida como mera prestação de serviços que aceita e
do projecto de arquitectura é apenas um momento pontual. se integra num sistema que considera não ser capaz de alterar e, por
Mas interessa aqui sobretudo sublinhar uma ideia comum à maior outro lado, uma participação cívica, de longo curso e desenvolvida
parte das práticas relatadas: o desejo e empenho em integrar uma nos fóruns próprios, que se empenha na mudança do dito sistema,
acção transformadora desenvolvida em nome de um colectivo ou mas que nada teria a ver com práticas de arquitectura – ou, como
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

de um conjunto de princípios e valores, normalmente associados a sintetiza Alves Costa: “forçar o poder é um dever cívico do arquitecto,
preocupações sociais ou a determinada posição política. Uma atitude fazer arquitectura de qualidade é a sua obrigação profissional.”54
que se afasta claramente da posição do arquitecto-demiurgo modernista. Inversamente, a noção de agência reclama a articulação dos dois
Por um lado porque, nos casos expostos, os arquitectos não procuraram domínios numa acção única.
ocupar uma posição exterior ou superior; procuraram, sim, integrar o Os debates que integraram o Re-Act Urban Festival – Take 1 foram espaço de

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colectivo com o qual e para o qual actuam, apoiando e participando na discussão em torno deste tema. Questionaram-se os limites disciplinares,
sua acção. Por outro lado, porque aqui se parte da certeza da frustração o papel social e político das práticas de arquitectura, as diferenças entre
e da certeza da incapacidade de promover transformações globais e agir enquanto cidadão e agir enquanto arquitecto. Tiago Mota Saraiva
profundas. Face à impossibilidade dos grandes gestos estratégicos, a
acção é de carácter táctico. Uma luta de guerrilha que procura pequenas 53 AWAN, Nishat; SCHNEIDER, Tatjana; TILL, Jeremy, Spatial Agency: Other Ways of
vitórias numa guerra impossível de vencer. Doing Architecture. London/New York: Routledge, 2011, p. 32.
O termo agência tem sido usado como descritor desta atitude. 54 ALVES COSTA, Alexandre, “Os modernos são em geral superiores aos antigos” in
Agente é aquele que actua ou tem a capacidade de actuar, de Textos Datados. Coimbra: Edições do Departamento de Arquitectura da FCTUC, 2007, p. 54.

58 59
respondeu, invertendo a ordem dos factores: Somos, antes de mais, garantir a qualidade e a (suposta) neutralidade técnica em que
cidadãos e actuamos participando na construção da sociedade de que assenta o reconhecimento da autoridade profissional – em busca
somos parte, de acordo com os nossos princípios e valores. E fazemo-lo de uma acção mais consentânea com o actual contexto de crise e
com as ferramentas de que dispomos e que envolvem, necessariamente, capaz de propor alternativas ao projecto neoliberal que dominou o
a formação académica, domínio do saber disciplinar e experiência processo de urbanização ao longo das últimas décadas.
profissional que possuímos – no nosso caso, no campo da arquitectura. É possível que a abertura proposta pelas novas práticas de arquitectura
Este deslocamento – da disciplina para actores-na-sociedade – conduz à que agora se ensaiam – e que o Re-Act Urban Festival – Take 1 procurou
abertura de novos campos de actuação de limites e consequências apresentar e discutir – tal como os múltiplos caminhos por explorar
incertos e pouco claros. De facto, aceitar a possibilidade, a capacidade e a que apontam, possam vir a contribuir para dar um novo sentido
relevância da acção (e da decisão) do indivíduo, implica necessariamente ao exercício da profissão, assim como para expandir e reforçar o
aceitar a existência de possibilidades de escolha e, por isso, aceitar próprio saber disciplinar.
também a existência de alternativas face aos modos de actuar Talvez, mesmo tendo presente a franca incerteza relativa às
estabelecidos e comummente aceites. Ainda segundo Awan, Schneider consequências de tal abertura e a memória das frustrações resultantes
e Till, essa aceitação põe em causa a própria autoridade profissional, dos sonhos passados, valha a pena explorar esses caminhos,
que assenta no reconhecimento público do domínio que o técnico tem cravados de dúvidas, tentativas e erros, em busca de novos sentidos.
de um determinado modo de fazer – um domínio e um modo, aliás, Sim, talvez valha a pena, mesmo sabendo que, a cada curva, estará à
determinados e regulados pela própria organização que representa espreita o real perigo da dissolução do dito saber arquitectónico.
e tutela a profissão. Admitir a possibilidade de diferentes modos de fazer Afinal, e parafraseando Alexandre Alves Costa, mais vale perdê-lo do
torna o saber disciplinar discutível e, por isso, aberto à negociação com que não tê-lo56.
outros actores. Por outro lado, a participação em decisões e acções em
domínios que se encontram fora do seu estrito campo disciplinar, leva “a cera derrete-se. Bem lá agita o rapaz os braços nus,
os arquitectos a envolverem-se em práticas nas quais não são técnicos mas, sem asas para bater, não logra apanhar ar algum.
especializados e em relação às quais a sua opinião será tão válida como a E a boca que gritava o nome do pai é acolhida pelas águas
de outros intervenientes. De uma e de outra forma, a decisão sobre os azul-esverdeadas, que dele obtiveram o seu nome.”57
modos de intervir em cada caso nasce, então, da discussão colectiva
em que cada um contribui com o seu saber e a sua experiência. Agradecimentos
E é esta abertura que é polémica. Num processo que se faz
“valorizando as competências próprias de cada indivíduo, e não um A toda a equipa da Dédalo pela oportunidade e pelo espaço de
eventual padrão corporativo da profissão […] o difícil é preservar nessas discussão e partilha que conseguiram criar.
estratégias de acção alguns valores clássicos da arquitectura” 55 o que, para Ao Álvaro Domingues, Ana Fernandes, Pedro Bismack, Daniel Casas
André Tavares e Diogo Seixas Lopes, acarreta, como vimos, o risco Valle, Manuel Mendes, Mariana Carvalho e Teresa Calix, pela leitura
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

de dissolução do próprio saber arquitectónico e, consequentemente, da atenta e discussão constantes e, muito em especial, à Marta Martins
autonomia da profissão. pela crítica cuidada, pormenorizada e entusiasta.
No entanto, se aceitarmos que a disciplina se encontra actualmente A investigação em que se enquadra o presente artigo conta com o
num impasse, enclausurada nos seus auto-impostos limites que – apoio da Fundação para a Ciência e Tecnologia, através de Bolsa
não sem pesada inquietação e amargo sentimento de impotência – Individual de Doutoramento.

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afastam os arquitectos de, no exercício do seu ofício, participarem
directa e conscientemente no processo de transformação política e
56 A frase original – “mais vale perdê-la do que não tê-la” refere-se à escola e reage aos
social, aceitamos também a necessidade de procurar novos modos
riscos decorrentes da decisão de um envolvimento directo e empenhado dos alunos e do
de actuação. Procurar, portanto, novas formas de intervir, que
corpo docente no processo SAAL que poderia pôr em causa o projecto educativo. Como
quebrem ou ampliem os actuais limites disciplinares – que visam
sabido, a escola não se perdeu: cresceu, reforçou-se, ganhou novo sentido, identidade e
reconhecimento. Cf. ALVES COSTA, Alexandre (2012) – Conferência inserida no ciclo
55 TAVARES, André; SEIXAS LOPES, Diogo, “Combate e Táctica” in Jornal Prática[s] de Arquitectura: Projecto, Investigação, Escrita. FAUP, 31 de Maio de 2012.
Arquitectos n.º 247, Maio-Agosto 2013, p. 85. 57 OVÍDIO, Metamorfoses; Livro VIII: 227-230. Lisboa: Livros Cotovia, 2010, p. 202.

60 61
FONTES CITADAS JENCKS, Charles, “La mort de l’Architecture moderne” in Le Langage de
L’Architecture Post-Moderne. Paris, Denoël, 1984, pp. 9-38.
ÁBALOS, Iñaki, “A bigger splash: la casa del pragmatismo” in La Buena Vida: LAWSON, Nigel, The view from nº11: Memoirs of a tory radical. Londres: Bantam Press, 1992.
Visita guiada a las casas de la modernidad. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2001, pp. 165-195. Lotus International nº10, Fevereiro 1975.
ALVES COSTA, Alexandre, “Intervenção Participada na Cidade: A MATEUS, Augusto, coord., 25 Anos de Portugal Europeu: A economia, a
experiência do Porto” in Alexandre Alves Costa: Candidatura ao prémio Jean Tschumi, UIA sociedade e os fundos estruturais. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2013.
2005 (ed.MILHEIRO, Ana Vaz; AFONSO, João.)Lisboa: Ordem dos Arquitectos/ NUNES, Ana Bela, The International Monetary Fund’s stand-by arrangements with
Caleidoscópio, 2005, p. 29. Portugal: An ex-ante application of the Washington Consensus? Lisboa: GHES-ISEG, 2011.
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Arquitectura Resgatada | Nuno Travasso


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62 63
O hiato de tempo decorrido permitiria acrescer camadas aos Da “prática”: a motivação nos constrangimentos
conteúdos que haviam sido preparados anos antes, aumentando
a sua espessura sem, no entanto, lhes conferir maior pertinência.
Optou-se por manter os conteúdos produzidos, aceitando a janela
temporal em que a reflexão escrita nos permite entrar, de modo
livre e anacrónico (como os elementos que ilustram o texto), no
processo de evolução de dois projetos imbricadamente ‘amarrados’
ao seu contexto.
Joana Restivo
Filipe Moreira da Silva

Dois projetos permitem-nos descrever alguns dos constrangimentos


que surgem recorrentemente na prática de arquitetura. Dois projetos,
duas realidades em quase tudo distintas (quase opostas), no entanto
com alguns aspetos comuns. Um dono de obra “institucional” e
outro que se envolveu profundamente na construção do projeto.
Um contexto urbano de extrema densidade opõe-se a um aparente
terreno “aberto” à experimentação, que se veio a demonstrar
altamente condicionado. Uma situação de colmatação (articulação
com relações existentes) versus uma situação de criação de uma nova
regra (definidora de relações futuras). Ambos os projetos teriam
que ser desenvolvidos com contenção de custos, através da máxima
rentabilização do espaço construído e da escolha criteriosa das
soluções construtivas. 01 Imagem virtual: Estudio GOMA,
O projeto para a Cooperativa de Habitação SACHE resulta de um 2006.

concurso de ideias para a reabilitação de alguns prédios no centro

Da “prática”: a motivação nos constrangimentos | Joana Restivo e Filipe Moreira da Silva


histórico do Porto. O prédio para o qual concorremos – dois lotes
exíguos deixados vagos por demolição de preexistências – destacava-se
dos outros a concurso por poder vir a oferecer melhores condições
de habitabilidade. Após a fase de concurso, com a aquisição de um
prédio vizinho, a cooperativa procurou incrementar valor ao projeto
em curso, nomeadamente através do aumento das áreas das habitações
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

e de aparcamento/arrumação. Entre os primeiros lotes vagos e o novo


edifício a reabilitar veio-se a descobrir uma viela que, aparentemente,
oferecia serventia ao interior do quarteirão. A sua imprescindível
ocupação pelo projeto a desenvolver tornou-se possível após um
redobrado esforço de pesquisa de indícios sobre a sua propriedade
e utilização originais, associado a uma proposta de compromisso
perante a entidade licenciadora: manteve-se a serventia, alterando-se as
características do acesso.
A conceção de um pátio (ou saguão) no interior do quarteirão, 02 Maqueta (projeto de execução),
única área descoberta do projeto, permitiu resolver melhor as 2010.

relações com uma envolvente frágil e difícil, assim como organizar


as tipologias de forma racional, possibilitando tanto a iluminação
dos espaços interiores como a ventilação transversal das habitações

64 65
e áreas comuns. A complexa geometria da envolvente conduziu à No conjunto de constrangimentos que se apresentavam, uma
imposição de regras claras para o desenvolvimento do projeto, que improvável regra (de um regulamento desadequado, relativo a
procurou tirar partido das diferentes cotas e alturas de pé-direito para taxas e compensações urbanísticas) vem limitar ainda mais a
articular e hierarquizar os espaços interiores. Os volumes recuados edificabilidade, tendo-se demonstrado compatível com a forma
na cobertura (exigíveis por razões económicas inerentes à operação) arquitetónica desenvolvida: a conceção de uma volumetria compacta
aproximaram a área bruta do seu limite expectável, tornando possível com cobertura de duas águas (piso superior assotado) permitiu que
uma sensação de desafogo numa tipologia de exceção. o alçado lateral respeitasse os três metros de altura máxima em
Algumas das disposições regulamentares não foram cumpridas relação ao terreno vizinho.
integralmente, propondo-se sempre soluções de compromisso Da análise do contexto surgiu a ideia de um volume significante da
enquadráveis nos regimes de exceção previstos na legislação. A aceitação ideia de “casa” (cobertura de duas águas, alçado com porta e janela),
por parte das entidades licenciadoras foi conseguida através do diálogo. revestido com um material característico dos pavilhões industriais,
a chapa metálica. Neste volume foram subtraídos os negativos que
tornaram possível a organização interna da tipologia, sem abertura
de vãos de compartimentos de habitação nos alçados laterais, uma
vez que as distâncias mínimas regulamentares não o permitiam. Um
pátio intermédio propõe um jogo de relações entre os diferentes
compartimentos e uma área exterior reservada, ampliando os
espaços interiores e possibilitando o necessário conforto e
ventilação dos mesmos. A “absorção” de áreas de circulação em 05 Esquisso, 2009.
alguns dos compartimentos permitiu maior fluidez e compactação
da tipologia, que se ia gerando por metamorfose.

04 Fotografia de obra, 2011.

Da “prática”: a motivação nos constrangimentos | Joana Restivo e Filipe Moreira da Silva


O projeto de uma moradia em Serzedo, Vila Nova de Gaia, surge
num contexto muito particular: um lote de 11 por 150 metros onde o
cliente pretendia concretizar o sonho de uma casa com terreno, num
quarteirão densamente arborizado, em frente a uma área industrial em
desenvolvimento. De acordo com o PDM, o lote inseria-se em “área
de transição”, na qual as edificações deveriam ser isoladas (de quatro
frentes), ocupando o interior dos lotes, com cércea até dois pisos.
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

O alinhamento dominante estava definido, sendo o afastamento


previsto das edificações à rua de apenas cinco metros.
06 e 07 Imagens virtuais: OKDRAW, 2017.
O loteamento não se demonstrava harmonioso com as regras
definidas para a área urbana. Seria preciso encontrar situações de Os fortes constrangimentos que marcaram estes dois projetos, que
compromisso para viabilizar um projeto consistente. A proposta de se procuraram descrever em parte, tornaram-se incentivos ao seu
implantação de um corpo anexo, a garagem, permitiu contornar a desenvolvimento. O prazer da livre criação sem constrangimentos
definição do alinhamento dominante demasiado próximo à rua. significativos pode ser superado pela motivação que advém do
Dessa forma, protegeu-se a moradia da via pública, deslocando-a exercício mais comum da arquitetura: o esforço de conjugação, quase
para uma zona do terreno com uma pendente mais adequada à sua sempre extenuante, de variantes como o programa (funcional), a
implantação. Cumprindo de um dos lados a distância mínima legal ao forma (arquitetónica), as preexistências (o local), o gosto (cultura e/ou
limite do lote, a construção teria que ser desenvolvida no seu limite conhecimento), as possibilidades tecnológicas (de construção), o custo
03 Planta piso térreo, mínimo de largura (estendendo-se em comprimento), de forma a (viabilidade económica), ou os regulamentos vigentes (legislação), na
2009. libertar o máximo de espaço possível no lado oposto. procura do que seja o projeto para aquele lugar.
66 67
Siete pilares, parámetros, palabras.

Federico Soriano

Durante estos últimos años nos ha acompañado fielmente una


obsesión traducida en unas palabras. Bueno, quizás han sido muchas
las obsesiones que me han rodeado, pero en este texto sólo voy a
referirme a una ligada a unos vocablos muy queridos. Se trata de una
reflexión surgida a raíz de una noticia leída en las páginas de un diario,
en su sección titulada Futuro1, allá por el año 2002. Siempre hemos
seguido esta sección ya que en ella han ido apareciendo informaciones
y reflexiones verdaderamente fascinantes y sofisticadas. En esta
noticia en concreto se narraba el encargo que la revista Science le
había hecho al biólogo de la Universidad de Berkeley, California,
Daniel E. Koshland, para que definiera el concepto o el hecho de
la vida. Koshland elabora una definición precisa2 pero, añadía, más
importante sería definir una serie de parámetros, de pilares según su
lenguaje, sobre los cuales debe sustentarse las condiciones para que
podamos decir que eso es vida. Esas palabras, y es lo que realmente
me atrajo, eran conceptos abstractos, perfectamente aplicables a
cualquier campo. Mi obsesión surgió cuando comencé a leer estos
parámetros en nuestra arquitectura, o en la arquitectura que me
interesaba y descubría que podría existir una teoría del proyecto
detrás de ese conjunto de palabras. Enumero las siete características,
o siete pilares, con las cuales la vida siempre se produce: programa,
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

improvisación, límites, energía, regeneración, adaptabilidad y


seclusión. Son bastante seductoras como veis. Cada una de ellas, con

Siete pilares, parámetros, palabras. | Federico Soriano


sólo oírla, genera reflexiones abiertas, remembranzas, comenzamos
a manipularlas; sobre lo que es un programa, sobre lo que significa
improvisar o la improvisación; cuales son los límites, la energía de
un proyecto, regeneración, adaptabilidad, así hasta la seclusión,
qué intrigante palabra, ¿no?. Estas reflexiones son las que quiero

1 El País, Futuro, 3 abril 2002. http://elpais.com/diario/2002/04/03/


futuro/1017784801_850215.html
2 Un organismo vivo es una entidad organizada que puede llegar a cao reacciones
metabólicas, defenderse de los daños, responder a los estímulos y tiene una capacidad
de ser al menos socio en la reproducción.

68 69
transcribir en este texto y que en muchas conferencias me ha servido El programa se construye. Creo que es interesante esta situación.
de hilo conductor crítico para presentar de manera conceptual Pensar que la arquitectura en vez de ser una lista de programas – un
nuestros proyectos, concursos u obras. leit motive bastante común hoy en día –, es la definición del programa
que organiza todo el conjunto. Que contiene la estructura, la forma,
El programa. Parece que la arquitectura se basa en los programas. el entorno, la posición en el lugar. El plan preconcebido, que
Que es básico que nosotros tengamos programas antes incluso de describe no solamente su organización, sino la interacción entre
proyectar. Hasta en la vivienda hablamos de múltiples programas. ellos, y que ese programa es el que permanece invariable aunque se
Comenzamos un concurso y lo primero que analizamos y modifiquen las condiciones concretas de los programas que existen.
manipulamos es un programa. Parece que somos manipuladores,
o inventores de los programas. Pero vamos a reflexionar un poco El segundo punto: improvisación. También parece, en una primera
más sobre lo que significa un programa. La definición que Daniel lectura, fácil de leer en clave arquitectónica. La improvisación
Koshland hace sobre el programa, el primer pilar de la vida, es muy es común. Soy de las personas que piensan que cuanto menos
precisa y no exactamente coincidente con esto que acabo de decir. dibujemos mejores resultados obtendremos. Cuanto más abstracto,
Dice: “Se trata de un plan organizado, que describe los ingredientes mejor. Lo que nos lleva a acabar improvisándolo todo, partiendo de
del sistema vivo y de la interacción de ellos a lo largo del tiempo”.3 la primera decisión que se nos ocurra. Pero si volvemos a leer lo que
De pronto, nos encontramos ante una situación distinta. Pasamos significa improvisación, según el biólogo Koshland, veremos que es
de unos programas que tenemos que gestionar, una escuela de algo más sutil. Nos habla de que todo ser vivo forma parte de un
música, un colegio, un auditorio, a un programa que es un plan todo mayor sobre el cual no tiene control. La arquitectura forma
organizado. No es tan importante la resolución de cada una de esas parte, o el objeto que estamos proyectando, de un todo mayor sobre
múltiples funciones a las que deberemos dar forma, cuanto el plan el que no tiene control. No ya de la ciudad o del contexto en que se
organizado, es decir la ley que controla todas esas funciones. Todos incluya. Está fuera de control de nosotros mismos. Las condiciones
los ingredientes, todos los programas individualizados, se organizan que han determinado o propuesto su plan pueden ser modificadas
en un solo sistema. Un sistema único. Un programa pasa a ser una sin que tengamos influencia ni conocimiento del posible cambio. La
situación mucho más ambigua. Por ejemplo, cuando trabajamos arquitectura tiene que tener algún medio de adaptarse, es decir, de
en el Palacio Euskalduna el hecho del proyecto se produjo cuando modificar el plan. Es una situación bastante bonita; hemos llegado
aquella complejidad de usos y metrajes de superficies necesarias que a la conclusión de que toda la arquitectura debería tener un plan que
el concurso obligaba a cumplir, fueron sustituidos por un programa organizara todo el edificio, – que pudiésemos ser capaces de definir
que era un astillero. Una forma en construcción. En ese momento que un edificio es flotar o que es una gruta, que son los catorce ocho
el edificio adquirió presencia y los múltiples programas y funciones mil o que es un astillero, que es invisibilidad, o granulometría –, pero
se acogieron a un plan que los ordenaba jerárquicamente frente a un al mismo tiempo tenemos que ser capaces de permitir, de obligar a
concepto abstracto. Ahora estamos construyendo un proyecto cuyo cambiar de plan si las condiciones del entorno son distintas, porque
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

programa es una grieta. Se trata de un museo paleontológico, una si no el proyecto muere. Y en arquitectura esto pasa. Pasa con
sucesión didáctica de salas de acumulación de objetos. Pero lo que frecuencia. Lo hemos visto antes con el ejemplo del astillero que se

Siete pilares, parámetros, palabras. | Federico Soriano


traba el conjunto es la construcción de una grieta, una remembranza convierte en un edificio de congresos, o un barco que se convierte en
espacial de la gruta de donde se van extrayendo las mejores piezas un auditorio. Pero hemos tenido proyectos donde ha sido más claro
arqueológicas que el museo va a disponer. El museo se encuentra en esta mutación de plan. Unas chimeneas que se convierten en torres
los accesos a la Sima de las Palomas, el lugar arqueológico. de viviendas. Unas nubes o neblinas que se quedan solidificadas
En otros casos hemos usado programas que eran granulometría, a mitad de altura en las montañas. Un aparcamiento que se eleva
invisibilidad, flotar,…. o un último caso límite cuyo programa se y convierte en un techo. No es sólo que la arquitectura tenga esa
podría titular los “catorce ocho mil”. ¡Qué programa de arquitectura condición ya de por sí. Una iglesia abandonada que se convierte
más bonito! En lugar de un jardín en Teruel, el programa son los en un salón de actos. Lo hemos visto a lo largo de la historia. Los
catorce ocho mil. edificios se reutilizan. No, no.., son también los elementos de la
arquitectura que cambian; ese aparcamiento que es una cubierta.
En lugar de estar abajo, está arriba. Los coches son las tejas de un 01 Improvisación.
3 El País, ibidem.

70 71
recinto ferial. El último programa que nosotros hemos improvisado con menos condiciones de forma, es el que tiene más posibilidades
ha sido unas chimeneas de evacuación de vapor de agua de un district de adaptación. No es cierto. No necesariamente el espacio más
heating que se transformaron en un espacio público. La máxima vacío, es el que tiene más condiciones. Ni el espacio más adaptado
transformación conseguida; la desmaterialización de unos objetos es el que tiene más condiciones de adaptabilidad. Un guante de
fuertes y visibles, tenían una altura de 42 metros, en unas telas boxeo está súper adaptado a su función, pero no está adaptado a
trenzadas de fibra óptica que cubrían un lugar convirtiéndolo en otras funciones, encender una cerilla, por ejemplo.
plaza y controlando térmicamente ese espacio limitado. Hay que
improvisar, en cualquier momento, continuamente. La adaptabilidad también puede llegar a los elementos que definen
el proyecto. La arquitectura se produce a través de esos dispositivos.
02 Improvisación.
La adaptabilidad es el tercer parámetro, o pilar, que establece Por ejemplo, una construcción que es solamente la definición de
Koshland. Parece que es una característica semejante o sinónima de una fachada. Aquí lo vemos. Y la de la estructura que tiene que 05 Adaptabilidad.
la anterior. No es así, es bien distinta. En la improvisación hemos soportar. Este proyecto es la adaptación entre un aparcamiento
dicho que cambia el programa, que muta en otro nuevo programa. que ya está construido, con unas dimensiones determinadas y para
El programa era chimenea y ahora es otra cosa, espacio público, un usuario específico (el coche) y el edificio que se debe construir,
sombra, no sé... El programa era aparcamiento y ahora, de repente, para otro usuario (un funcionario) y otras formas y dimensiones.
es cubierta. Cambia la esencia del programa. Adaptabilidad, por el Es una condición de adaptación, entre lo que tiene que ser y lo que
contrario, significa que el edificio en un determinado momento es nos permite lo existente. Un edificio también son las condiciones
capaz de adaptarse, de generar diferentes respuestas a diferentes y de adaptabilidad de sus propios soportes. Lo interesante es que el
nuevos comportamientos. programa es en este caso adaptabilidad, y que lo único que da forma
El espacio arquitectónico que más debe estar asociado a esta palabra es la cuarta categoría de Koshland: límites.
o parámetro, es sin lugar a dudas, la vivienda. El habitar humano es
03 Adaptabilidad. una condición asociada a la capacidad que tenemos de adaptarnos a Límites es quizás la condición cuya relación con la arquitectura
un espacio frente al resto de las mayorías de las especies que deben parece más clara. Todo el mundo piensa que los arquitectos sólo
tener un espacio adaptado a ellos que se convierte en su hábitat hacemos fachadas. Nosotros mismos hablamos constantemente de
natural. El hombre habita en todo el planeta, incluso fuera de él, pieles. Una receta del decálogo del arquitecto actual, o del de siempre, 06 Adaptabilidad.
porque es capaz de construir su hábitat, de generar una arquitectura. está en hacer pieles en lugar de fachadas. O en pensar los límites
Hacer arquitectura es generar una condición artificial de adaptación. como en la elección de un material. Cuanto más extravagantemente
En esta línea de trabajo hemos producido un prototipo de una sea el material, el resultado tendrá mayores logros y aceptaciones.
vivienda cuya única condición es la de permitir adaptarse mediante Pero, realmente límites no se refiere a eso. Volvamos otra vez a las
la posibilidad de admitir cualquier mobiliario en cualquier posición. definiciones de nuestra página del periódico El País en su sección
Para el arquitecto una vivienda es un aglomerado de espacios de Futuro: Límites son compartimientos. Todos los organismos
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

cerrados, cuartos, con unas medidas que satisfacen el uso previsto vivos están confinados, aislados, mediante membranas y otras
en ellas. Y además cumple un mínimo superficial que la ley o la particiones que permiten que los ingredientes de ese sistema no

Siete pilares, parámetros, palabras. | Federico Soriano


normativa le obliga para ese tipo de espacio cualificado. se mezclen y se vean perjudicados con otros especímenes. Por
04 Adaptabilidad. tanto, no es tan importante cómo están hechos o con qué, sino el
Es evidente que este es un espacio de adaptabilidad, donde se hecho en sí de delimitar. El límite no es la fachada, no es el borde,
07 Adaptabilidad.
generan tanto arriba como abajo, infinitos programas distintos, sino la delimitación o separación. Lo que aísla o no. Nosotros lo
coincidentes, superpuestos, simultáneos o consecutivos, según la explicamos usualmente este parámetro con el proyecto del edificio
disposición que nosotros establezcamos. El espacio que nosotros administrativo para el Gobierno Vasco de Plaza Bizkaia en Bilbao.
producimos aunque tiene una forma muy rígida, un forjado con una El proyecto no preveía ningún programa específico, espacio libre
forma muy precisa, también posee las condiciones de adaptabilidad de trabajo para unas empresas sin cara. Por ello no debería ser
que le permiten adoptar cualquier configuración de mobiliario sin nada. Sólo ser especulativo, en todos los sentidos de la palabra.
cambiar de programa. Y no deja de ser una vivienda. Debería ser capaz de acoger cualquier empresa, cualquier tamaño
Parecería que el espacio más minimal, o el edificio más abstracto, y reaccionar bien. Su forma no tiene carácter y la estructura del

72 73
conjunto viene dada por la condición de adaptabilidad que hemos acción posible. Es una zona de delimitación de la alineación. La piel
comentado antes. El aparcamiento subterráneo, y la biblioteca del edificio orbita en esta zona de incertidumbre, imposible de fijar
prevista que luego no se construyó pero que determinó un refuerzo en una sola línea. Luego se añadirán los tratamientos que amplían
de cimentación y estructura, marcan unas condiciones iniciales. esta aproximación sostenible; el uso de serigrafías que aumentan el
Nos estamos poniendo encima de esa superficie, con todo respeto, control en estas variaciones solares, etc...
asumiendo todos los datos históricos. El proyecto, que no tiene Los límites no son solamente una determinación de lo que separa
nada y cuya forma ya viene predefinida queda reducido a pensar exterior e interior. Son también los compartimientos del interior.
en el límite. ¿Qué límite va a tener? ¿Quién le da forma, si no hay Podemos llegar a definir una forma de manera que la ambigüedad
datos? ¿Y si no queremos hablar de fachada? En nuestro caso fue entre interior y exterior o interior e interior sea la misma; una simple
optar por una condición y un programa. La definición del límite es línea que se mueve. Todos los límites usan la misma piel, por lo que
08 Limites.
la definición de la forma óptima. La que su propia conformación le el espacio es el mismo; el de dentro y el de fuera. Los programas
protege y aísla del sol y de las condiciones ambientales exteriores. se colocan en cualquier posición. Este es el resultado de un espacio
Le protege del sol aún cuando siendo absolutamente transparente, cultural, lo vemos en esta imagen. Todo está definido por un mismo
porque un edificio de oficinas debe de ser simbólicamente de muro; un muro de piedra, que también se levanta, que cierra los
vidrio, su propia forma le da sombra. Le resuelve los problemas diferentes ámbitos. Siempre el mismo muro, sin tener que llegar al
de soleamiento. Por ejemplo, en invierno, cuando se tiene una contraste entre exterior e interior.
inclinación de los rayos solares de veintidós grados, la propia forma
escalonada de la sección, que nosotros disponemos, permite que el El quinto pilar que interviene en la definición de la vida es la energía.
sol entre hasta el fondo de la planta. Y aprovechemos que en verano, La cuestión de la energía se ha convertido en un asunto primordial
cuando el sol está más vertical, el escalonamiento tape y de sombra en nuestros días. Construir es una actividad cara, poco sostenible,
al interior. Estudiando la forma y las orientaciones, comenzamos que requiere de un consumo energético alto. Si no queremos que
a colocar diferentes y superpuestos límites. Algunos se quedaban desaparezca de algún modo, tenemos que dar una proyección
09 Limites.
fuera del volumen, otros parecen estar dentro de otros. Será la más equilibrada y medioambiental a nuestro trabajo. Tenemos
geometría y la elección y tratamiento del material los que optimicen que empezar a conocer datos igual que sabemos lo que resiste el
el aprovechamiento pasivo. El propio edificio hace gestión de su hormigón o a qué tensión trabaja el acero. ¿Cuántos litros de agua
forma, para que resuelva por condiciones de adaptación el acomodo cuesta construir un vidrio? ¿Cuánta energía cuesta producir un
a las diferentes estaciones del año. panel metálico? ¿Se puede reciclar este producto? Nuestros edificios
En este proyecto estamos mezclando programa, adaptación y las deben de tener un cierto comportamiento medioambiental. Bueno,
condiciones del límite. La fachada responde, por su orientación de esto puede parecer un poco moralista, pero creo que está bien que
manera diversa en cada parte. En la zona oeste cogerá una forma. estas preocupaciones nos vayan empapando de manera natural.
También la sección será distinta. Otro caso distinto ocurrirá en la Pensaremos que un edificio es también un objeto de consumo, que
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

parte este o en la norte. También la sección se invertirá. consume y necesita energía, y que debe comportarse como otro
El edificio tiene siete plantas, cada una de ellas con tres pieles, como producto normal del mercado. En varios proyectos que aquí se ven

Siete pilares, parámetros, palabras. | Federico Soriano


hemos visto, son veintiuna alineaciones distintas. De repente, la hemos utilizado los diagramas energéticos para definir el proyecto.
definición de esas veintiuna alineaciones que gestionan la forma, Pero la energía, aparte de esta visión consumista o de intercambio
10 Limites.
hace que no sea tan importante la elección del tipo de vidrio. activo con el entorno, eso lo veremos después, tiene otras
Elegiremos el más económico, no hay otro condicionante. La connotaciones también muy atractivas. La energía, según la
carpintería, también la más barata. El asunto clave no radica ahí definición científica, es la capacidad que tiene un ser vivo de generar
sino en la propia gestión del límite. Se ha puesto en crisis lo que trabajo. En arquitectura podríamos decir, si creemos que es un ser
significa una piel. Los vidrios parecen flotar. No sabemos dónde vivo y el trabajo es el espacio que generamos, que la energía es la
empiezan y dónde acaban cada piel. Esta migración del valor de capacidad para generar un espacio. Cuanta más capacidad tenga una
la apariencia a la gestión se vió más claramente cuando fuimos a arquitectura de generar espacios, con lo que eso supone de producir
pedir la licencia municipal. No había una única línea para medir la sensaciones, percepciones, significados, resolver programas, crear
alineación oficial. Por ello no se hizo. Se trabajó sobre una banda de espacio público..., más energía tendrá. Esta situación a mí me parece

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fascinante. Y la hemos sentido cuando construyes, o comienzas se ejemplarizaría con la cubierta de la ampliación del palacio Euskalduna
a levantar un proyecto. Toda esa energía oculta se visualiza. La que acabamos de finalizar. La cubierta y todo lo que la implementa
sientes. Porque esa sensación se produce en todos los momentos de otorga el orden de gestión del espacio que hay debajo.
la vida de un proyecto. En la idea que hace nacer un proyecto o en A mí, esta visión de la energía arquitectónica me parece fascinante.
el momento de su construcción. Son momentos bonitos, intensos.
La energía que mueve la arquitectura. Capaz de enfrentarnos a La sexta condición es regeneración. Todo ser vivo tiene un gasto
14 Energía.
situaciones fantásticas. Mirad, levantamos en una colocación de energético, por lo que necesita alimentarse, tomar energía del
obra una pieza de 6 metros por 25 metros, que pesaría sus 25 o entorno. En arquitectura, también ocurre una situación similar.
30 toneladas, no sé, una barbaridad. La levantaban con una grúa, Con el tiempo, los entornos físicos de los proyectos, y no digamos
para hacer una pasarela peatonal, ¡por encima de las casas!, para los medios culturales en donde se insertan, cambian bastante. Los
conducirla, colgando desde el aire, por una calle que mide no más programas envejecen, las formas se pasan,... Cualquier obra de
de 2.50 metros. Lo conducía una persona, con un mando y estaba arquitectura debe de tener cierto poder de regeneración. Ser capaz
colgada de sólo un punto, sin que se balanceara o se estrellase de volver a obtener energía de composición o de proyecto. Tiene
11 Energía.
contra las viviendas. Y, cuando estaba en lo más alto, en el punto que volver a proyectarse para que no se convierta en un espacio
más conflictivo de la calle, en ese momento, hay otra grúa que está muerto.
en el parque, al otro lado de las casas, que la recoge y se la lleva La regeneración se produce en muchas categorías o niveles. A veces
hasta su posición definitiva. Sin apoyarla en el suelo. Se la pasa una se origina con los programas, cuando se invierten o desaparecen.
a la otra en el aire, como si no pesase nada una pieza estructural A veces se provoca porque nosotros estamos generando otros
de acero. Nosotros sólo miramos. Son las dos grúas, de manera proyectos, aunque sean de distinta escala, e injertan las ideas
fascinante, las que hacen que veinticinco o treinta toneladas, o lo iniciales. En otros casos es la propia realidad la que lo reconvierte
que sea, no pesen nada y puedan flotar ingrávidas por encima de todo; un cliente que aparece de improviso, modificándolo todo, el
las casas. Claro, como pesa tan poco, somos capaces de construir presupuesto que marca unos límites fijos a partir de un determinado
una pasarela, con esa pieza de 30 metros, en vuelo y sin apoyos. momento... Son condiciones que llegan a convertirse, en cada
12 Energía. Fijaros que no se apoya aquí. Las grúas lo detectaron. Lo sintieron. fase, en momentos óptimos para regenerar las ideas que habían
No es esfuerzo. Aquí se siente la energía como capacidad de construido hasta entonces las formas.
generar el espacio. El espacio urbano durante el montaje, cuando La torre laminar en Barcelona, en la que seguimos involucrados
todo el pueblo se paralizó, todo el mundo estaba opinando, o el aún, es un ejemplo de un proceso proyectual de regeneración
espacio urbano que controla la pasarela cuando circulas por ella. La constante. Todos los pasos dados han ido reposicionando y
capacidad que tiene la arquitectura para generar espacios al hacer revitalizando el proyecto, aunque al principio, los nuevos inputs
desaparecer unos pilares o apoyos. parecieran ser contraproducentes con nuestras ideas. Arrancamos,
Solamente existen dos tipos de energía, que son la energía potencial para el concurso de ideas, de una simple maqueta, realizada con
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

y la cinética. Cualquier otra no es más que una variante de estas dos. foam y la máquina de corte de hilo caliente. El hilo estaba demasiado
Por ejemplo, la energía atómica debe transformar esas reacciones caliente. Yo mismo hice la maqueta porque no teníamos más que a

Siete pilares, parámetros, palabras. | Federico Soriano


en calentamientos de agua que se aprovechan como energía cinética una persona en el estudio y no quería hacerla. Soy rápido, se torció
que mueve unas turbinas. la línea recta y quedó de esta forma. Más o menos irregular. Parecía
En arquitectura pasa una cosa similar; sólo hay dos maneras de una lámina plegada. A partir de esta maqueta todos los pasos que
generar espacios, de manera cinética o potencial. Por la posición han ido recogiendo datos y necesidades proporcionadas por la
o el movimiento. Un edificio puede quedar proyectado por el realidad, generaban realimentaciones ideológicas, complejizando el
movimiento de las personas que se circulan en él. O por la posición proyecto. Pero, a la vez, haciéndolo más fuerte y seguro. Se ha ido
de sus elementos – muros o cerramientos. El primer caso se ensayó regenerando la idea inicial, que seguramente se podría decir que
en un colegio infantil, en el que todo el espacio estaba conectado era el concepto de esbeltez. Si no hubiese sido así y hubiésemos
por una compleja rampa continua. El lugar queda definido intentado mantener la pureza de la maqueta inicial se hubiese vuelto
cinéticamente, por la posición y por el movimiento que van a tener inviable. Al asumir nuevos datos como repensamientos, la idea que
13 Energía. los alumnos. Todos los forjados y clases están en rampa. El otro caso había detrás de la maqueta se ha mantenido aumentando su fuerza.

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La primera planta que dibujamos de la torre no era más que la Detectamos que esa doble piel de malla metálica es una gran
sección escaneada de la maqueta. No es una forma óptima porque chimenea de circulación vertical de aire. La piel metálica exterior
no tenemos parámetros para definirla con precisión. Vale por tanto puede llegar hasta 85º C de temperatura. Va a radiar aire caliente
cualquier diagrama de planta y por eso tomamos la misma que la que ascenderá por el hueco de las dos pieles generando un ‘efecto
de la maqueta tan rápidamente ejecutada. El primer momento de venturi’ en ella. Podemos aprovechar esa corriente vertical para
regeneración se produce cuando se nos plantea una revisión con ventilar de manera natural las plantas. El aire más fresco de la cara
los expertos en oficinas y apliquen sus ratios de uso. Nosotros norte, 3 a 5 grados menos, se mueve hacia el vacío succionado por
tomamos ese comentario como punto inicial de una investigación esa corriente en la cara sur de la torre. En invierno, simplemente
para conocer esos ratios y aplicarlos a esa forma. Tomamos las cerrando esta piel mediante unas compuertas, se producen unas
torres de oficinas más características y calculamos sus proporciones bolsas de aire calentado por el sol, un buffer térmico, que puede
de espacios de trabajo y de circulación. También los de servicio. ser aprovechado para calefactar el interior. Esta nueva regeneración
Después, cogimos las plantas, las cortamos por la mitad y las define la elección de una determinada piel. Construye no sólo el tipo
extendimos, apareciendo plantas esbeltas, tan alargadas como la de de fachada sino también la propia forma. Y nos dictará el tipo de
nuestro proyecto. El proyecto toma este estudio, convence a los hueco, su disposición, las proporciones, etc. Cuando ha aparecido
técnicos, y vuelve a cobrar fuerza la idea de esbeltez. una nueva condición, la hemos aprovechado para regenerar aquella
En otro momento posterior aparece un programa. Demandando idea de esbeltez. Ahora, que seguimos proyectando la torre, el
espacios grandes y espacios pequeños, y en ese ámbito de regeneración, proyecto tiene mucha más fuerza que si hubiésemos mantenido
hay una nueva recarga por condiciones cinéticas. Pensamos en una intocables los primeros conceptos.
sección que tiene que recoger un programa absolutamente diverso;
espacios que se conectarán porque hay oficinas que van a tener una Y la última condición. A mí me parece bastante potente y
planta y otras que se desarrollarán en dos o tres plantas aunque propositiva. Daniel Koshland la denomina seclusión. Es una
deberán parecer que son sólo una. Es una sección de rascacielos palabra que yo no conocía, ni existe en castellano. El biólogo
con rampas y huecos de conexión. Una y otra regeneración más. define seclusión como la privacidad en la vida social. A veces los
El programa tiene espacios públicos, privados, representativos, etc. biólogos y científicos te sorprenden. Estás tranquilamente leyendo
Ello mismo dictará el orden de los programas en altura. Luego será o escuchándolos y algo te alucina en un momento. Fijaos en todas
la estructura la que fuerce una nueva vuelta de tuerca. Acordemos las implicaciones de esta frase; privacidad de la vida social, es decir,
que la geometría que hasta ahora tenemos, está generada por un en una célula hay vida social, que no se mezclan las reacciones
hilo demasiado caliente. Ahora es cuando aparece la ley geométrica metabólicas, por lo que no es necesario separar o compartimentar
de su planta. La que viene determinada por la condición de doblar todo, que se puede privatizar sin perder su condición pública, que
un papel. Ese efecto biombo, a escala del conjunto, resuelve la las dos condiciones (lo privado y lo público) pueden convivir en el
estabilidad general de toda la estructura sin necesidad de introducir mismo entorno cerrado, ...
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

núcleos rígidos de hormigón, ni pantallas macizas en toda su altura. Nosotros proyectamos unos espacios donde se va a producir una
La estructura será únicamente esta doble piel, ondulada, doblada, vida social, ya sean públicos o privados, exteriores o interiores.

Siete pilares, parámetros, palabras. | Federico Soriano


más doce pilares en la otra cara. Esa piel es homogénea, trabaja Construimos unos espacios donde se van a producir unas
como una lámina. Es estable en el total aunque colapse una parte reacciones metabólicas. Cada vez más, estas reacciones metabólicas
de ella. Permite hacer agujeros, o que la estructura se incendie y no son específicas, sino que son coincidentes y complejas. Se
un trozo localizado ceda parcialmente. Ahora la forma sí va a estar superponen sin solución de continuidad. Creemos que a cada
determinada por las leyes de la optimización de la estructura para espacio le corresponde un programa, un uso determinado
que resuelva la estabilidad general. En otro momento posterior, específico, que hay correspondencia fija entre forma y función,
esa estructura que forma una piel doble, con una orientación entre soporte y programa. Parece evidente que entonces debemos
frontalmente sur, parece que nos lleva a una situación problemática compartimentar el espacio para que esa optimización de uso
irresoluble. Las condiciones energéticas parecen que van a la sea efectiva. Separar unos de los otros. Así no se mezclan los
contra. Pero ese proceso que retroalimenta el proyecto hace que se circuitos. Pero en una célula, en nuestro cuerpo, que es mucho
convierta en el nuevo dato que sigue lo definiendo hacia el futuro. más complejo y específico que la arquitectura, no es necesario que

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se produzca este aislamiento o separación. Las enzimas detectan a Y, así, paso a paso, hemos llegado al final de lo que iba a contar.
qué proteínas se tienen que relacionar y a cuáles no, dentro de una En la conferencia, y en el texto, hemos repasado siete parámetros
situación mucho más homogénea. a través de siete palabras tomadas de un discurso científico. Los
Creo que en el espacio podríamos llegar a pensar una situación siete parámetros definen las condiciones de la vida y también
parecida; que se van a producir muchísimos programas, y la arquitectura, por lo que me permiten afirmar, por ello, que la
que pueden coexistir esos programas en un mismo espacio arquitectura es un ser vivo.
indiferenciado sin necesidad de separarlos, o sin que exista el
peligro de que se mezclen. Pensemos en las antiguas estaciones de
ferrocarril o en los actuales aeropuertos. Los espacios del no lugar,
que parecen tener una condición degradada y deshumanizada. Es el
mismo programa que existía en la plaza pública, caracterizado por
ser un lugar de indiferenciación, donde cada programa particular
se superponía al conjunto, coexistiendo con independencia.
Hemos trabajado mucho sobre este tipo de espacio y que
se puede leer fácilmente en las plantas de los proyectos.
Lugares indiferenciados, tamaños más grandes para el estricto
funcionamiento del programa asignado lo que hace que aparezcan
situaciones no previstas, superposición de circulaciones, espacios
que tienen el mismo valor que los pasillos o que las habitaciones.
La planta no tiene un orden, sino en función de quién lo va a usar.
Se superpone un teatro público y una escuela privada. No podemos
reconocer cual es la situación más pública o más privada en ese
continuo espacial aparentemente homogéneo. Es el movimiento
de las personas, de los usuarios en el momento de vivirlo, el que le
da forma específica y puntual. En el fondo era una situación que ya
se producía en el palacio Euskalduna. Es un espacio heterogéneo y
continuo fruto de la superposición de dos edificios; un palacio de
congresos y un teatro de música y ópera. Los espacios son soporte
de unos programas. Es el uso y el movimiento de los mismos quien
establece el orden.
En ese sentido podemos hacer un recorrido por varios proyectos
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a través de sus plantas y podemos comprobar cómo una visión


espacial y un control del mismo para un germen nuevo. Las plantas

Siete pilares, parámetros, palabras. | Federico Soriano


no muestran la organización porque no hay un espacio principal y
uno secundario. No hay espacios sirvientes y espacios servidores.
El espacio está funcionando siempre con los mismos parámetros.
Nosotros lo controlamos a través de la gestión de su programa. No
desde dar forma a cada uso, sino desde los distintos movimientos
de los usuarios. No existe una jerarquía específica de los espacios,
tanto en cada fragmento como en la totalidad. Los espacios de
enlace no hacen más que añadir un grado más de libertad y por
tanto favorecer ese espacio seclusivo. No sabemos quien ordena el
espacio, quien controla la planta, El control sobre el movimiento es
la que asegura su funcionamiento óptimo a pesar de la ambigüedad.

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A versão original deste artigo foi publicada na Revista Lugar Comum Arquitectura, Feitiço e Território.
nº41, 214, pp. 145-152.
Matéria e impulso de libertação na obra baiana de
Lina Bo Bardi

Godofredo Pereira

1 | Lina Bo Bardi

A transformação do Solar do Unhão em Museu de Arte Popular


(1959) representa, na obra de Lina Bo Bardi, o encontro de dois
elementos centrais: por um lado, o interesse por arte popular que
traz já desde Itália, pelo outro, uma preocupação com a realidade
política do Brasil, e em particular do seu Nordeste. O programa
original propunha-se articular a ideia de “Civilização Brasileira”

Arquitectura, Feitiço e Território. Matéria e impulso de libertação na obra baiana de Lina Bo Bardi | Godofredo Pereira
através de um encontro cultural entre “O Índio”, “África-Bahia”
e “Europa e Península Ibérica”. Seria uma espécie de viagem à
história do país através da sua arte quotidiana. Para Lina, a palavra
“civilização” indicava “o aspecto prático da cultura, a vida do
homem em todos os instantes”, e a exposição devia tornar visível a
“procura desesperada e raivosamente positiva de homens que não
querem ser ‘demitidos’, que reclamam o seu direito à vida. Uma luta
de cada instante para não afundar no desespero, uma afirmação de
beleza conseguida com o rigor que somente a presença constante
de uma realidade pode dar. Matéria prima: o lixo”.1
A partir de Lina Bo Bardi, este texto aborda um problema central
para a arquitectura, nomeadamente, o do seu estatuto enquanto
objecto, assim como as relações que estabelece com os objectos
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

pelos quais é ocupada e habitada. Não é, contudo, a natureza


filosófica deste problema que aqui interessa, mas sim a ligação entre
o objecto e um território que lhe dá sentido. Identificando uma certa
continuidade entre objectos e territórios, explora-se aqui o modo
como o debate em torno à natureza dos objectos não se resume
a estes, mas reflecte uma constante disputa em torno a diferentes
concepções de território. Desde território entendido como espaço
sob a jurisdição do estado nação, parte de uma organização social
produtiva baseada no privilégio da propriedade privada sobre todos
os demais direitos, até ao território entendido na sua dimensão

1 Lina Bo Bardi (Ed. FERRAZ, Marcelo Carvalho) São Paulo: Instituto Lina Bo e P.M.
Bardi, Imprensa Oficial, 2008, p. 158.

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existencial, agenciamento de elementos heterogéneos que dão obra com as práticas de vida e os seus rituais. De qualquer forma,
consistência aos modos de vida. Em ambos os casos, quer por se numa fase inicial este discurso emerge ainda preso aos estudos
revelarem as condições de produção que os constituíram, quer por decorativos da casa, ganha toda outra radicalidade nos seus escritos
revelarem os afectos, hábitos ou práticas que os materializaram, sobre o Nordeste entre 1959-63. É aí, em proximidade com
os objectos funcionam como um arquivo de conflitos e debates uma “estética da fome” de Glauber Rocha, que Lina aborda as
territoriais. Ora, precisamente esta capacidade de ver nos objectos profundas relações entre emancipação social e produção artística
as lutas e circunstâncias daqueles que os produziram, marca toda a popular: “Em Pernambuco, no Triângulo Mineiro, no Ceará, no
obra de Lina, desde o seu interesse por máscaras, talismãs e ex-votos polígono da Seca, se encontrava um fermento, uma violência, uma
até ao desenho da “Cachoeira do Pai Xangô” para o centro da Bahia coisa cultural no sentido histórico verdadeiro de um País, que era
(1986), às exposições sobre a cultura do Nordeste. Estes objectos o conhecer da sua própria personalidade”.6 Recorde-se que nos
“carregados” são centrais na arquitectura de Lina, pois participam anos 60 no interior nordestino, a maioria da população vivia abaixo
de um modo de projectar que privilegia a concepção de territórios do limiar da pobreza, devido não só à escassez de recursos ditada
a que chamarei de existenciais, por tratarem, como indica Olívia de por um clima de semi-aridez, mas principalmente pela exploração
Oliveira, matérias subtis, ao mesmo tempo naturais e míticas.2 social operacionalizada pelas oligarquias agrárias. É esta violência e
Este mesmo termo, “territórios existenciais”, é também usado pelo miséria que anima o ressurgimento em 1955 das Ligas Camponesas,
filósofo/psicanalista Félix Guattari, em Lês Trois Ecologies, para se associações de camponeses em luta por uma reforma agrária, ou no
02 Imagem do cartaz Nordeste,
referir aos espaços afectivos criados por contextos e experiências cinema o surgimento de um novo movimento, a “estética da fome” Lina Bo Bardi.
de pertença. Mas a sua diversidade encontra-se em perigo de de Glauber Rocha, a partir da qual se reposiciona a importância das

Arquitectura, Feitiço e Território. Matéria e impulso de libertação na obra baiana de Lina Bo Bardi | Godofredo Pereira
desaparecimento face à homogeneização das subjectividades práticas quotidianas dessa população esquecida. E é devido a este
promovida pelo capitalismo neoliberal. Pode dizer-se que da mesma contacto com o sertão e as suas transformações político-culturais
forma que os países “desenvolvidos” são os principais poluidores que, para Lina Bo Bardi, a arte popular deixa de ser simplesmente
ambientais, são também os principais poluidores existenciais, o algo que confere profundidade e realidade à arquitectura, e se refere
que se manifesta na crescente “ossificação” de comportamentos, cada vez mais concretamente às condições brutas da existência.
imaginários e formas de “territorialização” que os caracteriza.3 E progressivamente também a arquitectura de Lina começa a
01 Imagem do texto “L’Acquario In
Casa”, Lina Bo Bardi e Carlo Pagani. Olhando para Lina através de Guattari, podemos sugerir que o participar activamente na emancipação desse território quotidiano
recurso a “objectos carregados” se insere na tentativa de capturar a e não-erudito, como forma de resistência à hegemonia cultural
expressão de diferentes modos de viver e habitar o mundo. colonial.
Claro que o seu interesse por objectos advém também de privilegiar a
questão do habitar, afinal a grande preocupação da arquitectura moderna. 2 | Feiticismo e Colonialismo
Desde cedo preocupada com os problemas do quotidiano – vejam-se
os textos escritos ainda em Itália, sobre a Disposição dos Ambientes De acordo com o antropólogo William Pietz na sua série de ensaios
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

Internos4 e sobre O aquário na Casa5 – Lina não reduz o habitar sobre The Problem of the Fetish, o termo “fetiche” tem origem nos
apenas a um problema funcional, mas entende-o enquanto prática territórios inter-culturais da África Ocidental nos séculos XXVI
existencial. Podemos ver, por exemplo, como as casas Valéria Cirell e XXVII como resultado do encontro entre mundos culturais
(1958) e Chame-Chame (1958), valorizam a expressão dos materiais radicalmente heterogéneos. Segundo Pietz, “esta situação nova
acima da pureza da forma e da organização espacial. Mas não se começou com a formação de espaços habitados interculturais
trata aqui de qualquer romantismo da expressão ou da natureza, ao longo da costa da África Ocidental (especialmente ao longo
mas de uma busca da simplicidade que se conquista na relação da da Costa da Mina) cuja função era traduzir e valorizar objectos
entre sistemas sociais radicalmente diferentes (...) estes espaços,
que existiram durante vários séculos, existiam num triângulo de
2 OLIVEIRA, Olivia de, Subtle Substances: The Architecture of Lina Bo Bardi. Barcelona:
sistemas sociais composto por feudalismo Cristão, linhagens
Gustavo Gili, 2006.
3 Cf. GUATTARI. Félix, Les trois ecologies. Paris: Galilée, 1989.
4 BARDI, Lina Bo, Sistemazione degli interni, in Domus nº. 198. Milão, Junho 1944. 6 Lina Bo Bardi (Ed. FERRAZ, Marcelo Carvalho), São Paulo: Instituto Lina Bo e
5 BARDI, Lina Bo, L’Acquario in Casa, in Lo Stile nº.10. Itália, 1941, pp. 24-25. P.M. Bardi, Imprensa Oficial, 2008, p. 153.

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Africanas e capitalismo mercante”.7 Emergindo da descrição das 3 | Territórios de Fronteira
falsas crenças do outro, o termo migra posteriormente para a Europa
com os escritos de Charles de Brosses, lentamente adquirindo o seu Digamos que Lina desenha os seus edifícios de uma forma feiticista,
uso mais familiar com as obras de Feuerbach, Marx e Freud. Mas para devido não só ao seu interesse pelas práticas populares, mas também
Pietz a relevância do termo fetiche ou mais adequadamente feitiço devido ao estatuto instável dos vários objectos com que ocupava os seus
não reside na sua capacidade de descrever mecanismos culturais edifícios, assim como pela relação pessoal que estabelecia com eles. Em
reais (a natureza de uma específica crença), mas sim na capacidade Lina vemos o redescobrir de todos estes objectos “outros”, carregados
de evidenciar a natureza de certos encontros, na medida em que de vidas e de costumes, de histórias. Neste sentido um dos debates
refere a uma história de conflitos em torno à correcta valorização que para a arquitecta se tornou central foi precisamente a questão do
(afectiva, cultural, comercial) de determinados objectos. Referindo-se folclore, contra o qual lutava pela ideia de arte popular. Para Lina, a
ao entendimento dos Europeus, Pietz dirá que “no discurso sobre arte popular e artesanato designam formas de produção directamente
feitiços, esta impressão da propensão do primitivo para personificar ligadas às condições de produção (económicas, geográficas, climáticas
objectos técnicos – ou para os considerar veículos de causalidade e culturais) e não poderiam ser entendidas como formas inferiores,
sobrenatural – é conjugada com a percepção mercantil que os não- isso sim fazia o folclore – designação reservada às “artes menores”.
-Europeus atribuem valores falsos aos objectos materiais”.8 Uma Além disso, se através do processo pedagógico colonial/capitalista os
posição semelhante é desenvolvida por Bruno Latour em The Cult of objectos são, por um lado forçados a categorias discretas do saber, e
the Factish Gods, argumentando que a declaração de feiticismo surge por outro transformados em mercadoria de formato turístico – em
sempre enquanto acusação sobre as falsas crenças do outro. Acresce ambos os casos desconectados das forças territoriais que os modelam –

Arquitectura, Feitiço e Território. Matéria e impulso de libertação na obra baiana de Lina Bo Bardi | Godofredo Pereira
que tal acusação sobre a crença dos outros servirá para fundamentar uma outra pedagogia era necessária, mais próxima de Gilberto Freyre,
uma acção “pedagógica” de correcta valorização, tornando evidente para libertar as forças que “carregam” esses mesmos objectos e
como os princípios argumentativos que subentendem designações mobilizá-las enquanto forças políticas. Assim, como afirmava Lina
de primitivismo ou superstição, substanciam também um processo “O balanço da civilização brasileira ‘popular’ é necessário, mesmo se
de apropriação de um território material. Surgindo sempre em pobre à luz da alta cultura. Este balanço não é o balanço do Folclore,
relação a empreendimentos coloniais, a história do feitiço é por isso sempre paternalistamente amparado pela cultura elevada, é o balanço
a história da constituição de culturas de fronteira, por relação com ‘visto do outro lado’, o balanço participante. É o Aleijadinho e a
o desenvolvimento de sistemas mercantes, ou do nascimento do cultura brasileira antes da Missão Francesa. É o nordestino do couro
projecto capitalista. e das latas vazias, é o habitante das ‘Vilas’, é o negro e o índio, é uma
Assim, reconhecer o “feitiço” como um local de conflito, implica massa que inventa, que traz uma contribuição indigesta, seca, dura de
que se entenda o objecto como uma questão material, que atrai na digerir.”10 Claramente aqui se vê o quanto foi importante a influência
mesma medida em que divide. E é precisamente neste ponto onde o de Antonio Gramsci e a sua defesa da importância de uma força
“feitiço” se torna político, já que o seu real poder deriva do facto de colectiva nacional-popular como prática contra-hegemónica. De facto,
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revelar uma disputa e, por conseguinte uma diferença. Além disso, para Lina a aprendizagem com a arte popular seria o elemento chave
o “feitiço” – tal como os “objectos carregados” de Lina Bo Bardi – que deveria informar o processo de industrialização e modernização
revelando diferenças, torna-se por isso mesmo um objecto de brasileiro, ou seja, uma aprendizagem desprovida de romantismo
fronteira a partir do qual, ou sobre o qual, essas diferenças serão mas entendida como oportunidade para a constituição de um novo
supostamente resolvidas (gestos iconoclastas, vandalismo, etc.).9 território, construído a partir da cultura existente. Assim, longe de se
reduzir a um discurso da pequena escala, Lina aproveitava as energias
de um Brasil em construção que na altura re-imaginava os limites do
possível. Neste sentido, a afirmação de Lina que Brasília era “um belo
começo para uma nação é paradigmática”.
Os seus projectos para a Bahia são testemunho de como para Lina foi
7 PIETZ, William, The Problem of the Fetish. I, in Res nº. 9 . Chicago, 1986, p. 6.
8 Idem, p. 42.
9 Cf. TAUSSIG, Michael, Defacement: Public Secrecy and the Labor of the Negative. Stanford: 10 Lina Bo Bardi (Ed. FERRAZ, Marcelo Carvalho), São Paulo: Instituto Lina Bo e
Stanford University Press, 1999. P.M. Bardi, Imprensa Oficial, 2008, p. 210

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importante a influência do Candomblé, das tradições afro-americanas e, concepções de território é, por isso, também a luta pelo direito a existir
em particular, desses objectos que os portugueses, através do comércio e por diferentes visões do mundo. Recordando o projecto para a
de escravos, trouxeram de um continente ao outro. Não por acaso, recuperação do centro histórico da Bahia (1986), em que o objecto de
a Costa da Mina onde o antropólogo William Pietz localiza o início recuperação não foram as arquitecturas consideradas historicamente
da história desses objectos-feitiço, é contígua à Costa dos Escravos, relevantes mas sim a “alma” da cidade, vemos como esta concepção
onde se encontra hoje o Benin, e de onde veio a maioria da população territorializante é central para Lina. Quando Lina recupera não só as
Afro-descendente para a Bahia. Procurando valorizar a história local, um praças, ruas e miradouros, mas também a economia informal, que
dos mais notórios projectos que Lina desenha na Bahia é a recuperação tem lugar nas ladeiras, nas associações recreativas e nas lojas ilegais,
de um antigo edifício colonial para ser transformado na Casa do Benin, ou quando desenha bancos de rua, uma fonte e até um comboio de
onde estaria em exposição o arquivo do antropólogo Pierre Verger recreio, percebe-se que a Bahia que tinha em mente não era a de um
sobre as relações culturais entre Brasil e África. Deste modo, promover museu histórico, mas a da sua vida local. Tentando dinamizar as formas
uma concepção existencial do território tal como o faz Lina, implica de comércio e expressão popular, torna-se evidente que orientando a
portanto, a possibilidade de praticar a coexistência de “mundivisões” prática da arquitectura para uma atenção aos modos de vida dos seus
heterogéneas. A luta pelo reconhecimento de alternativas às práticas habitantes, abre-se a possibilidade para que outras subjectividades e
epistemológicas da modernidade, contra o “eliminativismo” da formas de praticar o espaço possam também ter lugar. Se a arquitectura
tecnociência sobre outras formas de conhecimento11, é central para e as práticas espaciais intervêm num território que é existencial, então
poder defender o direito a diferentes visões do mundo e outras formas este tem de necessariamente ser também entendido enquanto colectivo.
de produção12. Convém notar, apesar de tudo, que não se trata aqui da Devir-menor não é que não um processo de territorialização que opera

Arquitectura, Feitiço e Território. Matéria e impulso de libertação na obra baiana de Lina Bo Bardi | Godofredo Pereira
defesa das culturas indígenas ou tradicionais como que constituíssem a partir das margens dos discursos dominantes, que se alimenta das
uma alternativa, mas reconhecer com Arturo Escobar, que as soluções condições geradas, forçosamente, pelo habitar de zonas de fronteira.
devem ser buscadas a partir do meio: “a noção de colonialidade Daí a sua proximidade ao feitiço, a esses objetos naturalmente
assinala dois processos paralelos: a supressão sistemática pela fronteiriços, em si mesmos arquivos de constantes encontros. Mas é
modernidade dominante de culturas e conhecimentos subordinados também o assinalar de uma possibilidade, constitutiva de imaginar vidas
(o encobrimento do outro); e a necessária emergência, a partir desse possíveis. E aqui a obra de Lina é exemplo maior de uma imaginação
próprio encontro, de conhecimentos particulares formatados por essa constante e lutadora. Exemplo de que é possível fazer arquitetura com
experiência e que têm pelo menos o potencial de se tornarem lugares as pessoas, com os seus mitos, as suas práticas e as suas lutas. Sempre
para a articulação de projectos alternativos”.13 atenta ao quotidiano na sua dimensão mais alargada, Lina defendia
uma arquitetura enquanto processo, não abdicando das conquistas
4 | Devir-território da modernidade, mas retirando daí ilações que lhe são menos
reconhecidas: que viver e habitar são demasiadamente importantes
O fazer do território não pode ser objecto de conhecimento para serem de exclusiva responsabilidade dos arquitetos, promovendo
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especializado, pois não há como especializar o direito à expressão e o realizar da arquitetura, enquanto construção coletiva do território,
à existência. A territorialização é um processo colectivo que agencia como uma luta por direitos e por justiça.
pessoas, mas também espaços, artefactos, instituições, materiais,
narrativas, modos de estar, etc. E por isso mesmo a luta por diferentes

11 No que respeita à coexistência entre as práticas científicas e outras formas de


produção de conhecimento, convém referir o importante trabalho que Isabelle Stengers
tem vindo a desenvolver. STENGERS, Isabelle, Cosmopolitics II. Minneapolis: University
of Minnesota Press, 2011. IMAGENS
12 Cf. SANTOS, Boaventura Sousa, Another Production Is Possible. Reinventing Social
Emancipation. London: Verso, 2006. 01 BO BARDI, Lina e PAGANI, Carlo, “L’Acquario In Casa”, in Lo Stile nº.10. Itália, 1941.
13 ESCOBAR, Arturo, Territories of Difference: Place, Movements, Live, Redes. London: 02 Instituto Lina Bo Bardi e P. M. Bardi (ed.), Lina Bo Bardi. 3ª Edição. São Paulo:
Duke University Press, 2008, p. 12. Imprensa Oficial, 2008, p. 158.

88 89
Los tiempos de la arquitectura

Francisco Jarauta

El debate sobre la arquitectura contemporánea es cada vez más


complejo. Una serie de nuevos contextos políticos, sociales y
culturales relacionados con los grandes cambios que definen y
caracterizan nuestra época, han determinado un cambio de dirección
en la discusión actual. Y desde la arquitectura y sobre la arquitectura
podemos identificar hoy nuevos problemas, más próximos a las
condiciones derivadas de los cambios culturales del habitar humano
que de ciertos análisis centrados en experimentos formales y estéticos
de décadas anteriores. Una situación que, a su vez, debe ser pensada
desde una perspectiva global acorde con las condiciones de la época,
marcada por grandes tensiones y diferencias dentro de una creciente
homologación planetaria. El mapa que resulta de este cambio de
posición es sorprendente. La arquitectura ha pasado a ser actualmente
uno de los laboratorios de análisis y discusión más activos en
relación al debate contemporáneo sobre los modelos civilizatorios
que la humanidad está en proceso de realizar, en el largo y complejo
sistema de respuestas a las condiciones derivadas de una creciente
complejidad, siendo esta apropiación de los interrogantes generales
de la época el territorio por excelencia de la discusión.
En efecto, es imposible entender la arquitectura sin pensarla en relación
a la ciudad, a la casa, al espacio del hombre, a las formas de habitar.
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

Todo el pensamiento arquitectónico ha sido en sus raíces fiel a este


postulado. Desde la Carta VII de Platón a las notas de Le Corbusier

Los tiempos de la arquitectura | Francisco Jarauta


o de Mies van der Rohe esta idea ha sido una constante. El horizonte
de la polis, de la ciudad en sus diferentes formas históricas, decidía el
sentido del proyecto, de la edificación, como recordaba Leon Battista
Alberti. Era la fascinación que Valéry supo dar a las breves pero
luminosas páginas de su Eupalinos. Y a la que desde otra perspectiva
el movimiento moderno igualmente buscaba responder. Todavía hoy
cuando volvemos a leer algunas páginas de los años ‘30 nos sentimos
directamente cuestionados. Por ejemplo, cuando Le Corbusier
interrogaba en aquellos años las condiciones del hombre moderno,
su forma de habitar, al escribir: “Los hombres están mal alojados.
Y está en marcha un error irreparable. La casa del hombre que no

90 91
es cárcel ni espejismo, la casa edificada y la casa espiritual, ¿dónde a las necesidades, no responde más. El credo funcionalista había
se encuentra? ¿dónde puede verse? En ningún lado, en casi ninguna sido una retórica de combate, había dado a la arquitectura un nuevo
parte. Es preciso, por tanto, romper el juego con toda urgencia y papel en la era de la técnica, rechazando y eliminando las máscaras
ponerse a construir para el hombre”. La arquitectura, para unos y decorativas. Basta recordar los alegatos de Loos contra el sistema
otros, no tiene otra razón de ser que la de construir para el hombre de formas heredado. Siguiendo sus pasos, los primeros modernos
desde una dialéctica que recorre en zigzag la historia de las ideas y los habían hecho suyo un credo: la arquitectura no será en el futuro un
mapas del mundo. Una historia que se reescribe continuamente para simple ornamento, será la expresión de la belleza técnica. De Loos a
emerger de acuerdo a lógicas no establecidas y que ninguna respuesta Bruno Taut, a Le Corbusier o Mies van der Rohe podemos identificar
consigue inicialmente resolver. Lo importante es la disposición que un apasionado esfuerzo de ideas y proyectos que responden a esta
reúne el pensar, el construir, el habitar tal como sugería la conocida idea, que arrastra consigo la tensión y dificultad por definir un nuevo
conferencia de Martin Heidegger el 5 de agosto de 1951 en el marco modo de habitar, acorde con las condiciones de lo que entendían por
de las Darmstädter Gespräche. vida moderna.
Este debate pasa igualmente por las condiciones propias del trabajo A nadie escapa que en el corazón del proyecto pensado por el
del arquitecto. No hay una sola verdad en arquitectura. Frente a una movimiento moderno está presente una posición universalista. Nadie
situación son posibles respuestas, soluciones diversas. La dialéctica como Gropius para defender esta forma de pensar. El proyecto
del proyecto se basa justamente en esta tensión. Frente a un concurso debe abandonar la determinación de lo particular para ser propuesta
complejo puede haber y hay diferentes respuestas válidas. Es un universal. Había que pensar, escribe Gropius, en términos de
margen de interpretación que acompaña como una sombra a todo humanidad y no de individuo. El radicalismo de Gropius dejaba fuera
proyecto. Y los criterios de validación en última instancia tienen que de escena todos aquellos referentes particulares que han ocupado más
remitirse al carácter abierto del proyecto mismo. Bien es cierto que tarde, tras la crisis del movimiento moderno, el centro y preocupación
en determinados momentos de la historia dichos criterios han sido de la arquitectura de algunas décadas atrás.
preestablecidos, dando al sistema de formas fuertemente codificadas Posiblemente tengamos hoy que volver a plantearnos estas ideas
el valor del canon. La fascinación de Alcibíades en el Eupalinos no es para dialogar con sus límites e insuficiencias. Se trata de reconocer
ajena a la perfección que su arquitectura comparte con la música y la una complejidad inicial en la que se dan la mano todas las variantes
matemática. Se trata de un universo regido por las leyes del modelo que subyacen al proyecto. Lo reconocía Robert Venturi al referirse
clásico. Pero nuestra situación se siente y reconoce regida por otros a estas mismas dificultades. “Los arquitectos modernos, anotaba,
presupuestos. Igualmente, en la época del movimiento moderno simplificaron esta complejidad. Aclamaron la novedad de las
se podría decir que ciertas pautas o conceptos regían el proyecto. funciones modernas, ignorando sus complicaciones. En su papel de
Hoy, no. Es la condición de la arquitectura moderna. No hay una reformadores, abogaron puritanamente por la separación y exclusión
doctrina compartida, un punto de vista legitimado que imponga de los elementos, en lugar de la inclusión de requisitos diferentes y
criterios, formas, sistemas desde los que resolver el proyecto, lo que de yuxtaposiciones”. Como precursor del movimiento moderno,
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

da a la arquitectura una disponibilidad creativa nueva con la que Frank Lloyd Wright se atrevía a defender su lema: “La verdad contra
interviene frente a una determinada situación. el Mundo”, dando lugar a posiciones extremas que hallarían su

Los tiempos de la arquitectura | Francisco Jarauta


Rem Koolhaas define como junk space al espacio aleatorio en el expresión en la mejor tradición moderna. Pero ahora nuestra posición
que se inscribe todo proyecto. Por una parte, se trata de reconocer es diferente. La creciente complejidad del mundo actual, entendida
una serie de todas aquellas decisiones previas que proceden del tanto en sus aspectos económicos, sociales y culturales, cuanto en
espacio mismo, de su inscripción social y cultural. Son condiciones lo que se refiere a la dimensión reflexiva sobre las condiciones del
que están ahí y se imponen con la lógica de los hechos. Por otra individuo, su identidad y sus derivaciones cada vez más complejas en
parte, la máquina constructiva opone sus exigencias tantas veces uno y otro sentido, su inscripción social y los modelos de pertenencia
innegociables. Entre una y otra, la interpretación que se constituye políticos y culturales, hace que aparezca un espacio diferente, mucho
en el centro de la experimentación misma, de la idea que regirá más complejo y con el que la arquitectura debe trabajar.
el proyecto. Por eso termina siendo central identificar el lugar En efecto, un proyecto puede definirse como una invención para
desde dónde se proyecta. Nos encontramos ante una situación en responder a un problema habitacional sea cual sea su dimensión y
la que la doctrina funcionalista, su espíritu de respuesta honesta tipología. Y es a la hora de establecer la propuesta de un proyecto

92 93
concreto que entran en conflicto las diferentes variantes en juego. un año en el ZKM, podrían ser los referentes problemáticos para
Para unos, la arquitectura debe producir nuevos espacios, debe una discusión abierta sobre estas cuestiones.
entenderse como un ejercicio utópico, un fragmento del futuro Lo importante es construir una nueva forma de pensar, acorde
que acontece sin respetar la ruta del tiempo. Para otros, el con las condiciones de la nueva complejidad. Hoy, por ejemplo,
proyecto debe mediar entre las diferentes circunstancias, debe la ecología nos obliga a pensar la ciencia y la política al mismo
ser quien articule los distintos contextos en los que el espacio tiempo. Es la debilidad de ciertos discursos sobre la sostenibilidad,
se inscribe, respondiendo a las condiciones de uso e incluso que terminan siendo un inútil pliego de buenas intenciones.
al sistema de funciones previstas. Se trata de un equilibrio Si nos situamos en esa perspectiva, todo lo que tiene que ver
mesurado, inteligente, en el que se encuentran la pasión cívica, con la cultura del proyecto debe ser repensado. John Berger lo
junto al juego creativo, a la idea. recordaba recientemente. La primera tarea de cualquier cultura
Se construye con ideas, pero éstas deben cruzarse con el mapa es proponer una comprensión del tiempo, de las relaciones del
de aquel espacio sobre el que se edifican. Esta dificultad ha sido pasado con el futuro, entendidas en su tensión, en la dirección
interpretada de maneras bien distintas a lo largo de la historia. en la que convergen contradicciones y esperanzas, sueños y
De ahí la necesidad de una relación crítica con la tradición, con la proyectos. Comme le rêve le dessin! Sí, como el sueño, el proyecto,
historia, con la teoría de la arquitectura, con la cultura del proyecto. en esa extraña relación en la que se encuentran las ideas y los
Relación crítica que, por otra parte, debe ayudar a interpretar hechos, la tensión de un afuera que la historia transforma y el
desde las condiciones actuales la complejidad que acompaña a las lugar de un pensamiento que imagina y construye la casa, la polis.
formas del habitar. Hoy el edificio no es ya más un cuerpo, como
imaginaba Leon Battista Alberti, sino que, después de haber sido
una máquina, tal como lo había pensado el movimiento moderno,
ha pasado a ser un corps immateriel, inmerso en el universo de flujos
sígnicos, del que habla Paul Virilio. De la misma forma que la
ciudad ya no es ni responde a los modelos heredados de la historia
ni a los sueños utópicos representados por la città ideale, sino que
se presenta hoy como la ville générique configurada como lugar
de coexistencia de grupos sociales, culturas, géneros, lenguas,
religiones, etc. diferentes. La ville générique pasa a ser el nuevo
laboratorio de relaciones, miradas, reconocimientos, tolerancias
que confrontan directamente el modelo heredado de la antigua
ciudad, dominada por la memoria de un tiempo sobre el que se
construía la historia de una identidad. El nuevo cuerpo social,
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

como escribiera Foucault, se presenta ahora desde las marcas y


signos de diferencias múltiples, reunidas apenas en el provisional

Los tiempos de la arquitectura | Francisco Jarauta


y frágil modelo de las nuevas relaciones sociales, dando lugar a
una representación práctica de la complejidad latente de lo social.
Creo que es en el contexto de este nuevo marco de problemas que la
arquitectura debe establecer su reflexión y práctica. Es acertadísima
la opinión de Jeffrey Kipnis al insistir en la pertinencia de considerar
el valor social y cultural de la libertad como una de las metas de lo
individual y lo colectivo. Una frontera que resulta, políticamente
hablando, cada vez más problemática. Ideas como las propuestas
por Rem Koolhaas, Stefano Boeri y Sanford Kwinter entre otros
hace ya unos años en Mutations, o la más reciente propuesta de
Bruno Latour y Peter Weibel en Making Things Public, hace apenas

94 95
nota introdutória da Produção da Arquitectura
A surpresa que tive ao ler este texto oito anos depois de o ter
entregado ao prelo, e de só agora se preparar para sair dele, justifica
esta nota introdutória por um par de razões:
1. pelo carácter panfletário e datado que tem. Recorrendo
a excertos de retórica afirmativa (de uma dissertação em
processo de conclusão) focados numa caracterização política
e histórica superficial mas assertiva da prática da arquitectura Diogo Silva
contemporânea, combina-os com apelos críticos e convocatórias
despropositadamente concretos e prosaicos. O que na verdade “A ideologia do projecto é tão essencial à integração do capitalismo
me trouxe alguma satisfação, por com ele ter sido transportado moderno em todas as estruturas e superestruturas da existência
para um retrato fiel do espírito desse contexto marcado pela crise humana, como o é a ilusão de poder opor-se a esse projecto “com os
estrutural que se vivia convulsivamente nesse período, e que, instrumentos” de um projecto distinto, ou de um ‘antiprojecto’ radical.
pelo desemprego, indignidade geral das condições de vida e […] tal como não pode existir uma Economia política de classe, mas
de trabalho e emigração forçada, ditou a inconsequência e fracasso uma crítica de classe à Economia política, também não é possível criar
de tentativas de organização – entre elas o Colectivo Norte, uma estética, uma arte, uma arquitectura de classe, mas apenas uma
que nunca conheceu consequência efectiva. crítica de classe à estética, à arte, à arquitectura, à cidade.”1
2. pelo equívoco quanto ao horizonte. Se a combinação
dos dois âmbitos que refiro acima – 1. de caracterização da prática Culminando o Movimento Moderno na sua crise – quando as relações
da arquitectura e 2. de convocatória à acção – parece pouco de produção capitalistas entenderam o contributo do Modernismo
consequente e até algo gratuita, o decorrer dos últimos anos tornou como absolutamente dispensável à sua perpetuação e “[põem] de
essa correlação brutalmente pertinente. Com a recente criação parte as superestruturas”2 – o papel do arquitecto enquanto ideólogo
do SINTARQ - Sindicato dos Trabalhadores em Arquitectura, activo entra igualmente em profundo declínio. Qualquer tentativa
“o declínio do ‘profissionalismo’ do arquitecto” diagnosticado de compromisso ideológico assume-se inclusivamente como algo
por Tafuri deixou de ser mera nota de rodapé e adquiriu nos anos embaraçoso, agora que as bandeiras hasteadas do fim da história e do
recentes, pós-crise, relevância central e uma natureza produtiva. fim das ideologias pareciam preencher por completo o horizonte, nesta
Elemento crucial à reorganização profissional e à afirmação política estrutura de produção especulativa freneticamente consolidada
e reivindicativa dos trabalhadores deste sector, a proletarização pela novidade e que dispensa por completo qualquer engodo de
tornou, a meu ver, evidente, a esta distância, que havia neste texto legitimação. A única salvação da Arquitectura apresentou-se então
um enorme equívoco ou estreiteza de entendimento (de um ingénuo na superação desse compromisso e no encerramento dentro do seu
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

estudante) naquilo que ele próprio refere como interferência nas próprio âmbito disciplinar (afastando-se da circunstância e do real).3
relações de produção, exercício de autonomia relativa ou um suposto
papel determinante do arquitecto como agente de transformação –
1 TAFURI, Manfredo, Projecto e Utopia: Arquitectura e desenvolvimento do capitalismo (trad. Jardim,
alimentando a mitologia inconsequente, individualista e messiânica

da Produção da Arquitectura | Diogo Silva


Conceição, e Nogueira, Eduardo). Lisboa: Presença, col. “Dimensöes”, n.o 16, 1985, p. 120-121.
que o próprio texto procurava desconstruir.
2 Ibidem., p. 92-93.
3 “Para os arquitectos, a descoberta do seu declínio como ideólogos activos, [gera] um clima
de ansiedade que deixa entrever no horizonte um panorama muito concreto e temido como o
pior dos males: o declínio do ‘profissionalismo’ do arquitecto e a sua inserção, já sem obstáculos
tardo-humanísticos, em programas onde o papel ideológico da arquitectura é mínimo. […]
incapazes de analisarem historicamente o caminho percorrido, revoltam-se contra as derradeiras
consequências das promessas que contribuíram para despoletar. E, o que é pior, tentam patéticos
relançamentos ‘éticos’ da arquitectura moderna, atribuindo-lhes tarefas políticas que só servem
para acalmar provisoriamente furores tão abstractos quanto injustificados […]”Idem, Ibidem.

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O desencanto é absoluto! A Arquitectura descobre a sua total dominação mas incapaz de aceitar a impossibilidade de um
subserviência aos meios de produção dominantes e, incapaz de contra-espaço) “[numa] postura à qual não corresponde mais acção
compreender as causas estruturais da sua crise, ela compromete-se política nenhuma”,5 num total repúdio por qualquer forma
nessa ilusão de um antiprojecto. de organização ou potência vigente, que a partir de um discurso
Procurando “pensar com as devidas implicações no campo do agir”,4 de plenas negações e denúncias vão fundando um regime
esse desencanto – o da compreensão da produção da arquitectura – de absoluta abstracção, que acaba por apelar invariavelmente a uma
só nos interessará se nos permitir transformar o que com ele certa anarquia da produção – negligenciando o espaço em potência
compreendemos. O desenvolvimento de uma crítica negativa será que se abre na autonomia relativa de cada obra. Esta linha tende
o instrumento necessário ao desvelamento de entendimentos mais quer ao puro niilismo teórico (apelando por exemplo à validade
justos que permitam projectar na história as bases de verdadeiras de acções informais, espontâneas ou subversivas de projecto),
práticas de inversão – em concordância com o único caminho quer à criação de objectos de intervenção social que, pela sua recusa
que qualquer luta por uma Democracia Avançada pode conhecer: de um entendimento dialéctico da realidade, acabam por não operar
o da inversão política, económica, social ou cultural. Só alcançando qualquer interferência nas relações de produção. Objectivamente
essa inversão nos poderemos reunir em plena solidariedade de classe tratam-se de tendências que se recusam imiscuir nos modos
‘sob o sol’ dessa etapa comum que nos permita vislumbrar as bases de produção vigentes por, aliás, não acreditarem em tal espaço
da edificação de uma outra política, de uma outra economia, de uma de potência. Equivocadamente acabam até por abrir caminho a uma
outra sociedade, de uma outra cultura e com isso evidentemente certa estetização da participação e engajamento social, a uma certa
de uma outra arquitectura. romantização da subversão caricata e inofensiva.
Apelar para o imediato, nesta nossa circunstância em que não
se desvelam sequer as sombras dessas condições imprescindíveis, “[…] ‘por um lado’, temos de exigir do trabalho do poeta
a essa reificação futura será inevitavelmente um exercício a tendência correcta; ‘por outro lado’, temos o direito
que caminha da intelectualite ao absoluto niilismo. A crítica de exigir desse trabalho qualidade. Esta fórmula é,
da arquitectura parece seguir invariavelmente esse caminho; naturalmente, insatisfatória, enquanto não se compreender
mesmo aquela que se apoiando numa certa base material vai a exacta relação entre os dois factores: tendência e qualidade.
revelando uma intrínseca definição idealista. É óbvio que se pode decretar esta relação. É possível
Por um lado, a apologia à plena autonomia artística – que encontra afirmar: uma obra que apresente a tendência correcta
nas materializações da arte a plena libertação do espírito em não precisa de mostrar nenhuma outra qualidade. Também
direcção a um novo ideal (cuja linha ideológica parece encontrar se pode decretar: uma obra que apresente a tendência
alguma coincidência com as formulações e com a perspectiva correcta terá necessariamente todas as outras qualidades.
reformista proposta pela social-democracia centro-europeia do […] O que eu pretendo mostrar é que a tendência literária
entre-Guerras). Por outro, o lado inverso do mesmo idealismo de uma obra só pode ser politicamente correcta se também
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

que refugia a sua profunda angústia burguesa (consciente de uma for literariamente correcta.”6

4 “É de ontologia que o Lenine trata, quando se debruça sobre o papel constitutivo 5 “Em suma, esse radicalismo de esquerda é uma postura à qual não corresponde

da Produção da Arquitectura | Diogo Silva


da prática não como definição pragmatista da verdade […] (é verdade porque mais acção política nenhuma. Ele não está à esquerda desta ou daquela tendência, mas
resulta) […] mas como processo de verificação […] da objectividade dos nossos simplesmente à esquerda de toda e qualquer possibilidade. Porque, desde o princípio,
conhecimentos. […] O materialismo dialéctico não opera a dissolução da materialidade não pensa em outra coisa a não ser deleitar-se consigo mesmo, numa tranquilidade
do ser na prática que o transforma, como obviamente não o converte na consciência negativista. Converter a luta política – que exige uma tomada de decisão – em objecto
que o representa […] ou na linguagem que o fala […] aquilo que o materialismo de diversão, transformar um meio de produção em bem de consumo.” BENJAMIN,
dialéctico faz é procurar pensar, com as devidas implicações no campo do agir, a Walter, “Melancolia de Esquerda”, in Documentos de Cultura, Documentos de Barbárie: escritos
incorporação de trabalho humano e industrioso à própria materialidade dialéctica do escolhidos (ed. BOLLE, Willi). São Paulo: Cultrix, 1986, p. 139-140.
ser, em que se inscreve, inscreve e que revolucionariamente transforma.” BARATA- 6 BENJAMIN, Walter, “O Autor como Produtor”, in A Modernidade (trad.
MOURA, José, “Intervenção para o Seminário ‘Pensando Lenin’”, in [acesso:] BARRENTO, João). Lisboa: Assírio & Alvim, col. “Obras escolhidas de Walter
http://youtu.be/XxYJaS_OjM8, [organização:] PCdoB. Ao minuto 47:00. Benjamin”, n.o 3, 2006, p. 272-273.

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Esclarecendo o papel subsidiário da composição, Benjamin fala-nos Neste sentido vem-se assumindo imperativa a consolidação de
de um entendimento duplo e dialéctico da obra: eminentemente forças para a constituição de uma fuga possível às práticas instituídas.
técnica e política. Tal como a tecnologia que, por mais que Uma fuga que não encontra decerto, na correlação de forças
vigie, também liberta; o poder que, por mais que corrompa, vigente, terreno para o seu desenvolvimento dentro da nossa escola,
também administra; a arquitectura que, por mais que submeta, cujo plano de estudos, práticas projectuais ou estruturas de gestão
também ordena e dignifica… a tomada de partido, por mais a comprometem decididamente com as mais recuadas formas
que conceda em prol do colectivo, é condição imprescindível de organização profissional, com os mais agressivos e desumanos
ao que transforma. objectivos de produção especulativa determinada pela Finança e
O arquitecto comprometido com essa visão de uma arquitectura com o mais subserviente desvinculamento de quaisquer programas
ao serviço da sua vocação política é um produtor que consolida, de inversão política ou social.
nesse espaço ínfimo da autonomia relativa que a cada obra Surge como fuga possível, a tentativa de construir uma estrutura
corresponde, a expectativa de que a cada um caiba a sua vez de matriz laboratorial: um Colectivo Norte, com a ambição de constituir
de produzir, porque “a democratização cultural não se pode nem “um grupo de trabalho [pluridisciplinar] que […] tenha a capacidade
deve esgotar na democratização do acesso à fruição cultural, antes de estudar, discutir e propor políticas públicas capazes de dar resposta
tem de estender-se ao acesso à criação […]. É esta autonomia qualificada às problemáticas actuais latentes na área de actuação
relativa, enquanto possibilidade de contradição e retroacção do arquitecto e na sua área disciplinar”. Tomando os seguintes três
da cultura, que fundamenta a importância que atribuímos pontos como matriz da sua acção: “(1) pela valorização do papel
à democracia cultural no quadro da luta pela democracia avançada do arquitecto como agente determinante do processo social e como
e pelo socialismo.”7 factor de progresso na sociedade contemporânea; (2) pela inclusão
O Arquitecto (com ‘A’ maiúsculo) é um carrasco; o arquitecto das populações no processo de projecto em arquitectura e por uma
(com ‘a’ minúsculo) é o técnico que se coloca a serviço. política participada de desenvolvimento/ordenamento do território; (3)
O Arquitecto é um malabarista que se mutila indagando o seu por novas formas de organização e associação profissional e cívica.”9
dever ético, a sua identidade original; o arquitecto é simples A fundação de uma nova prática da arquitectura depende
produtor, que “projecta e elabora os leques de possíveis que, necessariamente do contributo de cada profissional e estudante
apesar de materialmente fundados, abrem caminhos de negação e não ocorrerá certamente “por apelos veementes e convocações
e, no limite, de inovação”, transcendendo os quadros estruturais apaixonadas, em nome de um dever ser moral ou político [...] antes
que determinam a sua produção.8 pelo contrário, [...] [pelo] estudo concreto de uma situação concreta
em que se investigam as condições reais da possibilidade de uma
determinada transformação social”10

7 “A cultura no sentido amplo em que a entendemos aproxima-se, então, do que “É sabido, proibia-se aos Judeus predizer o futuro. Pelo contrário,
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

Marx designou como ‘consciência social’ e como ‘ideologia’. […] As diferentes a Tora e a oração ensinam-se na comemoração. Para eles
regiões da cultura [as artes, ciências, filosofia, direito, religião…] são diversamente a comemoração desencantava o futuro ao qual sucumbiram os que
determinadas pela sociedade na qual se processam e […] pelas formas económicas procuram instrução junto dos adivinhos. Mas nem por isso o futuro
em que os homens produzem, consomem e trocam. Nesse sentido, os seus meios e se tornava um tempo homogéneo e vazio para os Judeus. Porque nele

da Produção da Arquitectura | Diogo Silva


objectos de trabalho, bem como os seus produtos são tão transitórios e históricos cada segundo era a porta estreita pela qual podia passar o Messias.”11
como as relações sociais que exprimem. […]” GUSMÃO, Manuel, “Cultura e
Ideologia”, in Caderno Vermelho 15. Lisboa: Edições “Avante!”, 2007, p. 32.
8 “Existe historicamente, entretanto, uma autonomia relativa do trabalho intelectual,
que se prende constitutivamente com o vector de liberdade e de criatividade que esse 9 Panfleto para o Colóquio “Por uma Prática Social da Arquitectura”, 7 de Dezembro
trabalho incorpora, mobiliza e faz frutificar. […] Tais caminhos transcendem a simples de 2013, organizado pelos Arquitectos do Porto do Partido Comunista Português
variação reprodutiva daquilo que existe e dos quadros estruturais que o determinam.” http://issuu.com/arquitectosdosectorintelectualpcpo./docs/flyer_7_de_dezembro
GUSMÃO, Manuel, “O PCP e a integração de intelectuais”, O Militante, n.o 320, Set./ 10 GUSMÃO, Manuel, “O PCP e a integração de intelectuais”, op. cit.
Out. 2012, [acesso:] http://www.omilitante.pcp.pt/pt/320/PCP/727/O-PCP-e-a- 11 BENJAMIN, Walter, “Teses sobre a Filosofia da História”, in Sobre arte, técnica, linguagem
integra%C3%A7%C3%A3o-de-intelectuais.html. e política, (trad. MOITA, Maria Luz). Lisboa: Relógio d’ Água, col. “Antropos”, 1992, p. 170.

100 101
Uma teoria profética será sempre uma teoria de equívocos.
O esclarecimento advindo do conflito é e será sempre a matéria
central à elucidação dos caminhos possíveis e dos compromissos
neles implícitos – a prática é efectivamente o mais acertado critério
da verdade. E convém a este propósito recuperar a provocação
de Tafuri: “um arquitecto que precise de ler para saber onde está,
é sem dúvida um mau arquitecto!”12

“Como isto tudo se vai desenrolar não sei, o instinto impele-me para o desconhecido
e eu bem o mereço, a minha própria vergonha desterra-me de ti e quem sabe por
quanto tempo.
Ai... prometi-te uma outra Grécia e em vez disso mando-te um canto fúnebre.
Encontra em ti o teu próprio consolo.”
[texto extraído do Hyperion de Friedrich Hölderlin, lido por Luís Miguel Cintra]
O Último Mergulho; João César Monteiro (real.); Paulo Branco (prod.); Portugal:
Madragoa Filmes, RTP, La Sept; 1992.
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

da Produção da Arquitectura | Diogo Silva


12 “The greatest confusion in the ‘criticism’ of architecture is in fact due to the
magazines attached to the profession: architects should do architecture and historians
should do history. […] The study of history has indirect ways of influencing action.
If an architect needs to read to understand where he is, he is without a doubt a bad
architect! I frankly don’t see the importance of pushing theory into practice; instead, to
me, it is the conflict of things that is important, that is productive.” TAFURI, Manfredo
“There is no Criticism, Only History: Richard Ingersoll interviews Manfredo Tafuri”,
in Casabella: Rivista Internazionale di Architectura, 619-620 (ed. GREGOTTI, Vittorio),
(1a ed. Primavera 1986). Milano: Electa, 1995, p. 99.

102 103
Alison + Peter Smithson, Urban Structuring:
Un análisis terminológico

Maurici Pla

El presente estudio se ocupa de los aspectos lingüísticos vinculados


a la teoría arquitectónica, y más específicamente a la teoría
propositiva formulada habitualmente por los propios arquitectos.
En un ulterior desarrollo me ocuparé de aquellos aspectos de las
teorías propositivas que entran en conflicto con los conocimientos
de la antropología social y, de un modo más general, con los aspectos
también propositivos de las ciencias humanas. De momento
he preferido aislar un documento de la teoría arquitectónica de
los Años Sesenta y abordar un análisis de sus procedimientos
lingüísticos, y más específicamente de su terminología. Este análisis
terminológico puede ser ya un importante elemento de juicio de los
componentes ideológicos subyacentes a dicha teoría. Así pues, en
el marco de este estudio la crítica directa de los contenidos queda
reemplazada por el análisis de los procedimientos vehiculares,
expresivos y de comunicación, y serán éstos y sólo éstos los que
permitan llegar a algunas conclusiones críticas acerca del quehacer

Alison + Peter Smithson, Urban Structuring: un análisis terminológico | Maurici Pla


teórico, siempre determinado históricamente e impregnado de
componentes claramente ideológicos.
Alison y Peter Smithson participaron por primera vez en los
CIAM en 1953, en Aix-en-Provence.1 Allí se limitaron a presentar
unas fotografías de su amigo Nigel Henderson,2 pero también
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

1 Después de la II Guerra Mundial se celebraron seis CIAM (Congrès


Internationales d’Architecture Moderne): Bridgewater, 1947; Bergamo, 1949;
Hoddesdon, 1951; Aix-en-Provence, 1953; Dubrovnik, 1956; y Otterlo, 1959,
donde un acta redactada por el secretario, Jaap Bakema, prohibía la futura
utilización de las siglas. Para la historia de los CIAM véase: MUMFORD, Eric,
The CIAM Discourse on Urbanism, 1928-1960. Cambridge-London: The MIT Press,
2000; MUMFORD, Eric, Defining Urban Design. CIAM Architects and the Formation
of a Discipline, 1937-69. New Haven: Yale University Press, 2009.
2 Nigel Henderson (1917-1985), artista y fotógrafo, fue miembro del Independent
Group, y fue profesor de la Central School of Art junto a Anthony Froshaug, Edward
Wright y Eduardo Paolozzi. Las fotografías de Henderson ocupaban la exposición
Parallel of Life and Art, diseñada por Alison y Peter Smithson en 1953.

104 105
tuvieron ocasión de conocer a algunos arquitectos que más tarde una investigación de gran cariz antropológico sobre las auténticas
serían componentes del Team 10: George Candilis, Jaap Bakema y necesidades del hombre, unas necesidades que habrían quedado
otros. En cuanto a Henderson, sus primeros trabajos fotográficos insatisfechas en la ciudad heredada, y que por tanto deberían sustentar
están muy condicionados por su mujer Judith, socióloga, quien teóricamente cualquier propuesta urbanística futurible. Ya desde los
llama la atención de Nigel sobre la vida en la calle y las relaciones inicios de su búsqueda Le Corbusier fundamenta sus parámetros
entre las estructuras ambientales y las conductas de los individuos. teóricos en una búsqueda del hombre, del “auténtico hombre”,
Ello queda reflejado en las fotografías de Henderson ya desde el en medio de la metrópoli, construyendo a partir de su hallazgo un
inicio, y de ahí pronto pasarán a influir de forma determinante el sistema arquitectónico destinado al viejo objeto de su búsqueda.
pensamiento de los Smithson. Dicha búsqueda también está en la base de Urban Structuring, aunque
Los materiales y las discusiones del CIAM de Aix-en-Provence el objeto hallado es bien distinto: de ahí la confrontación, que es
favorecerán la presencia de Alison y Peter Smithson en el siguiente debate teórico, arquitectónico y también antropológico. En el caso
congreso, el de Dubrovnik, celebrado en 1956. Allí los materiales que de Le Corbusier y los Smithson se produce una clara “pérdida de
presentan ya están más elaborados, y forman la base del corpus más carga” desde el punto de vista de la antropología, en la medida en
sistemático que publicarán más tarde, en 1967, bajo el título de Urban que su “hombre” está claramente determinado históricamente: no
Structuring.3 Dichos materiales se reproducirán reiteradamente en son las mismas condiciones de existencia las de 1933 que las de
numerosas publicaciones posteriores, y toda la aportación de Alison 1967, habida cuenta de los tremendos cambios sufridos por las
y Peter Smithson al Team 10 Primer (1968)4 se limita a la reproducción modalidades del habitar entre ambas fechas. Si, además, se añade
de parte de estos mismos materiales. Así, el volumen Urban Structuring que en ambas concepciones existe un elevado componente de
adquiere el carácter de obra sistemática, de compendio: un resumen, idealización y de abstracción, es fácil advertir la ligereza antropológica
01 un tratado moderno de arquitectura y urbanismo. Así pues, el que anima ambos desarrollos teóricos. En este contexto de debate
análisis intrínseco de este texto puede proyectar mucha luz sobre cobran especial importancia las fotografías callejeras de Henderson:
las modalidades y el carácter de la teoría arquitectónica. Y su análisis se trata de imágenes que ya no despliegan ningún discurso científico
terminológico puede aportar más luz todavía sobre el lenguaje de la sino que sugieren unas modalidades del habitar que quedan fijadas
teoría, prefigurando unos resultados atípicos y sorprendentes. en la representación fotográfica, pero que jamás son explicadas o
La presencia de Alison y Peter Smithson en el CIAM de Aix- realmente investigadas. Este momento de la fijación fotográfica previa
en-Provence fue el primer episodio de su crítica frontal al texto al discurso científico sobre la ciudad es enormemente importante

Alison + Peter Smithson, Urban Structuring: un análisis terminológico | Maurici Pla


seminal que animaba los congresos desde 1941, La Charte d’Athènes, para entender el posterior desarrollo teórico de los Smithson.
redactada por Le Corbusier como compendio teórico derivado Si obviamos por un momento la impronta teórica e ideológica de
del CIAM celebrado en 1933 en aquella ciudad.5 El crítico Theo los primeros ensayos de Le Corbusier, a partir de 1923,7 podemos
Crosby define con estas palabras la participación de los Smithson aislar los principales rasgos de su escritura, en busca de una primera 02
en el congreso de Aix-en-Provence: “Si no puedes luchar contra aproximación al lenguaje de la teoría arquitectónica moderna.
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ellos, únete a ellos”.6 Así pues, el carácter cerrado y sistemático de Le Corbusier recurre insistentemente a formas gramaticales
Urban Structuring debe ser entendido como una auténtica réplica al que rompen constantemente la continuidad discursiva de su
libro de Le Corbusier, en la medida en que ambos textos abordan argumentación: signos de exclamación, sustantivos aislados, frases
sin terminar, mezcla de distintas voces (por ejemplo, hablar en
boca de Luis XVI), saltos de género (por ejemplo, intercalación
3 SMITHSON, Alison & Peter, Urban Structuring. Studies of Alison & Peter Smithson.
de pequeños fragmentos teatrales), diálogos entre dos personas…
London-New York: Studio Vista, Reinhold Publishing Corporation, 1967.
y finalmente el aforismo concluyente, muchas veces en forma de
4 SMITHSON, Alison (ed.), Team 10 Primer. Cambridge: The MIT Press, 1968.
afirmación lexical, sin verbalización alguna. Le Corbusier imita
5 El IV CIAM se desarrolló en un barco que partió de Marsella y atracó en Atenas.
también muchas veces el lenguaje coloquial, del vulgo, con sus
El tema era: “Análisis de la ciudad y sus problemas”, y el objetivo era la redacción de
una carta urbanística. La Charte d’Athènes se publica en 1942, en plena ocupación. LE
CORBUSIER, La Charte d’Athènes. 1942 [Paris: Éditions de Minuit, 1957.] 7 Entre 1923 y 1925 Le Corbusier publica tres libros donde deja definidas las pautas de
6 “If you can’t beat them, join them”. CROSBY, Theo, in: SMITHSON, Alison & la nueva era a las tres escalas: de la ciudad, de la arquitectura y del mobiliario: Vers une
Peter, Urban Structuring, op. cit., “Introduction”, pp. 6-7. architecture. 1923; Urbanisme. 1925; L’art décoratif d’aujourd’hui. 1925.

106 107
expresiones soeces… La burla y el desdén intervienen a menudo una óptica más bien racionalista, con unas pautas críticas que son
como recursos argumentales. Todo ello compone una prosa que se fácilmente identificables con las de las políticas revolucionarias, en
desenvuelve como una partitura musical sincopada, en la que los primera instancia, y reformistas, en segunda. La Charte d’Athènes
cambios de ritmo y los golpes de efecto contribuyen decisivamente es una formulación ilustrada del hombre, la arquitectura y la
al poder de convicción. Le Corbusier se forja un estilo propio para ciudad de acuerdo con estas pautas: es un regreso a la razón pura
desplegar un abanico argumental que incluye sus conocimientos de y, en este sentido, una regresión respecto a sus formulaciones
filosofía, de técnica, de psicoanálisis, de teatro, de sociología, de teóricas anteriores. Este nuevo carácter del texto teórico será en
observación costumbrista… Un despliegue en el que lo que está en buena medida lo que suscite el rechazo visceral de Alison y Peter
juego es el hombre, en el que se desenvuelve un auténtico juicio al Smithson, y también del resto de miembros del Team 10.
ser humano y a su conducta en el marco ambiental. En La Charte d’Athènes la eclosión del nuevo espíritu había sido
Así pues, en la escritura de Le Corbusier se advierte ya una renuncia sometida a una operación tremendamente reduccionista: de hecho,
al lenguaje especulativo y científico, con la invención de unas el hombre al que se refiere el texto se limita a cumplir unas funciones
formas gramaticales nuevas que no requieren específicamente mecánicas y orgánicas que distan mucho de las magníficas cualidades
ninguna discursividad, es decir, ninguna praxis de la razón pura, y una espirituales descritas en los primeros libros. La lectura del texto por
03 recreación libre y lingüísticamente inédita de los mil recovecos de la parte de un antropólogo o un sociólogo habría permitido advertir
razón práctica. Y resulta significativa la facilidad con que prescinde sus importantes carencias. Y esas carencias no debían de ser muy
del verbo, como pieza tradicional de construcción gramatical, distintas de las que advirtieron los Smithson, incluso desde su estricta
sustituida por un gusto reincidente por las exclamaciones o las condición de arquitectos y su distanciamiento de las posiciones más
palabras sueltas. En Le Corbusier advertimos la posibilidad científicas de la antropología y la sociología. Podemos afirmar que
de que el lenguaje de la teoría no esté construido en base a los en sus primeros esbozos posteriores a la crítica de La Charte d’Athènes
nexos gramaticales tradicionales. En otras palabras, advertimos la los Smithson suplantan al antropólogo, asimilando sus puntos de
posibilidad de que la teoría arquitectónica no se despliegue en base vista pero expresándolos con otro lenguaje, con otros medios y con
a la construcción de proposiciones trabadas de forma tradicional, una sensibilidad que también se aparta, sorprendentemente, de la
con su sujeto y su predicado, y éste estructurado a su vez por medio disciplina arquitectónica tradicional. El territorio común que queda
de sus componentes (verbo, adjetivos, adverbios, preposiciones, como campo de discusión es el lenguaje, sobre todo en el caso 05
etc.). Le Corbusier nos advierte de que la teoría arquitectónica de Alison Smithson, autora de la mayoría de los textos comunes,

Alison + Peter Smithson, Urban Structuring: un análisis terminológico | Maurici Pla


moderna debe operar una profunda transformación de las leyes y auténtica femme de lettres con una gran conciencia lingüística.8
tradicionales de la gramática, en pro de un nuevo estilo resultante Por tanto, en los Smithson se verifica un fenómeno que es
de esta crucial transgresión. característico de la cultura de las décadas posteriores a la II Guerra
A la luz de estos primeros libros, resulta sorprendente el giro Mundial: la profundización en la conciencia lingüística reemplaza el
estilístico operado en La Charte d’Athènes, un texto de carácter más rigor de cualquier disciplina científica. Ello explica la desconfianza
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colectivo, puesto que debía ser el ideario de toda una generación de los propios Smithson en “los conocimientos de la antropología
04 de arquitectos y urbanistas. Ahí Le Corbusier recupera el sentido social como base de las soluciones arquitectónicas más idóneas”.9
estructural del texto, el carácter argumental y discursivo de la prosa, Al igual que había ocurrido a lo largo de los siglos anteriores, la
la voluntad de identificación del razonamiento, en un despliegue teoría arquitectónica encuentra su fundamento en los recovecos de
gramatical de una ortodoxia impecable. El documento se organiza la gramática, e incluso la propia arquitectura será leída como un
en 95 epígrafes, que adquieren valor de principios, y cada uno de lenguaje: la del pasado, la que formulan las teorías propositivas, y la
ellos es desarrollado en una breve explicación de corte canónico. Sin
duda, la base antropológica de los primeros libros descansaba en un
8 En 1966 Alison Smithson publica una novela, A Portrait of the Female Mind as a Young
“nuevo espíritu” surgido de la aparición de la máquina, y los textos
Girl, Chatto & Windus, London. El título parafrasea A Portrait of the Artist as a Young
adquirían un tono claramente visionario, puesto que Le Corbusier
Man, de James Joyce.
prefiguraba con gran determinación las pautas de existencia de
9 “La idoneidad de cualquier solución debería basarse en el campo de la invención
una nueva era que acababa de empezar. En La Charte d’Athènes,
arquitectónica, más que en la antropología social.” SMITHSON, Alison & Peter, Urban
en cambio, vemos los problemas del hombre y de la ciudad desde
Structuring, op. cit., pp. 19.

108 109
del propio Le Corbusier, que es reinterpretada por completo a la luz pasar lógicamente por el desarrollo extensivo de cada uno de los
de este giro. Se trata realmente de un cambio de sentido y, en este cinco términos, de su significado, su ejemplificación, su traducción
marco, Urban Structuring debe ser leído ante todo como una escritura, arquitectónica y su valor teórico, histórico e ideológico. Ahora bien,
a la que además se añaden numerosos dibujos y fotografías como repito, su sola mención ya contiene casi todo el potencial y toda
parte de la misma. Urban Structuring despliega un nivel de conciencia la intencionalidad de la dimensión propositiva de la teoría. Y, sin
lingüística que, aunque de forma distinta, ya se había visto en los embargo, la propia lógica obliga a su desarrollo y explicitación,
primeros libros de Le Corbusier, pero que casi ya no se percibe en lo cual constituirá propiamente el reto teórico, un reto que no
La Charte d’Athènes: como desenvolvimiento de una razón pura es necesariamente tiene que culminar con éxito.
leído como una falacia, y el despliegue de una nueva razón práctica En la estructura formal del texto los cinco términos ocupan
tendrá que otorgar un sentido nuevo y un procedimiento nuevo la posición de cinco epígrafes, lo cual permite al lector una 07
al quehacer teórico, que adoptará, ante todo, los rasgos de una comprensión clara del desarrollo de cada uno de ellos. Basta con leer,
escritura, y propondrá, criticará, juzgará y dilucidará solamente en uno a uno, los textos que acompañan cada epígrafe para percatarse
cuanto tal. de la dificultad de una explicitación y una comprensión clara de los
Así pues, ¿cómo combatir la gran conciencia lingüística de mismos, de modo que la función teórica encuentra un primer escollo
Le Corbusier, oponiéndole un corpus teórico completamente en el terreno mismo del lenguaje: en la gramática, en la sintaxis, en la
antagónico? La diatriba en el campo de las ideas se convierte verbalización, en la construcción de proposiciones completas.
en un problema de léxico, de gramática, de estilo, de estrategia El desarrollo de cada epígrafe es breve, jamás es definitorio y se
literaria. En Urban Structuring Alison y Peter Smithson empiezan realiza mediante una retórica concisa y fragmentaria que permite
proponiendo una renovación del léxico, y más concretamente en dejar abierta la conceptualización del término. Así, la explicación del
su forma sustantiva, previa al despliegue de cualquier gramática, papel de la identidad en una teoría urbanística se realiza por medio de
previa incluso a la construcción de proposiciones. Teorizar consistirá un breve comentario a unas fotografías aportadas y reproducidas,
a partir de ahora en proponer un léxico nuevo, y poco más. Con ello los que presuntamente deberán ser una óptima ejemplificación de cómo
Smithson actualizan el fundamento retórico de toda teoría, la necesidad se materializa el concepto en algunos casos urbanos concretos.
que tiene toda teoría de una sustentación retórica, algo que ya era El despliegue de fotografías asociadas a este concepto incluye
conocido por los clásicos, y que en La Charte d’Athènes, con toda su también dos fotografías de Nigel Henderson en las que aparecen
impronta ideológica, llega a su punto de inflexión más crítico. unos individuos aislados en una calle no identificada. El breve

Alison + Peter Smithson, Urban Structuring: un análisis terminológico | Maurici Pla


Urban Structuring es la propuesta de una terminología básica, texto que acompaña un total de cinco fotografías es el siguiente:
06 compuesta de cinco elementos:10
“Las calles, con numerosos servicios locales pequeños, y algunos
1 | Asociación. más importantes, en los intersticios y en los alrededores, componen
2 | Identidad. un distrito claramente reconocible. Los distritos, interrelacionados
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3 | Pautas de crecimiento. con muchos más servicios, y más complejos, que los que podrían
4 | Cluster. contener individualmente, componen una ciudad.
5 | Movilidad.
“La casa, la calle y el distrito son los ‘elementos de la ciudad’. 08
Sin duda, se trata de términos que poco habían aparecido, o nada,
en la literatura teórica precedente, y que, por el sólo hecho de “Los primeros grupos de viviendas que se construyeron cuando
recuperarlos y rememorarlos, ya representan una novedad con una se abandonaron estos ‘elementos de la ciudad’ (en 1952), tenían
fuerte carga teórica. En el marco de la nueva estrategia lingüística elevados estándares de construcción y respondían a las necesidades
lo más importante es el hecho de mencionarlos, si no lo único de la sociedad tal como fueron definidas por los sociólogos oficiales,
realmente importante. El despliegue discursivo de la teoría deberá pero perdieron ciertas cualidades muy vitales. Unas cualidades que
resultaban indudablemente necesarias con el fin de lograr grupos
de viviendas activos y creativos. Esta cualidad perdida – esencial
10 A taxonomía de los cinco elementos aparece en la página 8. SMITHSON, Alison &
para el sentido humano del bienestar – era la IDENTIDAD.
Peter, Urban Structuring, op. cit.

110 111
por presentar dos textos paralelos, cuya resonancia silenciosa deberá
“Era posible reconocer la identidad en algunas partes de completar, en un terreno situado más allá de toda retórica, el sentido
ciertos grupos de viviendas antiguos. (Aunque también hay que y la intención de la función teórica. Así es como los Smithson se
aceptar que, para mucha gente, la casa suburbana semiadosada enfrentan a La Charte d’Athènes: con una transgresión integral del
representa el mayor grado alcanzable de identidad).”11 lenguaje, de los procedimientos, de las formas y el sentido de la
actividad teórica, proponiendo un léxico nuevo y desarrollándolo
Aunque la demostración de este argumento es claramente mediante una retórica incompleta, fragmentaria y alusiva.
incompleta, del despliegue de texto y fotografías se deducen como Un seguimiento del modo como se desarrollan los demás
mínimo tres cosas claras: términos daría resultados análogos.12 En estos desarrollos se
utiliza una retórica tan flexible que parece como si el término
1 | El rescate de la identidad pasa por el rescate de los “elementos deseara en realidad resplandecer en su mera sustantividad, y ello
de la ciudad” (casa, calle y distrito). queda enfatizado por el dispositivo tipográfico utilizado, donde
los términos quedan aislados en la línea e incluso enfatizados con
2 | La identidad se construye con la vitalidad, la actividad y la mayúsculas. De la vaguedad de la retórica explicativa se deduce
creatividad asociadas a la ciudad. que, en realidad, la teoría arquitectónica podría consistir muy bien
en la mera propuesta de un listado de términos, sin necesidad de
3 | La identidad es reconocible a través de la fotografía. Ahí una gramática que obligue a construir por completo las oraciones.
debemos “ver” esa cualidad perdida, ahí debemos ver ese elemento Son numerosos los textos de teoría arquitectónica, entre ellos los
“indudablemente necesario”. del propio Le Corbusier, que parecen transmitirnos todo el énfasis
y toda la intencionalidad a partir de la elección del léxico, mientras 10
Resulta significativo que Alison y Peter Smithson inicien su que resultan dudosamente convincentes en el despliegue de una
discurso sobre los “elementos de la ciudad” precisamente en retórica y en la construcción de una gramática, puesto que se ajustan
el epígrafe referido a la identidad. El término se conceptualiza, muy imperfectamente a las reglas de la lógica, y en muchos casos
logra definirse, y logra también extenderse en una gramática que no presentan ningún rasgo propio de la investigación científica.
finaliza con unas proposiciones completas. Si desde un punto de La posibilidad de que una teoría propositiva consista pura
vista lógico la explicación es incompleta, desde un punto de vista y llanamente en la propuesta de un léxico nos abre muchas

Alison + Peter Smithson, Urban Structuring: un análisis terminológico | Maurici Pla


gramatical no lo es. El párrafo es breve, pero contiene por completo puertas para entender mejor el meollo de la función teórica.
un desarrollo propositivo, con sus verbos, sus adjetivos y sus adverbios, Y si, al parecer, las fotografías son indispensables, podríamos
con sus predicados completos. Esta gramática completa que se hablar de una teoría que se limita a combinar una terminología
corresponde con una lógica y una dialéctica más que incompletas es con un aparato de imágenes muy intencionales. El término
consustancial a las formas teóricas de los Smithson, pero también intencional y la imagen intencional serían, por tanto, los
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a la teoría arquitectónica y urbanística en general, en la mayoría de dos componentes consustanciales a la teoría arquitectónica
sus exponentes históricos. propositiva. Eso ya era así en los textos de Le Corbusier de
Además, cabe suponer que el discurso expositivo de los mediados de los Años Veinte, y sin duda se abandona en el gran
“sociólogos oficiales” sí era completo desde un punto de vista texto en liza tras la guerra, La Charte d’Athènes. Y, a la inversa,
lógico y demostrativo, razón por la cual había olvidado la cualidad esta línea de análisis nos da la medida de la gran impronta
indispensable de la identidad. El dispositivo retórico de los lógica y científica que subyace tras este texto. La misma línea
09 Smithson explica con gran claridad su rechazo a las explicaciones de análisis podría aplicarse a los textos de teoría arquitectónica
de sociólogos y antropólogos y, por tanto, estamos asistiendo a propositiva del pasado, y en este caso el resultado no sería
una auténtica reinvención en el campo de la retórica de la teoría. siempre el mismo, sino que nos permitiría entender mejor
Además, es obvio que el lenguaje de las fotografías no es traducible
al lenguaje del texto y que, por tanto, Alison y Peter Smithson optan
12 El desarrollo de los cinco epígrafes ocupa la totalidad del libro, y está repleto de
taxonomías, fotografías, ejemplificaciones y diagramas. SMITHSON, Alison & Peter,
11 SMITHSON, Alison & Peter, Urban Structuring, op. cit., pp. 16-17. Urban Structuring, op. cit.

112 113
el carácter que adopta la función teórica en cada época de la BIBLIOGRAFIA CITADA
historia, desde los canónicos tratados de la Antigüedad hasta
las polémicas propuestas contemporáneas. CROSBY, Theo, “Introduction”, in SMITHSON, Alison & Peter, Urban
La perspectiva de una teoría arquitectónica desprovista de Structuring. Studies of Alison & Peter Smithson. London-New York: Studio Vista, Reinhold
verbalización podría proyectar nueva luz sobre la naturaleza Publishing Corporation, 1967.
misma del hecho arquitectónico, y abriría las puertas a unas nuevas LE CORBUSIER, Vers une architecture. Paris: Georges Crès et Cie, 1923.
modalidades propositivas que algunos arquitectos contemporáneos LE CORBUSIER, Urbanisme. Paris: Georges Crès et Cie, 1925.
ya han empezado a ensayar. LE CORBUSIER, L’art décoratif d’aujourd’hui. Paris: Georges Crès et Cie, 1925.
LE CORBUSIER, La Charte d’Athènes. Paris: Plon, 1942.
MUMFORD, Eric, The CIAM Discourse on Urbanism, 1928-1960. Cambridge-
London: The MIT Press, 2000.
MUMFORD, Eric, Defining Urban Design. CIAM Architects and the Formation
of a Discipline, 1937-69. New Haven: Yale University Press, 2009.
SMITHSON, Alison & Peter, Urban Structuring. Studies of Alison & Peter
Smithson. London-New York: Studio Vista, Reinhold Publishing Corporation, 1967.
SMITHSON, Alison (ed.), Team 10 Primer. Cambridge: The MIT Press, 1968.

TEXTOS LITERARIOS CITADOS

JOYCE, James, Portrait of the Artist as a Young Man. New York: B.W.
Huebsch, 1916.
SMITHSON, Alison, A Portrait of the Female Mind as a Young Girl. London:
Chatto & Windus, 1966.

Alison + Peter Smithson, Urban Structuring: un análisis terminológico | Maurici Pla


IMÁGENES

01 - 12 SMITHSON, Alison & Peter, Urban Structuring. Studies of Alison & Peter
Smithson. London-New York: Studio Vista, Reinhold Publishing Corporation, 1967: 01:
11
p. 9; 02 e 03: p. 10; 04 e 05: p. 11; 06 e 07: p. 12; 08 e 09: p. 13; 10: p. 14; 11 e 12: p. 16.
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12

114 115
Fragmentos ilustrados sobre a ‘Escola do Porto’

Alexandre Alves Costa

01 Desenho de Álvaro Siza.

Algumas palavras preliminares para vos prevenir antecipadamente de


que o meu discurso não será linear, nem contínuo, nem cronológico,
elaborado, como se arrumam, na nossa memória, o tempo e os
factos. Entregar-me-ei, assim, a uma espécie de exercício lúdico, ao
‘correr da pena’, sem procurar seguir a lógica racional de um esquema

Fragmentos ilustrados sobre a ‘Escola do Porto’ | Alexandre Alves Costa


prévio que lhe garantisse uma leitura tão clara, quanto absolutamente
falsa. Só a ficção se compõe linearmente, a realidade é, sempre,
fragmentada e descontínua.
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

Há cinquenta e cinco anos entrei como estudante para esta Escola e


há quarenta que sou docente. Vivi muitos momentos da sua história,
fui nela viajante-participante. Eu era mais ou menos assim, antes de
ter um bigode mais revolucionário.
A primeira afirmação que vos quero fazer é que, para mim, a Escola
do Porto existe. Existe como espaço de reflexão permanente sobre
o ensino da arquitectura, tentando, a cada momento, encontrar o seu
próprio discurso sobre o método. Assim foi sendo e se foi fazendo
com a simplicidade de quem cumpre o que é devido, sem prejuízo
intelectual, nem teorização de fundo. Não o digo com orgulho,
apenas com realismo!
Depois do interesse demonstrado por alguns sectores da crítica
internacional, mais do que da nacional, em determinar os parâmetros 02 Fotografia do autor.

116 117
definidores do hipotético estilo e as balizas temporais do a aprendizagem do projectar.
desenvolvimento desta ‘escola’, no sentido usual de ‘tendência’, As propostas da modernidade, de que a Reforma de 57 foi
fomos ganhando consciência que esta designação deveria referir-se, uma representação tardia, tinham arrastado temíveis pecados
sobretudo, a um grupo de arquitectos que se reconheciam, quer se constitutivos: a sectorização do saber, o especialismo, a apreensão do
queira, quer não, na sua existência. real por pontos, a recusa ostensiva do senso comum e dos estudos
Falar dela com rigor cronológico, arriscando interpretações humanísticos.
pretensamente comprovadas cientificamente, concluindo com O projecto foi concebido a-historicamente, de forma mecanicista, a
sínteses intensas e de inovador conteúdo, deixo para outros mais partir de um conhecimento desencantado do real, construído com
novos, mais inteligentes e com um espírito mais académico. um pretenso rigor que, ao quantificar, desqualifica.
No entanto, não posso deixar de dizer que cada episódio que vivi na Os limites da compreensão do mundo foram obscurecidos pelo
Escola correspondeu a outros tantos que todos viveram em Portugal. espetáculo da tecnologia e o diálogo experimental com a realidade
Não seria justo transformar este nosso espaço particular em único foi substituído pelo exercício da prepotência sobre ela.
e exclusivo, na reflexão sobre a construção do conhecimento que Mesmo quando as ciências sociais e a história ganham direito a
abalou os anos 60 e 70. Esta construção faz-se, sempre, em malha, ser consideradas, num processo analítico em que o produto final é
que se sobrepõe a territórios mais amplos, desenhando os avanços e decorrente, óbvio e único, não deixou de ser menor a insatisfação
recuos de uma, mais global, realidade em transformação. generalizada quanto à qualidade do resultado: a expressão da linguagem
Também nunca fui favorável a qualquer teoria interpretativa que se moderna transformara-se num mero fenómeno quantitativo, cheio
baseie na presença, em cada momento, de uma cabeça genial que de contradições e exígua margem para intervenções correctivas.
desenha a Escola, como se ela lhe pertencesse. Uma Escola são Afastada a arquitectura da sua determinação racional, a tentativa
muitos. Fomos e somos muitos. A história de cada um em particular, de encontro com a realidade concreta de uma tradição, bem como
nunca pode ser a história da Escola, mas sim a sua própria história. a assimilação dos elementos inovadores a partir de uma posição
É o cruzamento de narrativas diversas, que souberam, isso sim, de fundo integradora do senso comum, que se dão no interior da
reverter o seu sentido para esta nossa casa comum, que faz a disciplina de modo sensível e conceptual, levam, na Escola do Porto,
verdadeira história da instituição e de como nela se ensinou ou se à consciência metodológica de que a projectação não é um processo
aprendeu arquitectura. analítico e linear.
Claro que é importante saber dos Mestres, escolhendo os que mais
significado achamos que tiveram e deles colhermos, também, as suas
obras construídas. Os mesmos que estavam na obra e na Escola e,

Fragmentos ilustrados sobre a ‘Escola do Porto’ | Alexandre Alves Costa


por isso, não conseguimos falar dela, sem a referência factual daquela.
A Escola, de facto, dependeu sempre do que se estava produzindo
no atelier, isto é, do entendimento que fomos tendo da arquitectura,
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

através dela própria.


Eu tenho para mim, e tenho-o defendido em várias ocasiões que, na
Escola do Porto, o entendimento comum que foi existindo ao longo
dos tempos se deveu a circunstâncias explicáveis fora de qualquer a priori
conceptual gerador de uma arquitectura programática e preconcebida.
Nunca foi objectivo estabilizar uma soma de códigos formais, mas
sim transformar uma suposta inteligência comum do fenómeno da
arquitectura, em projecto pedagógico institucionalizado.
E não se discutiu nunca, por inútil e sabido, o ensinável em
arquitectura, nem os problemas que daí surgem, pelo facto deste
não poder oferecer conteúdos estáveis de conhecimentos. Todos
tínhamos consciência de que a arquitectura não pode ser aprendida
strictu sensus e, por isso, a sua pedagogia apenas pode propor, exercitar, 03 Piscina de marés. Projecto onde trabalhei como colaborador do Siza.

118 119
Radicalmente se ensaiam novas orgânicas, procedendo à integração empenhar-se, a estar atento, a não adiar os incómodos, a despertar.
das várias matérias numa estrutura constituída por um núcleo central – A sua importância cresceu, e muito justamente, porque o
projecto, englobando aspectos de composição, construção e reconhecemos, eu e os outros que fizeram a nossa Escola, que foi
urbanismo. A história foi entendida como recuo positivo ao passado sua, porque nós lha demos, a ele e não a outro qualquer dos que
no sentido de uma sua apropriação produtiva. O desenho surge como se ofereciam ou a queriam conquistar.
um meio sensível de percepção, como instrumento de análise crítica O Siza também lá estava, regressado à Escola, para a área da
e, ao mesmo tempo, de síntese que alarga a inteligibilidade das coisas. Construção, depois de um compromisso que assumiu na Grécia.
E assim se foi desenhando um projecto de uma teoria para o ensino, Em 13 de Setembro de 1976 reuniram-se no Epidauro os signatários do
que cresceu indissoluvelmente ligado às vicissitudes do exercício presente tratado pelo qual foi decidido que o Arquitecto Álvaro Siza Vieira
profissional. entrará como professor na Escola Superior de Belas Artes do Porto.
Os deuses do Olimpo presidiram, mas não assinaram por não saber escrever.
Corria, assim, o ano de 1976.

04 Fernando Távora no túmulo de Clitemnestra em Micenas, 1976.

A história da Escola, insisto, já esteve assente em vários tripés


que constituíram os nossos heróis: José Marques da Silva - Carlos
05 Lar de Idosos de Baião, 1977. Projeto em coautoria, Alexandre Alves Costa, A.
Ramos -­ Fernando Távora, Carlos Ramos - Távora - Álvaro

Fragmentos ilustrados sobre a ‘Escola do Porto’ | Alexandre Alves Costa


Corte Real, J.L.Carvalho Gomes, e J. Manuel Soares.
Siza, e agora, mais recentemente e, para mim, cada vez mais
enigmaticamente, Távora - Siza - Souto de Moura. As minhas procuras anteriores tinham passado pela emigração a
Embora me fascine a história de longa duração, lendo nela e Rio de Onor, na sequência de outras paixões, pelos Inquéritos nas
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no caso português, mais continuidades do que rupturas, o meu ilhas ou nos bairros camarários, pelo estágio no LNEC e pelos
tempo é o de Fernando Távora, denominador comum dos três métodos sistemáticos e, depois, a partir de 70, pelo empenho na
tripés referidos. organização de uma equipa de jovens arquitectos.
Foi do Arquitecto Távora que recebi incentivos, ensinamentos, A experiência de projectar, depois de alguma distância, desenganos
ordens, que mais não eram do que os seus desejos, logo desejados e não inútil dispersão, veio a ter profunda influência na minha
por mim, como manifestação de reciprocidade de uma amizade participação como docente.
profunda. Nunca me senti agente passivo nas suas mãos, mas A pouca obra que produzimos pode-se integrar no que Jorge
confesso que me senti um seu instrumento activo. Figueira chamou “a reinvenção poética do racionalismo”, no
Claro que lhe devo quase tudo do que sei ou do que em sua retomar do Movimento Moderno como uma das tendências
homenagem fui aprendendo. posteriores ao período pós-Inquérito, por isso liberta de muitos
Mas ele também foi credor da minha imensa inquietação e da minha dos preconceitos sobre materiais, tecnologia, tipologia, como havia
quase obsessiva dedicação. Sei que o inquietei e que o obriguei a anunciado Le Corbusier, perturbando discípulos e teorizadores.

120 121
Liberta, também, de preconceitos face à História, do sentimento
de ruptura modernista, atenta ao solitário percurso kahniano, ao
primeiro Stirling, à ironia de Venturi, ou às escolas italianas, de
que o eco espanhol aqui chegava.
Só depois da vertiginosa experiência do SAAL, esse momento de
criação colectiva, voltámos à pesquisa paciente sobre o estirador,
de forma continuada e em complemento à carreira de docente.
Não sem que os discretos anos de prática anteriores (os nossos
e os de outros) tivessem influído no trabalho de coordenação e,
por ele, na evolução do SAAL, de potencialidades agora entre
parêntesis, mas a acenar-nos permanentemente.
A partir de 1977 executámos, entre outros, o projeto do Lar
da Terceira Idade de Baião, nele se extraindo clara imagem
dos cruzamentos de eixos e de linguagens, como tínhamos
experimentado na casa não construída da Praia das Maçãs 06 Grupo de docentes durante uma viagem de estudo, em 1982. Da esquerda para
a direita: Carlos Prata, Luísa Brandão, Alberto Carneiro, Beatriz Madureira, Alexandre
de 1973.
Alves Costa e Augusto Amaral.
Continuámos a delimitar secamente o construído do natural,
perpassando no nosso trabalho as leituras e as imagens dos novos Fui convidado para leccionar no Curso de Arquitectura da ESBAP
italianos, de Rossi ou Gregotti. em 1972. Vivi como docente os claros momentos do imediatamente
Quanto à influência vinda da escola, ou do meio profissional antes e do pós-25 de Abril, ambos de intensa vocação política no
próximo, ou da cultura portuguesa, tenho a esperança que tenha interior da Escola. Foram os anos da chamada ‘recusa do desenho’,
existido, mais sólida do que simples formas. como, depois, foram os da sua ‘urgência’.
Falo disto porque fui sempre arquitecto. Os docentes, pressionados na escolha de temas de carácter social,
E como docente, fui tendo consciência da dificuldade de vão permitir que se resvale para uma série de equívocos.
organização de uma ‘escola de arquitectura’, que deveria continuar Acreditando ou não nas antigas premissas sociais do Movimento
a estruturar-se, como dissemos, a partir do contacto direto com Moderno, os estudantes desejavam simular um ‘exercício progressista’.
a prática profissional e a simultânea aplicação de bases teóricas Clamando contra o carácter ‘idealista’ dos inquéritos, reivindicavam
rigorosas que apoiassem o mergulho nessa prática. Tudo isto sem um conhecimento científico da realidade, só possível através de uma

Fragmentos ilustrados sobre a ‘Escola do Porto’ | Alexandre Alves Costa


perda de autonomia e de distanciamento. activa intervenção no sentido da sua transformação.
As sínteses possíveis foram feitas de oscilações e cruzamentos, Mas, como nos disse Oriol Bohigas, “talvez tivesse sido útil relembrar
nunca estáveis ou perfeitamente equilibradas, tendo sido, contudo, a todos os que pretendendo erguer-se contra uma sociedade injusta,
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

indispensável que tivéssemos, em cada instante, uma definição exploradora, em favor de uma classe social desconsiderada e posta à
clara de Escola. margem, imaginando que a arquitectura e as suas propostas seriam
Mas, como disse Álvaro Siza, “não se aprende a desenhar como instrumento para a resolução do problema da habitação, se negava
se enrola um novelo, nem, para desenhar, os conhecimentos à arquitectura a possibilidade de actuar por si própria, de poder
têm número de ordem. São fragmentos de conhecimento que investigar e experimentar no seu campo, isto é levar avante a sua
permitem as aproximações seguras (para uma escola ou para cada única contribuição possível para o progresso”.1
um dos seus participantes), apesar do perigo iminente de não se Aceitando que a estrutura da projectação é de natureza
conseguir integrá-los numa prática global. Será o desenvolvimento fundamentalmente formal, teria sido importante fundamentar
dessa capacidade o essencial do ensino.” teoricamente a crítica dos trabalhos, não “em termos de intenções
manifestadas ou temas escolhidos antes da sua realização, nem
sublinhando aspectos instrumentais ou consequentes, mas sim nos dá

1 BOHIGAS, Oriol. Contra una arquitectura adjetivada. Barcelona: Seix Barral, 1969.

122 123
união entre ideologia e linguagem”, nas palavras de Vittorio Gregotti.2
Utilizando, embora, argumentos mais recentes entre nós, poder-
-se-ia ter chamado a atenção para a incorrecção metodológica que
representou autonomizar a análise, num processo faseado, que
culminava com a chamada ‘formalização’, chamando a atenção
para que análise/informação e projectação desenvolvem processos
simultâneos e interdependentes, correndo-se o risco de, não sendo
assim, não se investirem os dados recolhidos e, assim, transformar
aquela em gesto puramente formalista.
Nesta situação confusa, com os docentes arriscados ao epíteto
difamante de reaccionários, quando estavam apenas a não ser
professores de arquitectura, querendo ser mestres de um ensino
que tinha acabado, para não serem tecnocratas num ensino que não
chegou a começar, felizmente, para salvaguarda da má-consciência de
todos, a linha dominante foi a recusa do desenho e da sua história.
Fernando Távora, na época mestre tutelar e único, nunca “cedendo à 07 Desenho de Augusto Gomes, 1938.

distinção temática e prévia”, manteve-se teimosamente no campo do Entretanto, muitos souberam ir para os lugares que mais tarde
desenho e aí centrou a sua serena acção pedagógica, sempre prevenida se movimentaram, dando-lhes a eles e à Escola, uma colocação
pela ideia de que “não pode haver uma sólida prática sem uma sólida privilegiada nos processos que se seguiram ao 25 de Abril, onde
teoria”. aquelas dúvidas, ou algumas, puderam ser esclarecidas.
“A ideia de que um arquitecto deve ser sobretudo um lápis maravilhoso A situação interna na Escola agravava-se, começando a aparecer
é uma ideia ultrapassada, pois não há lápis maravilhoso se não houver acusações de compromisso de alguns professores com as lutas
cabeças maravilhosas.” estudantis.
O ‘abrigo individual’ foi o tema eleito, espécie de corpo estranho, em A mobilização conseguida nos finais de 1973 e as formas mais
tempo tão conturbado. E, assim, se projectava criativamente, não só o avançadas de luta, alicerçadas, sobretudo, na recusa da guerra
próprio bem-estar, mas, também, o direito de escolher o seu próprio colonial, encontraram respostas violentas por parte de um regime
consumo, o qual não pressupõe uma renúncia ao mundo, mas sim a a desfazer-se
afirmação de que se está a assumir e a comunicar aquilo que somos e – vigilantes, policiamento, processos disciplinares e expulsão de

Fragmentos ilustrados sobre a ‘Escola do Porto’ | Alexandre Alves Costa


como queremos relacionar-nos. docentes.
E continuando com Gregotti, na publicação que citamos, “este passo A tentativa de repor a Reforma de 57 teve como música de fundo a
da necessidade ao desejo, não é luxo de uma sociedade da abundância, “Grândola, Vila Morena”.
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

pode ser a afirmação daquele que está empenhado em combater a O 25 de Abril encontrou a maioria dos estudantes da Escola nas
repressão que jaz em nós próprios e na estrutura da nossa sociedade.”3 zonas populares e degradadas do Porto, cujo projecto de renovação,
Com a consciência de que o homem necessita de imaginar a sua no âmbito do SAAL/Norte, veio a ser entregue, na maioria dos
sobrevivência, e de que toda a sobrevivência sem esforço imaginativo casos, a arquitectos por eles indicados.
é indigente, o exercício foi um gesto criativo que concedeu valor O SAAL foi, no Porto, uma acção concertada e coordenada. A
revolucionário à imaginação. experiência vivida em comum cimentou as alianças, os pontos de
Tive o privilégio de ser seu assistente neste tempo de intenso debate, vista, o método. Era a Escola que estava no terreno. As intervenções
de recuperação da memória e da história, da necessidade de fixar tiveram ar de família, e porque não, se era a continuidade da cidade
meios e modos para uma nova pedagogia. o objectivo? Os sistemas de referência foram os mesmos, no
Obviamente, subsistiram muitas dúvidas. objectivo comum de dignificar a cidade de que se tomava posse
com a parcimónia dos primeiros povoadores.
“A Modernidade foi domesticada”, na expressão feliz de Nuno
2 GREGOTTI, Vittorio, Il territorio dell´architettura. Milão: Feltrinelli, 1966.
Portas. 08 Desenho de Le Corbusier.
3 GREGOTTI, Vittorio, op. cit.

124 125
E aqui se foi profundamente português, buscando os critérios assim, um vínculo não imediato, antes conceptual, entre a obra e
sobretudo na eficácia da resposta e não na artisticidade ou no domínio a tradição. Pelo contrário, em Wright, encontramos a vontade de
activo e pessoal da linguagem. E todos levaram a sério a sua acção. preencher a obra de significados, fazendo que as imagens suscitadas
No debate interno que se intensificava, os poucos que ficaram se consolidem de um modo unívoco e fechado.
consideraram que não era afastando da realidade os estudantes e os De facto, só agora, e ajudado por Carlos Martí Arís, concluo que
professores, retirando-lhes o compromisso imediato que desejavam o nosso vínculo com a tradição deixara de ser imediato para ser,
com o movimento popular, que se desenvolvia impetuosamente, que sobretudo, conceptual.
se resolveriam as contradições e equívocos que permaneciam no curso
de arquitectura, desde há anos. Conscientes da autonomia disciplinar
da arquitectura, condição de interdisciplinaridade, repudiando a
sectorização de uma visão analítica do seu ensino, defendeu-se que o
envolvimento no real seria ponto de partida essencial para superação
dos referidos equívocos.
Correndo conscientemente o risco de dissolução da Escola – mais
vale perdê-la do que não tê-la –, acreditámos que a pressão da urgência
das necessidades reais e a perspectiva de viabilizar a sua resolução
forçariam a síntese desejada neste momento histórico único para
entender a arquitectura a partir da prática e uma vez que a ‘recusa do
desenho’ significaria, agora, recusa da intervenção social. Momento 09 Demolição das Torres do Aleixo, Porto.
único, pois, para estabelecer uma metodologia consonante com o
A chamada institucionalização da democracia representativa,
processo real de desenho que todos queriam finalmente desencadear.
acarretou em Outubro de 1976 a extinção do SAAL e a sua
Foi uma aposta perigosa, mas eficaz, uma vez que a reestruturação
integração nas Câmaras Municipais.
do curso foi sentida por todos como necessidade imperiosa para
Escrevi, eu próprio, sobre esse recuo fatal para a democracia
salvaguarda da estratégia pedagógica que ia sendo definida. A ‘recusa
participativa:
do desenho’ transformou-se na ‘reivindicação do desenho’ e, em clima
“Para os arquitectos não deve estar próxima a concretização das suas
de grande empenhamento, criaram-se condições para o lançamento
propostas, nem sequer a conclusão das iniciadas. Arquitectos que,
do processo de reestruturação do curso de arquitectura Este processo,
dramaticamente, não podem utilizar as novas ferramentas adquiridas
não resultando de aspectos imediatos da realidade, mas pressionado
justamente no momento em que a sua crise histórica parecia

Fragmentos ilustrados sobre a ‘Escola do Porto’ | Alexandre Alves Costa


por eles, foi construído sem improviso, suportado pelo antigo e
ultrapassada e a Arquitectura encontrava, por não se ter demitido, a
reassumido património pedagógico acumulado na Escola do Porto.
sua dimensão autêntica.”
O SAAL, nas palavras de Jorge Figueira, foi o seu epicentro, mostrando
Juntos na Escola e separados na vida profissional, a saída que cada um
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

uma perturbante fé na arquitectura.4


encontrou, no particular de cada cliente, recolocou cada um perante si
Esgotada a ‘terceira via’, rompendo, em definitivo, com o ‘problema
e perante uma realidade em processo intenso de fragmentação.
da casa portuguesa’, a Escola reinventou o racionalismo e o seu
Recobrado o ânimo na artisticidade da acção criativa, o método
progressismo tardio e poético e, como na arquitectura clássica, deu-se
adquirido e a sua moral permitiram, sem perversão, o, de novo,
maior importância à estrutura do que à matéria.
manuseamento da diversidade das linguagens.
Talvez por isso, ainda no ano passado, me emocionou mais a
Um método e uma moral são o bastante para sustentar uma
Farnsworth, de Mies van der Rohe, do que Taliesen, de Frank
cumplicidade, além do mais, desejada!
Lloyd Wright. A Farnsworth constitui uma composição abstracta,
Na disciplina de Projecto do 2º ano, agora retirados do terreno do
desprovida de todos os ingredientes figurativos que caracterizam a
real, inventámos uma didática, o Alberto Carneiro e eu próprio. E
arquitectura tradicional. Sem dúvida, para Mies, a casa é sempre um
tenho que falar dos dois, porque Desenho e Projecto construíram
símbolo do habitar, do assentar do homem na terra, estabelecendo-se,
juntos um programa e um esquema para o seu desenvolvimento, uma
espécie de discurso do método. Não distinguíamos áreas específicas,
4 FIGUEIRA, Jorge, Reescrever o Pós-Moderno. Porto: Dafne Editora, 2011 avaliávamos juntos, e a nota era comum.
126 127
O que quisemos foi testar a instrumentalidade do desenho na Sentíamos que este teria um carácter próprio, que vinha sendo
projectação, e quando criticávamos o processo dos alunos, sabíamos sedimentado desde Marques da Silva, passando por Carlos Ramos e,
bem o que era ilustrativo e acrítico e o que era operativo, no sentido posteriormente, no vazio da sua ausência, por Távora, Lixa Filgueiras,
da formalização da ideia ou da descoberta de alternativas. Arnaldo Araújo e, mais tarde, Álvaro Siza.
Também nos interessou tornar o conceito, no caso a caso de cada E quem sabe, pelos cinco novos agregados e os outros, bem poucos,
aluno, um processo consciente a construir-se simultaneamente. que restaram da ressaca da chamada ‘anarquia do PREC’, sempre
Imaginámos que a sua definição podia ser desenhada através da mantidos na sombra por uma história heróica que nos ficou da
formalização de um modelo teórico, abrindo o caminho da utopia, tradição do ensino da escola primária!
considerando-a não como proposta para um desenho futuro, mas São dele, Álvaro Siza, as palavras dramáticas que, nesta circunstância,
sim como uma estratégia do desejo. proferiu numa reunião geral de docentes:
Criando uma estrutura nova, liberta de condicionamentos, “Aqui declaro que associo a imagem caluniada do Curso de
realizando uma acção contrária às fórmulas do racionalismo Arquitectura do Porto à imagem caluniada do 25 de Abril. E que
utilitário, estávamos a desenhar uma oposição crítica/simbólica aos reservo os momentos públicos de autocrítica para depois de outras
status quo opressivo. Os alunos gostaram da ideia, que lhes permitia tarefas mais urgentes. A passividade ou falta de convicção só poderão
ou, até, obrigava, a encontrarem-se consigo próprios e com o seu conduzir a um ensino inspirado numa provinciana caricatura de
próprio projecto de futuro. Assim explicámos que o conceito, para tecnocracia.”5
o arquitecto/artista, é desenho. Começaram a chamar-nos ‘escola do Porto’ e quiseram impor-nos
No desenvolvimento do trabalho, com o mesmo tema, agora com um estilo. Já que temos uma escola, convinha, dizíamos sorrindo,
um programa e um contexto urbano consolidado, o modelo teórico que discutíssemos se queremos ter um estilo. E, já agora, convinha,
funcionava como critério crítico e ajudava os alunos a entenderem também, que clarificássemos a malha de consensos particulares que,
as necessárias limitações e reduções que o embate com o real quer queiramos ou não, constituímos. Isto antes que o façam por nós.
determinava. Assim, obrigados a manterem-se fiéis ao modelo teórico, E dizia o crítico de arte Cerveira Pinto:
os alunos tinham sempre consciência do caminho da coerência a que “Se é possível detectar ecletismo e até conceitos arquitectónicos
não podiam fugir, senão enganando-se a si próprios. neobarrocos na ‘Escola do Porto’, eles opõem-se, porém, a toda a
Foi uma extraordinária experiência de Desenho e Teoria da tradição fachadista e decorativista oriunda da arquitectura religiosa
Arquitectura. A História também ia entrando, e todos entendemos a sua dos séculos XVII e XVIII, bem como do gosto provinciano que
operatividade no entendimento do real em permanente transformação. depois daquele período marcou invariavelmente a cultura portuguesa,
Alguns alunos consultaram psiquiatras porque o confronto consigo contrapondo como que uma alternativa culta ao que noutros tempos

Fragmentos ilustrados sobre a ‘Escola do Porto’ | Alexandre Alves Costa


próprio é, por vezes, doloroso. Considerámos isso um bom sinal. esteve demasiadamente subordinado aos exageros formalistas
O Alberto Carneiro foi um companheiro insubstituível. e demagógicos de sucessivos poderes reaccionários. Ou seja, o
Em 1980 escrevi o meu primeiro texto sobre o ensino da protestantismo estético desta ‘escola’ pede uma análise cuidada,
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

arquitectura, obrigado pela necessidade de realizar provas públicas sob pena de ignorarmos algo decisivo à sua compreensão, isto é:
na Escola Superior de Belas Artes, para obtenção do título de que ela pertence a uma corrente estética de fundo, dialecticamente
Professor Agregado. articulada com a história e unida ao magma antropológico do Norte
O grupo que realizou provas, nessa altura, foi constituído, além de de Portugal.”
mim, pelos colegas Cristiano Moreira, Domingos Tavares, Manuel Este desafio deu-me coragem para continuar com base nas minhas
Correia Fernandes e Pedro Ramalho. reflexões que não foram, ainda, a solicitada análise cuidada.
A Escola estava a ser atacada do exterior pela tentativa de Na unidade ou diferença em relação ao todo nacional ou nas
uniformização tecnocrática dos curricula das então duas únicas diferenças locais, a nós interessa-nos salientar e até determinar as
escolas de arquitectura, Porto e Lisboa. Decidimos dissertar sobre a especificidades, fazendo corpo com a reacção à igualitarização pela
nossa própria história, defendendo a autonomia de decisão sobre a imagem e pelos modos de vida que a imagem suscita, se é verdade
natureza do ensino que, embora em transformação, nunca desejou
entrar em ruptura com o passado.
10 Capa da Dissertação para obtenção 5 Álvaro Siza, texto não datado, cuja leitura fiz a seu pedido, numa reunião geral de
do título de Professor Agregado. docentes.

128 129
que estes anos se caracterizam pela predominância das ideologias da O ensino do projecto tinha retomado a sua linha, mais consonante
comunicação e pelo desenraizamento de todos os modos de vida com o processo normal, talvez menos poético, mas mais próximo
‘nacionais’ ou ‘locais’. de uma metodologia, diria ‘profissionalizante’. Foi o que costumo
E, com argúcia e imaginação, marcam-se datas para o princípio da chamar a nossa ‘crise de eficácia’, consequência imediata da
‘escola do Porto’ e para o seu fim. recente integração na Universidade. Talvez por isso, pressionado
Vamos lá a ver, tivemos a ODAM e Lisboa o ICAT, que em pelo professor Fernando Távora, aceitei tomar conta da disciplina
conjunto dominaram o Congresso de 48 e defenderam os mesmos recém-criada de História da Arquitectura Portuguesa.
princípios: o Inquérito à Arquitectura Popular foi nacional e contra Costumávamos fazer um jogo, no restaurante Casais, em São Lázaro,
a ‘casa portuguesa’; em Lisboa e no Porto se reagiu contra o ‘estilo onde o Arquitecto Távora avaliava o grau dos meus conhecimentos.
internacional’; nas duas cidades se buscaram outras referências nas Tinha que identificar, a partir de um desenho na toalha de papel do
europas e nos lugares; em ambas se voltou ao Moderno e em ambas restaurante, de que obra se tratava e, se possível, autor e cronologia.
se debateram hipotéticas superações para as novas realidades. Tenho guardado um único desses desenhos que costumo mostrar
Tudo isto se passou, no entanto, com enormes diferenças, resultantes aos alunos para lhes explicar o que é ter cultura arquitectónica.
de factores que estão fora do controlo do arquitecto e que o A dele, evidentemente.
condicionam e lhe marcam os gostos. Viajei por Portugal, tentando, através da leitura do passado, refazer,
Com que conflitos, cedências e compromissos se construiu, afinal, de testemunho em testemunho, os itinerários percorridos nessa
a nossa Escola? Para tentar responder, começámos a escrever a apaixonante caminhada, não em busca do tempo perdido, mas ao
nossa própria, e altamente reveladora, história. E todos os anos a encontro do tempo que ficou vivo para sempre, entranhado numa
contávamos aos novos alunos, como numa espécie de acto iniciático. hipotética maneira de ser português. Quer dizer, na maneira como os
Os nossos escritos para a Agregação tinham dado o pontapé de saída. portugueses adaptaram os modelos teóricos que aqui chegavam pelas
Em 1983 foi aprovado o novo curriculum do Curso de Arquitectura, mãos dos mestres estrangeiros.
agora integrado na Universidade. No mesmo ano, o texto de recusa O nosso Projecto do 2º ano continuou, afinal, na História mantendo
de participação na Exposição do Pós-Modernismo constituiu sinal a centralidade do desenho na percepção dos processos e das
da nossa forte convicção. Ainda nesse ano fértil, organizámos um obras, projectando retrospectivamente o que íamos encontrando,
encontro sobre o Ensino da Arquitectura, durante quatro dias. já classificado e colocado no tempo certo pelos historiadores que,
Foram convidados Gregotti e Bohigas, tendo ficado a meu cargo o com a sua insubstituível sabedoria, nos impediam os desvarios
Historial do Curso de Arquitectura da ESBAP. interpretativos a que somos atreitos, muitas vezes por ignorância, ou
No ano seguinte iniciei as aulas da nova disciplina de História da por excesso criativo.

Fragmentos ilustrados sobre a ‘Escola do Porto’ | Alexandre Alves Costa


Arquitectura Portuguesa. Utilizámos a História para construir o Projecto, agora utilizávamos
o Projecto para construir uma História diferente. E nessa
inter-relação permanentemente recíproca, nunca abandonámos
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

a nossa disciplina, nem descurámos a aspiração à formação em


Arquitectura dos nossos estudantes.
Anotámos algumas ideias pessoais que, longe de serem consensuais,
são parcela de um debate alargado que abrange, hoje, todas as
escolas de arquitectura.
A história da arquitectura para futuros arquitectos deve ser o
estudo das condições e dos processos de desenho que produziram
as obras, objecto de análise e crítica, exemplos concretos em que se
aprende o ‘como’.
Esta perspectiva informativa e formativa deve servir, prioritariamente,
para qualificar o desenho de cada um, como projecção estruturada
11 António Francisco Lisboa, o Aleijadinho, Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, do pensamento.
Congonhas, Minas Gerais, Brasil, 1796/1805.

130 131
Sem negar a indispensabilidade dos historiadores, esta visão operativa IMAGENS
não pode deixar de ser mediada por arquitectos, porque só eles podem
saber integrar o conhecimento histórico no método de projectar.6 01 Desenho de Álvaro Siza.
02 Fotografia do autor, 1965.
03 Piscina de Marés, 1966.
04 Fernando Távora no túmulo de Clitemnestra em Micenas.
05 Lar de Idosos de Baião, 1977.
04 Grupo de docentes durante uma viagem de estudo, em 1982.
05 Desenho de Augusto Gomes, 1935. Ilustração da capa de “A Sala nº 6” de Anton
Tcheckoff. Porto: Vasso Rodrigues Editor, 1938.
06­  Desenho de Le Corbusier.
07 Demolição das Torres do Aleixo, Porto.
08 Capa da Dissertação para obtenção do título de Professor Agregado.
09 António Francisco Lisboa, o Aleijadinho, Santuário do Bom Jesus de Matosinhos,
Congonhas, Minas Gerais, Brasil, 1796/1805rto.
10 Fernando Távora e Manuel Graça Dias, Convento de Cristo, Tomar.

12 Fernando Távora e Manuel Graça Dias, Convento de Cristo, Tomar.

Advertência7

E o futuro? É com alguma irreprimível e irónica dúvida que o olho.


A verdade é que, caros ouvintes, agora leitores, o que eu mais desejava
é que fosse menos do passado que questionei que o do futuro que
desejava ter aberto e onde, estou certo, estamos órfãos de um sentido
que mereça esse título. Saudosos dele seguramente.

Fragmentos ilustrados sobre a ‘Escola do Porto’ | Alexandre Alves Costa


Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

6 Interrompemos este texto, uma vez que, entretanto, foi várias vezes publicado
noutras circunstâncias. Alguns extractos foram, do mesmo modo, reutilizados, sem
identificação da sua origem.
7 Inspirado em LOURENÇO, Eduardo, “Revisitação da mitologia Anteriana”,
prefácio a Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos Últimos Três Séculos, de Antero de
Quental. Lisboa: Tinta da China, 2008.

132 133
Projecto, casa, escola.

Orlando Gilberto-Castro

O ensino da arquitectura parece defender – e, em grande parte,


promover – um tipo de actividade específica, uma certa forma
de entender o ofício – a actividade em si, o trabalho –
e a profissão – o estatuto, o valor intelectual e social.
Trata-se de uma visão identitária, auto-referenciada,
que nos posiciona no mundo e nos dá o conforto de saber
quem somos e o que significamos. E o que somos e o que
significamos é eminentemente projecto. Projecto (que já
foi) de atelier, projecto de sala de aula; projecto de escola,
projecto da escola.
Ano após ano, a escola (com ou sem itálico) abraça, inclui.
É receptiva do sangue fresco e motiva-o a não desistir.
Fornece-lhe as ferramentas necessárias para o trabalho que exige;
não o ensina a fazer um corte: dá-lhe a destreza para o descobrir
por si próprio. Parecendo não oferecer nada, cria condições
transversais de trabalho sob pressão, de gestão da frustração,
aplicáveis sempre, úteis sempre. Tem uma ideia clara de ensino
e aprendizagem e aplica-a: é mãe e educa.
Ano após ano vamos, então, tornando-nos mais filhos
da casa, tornamo-nos mais educados, num processo que,
sem adolescência, não deixa de ser marcado pelas dores
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

do crescimento. Com mais ou menos nódoas negras,


vamos avançando; com mais ou menos horizonte,
temos até liberdade para algumas viagens. Em pleno

Projecto, casa, escola. | Orlando Gilberto-Castro


Erasmus, nesse desvio em potência, nesses novos quartos
por que passamos, reparamos, não sem algum espanto,
no quanto crescemos. Reparamos que aprendemos a andar,
a correr; que nos safamos mesmo quando os obstáculos
são novos; que sabemos fazer projectos em diferentes
circunstâncias, que somos bons nisso. Ficamos fascinados
por outros paradigmas de educação e pomos lá um pé, mas sempre
com o outro do lado de cá: sabemos que o aliciante é perigoso
e que um salto no vazio pode não ter retorno.

134 135
Vemo-nos ao espelho e pensamos que já somos adultos.
Alguns de nós sabem aí que, mais do que qualquer outra coisa,
querem sair de casa. Acelerar sem rodinhas, pôr-se à prova.
Alguns de nós percebem, aí, que a escola, a mãe, quer os filhos
debaixo da asa. Não somos adultos ainda. Não sabemos o que
queremos; a roupa parece-nos curta e faz comichão, mas é melhor
do que andar ao frio. Por isso ficamos: é quentinho e seguro, aqui.
Por isso se torna redundante confabular sobre projectos.
Trate-se de uma academia de dança em Matosinhos – em dez
painéis A1 com plantas, cortes, alçados e pormenores construtivos –
ou de uma capela para casamentos-expresso em San Borondón
– numa única planta num duplo A0, com condições, vícios
e diagramas: a relação intelectual estabelecida com o acto projectual
é, na sua essência, a mesma. As circunstâncias podem mudar,
mas não se pode desaprender o aprendido, pôr em paralelo
aprendizados. Não podemos escolher os nossos pais: somos da escola
do Porto. Para o bem e para o mal. Ser na escola, apesar da escola
foi, é, experiência de algo que parecia incompleto. E era-o, de facto.
Continua a sê-lo.
De espaço privilegiado para a inquietação e descoberta, a faculdade,
essa entidade e instituição, ganha medo, escolhe o futuro dos seus.
A mãe protege, mas a mãe castra. A relação de, para, com, na
Arquitectura é, pois, apenas a possível. Daí que dos últimos anos
se possa dizer que passaram sem grande convicção. Ou antes,
passaram distantes. Convictamente distantes de uma experiência
colectiva – de uma família – que ficou por integrar.
Tentativas de dar sentido a esse espaço que, à custa da distância,
se fez sobrar, o Erasmus como o Prática[s] – também ele uma espécie
de pequeno Erasmus interno – apoiam a busca de entendimento
desse estar alheio, dão-lhe conteúdo. Não necessariamente
nomeável: corpo de um discurso, de uma identidade, em formação.
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

E por isso não quero falar mais de projectos. Não assim, não aqui.
Quero falar de arquitectura, de uma arquitectura que não esta;
de uma casa que não conheço ainda, mas para cuja busca estou preparado.

Projecto, casa, escola. | Orlando Gilberto-Castro


Como se as malas nunca tivessem sido desfeitas.

136 137
Bairrismo/Universalidade:
A Escola do Porto

Jorge Figueira

1|

Retomando algumas pistas sobre a ‘Escola do Porto’ que fui


desenvolvendo ao longo dos anos, e no pressuposto de uma relação
estreita entre o ensino na Escola Superior de Belas Artes e a prática
01 Álvaro Siza, Deserto de Marrocos, 1967. Arquivo Alexandre Alves Costa.
profissional do conjunto de arquitectos envolvidos, entre o início
dos anos 1960 e meados dos anos 1980, avanço com uma possível
Lembro-me bem da apresentação no Auditório Fernando Távora síntese.
desta conferência, escutada com atenção por muita gente, amigos, Não é possível falar da Escola do Porto sem mencionar as
colegas – e os estudantes sempre especiais de arquitectura. Passaram características da gente do Porto. A Escola do Porto é indissociável
dez anos e, no essencial, ainda acredito e persevero naquilo que da cultura do Porto. É uma escola bairrista, o que se manifesta numa
disse e mostrei. Segundo as minhas contas de então, a Escola do particular auto-confiança. Há aqui um interiorizado sentimento de
Porto existiu num sentido agudo e perturbante entre a Casa dos pertença. Bairrismo significa acreditar que é deste ponto do mundo
Combatentes (1967-1970) e a Casa de Ovar (1980-1985), isto é, que a verdade se escreve desde sempre.
quando toma em mãos um racionalismo poetizado que ninguém Com esta matriz, a Escola do Porto decorre de uma burguesia
imaginava possível nem imaginável; entre o abandono da ‘terceira esclarecida e progressista. Autónoma face a Lisboa, capital
via’ (Casa dos Combatentes) e uma arquitectura de playtime (como do Império. Não é uma activa resistência crítica, é um estado
escreveu Rafael Moneo a propósito do edifício da FAUP) que se vê natural. Podemos traçar uma genealogia de gente do Porto com
na citação explícita de Adolf Loos na Casa de Ovar. esta cultura: Fernando Távora, a escritora Agustina Bessa-Luís, o
Antes e depois há muita arquitectura, bela e promissora, mas é nesses realizador Manoel de Oliveira, Álvaro Siza, Alexandre Alves Costa,
cerca de vinte anos (1965-1985) – e a Piscina das Marés devia estar entre outros. O ADN deste bairrismo esclarecido integra histórias

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incluída, claro – que a Escola do Porto é fulgurante, inesperada, de modernidade já antigas e enraizadas: por exemplo, as relações
decisiva. Alguns amigos reclamaram simpaticamente comigo no final: privilegiadas com Inglaterra à conta do vinho do Porto; a construção
“então o que somos agora?”. do Palácio de Cristal em 1865; a Escola de Belas Artes como espaço
Agora somos uma indústria cultural, como não há outra em Portugal de resistência ao regime ditatorial de Salazar; um activo e pioneiro
(excepto a criada por Fernando Pessoa) cujo alcance ainda agora cineclubismo.
começou. Não tem mal nenhum – as escolas, como as flores, não É a partir desta condição que a Escola do Porto constrói o
duram sempre. apelo universal da sua arquitectura. Não se trata exactamente de
Já muito escrevi depois deste ensaio sobre a nossa Escola e os seus cosmopolitismo. Mas este bairrismo, levantado por uma forte
extraordinários arquitectos. E continuarei a escrever. Mas é a partir crença nos avanços da arquitectura moderna, permite de facto dar
daqui que eu penso, e é aqui que acabou. um salto no tempo e construir uma universalidade.

Jorge Figueira
Universidade de Coimbra

138 139
2| da música. No moderno, Távora tende a enfatizar a promessa de
uma ordem, mesmo se o ‘equilíbrio’ que é visado pelas vanguardas
Esta construção precipita-se quando Carlos Ramos, director da é ‘dinâmico’ e, em alguns casos, como no construtivismo, o
Escola de Belas Artes do Porto, convida, em 1950, Fernando dinamismo se sobrepõe notoriamente ao equilíbrio. Távora ama
Távora, para ser assistente. Picasso e Le Corbusier naquilo que neles é reminiscência do génio
Ao longo dos anos 1950, Távora participa nos últimos quatro renascentista: relançamento de uma escolástica através de uma
CIAM, e é responsável por um conjunto de obras de grande afirmação individual de pura inteligência e talento.
importância no quadro português. Em particular, o Mercado da
Vila da Feira (1953-59), o Pavilhão de Ténis (1956-60), a Casa de 3|
Ofir (1957-58), demonstram um manuseamento das conquistas do
Movimento Moderno com aclimatações locais, à procura de uma Mesmo com uma genealogia de homens superiores como Marques
sociabilidade alargada para a arquitectura. Távora tinha já publicado da Silva, Carlos Ramos e Fernando Távora, há um momento em
O Problema da Casa Portuguesa, em que defende uma ‘terceira via’ que a Escola Superior de Belas Artes ganha asas e transforma-se
como resposta à pressão do regime no sentido da adopção de na ‘Escola do Porto’. Em que o bairrismo toca no seu oposto, a
um portuguesismo oficial, e à consciência do esquematismo que universalidade.
significava uma importação acrítica do racionalismo. A definição Entre os anos 1960 e os anos 1980 emerge uma ‘escola’ no
de uma ‘terceira via’ permitia gerir o que é entendido como válido sentido cultural: um grupo que converge com uma determinada
da tradição em diálogo crítico com o que é moderno. As obras sensibilidade e cuja acutilância transcende a própria instituição que
referidas significam a passagem directa desta teoria à prática, como o origina. Sem dúvida que Távora prepara esse momento, de modo
se essa operação fosse simples. Esta demanda é ainda sublinhada extraordinário, e será sempre o seu maior guardião.
com a participação de Távora no ‘inquérito à arquitectura regional Diria, no entanto, que a Escola do Porto faz-se para lá do projecto
portuguesa’ publicado como Arquitectura Popular em Portugal, em ‘culturalista’ de Távora, em nome de um ‘progressismo’ que se inicia
1961, onde é responsável pelo levantamento na Zona 1 – Minho. em meados dos anos 1960. É portanto um produto dos anos 1960
Como se percebe, o vínculo de Távora com o seu tempo é enorme, como território de possibilidades, de fantasias, de imaginação temporal.
superando as limitações culturais de um país cerceado por uma Neste processo surgem derivações particulares de temas que
ditadura a que se acrescenta a sua condição periférica na Europa. E definirão a prática do ensino, como dizia, em relação directa com a
é este salto de inteligência, essa mundivisão não deslumbrada que prática profissional.
vai criar o quadro cultural de onde emerge a Escola do Porto. Em primeiro lugar, no plano instrumental, aquilo que podemos
Távora conhece Le Corbusier em 1951 e apresenta o ‘inquérito chamar a reinvenção do esquisso.
à arquitectura regional’ a Salazar, em 1958. Desde a sua origem Há uma singularidade no desenho-esquisso que a Escola do Porto
familiar antiga e mítica até à paixão com que absorve o mundo recria nos anos 1960/1980, entre o traço firme – clássico – de

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moderno, Távora é o caso de um conservador que é seduzido Távora, e a leveza – moderna – de Álvaro Siza. Que será partilhado
pelo magnetismo de figuras como Picasso, Le Corbusier ou Frank por gerações de estudantes e arquitectos, como um salvo-conduto.
Lloyd Wright, e tenta fazer sentido dessa atracção. O seu trajecto Este esquisso – à ‘mão levantada’, panorâmico, analítico e sintético –
é marcado pelo cruzamento de uma ruralidade assumida com a é uma chave fundamental de compreensão da Escola do Porto. Há
sedução por experiências vanguardistas. Mas Távora nunca desiste quem utilize o desenho de modo extraordinário no Movimento
do bom senso que o impede de ser um seguidor acrítico e não Moderno; Le Corbusier, desde logo. Mas a síntese que é feita no
desiste de ser português mesmo em risco de colisão com a natureza Porto é singular porque integra a representação naturalista das
progressista da arquitectura moderna. preexistências, à maneira dos croquis da Viagem do Oriente de Le
Este dispositivo cultural é fundamental para entender a matriz da Corbusier, até ao desenho fantasioso de Oscar Niemeyer. É um
Escola do Porto. Távora é fiel a uma cultura clássica que transporta esquisso conservador no seu rigor académico e progressista na
para dentro dos instrumentos e objectivos da arquitectura moderna. sua temática. Sintetiza um realismo tipicamente pós-guerra e um
A ideia de ‘equilíbrio harmónico’ e de ‘harmonia’, a que se refere renovado ‘vanguardismo’ na transformação da cidade. Procura uma
várias vezes, remete para um plano convencional até no campo integridade sufocante ‘do puxador da porta à cidade’; é o veículo

140 141
para uma leitura integral – panorâmica e detalhada – da cidade internacionais da obra de Siza, escreve que a sua arquitectura está
que não se distingue da arquitectura e da arquitectura que não se “fora de moda”.1 Este ‘fora de moda’ revela o anacronismo de onde
distingue da cidade. parte, mas não reflecte ainda a temporalidade longa que saberá
Em particular, Siza é capaz de introduzir num desenho de feição alcançar.
modernista, picassiano, os detalhes pobres dos sítios, as pedras e Siza foi acrescentando à matriz da arquitectura moderna, as
os muros; uma anotação detalhada. Depois, mais difícil ainda, modificações que ocorreram na cultura arquitectónica, por vezes
consegue fazer passar este desenho para o projecto e para a obra, fortemente críticas desse legado. As aspirações e conquistas
que assim cria uma ‘escola’. do ‘período heróico’ dos anos 1920/1930 são sucessivamente
Em segundo lugar, no plano cultural, aquilo que podemos chamar reinventadas com elementos ‘locais’, pré-modernos, desvios
uma re-invenção do racionalismo, particularmente entre 1967 e 1984, ou clássicos, criando a impossibilidade de uma categorização clara, e
entre a Casa da Avenida dos Combatentes, no Porto, e a Casa de portanto a sensação de permanentemente estar ‘fora de moda’.
Ovar, de Álvaro Siza. A arquitectura de Siza ocupa o lugar da ‘crise’, e com isso ganha o
É um racionalismo reinventado, poético, que define crucialmente a tempo que se vai revelando cada vez mais rápido; isto permite que
Escola do Porto, e corresponde a um contributo singular, a Escola do Porto tenha uma longevidade que vai escapando às
perturbante na sua legitimidade tardo-modernista. flutuações sazonais da arquitectura.
Deste ponto de vista, tudo começa no momento em que Siza Quando Siza escreve “não aponto um caminho claro; os caminhos
se dá conta, em meados dos anos 1960, que a ‘terceira via’ está não são claros”,2 inscreve a ‘crise’ como um estado natural,
esgotada, como mais tarde repetidamente afirmará. Nesse momento aceita caminhar dentro desse paradoxo. Ao ser permanente e
desaparecem os elementos convencionais ou tradicionais nas suas intransponível, a ‘crise’ é uma ‘segunda pele’ com que projecta.
obras e começam a ser introduzidos, reinstalados, dir-se-ia, elementos O que lhe permite continuar a fazer perguntas, tentando evitar a
de origem racionalista: coberturas planas; ênfase na repetição; no fixação de respostas, que é o mecanismo das modas.
vazio; variação extremada entre aberturas e planos cegos. Neste sentido, Siza insere-se no contexto de nomes maiores da
Neste quadro, o programa SAAL (Serviço Ambulatório de Apoio cultura portuguesa: no processo de ‘heteronímia’ com que Fernando
Local) é de facto o epicentro desta viragem racionalista, porque Pessoa desdobra a sua voz; ou no conceito de ‘heterodoxia’ do
cria o quadro político e não só o gosto para que uma arquitectura ensaísta Eduardo Lourenço: “o homem é uma realidade dividida.
despojada, económica e radical possa surgir com sentido. E é aqui O respeito pela sua divisão é a Heterodoxia”.3 A arquitectura de Siza
que se dá a maior contribuição do Porto para a cultura arquitectónica deixa-se tomar pelo espaço do ‘outro’; permite o diálogo entre
contemporânea. Este processo e as imagens que cria impressionam forças antagónicas; divide-se; regressa; recupera a sua própria
a Europa do sul, e depois, mais lentamente, outras latitudes. história para depois derivar. Para compreender a sua obra é por
Porque a questão é que com esta inesperada deriva racionalista, o isso importante seguir o número de vozes que vai convocando, os
grupo do Porto demonstra uma fé na arquitectura que é perturbante, ramos genealógicos que abre ou retoma.

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em tempos de crise das veleidades modernas. Podemos ainda dizer É a uma Europa anterior ao domínio do inglês como língua franca
que é também neste quadro de revisitação livre do racionalismo que Siza se refere sempre: Alvar Aalto, Adolf Loos, Le Corbusier,
que a obra de Eduardo Souto de Moura começa a nascer, depois J.J.P. Oud, Bruno Taut. Ou, no início, por conselho já longínquo, de
acrescentada de outras legitimidades e de outras fontes. Bruno Zevi, Frank Lloyd Wright. Enquanto é dominada por uma

4|
1 GREGOTTI, Vittorio, “Architecture recenti di Àlvaro Siza”, in Controspazio, 9
Setembro 1972 in SIZA, Álvaro, Profesión Poética. Barcelona: GG, 1988 [1986],
Aquilo que centralmente define a Escola do Porto, e que é uma
p. 187-188.
contribuição inesperada e fulminante no plano internacional, como
2 SIZA, Álvaro, “Oito Pontos” [1983] in Álvaro Siza: Obras e projectos (ed. LLANO,
dizia, é a ruptura com a dicotomia tradição versus modernidade, um
Pedro e CASTANHEIRA, Carlos). Santiago de Compostela: Centro Galego de Arte
tema central da cultura arquitectónica a partir dos anos 1950.
Contemporánea/Electa, 1995, p. 65.
E essa superação tem em Álvaro Siza um protagonista particular.
3 LOURENÇO, Eduardo, “Prólogo sobre o espírito de heterodoxia” [1949], in
Em 1972, Vittorio Gregotti, um dos primeiros divulgadores
Heterodoxia: I e II. Lisboa: Assírio Alvim, 1987, p .6.

142 143
pulsão ‘moderna’, a obra de James Stirling é também uma referência poéticos; o projecto de Caxinas (1970-72), de Siza, que denota uma
para Siza. Ainda nos anos 1970, experimenta a América pela mão aproximação venturiana ao contexto, mas paradoxalmente reusa
de Robert Venturi: Complexity and Contradiction in Architecture permite imagens da arquitectura de Adolf Loos; o Banco de Oliveira de
olhar para a realidade sem a activação de uma censura imediata. Siza Azeméis (1971-74), de Siza, resultado de um encontro improvável
usa essa abertura para incluir mais elementos, para se aproximar, entre uma linguagem abstracta e a procura de um meticuloso acerto
para se redefinir. contextual; a Casa Beires (Póvoa de Varzim, 1973-76), de Siza, que
O ‘espaço’ é ainda para Siza o ‘protagonista’ da Arquitectura, por sujeita um programa doméstico à evocação de uma explosão; a Casa
referência à ideia de promenade architecturale, embora sem as veleidades em Caminha (1971-73), de Sergio Fernandez, uma conciliação em
clínicas ou higiénicas do projecto moderno. O ‘espaço’ na sua obra montagem, entre a tradição, no carácter vernacular do exterior, e o
é um campo de forças ordenador por integração de elementos racionalismo, no open space do interior; a Casa Marques Guedes, em
díspares, eruditos ou contextuais, funcionais ou ficcionais. O chão Caminha, (1973-74) de Alexandre Alves Costa e Camilo Cortesão,
pode não ‘dizer’ a mesma coisa que o tecto; o tecto ‘abre-se’ das onde é notório o despojamento e uma caracterização ‘crua’ do
paredes; o espaço resultante é assimétrico, cubista, segue modelos espaço; o Bairro da Bouça (Porto, 1ª fase, 1973-77), de Siza, a
de expansão, contracção, simultaneidade. Mas a modernidade de arquitectura dos anos 1920-30 em revisita acrescentada de uma
Siza funciona também noutros planos: o processo de ‘associação abordagem contextual; o Bairro de S. Vítor, (Porto, 1975), de Siza,
livre’ de ideias que se estabelece nos seus projectos permite recordar, no contexto do programa SAAL, a revisitação vanguardista com a
como escreve William J. R. Curtis, a “análise de sonhos de Freud”:4 manutenção de muros preexistentes, um exercício de duplas ruínas;
“pontos em contacto que se condensam em novas unidades”.5 o Bairro da Lapa, (Porto, 1975) de Alfredo Matos Ferreira, também
A inexistência de ‘caminhos claros’ parece levar a um exercício por no contexto SAAL, um racionalismo de vocação urbana e dimensão
vezes quase lúdico de ‘colisão’ de modelos opostos, já anotado por monumental; a Malagueira (Évora, com início em 1977), de Siza, a
Kenneth Frampton.6 cidade a par da arquitectura e o racionalismo em cruzamento com
temas da ‘arquitectura mediterrânica’; o Lar de Terceira Idade,
5| (Baião, 1977-82), de Alexandre Alves Costa, José Luis Carvalho
Gomes, José Manuel Soares, António Corte Real, simultaneamente
Como vimos, o ‘culturalismo’ de Fernando Távora está em sintonia revivalista dos anos 1920 e incluindo temas rossianos dos anos 1970,
com o contexto internacional da época. A ‘terceira via’ é um modelo executando a passagem do racionalismo para o neo-racionalismo;
de conciliação e civilidade, quando as respostas modernas começam o Mercado de Braga (1980-84), de Eduardo Souto de Moura, onde
a ser curtas para o trabalho que urge fazer no pós-guerra. é testado inauguralmente o cruzamento da ‘gramática’ de Mies van
Só que a Escola do Porto, no essencial, não se revelará conciliadora. der Rohe com as lições de Aldo Rossi – o fim deste racionalismo
Tendo aprendido com Távora a necessidade do sítio, do contexto, em reinstalação intuitiva e programática porque contém já muita
da atenção à topografia, quer esticar a corda, ensaiar um regresso manipulação e colagem; a Casa de Ovar (1981-85), de Siza, onde

Bairrismo/Universalidade: A Escola do Porto | Jorge Figueira


Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

vanguardista, tensionar a história na direcção do racionalismo. a citação expressa da arquitectura de Loos significa talvez que o
Este progressismo tardio e poético, que Siza desenha e um grupo projecto tentativamente procurado pelo esquisso acabou – o carácter
alargado partilha, faz toda a diferença. explícito desta obra significa o virar de uma página.
Nesse sentido, gostaria de brevemente alinhar um conjunto de
obras que reflectem este itinerário: a já mencionada Casa na 6|
Avenida dos Combatentes (Porto, 1967-70), de Álvaro Siza, uma
volumetria dura, sem telhado, em betão, com alguns detalhes A partir dos anos 1990 e até ao nosso tempo, o quadro cultural
altera-se profundamente. Podemos falar de um pós-Escola do
Porto e, para lá do percurso de Álvaro Siza, que dá as suas voltas
4 CURTIS, William J.R., “Notas sobre la Invención”, in Álvaro Siza 1995-1999, El
particulares, apontar dois movimentos fundamentais: o regresso
Croquis n.º 95. Madrid: 1999, p. 25.
da História, em particular da História Portuguesa; e o regresso à
5 Freud citado por William J.R. Curtis, idem, ibidem.
arquitectura moderna agora num plano despolitizado e despoetizado,
6 Cf. FRAMPTON, Kenneth, “In Praise of Siza” in Álvaro Siza Works & Projects 1954-
como modo de cumprir uma aspiração de modernidade nunca
1992 (ed. SANTOS, José Paulo dos). Barcelona: Gustavo Gilli, 1993, p. 16-19.

144 145
verdadeiramente cumprida, e tendo em Eduardo Souto de Moura o Fernando Távora, cruzando com inteligência e sensibilidade os
protagonista celebrado. temas dos anos 1950, alarga o discurso inscrevendo o Porto no
O regresso da História é uma necessidade teórico-prática; não só quadro internacional, mas o grupo que protagoniza os anos 1960 e
como assegurando ou recriando alguma estabilidade cultural, em 1970 quer estreitá-lo, e é nesse duplo movimento que a Escola do
tempos cada vez mais voláteis, mas também reflectindo o quadro Porto ganha densidade.
profissional onde o trabalho no âmbito patrimonial cresce. Ao pessimismo cultural de Távora patente no livro Da Organização
Nesse sentido, diríamos que Távora regressa como referência, já do Espaço, que publica em 1962, uma outra sensibilidade responde
que esteve sempre lá; é uma espécie de tecto protector. No plano com um optimismo revolucionário que tem a sua forma definitiva
académico, a disciplina de História da Arquitectura Portuguesa no curto período do SAAL. Neste desencontro surgirá a Escola do
que Alexandre Alves Costa começa a leccionar nos anos 1980 Porto, criando uma matriz que ainda hoje perdura como superação
na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto é uma (impossível) de uma condição periférica
das mais centrais e substantivas do ensino de “arquitectura”
em Portugal. Trata-se de uma disciplina com uma componente Nota:
prática que permite a reconstituição e reinvenção de modelos que
decorrem de exemplos históricos, desenhados e projectados por Este texto tem como base a conferência Bairrismo / Universalidade:
gerações de estudantes. A arquitectura portuguesa é lida fora do A Escola do Porto que proferi no dia 1 de Março de 2012, no âmbito
contexto ‘patriótico’, mas com afecto face à circunstância, ao sítio, do ciclo Prática[s] de Arquitectura que teve lugar na Faculdade
à desenvoltura interpretativa que por vezes demonstra. de Arquitectura da Universidade do Porto. Posteriormente fui
Por outro lado, como dizia, a arquitectura moderna regressa já convidado pelo VIII Docomomo Ibérico para apresentar uma
fora do quadro mítico do racionalismo e próxima, voluntária ou conferência sobre a ‘Escola do Porto’, o que fiz com o título Seis
involuntariamente, de uma lógica de produto cultural, fora ou dentro Apuntes sobre la Escola do Porto, em Málaga, no dia 29 Novembro de
de um mediatizado lifestyle. Na sua componente mais reiterativa e 2013, tendo como matriz a conferência na FAUP. É esse texto que
formal, a obra de Eduardo Souto de Moura recua à querela dos aqui se apresenta, no essencial e no espírito próximo do que disse
anos 1950-60 entre ‘orgânicos’ e ‘racionalistas’, e recupera o lado nessa tarde inesquecível no Auditório Fernando Távora, perante
perdedor para a contemporaneidade. A sua obra é o retomar de uma plateia atenta, crítica e amiga.
uma história interrompida na ‘revisão do Moderno’ dos anos 1960,
depois precipitadamente sepultada nos anos 1980, e que por isso
nunca chegou a impor-se em Portugal. Desse ponto de vista, a
Escola de Hotelaria de Portalegre (2003-2008) é tão fidedigna que
é quase uma acusação cultural: é isto que devia ter acontecido, algures
por volta de 1950. Representa por isso uma reconexão com uma

Bairrismo/Universalidade: A Escola do Porto | Jorge Figueira


Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

arquitectura mítica, sentida como uma ausência. Sem contingências


nem acidentes nem desculpas: o tipo; o decoro; a abstracção;
a construção. A obra de Souto de Moura ocupa esse espaço,
preenche esse vazio, e ajusta as contas com uma modernidade que
por largo escapou aos portugueses. Ao fazê-lo com tanta convicção
tocou num nervo global: o desejo pela modernidade que a pós-
modernidade libertou.
Estas são as duas vias mais performativas dos últimos vinte anos,
num contexto pós-Escola do Porto, mas evidentemente em relação
estreita e articulada com o passado recente: a ‘História da Arquitectura
Portuguesa’, ensinada e praticada; e este preenchimento de uma
aspiração à arquitectura moderna que persegue os arquitectos
portugueses, particularmente a norte de Portugal.

146 147
Living in Berlin
Notas de um processo projetual
Investigação e projeto elaborados no âmbito da unidade curricular Living in Berlin, lecionado por
Jean-Philippe Vassal, na Universität der Kunst Berlin, durante o semestre de verão de 2013.

António Pedro Faria


Marisa Oliveira
Tiago Ascensão

O projeto parte de uma pesquisa elaborada a partir dos edifícios


desenhados e construídos a propósito das IBA (Internationale
Bauausstellung) de 1957 e da IBA 1987 na cidade de Berlim,
bem como a análise das tipologias do quarteirão berlinense,
presentes em zonas como Prenzlauer Berg. O objetivo deste
projeto é, partindo dessa análise, propor um sistema de habitação,
assente numa unidade habitacional, que combine o maior número
de qualidades espaciais possíveis, adaptando-se à cidade e aos seus
múltiplos modos de vida.

Living in Berlin. Notas de um processo projetual | António Pedro Faria, Marisa Oliveira, Tiago Ascensão
A proposta teórica é aplicada a um contexto real, onde o confronto
entre os nossos objetivos e os problemas espaciais apresentados
pelo lugar gera uma nova resposta, enquanto possibilidade para um
futuro contexto habitacional em Berlim.
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

148 149
1 | Investigação

A investigação inicia-se com a procura das diferentes qualidades


espaciais das tipologias analisadas. Partindo da análise formal
dos projetos, são retiradas as lógicas e soluções arquitetónicas,
pondo de lado uma procura pela sua mimetização formal,
tornando-as abstratas.
Foram selecionados doze casos de estudo de habitação coletiva,
pela pertinência das qualidades neles encontradas, agrupados
em três temas:

Estrutura

Liberdade estrutural
Frei Otto, IBA87
Sistema de laje/pilar, deixando as plataformas livres para a
auto-construção de cada usuário/habitante, sob coordenação
do arquiteto.
Grelha geradora de apropriação livre
Fritz Jaenecke e Sten Samuelson, IBA57 – A. Mott e H. Schönin,
Thomas Wisbecker Haus (1982), IBA87

Living in Berlin. Notas de um processo projetual | António Pedro Faria, Marisa Oliveira, Tiago Ascensão
Grelha estrutural capaz de se adaptar e transformar em múltiplas
divisões e usos.
Expansão estruturada Estrutura
Dietrich von Beulwitz, IBA87
Desenho de uma estrutura respondendo às necessidades do
presente e antecipando possibilidades para expansão futura.

Possibilidade/liberdade de escolha

Possibilidade de escolha – “viver interior ou exterior”


Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

Oswald Mathis Ungers, IBA57 – Paul G. R. Baumgarten, IBA57


Possibilidade de expandir o espaço do habitar interior para o
espaço exterior.
Expansão temporária
Oscar Niemeyer, IBA57
Possibilidade de ter um espaço de uso temporário comum
ao edifício.
Autonomia
Alexander Klein, IBA57
Unidade habitacional com célula com capacidade de autonomia. Possibilidade de escolha

150 151
Organização espacial da unidade de habitação/unidade do habitar

Elementos estruturantes
Paul G. R. Baumgarten, IBA57 e Hans Müller, IBA57
Definem o espaço e dão a possibilidade de que o mesmo se ocupe
de diversas formas.
Núcleo infra-estrutural
Alvar Aalto, IBA57 – Otto H. Senn, IBA57
O núcleo do bloco de habitação como centro infra-estrutural.
Espaço central unificador da célula do habitar
Alvar Aalto, IBA57
Espaço comum central, onde todos os espaços da habitação
se relacionam.
Exterior invade o interior
Alvar Aalto, IBA57 – Alexander Klein, IBA57
Desenho do interior através de espaços exteriores.
Variação volumétrica
Pierre Vago, IBA57
Variação volumétrica consoante o uso de cada espaço.

Living in Berlin. Notas de um processo projetual | António Pedro Faria, Marisa Oliveira, Tiago Ascensão
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

Recorrendo ao uso de diagramas, as qualidades são representadas


individualmente. Em seguida essas qualidades são agrupadas
por temas. Finalmente esses diagramas síntese são fundidos,
formalizando os princípios de uma unidade de habitação.
O processo que partiu de uma investigação das qualidades de cada
projeto, através de elementos formais, agrupa-os e conceptualiza-os
para, com base na abstração potenciada pelos diagramas, gerar
e propor um sistema arquitetónico que potencie o máximo de
qualidades no habitar.

152 153
2 | Sistemas

A sistematização dos princípios espaciais escolhidos no desenho da


unidade propôs um sistema flexível e moldável na sua forma física
e na apropriação do espaço.
Formalizou-se uma unidade base à qual se poderiam somar
mais subunidades. A unidade base, de pé-direito duplo, estaria
no centro da composição e seria composta por uma série de espaços
comuns, interiores e exteriores, que serviria como espaço nuclear
das restantes subunidades.

Possibilidade de Usos

As subunidades, mesmo que necessitando do espaço central


para funcionarem com todas as funções necessárias ao habitar,
teriam entradas autónomas, havendo a possibilidade de funcionarem
como partes integrantes da habitação ou como espaços de trabalho
independentes. Esta independência permitiria que os utilizadores
destas habitações se organizassem de formas variadas, não se
cingindo à estrutura tradicional de família, o que é uma prática
comum em Berlim.

Living in Berlin. Notas de um processo projetual | António Pedro Faria, Marisa Oliveira, Tiago Ascensão
Contração / Expansão

Procurou-se que cada uma das unidades, tanto a base como a


subunidade, contivessem em si mesmas espaços que se pudessem
subdividir em mais espaços caso a necessidade o exigisse, podendo
desta forma ser mais ou menos densas conforme a vontade
e possibilidade do habitante.
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

154 155
Possibilidades Tipológicas 3 | Tipologias urbanas: teste/simulação

À unidade base seria possível adicionar um máximo de quatro As diferentes unidades habitacionais investigadas faziam parte
subunidades, nos dois pisos contíguos a cada um dos limites de três tipos de tipologias urbanas: quarteirão, bloco de
longitudinais desta base. Sendo possível subdividir estas subunidades habitação e torre, as quais foram testadas com a unidade de
em dois quartos independentes, permitir-se-iam tipologias de um habitação encontrada.
a oito espaços.. O módulo-tipo é pensado para usufruir apenas O quarteirão típico de Berlim é composto por várias parcelas que
de uma fachada, de forma a tirar proveito da profundidade do lote. se aglutinam. Além da frente de rua, o interior dos lotes é densificado,
Foram ainda previstas e desenhadas adaptações tipológicas para utilizando o pátio como dispositivo de atravessamento, iluminação,
gavetos e para lotes com pouca profundidade onde os módulos ventilação, arborização e zona comum. Devido à profundidade
poderiam usufruir de duas fachadas livres. dos lotes, as Gartenhaus desdobram-se e vão definindo pátios,
grande parte das vezes em consonância com os lotes vizinhos.
“The Berlin Dwelling” A ideia da máxima densidade habitacional, com o máximo
de qualidade, permite uma rentabilização do espaço e uma
franca relação com a cidade. Soma-se o facto destas estruturas
permitirem uma grande flexibilidade com a possibilidade
da fixação de uma multiplicidade de usos e funções.
A ideia de percurso e de organização do vazio foi explorada
na integração da unidade num quarteirão abstrato com as medidas
do quarteirão mais denso da Europa, em Prenzlauer Berg. Iniciou-se
uma exploração do equilíbrio entre a unidade e o espaço que

Living in Berlin. Notas de um processo projetual | António Pedro Faria, Marisa Oliveira, Tiago Ascensão
esta teria disponível. Desde um pátio para cada módulo, ao pátio
mínimo que suportaria o maior número de módulos, passando
por pátios compridos, multiplicando a rua, ou então à organização
de grandes pátios, foram testadas diferentes hipóteses,
e percebendo-se os defeitos e as qualidades de cada solução, ao
nível de privacidade, luz, ventilação, qualidade do espaço livre,
qualidade do rés-do-chão, vista. Deu-se especial importância
à quantidade de céu que é possível ver na unidade de habitação
e como este céu pode ser explorado e integrado na unidade.
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

156 157
4 | Introdução no contexto real “Porque hoje se intervém em SITUAÇÕES EXISTENTES,
na cidade estabelecida, é necessário reorganizar, expandir a
Após testar o sistema de uma forma mais abstrata, passou-se à sua partir do interior, densificar, mas sem sacrificar nenhum dos
introdução em contexto real. O lugar escolhido foi um quarteirão múltiplos POTENCIAIS PREEXISTENTES: vazios, natureza,
em Neukölln, entre a Neckarstraße e a Werbellinstraße. A zona tem áreas construídas, vida – uma aproximação à cidade atual deve
uma multiplicidade de funções, nomeadamente um supermercado, levar-nos a estar na cidade, no chão, não apenas a deslizar sobre
uma escola, edifícios de escritórios, edifícios habitacionais, zonas ela, assim como a AGIR.
de estacionamento, centros de logística e unidades fabris desativadas. Isto significa:
Foi tido em conta o contexto urbano na procura de uma forma - olhar as coisas a partir de dentro, com perspicácia, ESTAR
de integração das unidades no espaço não construído, procurando DENTRO
por um lado a máxima densificação e por outro manter as - pensar no urbanismo numa perspetiva contrária, partindo do
qualidades existentes. mais pequeno para o maior.
A intervenção procurou manter todas as árvores existentes,
definir um espaço urbano com qualidade, manter as zonas O ARQUITETO olha a cidade e constrói a cidade através
de estacionamento existentes e dar protagonismo à fachada da dos meios providos pelos espaços pequenos; o espaço
unidade fabril desativada. do HABITANTE; o espaço de cada um dos habitantes;
Os novos quarteirões adaptaram-se à métrica da unidade e o seu segue (antecipa ou permite) o espaço dos seus movimentos,
espaço interior de pátio definiu-se de acordo com o tamanho que participam, no final, no fazer do espaço da cidade.
do quarteirão e com a procura de uma máxima densidade. Ao mesmo tempo – simultaneamente e inseparavelmente –
A combinação do espaço vazio necessário com aquele existente qualidade de vida, proximidade, relacionamento e vizinhança,
nas propriedades vizinhas foi outra das premissas. A concordância espaço individual e coletivo têm que ser introduzidos no

Living in Berlin. Notas de um processo projetual | António Pedro Faria, Marisa Oliveira, Tiago Ascensão
com o estudo efetuado sobre as diferentes formas de realizar pátios, construir da cidade.
assim como a integração de diferentes tipologias urbanas, permitiu Encorajar o construir dos espaços a partir das existentes
integrar algumas das soluções estudadas em contexto real. e heterogéneas situações, traz a prática da arquitetura para
Na adaptação do modelo ao contexto real, foi ainda possível a composição cinematográfica e assim estimula uma forma
adicionar algumas qualidades ao modelo existente, nomeadamente: totalmente diferente de dirigir o projeto que se aproxima
- Aceder ao o pátio elevado diretamente a partir dos dos módulos ao método de um cineasta: ‘thoughts begin by conceiving
do piso mais baixo; a fragment of a possible world in order to confront it with
- Adaptar o jardim de inverno nos módulos do último piso, reality, with experience’ – Jean Luc Godard”1
para usufruto da cobertura;
O processo permitiu desenvolver uma metodologia de análise
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

e sistematização das qualidades do existente para, a partir daí,


o potenciar e contribuir com uma resposta sensível à densificação
da cidade.

1 VASSAL, Jean-Philippe, “Program, Manifest – Living in Berlin”, ficha de trabalho da


unidade curricular Living in Berlin, Universität der Kunst Berlin, 2013. Tradução livre.
Proposal
158 159
O Ensino Moderno da Arquitectura na Escola do Porto:
fundamentos para a Escola de Coimbra

Gonçalo Canto Moniz

A Escola de Coimbra é um espaço de aprendizagem da Arquitectura


construído no seio da Faculdade de Ciências e Tecnologia e da própria
Universidade de Coimbra a partir de 1988, cujo centro geográfico está
no Colégio das Artes, mas cuja identidade e fundamentos têm uma
dimensão nacional, entre o Porto e Lisboa.1 Sendo o primeiro curso
de Arquitectura fundado numa universidade pública, a sua orientação
01 Colégio das Artes, Coimbra,
inicial adoptava a via tecnológica e apostava na especialização, para Século XVI.

O Ensino Moderno da Arquitectura na Escola do Porto: fundamentos para a Escola de Coimbra | Gonçalo Canto Moniz
explorar uma formação científica.2 Deste modo, rompia com a
formação generalista de matriz cultural e artística seguida quer na
Escola do Porto, quer na Escola de Lisboa. No entanto, no primeiro
ano de funcionamento do curso começou a desenvolver-se uma certa
tensão, por parte dos alunos e dos professores, entre a orientação
científica e a orientação culturalista, que se transformou no motor
para a construção da identidade do curso de Coimbra. De facto, esta
tensão tem sido mais construtiva do que inibidora, revelando-se,
desde então, em diversos aspectos do quotidiano escolar.
Primeiro, o descontentamento de alunos e professores obrigou o reitor
da Universidade de Coimbra a convidar professores da Escola do
Porto para constituir uma comissão instaladora.3 Esta iniciativa levou
para Coimbra Fernando Távora, Alexandre Alves Costa e Domingos
Tavares que, por sua vez, convidaram professores de Lisboa, como
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

Raul Hestnes Ferreira, Manuel Tainha, Gonçalo Byrne, Manuel


Graça Dias, António Reis Cabrita ou Vítor Figueiredo. Segundo, a
dificuldade em dialogar com as disciplinas técnico-científicas levou

1 As expressões Porto e Lisboa referem-se aos cursos de Arquitectura das Escolas de


Belas Artes do Porto e de Lisboa, respectivamente, designadas de Escolas Superiores
de Belas Artes a partir de 1950.
2 FCTUC, “Proposta de Criação da licenciatura em Arquitectura na Faculdade de
Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra”, 15 Jan. 1988. (Assinado pelo
Presidente do Conselho Científico, Professor Doutor António Ribeiro Gomes).
Arquivo FCTUC, cedido por Rosa Bandeirinha.
3 COSTA, Alexandre Alves, “Primeira anotação do curso de Arquitectura de
Coimbra”, in Joelho, n.º 3. Coimbra: 2012, p. 31.

160 161
os alunos, ao longo de cerca de dez anos, a lutar pela reformulação político que envolvia as Escolas, mas, fundamentalmente, conhecer
dos planos de estudos, centrando-se na Arquitectura e aproximando-se e problematizar o debate pedagógico, o quotidiano das Escolas.
das Ciências Sociais e Humanas. Terceiro, o compromisso entre as Este aspecto era também o menos explorado nos trabalhos de
Ciências e a Arquitectura tem motivado os professores e os alunos referência realizados anteriormente e poderia permitir debater
para o desenvolvimento de actividades de investigação, através de as interpretações até aqui realizadas sobre a identidade da Escola
projectos individuais e colectivos, com o objectivo de conciliar a do Porto e da Escola de Lisboa, sendo esta última muito pouco
teoria e a prática na formação do arquitecto. estudada. Mas a maior valia desta abordagem, na nossa opinião,
Coimbra foi assim crescendo entre realidades por vezes antagónicas, residia na oportunidade de estudar em paralelo as duas escolas,
por vezes complementares: o Porto e Lisboa, a Universidade e as como espaços de implementação de uma política educativa
Belas-Artes, as Ciências e as Humanidades, a Teoria e a Prática. Nestes para a formação do arquitecto. A partir deste posicionamento
compromissos procurou constituir-se como terceira via, já que era metodológico considero que o mais interessante é perceber
também a terceira escola pública. Uma das suas principais forças tem as transformações no processo de ensino/aprendizagem que
sido a construção de um espaço onde convergem individualidades ocorreram nas Escolas de Belas-Artes do Porto e de Lisboa com
portadoras de formas distintas de pensar, fazer e ensinar arquitectura, o objectivo de reformar o sistema Beaux-Arts, paradigma secular
mas dialogáveis. É assim um colectivo constituído por professores de da formação do arquitecto. De facto, a construção de um novo
diferentes gerações com uma atitude clara, explícita e reconhecível. paradigma de ensino é um dos centros de preocupação dos
No entanto, é também claro para nós que esta visão não é só nossa, arquitectos modernos desde os CIAM, ao ODAM e ao Congresso

O Ensino Moderno da Arquitectura na Escola do Porto: fundamentos para a Escola de Coimbra | Gonçalo Canto Moniz
ela foi-nos proposta, desde o primeiro momento, pelos professores de 48.
do Porto, Fernando Távora, Alexandre Alves Costa e Domingos Esta batalha que ocorre quase simultaneamente em todas as
Tavares4 que aqui procuraram construir um lugar de encontro entre escolas de arquitectura internacionais é movida por professores e
o Porto e Lisboa, ou, como referia Paulo Varela Gomes, um lugar alunos com orientações distintas ao longo do período que baliza
“entre Coimbra e o Mundo”.5 a arquitectura moderna (1920-1970).7 Em Portugal, não podemos
deixar de considerar que a acção pedagógica nas Escolas de
1 | Entre o Porto e Lisboa: O Ensino Moderno da Arquitectura, Belas-Artes estava também condicionada pela política educativa
Hoje e de obras públicas do Estado Novo, que, no entanto, foi tendo
ao longo da sua vigência diferentes orientações. O debate sobre o
O estudo realizado sobre “A Reforma de 57 e as Escolas de Belas- ensino Beaux-Arts vai construindo um outro paradigma, o ensino
Artes em Portugal (1931-69)” onde se pretende defender a tese do Moderno, expressão que sintetiza o ensino que emerge neste
“Ensino Moderno da Arquitectura”6 decorre desta plataforma de período. Assim, esta tese é construída a partir de um conjunto
entendimento entre mundos aparentemente opostos. Porque, se alargado de documentos e acontecimentos que testemunham,
Coimbra era o resultado do encontro entre a Escola do Porto e a ilustram e objectivam os processos de transformação do ensino
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

Escola de Lisboa, interessava compreender melhor o que unia e o Beaux-Arts no ensino Moderno, com epicentro na denominada
que separava estas duas escolas e, principalmente, que formação Reforma de 57. Esta reforma é particularmente interessante porque
tinha recebido esta geração de professores, formada entre os anos ela gerou debates que ainda hoje atravessam o sistema de ensino
quarenta e os anos sessenta. da Arquitectura, como as dicotomias entre: as disciplinas artísticas
Neste contexto, importava não só apreender o debate cultural e e as disciplinas científicas; as disciplinas teóricas e as práticas: o
professor-profissional e o professor-investigador; a profissão e a
investigação; o sistema belas-artes e o sistema universitário.
4 Esta ideia de Escola está bem presente nas exposições realizadas por Alexandre
Neste sentido, podemos reconhecer neste acontecimento o debate
Alves Costa e Domingos Tavares em Coimbra, sob o tema “A minha Escola”, fixadas
gerado pelo plano de estudos que criou o curso de Coimbra e
posteriormente no número 3 da revista Joelho.
até o debate sobre a Reforma de Bolonha. Assim, compreender o
5 GOMES, Paulo Varela, “Entre Coimbra e o mundo”, ecdj. 2, Março de 2000, p. 51.
6 MONIZ, Gonçalo Canto, O Ensino Moderno da Arquitectura. A Reforma de 57 e as
Escolas de Belas Artes em Portugal (1931-69). Coimbra: Universidade de Coimbra, 2011. 7 TOSTÕES, Ana; MONIZ, Gonçalo Canto (ed.), Docomono Journal 49. For an architect’s
Tese de Doutoramento (Publicada em 2019 pela FIMS, Edições Afrontamento) training, no. 49. Barcelona: Docomono International, 2014.

162 163
processo da Reforma de 57 pode ser operativo para compreender a importância da “educação colectiva”.8 A opção do júri garante
a situação actual das escolas de arquitectura e principalmente que, durante a década de 30, os estudantes de arquitectura recebam
encontrar outros caminhos para o ensino da arquitectura. tanto no Porto, com José Marques da Silva, como em Lisboa,
Este texto, centrado na Escola do Porto e com algumas pontes com Cristino da Silva, uma formação Beaux-Arts, bem patente
para a Escola de Lisboa, aborda um conjunto sequencial de nos trabalhos dos alunos pelos programas arquitectónicos, pela
temas que constroem e desconstroem o denominado ensino composição clássica da planta, pela utilização dos estilos históricos
Moderno, nomeadamente: a consolidação do ensino Beaux-Arts; nos alçados e pela exploração acrítica do desenho.
a defesa de um ensino colectivo e humanista; o debate sobre o Esta formação revelava-se também no projecto de Marques
ensino Moderno e sua consequente formalização na Reforma de da Silva, de 1934, para as instalações da Escola no Palacete
57; a implementação e contestação da reforma; a realização da Braguinha, onde a Sala do Antigo, à imagem do pátio do Palais
Experiência (1970) como abertura de um novo ciclo. des Études da École des Beaux-Arts de Paris, ocupava o centro
da composição e articulava o pavilhão de Arquitectura com os
2 | Consolidação do Ensino Beaux-Arts de Pintura e Escultura. Contudo, o adiamento deste projecto
impossibilitou Marques da Silva de concluir a sua actividade
O ensino da Arquitectura na Escola do Porto teve um forte vínculo docente com um projecto de escola onde o método de ensino se
com a École de Beaux-Arts de Paris desde a criação da Academia reflectia no espaço de aprendizagem, o que iria reforçar o ensino
Portuense de Belas-Artes, em 1836. Não só se seguiam os mesmos Beaux-Arts na Escola do Porto. Ironicamente, ao nomear Cristino

O Ensino Moderno da Arquitectura na Escola do Porto: fundamentos para a Escola de Coimbra | Gonçalo Canto Moniz
métodos de ensino, como os melhores alunos complementavam a da Silva para professor da Escola de Lisboa, Marques da Silva 04 José Marques da Silva, “Projecto da
sua formação em Paris com bolsas do Estado. Esta orientação foi proporcionou o convite a Carlos Ramos para o substituir como Escola de Belas-Artes do Porto”, Planta
Geral, projecto definitivo, 2 de Maio 1935.
reforçada com a entrada para professor de Arquitectura de José professor da Escola do Porto, após o seu jubileu em 1939.
Marques da Silva, em 1906, recém-chegado de Paris, e depois com
02 Carlos Ramos, “Uma Academia de a sua nomeação para director, o que permitiu influenciar também 3 | Educação Colectiva ou Ensino Humanista
Belas-Artes”, alçados [M1], Concurso as sucessivas reformas do ensino.
para Professor da 4.ª cadeira, Prova de
De facto, em 1932, em pleno debate sobre o modernismo, dois A saída de Marques da Silva da EBAP em 1939 permite renovar
Composição, 1933.
acontecimentos irão condicionar a orientação do ensino nas duas não só a cadeira de Arquitectura, mas também a cadeira de
Escolas de Belas Artes: a reforma do ensino artístico e o concurso Construção e a própria direcção da Escola. Foi o novo director, o
para professor de Arquitectura da Escola de Lisboa. Em ambos, historiador Aarão de Lacerda, que convidou Carlos Ramos para
José Marques da Silva irá desempenhar um papel central. Por a cadeira de Arquitectura e o arquitecto Rogério de Azevedo para
um lado, a Reforma de 1932 propõe um currículo que distribui a de Construção, no âmbito de uma estratégia de consolidação
as disciplinas da cadeira de Arquitectura pelo Curso Especial de do corpo docente, que pretendia dar a cada cadeira um professor
quatro anos, onde se exercita a cópia do clássico, e pelo Curso e assim acabar com o regime de acumulações que vigorou nas
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

Superior organizado pelo método de concursos de emulação, décadas anteriores. Ambos os professores tomaram posse no
privilegiando a formação artística do Arquitecto. Por outro lado, mesmo dia. Carlos Ramos tinha como objectivo dar uma nova
o concurso para Professor de Arquitectura da Escola de Lisboa orientação à cadeira de Arquitectura,9 enquanto Rogério de
é disputado por quatro jovens arquitectos que vinham realizando Azevedo pretendia apenas dar continuidade ao programa da
as mais significativas obras modernistas, Luís Cristino da Silva, Construção iniciado por Marques da Silva.
Carlos Ramos, Cassiano Branco e Paulino Montez. Em resposta A nova orientação de Carlos Ramos para a Escola do Porto estava
a um exercício clássico para Um Palácio da Academia de Belas Artes,
o júri, presidido por Marques da Silva, escolhe o projecto beaux-
8 RAMOS, Carlos, “Algumas Palavras e o seu significado”, Sudoeste, n.º 3, 1935, p.37.
arts de Cristino da Silva, o único que havia sido bolseiro em Paris.
Título completo: “Arquitectura. Um Palácio da Academia de Belas Artes. Memória
03 Maria José Marques da Silva, Em segundo lugar é classificado Carlos Ramos que apresenta
Elucidativa e Justificativa. Prova de Concurso para o Lugar de Professor da 4.ª
“Parque e Esplanada de um Templo de um projecto art déco e uma proposta pedagógica onde sublinha
cadeira da Escola de Belas Artes de Lisboa. 24 Ago. 1933. Algumas Palavras e o seu
Peregrinação”, Planta e perfil. Concurso
de Projecto de Urbanização, Professor significado”.
José Marques da Silva. EBAP, 1937-38. 9 “Escola de Belas-Artes”, in Primeiro de Janeiro, 1 Nov. 1940.

164 165
já expressa no texto de 1933, onde propunha uma “educação Para Ramos, o arquitecto deveria dominar diversos saberes para
colectiva”, e numa palestra aos estudantes de arquitectura de melhor compreender a globalidade do problema arquitectónico,
1935 em que sistematiza “nove pontos para um ensino não associando o edifício a um corpo e procurando dar resposta
enciclopédico”.10 Nesta palestra, Ramos apelava a uma nova aos problemas do contexto físico e social da “região” como
atitude baseada na responsabilização do acto de projecto, na havia designado Alberti em De re aedificatoria (1485). Ramos, tal
coordenação entre cadeiras e entre as Artes e na experimentação como Alberti e Gropius, considerou a arquitectura como “coisa
metodológica, fixadas na sua expressão: “máxima liberdade, mental”,15 conciliando sempre a sua actividade profissional com a
máxima responsabilidade”.11 Esta valorização do aluno no actividade pedagógica e fornecendo instrumentos e métodos para
processo de aprendizagem pressupunha um ensino de carácter o exercício responsável e qualificado da profissão.
humanista e também democrático, influenciado pela tradição
clássica, nomeadamente por Vitrúvio, e pelo debate moderno, É a partir desta base clássica e moderna que, entre 1940 e 1946,
especialmente pela proposta pedagógica de Walter Gropius. Ramos vai repensar na EBAP o Curso Superior, admitindo o
De facto, a proposta de Carlos Ramos aproxima-se dos “doze funcionamento classicizante do Curso Especial, como se pode
pontos”12 identificados por Walter Gropius em 1937 para renovar constatar através dos trabalhos dos seus primeiros alunos,
a Escola de Harvard e mais tarde divulgados na Comissão de Fernando Távora e Octávio Lixa Filgueiras. No Curso Especial,
Educação dos CIAM, constituindo uma espécie de Carta da os enunciados continuam a solicitar soluções que utilizem os
Educação. Gropius valoriza o arquitecto como coordenador, princípios da arquitectura clássica, como o “Templo de Minerva”

O Ensino Moderno da Arquitectura na Escola do Porto: fundamentos para a Escola de Coimbra | Gonçalo Canto Moniz
o teamwork, o método de projecto, a relação entre Arquitectura realizado por Fernando Távora no ano lectivo de 1942-43. 05 Gunther Wilhelm, José Forjaz,
e Construção e a experimentação, sintetizada na máxima do No entanto, o quarto ano aproxima-se já dos objectivos dos Carlos Ramos, Fernanda Alcantara, Roar
Tolness (estudante norueguês), José
pedagogo John Dewey, “aprender fazendo”.13 Esta coincidência concursos do Curso Superior, com programas mais complexos,
Semide (de costas) e Fernando Távora
seria mais tarde reconhecida por Ramos, quando em 1950 traduz relacionados com a prática profissional, como “Uma Residência
(de costas), ESBAP, Curso de Verão da
o texto de Gropius para português com o título, “Plano para para Estudantes” (1944-45). Ao concluir o Curso Especial, em UIA, 1958.
um Ensino da Arquitectura”.14 A proximidade com Gropius era 1945, Távora está consciente dos problemas da Arquitectura e
também visível na sua produção arquitectónica, desde o Liceu de escreve o seu texto fundador, “O Problema da Casa Portuguesa”,
Coimbra (1930-36) ao Pavilhão de Escultura e Pintura da ESBAP mas é em “Primitivismo”, do mesmo ano, que aborda o tema do
(1949-51). ensino, nomeadamente o problema da cópia estampa: “O artista
Já a relação com Vitrúvio traduzia a sua formação clássica e verdadeiro não deve pôr como princípio da sua arte a imitação de
também o seu carácter humanista, na tradição dos arquitectos uma arte passada (…) a cópia é uma base de criação e por isso
renascentistas, como Leon Battista Alberti. Esta proximidade era mesmo deve ser viva, e nunca um fim da arte”.16
sublinhada por Carlos Ramos no início de cada ano lectivo ao fixar No Curso Superior, Ramos recupera a ideia do ‘ensino colectivo’
na sua sala de aula a definição de Arquitecto dada por Vitrúvio. através de um conjunto de propostas que vai fazendo à Escola 06 Fernando Távora, “Uma residência
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

e aos alunos sobre alterações metodológicas na organização para estudantes”, Plantas. Composição
de Arquitectura, 4.º ano, professor Carlos
e funcionamento da cadeira de Arquitectura: lançamento dos
10 RAMOS, Carlos, “Palestra dedicada a todos os alunos da Escola de Belas-Artes de Ramos. EBAP, 1944-45.
enunciados acompanhado por aulas teóricas, leccionadas por
Lisboa” (Junho 1935), in COUTINHO, Bárbara dos Santos, Carlos Ramos (1897-1969):
especialistas; curso extra-curricular de Teoria da Arquitectura;
obra, pensamento e acção. Tese de Mestrado. Lisboa: FCSH.UNL, vol. II, 2001.
11 TÁVORA, Fernando, “Evocando Carlos Ramos”, RA, n.º 0, Out. 1987, p. 75.
12 GROPIUS, Walter, “Training the Architect”, in Twice a Year (ed. NORMAN, 15 KRÜGER, Mário, “Introdução”, L. B. Aberti, Da Arte Edificatória, Lisboa,
Dorothy), no. 2, Primavera-Verão 1939, p. 142-151; Bauhaus: Nova arquitectura, São Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, p. 64. “Neste sentido, delineamento engloba
Paulo, Editora Perspectiva, 1994; “Plan pour un enseignement de l’architecture” e tanto uma coisa mental (in animo et mente) elaborada pela imaginação e um intelecto
“Blueprint for an architect’s training”, L’Architecture d’Aujourd’hui, n.º 28, 1950, p. 69-74. cultos (…), como a sua representação gráfica, realizada por meio de um traçado exacto
13 DEWEY, John, Democracy and Education, 1919; Democracia e Educação, São Paulo, e uniforme e, ainda, um design (propositum) (…)”.
Companhia Editora Nacional, 3.ª edição, 1959. Traduzido por Anísio Teixeira, (1.ª 16 TÁVORA, Fernando, “Primitivismo”, Foz, 6 Fev. 1945. In MENDES, Manuel
edição, 1916), p. 204. (coord.), Fernando Távora, Minha Casa | Uma porta pode ser um romance. Porto: FIMS,
14 RAMOS, Carlos, “Plano para um ensino da arquitectura”, in COUTINHO, op. cit., vol. II. FAUP, UP, 2013.

166 167
Concurso de Urbanização articulado com a Câmara Municipal do Estas transformações na actividade pedagógica são reforçadas na
Porto; trabalhos realizados em casa, acabando com as provas de direcção de Joaquim Lopes (1945-52) pelas actividades culturais e
quarto; trabalhos coordenados entre Arquitectura e Construção. associativas e pela resolução do antigo processo de ampliação da
De acordo com esta orientação, o enunciado do concurso de Escola. Quanto às actividades culturais, a direcção promove um
Grande Composição, “Construções Hospitalares”, lançado por conjunto de palestras sobre urbanismo, algumas homenagens a
Carlos Ramos logo no ano lectivo 1940-41, trouxe à Escola uma antigos professores, publicadas no Boletim Arte Portuguesa, de 1952,
palestra do médico Fernando Magano, onde aborda a concepção e acolhe exposições externas como Moderna Arquitectura Brasileira.
actual de um hospital. Porém, são os trabalhos de Octávio Lixa Estas iniciativas abrem a Escola à cidade e ao debate plural onde
Filgueiras, do final da década de 40, que revelam já uma presença convergem, tanto o moderno Vladimir Alves de Sousa,17 como o
mais sólida de Ramos na Escola, depois de uma breve interrupção conservador Raul Lino.
para leccionar a cadeira de Urbanologia na Escola de Lisboa entre As actividades associativas promovem também o debate cultural na
1946-48. São trabalhos para programas ligados aos equipamentos Escola e na cidade com as Exposições Independentes organizadas
industriais, como “Uma Lavandaria”, onde a presença dos por arquitectos e pintores (Júlio Resende, Fernando Lanhas, 08 Benjamim do Carmo, “Anteplano
modelos brasileiros e de uma forte relação entre as cadeiras de Nadir Afonso, Júlio Pomar) a partir de 1944, onde emergem de Urbanização do núcleo central da
Cidade do Porto”, planta, Abril 1949.
Arquitectura e de Construção é já evidente. percursos renovadores. Mas é através das acções associativas
Urbanologia, professor David Moreira
que os estudantes reivindicam outros métodos de ensino que
da Silva, João Andresen e José Sequeira
Mas a acção de Ramos não se resume à cadeira de Arquitectura, consolidem as experiências pedagógicas promovidas por Carlos Braga. EBAP, 1948-49.

O Ensino Moderno da Arquitectura na Escola do Porto: fundamentos para a Escola de Coimbra | Gonçalo Canto Moniz
estendendo as suas ideias ao debate sobre as cadeiras do curso de Ramos. A criação do Grupo de Estudantes da Escola de Belas
Urbanologia, criado em 1945. Para estas cadeiras, Ramos insiste Artes do Porto (GEBAP), em Dezembro de 1945, com ligações
no convite a professores estrangeiros ou com formação em políticas ao MUD Juvenil, irá agitar o quotidiano da Escola com
Urbanismo e a jovens arquitectos recém-licenciados para o novo a publicação do Boletim GEBAP que reclama novas instalações, a
lugar de assistentes. A Escola convida José Fonseca Llamedo criação de um centro de estudos, uma maior articulação entre a
07 Octávio Lixa Filgueiras, “L” e David Moreira da Silva e este último propõe para assistentes Arquitectura e a Construção (consciência construtiva), a abertura
[Lavandaria], planta geral, planta e Arménio Losa e António Brito e Cunha. Contudo, ao longo do da biblioteca e a realização de debates.
perspectiva, cortes e alçado. Composição
primeiro ano, o contrato de Losa é recusado e Llamedo acaba
de Arquitectura, 26-05-1948 professor
a sua colaboração com a EBAP, sendo substituídos por João Quanto às instalações, o Plano dos Pavilhões para ampliação do
Carlos Ramos. EBAP, (ano 1947-48)
4.º ano, Professor Carlos Ramos, 1948- Andresen e José Sequeira Braga, em 1948. Palacete Braguinha é apresentado por Carlos Ramos em 1949, a
1949. 26-V-1948. Estas cadeiras introduzem o problema do urbano na formação do partir de uma proposta realizada pelos alunos para o concurso
Arquitecto através de exercícios sobre os planos de Urbanização de Grande Composição (1944-45).18 Trata-se de um plano em
para cidades médias, como Matosinhos e Vizela. No entanto, pode aberto e sem um sistema compositivo rígido, capaz de integrar
observar-se que entre 1945 e 1962 os alunos são confrontados arquitecturas diversas, onde se pretende dar resposta ao programa,
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

com a resolução das novas áreas de expansão urbana previstas mas também à integração no jardim e à relação com a cidade. Com
no plano de Almeida Garrett e também com os problemas na a construção do pavilhão de Desenho (projecto de Manuel Lima
zona central do Porto. O trabalho de Benjamim do Carmo, no Fernandes de Sá) em 1950 e do pavilhão de Pintura e Escultura,
primeiro ano em que João Andresen entra para assistente de no ano seguinte, Ramos consegue finalmente associar o projecto 09 [Carlos Ramos], “Escola de Belas-
David Moreira da Silva (16.ª, Projectos e Obras de Urbanização), pedagógico ao projecto arquitectónico e, assim, criar condições Artes do Porto”, Proposta, Planta Geral,
s.d. (1949).
aborda o problema da intervenção nos centros urbanos seguindo para a consolidação do ensino colectivo de carácter humanista e
a orientação de higienização recomendada na Carta de Atenas.
Assim, até ao final da década de 40, a Escola do Porto integra não
17 “A arquitectura brasileira em face da arquitectura contemporânea” (24 Fev.
só uma nova orientação na cadeira de Arquitectura, mas também
1949), palestra do Professor Arquitecto Vladimir Alves de Sousa, da Faculdade
inclui já algumas experiências de articulação da Arquitectura e da
de Arquitectura do Rio de Janeiro, no âmbito da divulgação da exposição Moderna
Construção e ainda oferece uma formação em Urbanismo.
Arquitectura Brasileira, que será apresentada em Lisboa no congresso da UIA de 1953
18 Conselho Escolar da EBAP, “Acta de 30 de Julho de 1949”, Livro de Actas do
Conselho Escolar da EBAP, Fs.69-70. Arquivo FBAUP.

168 169
democrático na Escola do Porto. Este ensino, que designamos de A Reforma de 1950, mesmo sem regulamentação, gerou um
Moderno, será promovido pelos assistentes formados por Ramos certo consenso quer na Escola do Porto, quer na Escola de
na década de 40 e que irão assim dar continuidade ao seu projecto Lisboa, principalmente na orientação pedagógica das cadeiras
pedagógico nas décadas seguintes. de Arquitectura, que iriam integrar informalmente o debate
A acção de Carlos Ramos durante a década de 40 alimentou também gerado no interior da Subcomissão. Em Lisboa, por exemplo,
o debate sobre o ensino que os profissionais e os estudantes tanto Manuel Tainha como Nuno Teotónio Pereira consideram
promoveram no I Congresso Nacional dos Arquitectos19 de que Luís Cristino da Silva foi “perdendo as suas certezas”,23
1948, através das organizações dos arquitectos modernos, o referindo-se naturalmente às certezas do método Beaux-Arts. No
ICAT e a ODAM. Porém, aqui, o debate sobre a formação do Porto, esta atitude teve consequências mais profundas.
arquitecto, devido à atitude conservadora do ensino na EBAL, é
protagonizado pelos arquitectos de Lisboa, nomeadamente por 4 | O debate sobre o Ensino Moderno
Keil do Amaral que, em 1947, já havia lançado o problema nas
páginas da revista Arquitectura.20 Na expectativa de uma iminente saída da regulamentação, o
Esta reivindicação, por uma nova orientação do ensino, leva director Joaquim Lopes e o professor Carlos Ramos implementam
o governo a promover uma reforma através de uma comissão a Reforma oficiosamente ao convidar jovens assistentes, no início
constituída por professores da EBAP, da EBAL e do IST.21 A do ano lectivo 1950-51, para a cadeira de Arquitectura, e ao criar
comissão procura dar ao curso de Arquitectura um carácter o Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo (CEAU). Se os

O Ensino Moderno da Arquitectura na Escola do Porto: fundamentos para a Escola de Coimbra | Gonçalo Canto Moniz
universitário, diversificando as áreas científicas, promovendo novos assistentes permitem a Carlos Ramos reorganizar a Cadeira
a especialização, ampliando o corpo docente com assistentes e de Arquitectura, o CEAU irá promover a actividade científica e
acabando com os métodos beauxartianos da cópia de estampas e cultural, através de uma estratégia de Escola, que a sua nomeação
dos concursos de emulação. As recomendações da Subcomissão, para director em 1952 irá desenvolver.
expressas no Relatório de 1949,22 seriam transpostas para um Os novos assistentes são assim convidados,24 sem contrato,
documento legal, a Reforma de 1950, instrumento que integraria entre os arquitectos que vinham promovendo uma actividade
o novo modelo de ensino na política educativa do Estado Novo. associativa, cultural e ideológica através da participação na
Assim, o novo arquitecto técnico deveria apoiar os planos de ODAM – Mário Bonito, José Carlos Loureiro, Fernando Távora
fomento e a sua estratégia industrializante. e Delfim Amorim – todos ex-alunos de Carlos Ramos ao longo
No entanto, o processo de regulamentação desta Reforma seria dos anos quarenta.25 Na ODAM estes arquitectos confirmaram a
adiado até 1957, condicionando a implementação plena de um sua adesão aos princípios da Arquitectura Moderna, bem patente
ensino moderno através de um currículo também moderno. nas suas obras iniciais expostas no Ateneu Comercial do Porto
em 1951, mas também nos seus trabalhos escolares e no CODA
(Concurso para Obtenção do Diploma de Arquitecto).26
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

19 Sobre o assunto ver TOSTÕES, Ana (coord.), 1.º Congresso Nacional de Arquitectura:
O grupo de assistentes, coordenado por Carlos Ramos,
relatório da comissão executiva, teses, conclusões e votos do congresso. Lisboa: Ordem dos
revoluciona as disciplinas do Curso Especial, abandonando
Arquitectos, 2008, p. 84-91. (1.ª edição, Lisboa: Sindicato Nacional dos Arquitectos,
1948); ROSA, Edite, ODAM: Valores modernos e a confrontação com a realidade produtiva.
Barcelona: ETSAB, 2005. Tese de doutoramento. 23 PEREIRA, Nuno Teotónio, “Cristino, mestre de uma geração rebelde”, in José Manuel
20 AMARAL, Francisco Keil do, “Formação do Arquitecto”, Arquitectura, n. 17-18, os
Fernandes (coord.), Luís Cristino da Silva [Arquitecto] (coord. FERNANDES, José
1947, p. 20. Manuel). Lisboa: FCG, 1998, p. 141. “(…) com o desenlace da guerra, Mestre Cristino foi
21 A Subcomissão de Arquitectura foi nomeada por João de Almeida, director-geral perdendo as suas certezas, deixando de bradar que andávamos por caminhos errados”.
do Ensino Superior e Belas-Artes do ministro da Educação Nacional, António Pires 24 Conselho Escolar da EBAP, Acta de 18 de Janeiro de 1951, Livro de Actas do Conselho
de Lima, e era constituída por três professores da EBAL, Victor Manuel Piloto, Luís Escolar da ESBAP 1920-40, Fs.80.
Cristino da Silva e Paulino Montez, por um professor do IST, Porfírio Pardal Monteiro, 25 No final de 1951, Delfim Amorim parte para o Brasil, onde vai dinamizar a Escola do
e por um professor da EBAP, Carlos Chambers Ramos. Recife, e Ramos convida para o substituir Agostinho Ricca, também membro da ODAM.
22 Cf. Subcomissão de Arquitectura, “Relatório da Subcomissão de Arquitectura. 26 Cf. FERNANDES, Eduardo, A Escolha do Porto: Contributos para a actualização de uma
Reforma do Ensino das Belas-Artes”, 9 de Dez. 1949. Arquivo FCG, Espólio LCS. ideia de Escola. Guimarães: EAUM, 2011. Tese de doutoramento.

170 171
os estudos analíticos e os projectos realizados “de acordo estão presentes os seus textos, a sua bibliografia e as suas viagens,
com os princípios clássicos da Arquitectura”, como referiam nomeadamente aos CIAM, funcionando, segundo Siza, como “um
habitualmente os enunciados dos trabalhos escolares. Esta catalisador de tendências renovadoras”.30 O boletim da ESBAP, Arte
estratégia deveria também estender-se à cadeira de Construção, Portuguesa, 2-3, 195431 publica os trabalhos dos seus alunos relativos ao
nomeadamente com o fim da cópia de estampa, mas, depois de tema da Habitação Unifamiliar em banda sobre o desenvolvimento de
algumas experiências, Rogério de Azevedo irá manter este tipo de um módulo e da sua associação, trabalhando a unidade e o conjunto,
exercícios até 1957, convicto da importância de “aprender as leis segundo princípios modernos de racionalização. A complexidade dos
ideais” para, mais tarde, o aluno poder “atingir o desideratum de temas do quarto ano permite implementar o método do trabalho
livremente interpretar”,27 como refere ainda em 1959, no Conselho de grupo incentivando a colaboração entre os estudantes, aspecto
Escolar da ESBAP. Ramos mantém a sua presença nas primeiras formativo que tanto Ramos como Gropius evidenciavam no seu
aulas do ano lectivo, introduzindo os alunos à Arquitectura a programa pedagógico.
partir do texto de Vitrúvio e das ideias de Gropius e acompanha No Curso Superior, a pedagogia de Mário Bonito concilia, tal como
também o lançamento dos exercícios e a sua avaliação, para a sua arquitectura, “intuição” e “conhecimento”32 e articula, através
garantir “Que as dificuldades e exigências do programa fossem dos concursos de emulação, por um lado, a individualidade do artista
sendo progressivamente ajustadas”.28 e, por outro lado, a competência profissional na preparação para o
exercício da profissão. Mário Bonito envolve os alunos nos problemas
A partir de 1951-52, Agostinho Ricca lecciona o segundo ano da da cidade, através de exercícios acordados com instituições públicas

O Ensino Moderno da Arquitectura na Escola do Porto: fundamentos para a Escola de Coimbra | Gonçalo Canto Moniz
cadeira de Arquitectura, José Carlos Loureiro, o terceiro, Fernando ou relacionados com concursos de Estudantes, nomeadamente para a
Távora, o quarto, e Mário Bonito, os concursos do Curso Superior. Bienal de São Paulo, para a UIA ou para a Casa Canadiana do Futuro
De um modo geral, os trabalhos escolares centram-se no exercício (Calvert House). Esta estratégia, sempre incentivada por Carlos Ramos,
do projecto e exploram temas contemporâneos, nem sempre para promove a abertura da Escola à cidade e ao debate internacional e
sítios “reais”, utilizando, quando possível, estratégias de colaboração disponibiliza aos alunos instrumentos de projecto, de comunicação
entre alunos ou entre disciplinas. No segundo ano, Ricca abandona e de reflexão. A proposta de Rui Pimentel e Augusto Amaral para o
10 Raul Hestnes Ferreira, “CF [Uma os trabalhos analíticos e propõe exercícios de projecto, elegendo a Concurso Escolas de Arquitectura da II Bienal de São Paulo, “Centro
Casa de Férias]”, perspectivas, 1:100. habitação como tema central, onde as questões do habitar e do cívico para um grupo residencial de 10.000 habitantes”, revela já um
Edifícios e Monumentos da Antiguidade
enquadramento ambiental são tratados numa perspectiva moderna. domínio quer instrumental, quer conceptual do paradigma moderno.
e Elementos Analítico, professor Carlos
No terceiro ano, Pequenas Composições, José Carlos Loureiro Neste projecto, Bonito consegue também envolver a cadeira de
Ramos e Agostinho Ricca. ESBAP,
1954-55. introduz “a dimensão técnica da arquitectura” e lança exercícios Construção, orientada por Rogério de Azevedo. Esta proposta urbana
relacionados com pequenos equipamentos, ainda sem contextos é o resultado claro da aplicação não só dos modelos da arquitectura
definidos, utilizando os programas que está a desenvolver no seu moderna, mas também da Carta de Atenas, com a hierarquização de
escritório. A sua pedagogia confronta os alunos com os problemas da zonas funcionais. A proximidade da ESBAP com a cultura moderna
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

materialidade da arquitectura29 e fundamenta-se em métodos simples dos CIAM e do Brasil é aqui reconhecida pela instituição que, no
que promovem uma forte relação com a prática profissional. mesmo ano, atribui o grande prémio da Bienal a Walter Gropius. Com
O curso de Arquitectura desenvolve uma nova abordagem Bonito, os trabalhos escolares abordam definitivamente os problemas
programática e metodológica a partir do quarto ano, valorizando o da cidade, complementando a estratégia das cadeiras de Urbanística.
desenho como instrumento de projecto, mas também promovendo
uma consciência crítica sobre a Arquitectura. Nas aulas de Távora

27 Conselho Escolar da ESBAP, Acta de 22 de Novembro de 1959, in Livro de Actas 30 SIZA, Álvaro, “Fernando Távora”, Desenho de Arquitectura. Porto: Universidade do
Conselho Escolar da ESBAP 1948-61, Fs.135-137. Arquivo FBAUP. Porto, 1987, p. 106.
28 RAMOS, Carlos, “Palestra dedicada a todos os alunos da Escola de Belas-Artes de 31 Alguns dos trabalhos foram também publicados em A Arquitectura Portuguesa e
Lisboa”, Jun. 1935, ponto 3. Cerâmica e Edificação, n.º 9, Set./Dez., 1955.
29 Entrevista a Sergio Fernandez, Porto, 27 Fev. 2009. “No 3.º ano, o Loureiro discutia 32 BONITO, Mário, “Um pavilhão representativo das Ilhas Adjacentes” (1948), RA,
os problemas da estrutura … se o edifício se aguentava, se tinha estabilidade”. n.º 0, 1987, p. 20.

172 173
Na cadeira de Projecto e Obras de Urbanização, David Moreira da são construídos sucessivamente conformando na sua arquitectura
Silva e João Andresen montam um programa pedagógico sistemático as questões em debate na cultura arquitectónica: o moderno, o
com enunciados cuidadosamente preparados para desenvolver uma brutalismo, a reabilitação. Nesta lógica, a Aula Máxima, desenhada
formação sólida dirigida à prática dos planos de urbanização. Neste por Octávio Lixa Filgueiras, recolhida no interior do jardim, reabilita
período, promovem dois exercícios exemplares que acompanham o Palacete Braguinha e vai funcionar simultaneamente como espaço
a discussão que se realiza no Porto sobre a Cidade Universitária, de representação da Escola e como espaço de contestação.
procurando integrar a cidade moderna e monofuncional na estrutura
urbana e rural da zona de Paranhos. As cadeiras de Urbanismo A atitude moderna contamina a Escola, dinamizando-a como espaço
consolidam uma certa consciência sobre os problemas urbanos que a de cultura e como espaço de investigação, a partir do Centro de
Arquitectura também explora, mas dá ao arquitecto uma perspectiva Estudos de Arquitectura e Urbanismo. Neste âmbito, realizam-se
mais global da cidade. Pretendia-se aqui integrar o urbanismo na exposições, palestras, cursos de formação, publicações e trabalhos de
formação do arquitecto, ou seja, formar um arquitecto-urbanista33. investigação, como o “Ensaio de Inquérito às Expressões e Técnicas
A transformação dos métodos pedagógicos é constatada também Tradicionais Portuguesas” de 1953, que iria ser um primeiro passo 12 Octávio Lixa Filgueiras, Manuel
pelos alunos, que evidenciam o papel de Carlos Ramos e dos para o Inquérito à Arquitectura Popular, realizado dois anos mais tarde. Lima Fernandes de Sá (DENN), “Aula
Máxima – ESBAP”, Perspectiva,
assistentes na orientação do ensino. José Borrego, aluno da Escola As Exposições Magnas, realizadas anualmente entre 1952 e 1968,
23-06-1955.
desde 1936 e membro da ODAM, critica os formalismos e elogia expõem os trabalhos escolares ao lado dos projectos dos professores.
11 Rui Pimentel e Augusto Amaral, “a formação do arquitecto moderno” na ESBAP: “De grande Neste sentido, Ramos promove as relações “escola-atelier” e assume o

O Ensino Moderno da Arquitectura na Escola do Porto: fundamentos para a Escola de Coimbra | Gonçalo Canto Moniz
“Centro cultural – Centro Cívico importância virá a ser também a influência a desempenhar pelos professor como um profissional qualificado, que integra na didáctica
para um grupo residencial de 10.000
arquitectos recém formados e pelos futuros arquitectos, actuais a experiência profissional. A Escola realiza também exposições de
habitantes”, painel, Concurso
alunos do Arquitecto Carlos Ramos, director da ESBAP, o qual tem homenagem a antigos professores que reafirmam os laços com a sua
internacional de Escolas de Arquitectura,
II Bienal de São Paulo, 31-07-1953. impulsionado a formação de arquitectos modernos, em bases a que tradição pedagógica e ligam os diversos tempos, estabelecendo uma
Concurso Grandes Composições, não estávamos nem de longe habituados”.34 A acção dos alunos é “cadeia de fidelidades múltiplas”,36 como refere Alexandre Alves
professor Carlos Ramos e Mário Bonito. determinante na renovação da Escola não só pelo empenho nas Costa.
ESBAP, 1952-53. actividades pedagógicas, atentos às propostas colocadas pelo corpo Até 1957, data em que é regulamentada a reforma, o ensino Moderno
docente, mas também pela consciência associativa que, em linha com conviveu com o ensino Beaux-Arts e fundamentalmente com uma
os movimentos estudantis universitários, transportam as convicções tradição humanista que colocava o aluno no centro do processo de
políticas através da acção cultural. No Boletim da Associação de 1954, aprendizagem. A entrada de novos professores em 1945 para o curso
Arnaldo Araújo apela à participação dos estudantes: “Associar-se é de Urbanismo e em 1951 para a cadeira de Arquitectura foi talvez
tomar consciência. Esta gera interesse e o interesse a acção”.35 o maior contributo para estas transformações, que se reflectiu na
O alargamento das actividades da escola decorre também do pluralidade de métodos de ensino e na diversidade de abordagens
alargamento do espaço físico e da afirmação da Escola como ao problema da Arquitectura e do Urbanismo. A modernização do
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

um espaço da cidade. Os professores recusam a saída da Escola ensino não passou apenas pela acção dos professores e directores,
para a cidade universitária e optam por permanecer no centro, mas principalmente pela atitude dos alunos na contestação aos
considerando-o como espaço privilegiado da formação do arquitecto. métodos de ensino, pela organização de acções culturais e ainda
Em 1951, Manuel Lima Fernandes de Sá reformula o plano de Carlos pela acção associativa, que integrou sempre os debates de âmbito
Ramos e propõe aproximar o Pavilhão de Arquitectura e Exposições universitário e os debates políticos e sociais.
da Avenida Rodrigues de Freitas, abdicando do Museu. Os pavilhões

33 Esta expressão tem sido utilizada para designar os arquitectos que faziam formação
de urbanistas no Institute d’Urbanisme de Paris, como David Moreira da Silva e Faria
da Costa.
34 BORREGO, José, “Um inquérito: que pensa do desenvolvimento actual da nossa 36 COSTA, Alexandre Alves, “À memória presente de Mestre Ramos” (1987), in
arquitectura”, (depoimento), A Arquitectura Portuguesa, n.º 8, 1955, p. 66. Introdução ao Estudo da História daArquitectura Portuguesa. Porto: FAUP Publicações, 1995,
35 AEESABP, Boletim, Nov. 1954. p. 107.

174 175
5 | O Currículo Moderno e a Formação Social do Arquitecto em Lisboa, Frederico George e Nuno Portas iniciavam a mesma
metodologia de ensino, procurando estabelecer pontes entre
O processo de reforma iniciado em 1950 só termina em 1957 com ambas as escolas.41 Este conjunto de docentes vai também
o decreto de regulamento37 que implementa um novo currículo consolidar a sua proposta pedagógica a partir da investigação
organizado em três ciclos. No entanto, a formação do arquitecto teórica fixada nas teses apresentadas nos concursos para professor
técnico proposta pela reforma tinha uma forte incidência nas no Porto, em 1962, e em Lisboa, em 1964.
cadeiras científicas, que arrastavam os alunos para as Faculdades Uma das disciplinas mais relevantes deste novo currículo é a
de Ciências. Esta abordagem já não respondia à consciência social Arquitectura Analítica, 1 e 2, dirigida quase exclusivamente
e política desencadeada pelo Inquérito à Arquitectura Popular e pela por Lixa Filgueiras até ao final da década de sessenta. Em
eminência da Guerra Colonial. Os estudantes davam os primeiros ambas propôs três tipos de enunciados: pequenos exercícios
sinais de contestação maciça ao regime com a crise académica de de composição de matriz bauhausiana, o inquérito urbano e os
1962, enquanto, nos ateliers, os arquitectos procuravam respostas trabalhos de férias.42 Serão os inquéritos urbanos, realizados
para o problema da habitação, para a educação de massas, ou para sucessivamente ao longo de dez anos com o objectivo de
a renovação do espaço religioso, onde a questão da comunidade confrontar o aluno com o problema humano, que darão corpo
e do homem, superava a racionalidade técnica e programática da a esta experiência pedagógica. Os alunos abandonam a sala de
construção. De facto, tratava-se de uma reforma fora do tempo, aula e fixam-se na cidade, para compreender os problemas da
com sete anos de atraso, “requentada”, como a ela se referiram habitação e do habitat. Os desenhos deixam de representar as

O Ensino Moderno da Arquitectura na Escola do Porto: fundamentos para a Escola de Coimbra | Gonçalo Canto Moniz
os seus críticos.38 ordens clássicas e passam a registar os espaços domésticos e as
Contudo, a reforma permitiu um novo funcionamento das difíceis condições de habitabilidade. O Homem e a Vida estavam
escolas com a contratação de um grande número de assistentes novamente no centro das preocupações do arquitecto. Assim,
que promoveram experiências pedagógicas diversas, por vezes Filgueiras procurava promover a formação social do arquitecto,
contraditórias, mas que abriram, de um modo geral, a formação acompanhando o debate que decorria na Escola de Veneza e na
do arquitecto ao problema social. Nas escolas coube aos novos Architectural Review.43
assistentes encontrar um espaço de reinvenção nas disciplinas de
Arquitectura Analítica, Composição da Arquitectura e Teoria e
História da Arquitectura. No Porto, Fernando Távora, Octávio
Lixa Filgueiras, Arnaldo Araújo e Álvaro Siza introduziram a
análise como instrumento de investigação sobre o projecto e a
cidade como objecto de trabalho do arquitecto. Tratava-se, assim,
41 Sobre o assunto ver do autor, O Ensino Moderno da Arquitectura, op.cit.
de “conhecer para compreender”39 com o objectivo de promover
42 Os trabalhos de férias concentram-se durante vários anos na identificação de
a função social do “arquitecto-anti-lápis-maravilhoso”,40 para
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

barcos tradicionais, com o objectivo de elaborar um inquérito aos barcos tradicionais


utilizar as expressões de Filgueiras. Neste momento, também
portugueses. Estes trabalhos foram também publicados, como por exemplo, Adélio
Marinho, José António Figueiredo, “As barcas de passagem do Cávado, a jusante do
37 Lei n.º 502, publicada no Diário das Sessões de 8 de Março de 1950, e Lei n.º Prado”, Cadernos de Etnografia do Museu Regional de Cerâmica de Barcelos, p. 5, 1966. Sobre
2.043 de 10 de Julho de 1950. A regulamentação da lei e consequente entrada em vigor o assunto ver MONIZ, Gonçalo Canto, “Arquitectura do Barco: Cultura marítima no
teria de esperar pelos Decreto-lei n.º 41.362 e 41.363 de 14 de Novembro de 1957, do ensino da ESBAP (1958/59-1968/69)”, in Octávio Lixa Filgueiras, Arquitecto de Culturas
ministro de Educação Nacional, Francisco Leite Pinto. Marítimas (coord. GARRIDO, Álvaro, e ALVEZ, Francisco). Lisboa: Âncora, 2009,
38 AMARAL, Francisco Keil do, “A reforma do ensino de Belas-Artes”, Arquitectura, p. 39-56.
n.º 63, Dezembro 1958, p. 43; FRANÇA, José Augusto, “A reforma do ensino de 43 FILGUEIRAS, Octávio Lixa, “Inquéritos Urbanos”, Urbanização, n.º 1, Mar. 1970,
Belas-Artes”, Arquitectura, n.º 64, Jan.-Fev. 1959, p. 29. p. 11. No Instituto Universitário de Arquitectura de Veneza, liderado por Giuseppe
39 FILGUEIRAS, Octávio Lixa, A Função Social do Arquitecto: Para uma teoria da Samonà e com professores como Carlo Scarpa ou Bruno Zevi, o objecto de estudo
responsabilidade numa época de Encruzilhada. Porto: ESBAP, 1985 (1ª edição 1962), p. 16. estava centrado no alojamento e no habitat da cidade, entendido como “um objectivo
40 Esta expressão é utilizada numa carta de Arnaldo Araújo a Octávio Lixa Filgueiras, moral da escola”. Na revista Architectural Review, os desenhos de Gordon Cullen na
Lourenço Marques, 5 Out. 1964, p. 2. Espólio Octávio Lixa Filgueiras. rubrica “Townscape” focavam os ambientes urbanos.

176 177
Fernando Távora lecciona alternadamente a disciplina de com o objectivo de actualizar o ensino na ESBAP. Segundo
Composição de Arquitectura do quarto e do quinto ano e a Álvaro Siza: “[…] fazia-se um estudo exaustivo em equipas
disciplina de Teoria e História da Arquitectura. Os programas que sobre os mais diversos temas relativos a um projecto e depois,
propõe aos alunos referem-se de um modo geral a equipamentos também em equipa ou não, o desenvolvimento desse trabalho.”48
com uma forte relação com um contexto social e físico, seja ele Nesta perspectiva, propõe aos alunos um trabalho sobre uma
rural ou urbano. Através do programa e do lugar, Távora irá “Cooperativa de Consumo – Bairro do Regado” a desenvolver em
introduzir os alunos no problema da organização do espaço, várias fases. Este faseamento permitia começar por trabalhos de
tema da sua tese para o concurso de professor e que resulta de grupo mais analíticos e depois desenvolver propostas individuais.
uma revisão do conceito de espaço moderno,44 procurando agora A partir de um tema com um carácter fortemente social, o
uma perspectiva mais integradora e humanista. Távora traz para cooperativismo, os alunos eram obrigados a confrontarem-se
13 João Godinho, Francisco Guedes, a sala de aula, já não o Brazil Builds e os CIAM, mas o Inquérito com uma realidade, o bairro do Regado, analisando quer o
Ricardo (Figueiredo), “Barredo. Estudo à Arquitectura Popular, publicado em 1961, e o TEAM 10, em modelo de cooperativa, quer a organização espacial e social do
de um fogo. Quarto de dormir”, Planta,
que participa nos encontros de 1959, em Otterlo, e de 1962, bairro. O trabalho assume a forma de um relatório ou inquérito e
Arquitectura Analítca 2, Professor
Octávio Lixa Filgueiras. ESBAP, 1964-65.
em Royaumont. Traz também o olhar atento com que observa integra texto, esquemas, desenhos de levantamento e projecto. No
o mundo, através dos desenhos de viagem, nomeadamente da entanto, Siza considera que estas metodologias são limitadoras,
viagem à América,45 onde o desenho ganha uma nova capacidade gerando trabalhos equilibrados, mas pouco interessantes.49 Assim,
de síntese, integrando e não excluindo. Ao concluir o seu livro nos anos seguintes regressa aos métodos anteriores, modernos,

O Ensino Moderno da Arquitectura na Escola do Porto: fundamentos para a Escola de Coimbra | Gonçalo Canto Moniz
Da Organização do Espaço, Távora deixa uma mensagem dirigida com projectos de composição, que permitam desenvolver um
aos seus alunos, apelando a um outro posicionamento perante a processo simultâneo de análise, desenvolvimento de uma ideia e
profissão, onde “a par de um intenso e necessário especialismo crítica.50 Os trabalhos para a igreja paroquial de Aldoar e para um
ele coloque um profundo e indispensável humanismo”.46 motel em Coimbra são programas que Siza está a desenvolver
no escritório, procurando agora estreitar a relação entre o atelier
“Sendo assim, projectar, planear, desenhar, não deverão e a Escola, seguindo estratégias mais profissionalizantes. A sua
traduzir-se para o arquitecto na criação de formas vazias de experiência pedagógica seria interrompida logo em 1969, na
sentido, impostas por capricho da moda ou por capricho de sequência da demissão colectiva dos professores perante a falta
qualquer outra natureza. As formas que ele criará deverão de condições para exercer a sua actividade.
resultar, antes de um equilíbrio sábio entre a sua visão
pessoal e a circunstância que o envolve e para tanto deverá
48 Entrevista a Álvaro Siza, Jan. 2009.
ele conhecê-la intensamente, tão intensamente que conhecer e
49 Idem. “No 1.º ano apliquei o método de Nuno Portas com grande rigor e aliás eu
ser se confundem.”47
tinha, e ainda devo ter, um pequeno caderno com exposição desse método aplicado
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

em Lisboa. Cheguei à conclusão que os trabalhos eram muito equilibrados. Não


Álvaro Siza é convidado em 1965 por Carlos Ramos para leccionar
havia nenhum disparate, eram bem fundamentados, mas não havia nenhum trabalho
Composição de Arquitectura 2. No primeiro ano em que inicia a
interessante, suficientemente interessante para eu considerar que era um método
sua actividade pedagógica, 1965-66, adopta o método “Didáctica
mais dinâmico para o ensino da Arquitectura e portanto no 2.º ano fiz de forma
Conceptual” que Nuno Portas estava a desenvolver em Lisboa,
completamente diferente”.
50 Idem. “Foi muito útil na medida que me levou primeiro a fazer uma experiência
44 PORTAS, Nuno, “Prefácio à edição de 1982”, in TÁVORA, Fernando, muito rigorosa, muito boa e depois levou-me a repensar e a ensaiar outra coisa – o
Da Organização do Espaço. Porto: FAUP Publicações, 1996, XIII (1ª edição, 1962). estudo exaustivo era simultâneo com o desenvolvimento de uma ideia, com uma
45 TÁVORA, Fernando, Diário de Bordo, coord. Álvaro Siza, ed. Rita Marnoto. Porto: componente um pouco instintiva e de entusiasmo imediato e logo submetida a crítica.
Casa da Arquitectura, 2012 (1ª edição, 1960). Portanto a absorção, a compreensão de tudo o que estava em causa acompanhava o
46 TÁVORA, Fernando, Da Organização do Espaço. Porto: FAUP Publicações, 1996, desenvolvimento do desenho, bombardeava o desenho com crítica e alteração. Era
p. 75 (1.ª edição, 1962). A ideia de especialismo está relacionada com a investigação, um curso pequeno e foi bastante interessante. No meu espírito uma coisa especial em
com o conhecimento. ensinar Arquitectura é aprender Arquitectura e essa é uma ideia que se manteve pela
47 Idem, p. 74. vida fora.”

178 179
A partir do exemplo destes três professores pode compreender-se com a abordagem humanista do mestre brasileiro, que reivindica
que a didáctica na ESBAP ao longo da década de sessenta não a importância social e cultural das inovações tecnológicas e
ficou refém do novo plano de estudos, mas sim da capacidade de científicas. Lúcio Costa surpreende ainda os professores e
reinvenção e implantação das propostas pedagógicas dos jovens os alunos do Porto numa viagem pelo Norte, ao revelar o seu
assistentes, especialmente os mais atentos à renovação do ensino profundo conhecimento da arquitectura popular portuguesa, à
que se operava nas escolas internacionais. Neste sentido, podemos medida que com ela vão contactando53. No jornal ESBAP, Carlos
considerar que a Reforma de 57 foi um espaço de experimentação Ramos apresenta Lúcio Costa como o autor do plano-piloto
e de integração das ciências sociais e humanas na pedagogia da de Brasília, “a nova e radiante capital do Brasil”, mas valoriza a
Arquitectura e, também, um espaço de exploração de outros sua “formação essencialmente classicista a que o culto por uma
métodos de ensino e de projecto. tradição profundamente lusíada empresta e revela impressionantes
e, por vezes, comoventes facetas do seu temperamento” e conclui:
6 | Contestação à Reforma “homem emotivo, de tão raras virtudes e de mentalidade tão
aparentemente oposta à sua inserção no processo evolutivo de
Paralelamente à acção renovadora dos docentes, iniciava-se uma arte tão sublime como a da arquitectura”54.
igualmente uma acção organizada de contestação ao sistema de O jornal ESBAP é um dos órgãos de actuação da Pró-Associação
ensino universitário, que contaminava o quotidiano das Escolas de Estudantes da ESBAP onde, para além da divulgação do
de Belas-Artes. Esta contestação tinha contornos políticos, quotidiano da Escola, os alunos discutem os problemas do

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de reacção ao Estado Novo, e culturais, de reacção à cultura ensino e participam no debate público centrado nos problemas
moderna. De facto, as Escolas de Belas-Artes ganham também da Universidade, que atravessava, então, a Crise de 6255. Os alunos
uma renovada dinâmica cultural com a obrigação de organizar da ESBAP consideram que é nas lutas universitárias, que podem
exposições anuais e espaços de debate, através da presença reforçar as suas próprias lutas internas. Segundo Alexandre Alves
constante de arquitectos estrangeiros. Costa, aluno do quarto ano em 1961-62:
No Porto, as Exposições Magnas passam a integrar, para além da “A nós parece-nos que um contacto desta espécie seria
Arquitectura, as disciplinas dos grupos da História, do Desenho, extremamente vantajoso para todos nós, defensores de uma
da Construção e do Urbanismo e assim a possibilitar a construção verdadeira camaradagem, teríamos aprendido muito em Coimbra,
de uma visão global do ensino. Entre 1957 e 1967, Carlos Ramos defensores duma verdadeira cultura universitária ter-nos-íamos
vai relatando, nos textos de apresentação dos catálogos, o enriquecido extraordinariamente, como jovens aprendido a
quotidiano da Escola e o seu próprio olhar sobre o processo de funcionar como tal, duma forma autêntica e saudável.”56
transformação do ensino. Neste aspecto, o entusiasmo expresso Se o primeiro número do jornal ESBAP esteve relacionado
pela nova reforma na VI Magna, “o maior acontecimento destas com os movimentos estudantis de 1961-62, o segundo número,
últimas décadas no campo das Belas-Artes”51, vai dar origem a denominado Boletim ESBAP n.º 2, marcou a crise académica
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

uma crescente desilusão com os próprios estudantes: “(…) foi de 1968-69, lançando, em Junho de 1968, os temas de luta: a
aquela preciosa ajuda [para montar as Magnas] enfraquecendo
com o andar dos tempos, até à sua mais completa e desoladora
53 Lúcio Costa já havia percorrido a arquitectura popular e erudita em 1952 como
extinção”52.
demonstram os recém descobertos “Bloquinhos de Portugal”. PESSÔA, José, COSTA,
Quanto às palestras, a presença de Lúcio Costa na ESBAP
Maria Elisa, Bloquinhos de Portugal: Arquitetura Portuguesa no Traço de Lúcio Costa. Rio de
deixaria uma forte memória nos alunos com duas intervenções,
Janeiro: Funarte, 2012.
uma sobre Brasília e outra sobre “O novo humanismo científico
54 RAMOS, Carlos, ESBAP, n.º 1, Jan. 1962, p. 6.
e tecnológico”. A sua estadia é amplamente divulgada no jornal
55 Movimento de contestação e reivindicação da autonomia universitária
ESBAP n.º 1 (Janeiro de 1962), onde os alunos se deslumbram
desencadeado nas comemorações da “Tomada da Bastilha” (25 de Novembro de
1961) e do “Dia do Estudante” (24 de Março de 1962) em Lisboa e em Coimbra. Os
51 RAMOS, Carlos, “Preâmbulo” in VI Exposição Magna da Escola Superior de Belas Artes estudantes das ESBA solidarizam-se com a greve dos estudantes de Lisboa que se
do Porto. Porto: Escola Superior de Belas-Artes, 16 Dez. 1957, p. 3. iniciou em Abril e só terminou no final do ano de 1962.
52 RAMOS, Carlos, XV Exposição Magna, Out.1966, p. 10. 56 COSTA, Alexandre Alves, “Tomada da Bastilha”, ESBAP, n.º 1, Jan. 1962, p. 8.

180 181
democratização do sistema, a auto-gestão das escolas e a reforma 7 | Experiências Pedagógicas: em direcção a um ensino
do ensino. Este debate decorre da saída, em 1967, de Carlos universitário
Ramos da ESBAP por atingir o limite de idade, mas também
de um apoio significativo dos professores do primeiro grupo, Dentro da abertura possível do regime e após uma negociação
Arquitectura, aos estudantes. Assim, os alunos retomam o tema intensa com os docentes demissionários e com os alunos do
da “Transferência das cadeiras da Faculdade de Ciências do curso de Arquitectura, o novo ministro da Educação Nacional,
Porto para a Escola”57 e iniciam um processo de debate interno José Veiga Simão, autoriza o arranque de um regime experimental.
que consegue trazer o ministro da Educação Nacional, José Entre Abril e Julho de 1970, o curso passa a ser administrado
Hermano Saraiva, à ESBAP para uma reunião geral de Escola em por uma comissão coordenadora constituída paritariamente por
Novembro de 1968. O problema das cadeiras da Faculdade de três professores e três alunos59, que garante o funcionamento da
Ciências é resolvido imediatamente, com a transferência das aulas Experiência, do sistema de avaliação por apuramentos colectivos
para a ESBAP, contudo fica por resolver a situação contratual e que no final deverá produzir um relatório para propor um novo
dos professores e a possibilidade de implementar um regime currículo60. Nestes quatro meses os alunos do curso frequentaram
experimental com o objectivo de reformular o plano de estudos. apenas uma disciplina, Arquitectura, e organizaram-se em grupos
Neste contexto, estava criado um clima de contestação ao sistema para dar resposta a um tema único, “Uma Escola de Arquitectura”
de ensino. As reuniões de docentes e discentes sucedem-se ao com o objectivo de participarem na discussão sobre o ensino. De
longo de 1969, desencadeando uma luta diária contra a Reforma um modo geral, os grupos recusaram a realização de um projecto

O Ensino Moderno da Arquitectura na Escola do Porto: fundamentos para a Escola de Coimbra | Gonçalo Canto Moniz
de 57, sob o slogan de “autonomia funcional”, que terminou com e propuseram abordagens analíticas e teóricas de carácter
a saída dos professores de Arquitectura, no início do ano lectivo histórico e social. Este episódio ficou conhecido como a “recusa
de 1969-70, e consequente encerramento das aulas. Estava, assim, do desenho”, onde por um lado, se estava a recusar o arquitecto
“decretado” o fim da Reforma de 57 e do seu projecto de ensino, “lápis-maravilhoso”, a Reforma de 57 e o sistema universitário
que em grande parte era o de Carlos Ramos. autoritário e, por outro lado, se propunha um arquitecto
Sem revoluções, o ensino na Escola do Porto foi-se fazendo a comprometido socialmente e um ensino democrático.
partir de experiências pedagógicas realizadas num espaço de
liberdade, de uma liberdade possível no contexto de uma ditadura. De facto, a construção, fixação e implementação da Reforma de
Independentemente dos estilos, promoveram-se métodos de 57 está associada ao debate sobre o ensino moderno. Contudo,
ensino centrados no desenvolvimento das capacidades do se esta reforma foi enterrada simbolicamente nas escadas do
aluno, que ainda hoje suportam o difícil objectivo de ensinar Palacete Braguinha em pleno regime experimental, por motivos
arquitectura: o trabalho de equipa, a consciência crítica e social, a mais políticos do que pedagógicos, interessa perceber se o ensino
relação entre projecto e construção, a relação entre a Arquitectura Moderno teve o mesmo destino. Um dos aspectos mais relevantes
e a Pintura e Escultura ou a conjugação da racionalidade científica do debate sobre este paradigma é a sua orientação universitária
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

com a intuição artística. Assim, a Reforma de 57 foi um espaço com o objectivo de dignificar a formação do arquitecto e o seu 14 ESBAP, “Temas e Grupos, Regime
de experimentação que exigiu, tanto aos professores como aos papel na sociedade, como artista, como técnico, como cientista e Experimental”, Abril de 1970.

alunos, o desenvolvimento de uma consciência pedagógica onde como agente social.


o pragmatismo deveria ser substituído pela reflexão teórica. Esta O processo que se inicia em 1970 com a Experiência e que culmina
é aliás a conclusão que Fernando Távora vai retirar da Experiência em 1979 com o decreto de criação das Faculdades de Arquitectura
Pedagógica que se irá realizar na ESBAP em 1970: “Fartos de da Universidade do Porto e da Universidade Técnica de Lisboa é a
práticos estamos nós o que é necessário é gente com sólida última fase deste percurso em direcção a um ensino universitário.
formação teórica”58.

59 Três professores, Octávio Lixa Filgueiras, Fernando Távora e Jorge Gigante, e três
57 AEESBAP, Informação 3, ESBAP - 1968, Problemas e Processos, 4 Dez. 1968. alunos, Ricardo Figueiredo, José Garrett e Rui Louro.
Arquivo Pedro Ramalho. 60 Sobre este assunto consultar: PAULINO, Raquel, ESBAP|FAUP O Ensino da
58 Jornal de Notícias, “A Interessante Experiência realizada na Escola de Belas Artes Arquitectura na Escola do Porto. Construção de um projecto pedagógico entre 1969 e 1989. Porto:
com o Curso de Arquitectura”, 6 Jan. 1971, p. 3. Universidade do Porto, 2014. Tese de Doutoramento.

182 183
Depois de uma primeira tentativa falhada que passava por de horas reduzido e tanto professores como alunos estão agora
integrar as disciplinas universitárias na formação do arquitecto, direccionados para uma cultura científica onde a palavra de ordem
adopta-se uma outra estratégia que passou por reivindicar a é “investigar”62. O desafio que se coloca às disciplinas de Projecto
autonomia disciplinar da Arquitectura entendendo-a como é desenvolver sua tematização através de uma forte articulação
disciplina transversal às Ciências Exactas, às Ciências Sociais e com as disciplinas teóricas e com as linhas de investigação dos
Humanas e à Arte. É com este espírito que, no Porto, se recusa docentes. Pretende-se que esta lógica de funcionamento contribua
o desenho maravilhoso e que se adopta o desenho crítico, de para um relacionamento estreito entre a actividade pedagógica e
Távora ou Siza, com que se enfrenta, por exemplo, a disciplina a actividade científica, fazendo com que uma potencie a outra.
única Arquitectura na Experiência, o problema da habitação no Esta estratégia reivindica também a autonomia disciplinar da
SAAL ou o problema da formação do arquitecto nas Bases Gerais. Arquitectura de modo a incorporar um diálogo equilibrado com
Poder-se-á dizer também que em Lisboa se procurou chegar ao as disciplinas conexas, quer com as Ciências Sociais e Humanas,
mesmo destino ainda que por percursos diferentes. De facto, se quer com as Artes ou com as Tecnologias, que nos permitem
olharmos para o desenho intenso de Manuel Vicente ou Manuel melhor conhecer a realidade para intervir de forma consciente
Tainha, percebemos que é com este instrumento metodológico que e crítica. É neste sentido que a investigação em Arquitectura na
procuraram encontrar o espaço da arquitectura na Universidade Escola de Coimbra se faz com os artistas no Colégio das Artes,
de Lisboa. com os sociólogos no Centro de Estudos Sociais e com os
engenheiros nos laboratórios dos Departamentos de Engenharia.

O Ensino Moderno da Arquitectura na Escola do Porto: fundamentos para a Escola de Coimbra | Gonçalo Canto Moniz
No entanto, não abdicando do desenho, são as disciplinas Esta perspectiva é mais uma vez decorrente da proposta do
teóricas que vão dar corpo científico à Arquitectura no seio da director da ESBAP, Carlos Ramos, quando lutou ao longo da
Universidade como desde cedo Carlos Ramos percebeu, não década de cinquenta e sessenta pela criação de um Centro de
só com a componente teórica do Projecto, mas principalmente Estudos de Arquitectura e Urbanismo em articulação com o
com a criação da Teoria e História da Arquitectura. Assim, serão Centro de Estudos Geográficos da Faculdade de Letras de
estas disciplinas a promover o diálogo com a Universidade, mas Lisboa e com o Centro de Etnologia Peninsular da Faculdade
agora autonomizando a Teoria da Arquitectura da História da de Ciências do Porto. Ramos propunha a coordenação com
15 Fernando Távora, “Desenhos”, Arquitectura. Neste sentido, foram particularmente inovadoras os artistas, os engenheiros, os sociólogos, os economistas, os
Teoria Geral da Organização do Espaço. no Porto a disciplina de Fernando Távora, “Teoria Geral da historiadores e os filósofos para uma formação culta e humanista,
Arquitectura e Urbanismo. A lição das
Organização do Espaço”, e a disciplina de Alexandre Alves mas simultaneamente artística e científica, que entendesse a
Constantes.
Costa, “História da Arquitectura Portuguesa”61, que entretanto arquitectura na tradição “albertiana”, como “coisa mental”. De
contaminou todos os cursos de Arquitectura em Portugal. facto, se Távora nos dizia que o arquitecto deveria ter sólida
Tratava-se, na verdade, de transformar estas disciplinas de formação teórica, será Mário Kruger a manter o discurso de
aparente carácter enciclopédico em disciplinas de síntese, onde o Alberti bem vivo, tanto na pedagogia como na investigação.
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

desenho constituía um importante instrumento de interpretação O ensino Moderno transformou definitivamente os cursos
da realidade e de suporte à investigação histórica. de arquitectura, quer nos conteúdos, integrando o triângulo
As disciplinas práticas, anteriormente denominadas de cidade-história-homem no triângulo forma-programa-construção,
Composição de Arquitectura, passaram a usar a designação quer no perfil dos professores, permanecendo o professor-
genérica de Arquitectura a partir de 1970 para depois, na profissional, mas acolhendo também o professor-investigador.
Universidade, adoptarem a actual designação de Projecto. Ainda Este novo paradigma fixou ainda questões metodológicas, como a
que todos estas designações tenham significados específicos, coordenação, a experimentação, a gestão democrática e a tradição
pretendeu-se sempre manter o seu carácter generalista evitando humanista, que são intemporais. Estes aspectos ou valores estão
a especialização. Contudo, desde a adaptação ao Processo de de algum modo presentes no curso de Coimbra, devido em parte
Bolonha, em 2008, as disciplinas de Projecto viram o seu número
62 Num colóquio recente realizado em Coimbra para discutir estas questões,
defendeu-se a ideia de “Ensinar pelo Projecto”, publicado em Joelho, n.º 4, 2013,
61 COSTA, Alexandre Alves, Introdução ao Estudo da História da Arquitectura Portuguesa. propondo uma valorização das metodologias próprias do arquitecto, o projecto e da sua
Porto: FAUP Publicações, 1995. ferramenta privilegiada, o desenho.

184 185
à acção dos professores do Porto e Lisboa no processo de IMAGENS
construção do curso. A formação deste conjunto de professores
no âmbito da Reforma de 57, ainda que sob uma forte consciência 01 Gravura de Carolus Grandi do “O antigo Colégio da Companhia de Jesus em Coimbra, [Porto, Simão Guimarães], [1732].
crítica, terá com certeza permitido construir em Coimbra um Arquivo da Biblioteca Nacional.
curso que procura conciliar as Artes e as Ciências, o Projecto e a 02 © Col. Estúdio Mário Novais | FCG - Biblioteca de Arte e Arquivos, CFT003.103706.
Teoria, valorizando a própria cidade como espaço privilegiado de 03 © Fundação Marques da Silva, Arquivo Maria José Marques da Silva, FIMS/MSMS/1921-pd2592.
aprendizagem. A reforma de Bolonha, implementada em Coimbra 04 © Fundação Marques da Silva, Arquivo José Marques da Silva, FIMS/MSMS/0154-pd001718.
no ano lectivo de 2008/2009, obrigou os cursos de Arquitectura 05 Carlos Ramos. Exposição retrospectiva da sua obra, Lisboa, FCG, 1986, [70].
a atravessar um processo semelhante ao da Reforma de 57. 06 © Fundação Marques da Silva, Arquivo Fernando Távora, FIMS/FT/F6-pd0001.
Ou, numa outra perspectiva, Bolonha encerrou o processo 07 © Fundação Marques da Silva, Arquivo Octávio Lixa Filgueiras.
aberto em 1957, com a entrada definitiva no espírito universitário 08 © Arquivo FAUP-CDUA, FAUP/CDUA/EBAP/CA/TE/URBLG/001/mç1-1-pd04.
e nas suas lógicas pedagógicas e científicas. 09 © Arquivo FAUP-CDUA FAUP/CDUA/E(S)BAP/CA/EdfUP/BA-40.
10 © Fundação Marques da Silva, Arquivo Raúl Hestnes Ferreira
11 © Arquivo FAUP-CDUA, FAUP/CDUA/E(S)BAP/CA/AE/TE/BienalSPaulo1953.
12 © Arquivo FAUP-CDUA, FAUP/CDUA/E(S)BAP/CA/EdfUP/BA-01.
13 © Arquivo FAUP-CDUA, FAUP/CDUA/ ARQAN1/009/PR10.
14 © Fundação Marques da Silva, Arquivo Fernando Távora, FIMS/FT/Caixa 2, ESBAP.

O Ensino Moderno da Arquitectura na Escola do Porto: fundamentos para a Escola de Coimbra | Gonçalo Canto Moniz
15 © Fundação Marques da Silva, Arquivo Fernando Távora.
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

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Souvenir de Constantinople.
Notas sobre arquitectura e (estetização da) política.

Pedro Levi Bismarck

De entre todas as virtudes que podemos consignar à arquitectura,


uma das mais sublimes é a capacidade que esta tem de revelar
o inconsciente do poder. Aquilo que o poder se recusa a dizer
ou que procura a todo o custo esconder no tecer imperscrutável
da linguagem política, acaba sempre por aparecer nas obras
que constrói. Siegfried Kracauer, em 1930, já chamava atenção
para isso mesmo, afirmando que as “imagens espaciais são
os sonhos da sociedade”, hieróglifos à espera de serem decifrados.1
É por esta razão que as obras arquitectónicas se apresentam como
um objecto de estudo frutífero para compreender aquilo que são
os discursos de poder de cada época e as suas mais ocultas ambições.
E a nossa não é excepção.

Souvenir de Constantinople. Notas sobre arquitectura e (estetização da) política. | Pedro Levi Bismarck
I. O Parque Taksim Gezi em Istambul: um hieróglifo

O projecto para um Centro Comercial no Parque Taksim Gezi,


no centro de Istambul, que o governo do primeiro-ministro turco
Recep Tayyip Erdoğan fez avançar com toda a força em Maio
de 2013, é um desses hieróglifos que brilham por entre os ardis
opacos da linguagem política. Ele é precisamente a imagem espacial
da estratégia governamental de Erdogan. E este é o facto que nos
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

permite compreender porque é que uma disputa aparentemente


local se tornou rapidamente num gesto mobilizador e num
braço de ferro, que incluiu a ocupação prolongada do parque por grupos
espontâneos de cidadãos e uma violenta e autoritária resposta policial.2

1 “As imagens espaciais são os sonhos da sociedade. Sempre que os hieróglifos de


uma qualquer imagem espacial são decifrados, a base social da realidade apresenta-se.”
KRACAUER, Siegfried. “Employment Agencies: The construction of a space”. In
Rethinking Architecture, (ed. LEACH, Neil). London: Routledge, 1997, p. 60 (tradução livre).
2 Os protestos começaram a 28 de Maio de 2013, como resposta directa ao início da
construção do Centro Comercial no Parque Taksim Gezi, levando à sua ocupação.
A 15 de Junho uma violenta acção policial expulsou os manifestantes.
Ver: http://en.wikipedia.org/wiki/2013_protests_in_Turkey#Violence_and_vandalism

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Mas comecemos pelo início. O Parque Taksim Gezi ocupa uma e argúcias teológicas”,5 imperiosamente vestida com os trajes
posição significativa na cidade de Istambul, tanto geograficamente das mais puras tradições Otomanas, unicamente para dissimular o
como historicamente. Se, por um lado, é um dos poucos espaços seu programa neoliberal.6 Em suma: um hieróglifo à espera de ser
verdes numa cidade densamente povoada, situado entre a cidade decifrado. Uma fachada esplendorosamente otomana que canta a
antiga e a nova Istambul, por outro lado, ele foi sempre um lugar glória dos valores turcos, mas que mais não faz que esconder uma
tradicional de contestação e protesto. Para além disso, o parque ocupa outra glória bem mais actual: a dos franchisings e das multinacionais,
o terreno de um antigo quartel militar, o Taksim Kışlası, construído da especulação imobiliária e do capitalismo financeiro global.
em 1806 durante o reinado do Sultão Otomano Selim III. Desenhado Contudo, esta não tem sido uma estratégia exclusiva do governo
pelo arquitecto arménio Krikor Balian, era uma gigantesca estrutura, turco, tendo-se tornado parte integrante do skyline de uma certa
síntese exemplar da arquitectura otomana tardia, formada por política ocidental europeia recente. Berlim é um bom exemplo,
quatro alas que fechavam um gigantesco pátio destinado a paradas onde à custa de um sistemático apagamento da memória recente
01 Postal do antigo quartel Otomano, militares. Em 1909 sofreu danos consideráveis ao ser o palco de um da fria divisão da cidade, se tem procurado erigir da poeira histórica
Taksim Kışlası c.1911. contra-golpe islâmico contra o novo regime constitucional, tendo os mais altos símbolos do passado prussiano. Exemplo disso foi a
sido depois progressivamente abandonado até que, em 1941, foi demolição cirúrgica dos edifícios de desenho comunista na famosa
demolido para dar lugar ao actual Parque Taksim Gezi – seguindo Unter den linden e o desmantelamento do Palast der Republik (a antiga
o plano director da cidade de Istambul elaborado pelo arquitecto casa-mãe da República Democrática Alemã), para dar lugar a uma
e urbanista francês Henri Prost.3 A sul do parque encontra-se a Praça construção ex novo do antigo Stadtschloss – seriamente danificado nos
Taksim, com o imponente monumento à formação da República bombardeamentos de 1945 e mais tarde demolido pelo governo da
Turca e o centro cultural Atatürk. Todo um espaço simbólico RDA. E que, tal como o centro comercial do Parque Taksim Gezi,
e referencial de constituição da República Turca, mas também não passa de uma réplica dessas nostálgicas fachadas prussianas,
de todas as disputas dentro de um complexo processo de secularização. bem no coração da nova grosstadt alemã. De qualquer modo, trata-se 04 Representação tridimensional do
E se o nome Taksim significa, um tanto ou quanto ironicamente, menos de criticar estas políticas da memória colectiva, mas perceber Berliner Stadtschloss.

Souvenir de Constantinople. Notas sobre arquitectura e (estetização da) política. | Pedro Levi Bismarck
divisão e distribuição – pois era o antigo lugar onde as linhas de água em nome de quê e de quem é que estas surgem.
convergiam e eram distribuídas para o centro da cidade –, ele define
bem a sua própria condição enquanto espaço de divisão (confronto), II. A “estetização da política”
mas também, de distribuição (encontro): um espaço de partilha
e participação no destino político da democracia turca. Para Walter Benjamin, o principal atributo do fascismo não estava
É precisamente e literalmente este espaço de divisão e partilha tanto na concentração totalitária do poder, mas na concretização
que Erdogan procura ocupar e, sobretudo, anular, fabricando de um metódico sistema de produção de visibilidades (uma máquina
uma réplica bric-à-brac do antigo quartel Otomano, preenchendo-o de propaganda), cujo mérito estava em dar expressão às massas
02 e 03 Representações tridimensionais com um vasto programa de lojas, restaurantes, cinemas e bares, (ao proletariado) sem, no entanto, responder às suas exigências
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do projecto do governo turco para o num misto de centro cultural, recreativo e desportivo, fazendo de transformação das relações de propriedade. Essa (não)-política
Centro Comercial Taksim Gezi.
do pátio um gigantesco espaço flexível que tanto pode receber que transformava cada evento, cada comício e o próprio führer,
jogos de futebol como concertos ao ar livre, mas com certeza numa performance estética e num espectáculo, justamente, de
não manifestações nem protestos. É isso que mostram as várias massas e para as massas, correspondia àquilo que Benjamin chamava
imagens tridimensionais: um multi-complex de entretenimento e a “estetização da política”. Isto é, a “introdução da estética na vida
consumo comodamente vestido com uma eloquente retórica política”, usando e manipulando magistralmente os recém-chegados
nacionalista, conservadora e pacificadora.4 A melhor imagem espacial mass media. Na formulação tão subtil como hábil de Benjamin:
da estratégia governativa de Erdogan, cheia de “subtilezas metafísicas

5 Referência à definição de mercadoria de Karl Marx in O Capital, Vol. I, Cap. 1. Secção 4,


“O fetichismo da mercadoria e o seu segredo”.
3 Cf. http://www.hayal-et.org/i.php/site/building/taksim_klas (acedido em Julho de 2013). 6 Nestes últimos anos, a islamização da sociedade foi acompanhada de um
4 Mais informações: http://www.nytimes.com/interactive/2013/06/07/world/europe/ desmantelamento cirúrgico do Estado, e à medida que avançaram as privatizações de
The-Plan-to-Change-Taksim-Square.html?ref=europe (acedido em Julho de 2013). serviços e empresas, sucedeu-se uma política agressiva de especulação imobiliária.

190 191
“o fascismo (…) vê a sua salvação na possibilidade que dá Pois, como sustenta Jacques Rancière, a democracia antes de
às massas de se exprimirem (mas com certeza não a de ser uma forma de governo ou um estilo de vida social é a
exprimirem os seus direitos)”.7 instituição mesma da política. A política não como exercício
Ora, se olharmos com mais atenção essa relação entre de poder mas como acto de subjectivação, um processo
fascismo e “estetização da política”, talvez possamos chegar de emancipação que contesta e modifica a ordem natural
a compreender melhor a crise actual da nossa democracia dos corpos: um falar quando não é para falar, um aparecer quando não
e abandonarmos, de uma vez por todas, a tradicional oposição é para aparecer. 9 Nesse sentido, a democracia não se faz através
05 Mapa do parque Gezi, mostrando fascismo/democracia. Pois, daquilo que somos espectadores do véu suave de um qualquer consensus (consenso) instituído,
os diversos serviços e acções diários é de uma absoluta estetização da política, que não só mas antes pelo gesto polémico daquilo que Rancière chama
providenciados pelos manifestantes.
se manifesta no facto de ela se ter transformado em puro o dissensus (dissenso). Que não é uma qualquer querela de
espectáculo televisivo, mas também, porque o actual regime interesses pessoais, mas a possibilidade que o demos (o povo,
não faz outra coisa do que replicar artifícios imagéticos, os comuns) detém de perturbar e reconfigurar as “partilhas
discursivos e reais (como essas belas fachadas otomanas do sensível” convencionadas, isto é, as (dis)posições estéticas
e prussianas), que constantemente escondem a verdadeira da percepção, do pensamento e da acção que definem em cada
natureza dos programas políticos em curso. Com as suas momento o que é da ordem do dizível e do visível, quais os
subtilezas metafísicas, o poder dá-nos a ilusão que fala por papéis e as partes que cabem a cada um ocupar, os lugares e as
nós, pela nossa história e pelo nosso futuro, pela nossa formas de participação num mundo comum. 10 E, assim, traçar
democracia e pelos seus valores. “Os poderes precisam menos linhas-de-fuga inesperadas e inclassificáveis que “vêm fender
de nos reprimir do que angustiar”, 8 dizia Deleuze, e precisam a unidade do dado e a evidência do visível para desenhar uma
menos de nos proibir do que trabalhar com os sonhos nova topografia do possível”. 11
do nosso mais secreto imaginário cultural e individual.
IV. Tornar visível: arquitectura, urbanização e despolitização

Souvenir de Constantinople. Notas sobre arquitectura e (estetização da) política. | Pedro Levi Bismarck
III. Política (do sensível): divisão e partilha do comum
Para além disso, se o espaço do capitalismo é esse “mar
Aquilo que começamos agora a aprender é que o actual inescapável da urbanização”,12 como argumenta Pier Vittorio
poder democrático, seguindo a formulação de Benjamin, dá a Aureli, a configuração sem limites do território debaixo
possibilidade de nos exprimirmos, mas com certeza não a de exprimirmos de um “paradigma gestionale”13 económico, uma “zona de
os nossos direitos. E o singular direito democrático que está
em causa é o direito à politização contra a estetização: o direito
9 RANCIÈRE, Jacques, Dissensus. On Politics and Aesthetics. London: Bloomsbury,
de acedermos à esfera da política da qual fomos espoliados.
2013, p. 32.
Política-polis como lugar do comum, como único lugar possível
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

10 RANCIÈRE, Jacques, Estética e Política. A Partilha do Sensível. Porto: Dafne, 2010.


de garantia da nossa liberdade individual e colectiva.
11 RANCIÈRE, Jacques, “As desventuras do pensamento crítico” in O espectador
Uma maneira de reclamar esse direito passará certamente
emancipado. Lisboa: Orfeu Negro, 2010, p. 73.
por impedir que esse espaço fundamentalmente democrático
12 A urbanização tal como a propõe Pier Vittorio Aureli vai ao encontro
de divisão (confronto) e partilha (encontro) seja anulado.
da definição inicial de Ildefons Cerdà, “como o dispositivo expansionista e
integrador que está na base das formas modernas de governação» e que tendem
7 “O fascismo (…) vê a sua salvação na possibilidade que dá às massas de se a «absorver a dimensão política da coexistência (a cidade) dentro da lógica
exprimirem (mas com certeza não a de exprimirem os seus direitos). As massas têm económica da gestão social (urbanização)”. Na urbanização todas as diferenças são
o direito de exigir a transformação das relações de propriedade; o fascismo procurava absorvidas dentro de um processo de crescimento infinito que absorve e integra
dar-lhes expressão conservando intactas aquelas relações. Consequentemente, o tudo dentro de uma lógica unicamente económica e naturalmente despótica.
fascismo tende para a estetização da política”. BENJAMIN, Walter, “A obra de arte na AURELI, Pier Vittorio, The possibility of an absolute architecture. Cambridge: MIT
época da sua possibilidade de reprodução técnica”, in A Modernidade. Lisboa: Assírio & Press Books, 2011, p. x.
Alvim, 2006, p. 239. 13 É preciso compreender a urbanização dentro do quadro de um novo paradigma
8 DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire; Diálogos. Lisboa: Relógio d’Água, 2004, p. 80. em que a política é substituída pela economia (e que Michel Foucault trabalhou

192 193
pura logística”14 onde tudo é integrado e absorvido, gerando um de partilha e disposição dos espaços e dos tempos, dos lugares e dos
espaço liso e sem qualidades onde as contradições e as inequalidades corpos, uma forma de recortar o espaço comum e privado, de o repartir
da produção capitalista são ultrapassadas (ocultando-as e não e compartimentar, um modo específico de visibilidade.16 Se há uma
resolvendo-as), a nossa tarefa – e devemos falar como arquitectos maneira possível de entender uma certa politicidade da arquitectura
– deverá ser, seguindo aquela expressão de Paul Klee, tornar visível o será talvez neste sentido. A sua capacidade de transformar limites
invisível, desvelar, retraçar esses limites ocultos da cidade.15 Ou, dito em limiares, de fazer da pedra dura um umbral, da soleira um limes,17
de um outro modo, fender essas “partilhas do sensível” dominantes, uma margem inclassificável, um ponto de ligação e de permanência,
fazer aparecer as divisões, os dissensus, erguer barreiras e anti-espaços de chegada e de partida. Um lugar onde há sempre uma palavra
contra os processos que procuram anular e diluir esses lugares cruciais e um mundo que se pode partilhar ao outro. A possibilidade sempre
do confronto (divisão) e do encontro (partilha) democrático na cidade. presente de desenhar uma nova “topografia do possível”.
Se a política é esse gesto de traçar uma divisão, provocando um
espaço de visibilidades que se opõe ao espaço despolitizado e sem V. Espaços limite, “espaços de aparência”
rostos da urbanização, poderíamos argumentar que a arquitectura
é, em si mesma, um exercício sobre limites. Ela define linhas, É dentro desse processo de urbanização e despolitização que devemos
limiares de separação e de estar junto, estabelece hierarquias entre ver a história recente tanto de Berlim como de Istambul. No caso
o que pode ser visto e o que está oculto, o que pode ser usado de West-Berlin, se a sua condição-limite lhe permitiu durante
ou que permanece proibido, desenha formas e modos de articulação a Guerra Fria converter-se numa margem inclassificável, um limes fora
entre o próprio e o comum. (Ab)usando um pouco mais (d)o glossário e contra as coordenadas dominantes da percepção, pensamento
rancièriano poderíamos defini-la, sobretudo, como um regime e acção, ao invés, a Queda do Muro e a sua reconfiguração em grosstadt
significou a limpeza e a exclusão do seu centro de todos os espaços,
usos e formas de vida que não estivessem dentro da nova logística
detalhadamente: a passagem de um poder soberano para aquilo que se pode chamar
económica da cidade capitalista. Como perguntava sem ironias o

Souvenir de Constantinople. Notas sobre arquitectura e (estetização da) política. | Pedro Levi Bismarck
um governo dos homens e das coisas, uma economia. Podemos ler essa alteração de
jornal berlinense Tagesspiegel recentemente: “como pode uma cidade
paradigma como a substituição da cidade (Gr.: polis, política) pela casa (Gr. oikos,
que quer crescer economicamente preservar o charme do inacabado
oikonomia), literalmente: uma domesticação da cidade. Recordar, como diz Hannah
e do anárquico?”. Por outro lado, devemos ver o Parque Taksim
Arendt, que a democracia grega é possível na medida em que cria um espaço (a ágora)
Gezi como um desses lugares, não apenas entre cidade antiga e
de igualdade e liberdade, feito de relações reversíveis e não impostas, opondo-se à casa,
nova, mas um espaço-limiar fora das políticas convencionais de
que era o âmbito das relações naturais e despóticas do espaço familiar.
ocupação do espaço e do tempo, dos modos dominantes de encontro
Como Giorgio Agamben devemos ver a urbanização, ou o que este chama a metrópole,
entre pessoas, um espaço-margem à espera de ser apropriado:
como um processo literal de despolitização e dessubjectivação: no sentido em que se trata
não-funcional, não-económico, não-determinado. E aquilo que de
da substituição de um modelo de cidade formado a partir de um centro, no qual há um
facto estava em causa (e os cidadãos de Istambul foram rápidos
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

espaço público, uma ágora, para uma nova espacialização metropolitana homogénea
em reconhecê-lo) não era apenas a construção de mais um centro
que absorve todas as distinções (privado e público, económico e político, etc.), fundada
comercial, mas essa sistemática dissolução e urbanização desses
num paradigma gestionale (Cf. AGAMBEN, Giorgio. Metropolis). Para Aureli, se a No-Stop City
espaços-limes da subjectivação política. Ou, para usar as palavras
(Archizoom, 1968-72) é o paradigma desse modelo onde todas as relações humanas
de Hannah Arendt, aqueles “Espaços da Aparência” que tornam
são reguladas unicamente pela lógica económica, por outro lado, The City of the Captive
possível uma certa experiência da igualdade, “onde eu apareço aos
Globe de Rem Koolhaas (1972) é o prelúdio a uma cidade feita de enclaves, o resultado
do regime capitalista de acumulação e lucro, criando mónadas independentes onde toda
a lógica de inclusão/exclusão se dissolve. Um enclave sem exterior e sem outro, sem 16 RANCIÈRE, Jacques, “Os Paradoxos da arte” in O espectador emancipado. Lisboa:
co-existência e sem confronto. AURELI, Pier Vittorio, op.cit. Orfeu Negro, 2010.
14 No mesmo sentido: a cidade e o território como um vasto campo logístico onde 17 Limes, a origem latina da palavra limite tinha um significado ligeiramente diferente,
imperam o despotismo das trocas, os fluxos informacionais e a circulação das pois dava nome àquele espaço que ficava nas fronteiras do mundo civilizado romano. 06 Biblioteca itinerante montada no
mercadorias. VIRILIO, Paulo, Speed and Politics. Los Angeles: Semiotext(e), 2006. Uma área de intenso contacto e de trocas, um limiar entre dois mundos. Uma certa Parque Gezi.

15 “Arte não reproduz o visível; antes, torna-o visível”. KLEE, Paul, “Credo do consciência dos seus próprios limites, de finitude, mas também de contiguidade e de
criador” (1920), in Escritos sobre arte. Lisboa: Cotovia, 2001. partilha. TRÍAS, Eugenio, La Lógica del límite. Barcelona: Destino, 1991.

194 195
outros como os outros aparecem a mim”,18 e que são o locus do o espaço do modelo de pura logística em que está encerrado
político e sem os quais nenhuma democracia pode existir. (grelha abstracta de fluxos e funções, de tipologias e
programas codificados), para colocá-lo na intersecção de um
Addendum: a partilha e a disposição dos espaços campo tanto ético como político e social. Isto permite-nos
considerar dois aspectos. Por um lado, problematizar o projecto
Para Pier Vittorio Aureli a arquitectura é, ou deve ser, de arquitectura para além das parábolas formais, das questões da
essencialmente agonística,19 tanto no sentido em que a linguagem e da tectónica dos materiais, saindo do quadro modernista
07 O que sobrou da pequena Biblioteca estratégia de projecto deve exceder o mero acto de construir e que tende a conceber a arquitectura como instrumento civilizador
após o violento despejo policial. reconhecer-se como um acto (político) de decisão e julgamento ao serviço do progresso tecnológico e material. E, por outro lado,
relativamente à realidade, como pelo facto da forma arquitectónica compreender que se o político em arquitectura pode ser tematizado,
ser ela própria política: ela é uma experiência do limite, encontrado ou problematizado, é na medida em que esta é
a articulação da relação entre interior e exterior, um acto de separar fundamentalmente um dispositivo21 que instalando e dispondo lugares
e compor partes (decidir é sempre um caedere: cortar).20 e corpos, trabalha tipos e programas, articula interior e exterior,
Contudo, se, por um lado, a leitura aureliana permite- doméstico e público, organiza e hierarquiza homens, actividades e coisas.
nos pensar a cidade como composição de partes separadas Simultaneamente, ao dizer que a arquitectura é um dispositivo 08 O aeroporto de Tempelhof em
(um espaço tanto de coexistência como de confronto) devemos reconhecer, como assinala Giorgio Agamben, que Berlim, desactivado em 2008, está no
centro de uma polémica entre aqueles
e a arquitectura como um arquipélago de formas absolutas que estes implicam sempre tanto um processo de individuação
que reclamam que este se mantenha tal
confrontam as forças da urbs; por outro lado, esta parece uma (o meio a partir do qual o indivíduo assume a sua singularidade)
como está, um parque, e os lobbies que
transcrição excessivamente formalista tanto da noção de agonismo como um processo de sujeição a um poder externo.22 procuram a todo o custo transformar os
como da própria cidade, não permitindo compreender todas Se, por um lado, a arquitectura está sempre no centro 300 hectares duma zona privilegiada da
as implicações da urbanização como processo de despolitização e de uma tensãoentre Poder-Saber, também é verdade, que cidade em área construída.
dessubjectivação. Neste sentido, o glossário rancièriano tem a virtude por estar no centro da divisão primordial entre physis

Souvenir de Constantinople. Notas sobre arquitectura e (estetização da) política. | Pedro Levi Bismarck
de nos permitir sair de uma lógica binária de oposições do tipo amigo (natureza) e o humano, entre morte e vida, entre criação
versus inimigo, forma absoluta versus urbanização, e identificar a cidade, e destruição, ela possui uma condição artística e poética que lhe
seguindo Michel Foucault, como uma complexa tessitura de dispositivos, permite romper e perturbar esses processos individuação/sujeição
de procedimentos, de tecnologias, de discursos e formas, que organizam e essas “partilhas do sensível” dominantes, propondo e
as relações de poder no espaço e no quotidiano. construindo novos enunciados colectivos, traçando outros espaços
Neste sentido, mais do que opor formas singulares ou arquipélagos de subjectivação, outras formas de resistência capazes de sair dos
que cortam ou separam a paisagem urbanizada da cidade, talvez modos de sociabilização instituídos.
fosse preferível falar antes de um recortar do espaço ou de uma
técnica dos espaços. Ao colocar a arquitectura como esse regime
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

21 A noção de dispositivo aqui presente vai ao encontro da tematizada por Michel


de partilha e disposição dos espaços, do comum e do próprio,
Foucault ao longo da sua obra. O dispositivo é um “conjunto heterogéneo de discursos,
do visível e do invisível, do usado e do proibido, retira-se
instituições, formas arquitectónicas, regulamentos, leis, medidas administrativas,
declarações científicas, proposições filosóficas, morais e filantrópicas – em suma, o
18 ARENDT, Hannah, The Human condition. Chicago: The University of Chicago dito tanto como o não dito (…) O dispositivo está assim sempre inscrito num jogo de
Press, 1958, p. 198-199. (tradução livre) poder, mas está também sempre ligado a certos limites do conhecimento [saber] que
19 O agonismo tematizado por Aureli é a condição essencial de uma política como surgem dele e que, da mesma maneira, o condicionam”. FOUCAULT, Michel, Power/
contraposição de partes e sujeitos, onde o acto político de subjectivação implica um Knowledge: Selected Interviews and Other Writings, 1962-1977, ed. C.Gordon, Pantheon
decidir, um julgamento e um tomar parte, reconhecendo sempre a (o)posição do outro. Books, 194-196. Recordar que a palavra dispositivo provém do latim dispositio, dis-poner,
É neste sentido que Aureli diz que “o formal e o político são categorias coincidentes, isto é, disposição, um modo de ordenar. Por sua vez esta é a tradução latina do termo
porque ambas endereçam a possibilidade de separação, composição e contraposição” grego: oikonomia. Giorgio Agamben desenvolveu este termo de forma decisiva em What
(AURELI, Pier Vittorio, op.cit, p.x). Este foi um termo igualmente enunciado e is an apparatus?. Stanford: Stanford University Press, 2009.
tematizado por Michel Foucault e Chantal Mouffe. 22 AGAMBEN, Giorgio, Metropolis, Seminário Uni.Nomade “Multitude/Metropolis”,
20 AURELI, Pier Vittorio, op.cit, p. 27-28. IUAV, 28 de Outubro 2006.

196 197
A arquitectura é sempre a formação de uma ordem, mas, do mesmo campo próprio da sua acção e combater a sua progressiva
modo, nunca deixa de criar as suas próprias transgressões e linhas transformação em mera técnica (já sem archein): isto é, num regime
de fuga: não há labirinto que não tenha a sua maneira própria de burocratizado e estetizado de produção de imagens, signos,
escapar, mesmo o de Dédalo. formas, que não são mais que ornamentos (para usar um termo
Aquilo que se procura aqui sugerir é apenas uma maneira caro a Adolf Loos) numa democracia convertida em paisagem
possível de pensar esse processo de urbanização/despolitização, urbanizada.
mas também de voltar a colocar o problema da arquitectura,
do que é a arquitectura, do seu papel social, do seu território
e do seu lugar e do seu futuro no conjunto das actividades
humanas. É verdade que nunca como hoje se construiu tanto,
mas também é verdade que nunca o discurso teórico sobre
a cidade e sobre a disciplina foi tão escasso (falamos, claro, daqueles
que constroem e fazem cidade, não dos redutos académicos). Se
queremos falar, e devemos falar, de uma autonomia disciplinar,
esta não deve ser uma “autonomia do desenho” mas uma
“autonomia do projecto”,23 e de modo nenhum deverá ser uma
“autonomia de” (uma recusa, um pôr-se de fora), mas uma
“autonomia para”,24 para uma capacidade autónoma de agir.
Aliás, devemos recordar que é esse agir, a capacidade de iniciar
uma acção de forma livre, que os gregos chamavam archein,
que juntamente com techne (técnica) está na base da palavra
arqui-tectura.25 Mas devemos também não esquecer, como

Souvenir de Constantinople. Notas sobre arquitectura e (estetização da) política. | Pedro Levi Bismarck
diz Rancière, que as disciplinas são sempre reagrupamentos
provisórios de objectos e questões,26 não são territórios
fechados, nem jardins mimados do saber (para evocar Nietzsche) que
conservam em câmaras de alabastro um qualquer conhecimento
arcádico. A autonomia disciplinar não se pode basear num
princípio de exclusão e recusa, mas deve sim, ser capaz de
trazer esses objectos e questões para o seu próprio território
de investigação e experimentação. Só participando nos grandes debates
culturais do seu tempo (como já avisava Ignasi de Solà-Morales27),
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

endereçando e problematizando criticamente essa partilha do


mundo e dos seus lugares (que é afinal a grande possibilidade
IMAGENS
que a democracia enquanto forma própria da política nos
deixa sempre em aberto), poderá a arquitectura defender o
01 http://www.ottomanhistorypodcast.com/2013/06/occupy-gezi-protests-taksim-
istanbul-turkey.html
23 AURELI, Pier Vittorio, op. cit, p. xiii. 02, 03 http://www.ibb.gov.tr/tr-TR/HaberResim/20709/TaksimMeydan%C4%B1-
24 AURELI, Pier Vittorio, The Project of Autonomy. New York: Princeton Architectural havadan.jpg
Press, 2013, p. 12. 04 http://www.bz-berlin.de/bezirk/mitte/auf-diese-steine-kommt-das-berliner-
25 ARENDT, Hannah, A Promessa da Política. Lisboa: Relógio d’Água, 2007, p. 99. schloss-article1692846-image4.html
26 RANCIÈRE, Jacques, Et tant pis pour les gens fatigués. Paris: Éditions Amsterdam, 2009, 05 http://occupygezipics.tumblr.com/
p. 478. 06 http://occupygezipics.tumblr.com/
27 SOLÀ-MORALES, Ignasi, “Sadomasoquismo. Crítica y prática arquitectónica” 07 http://occupygezipics.tumblr.com/
(1988), in Diferencias. Barcelona: Editorial GG, 2003, p.152. 08 Fotografia do autor.

198 199
Advertência ou nota introdutória Correspondências
O texto que agora se publica foi escrito para um seminário de
boa memória organizado por um grupo de estudantes que,
interessado, na teoria e na prática, pela delicada questão das práticas
arquitectónicas, me mobilizou para explicar o que pensava. Era, à
época, matéria sensível que nos dividia (e, de certo modo, ainda hoje
nos divide) e que, com frequência, me excluía de diversas formas de
expressão e do pensamento arquitectónicos dominantes. José Miguel Rodrigues
O que com este texto escrito procurei, na altura, dar a ver, não
é hoje muito distinto do que então pensava: um lugar comum. A 1 | Abertura (tema)
arquitectura é uma disciplina entre a arte e a técnica, entre a arte e
a ciência, isto é: entre o estado da arte (da Ciência) e o artefacto em Rien n’est transmissible que la pensée1
estado puro (próprio da Arte autêntica), aparentemente sem lugar a
interpretações (como ensaia Susan Sontag), ao mesmo tempo que, Assim concluía Le Corbusier uma vida dedicada à arte da
do meu ponto de vista, só no interior do limitado e espartilhado Arquitectura, testemunho da importância do pensamento para
espaço da hermenêutica, se pode pretender investigar a arquitectura. a disciplina. Com Correspondências pretende-se dar a ver alguns
A interpretação será, assim, tudo o que precisamos, mas, também, aspectos metodológicos comuns às várias dimensões ‘práticas’ da
tudo o que temos, para quem quiser persistir na ideia de investigar arquitectura: o projecto, a investigação e a escrita, em definitivo e
o nosso ofício. E, por esta razão, será, até, quem sabe, a nossa única numa palavra, o conhecimento. ‘Em definitivo’, porque, do nosso
esperança de investigadores-arquitectos, mesmo que, sempre sob ponto de vista, o projecto e a investigação vivem e dependem do
a sombra do incómodo e seminal Contra a Interpretação de Sontag. conhecimento (o projecto precisa do conhecimento e a investigação
Regressei ao meu próprio ensaio, escrito na ocasião para ser lido visa o conhecimento) e por isso, num certo sentido, o conhecimento
publicamente, quando, posteriormente, recorri a ele como pedra de é a raiz e o destino de todas as práticas, enquanto o projecto e a
arremesso num complexo e duro debate sobre o plano de estudos investigação apresentam diferenças, apesar de tudo, significativas e
e o futuro da escola. A recusa em renunciar ao plural da palavra inultrapassáveis, que, julgo, convém estarmos cientes.
prática para falar das diversas vertentes do trabalho arquitectónico,
no meu caso, vem de longe. Possivelmente, virá da escola que me Como é evidente, não se pretende pôr em causa a formulação
formou e que me levou a ser, sobretudo, mal ou bem, uma pessoa escolhida para o ciclo de lições que motiva este ensaio – Prática[s]
do fazer. de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita – já que a opção por
estas palavras, implicando consigo escolhas, traduz necessariamente
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

o que se pretende analisar e até, não devemos temê-lo, o que


José Miguel Rodrigues queremos discutir. Proporei, no entanto, para iniciar e ajudar
casa cor-de-rosa: Siza barroco, 29.07.2022 ao esclarecimento desta questão, percorrer outra tríade – talvez
não totalmente alternativa a esta – que Ignasi de Solà-Morales,

Correpondências | José Miguel Rodrigues


1 “Nada é transmissível além do pensamento” (esta e as restantes traduções que se
seguem, são da responsabilidade do autor).
Nota do editor apensa ao título citado: “O extracto do texto que vamos ler foi escrito
por Le Corbusier um mês antes da sua morte. Este é o seu último escrito. Pode ser lido
como uma autobiografia, como um testamento espiritual ou como um monólogo de
um homem que faz o balanço da sua obra.”
LE CORBUSIER, Œuvre complète, Vol. 8 – Les dernières Œuvres (publié par Willy
Boesiger). Zürich: Les Editions d’Architecture, 1995, p. 168.

200 201
possivelmente em contexto não muito distinto, colocou no centro teve também, creio, receio desta contaminação. Por outro lado,
da nossa atenção. Peter Eisenman, no seu doutoramento que construiu contra a tese
de Alexander – The Formal Basis of Modern Architecture8 – procurou,
2 | Práticas teóricas, práticas históricas, práticas arquitectónicas precisamente, esta contaminação que Alexander evitou.
(uma releitura de Ignasi de Solà-Morales)
Esta situação que continua presente no nosso limitado horizonte
Refiro-me evidentemente ao seu conhecido texto – “Práticas académico e profissional é, segundo Solà-Morales, inaceitável, tanto
teóricas, práticas históricas, práticas arquitectónicas”2 – mais quanto esta “esquizofrenia teórico-prática (…) se enriquece
originalmente publicado no número 21 da 2.ª série da revista Zodiac.3 com os contributos transdisciplinares (…) de outros âmbitos do
Neste texto, no qual Solà-Morales discute o papel da História, conhecimento.”9
hoje, para a Teoria da Arquitectura, o autor descreve com precisão
a situação de divórcio que actualmente se vive no meio académico, “(…) A acção sem reflexão é simplesmente a execução da ideologia
nele podendo ser incluído o nosso próprio: “uns reclamam-se do estabelecida. Uma enorme parte da arquitectura que se constrói, e
privilégio de ser a voz iluminadora da consciência crítica” (i.e., os uma não negligenciável da que se ensina sustenta-se em tópicos que
teóricos) e os outros – masoquistamente – fazem arquitectura com “a não se discutem, sobre decisões estéticas e éticas que se assumem,
consciência desassombrada notada por Marx (no 18.º Brumário) sem as submeter a qualquer revisão”10 crítica (acrescente-se).
‘dos que fazem sem saber o que fazem’” (i.e., os práticos). Estes
são apoiados pelas “revistas gráficas de arquitectura” e pelos “A acção prática da arquitectura assemelha-se a uma actividade in vitro,
livros profusamente ilustrados que publicam as suas obras como algo que se desenvolve no interior de uma atmosfera”11 controlada,
algo “auto-suficiente que se explica em si mesmo, cujo acesso e cujas condições estão pré-determinadas e que são consideradas
compreensibilidade são imediatos e cujo valor é evidente”.4 enquanto dados inquestionáveis. “A prática desenvolve-se entre uma
limitadíssima banda de opções que define um leque de alternativas
“É todavia hoje a História o paradigma da teoria arquitectónica?” – tão reduzido que acaba por converter estas alternativas em puras
questionará – “Se procurarmos responder a esta questão, tanto banalidades.”12
do lado da História como do lado da Teoria (…) a resposta –
afirmou Solà-Morales – será claramente: não.”5 “A chamada teoria, pela sua parte, através de canais académicos
e editoriais muito precisos13 dá-se a ver, ou com finalidades
“(…) Um suposto academismo avançado passou a considerar de ornamentais (sempre é de bom tom acompanhar a informação
bom tom, de honestidade intelectual que o teórico da arquitectura sobre um edifício com o breve texto ‘crítico’ de um teórico que
não se contamine com a prática; poderia acontecer que sujasse as cante os elogios do produto) ou, pelo contrário, o discurso teórico
mãos ou condicionasse a sua suposta independência intelectual de ensimesma-se num círculo autónomo, cada vez menos relacionado
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

teórico.”6 Christopher Alexander em Notes on the Synthesis of Form7 com a prática (…).”14

2 SOLÀ-MORALES, Ignasi de, Incripciones, (prol. Anthony Vidler). Barcelona:


Gustavo Gili, 2003, p. 257-266.

Correpondências | José Miguel Rodrigues


3 Na Zodiac o referido texto de Solà-Morales surge publicado conjuntamente com 8 EISENMAN, Peter, The formal basis of modern architecture. Baden: Lars Müller
dois projectos seus (um construído), assim confirmando o carácter teórico-prático da Publishers, 2006.
sua actividade como arquitecto. 9 SOLÀ-MORALES, Ignasi, op. cit., p. 265.
SOLÀ-MORALES, Ignasi de, “Prácticas teóricas, prácticas históricas, prácticas 10 Idem, ibidem.
arquitectónicas” in Zodiac 21, Milano: Abitare Segesta, Luglio, Dicembre, 1999, p. 46-59. 11 Idem, ibidem.
4 SOLÀ-MORALES, Ignasi, op. cit., p. 265. 12 Idem, pp. 265, 266.
5 Idem, p. 262. 13 De que, refira-se, as revistas ISI e os seus rankings são a face visível,
6 Idem, ibidem. acrescentaríamos, a propósito.
7 ALEXANDER, Christopher, Notes on the synthesis of form. Cambridge: H.U.P., 1970. 14 Idem, p.266.

202 203
Curiosamente, porém, sublinhe-se, o tom crítico de Solà-Morales O objectivo deste ensaio é justamente procurar mostrar isto que
perpassa também a Teoria (e a História). acabei de propor. Isto é, que, tal como Viollet-le-Duc, Herman
Muthesius, Adolf Platz, Ludwig Hilberseimer, Sigfried Giedion,
“A impunidade da teoria e da história baseia-se no facto de apenas Nikolaus Pevsner, Leonardo Benevolo e Bruno Zevi – para citar os
ser ajuizada desde o seu interior e ter pouca receptividade entre autores que Solà-Morales propôs – ou, com base na minha própria
outros especialistas da teoria e história social, da estética, da filosofia escolha – tal como Alberti, Adolf Behne, Ernesto Rogers, Aldo
ou da história política.”15 Rossi, Giorgio Grassi, Pedro Vieira de Almeida ou Alexandre Alves
Costa – é possível a partir de um tal projecto da História, como
Apesar do ponto de vista de Solà-Morales estar, quanto a Solà-Morales o descreve – “histórias instrumentais, aproximações
mim, demasiado empenhado em promover e defender a a fenómenos do passado com as quais, literalmente, [pretende-se]
interdisciplinaridade como um meio para o fortalecimento da iluminar o presente”18 e que, “nos (…) mais ambiciosos autores
teoria e prática arquitectónicas (aliás, refira-se, característica, [Solà-Morales, estará a pensar em Giedion mas também em
com facilidade, reencontrável na tratadística desde Vitrúvio – O Zevi] sempre foi um instrumento para legitimar o presente a
Arquitecto “deverá ser versado em literatura, perito no desenho partir de uma narração teleologicamente orientada do passado ao
gráfico, erudito em geometria, deverá conhecer muitas narrativas presente”19 – sublinho, com base num tal projecto instrumental da
de factos históricos. Ouvir diligentemente os filósofos, saber de História – será possível construir uma teoria da Arquitectura que
música, não ser ignorante de medicina, conhecer as decisões dos não seja, nem anterior nem consequência de uma acção in vitro,
jurisconsultores, ter conhecimentos da astronomia e das orientações mas, precisamente, uma ferramenta intelectual tão importante
da abóbada celeste”16), a sua posição, desconstruídas as frágeis quanto um instrumento – por vezes visto como exclusivamente
bases de uma suposta arrumação disciplinar em que a História da decorrente da manualidade.– como o desenho.
Arquitectura Moderna (que lecciono) ou a Teoria 2 (leccionada
pelo professor Manuel Mendes) são habitualmente vistas como Em suma, uma teoria da arquitectura que, como o desenho, seja,
puramente teóricas – ao contrário dos ‘Projectos’ muitas vezes não subsidiária, mas concomitante. Uma teoria da arquitectura que,
entendidos como eminentemente práticos – permitir-nos-á dar a também por isso, possua uma dimensão prática – justamente como
ver as várias dimensões práticas da arquitectura como ofício. o desenho – que se exprime no momento da investigação; seja na
investigação com vista ao projecto, seja na investigação com vista
Do meu ponto de vista, a teoria da arquitectura (na qual incluo a ao conhecimento. E, nessa medida, uma teoria da Arquitectura que
História feita e escrita por arquitectos – e que Solà-Morales reputa como herda os mesmos problemas, dilemas, contradições e opções do
instrumental), não só é uma especificidade nossa – dos arquitectos próprio projecto de arquitectura (de que a tradição e a originalidade –
que aprenderam a projectar (um pouco como os pedreiros de que tratarei – são tão-só o mais difícil, mas também, reconheço, o
Loos que aprenderam Latim), como constitui a possibilidade meu preferido).
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

– talvez, admito, não o único caminho, mas para mim o único


que se me afigura como possível e alcançável – de trabalhar nesse Neste sentido, o título do ensaio de Solà-Morales seria mais claro
apertadíssimo interstício entre a teoria e a prática, no qual a História se, em vez de se intitular Práticas teóricas, práticas históricas, práticas
da Arquitectura por e para Arquitectos também se inscreve (Inscrições é arquitectónicas, se intitulasse: Práticas teóricas, práticas históricas, práticas

Correpondências | José Miguel Rodrigues


aliás, não por acaso, o título do livro de Solà-Morales onde o texto de projecto. Nesse caso, todas as dimensões da arquitectura – a teoria,
que tenho vindo a citar, se fez republicar).17 a história e o projecto – estariam não só unidas, como dependentes
do seu máximo denominador comum que é a prática. Ou seja, seria
justamente a dimensão prática da teoria, da história e do projecto
15 SOLÀ-MORALES, Ignasi de, “Prácticas teóricas, prácticas históricas, prácticas
que caracterizaria cada uma destas dimensões da arquitectura. E,
arquitectónicas” in Zodiac 21, Milano: Abitare Segesta, Luglio, Dicembre, 1999, p. 266.
16 VITRÚVIO, Tratado de Arquitectura (tradução do Latim, introdução e notas por M.
Justino Maciel), op. cit., Livro I, Capítulo I. Lisboa: IST Press, 2009, p. 30, 31. 18 SOLÀ-MORALES, Ignasi de, Incripciones, (prol. Anthony Vidler). Barcelona:
17 SOLÀ-MORALES, Ignasi de, Incripciones, (prol. Anthony Vidler). Barcelona: Gustavo Gili, 2003, p. 258.
Gustavo Gili, 2003. 19 Idem, ibidem.

204 205
por seu turno, esta – a arquitectura – considerar-se-ia amputada – e comunicar – isto é, reconstituir o que se fez e pensou por
quando privada de qualquer uma destas dimensões ou, no limite, forma a que outros entendam, critiquem, usem e reequacionem o
como por vezes parece ser um desejo, se algumas destas dimensões que fizemos. Só assim, creio, o processo assumirá a completude
se visse, ela própria, impedida do seu carácter prático. necessária à essência do pensamento: a sua transmissibilidade.21

01 Brunelleschi (atrib. discutível) et. al.,


É a esta experiência unitária que Fernando Távora se refere Curiosamente, também, este processo em três passos – se
Palácio Pitti: pintura de Pandolfo Reschi
quando, em entrevista a Bernardo Pinto de Almeida, explica que equacionado a partir da nossa área disciplinar – coloca o projecto do século XVII. Florença: 1446-XVIII.
se lhe perguntam como prefere ser tratado – se como professor, em igualdade de circunstâncias com a investigação, na medida em
se como arquitecto – se lembra que nunca foi um professor convencional. que o projecto se constitui como o segundo passo da sequência
A prática profissional, enquanto investigação, dava-lhe, segundo ele, um investigação - interpretação - comunicação. E, neste sentido,
certo vigor e frescura a que não ficava imune a sua prática comunicacional projecto e investigação são ambos passos de um processo prático
pedagógica.20 com duas vertentes – uma mais ligada à acção, outra mais ligada
ao conhecimento – que, no final, se manifestam através de uma 02 AA VV, Paço Real: fotografia aérea.
3 | Investigar (reconhecer; observar); Projectar (interpretar; ideia de Arquitectura, tão presente em projectos, como em obras Sintra: XIV-XX.
transportar); e Comunicar (construir; publicar | desenhar; construídas, como em textos de arquitectura, como, no limite, no
escrever); pensamento arquitectónico de um autor.

Esclarecida a razão que, perante a leitura do título do ciclo de 4 | Práticas de Arquitectura (pontos comuns)
lições – Prática[s] de Arquitectura – projecto|investigação|escrita –, me
reconduziu à minha própria proposta de reformulação da ‘equação’ Na investigação para o conhecimento, cada um dos passos referidos –
de Ignasi de Solà-Morales, regresso ao caderno de encargos do investigação, interpretação e comunicação – desempenha e ocupa
que me foi pedido, a saber: um lugar claro no processo de conhecimento. A investigação será
aí o reconhecimento de um problema, a interpretação a tentativa de
– Como encarar a investigação? construção de uma sua releitura possível (e pessoal) e, por último, a
– Quais os documentos da arquitectura? comunicação implicará a partilha do que se alcançou, submetendo
– E, por fim, quais os passos da investigação na nossa área disciplinar? os resultados à discussão e ao escrutínio público, com vista ao que 03 Brunelleschi (atrib. discutível) et.
Fernando Gil chamou de reconhecimento interpares. al., Palácio Pitti: planta desenhada por
A. Grandjean de Montigny e A. Famin
Começando, como convém, pelo princípio: Como encarar a
no primeiro quartel do século XIX.
investigação? Na verdade, parece-me que a investigação é tão-só um Por forma a mostrar a convergência entre as práticas de investigação Florença: 1446-XVIII.
passo – importante, sem dúvida – de um processo muito mais para o conhecimento e a investigação para o projecto, procurarei mostrar
abrangente que integra a Ciência ou a Filosofia, para nomear as como este processo – tripartido – se traduz e manifesta na investigação
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

áreas disciplinares tradicionalmente mais reconhecíveis. Nesse para o projecto para, no final, concretizar esta tese com base num
sentido, também na nossa área disciplinar, a investigação constituirá arquitecto teórico-prático.
somente um dos passos (decisivo, é certo) de um processo mais
vasto que é a própria arquitectura. 1.º – Existirá algum arquitecto no qual o pensamento e a acção

Correpondências | José Miguel Rodrigues


são as duas faces da mesma moeda para quem o início de qualquer
A ser assim, quais os outros passos? – perguntar-se-á. Pelo menos, projecto não signifique investigar? Penso em Alberti e Palladio (que
na minha perspectiva, mais dois que sucedem a investigação que, felizmente nos deixaram escritos), mas também nos vários autores
assim, posiciono ‘à cabeça’: do palácio Pitti (fig. 01 e 03) ou do Paço Real em Sintra (fig. 02 e 04),
este último, um exemplo que me deixa sempre bastante orgulhoso
– interpretar – isto é, como bem explica Ricoeur reler em situação de contexto; da arquitectura portuguesa – mesmo que por comparação com a 04 AA VV, Paço Real: planta
desenhada por J.A. d’Abreu Victal in O
Paço de Cintra, apontamentos históricos
20 Cf. “Fernando Távora entrevistado por Bernardo Pinto de Almeida”, Boletim da 21 “Rien n’est transmissible que la pensée.” (Le Corbusier) in LE CORBUSIER, op. e archeológicos do Conde de Sabugosa.
Universidade do Porto, n.º 19/20, ano 3, 3-4, Outubro / Novembro, 1993, p. 45. cit., p. 168. Sintra: XIV-XX.

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italiana – com a qual, neste caso, creio, se digladia com bastante porém, ainda mais uma intrigante correspondência com o processo
dignidade (talvez até, arrisco, à qual no final acabe por ganhar). de investigação científica: o que Fernando Gil descreve enquanto
Do meu ponto de vista, não há arquitectura sem investigação. refracção social da ciência:
Por isso, uma arquitectura que prescinda da investigação como
um passo para o projecto só pode redundar em fracasso. Em “(…) há, por fim, uma criação colectiva e uma refracção
alternativa, os arquitectos teórico-práticos, como daqui em diante social das problemáticas. Importar-nos-á ver como elas são
os designarei, investigam evidentemente para projectar e, nessa simultaneamente efeito e causa dum jogo plural de iniciativas
acção também prática, fazem por exemplo o reconhecimento das parcelares (e muitas vezes parciais), mais do que insistir sobre
condições de partida, mas também dos meios disponíveis, para a os termos da comunicação dos saberes, ou sobre as condições
transformação dos sítios dados em lugares com uma nova alma. psicossociais do trabalho científico individual.”24

2.º – A que corresponde a interpretação – o segundo passo do A que corresponde, afinal, na acção teórico-prática de projecto a
processo que proponho – nos arquitectos atrás referidos? Se, refracção social da disciplina? Na verdade, e como se diz também
como disse, investigar significa nesse plano reconhecer, projectar nas ciências, ao momento da publicação dos resultados, no nosso
implica, como disse também já, invocando Ricoeur, reler em situação caso, nas revistas da assim chamada especialidade; referimo-nos
de contexto, isto é, regressar ao processo de projecto, dos que antes aos projectos e às obras construídas, mas, também, aos resultados
de nós enfrentaram situações análogas às nossas, e, na maioria das de um concurso ou aos prémios patrocinados pela indústria da
vezes, miscigenando várias e distintas referências, repropor uma construção (o SECIL, por exemplo).
ideia existente a uma nova acção cujo cerne decorre da releitura
do que muitos de nós gostamos de chamar mestres (uso aqui a Como é evidente, Ignasi de Solà-Morales era particularmente
palavra num sentido bastante chão e nada erudito ou pedante; crítico em relação a esta lacuna no processo que tenho vindo a
um mestre pode ser, nesta acepção, um carpinteiro que nos ajuda descrever, já que, todo este jogo – que termina no reconhecimento
a decidir a espessura de uma prateleira de madeira maciça). público interpares – só será consequente se não for uma
performance que se desenrola à margem do principal canal da
3.º – E, por fim, a que corresponde a comunicação em projecto? crítica arquitectónica: os arquitectos para quem o pensar e o
Desde logo, e de um modo quase literal, liga-se à preparação agir são de tal modo inseparáveis que, tanto a sua acção crítica –
dos desenhos de obra que visam comunicar aos artífices e a escrita –, como a sua acção transformadora – o projecto –,
obreiros as iniciativas necessárias à construção. Por outro lado, podem aguardar uma vida ou, no limite, nunca se traduzir numa
tem correspondência, também bastante directa, na construção obra construída. A verdade, porém, é que o que escreveram é
visível e material de uma ideia, ao início, tão-só ainda possível projecto e, ao contrário dos seus adversários puramente práticos,
de representação desenhada e, nesta medida, como se disse já, o que estes construíram nem sempre ou quase nunca tem
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com grandes parecenças metodológicas com a investigação. Este correspondência com um pensamento traduzível por escrito. A
processo, que configura a passagem do mundo das ideias de verdade, também, é que é este argumento que permite a Giorgio
Platão (o mundo 2 de Popper)22 ao mundo dos artefactos Grassi atribuir a autoria de diversas obras renascentistas – mesmo
em Roma – apesar de documentalmente contrariado.25

Correpondências | José Miguel Rodrigues


Disse que daria um exemplo de um arquitecto teórico-prático
que me permitiria corroborar a tese de que, em Arquitectura, o
arquitectónicos de Carlos Martí (o mundo 1 de Popper)23, contém, processo de projecto e o processo da escrita, partilham o mesmo

22 Cf. PLATÃO, Fédon. Lisboa: Guimarães Editores, 2003; PLATÃO, A República. autonomia do mundo 3” in O Conhecimento e o Problema Corpo-Mente. Lisboa: Edições 70,
Lisboa: Gulbenkian, 2010; e POPPER, Karl, “Conhecimento objectivo e subjectivo” in 1997 (1.ª ed. 1996), p. 39-61.
O Conhecimento e o Problema Corpo-Mente. Lisboa: Edições 70, 1997 (1.ª ed. 1996), p. 13-37. 24 GIL, Fernando, “Inventar” in Mimésis e Negação. Lisboa: INMC, 1984, p. 244.
23 Cf. MARTÍ ARÍS, Carlos, Las variaciones de la identidad, Ensayo sobre el tipo en 25 GRASSI, Giorgio, Leon Battista Alberti e L’Architettura Romana. Milano: Franco
arquitectura. Barcelona: Ediciones del Serbal, 1993, p. 33-43; e POPPER, Karl, “A Angeli, 2007, p. 16-33.

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instrumental, quer teórico quer, sublinho, prático. Tratava-se (Poderia fortalecer esta perspectiva – e até conferir-lhe uma
evidentemente de Giorgio Grassi. genealogia – citando adicionalmente Ernesto Rogers, mas não
“Sempre dirigi a minha atenção, os meus interesses como julgo ser esta a ocasião oportuna para o lembrar.)
arquitecto, ao facto de poder reconhecer o elemento de união da
arquitectura no tempo, no sentido de identificar as características Regressemos ao que me foi pedido e que ainda não tratei: Quais
gerais das obras singulares: os documentos da arquitectura? A resposta a esta pergunta – a simples
– observar as casas / os palácios / as ruas / as praças / etc., para tentativa de a procurar responder de um modo que não seja, nem
reconhecer nelas, outras casas / outros palácios / outras ruas / sectário, nem simplista – podia levar-nos centenas de páginas
outras praças / etc., isto é, para encontrar a confirmação de um (que felizmente não me foram dadas; na verdade, a dilucidação
mesmo objectivo no tempo, de um princípio, de uma solução, de da questão – parece-me claro – resultará do interessantíssimo
uma forma. conjunto de ensaios que se sucederam no ciclo que motivou este
A procura do que, do meu ponto de vista, no plano da texto). Apesar disso, darei a este propósito alguns exemplos de
representação, é uma das qualidades mais extraordinárias da documentos de arquitectura e, sobretudo, procurarei falar das
arquitectura: a sua capacidade – em qualquer caso, uma capacidade suas especificidades, dos seus problemas, mas também do seu
assinalável – de sintetizar a sabedoria e a maestria adquiridas. (...) potencial cognitivo.
Em arquitectura, esta procura constitui parte insubstituível de
cada aprendizagem; e, ao mesmo tempo, corresponde a uma 5 | Documentos de Arquitectura
escolha precisa, a um princípio; quando Schinkel diz – ‘o trabalho
de uma verdadeira aprendizagem é uma tarefa árdua mas, em Não deixa de ser surpreendente que a chamada de atenção para a
última instância, limita-se à formação de uma sensibilidade, que especificidade documental da arquitectura tenha interessado, em
em arquitectura abarca um campo muito amplo’ – está a afirmar Portugal, a um Historiador de Arte como José Augusto-França
este mesmo princípio. Esta sensibilidade só se adquire através da quando, em 1966, lembrou a importância da consideração,
observação. nos estudos em História da Arte do século XIX, do que então
chamou de documentos artísticos. Referia-se ao valor autónomo –
Falando em termos estritamente operativos, a experiência mas não isolado – do próprio material produzido pela pintura,
histórica da arquitectura é, por isso, o único material de que pela escultura e pela arquitectura, enquanto elemento de estudo
dispomos. Mas é também tudo o que precisamos. ao nível de um palimpsesto, de um tratado ou de um incunábulo.
“A historiografia em geral, e a do século XIX também, – disse –
O processo de projecto é sempre o mesmo: ver as coisas e tem-se preocupado sobretudo com documentos escritos, por
transferi-las.26 Sempre. especial formação literária dos investigadores. Os não escritos
só têm merecido consideração em função de civilizações em
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Essa é a tarefa da imaginação. ‘A sensibilidade’ de que fala que aqueles faltam ou não abundam, e então a arqueologia é
Schinkel não é mais do que a imaginação aplicada às coisas chamada a informar. Isso constitui obviamente uma deficiência
conhecidas. A imaginação aplicada às coisas possuídas com de método, vinda duma deficiência de formação: os historiadores
segurança, escolhidas, previamente, com interesse e de uma revelam-se vezes de mais indiferentes aos documentos artísticos,

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forma consciente. Se o ‘novo’ existe, será seguramente por isso.”27

Insausti, Tito Llopis, ed.). Valencia: Institut Valencià d’Art Modern / Electa, 1994, p. 19.
26 Dada a óbvia dificuldade na tradução desta passagem, leia-se a sua versão original Embora no essencial, o conteúdo deste texto, que não foi incluído nas posteriores
que, numa formulação ligeiramente distinta – Vedere le cose e trasportarle: questo è il processo – antologias do autor, possa ser reencontrado em “Schinkel als Meister” de 1983 (texto no
volta a surgir na entrevista de Grassi à revista 2C – Construccion de la Ciudad. qual as suas principais ideias foram vertidas), há nele alguns aspectos essenciais (como,
GRASSI, Giorgio, “Sei risposte a 2C – Construccion de la Ciudad” in L’Architettura come por exemplo, a referência à observação e à imaginação como ferramentas de projecto),
Mestieri e Altri Scritti. Milano: Franco Angeli, 1995, p. 205. que nos levaram a dele não poder prescindir.
27 GRASSI, Giorgio, “Escoger a los proprios maestros: K. F. Schinkel” (“Scegliersi GRASSI, Giorgio, “Schinkel als Meister” in L’Architettura come Mestieri e Altri Scritti,
dei maestri: K. F. Schinkel”, 1981) in Giorgio Grassi, Obras y Projectos 1962-1993 (Pilar Milano, Franco Angeli, 1995, p. 234-238.

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não dispondo dos meios de análise necessários, ao nível da Continuarei a citar José Augusto-França por mais dois parágrafos,
ciência estética ou, até, ao nível da sensibilidade. Assim se tem porque a sua ousada caracterização do que documentalmente
feito história, excluindo ou pelo menos minimizando uma fonte importa à investigação interessa ao nosso argumento de fundo, isto
informativa de primeiro plano – apenas acessoriamente utilizada, é, que a investigação em arquitectura apresenta particularidades
em edições mais luxuosas ou de maior tiragem, dentro dos limites que não se compadecem com uma visão estrita do estado
dum simples e prudente plano iconográfico, como ilustração da da arte enquanto momento mais avançado na vanguarda do
informação que por outros lados tenha sido adquirida.”28 conhecimento.

Apesar da solução proposta por Augusto-França depositar, quanto “Sem se aproveitar devidamente esta fonte, ficarão ignorados
a mim, créditos excessivos na ilustração e na estampa (correndo certos dados duma vivência histórica, e arrisca-se a ficar mal
até o risco de poder ser considerada, sem desmerecimento para interpretado o sentido de certas evoluções conjunturais. (…) Não
o autor, algo ingénua) a verdade é que ela coloca o problema há dúvida de que o segundo quartel do século, em França, seria
das especificidades da investigação em Arquitectura que, muito mal entendido sem o conhecimento da acção de Delacroix
significativamente, dando nota da sua profundidade, ressurgem (…). [Mas] o facto de Portugal não ter tido, nem de longe, um
de forma reforçada, como explica Manuel Mendes, no tratamento artista da mesma dimensão, não obsta a que o vector artístico seja
da documentação material da arquitectura, assim como na sua de uso indispensável. E a própria carência é significativa, tal como
exposição e/ou musealização que, no limite, se manifestaria em a dessincronização que neste domínio se registe – efeitos, ambos,
toda a sua completude apenas nela incluindo os próprios edifícios, de uma ‘desigualdade de desenvolvimento’ que importa pesquisar.
espaços públicos e até cidades de que fazem parte integrante. Histórica e sociologicamente, a mediocridade dos factos é um
Isto é, em definitivo, a arquitectura estuda-se, investiga-se, guarda- elemento de informação que pode ser tão significativo quanto
se e expõe-se através dos edifícios, das cidades e do território que a sua grandeza. Só a dosagem de uma e de outra categoria nos
ajudou a construir. E, nesse sentido, muito preciso, não é nada fornecerá a imagem real do período inquirido.”30
indiferente que o acervo do arquitecto Távora seja guardado e
exposto no lugar da Quinta da Conceição, na Fundação Marques “Metodologicamente – conclui José Augusto-França –, o
da Silva, ou noutro sítio qualquer… historiador da arte não poderá deixar de ser um crítico de arte,
para além dos créditos filológicos que se [lhe] exija. Ele terá de
Apesar do valor material das obras construídas enquanto ser leitor estilístico das obras, capaz de as solicitar, com os olhos
documentos da própria investigação, a verdade é que da cara – e por isso mesmo necessariamente treinado na visão
Augusto-França também sublinha a importância de “estabelecer das do seu próprio tempo, sem o que toda a leitura do passado
relações entre fenómenos artísticos e outros fenómenos culturais seria exercício de erudição descarnada. Aqui, como na história em
e ideológicos, e entre eles e o contexto histórico (…). É também geral, a reversibilidade do conhecimento é regra essencial que só
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a [sua] consciência (…) que pode evitar o erro de certas relações por ingenuidade se pretenderia iludir.”31
imediatas, algo mecanistas, duma errónea facilidade. É ela ainda
que nos leva a compreender que a obra de arte possa antecipar a Precisamente, como diriam os românticos, este ímpeto para ver
evolução social geral, ou definir-se a níveis cuja profundidade seja no passado a possibilidade de construir um presente (e não para

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dificilmente captável pelos instrumentos culturais de que dispõe o prever o futuro), que nos liga a alguns historiadores, mas que nos
público contemporâneo. Aí podemos concluir a nossa apreciação afasta definitivamente de outros (os que, por exemplo, instados
do papel informador do fenómeno artístico – ‘papel original’, a reflectirem o seu conhecimento passado sobre problemas do
no verdadeiro sentido da palavra.”29 presente sempre se escusam na sua especificidade cronológica e
nos perigos – que existem e são reais – da reinterpretação abusiva
de situações passadas). Curiosamente, penso sempre quando os
28 FRANÇA, José-Augusto, A Arte em Portugal no Século XIX (2 vols.). Lisboa:
Livraria Bertrand, 1966, vol. 1, p. 9.
29 FRANÇA, José-Augusto, A Arte em Portugal no Século XIX (2 vols.). Lisboa: 30 Idem, ibidem.
Livraria Bertrand, 1966, vol. 1, p. 10. 31 Idem, p. 11.

212 213
ouço, aquilo que rejeitam é justamente a base principal da nossa A questão é difícil. Entre académicos é responsável por uma
disciplina e o principal sustento dos arquitectos, como Grassi, espécie de debate de surdos no qual, uns e outros, evitam ouvir-se
teórico-práticos. pelo risco de perder o seu espaço de investigação já que, pelo
menos aparentemente, a simples admissibilidade de cada uma
De entre tudo o que disse, até agora, sublinho uma distinção das hipóteses parece arrastar consigo a morte e a asfixia da que
essencial à compreensão do que procurarei mostrar na parte que se lhe opõe. A alternativa tem sido evidentemente o mais fácil:
se segue: a originalidade é uma condição; a falta dela um problema e um
sinal de debilidade.
I. – a consideração da investigação como um passo num processo
mais longo, por hipótese tripartido, que é a própria arquitectura; 6.1 | Vanguarda vista por Ana Hatherly
por esta razão, tão indispensável ao projecto, como ao que, para
que se não confunda com a investigação como um passo, designarei Sendo a arquitectura uma arte (mesmo para Adolf Loos, para quem
como investigação para o conhecimento (a investigação dita científica das apenas uma sua pequena parte – a sepultura e o monumento –
Ciências). caberiam nesta definição) a questão da originalidade conduz
inevitavelmente à da vanguarda (aliás, vanguarda e state of the art
II. – a distinção entre: a investigação para o projecto (a que é própria e transportam consigo, na língua da investigação – o inglês –, uma
típica dos arquitectos que chamei teórico-práticos) e a investigação perturbante identificação que não pode ser alheia à tensão que
para o conhecimento: a que é própria destes, mas também dos estamos a tratar).
investigadores e/ou académicos puros (isto é, daqueles para quem
o projecto é uma área à parte que convém preservar e proteger Valerá a pena, a este propósito, escutar a pormenorizada descrição
para evitar contaminações). que Ana Hatherly fez das práticas e dos objectivos das vanguardas:

6 | Investigação em Arquitectura: tradição e originalidade. Uma “– a vanguarda, significando uma posição relativa aos valores e modelos
tensão difícil. vigentes em dado momento de uma sociedade ou grupo, representa uma
vontade deliberada de ir mais além, mas sobretudo de contestar o que há
Disse ao início, recordo, que a investigação para o conhecimento e a (e não necessariamente o que houve);
investigação dirigida para o projecto eram na minha perspectiva duas – certa vanguarda do século XX, que se define por uma total ruptura,
formas de acção com diferenças, mas, no essencial, partilhando faz tábua rasa de todos os valores, de qualquer tipo ou época, obrigando a
o mesmo conjunto de problemas e subsequentes escolhas. um completo desvio do curso então seguido pelo grupo ou sociedade;
Nesse sentido, ser arquitecto ou investigador a partir – ou no – certa vanguarda pode resultar de uma situação que surge e, virtude de
interior – da escola do Porto, implicando preferências cuja raiz uma descoberta, geralmente teórica ou técnica de um indivíduo que por
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disciplinar será a mesma, traduzir-se-á, num como noutro caso, isso se coloca frente aos seus contemporâneos;
pela difícil mas estruturante opção entre: o interesse pela tradição – a vanguarda em geral não consiste senão numa reformulação ou
e a exigência da originalidade, que, para além do mais, nos surge revitalização de modelos já existente e aceites, tradicionais ou em vigor
imposta na própria letra da lei, recorde-se, “Para a concessão do no momento;

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grau de doutor é necessário que o candidato demonstre: (…) ter – a vanguarda pode constituir numa atitude mista de reformulação e
realizado um conjunto significativo de trabalhos de investigação negatividade dos modelos disponíveis;
original que tenha contribuído para o alargamento das fronteiras – a vanguarda pode começar pela negatividade completa e acabar na
do conhecimento, parte do qual mereça a divulgação nacional ou reformulação (e vice-versa).
internacional em publicações com comité de selecção.”32
“Em síntese da própria autora, a vanguarda:
– obriga a uma revisão de técnicas e valores;
32 Alínea d.) do número 5 do artigo 3.º (Grau de Doutor) do Regulamento Geral
– dá relevo aos grupos minoritários;
de Terceiros Ciclos da Universidade do Porto (aprovado pelo despacho reitoral
– liga-se sempre a uma revolução social;
GR.05/11/2009, de 24 de Novembro de 2009).

214 215
– revitaliza a maneira de considerar as obras do passado; ver o mundo e nesse sentido penso que faço uma música bem
– exacerba o conservantismo dos oponentes; portuguesa…”
– pode levar ao sectarismo. CVM: “E descobre-se a si próprio… quer dizer: já houve aspectos
pessoais que tenha descoberto e que não tivesse consciência antes
“E, por outro lado, a vanguarda surge: de escrever uma determinada obra?”
– como reacção ao academismo; EC: “Com certeza. Este processo é um processo dialéctico, um
– como forma de afirmação de jovens ou dos jovens de espírito; processo que nos acompanha durante a vida… neste momento,
– por espírito revolucionário; em fase de maturidade, há uma certa tendência para ir depurando
– como consequência da repressão; o caminho… é normal no ser humano. Tenho o maior respeito
– por gosto pelo lúdico; pelos compositores – tantos na História da Música dita erudita –
– por necessidade de negação; que se manifestaram de uma forma proteiforme, de múltiplas
– por necessidade de criação original.”33 maneiras, que tiveram sempre uma sede insaciável de renovação –
com certeza que os respeito – eu tenho um perfil um pouco
6.2 | A opção pela tradição em Eurico Carrapatoso mais sóbrio, mais enxuto, mais do tipo renascentista, se quiser, e
portanto, neste momento, eu tendo, como dizer, a burilar qualquer
Atente-se e reflicta-se na última razão invocada para o aresta que eu não considere essencial.”
surgimento das vanguardas e, por contraposição, na resposta CVM: “(…) Consegue identificar com facilidade a principal fonte
de Eurico Carrapatoso – musicólogo e compositor português de onde brota a música que compõe?”
de música dita erudita – à questão colocada por Carlos Vaz EC: “Há dois elementos fundamentais – que em si próprios
Marques sobre se “valoriza mais a tradição ou a originalidade não significam nada – contudo elementos fundamentais, ou
na música”34: seja, dois corpus teóricos – também práticos – aos quais recorro
como compositor – como técnicas a que tantos compositores
EC: “(…) Claro que valorizo as duas dimensões, mas, tendo em da História da Música também recorreram... Os dois elementos
conta o meu perfil estético e composicional, eu valorizo mais a fundamentais são: a tonalidade, ou sistema tonal, o que me dá um
tradição na medida em que estou mais preocupado em escrever cariz convencional-tradicional – que assumo com todo o gosto – e
música do que em escrever História.” há um outro elemento – este mais particular – que é o elemento
EC: “A música é uma forma de mundividência… – uma forma da identidade portuguesa que eu continuo a beber na grande obra
de autoconhecimento, também? [questiona o entrevistador] – … e no grande exemplo, ético também, não só composicional de
com certeza e de interpretação do mundo através dos sons, das Fernando Lopes Graça.”
harmonias, dos timbres e, já agora de coisas talvez um pouco EC: “…Penso que há fundamentalmente dois gestos na História da
mais voláteis, tais como a identidade – eu, por exemplo, tenho, Composição, enfim, na História da Música: um gesto de classicismo
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

a atravessar diagonalmente a minha forma de expressão artística, e um gesto que normalmente sobrevém aos classicismos que é o
o facto de ser português, em geral, e de ser transmontano, em famoso gesto de maneirismo ou de degenerescência dos estilos
particular… portanto, com certeza que a música é uma forma de através, por exemplo, do exagero, ou do gosto puro pela especulação
matemática – que tem com certeza e colhe de nós todo o respeito.”

Correpondências | José Miguel Rodrigues


CVM: “No seu caso, é claramente o classicismo que me interessa,
33 HATHERLY, Ana in Sema, 1 (1979) citada por CASTRO, Ernesto Manuel de exactamente, ou seja, uma abordagem mais serena dos materiais,
Melo e, As Vanguardas na Poesia Portuguesa do Século XX (Colecção Biblioteca Breve). …mais enxuta e, neste ângulo, é o João Sebastião Bach um grande
Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Ministério da Educação, 1987, exemplo, porque resistindo às tentações da sua época e continuando
p. 27-29. a escrever um contraponto sábio, mas um contraponto antigo e
34 Pessoal e Transmissível, Edição de 22 de dezembro de 2011, Eurico Carrapatoso muitas vezes considerado no seu próprio tempo um contraponto
(Compositor) entrevistado por Carlos Vaz Marques (transcrição do autor), consultado antiquado, ele permaneceu perfeitamente firme na sua trajectória
em: https://www.tsf.pt/programa/pessoal-e-transmissivel/emissao/eurico- e, como mestre, deixou-nos este património extraordinário na sua
carrapatoso-916069.html época considerado quiçá antiquado, mas que ainda hoje nos enche

216 217
a alma e nos eleva até ao infinito.”35 vários edifícios que os sirvam, até à determinação das ‘invariantes’
do modo como os portugueses organizaram o seu espaço ao longo
No final da entrevista o entrevistador regressa ainda à tensão entre do tempo, etc., etc. Só apoiado na investigação poderá o ensino
tradição e vanguarda perguntando a Carrapatoso se teria assistido exercer-se em bases reais e só ela lhe garante um indispensável
à ópera de Emmanuel Nunes encomendada pelo Ministério da sentido de colaboração na medida em que o torna consciente dos
Cultura? Carrapatoso responde com uma afirmativa clara e não foge problemas daqueles a quem se destina; esta aliás, cremos, a razão
ao problema: “Vamos lá ver se nos entendemos… É forçosamente porque, sobretudo ao nível do ensino universitário, investigação e
uma música que eu não gosto como ouvinte, não fruo como ensino constituem hoje actividades indissociáveis.”38
ouvinte, mas respeito como professor de análise… Sabia que não
ia ter prazer a escutar aquela música… contudo ouvi a ópera até Como se manifestaria, na prática, esta investigação referida pelo
ao fim… fiquei lá as quatro horas e meia… e devo-lhe dizer o arquitecto Távora? – é questão que me tenho vindo a colocar há
seguinte: de toda a música que conheço do Emmanuel Nunes – não anos. Arriscarei, neste ensaio, propor uma correspondência39 com a
falo pelo que se diz, eu conheço a [sua] música… – esta peça foi a arquitectura que desenvolveu, enquanto escrevia esta afirmativa
melhor peça que ouvi dele…”36 O entrevistador insiste e questiona declaração de princípio quanto à importância da investigação
se Carrapatoso esteve lá na qualidade de professor de composição, no ensino da arquitectura. Refiro-me ao texto que publicou com
de musicólogo ou como ouvinte, e este responde, assumindo que a a Escola da Quinta do Cedro (Gaia, 1963) um ano depois da
segunda qualidade foi determinante, mas sublinhando que, depois conclusão da Teoria Geral da Organização do Espaço.
de tomada a decisão de ouvir, as três vertentes são indissociáveis, o
que lhe permite também falar da experiência como ouvinte. “Durante anos eu pensei a Arquitectura como qualquer coisa
diferente, de especial, de sublime e extraterreno, qualquer coisa
6.3 | Fernando Távora e a investigação assim como uma intocável virgem branca, tão sublime, tão ideal que
apenas a raros era dado realizá-la ou compreendê-la; o arquitecto
De Fernando Távora e a tradição muita coisa se escreveu e ele era para mim ou um génio semidivino ou apenas um zero. Entre a
próprio muita coisa disse. Já da sua relação com a investigação é pequena choupana e a mais famosa obra de Arquitectura não havia
que, não só – que eu conheça – se escreveu pouco, como em geral relação, como não a havia entre o pedreiro e o arquitecto. Eram
nada se afirma. Na verdade, porém, na Teoria Geral da Organização do coisas diferentes desligadas. Este conceito mítico da Arquitectura
Espaço37, Távora escreveu, sobre a investigação, o seguinte: e do arquitecto produzia em mim um atroz sofrimento, dado que
eu não era um génio e não conseguia portanto realizar edifícios tão
“Mas, para além do ensino, seu complemento, e tão indispensável intocáveis como virgens brancas.
como ele, apresenta-se-nos a investigação, a arma que melhor
permite detectar a intensidade e a qualidade daqueles problemas “Rodaram os anos. Vi edifícios e conheci arquitectos. Percebi que um
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

que, por mais preocupantes, deverão merecer uma maior atenção. edifício não se contém numa bela planta nem numa bela fotografia
No que respeita à organização do espaço é evidente que muito haverá tirada em dia de sol e sob o seu melhor ângulo: verifiquei que afinal
que fazer entre nós – até porque quase nada está feito – em matéria todos os arquitectos eram homens, com as suas qualidades, maiores
de investigação, e esta pode ir desde o estudo das necessidades do ou menores, e com os seus defeitos, maiores ou menores. Acreditei

Correpondências | José Miguel Rodrigues


espaço que os vários sectores da população apresentem para os então que a Arquitectura era sobretudo um acontecimento como
tantos outros que preenchem a vida dos homens e, como todos
eles, sujeita a contingências que a mesma vida implica. E a intocável
35 Pessoal e Transmissível, Edição de 22 de dezembro de 2011, Eurico Carrapatoso
virgem branca tornou-se para mim numa manifestação de vida.
(Compositor) entrevistado por Carlos Vaz Marques (transcrição do autor), consultado
Perdido o seu sentido abstracto, encontrei então a Arquitectura
em: https://www.tsf.pt/programa/pessoal-e-transmissivel/emissao/eurico-
carrapatoso-916069.html
36 Idem, ibidem. 38 TÁVORA, Fernando, Da Organização do Espaço. Porto: Faup publicações, 2008 (1.ª
37 Refiro-me ao livro que dá corpo à referida ‘teoria’: TÁVORA, Fernando, Da ed. 1962), p. 83-84.
Organização do Espaço. Porto: Faup publicações, 2008 (1.ª ed. 1962). 39 Cf. título deste ensaio: Correspondências.

218 219
como qualquer coisa que eu ou qualquer outro homem podemos
realizar – melhor ou pior –, terrivelmente contingente, tão presa
à circunstância como uma árvore pelas suas raízes se prende à
terra. E o mito desfez-se. E entre a pequena choupana e a obra-
prima vi que existiam relações como sei existirem entre o pedreiro
(ou qualquer outro homem) e o arquitecto de génio.

“Vista sob este ângulo, a Arquitectura aparece-me agora como


uma grande força, força nascida da Terra e do homem, presa por
mil fios aos cambiantes da realidade, força capaz de contribuir
poderosamente para a felicidade do meio que a vê nascer. Efeito e
causa ela é deste modo uma das armas de que o homem dispõe para
a criação da sua própria felicidade.

“Foi dentro deste pensamento que realizei a Escola Primária que


apresento. (…) Como uma árvore, este edifício tem as suas raízes,
dá sombra e protecção àqueles que a ele se acolhem, tem os seus
momentos de beleza e, assim como nasceu, um dia morrerá depois
de viver a sua vida. Não se trata, em verdade, de uma intocável e
eterna virgem branca mas de uma pequena e simples obra feita por
homens e para homens.”40

Este testemunho só ficará, porém, completo, ouvida igualmente a


seguinte história que chega a nós através de Luiz Cunha, o autor
do texto ‘crítico’ que acompanha a publicação da escola na revista
Arquitectura e que, poucos meses antes, o mesmo Luiz Cunha havia
integrado – com Januário Godinho, Viana de Lima e Álvaro Siza –
numa selecção de arquitectura portuguesa no primeiro volume da
publicação internacional World Architecture41 (fig. 05).

A história – relatada num número da revista Arquitectura posterior


Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

ao livro – reporta-se ao momento da visita ao edifício com o


arquitecto Távora:

Correpondências | José Miguel Rodrigues


“Há dias, com o fim de preparar as notas para este meu comentário,
voltei, mais uma vez, a visitar a Escola da Quinta do Cedro.
Comigo estava também o arquitecto Fernando Távora que, como
autor da obra, me interessava ouvir (…). Talvez não seja mais
possível fazer aquela bela fotografia do conjunto de volumes da
05 Fernando Távora: publicação internacional da escola do Cedro in World Architecture
One (John Donat, ed., vol. 1 de 3 vols.). London: Studio Books, 1964.
40 TÁVORA, Fernando, Arquitectura, n.º 85, dezembro de 1964, p. 175.
41 World Architecture One (John Donat, ed., vol. 1 de 3 vols.). London: Studio Books,
1964.

220 221
escola, espraiando-se suavemente pelo terreno, com que abria a tudo extensíveis, para se poderem adaptar a qualquer situação.
apresentação deste edifício em World Architecture One.”42
7 | Investigação em Arquitectura: relações com a metafísica.
“Caminhamos em redor do edifício, para não perturbar as aulas (Fernando Gil)
em funcionamento [relata Luiz Cunha] e parámos um pouco sob a
zona arborizada que, a poente, prolonga os dois espaços de recreio Como colocada até aqui, a questão poderá parecer excessivamente
dos alunos e que foi o único vestígio da antiga Quinta do Cedro influenciada pelo carácter artístico de certa investigação que, não
que o arquitecto conseguiu salvar. Reflecti então mais uma vez desminto, me tem vindo a ocupar.
sobre a beleza austera e o acerto com que foi encarada uma linha Por outro lado, também, poder-se-á perguntar que investigação
de tradição construtiva que tem fundas raízes na arquitectura do é esta:
Norte e que vivifica e dá autenticidade à linguagem moderna que
transparece em todo o edifício. Dei conta ao Fernando Távora do a.) que partilha com um compositor contemporâneo – Eurico
que estava a pensar e ele, como quem revela uma coisa muito natural Carrapatoso – uma certa resistência à vanguarda, descrita por Ana
e que nada tem de complicado, disse-me: ‘Sabe, eu gosto de fazer Hatherly;
uma arquitectura de camisa lavada’. Perante a minha momentânea b.) que, ao mesmo tempo, o arquitecto Távora reconhecia como
incompreensão do alcance daquela maneira de dizer, explicou: ‘Lá imprescindível a uma certa pedagogia do ensino da arquitectura;
para os meus lados, nos arredores de Guimarães, os homens, quando c.) que corresponda à arquitectura de camisa branca como cal de que
têm qualquer festa ou solenidade, procuram vestir-se melhor, e nos fala Távora a propósito da sua Escola do Cedro.
todo o seu cuidado é posto nas camisas, impecavelmente brancas
de tanto lavar. Ora eu procuro que os meus edifícios tenham essa Em Mimésis e Negação, Fernando Gil explica-nos como a oposição
sóbria dignidade em qualquer local onde se encontrem’.”43 histórica entre ciência e metafísica constrói uma clivagem que será
‘talvez o problema central do conhecimento’. Descrevendo o que
Com esta tripla referência – a Ana Hatherly, Eurico Carrapatoso chama os seus diferentes regimes temporais, o autor procurará dar a ver
e Fernando Távora – creio que poderá ser já possível, ainda que ‘as diferenças entre os modos de exercício de uma e de outra’:
– como convém – com uma certa aura, vislumbrar um projecto
para uma Arquitectura no interior da tradição – seja na acção da – O tempo das ciências, pautado pela cumulatividade e inovação;
investigação com vista ao projecto, seja, também, na acção da
investigação com vista ao conhecimento –, isto é, uma Arquitectura e
em que, como sugere Maria Filomena Molder em relação a Goethe,
a originalidade seja considerada como um valor fraco ou, pelo menos, – A historicidade da metafísica, pautada pela singularidade e repetição.
na qual, a originalidade não seja um valor forte, à partida.44
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

A Arquitectura – creio – não foge a esta clivagem que, naturalmente


A mesma resistência à inovação como um fim em si mesmo, o e como se advertiu logo ao início, se acentua na investigação com vista
mesmo interesse pelo regresso aos problemas de sempre, um ao conhecimento, mais ainda do que na que se constitui num meio para o
reiterado interesse pelos antigos e pela sua História como um projecto.

Correpondências | José Miguel Rodrigues


exemplo para o pensamento e a acção no presente, constituem, “A descrição feita [por Fernando Gil em Mimésis e Negação] estabelece
assim, no seu conjunto, como que as pernas de um tripé, apesar de dois regimes ideais do discurso. Na linguagem de José Marinho, o
tempo da ciência quer ser um tempo do trânsito, enquanto o tempo
42 Luiz Cunha, “Comentário” (Fernando Távora, Escola Primária em Vila Nova de da metafísica parece condenado a permanecer o tempo do recurso.
Gaia, 1957-1961) in Arquitectura, n.º 85, dezembro de 1964, p. 176. Ora isto significa que o discurso científico é intrinsecamente válido.
43 Idem, p. 176 Por isso não volta atrás – é por natureza inovador –, por isso não há
44 MOLDER, Maria Filomena, “Introdução” in GOETHE, J. W., A Metamorfose das nele recorrência, nem, no limite, opiniões. Pelo seu lado, a metafísica
Plantas (Tradução, Introdução, Notas e Apêndices de Maria Filomena Molder). Lisboa: marca passo no eterno presente das questões não decididas. Tal
INCM, 1993, p. 10. disparidade não só explica, mas também de algum modo justifica,

222 223
a condenação moderna da metafísica. Ela faz-se por duas vias. IMAGENS
Em primeiro lugar, pela crítica filosófica, de Comte a Carnap. (…)
O segundo elemento da crítica é um argumento de facto 01 http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Pandolfo_Reschi_-_View_of_the_
infinitamente mais convincente, a saber, o prodigioso sucesso da Palazzo_Pitti_-_WGA19316.jpg (consultado em 11.03.2014).
cumulatividade da ciência face à repetição da metafísica. Resultou 02 http://commons.wikimedia.org/wiki/File:PalacioSintra7.jpg?uselang=pt
daí um interesse novo pelo crescimento das ciências, cuja história (consultado em 11.03.2014).
se tornou pouco a pouco um tema epistemológico. E que aparece 03 MONTIGNY, A. Grandjean de, Architecture Toscane, ou palais, maisons et autres edifices
hoje como construindo os objectos do saber e não apenas como de la Toscane, mesurés et dessinés. Paris: P. Didot L'ainé, 1815, sp., pl. 2.04.
fornecendo o contexto da sua descoberta.”45 04 O Paço de Cintra, apontamentos históricos e archeológicos do Conde de Sabugosa, desenhos
de Sua Magestade a Raínha D. Amélia (colaboração de E. Casanova e R. Lino). Lisboa:
Nesta encruzilhada, a investigação em arquitectura – em qualquer Imprensa Nacional, 1903.
dos casos, mas muito especialmente com vista ao conhecimento – 05 World Architecture One (John Donat, ed., vol. 1 de 3 vols.). London: Studio Books,
só pode encontrar resistências no meio científico que monopoliza o 1964, passim, p. 84-93.
actual ambiente académico. Face ao prodigioso sucesso da cumulatividade
da ciência, a repetição da metafísica é aí vista, com facilidade, como
débil. Cabe-nos, porém, a nós – que não pensamos assim –
alterar a sua má reputação. De entre tudo o que disse, gostaria de
terminar sublinhando o seguinte: em arquitectura, a investigação para
o conhecimento implica e vive da acção prática, tanto quanto a investigação
para o projecto implica e necessita do pensamento teórico. Este sem
aquela e aquela sem este, serão sempre como um corpo abduzido,
isto é, um corpo que se partiu e separou pela metade.
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

Correpondências | José Miguel Rodrigues


45 GIL, Fernando, op. cit., p. 27.

224 225
História

Marta Oliveira

Gostaria de agradecer à organização do Ciclo (o colectivo de estudantes


da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, sob orientação
científica do Prof. Doutor Manuel Mendes e co-organização da
Associação de Estudantes e Direcção da FAUP) o convite que me foi
dirigido. Um pouco à imagem dos peregrinos construtores de Santiago,
parece-me que a pedra que me é dada trazer é a da História, da ‘relação
com a História’, segundo a expressão comum.
Começaria por situar um pensamento quotidiano, e escuro – escuro
no sentido em que também as obras antigas eram escuras, quando
deixadas em tosco, sem acabamento – esse pensamento que me move,
apagado, em laboração. Não me refiro ao plano de actividade docente,
de certo modo público, que associa a ‘exposição’ de conhecimento na
Escola, mas ao espaço de pensar, que forma a raiz daquela actividade:
uma interrogação constante de ‘como fazer’.
Antes de continuar, gostaria de ressalvar a impressão de que poderia
querer destacar o trabalho desenvolvido na História da Arquitectura
Portuguesa. Na Escola, as histórias têm prosseguido uma visão plural,
aceitando mútuos influxos, na diferença e complementaridade das vias
seguidas. Seria também espúrio reclamar para o meu âmbito particular,
no currículo da Arquitectura Portuguesa, uma continuidade de linha
de acção de Alexandre Alves Costa, pelo que pudesse significar
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

apropriação do alcance do seu exercício e visão de Escola, que


partilhava com Fernando Távora. Devemos a construção da disciplina,
em absoluto, e a nossa formação, mas a incidência do seu múnus
compartilhamos com todos.
Assim, apenas tentamos seguir o seu trabalho com regularidade
e constância, e reserva – tanto quanto seja possível, um trabalho
apagado. Lembraria palavras de Mies van der Rohe, numa entrevista,
em Outubro de 1932, quando preparava a mudança da Bauhaus para

História | Marta Oliveira


Berlim Steglitz, após o encerramento compulsivo da escola de Dessau.
(Sem financiamento público, a nova escola ia ser alojada nos subúrbios,
numa antiga fábrica de telefones, num recinto cercado por um muro
anónimo). Na situação de contingência, Mies vê o benefício inerente a 01 Mies van der Rohe, a passagem da
uma menor exposição: escola Bauhaus para Berlim, em 1932.

226 227
“(...) numa pequena cidade, uma ‘coisa’ como Bauhaus é uma “A escola não tem nenhuma missão mais importante do que
coisa que chama a atenção. Em Berlim iremos trabalhar mais ensinar pensamento rigoroso, juízo cauteloso e dedução
sossegadamente, desapercebidos e sem perturbações.”1 consequente (…).”3

* *

Gostaria de retomar a distinção inicial entre conhecimento e pensar, como Sobre Pensar. Pensar a Arquitectura, como escreve Peter Zumthor;
ponto de partida, para seguir o fio ao encontro da ‘história’. O que nos usando a forma verbal transitiva. É diferente de pensar ‘sobre’
move não é a História como ciência entre as ciências, ainda que precisemos arquitectura, que será uma actividade contemplativa.4
de nos instruir nela para não errar na leitura e fundamentar a interpretação. Pensar por meio do projecto (no desenho vemos o rasto
Mas será essa História, pela razão de ser ciência, aquela que se junta do pensamento de Bernini e o peso da mão que deu acento
ao Projecto e à Teoria na área científica única (D)a Arquitectura, à forma). Pensar por meio de desenho. Pensar por ver.
como acontece, singularmente, na nossa Escola? A resposta parte É interessante que, na Grécia antiga, a palavra ‘ver’ podia
de uma reflexão de Louis Kahn acerca do conhecimento com significar literalmente ‘estudo’ (“um ver com a implicação de 04 João Mendes Ribeiro, Celanova
02 Lorenzo Bernini, praça de São sentido ambivalente: knowledge e knowing, uma forma de ’teorizar’ aquilo que pode ser objecto de teorização ou estudo”).5 (século X), Caderno de Viagem de
Pedro, Roma (Esquema autografado da conhecimento assimilado, saber. Nesse mesmo sentido, Vitrúvio escrevia sobre a ciência da História da Arquitectura Portuguesa,
visibilidade prospectiva dos pórticos a arquitectura que nasce da fábrica (fábrica com o sentido de ESBAP.
partir da solução contraposta ao centro
This must be considered when knowledge, which is a tremendously valuable prática de arte edificatória) e da reflexão desenvolvida sobre
dos mesmos, vista do “terceiro braço”
thing, comes to you. It is valuable because from knowledge, you get knowing, a fábrica da obra.6
recuado).
which is private. The only thing valuable to you is knowing, and knowing Fábrica e reflexão, aquele o caminho e a linha de orientação.
must never be imparted because it is very singular, very impure: it has to do Estudar e aprender a ver pela mão que desenha. Fernando
with you. But knowing can give you in-touchness with your intuitive, and Távora dizia também pela mão que sabe de afagar o edifício.
therefore the life of knowing is very real, but personal.2 O estudo por meio de ver (desenhar para pensar e compreender)
a obra como lugar de experiência acumulada de arquitectura,
Kahn diz algo interessante acerca desse conhecimento que apropriamos compreendida na sua utilidade teórica para o projecto.
e se nos torna próprio: é privado, singular, ‘impuro’... Dir-se-ia parcial,
tendencioso por intuição e interesse particular. Nessa condição de
conhecimento-saber pessoal poderá tornar-se operativo, real|izar-se.
3 NIETZSCHE, Friedrich, Humano, Demasiado Humano: Um livro para espíritos livres.
A minha hipótese é de que a construção de um conhecimento-saber
Lisboa: Relógio d’Água, 1997, n.º 265, p. 243. “Die Schule hat keine wichtigere
(knowing) só é possível com ‘história’; e knowing implica espaço de
Aufgabe, als strenges Denken, vorsichtiges Urteilen, konsequentes Schliessen zu
pensar. Precisamente à Escola devemos a exigência de ensinar
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

lehren; (...).” Friedrich Nietzsche, Menschliches Allzu Menschliches, Band 1, Nr. 265, 8. ed.
a formar esse espaço de pensar: pensar rigoroso, juízo prudente e
Stuttgart: Kröner, 1978, p. 217.
decisão consequente, nas palavras de Nietzsche, em Humano Demasiado
4 Hannah Arendt entende aquele ‘pensar’ (verbo transitivo) como um pensar não é
Humano. Um princípio e um método.
contemplativo. ARENDT, Hannah, “Hannah Arendt pour Martin Heidegger, À tous
03 França, abadia cisterciense de Le
pour le 26 septembre 1969”, in Lettres et autres documents: 1925-1975 (Paris: Gallimard,
Thoronet.
1 “(...) in einer kleinen Stadt ist eine Sache wie das Bauhaus eine zu auffälige 2001), p. 180. Cf. OLIVEIRA, Marta Maria Peters Arriscado de, “Arquitectura
Angelegenheit. In Berlin werden wir ruhiger, unbeobachteter, ungestörter arbeiten.” Portuguesa do tempo dos Descobrimentos: assento de prática e conselho cerca de
MIES VAN DER ROHE, Ludwig, “Eröffnung des Berliner Bauhauses noch im 1500”. Tese de Doutoramento. Porto: FAUP, 2004, vol. III, p. 1121.

História | Marta Oliveira


Oktober / Mies van der Rohe entwickelt dem ‘MM’ seine Pläne”, Montag Morgen 5 A propósito da palavra ’estudo’, nota in ARISTÓTELES, Retórica, Livro I, capítulo
Berliner Tageblatt-”Beilage Weltspiegel” (Oktober 1932), in Bauhaus Berlin: Auflösung I, introdução de Manuel Alexandre Júnior, tradução e notas de Manuel Alexandre
Dessau 1932, Schliessung Berlin 1933; Bauhäusler u. Drittes Reich. Weingarten: Kunstverlag Júnior, Paulo Farmhouse Alberto, Abel do Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa
Weingarten, 1985, p. 94. Nacional-Casa da Moeda, 1998, p. 44 (nota 5). 05 Karl Friedrich Schinkel, Altes
2 KAHN, Louis I., “1973: Brooklyn, New York” (1973), in Louis I. Kahn: Writings, 6 [O conhecimento do arquitecto] “Ea nascitur ex fabrica et ratiocinatione.” Vitrúvio, Museum, Berlin (1822-1830); Mies van
der Rohe, Nationalgalerie, Berlin (1962-
Lectures, Interviews (New York: Rizzoli, 1991), p. 322. De architettura I, i.
1968).
228 229
Só na medida em que falamos, pensamos, e não inversamente.7 Que modo poderá tomar esse espaço de pensar que deve
Mas esse falar reveste-se de várias formas, que a estrutura do curso procura ser o essencial construtor de ‘escola’? Tentaria responder
acolher. Falamos por meio do projecto (e o projecto fala por si e canta, na por meio de uma ligação figurada que, admito, será algo
expressão de Siza) e fala a obra. Falamos em Teoria e pela História. Numa especulativa. Parece-me que existe uma insuspeitada relação
ideia de síntese para (aprender a) pensar: d|escre|vemos. entre a palavra ‘espaço’ e o seu conceito, tal como se formou
na Idade Média, e o ‘pensar’. ‘Espaço’, descendente do latim
* spatium, começa por surgir, nas línguas peninsulares, com o
06 França, abadia cisterciense de
Sénanque. sentido de ‘campo para correr, extensão’.10 Com esse sentido,
O que está a ser dito não é nada especial, não procura significar surge numa obra escrita pelo rei Dom Duarte, no início
um novo olhar ou comunicar algum segredo de inovação. Pelo do século XV – o Livro da ensinança de bem cavalgar toda sela.11
contrário, aspira a percorrer um caminho que já foi marcado (talvez O significado de espaço era alternativo de sossego e de consolo.12
sirva, contudo, para lembrar como são vitais diferentes espaços de O ‘espaço’ não se aplicava ao interior de edificações; pelo contrário,
praticar a arquitectura na estrutura curricular do curso – um modelo o seu contexto era o de ‘sair fora do lugar’ – fora da cidade, fora
distinto da estrita exposição teórica). do paço. Assim, um primeiro entendimento do espaço (e não
Um mestre do pensamento, Heidegger, recorreu a diferentes figuras do lugar ou sítio) ganha forma e identidade a partir do mundo
para significar que o pensar, em si mesmo, é um caminho.8 Numa privado da pessoa que encontra espaço de ‘espaciar’ – de se afastar,
das imagens, o caminho é um caminho do campo, na orla da floresta, espaço de prazer, na amenidade do campo13 (conjuntamente eram
que precisamos seguir quando pesa o impasse do pensamento – também evocados bons ares e vistas). Encontra a ‘tranquilidade
andar, sempre um mesmo andar, acertando o passo pelo som do da alma’ – uma ideia da antiguidade clássica do Cristianismo na
trabalho do agricultor, no campo, e do lenhador, na floresta. Idade Média, e do humanismo –;14 ou, numa palavra que sussurra,
encontra sossego...
“(Caminho do campo). O que é simples [o que é da feição do uno -
Ein|fach] guarda o enigma do que permanece e do que é grande.
10 “Espacio, descendiente semiculto del lat. Spatium ‘campo para correr’, ‘extension,
Imediado [sem mediação] acolhe-se no homem e no entanto
espacio’.” COROMINAS, Joan, Diccionário crítico etimológico castellano e hispanico, s.v.
precisa de longo cultivo [de longa gestação]. (...)
“Espacio”. Madrid: Editorial Gredos, 1980-1983. Em sentido moderno, não haverá
Na variação do ar do caminho do campo, com as estações do
notícias de espaço anteriores a 1406-1412. Cf. OLIVEIRA, 2004, vol. II, p. 712-713.
ano, cresce [gedeiht] uma tranquilidade [Heiterkeit] sapiente (...).”9
11 “Spaço: descanso, espairecimento, distracção (…), em castelhano antigo espacio
aparece com a mesma significação». PIEL, Joseph M., in Livro da ensinança de bem cavalgar
Temo que a referência a campos e caminhos possa dar a impressão
toda sela que fez El-Rey Dom Eduarte de Portugal e do Algarve e Senhor de Ceuta, de Dom
de uma visão passadista, inactual em absoluto. Compasso da
Duarte [1391-1438], edição crítica por Joseph M. Piel. Lisboa: Bertrand, 1944, p. 1 (1).
Arquitectura e da agricultura? Mas na verdade, trazem à presença
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

12 De espacio, em castelhano, derivam “Espaciar [‘esplayar’, ‘consolar’]; ‘mitigarse (el


dimensões que me parece ainda não deixaram de estar presentes na
dolor)’; ‘alegrar’, ‘refrescar’; espaciarse ‘holgarse’, ‘divertirse’, ‘solazarse’.” “Espaciarse:
procura do espaço que é o nosso, de cada um.
spacior, deambulor”; “spatiari es andar aviendo dello plazer: espaciarse”; “espaciado
‘desocupado, ocioso’”; “espacioso [‘silencioso, sereno’].” “Despacio [de espacio,
7 “Cependant, ce n’est qu’autant que l’homme parle qu’il pense et non l’inverse (…).” aplicado a persona que está tranquila, con sosiego].” COROMINAS, op. cit., ibidem. Cf.
HEIDEGGER, Martin, Qu’appelle-t-on penser? Paris: Presses Universitaires de France, OLIVEIRA, op. cit., vol. II, p. 713.
1959, p. 90. 13 A expressão ‘campo’ – “campos latíssimos”, em latim – surge num contexto
8 “La pensée même est un chemin. (…) Ce n’est que la marche et rien que la marche, de analogia com a natureza, in ALBERTI, Leon Battista, De re aedificatoria, IX, [v].

História | Marta Oliveira


ici la mise en question qui pense véritablement, qui constitue le cheminement. Le Seria traduzida em italiano por “spazi vastissimi” (em italiano), e por “domínios
cheminent est l’acte de laisser surgir le chemin.” Ibidem, p. 247. larguíssimos” (em português). Cf. ALBERTI, Leon Battista, L’Architettura. 2 vol.
9 HEIDEGGER, Martin, Der Feldweg. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, Milano: Il Polifilo, 1966, vol. II, p. 815-814; Idem, Da arte edificatória. Lisboa: Fundação
1953, p. 4-5. Trata-se de um pequeno texto, de difícil tradução, considerando a Calouste Gulbenkian, 2011, p. 593.
complexidade subtil das palavras simples usadas. Heiterkeit, na circunstância detendo 14 O tema de uma obra de ALBERTI, Leon Battista, Profugiorum ab aerumna libri III
um sentido de alegria ‘suave’ (em inglês talvez com o sentido de ‘serenity’). (Della tranquillità dell’animo), da primeira metade do século XV.

230 231
Dos vários sentidos registados que evocam a experiência de tempo Na diferença do que podemos dizer sobre a construção do mundo e sobre
de amenidade e ócio, sobressai o termo ‘espairecer’, que ainda hoje as obras, o gesto de técnica, o artefacto construído e a imagem da edificação
usamos. É ineludível a relação estabelecida: sair fora de casa (mas são a linguagem e o horizonte de comunicabilidade que nos une e segura.
poderíamos dizer sair fora do aperto que nos confina, sair fora do Porém, a figura situa-nos, dá a consciência do tempo e com ela a memória.
hábito) e correr no campo – horizonte longínquo. Por aí entra a ‘história’ – não uma história com a qual temos ‘relação’ como
algo de exterior a nós. Antes, a consciência da historicidade individual
Da unidade mínima do compartimento singular, a que se chamava e única, nos sentidos e experiência que guarda e nas coordenadas das
casa (na designação antiga) ao ‘campo’ – que alarga o horizonte – referências que convoca. A consciência da historicidade será tanto uma
abre-se espaço. O espaço surge assim como a forma de exterioridade, construção nossa, como nos construi, “avançando-nos”. A descoberta da
nele se espraia e flui o pensamento em diáspora. Espaciar, espairecer, individuação segue como uma interrogação, é o princípio de formação do
clarear as ideias. Pensar é abrir espaço de habitar: saber knowing, de que Louis Kahn falava. Um pensar que não é abstracção
...que também a Escola seja morada de muitas casas, como se dizia, mental, antes dimensão de espírito e de coração, e rememoração.19
e o espaço trazido para o interior da morada forme casa ‘espaçosa’. Na vida, podemos imaginar como esse knowing procura devolver-nos
as antigas memórias e se vai formando, remontando aos mais ténues
— Où est-ce que nous allons donc? reflexos de tempos e de pessoas de outros tempos que ainda nos
— Toujours à la maison.15 conheceram (e que tentamos lembrar pela imaginação através das
memórias da infância). Por mediação dessas memórias, sentimos que
* ainda conseguimos tocar o último quarto do século XIX e imaginar
o que seria viver o meio daquele século. Seremos os últimos no arco
Na antiguidade, aquele partir de que falámos podia ser outro, do tempo pessoal de cada um a ‘seguir aqueles mortais’ (como no
como na Ilíada: quadrante). Apenas um rasto que lemos nos sinais das casas que se
desmancham, nos objectos do quotidiano que deixam de servir e de
“Parto a ver os limites da terra nutriz, o Oceano, génese dos súbito parecem pequenos, cansados e velhos, mas não antigos. Uma
deuses.”16 oscilação na escala das coisas: o mundo que parece ter-se contraído
na atmosfera dos espaços de habitar das memórias de criança, que
09 Frederick William Flower, Lordello
Era o mistério do horizonte a revelar a espessura existencial, transportamos, e o mundo do espaço contemporâneo que se expande.
[Porto] (c. 1849-1859).
a porta onde se unem e apartam o Céu e a Terra.17 Heidegger
recuperaria a ideia condensando-a numa figura quadripartida *
Geviert: os quadrantes do destino que precisamos de guardar para
(‘verdadeiramente’) habitar.18 Guardar, quer dizer, cumprir as quatro Na Escola, as memórias trazem o que nos formou; situam-nos na
partes do destino: resgatar a Terra, com o sentido de construir mediação do tempo das gerações, desenham o caminho para levar
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

(bauen); acolher o céu; esperar o divino; seguir os mortais, estas as adiante. A Escola é feita também com a matéria das memórias que
palavras da figura quadripartida. construem um sentido de tradição. Será uma narrativa subjectiva do
que foi; uma narrativa pessoal e imperfeita que filtra aquilo a que damos
ressonância e transportamos para o nosso tempo, porque vemos a sua
15 Diálogo entre o Peregrino e uma Jovem. NOVALIS [Georg Philipp Friedrich
actualidade e damos valor prospectivo. Mas a consciência da historicidade
Leopold Freiherr von Hardenberg (1772-1801)], Henrich von Ofterdingen, Deuxième
pessoal é o contrário de um entendimento da (nossa) história como
partie: L‘accomplissement. Œuvres complètes: I – Romans – Poésies – Essais, 2 vol. Paris:
olhar de regresso ao passado. Com a consciência surge uma intuição de
07 e 08 (Soria) Casillas de Berlanga, San Gallimard, 1975, vol. I, p. 215.
alteridade, que obriga a sair da indiferença de estar. A diferença dá um
Baudel (final do século X).

História | Marta Oliveira


16 Hera, cit. HOMERO, Ilíada, XIV, 200, 302. Apud SOUSA, Eudoro de, Horizonte
agudo sentido de presença agora. A presença implica, no contexto da
e complementaridade. Sempre o mesmo acerca do mesmo. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da
Escola, uma relação mútua de cuidado e responsabilidade pelo outro.20
Moeda, 2002, p. 33.
17 Ibidem, passim.
18 HEIDEGGER, Martin, “Bauen, Wohnen, Denken”, in Vorträge und Aufsätze. 19 HEIDEGGER, op. cit., 1959, p. 145.
Pfullingen: Neske, 1954, p. 150. 20 Dessa relação com o outro (da tessitura de relações possíveis) seria de salientar

232 233
* Fernando Távora lembraria a sua dupla origem e raiz em terras de
calcário e de granito. Semelhante, a descrição dos ‘países’ da França,
Na topografia do nosso tempo encontramos ainda o assento de por Paul Vidal de La Blache. O geógrafo evoca a pobreza alegre
ideias do Romantismo que instauraram uma profunda mudança de das terras de calcário e a rudeza do país de granito. E Portugal, um
paradigma. Algumas dessas ideias são importantes para compreender, povo “do mar e da serra”,23 assim respondia Teixeira de Pascoaes a
ainda hoje, uma oscilação do pensar, incerta da pauta a seguir: Unamuno, que lhe escrevera no Natal de 1910:
crença em valores universais e convicção de que a racionalidade
da ordem científica permite alcançar um conhecimento global Portugal
sem resto? Certa e inexorável é a senda do progresso e possíveis Del Atlántico mar en las orillas
as utopias de mundos perfeitos? Ou uma atracção pela sombra, as desgreñada y descalza una matrona
profundidades do espírito, o mistério da individuação da pessoa e se sienta al pie de sierra que corona
da individualidade dos povos, e a sua expressão pela arte? triste pinar. Apoya en las rodillas
los codos y en las manos las mejillas
Nous rêvons de voyages à travers l’univers; – l’univers n’est-il donc pas en y clava ansiosos ojos de leona
nous? Nous ne connaissons point les profondeurs de notre esprit. Le chemin en la puesta del sol. El mar entona
secret va vers l’intérieur : en nous, sinon nulle part, est l’éternité avec ses su trágico cantar de maravillas.
mondes, le passé et l’avenir. (...)21 Dice de luengas tierras y de azares
mientras ella sus pies en las espumas
A atenção dada à pessoa e à singularidade do seu destino único, bañando sueña en el fatal imperio
e ao mesmo tempo, fruto de um sentimento de pertença a uma que se hundió en los tenebrosos mares,
comunidade (um povo, uma nação), a saliência dada à sua y mira cómo entre agoreras brumas
intermediação criativa no espaço vital comum: a natureza do se alza Don Sebastián rey del misterio24
lugar de raiz – a terra e o ar, água, luz do sol, sombras, paisagens,
vegetação, o substrato geológico –; carácter e índole de um povo, Um jogo de invenção e espelho de identidades, que hoje, como a
os seus modos de vida; a história da nação formada por revolução seu modo, em outros tempos, pensamos na controvérsia e crítica.
e conquista (Herculano);22 a comunidade forjada pela língua, arte Pensemos, então, a arte edificatória antiga e moderna, sem distinção.
e a memória dos seus monumentos, os modos da arquitectura. Guardemos as fontes, a experiência subjectiva da arquitectura.25 Não
se trata de saber sobre “o quê”, importa apenas o “como”, como
dizia Mies van der Rohe sobre “O novo tempo”, numa alocução ao
uma que se prende directamente com a formação do conhecimento-saber (knowing):
Deutscher Werkbund, em Viena 1930.
ensinar é deixar aprender. Algo que o docente tem tanto que aprender, quanto o
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

discente aprender a aprender. (“Enseigner est plus difficile qu’apprendre, parce


What matters is not the what but only the how.26
qu’enseigner veut dire ‘faire apprendre’. Celui qui véritablement enseigne ne fait
même rien apprendre d’autre qu’apprendre.” (Ibidem, p. 89). Destas referências
decorre a Escola que imaginamos, no caso particular através da História. Uma escola 23 “Só os povos do mar e da serra é que são genuinamente lusitanos; (…)” Carta
em que a formação do conhecimento não se dá por repetição, nem tem por base de Teixeira de Pascoaes a Miguel Unamuno, 01.03.1911. PASCOAES, Teixeira de,
resumos reduzidos a vagas generalidades, mas sim uma escola que procura formar um Epistolário Ibérico. Cartas de Pascoaes e Unamuno. Lisboa: Assírio & Alvim, 1986, p. 36.
conhecimento crítico que interrogue, procure respostas e soluções próprias, “sempre e 24 Carta de Miguel de Unamuno a Teixeira de Pascoaes, 22.12.1910. Ibidem, p. 78.
sempre de novo”, como diria Peter Zumthor. “Practicing architecture is asking oneself 25 ZUMTHOR, Peter, op. cit., 1998, p. 25.

História | Marta Oliveira


questions, finding one’s own answers with the help of the teacher, whittling down, 26 “Nicht auf das ‘Was’, sondern einzig und allein auf das ‘Wie’ kommt es an.” Mies
finding solutions. Over and over again.” ZUMTHOR, Peter, Thinking Architecture. van der Rohe 1930. Palavras de conclusão do relatório apresentado por Mies van der
Baden: Lars Müller Publishers, 1998, p. 57. Rohe, “Die Neue Zeit, Mies van der Rohe auf der Wiener Tagung des Deutschen
21 NOVALIS, Pollens, op. cit., 1975, I, p. 357-358. Werkbundes” (Junho 22-26, 1930), Die Form, V, Nr. 15 (1 Agosto 1930), p. 406. Apud
22 HERCULANO, Alexandre, História de Portugal, 3 vol. Paris-Lisboa: Livrarias NEUMEYER, Fritz, The Artless World. Mies van der Rohe on the Building Art. Cambridge
Aillaud & Bertrand, 1914, vol. 1, p. 99. Massachusetts; London: The MIT Press, 1991, p. 309.

234 235
Guardemos também um limite de justeza no dizer o que o autor / a IMAGENS
pessoa é, porque a individualidade inefável subtrai-se a explicação e
ganha em opacidade quanto procura aprofundar a lucidez acrescida 01 Bauhaus Berlin: Auflösung Dessau 1932, Schliessung Berlin 1933; Bauhäusler u. Drittes
do nosso olhar. Reich. Weingarten: Kunstverlag Weingarten, 1985, p. 94-95.
Conhecemos por sinuosos caminhos de pensar com elementos 02 Cod. Chigi I, 19, Roma, Biblioteca Apostólica Vaticana.
contraditórios e sem uma verdade única como resposta inequívoca a In BORSI, Franco, Bernini: architetto. Milano: Electa, 1980,
pergunta. Antes, obrigando a reformular e continuar sucessivamente p. 69, fig. 71.
as interrogações (sem negar que pode haver perguntas chave que 03 Fotografia da autora.
fixam um certo rumo). 04 Arquivo Alexandre Alves Costa.
05 STEMSHORN, M., Mies Schinkel. Das Vorbild Schinkels im Werk Mies van der
Precious moments of intuition result from patient work. 27 Rohe. Tübingen; Berlin: Wasmuth, 2002, p. 106. Dissertação Facultät Architektur und
Stadplanung der Universität Stuttgart, 2011.
Preciosos momentos de intuição resultam do trabalho paciente 06, 07, 08 Fotografia da autora.
– Peter Zumthor refere-se ao projecto – mas o mesmo se dá no 09 Frederick William Flower, um pioneiro da fotografia portuguesa. Lisboa: Lisboa 94,
trabalho de pensar a obra construída. Conheceremos que a sua cop.1994, fig. 111.
dimensão é incomensurável tanto mais quanto somos solicitados
pelo que nos chama a pensá-la – o que nos atrai a pensar, a voltar
a ver e a rememorar. A reflexão que orienta a mão que fala no
projecto e na obra.

Nous n’agissons pas parce que nous connaissons; nous connaissons au


contraire parce que nous sommes destinés à agir. La raison pratique est la
racine de toute raison.28

Pensaria que Johann Fichte, filósofo do idealismo alemão, nos dá


os termos para compreendermos o que já praticamos por intuição.
Não agimos porque conhecemos, mas conhecemos porque estamos
destinados à acção.
Muito interessante – esse saber deverá ser o suficiente e necessário
para o que estamos destinados a agir: um balanço sapiente de uma
incompletude que é própria à arte.
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

História | Marta Oliveira


27 ZUMTHOR, op. cit., 1998, p. 20.
28 FICHTE, Johann Gottlieb (1762-1814), La destination de l’homme. Paris: Aubier;
Éditions Montaigne, cop. 1942, p. 156.

236 237
Arquitectura e mirada, projecto e distância
– construção e movimento de uma coerência aventurosa

Luz Fernández de
Valderrama
Preámbulo

El presente texto fue escrito antes del 16 de mayo del 2012


con objeto de impartición de la conferencia en la Escuela
de Arquitectura de Oporto. Para la redacción del mismo se pensó

Arquitectura e mirada, projecto e distância – construção e movimento de uma coerência aventurosa | Luz Fernández de Valderrama
en un diálogo con un amigo, conocido pero oculto para la cómoda
escritura y lectura del mismo.
En el proceso de relectura que se realizó justo después de la
conferencia, en el año 2012 y de cara al envío del artículo,
en este espacio de tiempo intermedio, entre la presentación
y el envío del texto, se redactó algún apartado más y un nuevo
texto acerca de “la distancia”, concepto estudiado en el libro que
da origen a la conferencia y fue objeto de la tesis doctoral titulada
“La construcción de la mirada: tres distancias de la modernidad”.
Mencionaré solamente la distancia de la ‘frustración’, algo que
entendí tras la conferencia, ya que los días siguientes, me dediqué,
en esa maravillosa ciudad que me acogía, a escribir en el hotel,
acerca de todo aquello que no pudo ser dicho y no pudo ser
enunciado con claridad.
Descubría – como tantas veces en cualquier proyecto –
que la frustración es una distancia generadora de realidades:
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

en el espacio del deseo por “lo que no pudo ser dicho”,


o en el deseo por “un posible otro desarrollo de los acontecimientos”,
el proyecto siempre explota y redescubre, en ese espacio fructífero,
nuevas energías o nuevas visiones para la revisión de lo dicho,
ahora de otra manera.
Cuántos proyectos han surgido de este espacio de la frustración.
Recuerdo ahora a una alumna de segundo curso de la ETSAS
que, en una visita a Portugal, localización en la que se desarrollaba
el proyecto, no pudo hacer una fotografía que explicaba para ella
ese lugar y sus oportunidades: todo el proyecto surgió a partir de esa
frustración, de la maqueta que intentaba reemplazar a la fotografía
y por supuesto añadía nuevas posibilidades, y de la narración que
a través de ella se construyó.

238 239
A partir de ese descubrimiento de Oporto, he trabajado con esa por un lado y de pudor por otro: cómo contar en voz alta todos
distancia, que ahora descubro como demasiado familiar en mis procesos estos pensamientos tan íntimos. Pero a la vez de confianza y de
personales y proyectuales. Gracias de nuevo, también por esto. ilusión ya que no es otra cosa que hablar de lo que hacemos cada
En este momento sin embargo, me basta con enunciar esta semana en la escuela, en los cursos de proyectos, sobre todo en
sensación, la aparición de lo que en su día, en el libro o en la tesis, las asignaturas que imparto desde hace años, las asignaturas de
podría haber sido otro de los sabores de la distancia. Dejemos para Proyectos del primer año.
otra ocasión la oportunidad de enlazar este discurso con otros Nunca he hablado de mi libro a los alumnos, ni siquiera forma parte
proyectos no enunciados en su día, o con reflexiones paralelas de la bibliografía de los cursos2 (no sé si es esto correcto o no), pero
que han surgido en este tiempo y en este espacio. Me parece más creo que nunca he dejado de hablar de lo que en él se contiene,
coherente en este momento, enviar la conferencia siendo fiel al ya que, en el momento de elaboración de la tesis, y luego para su
texto inicial, recurriendo sólo a algunas necesarias correcciones. publicación, quise hablar de lo único que merece la pena hablar:
acerca de cómo enseñar y cómo aprender a proyectar: cómo pasar
Nota realizada en Sevilla a 26 de diciembre de 2012 del mundo de las ideas al mundo de lo real, cómo atravesar ese
espacio, cómo construir ese espacio, ese límite o esa distancia...
0 | Introducción Y sobre el aprendizaje constante que consiste el pensar acerca del

Arquitectura e mirada, projecto e distância – construção e movimento de uma coerência aventurosa | Luz Fernández de Valderrama
proyecto, sobre sus claves, herramientas y estrategias…
El estado previo a la redacción de este escrito ha sido de increíbles Creo que por eso soy profesora de proyectos.
nervios, una especie de estado en ebullición del cuerpo, de la mente y Sobre todas estas cuestiones se centran nuestros cursos de
de las ideas en el que van surgiendo las ideas que quiero contar y como proyectos, pero sin que se note, como un juego, como una fiesta, sin
contarlas en qué centrarme...un poco como se empieza un proyecto. que parezca que somos nosotros los que anunciamos las claves y las
Decía Sloterdijck, que un libro es una voluminosa carta que se herramientas, sólo a través de ellos, de los alumnos, enunciando casi
escribe a los amigos, muchos de ellos desconocidos: con sus palabras, pero sobre todo con sus acciones, descubriéndolo
a través de las herramientas que cada curso genera y de los hallazgos
“Como una vez dijo el poeta Jean Paul, los libros son que el colectivo de la clase provoca… sigo pensando que eso es
voluminosas cartas para los amigos. Con esta frase estaba lo mejor que puede hacer un profesor.
llamando por su nombre, tersa y quintaesencialmente, a lo que La conferencia, ponencia o conversación, no sé cómo llamarla y no he
constituye la esencia y función del humanismo: humanismo sabido todo este tiempo cómo hacerlo, por no dejarme sobrecoger más de
es telecomunicación fundadora de amistades que se realiza en la cuenta, se inserta en un curso que se titula ‘Prática[s] de Arquitectura
medio del lenguaje escrito.”1 Projecto, Investigação, Escrita’. He querido, por tanto, desde el
principio, imponerme en este tiempo la obligación de escribirla, usar la
El libro “La construcción de la mirada, tres distancias” cuyo herramienta de la escritura para poder pensar, para poder construir, armar
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

contenido fue la tesis doctoral presentado gentil y emotivamente el contenido de ese futuro espacio hablado: después como siempre, no sé
por Manuel Mendes es un libro de intimidades, de intimidades si la leeré o no, nunca suelo hacerlo... simularé que la leo para esconder la
proyectuales, que nunca te atreverías a decir en voz alta y escribes timidez, el pudor que produce hablar de lo que uno hace.
para que tu futuro y desconocido amigo, en solitario, lo lea cuando
pueda realmente disponer de un espacio para leer.
2 Sobre todo, teniendo en cuanta que con las bibliografías del curso hacemos
No esperaba que los amigos se encontrarían esta vez en una ciudad
unas acciones denominadas ‘BOOK-SPRES’, un poco por la rapidez del tiempo
tan admirada como deseada y en un foro tan privilegiado como
de discusión de las mismas, una hora, a la hora del café, y en segundo lugar, porque
la Escuela de Arquitectura de Oporto, con unos compañeros de
aprovechamos para generar una tertulia, precisamente con un café por delante, en el
conversación, el resto de invitados a este seminario, como los
jardín de la escuela. Generar estos diferentes espacios en la clase es muy importante,
que he tenido y voy a tener. La ocasión me llena de desasosiego
por mover el cuerpo, y por tanto la mente, y por qué estos espacios hacen que la mente
trabaje con la atención latente en vez de concentrada, permitiendo así que haya muchas
1 SLOTERDIJK, Peter, Normas para el parque humano. Madrid: Biblioteca de ensayo, neuronas con una baja intensidad, estado que facilita una comprensión más compleja e
Edit. Siruela, 2003 (Frankfurt y Main, 1999). interrelacionada de la realidad.

240 241
Creo que es importante en este tipo de ejercicios académicos, en nuestro espacio académico y en los casi recién inaugurados
imponernos estas condiciones: acudir, como en cualquier proyecto, espacios de investigación.5
a un ‘modo de hacer’ para pensar-construir-armar la investigación, Creo que el momento en el que se escribió el libro fue un momento
para que, como toda acción proyectual, se sujete a las normas de plenitud de la arquitectura y las escuelas estaban ensimismadas
de todo proceso de construcción de una realidad, eligiendo unas en la producción de la arquitectura. Con esa suerte, la tesis se
determinadas herramientas, esta vez la palabra escrita (en sus centró, de manera ensimismada, en estas cuestiones puramente
múltiples versiones).3 instrumentales que nos ocupan siempre en el proceso creativo. En
En principio no debería ser difícil decidir sobre qué se va a centrar, este sentido, esas preguntas son comunes, pero la diferencia es la
ya que el encargo por parte de Manuel ha sido, todo lo claro que complejidad del presente, de la arquitectura contemporánea, y la
puede ser, viniendo primero de un gran arquitecto y de alguien necesaria responsabilidad que como profesores nos debe obligar
con gran capacidad docente y organizativa, y a la vez ha sido lo a replantearnos continuamente el sentido y objetivo, por tanto,
suficientemente abierto para producir comodidad. Él lo enunció las metodologías empleadas en nuestras aulas, nos impiden
de esta manera: Arquitectura e mirada, projecto e distância – construção sustraernos de las urgentes preguntas a las que debemos responder
e movimento de uma coerência aventurosa, enunciado que repito en desde nuestro ejercicio profesional y por tanto docente e investigador
portugués ya que, para mí, contribuye a dilatar aún más el mundo (o viceversa). Ahora hay que enseñar y aprender las mismas cosas

Arquitectura e mirada, projecto e distância – construção e movimento de uma coerência aventurosa | Luz Fernández de Valderrama
que pretendía generar un encargo como éste.4 que antes, las que tienen que ver con la esencia del proyecto y de
El encargo vuelve a provocarme la misma dificultad que en su día me la arquitectura y, además, con las preguntas (que no respuestas),
produjo, primero la tesis, y luego la defensa de la misma ¿cómo pensar de lo que es hoy arquitectura.
sobre la mirada o hablar de ella?, y de nuevo la respuesta debe ser la
misma, hablar de la mirada, no desde, ni con la mirada, sino en ella, “Ser profesor de Proyectos en este momento, exige un gran
“en la orilla que deja de designar para empezar a decirse a ella misma”. ejercicio de responsabilidad: en tiempos de revisión de la
No puedo por ello volver al pasado en el que los objetos que se disciplina, ante las inminentes transformaciones del contexto
lanzaban sobre la mesa, los problemas y las preguntas eran unos y socioeconómico y cultural, ser conscientes del cambio y la
no otros, tenemos que hacer este ejercicio desde el presente, desde necesaria adaptación que debe producirse en nuestra disciplina
las preguntas y problemas contemporáneos, las preguntas que es urgente. Depende de lo que entendamos qué es arquitectura,
día a día nos hacemos en este complejo presente, y con los así debe ser el enfoque de la docencia en estos años iniciales.
problemas y los retos a los que se enfrentan nuestro presente, No creo que, en principio, sea finalidad de esta conferencia la
nuestra profesión y por tanto nuestra docencia. Lanzaremos definición de esta problemática y la definición de las nuevas
los problemas, las preguntas y los ensayos, los ejercicios y los claves de la producción, pero sí queremos dejar constancia
experimentos que nos llevan acompañando en este último tiempo del cambio que defendemos que se debe producir en nuestra
disciplina, y por tanto en la docencia de la misma. La arquitectura,
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

que debe ser definida en cada época como ya enunciaba


3 He escrito en ordenador, usando diferentes velocidades, como la del vértigo del
Mies van der Rohe, ya no tiene como objeto casi exclusivo diseñar
email, y la más reposada y reflexiva del texto largo repasado, he utilizado también las
objetos para paisajes que ya no los demandan, la arquitectura
plataformas de comunicación que tenemos en marcha, para poner en claro muchas
tal vez tenga mucho más que ver con la capacidad de detectar
ideas, he usado la mano y he escrito con el lápiz y en colores, con tachones y con
cuáles son los problemas contemporáneos y con la capacidad
esquemas, haciendo mapas, y volviendo a hacerlos.
de alumbrar soluciones creativas, por unos nuevos agentes de
4 Me he atrevido a traducirla como Arquitectura y mirada, proyecto y distancia – construcción
producción en el que el arquitecto juega un papel posiblemente
y movimiento de una coherencia aventurosa cuestión esta última que la transcribo tal cual por
no perder la musicalidad en su idioma originario. Tengo la sensación de que el portugués
es siempre más seductor, más emotivo, más intuitivo… parece como si el español se 5 El grupo de investigación PAIDI, TEP238-INGENTES (Investigación en
encargara de dejar demasiadas cosas en su sitio, esto nos obliga a más artilugios para Generación de Territorios), “ingentes.es” y en una nueva aventura del parte del mismo:
provocar al deseo, por lo menos, nos obligaría a hablar en poesía… parece como si el “rehabilitaciondebarrios.org”, generada como base de una red internacional con la que
portugués no lo necesitara (no es extraño que al lenguaje de la arquitectura le ocurra igual estamos trabajando en la actualidad. En la actualidad, 2022, este grupo se ha renombrado
y haya producido lo que no en vano se ha llamado la escuela de Oporto). como HUM 958- INGENTES (Investigación en Generación de Territorios).

242 243
mucho más humilde pero no por ello increíblemente necesario. 1.
Somos conscientes de que la realidad, y la revisión de la práctica 1.1 | La arquitectura es magia
de lo que hoy debe ser la arquitectura, posiblemente va mucho
más rápido que la reflexión-revisión y adaptación en nuestras He construido poco y me imagino que cada vez menos porque
escuelas, aún así, lo único que no debe faltar es precisamente no me gusta pelearme por migajas, me gusta construir en espacios
esta revisión constante en una situación que ya no va a volver de plenitud, no de competencia y prefiero dejarles a otros
al punto álgido, tal vez absurdo, que alcanzó en el 2007. Y es en (de hecho, mi estudio sigo viéndolo como mío, aunque actualmente
este marco, realmente difícil para los alumnos que actualmente mi presencia sea mínima, sigue sin mí, llevado ahora por mi hermana
salen de nuestras escuelas, en el que debemos ser conscientes de y mi cuñado7), pero con lo que he construido descubro siempre lo
que lo que diferencia a jóvenes arquitectos de su competencia mismo: que la arquitectura es magia, es alquimia.
de mayor edad (ampliamente entrenados en la producción de lo Me ha encantado hacer siempre magia con mis clientes y ver la
real y en su relación con el mercado), es “la experiencia con las satisfacción y el deseo en sus caras: la ilusión por ver un día hecho
nuevas tecnologías, las competencias digitales, y la voluntad de realidad eso que se les estaba presentando. No creo que haya mejor
ver los problemas desde una perspectiva diferente”.6 regalo para un profesional.
Goyeneta8 siempre nos enseñó eso: cómo construir en una casa

Arquitectura e mirada, projecto e distância – construção e movimento de uma coerência aventurosa | Luz Fernández de Valderrama
Para el citado encargo he querido ser sumamente ordenada y del siglo XIX y sacar cinco apartamentos (el anterior promotor
pensar sobre la triada proyecto/investigación/escritura que centra este abandonó el proyecto porque no pudo sacar dos).
seminario. Teniendo como fondo de este paisaje la práctica de la
arquitectura y las diferentes prácticas, la (s), tan bien enunciada y que Cuanto más difícil es el encargo, más denso es el espacio que
no es de extrañar que haya sido objeto de alguna conferencia, la construye cada proyecto: mientras más constricciones, más
práctica que es una y múltiple a la vez. En otra cara de la moneda, la herramientas inventadas, encontradas, nuevas o secretas habrá que
docencia, la docencia como mejor laboratorio donde ensayar y aprender generar para cruzar ese umbral.
estas cuestiones, para hablar y repensar cuales son las claves de Mientras más difícil, menos ocasión hay de copiarse a uno mismo
ese espacio que todo proyecto genera, del mundo particular que cada y de partir de fórmulas preestablecidas. Menos protagonismo
proyecto inaugura, de la mirada que construye y de la distancia que se tiene ese inevitable ego, el que se mira constantemente, rebotando
abre y genera con cada acción proyectual. la mirada en el objeto para volver sobre uno mismo anulando la
Quisiera exponerlo construyéndolo desde las constantes de la
arquitectura, respecto a lo que compartimos con ese momento,
7 Tal vez ésta sea la única nota introducida en el año 2022, 10 años después de
respecto a nuestro momento contemporáneo, hablando de lo que
la presentación de la conferencia y texto posterior. Desde el 2008 al 2012-13 año
permanece, de ‘lo que se parece’ una y otra vez en el proceso del
en el disfruté de una estancia en Chile y Bolivia, reduje mi actividad en el estudio.
proyecto. Es la raíz de esta búsqueda instrumental que sigue siendo
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

Curiosamente, a partir del 2015, a raíz de un premio común obtenido por una obra
la misma, aunque las respuestas sean diferentes.
previa de los tres, la vida me sorprendió con la oportunidad de volver incorporarme
A raíz de eso, aparecen sobre la mesa algunas interrogantes de
plenamente a mi estudio, estudiocurtidores, en el que he tenido la oportunidad de
nuestro presente, dejando alumbrar metodologías concretas que
hacer proyectos que me han reportado grandes alegrías y también retos y dificultades,
contaminan nuestra docencia.
como por ejemplo la rehabilitación del Oncológico Ingantil Vigen del Rocío (https://
Hay cosas que permanecen siempre en la arquitectura, hemos
www.javierorive.com/oncologia-infantil-aladina/) o el Restaurante Martirio (http://
querido centrar el discurso en tres aspectos, para, a raíz de éstos,
www.fernandoalda.com/es/trabajos/arquitectura/1355/bar-martirio) y un sinfín
hablar del proyecto, de sus claves y de algunos experimentos
de pequeños proyectos y concursos, algunos ganados y en marcha, que me han
llevados a cabo en las aulas.
permitido disfrutar la grandeza y las dificultades de nuestra profesión. Aprovecho para
agradecer a Marta Fernandez de Valderrama y Francisco Escudero tanto aprendizaje y
crecimiento en común.
8 FERNÁNDEZ VALDERRAMA, Luz, FERNÁNDEZ VALDERRAMA, Marta,
6 El texto es una adaptación de un artículo “Arquitecturas por horas”, escrito para el ESCUDERO GILETE, Francisco, Rehabilitación en vivienda. España: Editorial Pencil,
libro de Vittorio Fiore, Spazio Teatro, ver bibliografía. diciembre 2007. http://ingentes.es/uncategorized/rehabilitacion-en-cgoyeneta-11/

244 245
distancia del proyecto. De modo contrario, la dificultad genera Y nuestra respuesta era siempre la misma: pedirle cada vez más a
más concentración en la acción para la resolución del problema, esa persona, encender aún más su ilusión y de esta manera, hacerlo
obligándonos a mayor concentración y ensimismamiento sobre este aún más difícil, y a la vez más fácil, porque se transformaba en algo
espacio intermedio. apasionante. Sólo siendo consciente de nuestro papel, gran papel,
Es un poco como les ocurre a los deportes de riesgo: es inevitable humilde papel y necesario papel, de intérprete de las reglas del juego
la consciencia del presente y es en el presente donde se nos regala y a la vez de ‘intermediario’ entre esas condiciones de partida y el
la presencia del ser y el tiempo se convierte en duración. deseo final hecho realidad, por el que cobraba cuerpo y realidad un
Si los compañeros son amables y alegres, proyectar es como un proyecto, muchas veces casi ni imaginado al principio. Esto supone
juego, no se puede pedir más. un duro y extenuante proceso del proyecto (también para ellos, para
Y es también magia ver la chispa encenderse en los alumnos: los clientes, ya que quien ha construido, aunque sea poco, sabe que
un profesor no hace nada, pero lo que hace, es capaz de incendiar incluso los mejores clientes, desearían alguna vez, que nunca hubieras
una vida de pasiones y de aventuras. aparecido en sus vidas).
He construido poco, pero he disfrutado mucho y he sufrido mucho Esa distancia intermedia que genera todo proyecto, este mundo,
con lo que he hecho: no hay otra manera posible de cruzar este no nos pertenece sólo a nosotros. Esa es una diferencia respecto
umbral del hacer, sea en la versión que sea. a lo que escribí en su día. Este espacio es colectivo, sobre esto

Arquitectura e mirada, projecto e distância – construção e movimento de uma coerência aventurosa | Luz Fernández de Valderrama
En ese día del Pechakucha aprovechamos
Sobre esto les insistimos mucho a los alumnos: si no lo están estamos trabajando en una tesis9... y esto no excluye la Soledad para dar las gracias a esos compañeros no
pasando muy bien, y muy mal, y muy bien… no están haciendo necesaria del proceso de creación (hacer de uno un mundo ‘por explicitados en cada proyecto y a tantas y
Arquitectura, tal vez son sólo ejercicios o entrenamientos para amor al otro’), porque el resultado de la acción colectiva no es tantas maquetas desechadas, dibujos que
querían averiguar cómo se dibuja algo
lo que un día será Arquitectura. el mínimo común múltiplo (la teoría de sistemas siempre nos
que no sabes todavía, ni siquiera dibujar:
enseñó mucho de esto).
cruzar este umbral siempre ha sido y será
1.2 E igualmente es un ejercicio de gratitud trabajar con los una aventura apasionante.
alumnos de primero: porque no hay nada más ingrato, que un ¿Han pensado alguna vez la cantidad de
Y si la arquitectura es magia: el proyecto es un ejercicio alumno de primero. material que generamos los arquitectos
de gratitud. En Sevilla, me imagino que igual que aquí, empezamos a estar que nunca ven la luz, pero que son
imprescindibles para la creación?
El proyecto es un ejercicio de gratitud porque es una gran suerte sometidos al sistema de evaluación del profesorado por encuestas:
Cualquier otra disciplina generaría
y privilegio que alguien ‘te elija’ para ‘dar forma a un sueño’ las hacen los primeros días de docencia con unos alumnos recién con esto bases de datos, inventarios…
(ya sea una casa, o el inicio de un modelo de negocio, aunque llegados de la enseñanza de secundaria, que apenas nos conocen: deberíamos hacer tesis sobre esto, sobre
a lo mejor no se explicite como tal). Cualquier encargo va las suspendemos todas, porque ellos no pueden entender… los habitantes de los límites… pero esto
acompañado siempre de esta condición, la de hacer realidad … porqué aparecen unos profesores que se niegan a escucharlos, es sólo un paréntesis, volvamos al eje del
discurso…
los sueños, por eso hay que elegir a ‘magos’. los primeros días, uno a uno, las maravillas de las que son capaces,
Hace años nos encargaron la difícil tarea de contar lo que hacía y se empeñan en hablar para todos y en dar la docencia entre
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

en veinte imágenes con veinte palabras (pechakucha), con mis todos a la vez, incluso contradiciéndose entre ellos (cuestión
compañeros cotidianos en esa etapa, Paco, Pepe y Marta: no que pretendemos dejar continuamente claro, que no pensamos
pudimos hacer otra cosa que dar las gracias en veinte imágenes, lo mismo, que son ellos los que tienen que generar su propia
porque lo que unía a todos los proyectos era esa condición de poner opinión de las cosas, y que no hay ‘una idea que perseguir, sino un
sobre la mesa deseos ‘casi imposibles’, sugerencias algunas a medio mundo que construir’) …
definir, enunciados casi imposibles de proyectos (y en muchas …que, además, estos profesores, ponen proyectos ‘que no se saben
ocasiones éramos nosotros los que los provocábamos), problemas lo que son’ ni siquiera los profesores, no saben exactamente lo que
que requerían de una solución ingeniosa. están pidiendo, ni ellos ya que dialogan entre ellos, en voz alta,
Que alguien confíe en ti para que lo ayudes a esa materialización, averiguando las prestaciones de una herramienta todavía por averiguar.
o consigas convencerlo para tal empresa (ganándote su
confianza y haciendo de él un buen cliente), es siempre una
9 Amanda Martín Mariscal, sobre creatividad colectiva, y sobre eso estamos también
ocasión de una inmensa gratitud.
escribiendo en ponencias y artículos: http://ingentes.es/category/temas/creatividad-e-
investigacion.

246 247
Ya que si lo supiéramos, sólo tendríamos que esperar la Pensando sobre esta cuestión, casi alumbrada gracias a vosotros,
respuesta, que ya tendríamos en la cabeza de antemano, y la descubro que ésta es la virtud de nuestros cursos y también nuestro
creatividad trabaja con otras claves... de manera contraria, peligro que debe ser hábilmente orientado: el curso de Proyectos 1
nos embarcamos todos en una aventura, siempre nueva, y siempre está lleno de gimnasias, de comienzos, ejercitamos continuamente
desconocida, que no sabemos cómo va a terminar: es la única la creatividad, la búsqueda, la investigación de los inicios. Solo al
fórmula que nos permite saber que va a ser una aventura auténtica final del curso, las últimas cinco semanas, los embarcamos en la
y que serán ellos los que den las respuestas al problema que el construcción de la realidad, aso sí, hasta las últimas consecuencias:
curso ha planteado: los cursos trabajan con problemas, que es la los obligamos, nos obligamos (porque esto es un reto común)
única manera de construir un mundo, de generar la distancia que a construir a escala 1:1, y este año vamos a introducir, un poco
todo proyecto requiere)… como reto, también como nueva obligación descubierta y elegida,
…y además dicen cosas que no se entienden (porque aunque pero también con mucha ironía, la patente de las ideas construidas.
demos clase en primero, no reducimos la complejidad del (Si fuéramos ingenieros habríamos empezado hace mucho tiempo…
discurso, y dejamos de hablar de autores aunque no los conozcan, y se inventa cada año una cantidad de cosas…).
que nunca los conocen... El aprendizaje de los cursos de los primeros años de carrera son
Con estos alumnos ingratos, es realmente gratificante dar clase: como empezar un deporte. Personalmente me gusta poner como

Arquitectura e mirada, projecto e distância – construção e movimento de uma coerência aventurosa | Luz Fernández de Valderrama
porque al final, si el curso ha sido como tiene que ser, incómodo, ejemplo el buceo: al principio se le enseña al alumno a bucear Los cursos de proyectos están siempre
habrá sido un aprendizaje realmente verdadero, porque los llenos de artefactos, de herramientas
‘en aguas confinadas’, como en una piscina, ensayando sólo las
nuevas, de experimentos. El profesor de
resultados aparecen sólo al final. Y es sólo entonces, cuando herramientas, inaugurando un cuerpo, con un nivel de flotación proyectos es, al estilo de Moholy-Nagy,
mirando hacia atrás, de pronto, el curso empieza a adquirir una diferente, y unas determinadas técnicas: el aprendizaje de primero un dinamizador, el curso es como una
coherencia inesperada, como si hubiera estado prediseñada desde es sobre el cuerpo, las herramientas y las técnicas… ya llegará el fiesta donde está permitido casi todo,
el principio con la única certeza de que sólo se ha podido construir momento de la inmersión en aguas profundas y experimentar el lo primero el error.
con el intenso y desconocido camino recorrido. vértigo de los corales, y de los diferentes lugares.
Los ejercicios presentados pertenecen a
Todo curso es una aventura, un viaje desconocido y difícil. los cursos desarrollados junto a Rafael
Los cursos de primero están llenos de gimnasias, de ejercicios cortos Casado, Antonio Herrero y Eva Luque.
Y en este proceso es también realmente gratificante ver cómo para el aprendizaje de la creatividad, de las leyes de la creación,
se enciende una chispa: es un regalo al que no deberíamos donde ejerciten y experimenten sobre estas cuestiones, y sólo a final
asistir con neutralidad (aunque debemos asistir sin que se note, de curso, hacemos un pequeño experimento de inmersión en aguas
con mucha discreción, al igual que uno no debe desvelar al que profundas, como introducción de los cursos que siguen.
mira enamorado, forma parte de lo indecible, y pertenece a la Este es el lugar del aprendizaje de la mirada, de hecho, al curso de
otra persona, eso es sagrado y hay que respetarlo: y es la única primero lo denominados ‘OBSERVATORIOS’.
manera de no romper este misterio, mirando como de lado,
tangencialmente, como tantas veces…), señalando a otras cosas,
2.
que sigan alimentando ese proceso y esa sensación…
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

2.1.
Y gracias a que nuestros ‘queridos encuestadores’ no hacen
su trabajo al final del curso no se enciende nuestra vanidad...
Y desde aquí me gustaría enunciar la segunda cuestión a través
aunque duela.
de la que he decidido centrar esta clase: la arquitectura tiene
El proceso del proyecto es siempre gratificante: por lo mal y
como objeto, el placer.
lo bien que se pasa.
O enunciado de otra manera, el objeto de la arquitectura es el placer.
Y por eso es apasionante dar clase en primero.
El objetivo de la arquitectura es el placer: y ¿cómo no va a ser su
Y preparando esta conferencia, descubro que, como Kahn, creo
docencia o la investigación relacionada con esto, también un placer?
que amo demasiado los inicios: aquí tengo que hablar en singular.
No puede ser de otra manera.
Descubro que esa es mi virtud y mi perdición. Es importante
Esto lo enunciaba tanto un sociólogo, Jose Miguel Iribas, como
conocer nuestras capacidades y también nuestros límites: por eso
un geógrafo, Alfredo Rubio, ambos discípulos en lugares y épocas
necesito siempre trabajar con otros: construir con otros y dar clases
diferentes de Lefebvre. Lo hicieron en el contexto de un taller sobre
con otros.
creatividad y espacio urbano.

248 249
Esta arquitectura, que me atrevo a nombrar como “la verdadera Sergio Rodríguez, en un artículo denominado Tres lecciones de
arquitectura”, no estará nunca en las revistas. Urbanismo Islámico para este Milenio12 escribía sobre el urbanismo
La casa más bonita del mundo (que he visitado, sólo la experiencia del placer, sobre estas atmósferas. Sobre estas cuestiones estamos
de otros lugares podrá hacerme cambiar de opinión), es la casa pensando trabajando y escribiendo en “ingentes.es”.
secreta de un amigo arquitecto, una casa hecha fuera de la normativa
(por eso no puedo decir su nombre), que nunca va a ser publicada 2.2.
ni premiada. Con esta casa aprendí el verdadero sentido del acto
creativo: la realización de una obra por el puro placer de la acción en Y si la arquitectura tiene como objeto el placer, el proyecto es el lugar
sí, es lo que se llama en creatividad, la finalidad intrínseca al acto de del dominio del cuerpo:
creación. Cuántas obras que conocemos, que hemos visitado, han El proyecto debe trabajar con la multisensorialidad o polisensorialidad:
sido producidas pensando de antemano dónde iban a ser publicadas con la estimulación de los sentidos, mucho más allá de un trabajo
o a qué premio se iban a presentar: han sido producida para otra puramente visual.
cosa y eso se nota, las caracteriza una cierta frialdad. Es obligatorio hablar de los inmateriales del proyecto: o del espacio como
Y es la casa más bonita del mundo porque todo mi cuerpo atmósfera,13 más allá de su definición histórica como tres dimensiones,
se estremeció, me quedé sin habla, como el que asiste a un el espacio contemporáneo tiene más que ver con la luz, con el aire, con el

Arquitectura e mirada, projecto e distância – construção e movimento de uma coerência aventurosa | Luz Fernández de Valderrama
gran concierto, no fue una cuestión visual, aunque mis ojos grado de humedad, cualidades todas ellas que llevarían a definir un nuevo
descansaron cuando mi cuerpo se sentó en determinados lugares, concepto del confort.
es una experiencia que incorpora todo el cuerpo, hay que andar, Esto es válido no sólo para el proyecto de lo doméstico, sino también
descansar, ver, oler, pasear...10 para el proyecto del espacio público, definir esa nueva cualidad del
‘Mis ojos descansan’, es la definición más bonita que he oído de confort de lo público, potenciando por un lado el trabajo con lo
la belleza, la mirada es efectivamente, no sólo una acción del ojo, poli-sensorial (sólo tenemos que recordar el papel del agua y de la
sino también de la mente y del cuerpo: el cuerpo se relaja, la mente vegetación en determinadas arquitecturas), y activando todo aquello que
se serena, se apacigua y el tiempo se dilata transformándose en tiene que ver con lo relacional, con el estar con los otros. Sobre esto hay
experiencia y en ‘duración’.11 mucho que trabajar ya que nuestro tiempo se caracteriza tal vez ‘por esa
Supongo que el hechizo tuvo que ver con que nos regaló una cena incapacidad de estar juntos’.
en ese espacio, a la luz de la luna de la Alhambra y del Generalife Richard Sennet, en El declive del hombre público denuncia que la “tiranía de
(y ya estoy dando muchas pistas)… también las mil y una la intimidad está haciendo desaparecer el espacio público”.14
noches estaban llenas de fenómenos y de experiencias,
la cultura árabe siempre ha dominado las formas del
placer y es que, como Lefebvre decía, la arquitectura
ha dejado de tener que ver con el placer para dedicarse exclusivamente
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

12 RODRÍGUEZ ESTÉVEZ, Sergio, “Tres lecciones de Urbanismo Islámico para


al ojo, a ser un producto puramente visual (y sobre esto no han lecho
este Milenio”, in Mundo Árabe Contemporáneo (ed. ROLDÁN CASTRO, Fátima). Huelva:
ninguna demanda, ni las asociaciones de ciegos ni de consumidores).
Universidad de Huelva, 2011.
13 La distancia para nosotros ahora no es solo visual, no lo fue cuando escribimos
10 La casa a los que nos referimos es la casa propia del gran arquitecto andaluz, el libro – ya hablábamos del cuerpo – pero ahora creo que sabemos más: no es que sea
Antonio Jiménez Torrecillas, desgraciadamente fallecido el 16 de Junio del 2015. Sea un espacio sólo tridimensional (que es una evolución en la definición del espacio frente
éste nuestro homenaje al arquitecto de la casa más bonita del mundo. a su definición en dos dimensiones); el espacio es sobre todo atmosférico
11 La mirada es aquí una experiencia de todo el cuerpo, experiencia de plenitud, (la arquitectura de la que es heredera esta escuela es ejemplar en esta dirección de trabajo)
del ser y del tiempo realmente valioso que no es el tiempo acelerado sino el tiempo y por eso ahora más que nunca, el espacio tiene que ver con... Nos formamos en mi
dilatado ¿pertenece a los objetos o a los sujetos? Indudablemente a los dos. Es como si escuela para que un espacio quede bien cuando lo más importante es que uno se sienta
los códigos que construyen el mundo exterior y el interior encontraran un orden en el bien en un espacio... Un día se sabrá que no había arte sino medicina decía Nietzsche...
que ambos resonaran al unísono, como si las múltiples vibraciones se unieran en una 14 Existen dos tiranías de lo íntimo: por una parte, las opresivas obligaciones
sólo frecuencia. Tal vez por eso Nietzsche decía que “no había Arte sino Medicina”. domésticas y por otro, la amenazante vigilancia fascista. SENNET, Richard, El declive del
Pero de esto hablaremos más adelante. hombre público. Barcelona: Anagrama, 2011, in ABC cultural, 21 de enero de 2012.

250 251
En palabras de Iribas: Hubo ideas que no se materializaron, como por ejemplo cruzar
una de las calles más transitadas de la ciudad, la entrada al eje
“El hecho urbano no es sino un mero reflejo histórico del de la catedral y centro histórico-comercial, con un tendedero,
devenir de elementos inmateriales, que, a despecho de su en el que provocar, desde las redes sociales, que los alumnos,
naturaleza más etérea y aparentemente inconsciente, tienen paseantes, viandantes, generasen un tendedero de ropa colectivo,
mayor persistencia y durabilidad. (…) que luego podría ser donado.
El espacio público debe ser la expresión de los valores cívicos Pero sí hubo intentos más o menos logrados por intentar incorporar
que sustentan la ciudad, el resumen de la vida que alberga lo doméstico a las calles: las cajas rojas tenían como objetivo haber Para este artículo, en el que la escritura fue
un modo de pensar colectivo, utilizamos
y estimula… (…) sido colonizadas por objetos cotidianos (toallitas, jabones, botes
también objetos que nos permitieran,
Cabría invocar, en consecuencia con lo dicho, tres características de colonia… o unas patatas fritas y aceitunas… que permitieran como en todo proceso de proyecto,
que deberían fundamentar el espacio público la atractividad al viandante dejar por un momento de serlo, y reconocer que generar un espacio abierto que provocara
(propia o ajena, a condición de que estimule ésta), el dinamismo además de un cuerpo que necesita acicalarse, o descansar, o comer la acción. Los croquis pretenden sugerir
(configurado generalmente por un programa de usos abierto con los amigos y charlar… superar la mera condición de tránsito proyectos, provocar otros…

Estas reflexiones fueron los ejes del taller que completa la ciudadanía) y el confort”.15 del espacio urbano).
ya mencionado, del año pasado, cierre de O, por otro lado, proyectos que incorporaron el agua, el sonido, los

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una instalación urbana realizada por los El profesor Rubio, en una conferencia titulada Diez hipótesis sobre reflejos, como el bosque fantasma.
alumnos de Proyectos 2 (2ºQ).
el espacio público, se refería a la necesidad de una ‘reordenación’ Ensayos para pensar sobre los inmateriales del proyecto y la
que creara lo opaco frente a lo diáfano, lo imprevisible, frente polisensorialidad, además de muchas otras cuestiones.
a lo previsible, lo inmaterial, frente a lo material. Una reordenación Estos ejercicios, instalaciones a la escala 1:1, tuvieron un largo
que fuera capaz de reinducir conectividades y sincronías tiempo de incubación en el aula a través de maquetas, dibujos,
en el espacio público. objetos abiertos, ejercicios para cruzar el umbral del proyecto.
Sobre esto hemos pensado mucho como grupo de investigación. Hace El proceso del proyecto empieza con las manos.
años, con motivo del eje de un curso de la asignatura de Fundamentos de La mano como reina de la exterioridad. Sobre esto hemos
Habitar, que se centraba sobre la fiesta y el juego, Play spaces, escribimos hablado mucho.17
un artículo sobre la fiesta16 donde pensamos muchas de estas cuestiones. Es curioso que los chamanes, para trabajar con las manos de manera
La fiesta y su evolución, es esclarecedora por ejemplo de la lúcida, ser consciente de que estás durmiendo, y trabajar con el
desaparición de los cuerpos y de las actividades que antes tenían sueño, tienen un primer (y creo que único) ejercicio que consiste en
lugar en las calles, como por ejemplo con la aparición en la plaza mirarse las manos antes de dormir, en estudiarse detenidamente las
decoros como infraestructura. manos antes de dormir. Luego en el sueño, la manera de estar de
Por otro lado, la fiesta es un fenómeno que permite estudiar las manera lúcida en él consiste en volver a mirarte las manos. En ese
inmensas posibilidades del espacio doméstico y del espacio público ya momento, eres consciente de que estás produciendo esa realidad.
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

que, en la fiesta urbana, estos límites se desdibujan. La fiesta genera un En clase no contamos esto, no queremos que me demanden los
ecosistema donde el tiempo y el espacio se comportan de otra manera, padres de los alumnos, pero sí hemos hecho un ejercicio para
disolviendo sus límites. Nos alumbra nuevas posibilidades para el activar el proceso del proyecto, que por otro lado es un clásico en
proyecto de lo doméstico y lo público. cursos de otros aprendizajes de procesos artísticos: dibujar las líneas
En el curso de Proyectos 2 del año pasado, los alumnos construyeron de la mano, sin dejar de mirar a la mano, sin mirar el papel,
a final de curso una instalación en la Casa de la Moneda, sin levantar la mano del papel…
una acción que nos permitiera aprender sobre el espacio público. ¿Cuantos artefactos y herramientas tienen que construir la mano
para que una idea tome forma, cuerpo y realidad?

15 IRIBAS, José Miguel, “Espacio público, espacio ciudadano”, in Arquitectura Viva


n.º 136. España, 2011, pp. 18-19.
16 Reflexiones desarrolladas en el artículo FERNÁNDEZ VALDERRAMA, Luz, 17 FERNÁNDEZ VALDERRAMA, Luz, La construcción de la mirada: tres distancias.
RUBIO DÍAZ, Alfredo, REINOSO BELLIDO, Rafael, “Espacio doméstico, público y Sevilla: Secretariado de Publicaciones de la Universidad de Sevilla y el Instituto
Fiesta en Andalucía”, in Revista Neutra n.º 16. España, 2007, pp. 52-57. Universitario de Ciencias de la Construcción, 2004, pp. 215.

252 253
El proceso es siempre el mismo, lanzar cosas a este espacio intermedio, Entonces, ¿Por qué no hablar de las posibilidades del traje como
para que en el juego con las ideas y los objetos, surjan las ideas, y con elemento de mediación e interacción social? ¿No es la arquitectura
ellas, poco a poco una nueva realidad. Construimos objetos, dibujos, un medio que ha de estimular la asociación colectiva? ¿No puede ser
maquetas… hasta que se prenda de ellos nuestro deseo… la generación de un traje el laboratorio de mediación o activador de
En los cursos de Proyectos 1 tenemos reglas del juego muy sencillas, una acción social y por tanto colectiva?
siempre las mismas y siempre diferentes: cada día una maqueta.18 La acción exige medirse y medir, intentar comprender lo que es
Y de la maqueta, casi siempre directamente al ordenador. La clase necesario para los demás y para mí. Descubrir las necesidades
está siempre llena de artefactos que nos ayudan a pensar. imprevistas como emergencias y solventarlas con artefactos como
Y después de la mano el cuerpo ¿o es al revés? Nos queda un primer proyecto de arquitectura que nos pone en contacto con
mucho por aprender y ensayar, no lo podría decir con claridad, el espacio de la colectividad.
pero sí que el acto de creación es también un acto biológico, Con este ejercicio se pretendía que los alumnos construyeran
eso nos lo enseñó Marga. a la escala 1:1 un mecanismo para la interacción de cada cuerpo con
Otra de las reglas del juego del curso es que cada semana hay la colectividad: en este sentido, a mayor capacidad de interacción del
un invitado, para incorporar otras voces y construir una docencia traje, mejor evaluación, mientras más capacidad de construir una
El objetivo fundamental del ejercicio
colectiva. Y siempre nos ha parecido importante invitar a otros situación tenga el dispositivo mayor acercamiento a la producción

Arquitectura e mirada, projecto e distância – construção e movimento de uma coerência aventurosa | Luz Fernández de Valderrama
ha sido incorporar al ‘cuerpo’ como
agentes de otras disciplinas. El curso de Proyectos 1, que además de lo que entendemos por espacio. El ejercicio finalizó con agente constructor del proyecto, y
se centra en el proceso recreación, busca la cercanía de agentes de un desfile, en las zonas de tránsito de la escuela, en el que invitamos por tanto como primer agente de
otros campos de la creación, diferentes, para precisamente encontrar al resto de compañeros, profesores y alumnos de proyectos. construcción de la realidad y del espacio
similitudes respecto a nuestros procesos. Mostramos algunos resultados que fueron un repertorio elocuente de la arquitectura, como herramienta de
interacción social. El traje social tiene
Que el acto de creación es una cuestión fisiológica nos los desde el poético registro histórico de sentimientos REC (ejecutado
como objetivo vincular las acciones
explicó con mucha claridad Marga Iñiguez en un ‘Taller en base a un nuevo material inventado con malla y plastilina, en el del cuerpo para relacionarlo con los
de activación de la Creatividad’.19 que se impregnaban los recuerdos diarios, las huellas de las personas demás y el espacio alrededor inmediato,
Ya decíamos que el aprendizaje de primero es sobre el cuerpo, que han transcurrido por mi día), o algunos como el eficaz ‘traje de construyendo ‘una situación’.
las herramientas y las técnicas. El cuerpo como agente generador del Primeros auxilios’ o el ‘traje Taller’. El término social se refiere a la
proyecto es una constante de nuestros cursos. Fruto de ello es el ejercicio Estos cursos de proyectos pretenden, más que enseñar interacción de los organismos con otros
organismos y a la coexistencia de sus
del traje social, previo a la acción urbana que acabamos de mostrarles. qué es arquitectura, aprender, qué es lo que en ella acontece:
colectivos, con independencia de si son
Dicho esto, todo traje social ha de promover una acción colectiva las herramientas poco a poco se van haciendo más complejas conscientes o no y de si la interacción es
particular, y a la vez, ser el atractor social que propicie la participación y la construcción de las ideas se va comprometiendo cada vez más voluntaria o involuntaria. Al extrapolar
ciudadana en su entorno próximo o inmediato. Lo cual conlleva con la complejidad de lo real.21 el término traje como ‘expresión del
una característica singular, el acto presencial, debido a la necesidad de yo’, a la representación social como
característica intrínseca al estilo de vida
proximidad de los agentes que participan en la interacción. Éste es el traje 3.
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

entre miembros de la población humana,


que vamos buscando y que más nos interesa en relación a este ensayo. 3.1. genera una nueva connotación de notable
Una de las referencias para el ejercicio ha sido, por ejemplo, actualidad al crear una micro-red social
el proyecto Techno-Geisha desarrollado por el arquitecto Andrés Jaque.20 Por último, quisiera terminar esta reflexión con una tercera consideración accionada por la interacción colectiva
sobre la arquitectura: la arquitectura, la de cada época, tiene siempre de un traje. A esta mutación de traje
como misión trabajar y modelar el futuro: la invención del Futuro. con función social, la llamaremos
18 Cada día una maqueta, cada día un invitado, cada día una publicación en el blog, directamente ‘el traje social’.
Y esto, que parece evidente, esta es una de las causas de la crisis
cada día un tema o experimento.
contemporánea: la ausencia de agentes que piensen el futuro.22
19 Taller de activación de la Creatividad’, in http://ingentes.es/?p=770. El desarrollo
y objetivos del taller en la página web del grupo de investigación IN-GENTES
(Investigación en Generación de Territorios, grupo del Plan Andaluz de Investigación, 21 Explicación del ejercicio escrito en el artículo “Arquitecturas por horas: acciones e
al que pertenecen los profesores Fernández-Valderrama, Martín-Mariscal y Casado). interacciones en el espacio colectivo”.
Dicha financiación surge del Plan propio de Docencia, de la Universidad de Sevilla, 22 Reconozcamos también que a veces, cierta arquitectura se ha encargado de
dentro de la línea ‘Mejora de capacidades y habilidades extracurriculares’. servir al mercado, el cual no busca la generación de nuevas claves ni modelos, sino
20 http://andresjaque.net/wordpress/proyectos/techno-geisha-madrid/ precisamente la supervivencia del mismo mercado como tal.

254 255
La ausencia de un proyecto colectivo de futuro23 es algo que otro sentido que recuperar una cierta inteligencia perdida por
muchos están denunciando.24 parte de la arquitectura y también una cierta responsabilidad social.
Que la arquitectura tenga como objeto el futuro significa que la Por eso parte de nuestra docencia e investigación se ocupan ahora
arquitectura es una reinvención constante de la realidad y una de nociones como austeridad o salud.26
reinvención constante de nosotros mismos. Y el placer de la acción auténtica en el presente es la única
El presente nos regala la urgencia y necesidad de reinventarnos certeza de un futuro mejor.
a nosotros mismos, de desplazar el ‘deseo sobre las cosas’ al ‘deseo por Esto supone repensar, en nuestra docencia hacia donde nos estamos
la propia vida o la profesión’. La arquitectura como profesión, o como dirigiendo, cuales son nuestros objetivos, para qué los preparamos…
oficio debe ser redefinido constantemente. El presente nos regala en Si se han dado cuenta, nuestros ejercicios de los primeros años,
estos momentos la oportunidad como nunca de reinventarnos a nosotros no tienen necesariamente como objeto la construcción final
mismos y a lo que realmente queremos – y podemos hacer. Cuestiones de objetos, sino la ejercitación de los alumnos en los procesos
que ligadas pueden parecer una mala jugada del destino pero que bien de producción, en los procesos de creación, abiertos a nuevos
entendidas, como ocurre con el proyecto, nos puede regalar la sorpresa campos de creación para el proyecto y la arquitectura, pero
de un encuentro inaugurado con nosotros mismos. conscientes de que las leyes de la creación son siempre las mismas.
El arquitecto ya no es, no puede ser, sólo un profesional destinado Este año hemos tenido a Alejandro Pascual en clase. Los alumnos

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a generar objetos para un paisaje que ya no los demanda: el arquitecto terminaron haciendo un taller en el que pensaron una aplicación
es un profesional capacitado para muchas cuestiones, pero sobre todo, para móvil sobre el espacio urbano…
es un profesional preparado para pensar colectivamente el futuro, para Sigue siendo el proyecto, la creación de una distancia, de un umbral
visualizarlo, dibujarlo, mostrarlo y construirlo, con otros profesionales. abierto donde se construya una realidad, el centro y el sentido de
En una reciente plataforma que estamos construyendo, con motivo nuestros cursos. No la realidad final que sea construida, que cada
de la obtención de un PCI, un proyecto de cooperación época, circunstancia o oportunidad se encargará de definir.
inter-universitaria, “rehabilitaciondebarrios.org”, hemos reflexionado Y si la arquitectura es esto, una ocasión para la invención de un
al respecto en un post titulado “jubilados a los 40”.25 futuro, y con él de nosotros... el proyecto es, incuestionablemente
Lo que está en juego ahora mismo no es sólo nuestra profesión sino un ejercicio de incomodidad.
todas las profesiones, y vemos a amigos, familiares y compañeros
que ocupan actualmente su tiempo a aquello que pensaban hacer 3.2.
cuando se jubilaran, pero como modo muy Modesto de vida, que
frente al enriquecimiento (por imposible) busca la realización El proyecto es un ejercicio de incomodidad:27 Con la
(como consecuencia y regalo de lo anterior). En cuanto a nuestra incomodidad es lo que siempre ha trabajado la arquitectura y es a lo
docencia, también de esto hablamos, nuestra docencia en los que el proyecto ha tenido que darle lugar.
años anteriores ha estado ocupada por una cierta amoralidad, no
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inmoralidad, sino amoralidad, ausencia de valores: el verdadero “Cada época tiene su estilo de estar insatisfecha del mundo.
sentido de la aparición de nociones como sostenibilidad no tiene Cada insatisfacción consciente respecto al mundo encierra
el germen de una cultura”.28

23 INNERARITY, Daniel, El futuro y sus enemigos. Una defensa de la esperanza política.


Barcelona: Paidós, 2009. 26 Ibidem.
24 De esto también habla Innerarity en su libro, sobre “la falta de ambición colectiva de 27 También esta conferencia ha sido un ejercicio de incomodidad y la preparación
nuestras sociedades” (pp. 15), del repliegue sobre los intereses individuales y la carencia de de la misma no podía ser de otra manera: ¿cómo hacer el proceso de escritura de la
perspectiva. La ausencia de un proyecto sobre el futuro (la ausencia en general de proyectos) conferencia? Me he impuesto la escritura por email del contenido de la misma, a una
nos somete a la tiranía del presente y a la dificultad de ‘pensarnos juntos socialmente’ amiga real, como si la conexión se fuera a cortar, sin la comodidad del lápiz, y la certeza
La prevención y precaución, ha sustituido a la prospectiva y a los proyectos. Necesitamos de la goma: en una necesidad de incluir con ello a la ‘velocidad’, otra liada en el proceso
acciones optimistas y de esperanza, que hagan del futuro su tarea fundamental. de pensar haciendo: como decía... hay que ser rápido como las lagartijas y los pájaros,
25 FERNÁNDEZ VALDERRAMA, Luz, “Jubilados a los 40 y trabajando a los 60: la sólo así se evita el peligro y la tentación del estilo.
revisión-reinvención de una profesión”, in http://rehabilitaciondebarrios.org/?p=201, 2012. 28 SLOTERDIJK, Peter, Eurotaoísmo. Barcelona: Seix Barral, 2001, pp. 65.

256 257
El proyecto se ha complejizado como nunca, ya no está en las
La incomodidad, la insatisfacción y la extrañeza es lo que mesas de trabajo, ha salido de las mesas de trabajo. Muchas
nos caracteriza. veces tiene que ver con construir una agenda compartida…
El proyecto es un trabajo con la extrañeza. Ortega definía al Pero con esta necesaria incorporación de nuevas claves…
hombre como un ser ‘extraño’ y es precisamente la ‘incomodidad Estamos redescubriendo un gran campo de creatividad
constante con el medio lo que nos obliga a reinventarnos’. en estos nuevos y antiguos campos de trabajo: consiste
Esta es la herencia que recoge George Simmel cuando habla de nuevo en entender las claves o constricciones y los nuevos
del extraño, aquel que aprende el arte de adaptación de una valores a los que debe dar respuesta nuestro proyecto.
manera más minuciosa, aunque más penosa que la gente que El presente nos regala la oportunidad para inventarnos
se siente con derecho de pertenencia y en paz con su entorno, nuestro futuro. Por otro lado denuncia una cierta amoralidad
o Richard Sennet con la idea de ‘El extranjero’, el único que de la docencia en nuestras universidades. Creo que realmente
puede convertirse en verdadero artesano del medio ambiente, ya es así, que hemos hecho hincapié en determinadas cuestiones que
que se siente extranjero de un lugar que no podemos dominar ahora se revelan de una cierta intrascendencia, problemáticas
como propio. Tan grandes son los cambios que se requieren muy ensimismadas en la propia profesión. Pensar ahora,
para modificar los acuerdos a los que llega la humanidad desde nuestras universidades en temas como la sostenibilidad,

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con el mundo físico, que únicamente esa sensación de auto- no es otra cosa que recuperar unos valores que la arquitectura
desplazamiento y extrañeza puede impulsar las prácticas reales había perdido, una cierta inteligencia ya que ha demostrado ser
de cambio y la reducción de nuestros deseos de consumo.29 muy torpe con los ecosistemas y muy poco respetuosa con la
Tanto una actitud como otra requieren un cambio de óptica y por vida en general. Estamos en esta situación, en la definición de
tanto la reinvención de nuevos valores o patrones desde los que nuevos valores que responden a la insatisfacción contemporánea.
construir la realidad y desde donde hacer consciente la técnica. Por eso también la importancia de nuevos conceptos con
Ya no podemos seguir sentados como antes, pensando que ya los que debemos trabajar en la contemporaneidad, como
sabemos con qué trabaja el proyecto. La misma acción proyectual la austeridad o la salud. 31
nos obliga a sentirnos incómodos, a ser conscientes de que las reglas Y con estas nuevas condiciones, ponérnoslo más difícil, como
del juego han cambiado, que cambian constantemente, y con ellas, siempre: Terragni ya hablaba de esto, más bien Caetáneo, que
las variables del proyecto. con gran sagacidad hablaba de la multi-dimensionalidad del
Tal vez ahora, el verdadero objeto del proyecto sea definir, proyecto. Ahora hablaríamos también de la multi-sensorialidad,
precisamente las reglas del juego, las variables que deben entrar los múltiples sentidos que construyen el espacio.
en la ecuación. En el master de sostenibilidad hablamos de que Parece como si siempre pasara los mismo, cada vez
efectivamente nos sentimos en una época post industrial, ya que se complejizan más las claves del proyecto, y a la vez el proceso
lo que hemos heredado y sus problemas, encuentran sus raíces de producción de lo real, maneja siempre las mismas claves.
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en la definición de los sistemas de producción instalados desde la Siempre hay algo que permanece, lo que sigue pareciéndose de
revolución industrial, que se movió con dos claves, increíblemente un proyecto a otro: esto sí se puede enseñar.
pocas e increíblemente sencillas, el tiempo y el dinero: producir En estos nuevos procesos, nuevo en cuanto a las claves, pero
en el menor tiempo con el menor costo, y no fueron nunca, idéntico, como proceso en sí, el arquitecto tiene mucho que
por ejemplo, variables de ese sistema, las materias, los recursos, decir: porque es un profesional que se ha hecho experto en
la energía entrante o saliente, los residuos… la clave del el manejo de los espacios intermedios, que necesariamente
proyecto contemporáneo está en definir estas nuevas variables.30 deben ser abiertos, que necesariamente deben ser flexibles.32
A esto nos gusta denominarlo ‘arquitecturas inmateriales’:
y nos queda mucho trabajo con la información.
31 FERNÁNDEZ VALDERRAMA, Luz, “Jubilados a los 40 y trabajando a los
60: la revisión-reinvención de una profesión”, in http://rehabilitaciondebarrios.
29 SENNET, Richard, El artesano. Barcelona: Anagrama, 2009, pp. 25. org/?p=201, 2012.
30 BRAUNGART, Michael, MCDONOUGH, William, Cradle to cradle (de la cuna a la 32 Frente al futuro de los clásicos que era algo predecible, adivinable por
cuna). Rediseñando la forma en que hacemos las cosas. Madrid: McGRw-Hill, 2005. predeterminado, o el de la postmodernidad que era inabarcable, inaccesible, el futuro

258 259
Sabemos por otro lado visualizar la información de una manera Los alumnos deben en este momento, inventar, como decía
que es a la vez inteligible y seductora (acción imprescindible tanto Mies como Sandino (art de Alfredo), qué es arquitectura,
para todos los otros profesionales que trabajan con nosotros), ya que no es un concepto estanco ni solidificado, sino abierto y
a la vez tenemos generaciones expertas en la producción de vivo, y cada época debe definirla.
lo real (las que ejercitaron estas capacidades al cobijo de un - La urgencia de la autenticidad: supongo que en una época en
mercado que les permitió experimentar con maestría estas la que se vende y se compra lo que sea, esto no debe importar
cuestiones, y unas nuevas generaciones que son expertas en tanto. Cuando no es así, lo bueno que conlleva estas situaciones
el manejo de nuevas tecnologías, las competencias digitales, es a ser diferencial en lo que se produce, y esto sólo puede ser
y su capacidad y voluntad para ver los problemas desde eligiendo la autenticidad que hay dentro de nosotros.
una perspectiva diferente. Nos queda, por tanto, no sólo - La urgencia de arriesgar y de romper moldes, en el fondo
un gran trabajo interdisciplinar sino intergeneracional. ‘porque los moldes han desaparecido’ en esta situación.
Este proyecto de futuro está por construir, sobre todo esto Como generación no tenemos o no tienen modelos. Esto
estamos pensando. Y estamos trabajando a nivel internacional es consecuencia lógica de lo anterior (urgencia de actitud
con estas cuestiones.33 creativa). La urgencia por tanto de estar desapegado a los viejos
Y por eso es una carrera y una profesión preciosa: el otro día lo modelos para que puedan surgir otros, y a la vez formados para

Arquitectura e mirada, projecto e distância – construção e movimento de uma coerência aventurosa | Luz Fernández de Valderrama
hablábamos entre compañeros en mitad de un taller, aunque encontrar las diferencias (condición para la acción creativa).
haya poco trabajo, es que es una suerte haber estudiado esta - La urgencia de secuenciar un tiempo lento, silencioso,
carrera... Padres de estudiantes que están pensando que estudiar, introvertido de producción, con una continua comunicación
nos preguntan, nos siguen preguntando y Fernando Vilaplana decía: y enfrentamiento, de lo que hacemos, con el exterior
es que es una carrera muy bonita (y hablo de alguien que su actividad (comunicación, ¿redes?) para encontrar precisamente la
principal ha sido la Cooperación al desarrollo: este tipo de acciones, autenticidad en la diferencia: si ya está, no es que me hayan
con esta actitud, no pueden ser sino solo éxitos). Su otra dedicación copiado o adelantado, es que no es todavía lo que nosotros
es la rehabilitación del patrimonio, que también explicaba muy bien: podemos ofrecer. Compatibilizar información y comunicación
dedícate a esto si quieres trabajar mucho más, porque además de lo con trabajo concentrado, ensimismado, mimado…
que se hace con cualquier proyecto, hay que investigar, levantar los - La urgencia de dilatar el tiempo y el espacio.
edificios y sus contextos, trabajar con arqueólogos… Ante la constante aceleración, ante la sustitución que lo urgente
ha hecho de lo importante, necesitamos, más que nunca,
(3.3.) espacios colectivos de creación.
Para distinguir lo importante de lo urgente. (…)
En investigación nuestro trabajo se está centrando en estos Ha sido un verdadero placer poder pensar y escribir para
tiempos en pensar y trabajar con las emergencias, con las vosotros en todo este tiempo.
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

urgencias contemporáneas. Es mágico estar en esta escuela.


- La urgencia de SER como profesores e investigadores Muchísimas gracias por esta gran ocasión.
Sobre esto ya hemos hablado hace tiempo que una ponencia:
‘El ser y el deber ser de la investigación en Arquitectura’. Sevilla, 16 de mayo de 2012.
- La urgencia también por parte de nuestros alumnos de ser,
no de intentar imitar a lo que los arquitectos de otra época han
sido, porque únicamente era fruto de su contexto y posibilidades.

en la contemporaneidad, se entiende como múltiple y flexible, dependiente de nuestra


acción en el presente. INNERARITY, Daniel, El futuro y sus enemigos. Una defensa de la
esperanza política. Barcelona: Paidós, 2009.
33 http://rehabilitaciondebarrios.org/?page_id=276.

260 261
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262 263
Nota à data da publicação Casa Totó
O texto que aqui se publica integra a dissertação de mestrado
experiências de projecto para uma casa comum
em arquitectura, apresentada na FAUP em 2014, e que dava pelo
título de Regresso a Casa, Arquitecto na Comunidade, Experiências
sobre o praticável.1
O trabalho compunha-se deste e doutros exercícios, que se criavam
no reconhecimento da oportunidade de experimentar determinados
fundamentos da prática da arquitectura e determinadas convicções Luís Piteira
de suporte que tinham vindo a crescer no decorrer do curso de
arquitectura, muito gerados na margem do mesmo, ou em sua
oposição. Como gostava de dizer na altura, traziam à luz um curso
paralelo ao que decorria nas salas de aula, metade realizado no bar
e outra metade na biblioteca.
Apesar de ser feito de alguns heróis, com os quais se tem a honra
de partilhar a publicação – os autores, que amiúde se citam, mas
também os colegas estudantes e o Professor Manuel Mendes – é
um texto que escreve mais do que lê, é um texto de urgência, e é
essa a sua maior fragilidade.
Recordo com carinho a crítica do Pedro Levi Bismarck quando o
leu. Dizia que, como projecto, não tinha muito interesse.

Intróito

A Casa Totó é uma casa comum. Uma casa entre as casas da família.
Casa de porta-aberta. Casa de partilha e de afectos. Marco de morte
e de vida, de partidas e de regressos.
Neste habitar comum há mais a(s) casa(s)-da-minha-família do que a
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

minha-casa – de tanto que visitamos, que dependemos, que partilhamos


1 Este espaço de rodapé é dedicado a algumas menções obrigatórias relativamente ao
refeições, bricolages, o canal da sport-tv, as tomadas de decisão sobre
objecto Casa Totó e ao objecto dissertação.
o percurso de vida de um ou de outro.
A primeira, de carácter geográfico, prende-se com a localização destes
A Casa Totó é uma proposta natural – eles são a minha família; eles
acontecimentos–experiência. Trata-se de Alcáçovas, uma pequena vila do interior-
pertencem à casa(s)-da-minha-família. E é essa proximidade, de quem
centro alentejano, com cerca de 2000 habitantes e onde agora estabelecemos prática
conhece a casa desde sempre, que se converte em projecto. Porque ela
profissional – prática essa que confirma todos os dias a necessidade de reflectir sobre os
já é o que o possibilita. Relata-se a construção de uma sobreposição
meios e os modos do fazer da arquitectura e que partilha com o trabalho de dissertação a
de espaços – de vontades, de desenhos, de tempos, de lugares. Todos
preocupação do comum.

Casa Totó | Luís Piteira


estes sobre o suporte da Casa Materna, que espera a nova geração.
Depois, há que nomear as pessoas que contribuíram directamente para estas
experiências – o Professor Manuel Mendes, orientador da dissertação; o Geógrafo
Bruno Borges, co-orientador; o Arquitecto Pedro Bismarck, presença constante na
discussão; a Adriana Correa, que partilha a autoria dos projectos; a Maria João, a Maria
Antónia (Mitó) e o António Rodrigo Penetra (Totó).

264 265
No Totó existia como apriori vital a ideia de regressar à casa materna,
sonho que a Mitó e a Maria João, mulher e filha, partilhavam
intensamente com ele. Não existe aqui qualquer objectualidade
materialista como motivo. Tão pouco lhe conseguem, de partida,
dar função. Não significa ter uma casa, mas ser a partir da
casa, que ainda não existe de betão mas de paredes salitrosas
carregadas de significado.
A primeira tarefa que naturalmente tivemos foi a de motivar
a coragem necessária para abrir essa intimidade do sonho.
Para reconhecer na casa as paredes, tecto e chão 2 que a compõem.
E que o futuro, sobrepondo-lhes a sua condição de família
contemporânea, reserva mudanças, profanações.
Assistem, agora, à casa-lugar, com sítio na rua principal de
Alcáçovas. Já há barulho (dos carros), e o salitre já é problema
para além do significado. A frente fechada a norte é frio e
escuridão. A profundidade do lote é interioridade, demais. O chão
constantemente acidentado pelo desnível é cansaço, barreira a
que possam mover-se quando envelhecerem com a casa – agora,
como eles, novidade e projecto. E a divisão perdeu-se do programa
e homogeneizou-se – compartimentos inúmeros, fragmentos,
Heterogeneidade 1 segmentos, obstáculos. A perigosa fisicalidade do mundo3 carece, agora e
Criar o Espaço: A Casa Materna novamente, da heterogeneidade perdida.

“Há, desde a entrada, um sentimento de tempo na casa materna.


(…) O assoalho encerado, sobre o qual ainda escorrega o
fantasma da cachorrinha preta, guarda as mesmas manchas
e o mesmo taco solto de outras primaveras. As coisas vivem Covalência 1
como em preces, nos mesmos lugares onde as situaram as mãos Criar o limite: A Casa-sedução
maternas quando eram moças e lisas. Rostos irmãos se olham
dos porta-retratos, a se amarem e compreenderem mudamente. Um espaço praticável, para a performance imprevisível dos corpos,
(…) A casa materna é o espelho de outras, em pequenas coisas que não se concentra em optimizar as partículas – o homem, os objectos,
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

o olhar filial admirava ao tempo em que tudo era belo: o licoreiro a arquitectura – mas a relação entre elas ou a sua covalência.4 “O que
magro, a bandeja triste, o absurdo bibelô. importa não é a verdade, a beleza ou a justiça de cada coisa olhada
(…) A imagem paterna persiste no interior da casa materna. isoladamente; o que importa é o que resulta da relação entre as coisas,
Seu violão dorme encostado junto à vitrola. Seu corpo como da ligação entre as coisas”.5 A Arquitectura trata, pois, de criar os
que se marca ainda na velha poltrona da sala e como que se pode limites dentro dos quais os corpos – os dos homens e os das suas
ouvir ainda o brando ronco de sua sesta dominical. Ausente para coisas – se libertam e se seduzem.
sempre de sua casa materna, a figura paterna parece mergulhá-la
docemente na eternidade, enquanto as mãos maternas se fazem
2 Alusão a Álvaro Siza, citado por Manuel Mendes nas aulas de Teoria 2, FAUP.

Casa Totó | Luís Piteira


mais lentas e as mãos filiais ainda mais unidas em torno à grande
3 Alusão a AZARA, Pedro, Castillos en el aire. Barcelona: GG, 2005.
mesa, onde já agora vibram também vozes infantis.”1
4 Alusão a LANGMUIR, Irving, The arrangement of electrons in atoms and molecules, JACS,
1919, pp. 868-934.
1 MORAES, Vinicius de, “A casa materna” in Para viver um grande amor. Rio de 5 M. TAVARES: Gonçalo, Arquitectura, natureza e amor, Opúsculo 14. Porto: Dafne, 2008,
Janeiro: Editora do Autor, 1962, p. 93. p. 10.

266 267
se quer fazer nele.”11 “Não tenho nada contra os espaços que não
Eu, o Totó, a Mitó, a Maria João. Oito braços sobre a mesa, primeiro tenham função específica.”12 “As casas antigas tinham vagamente
encontro – a casa de ambos era olharmo-nos.6 Essa casa de olhares apontadas as funções, era frequente uma rotação de utilização do
é a edificação dos primeiros limites, aqueles que albergam a sedução próprio espaço.”13
entre os nossos quatro corpos. Abre-se assim um primeiro espaço “O que poderá fazer então o arquitecto? De um modo simples:
da casa que é projecto – espaço de diálogo – sem o qual nenhum medir o espaço; tirar o medo ao espaço de modo que a resultante
outro espaço se abrirá. seja o edifício sobre o qual os homens e as mulheres digam, entre
si, alto: lá dentro curvo-me apenas por amor. Se tal suceder eis
“[os espaços têm] A dimensão da altura, da largura e da que o arquitecto não fez apenas arquitectura, fez/construiu um
profundidade. Do tempo e dos afectos. (…) o espaço que é criado fragmento do discurso amoroso.”14
e recriado, pelos sentimentos, pelos afectos, pelos amores, pelas “Uma casa é as ruínas de uma casa,
paixões, com que nós o enchemos, e o espaço é o nosso passado uma coisa ameaçadora à espera de uma palavra;
e é também o nosso futuro. (…) Podemos aprendê-lo sozinho, desenha-a como quem embala um remorso,
aprendê-lo muitas vezes, e frequentemente com os outros que com algum grau de abstracção e sem um plano rigoroso.”15
habitam esses espaços. Porquê? Porque são esses outros que
estão permanentemente a criar espaços dentro dos espaços, a Chegou-se a um momento do nosso amor em que as palavras
criar dinâmicas dentro dos espaços, a criar afectos dentro dos nos traíram e nos afastaram. Eu porque duvidei sobre o que é a
espaços, a criar memórias, a depor memórias dentro dos espaços. Arquitectura e eles porque duvidaram sobre o que é habitar uma
E a depor utopias e sonhos e projectos dentro do espaço.”7 casa. Infringimos os limites tão sagrados do espaço em que nos
“Na sua primeira etapa, a casa deve receber amor, ou, pelo seduzíamos e nos principiávamos a amar. Eu porque não estaria
menos, consideração.”8 ainda preparado para deixar cair a mala de truques16, entre o moralista
educador moderno e o estilista do engate fácil. Eles porque se
Como em qualquer acto de sedução, requer-se ordem, paciência, tentaram em trocar estas relações pela imagem bela raulisnista da
generosidade, cumplicidade, rigor na definição do que cabe a casa alentejana, por efeitos estéticos de consumo rápido, e pelas
cada parte. E é nesta última que sempre se experimentam mais tipologias da cidade especulativa.
dificuldades: é preciso saber onde pára o Arquitecto e onde começa o habitante.9 Concluímos, maduramente, que nos faltava uma nova forma de diálogo
que nos possibilitasse ultrapassar os deslizes traidores, os vícios e a
“A ética de uma casa – de um ponto de vista da arquitectura – não retórica. E que os permitisse especular sobre a ligação erótica consumada
depende dos actos que os seus utilizadores executam lá dentro – mas entre casa e espaço17 – entre os seus corpos, os corpos das suas coisas,
sim, de um modo objectivo e nada vago, das dimensões, das medidas, e o da Arquitectura. Eram os limites possibilitadores dessa ligação
distâncias entre paredes, disposição de compartimentos”.10 erótica, ainda a descobrir, aquilo que teríamos que desenhar.
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

“Inventa-se uma teoria de que o espaço deve ser funcional,


pré-estabelecendo e limitando o seu uso, quando funcional é o que

6 Alusão a SARAMAGO, José, Memorial do Convento. Lisboa: Caminho, 2000.


7 ANDRÉ, João Maria, O lugar como escola. Comunicação proferida na Conversa-
performance-festa-manifesto Regresso a casa, histórias da cultura, Alcáçovas, 2013.
Registo-vídeo em https://www.youtube.com/watch?v=_Eozxhf8HbA. 11 FIGUEIREDO, Vítor, Fragmentos de um discurso. Porto: Circo de Ideias, 2012, p. 71.
8 Alison y Peter Smithson: de la casa del futuro a la casa de hoy, ed. HEUVEL, Dirk Van Den, 12 Ibid, p. 82.

Casa Totó | Luís Piteira


RISSELADA, Max. Barcelona: Polígrafa, 2007 13 Ibid, p. 70.
9 VASSAL, Jean-Philippe, Comunicação proferida no Seminário Prática[s] de 14 M. TAVARES Gonçalo, op. cit., p. 10.
Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita. Porto, 2012. Registo-vídeo em http://tv.up. 15 PINA, Manuel António, Como se desenha uma casa. Lisboa: Assírio&Alvim, 2011.
pt/videos/B578299m. 16 Alusão a FIGUEIREDO, Vítor op. cit.
10 M. TAVARES, Gonçalo, op. cit., p. 8. 17 Alusão a M. TAVARES,Gonçalo, op. cit.

268 269
Heterogeneidade 2
Limite: A Casa-amor

“O que é uma casa para as pessoas que não são legisladores e que
não somos arquitectos? Isto é uma casa: reconhecemos as paredes,
as escadas, as janelas, os espaços, as portas, os armários. Mas, nesta
planta, o que vê o usuário que a irá habitar?
– Vê precisamente o que não é a arquitectura. Para o usuário, a casa
são os espaços onde vai colocar o que ele necessita. Os móveis
do seu avô, os que compra no IKEA e a cama maior que possa
encontrar no Mercado (para o que seja)”18
A casa é também mais do que um lugar. “Lugar é onde se está”19.
A casa é também uma entidade do tempo, uma entidade que
se carrega na pele e na memória. “Significa que o espaço tem
memórias. O espaço tem passado, e o espaço tem presente, e o
espaço tem futuro. Quando a gente imagina, quando a gente
olha para um terreno onde vamos fazer uma casa e imaginamos
a casa que lá vamos construir, nós criamos um espaço a partir da
dimensão do futuro! E todos os espaços transportam as dimensões
do passado, as memórias que lá estão. Portanto, os espaços estão
vivos, os espaços estão permanentemente em movimento.”20

3ª Reunião. Propus que recortassem, em cartolina, os móveis e objectos


que deveriam, com eles, habitar a casa em projecto. Uns que se
manteriam na casa materna, outros que transportariam da casa onde
agora vivem, outros que sempre sonharam vir a ter.
Em família, dispuseram-nos sobre a mesa em pequenas agrupações
– todas sem nome, sem paredes, sem escadas, sem janelas, sem portas.
Depois, relacionaram essas agrupações numa disposição de
conjunto. Para eles, cada pedaço de cartolina era um concentrado
de significados, sonhos, gostos e estéticas, memórias, funções.
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

Para mim, apenas abstracções que permitiram desenhar e articular


os limites dos espaços, onde todos os corpos a habitar a casa se
poderiam seduzir entre si.
O primeiro a notar é que esta casa em projecto era uma sobreposição
de outras casas onde tinham vivido, que tentamos reconstituir –
muitos dos espaços sobrepunham inúmeras funções; na sua maioria,
uma mesma função tinha um espaço onde acontecer de dia e outro
diferente onde acontecer de noite; um espaço onde o homem

Casa Totó | Luís Piteira


18 SORIANO, Federico, Comunicação proferida no Seminário Prática[s] de Arquitectura –
Projecto | Investigação | Escrita. Porto, 2012. Registo-vídeo em http://tv.up.pt/videos/77wFFI9c.
19 ANDRÉ, João Maria, op. cit.
20 Idem.

270 271
realizava uma determinada tarefa, não era o mesmo onde a mulher Covalência 2
levava a cabo uma actividade semelhante; existiam, também, espaços Criar o Espaço 2: A Casa?(mento)
na casa cuja função era não terem função alguma, nunca serem usados,
apesar do seu grosso recheio de mobiliário indicar precisamente o “Costuma-se dizer que a Arquitectura é uma arte da organização
contrário; estes últimos eram espaços de aparato, sempre em espera... do espaço. Eu não acho que a Arquitectura seja uma arte de
um dia mais importante chegaria e justificaria a sua profanação. organização do espaço. A Arquitectura é uma arte de criação de
Definido o meu limite e o deles, estávamos preparados para viver um espaços, porque no momento em que o arquitecto desenha uma
grande amor,21 casar, fazer casa. janela numa parede, por onde a luz entra, criou um espaço novo
naquele espaço que ali estava. No momento em que coloca uma
parede cria um espaço. No momento em que coloca, no meio
de uma terra, um templo, cria um espaço novo. Não apenas
organiza o espaço mas cria espaço.”22

Havia agora que criar os limites da Casa, dentro dos quais se seduzirão
os corpos que a irão habitar. Esta casa é uma outra, sobreposta à
dos móveis de cartolina e sobreposta à casa que abrigou o nosso
diálogo-amor. Mas ela não é ainda a Casa. Constitui-se apenas de um
conjunto de espaço que talvez apenas o Arquitecto possa experienciar
verdadeiramente. Espaços mentais, artísticos. Espaços de plenitude, de
imaginação. Espaços de potência, espaços concebidos, representações do espaço23.
Nesta casa do Arquitecto, há que encontrar então o correcto
dicionário espacial (que não estilístico). Inventar (sobre) os
dispositivos24 que definem os limites – os espaços e as suas articulações:

1 | Sistema L–Pátio
Pequeno pátio rectangular, conformado por um corpo em
L – dois espaços encerrados a poente: um pequeno e de planta
tendencialmente quadrada e um outro rectangular de maiores
dimensões; um espaço a Sul: de maiores dimensões e planta
rectangular, que se articula com os outros corpos do sistema, a ser
repetido 3 vezes na profundidade do lote.
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

2 | Cobertível
Corresponde a um destelhar do miolo do volume pré-existente
de maiores dimensões: introduzindo iluminação natural no piso
térreo e sótão, deixando em espera a estrutura de telhado e criando
assim a possibilidade de sombrear ou impermeabilizar esse espaço
temporariamente, através de um dispositivo amovível.

Casa Totó | Luís Piteira


22 ANDRÉ, João Maria, op. cit.
23 LEFEBVRE, Henri, The Production of Space. Oxford: Blackwell Publishing, 1991.
21 Alusão a MORAES, Vinicius de Para viver um grande amor. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 24 Alusão a TEYSSOT, Georges, “Heterotopias e a história dos espaços” in Da teoria
1962. da arquitectura: doze ensaios. Lisboa: Edições 70 e|d|arq, 2010, pp. 31-44.

272 273
3 | Vidro–Portada Heterogeneidade 3
O vidro–portada encerra a relação física entre o interior e os pátios, Espaço: A Casa, (do esquecimento)
e a relação visual entre os espaços interiores através dos pátios.
As portadas permitem ainda a relação entre a atmosfera interior “Bom é o esquecimento.
e a atmosfera exterior: ar\temperatura – com os painéis de vidro Senão como é que
abertos, pode controlar-se a relação entre ar exterior e ar interior; O filho deixaria a mãe que o amamentou?
luz\sombreamento. Que lhe deu a força dos membros e
O retém para os experimentar.
4 | Rua na Casa–Casa na Rua
Corresponde a uma profanação do Sistema L, que oferece um Ou como havia o discípulo de abandonar o mestre
espaço à rua e que oferece a rua à casa. Viver a rua domesticamente só Que lhe deu o saber?
é possível dessa maneira, visto a sua inclinação expressiva, a diminuta Quando o saber está dado
largura do passeio, a intensidade e quantidade do tráfego. O discípulo tem de se pôr a caminho.

5 | Chão–Rampa–Muro Espesso Na velha casa


Espessa-se o muro da empena a nascente, onde se inclui um corredor Entram os novos moradores.
segmentados em troços de rampa que permitem dar acesso aos vários Se os que a construíram ainda lá estivessem
espaços da casa, a cotas diferentes, seguindo a topografia do terreno. A casa seria pequena de mais. (...)”26

6 | Chão–Escada-Sotão A casa não tem núpcias, parte logo para o esquecimento. Precisamos
Criar chão.25 Uma escada que torna o tecto um outro chão, e abre deixá-la, mas não devemos abandoná-la. A representação do espaço torna-se
assim um outro espaço na casa. agora espaço de representação, espaço vivido.27 A casa experienciada no
desenho é apenas um estado transitório, uma necessária abstracção,
uma heterogeneização primitiva, um adesivo que conecta a casa de
olhares à Casa. Constitui uma camada de aparelho a ser imediatamente
recoberta, profanada, recriada. O arquitecto deverá ser apenas um
desencadeador intermédio. A Casa, agora devolvida à família, ganha
sentido na forma de matéria (novamente) corrompível.
Ainda aí se depositarão, durante o meu até um dia, os mesmos móveis
de cartolina. E alguns novos muros se alçam, que os vejo, já ao longe.
Mas na casa de olhares nenhuma barreira se levanta. É só um estado
Prática[s] de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita

maduro do nosso Amor.

Casa Totó | Luís Piteira


26 BRECHT, Bertold, Louvor do Esquecimento, in Lendas, Parábolas, Crónicas, Sátiras e outros
Poemas, tradução de Paulo Quintela, visto em http://www.citador.pt/poemas/louvor-
do-esquecimento-bertolt-brecht.
25 Alusão a VASSAL, Jean-Philippe, op. cit. 27 Alusão a LEFEBVRE, Henri, op. cit.

274 275
FONTES CITADAS

ANDRÉ, João Maria, “O lugar como escola”. Comunicação proferida


na Conversa- performance-festa-manifesto Regresso a casa, histórias da cultura,
Alcáçovas, 2013. Registo-vídeo em https://www.youtube.com/watch?v=_
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BRECHT, Bertold, “Louvor do Esquecimento, in Lendas, Parábolas,
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SORIANO, Federico, Comunicação proferida no Seminário Prática[s] de
Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita. Porto, 2012. Registo-vídeo em http://tv.up.pt/
videos/77wFFI9c.
TAVARES, Gonçalo M, “Arquitectura, natureza e amor”. Opúsculo 14.
Porto: Dafne, 2008.
TEYSSOT, Georges, “Heterotopias e a história dos espaços” in Da teoria
da arquitectura: doze ensaios. Lisboa: Edições 70 e|d|arq, 2010.
VASSAL, Jean-Philippe, Comunicação proferida no Seminário Prática[s]
de Arquitectura – Projecto | Investigação | Escrita Escrita. Porto, 2012. Registo-vídeo
em http://tv.up.pt/videos/B578299m.
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Casa Totó | Luís Piteira


276 277
Un cuarto también es un texto

Luis Martínez
Santa-María

01 Plano parcial de la Alhambra de Granada.

1|

Si yo tuviera que contar en qué consiste la Alhambra diría que es


un lugar donde parece que el mundo se ha vuelto ilimitado. Allí las
estancias se suceden una detrás de la otra sin que su cuenta termine.
Los mocárabes, las yeserías, los azulejos, las cenefas, se entrelazan
sin principio ni fin ante una admiración que ya no encuentra
descanso. Diría que es un recinto donde uno gira para pasar de
una estancia a otra, de un patio a otro, rodeando los estanques y
las masas de vegetación, o siendo rodeado por ellos. Y efectúa esa
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Un cuarto también es un texto | Luis Martínez Santa-María


marcha giroscópica, como la de un molinete que gira llenándose
de aire, sin optar por una dirección, envuelto en series y series
incesantes. Y diría que el visitante, que siempre se siente a la vez en
un camino y en un centro, no sabe si crea lo que le está pasando o si
es creado por lo que le pasa. Tal es el enigma. No sabe si es el autor
de todo aquello o su protagonista.
Y si alguien me dijese: Luis, exprésalo en una figura, yo dibujaría
seguramente un círculo. Es la forma en la que se inscriben todas estas
propiedades: un lugar que no tiene ni principio ni fin y que gira sobre
sí mismo; un tirante y suave cordel realizado con un número infinito
de puntos constantemente unidos al presentimiento de un centro.
La señal de una expansión amable, incontable y sin embargo
cerrada.

278 279
Las trazas del patio interior del palacio de Carlos V, a pesar de busca del aire y la luz como imágenes sencillas de la libertad
su abstracta frialdad geométrica y de su extrañeza ante las y la ética que se respira en esa oficina; o recuerdo la cadencia
serpenteantes alineaciones de la Alhambra, colocan ante nuestros introducida por los muros pantalla de la Unité de Marsella, unos
ojos, precisamente, la figura protagonista del círculo; el mismo metrónomos en los que parece redoblar el sonido de un tambor
redondel que palpita guardado allí dentro, como un secreto, en – que te lleva a la batalla – unido al silbido enternecedor de una
el edén de la Alhambra. Y es así como, en mi opinión, el palacio flauta – que te reconduce a tu casa–; o vuelvo a ver los cuatro
construido por Pedro Machuca constituye un extracto sensible: bellos apoyos macizos que sujetan la Biblioteca de Libros Raros
explica con fidelidad, aunque con sus propias palabras, cuál es y Manuscritos Antiguos construida por Gordon Bunshaft en
el fondo y el alcance del texto fascinante que se encuentra a su Connecticut, donde los estrictos soportes verticales de acero
lado. Creo que hay en el dibujo de ese patio manierista, en esa fueron recubiertos con impostoras placas tumbadas de granito
circunferencia trazada por un enorme compás, en ese epifenómeno a fin de transmitir un peso distinto, tan acorde a la extrañeza del
guardado en el interior de un prisma concluyente, un rasgo de contenido del edificio como lejano a la inmediatez que arrojaría
inteligencia y de simpatía extraordinario hacia la inmersión en la cualquier cálculo técnico; o pienso en las columnas de los
arquitectura que la Alhambra representa. templos octástilos o decástilos, con sus capiteles corintios, con
También me gustaría mencionar la arista nororiental con la que este esas labras que merecen ser vistas bien de cerca para entender
palacio se presenta ante el patio de los Arrayanes. Allí, la amplia hasta qué punto, para aquellos arquitectos y escultores, tuvo que
habitación que da acceso desde el palacio al recinto de la Alhambra, ser decisivo señalar, mediante tal alegría, la forma mediante la
muy al tanto de todos los presentimientos que hemos intentado cual sus edificios ponían en contacto las fuerzas del peso de
anotar hasta ahora, muestra de nuevo un perímetro circular a pesar de sus templos con las fuerzas resistentes de la tierra e incluso
que ello suponga romper la simetría con la que el palacio de Carlos V con las fuerzas profundas y luminosas del mar; o pienso en las
tanto parecía complacerse; pues hasta tal punto los comitentes y columnas de granito del Panteón, realizadas mediante piezas
los arquitectos del palacio cristiano tuvieron que conmoverse ante monolíticas arrancadas a las montañas de Egipto, transportadas
aquella construcción herética. Porque todo es permeable. Todo es por el Mediterráneo en improbables barcazas, subidas a
compasión, resonancia. Las astas de la cornamenta del ciervo – contracorriente por el rio Tevere y levantadas finalmente en
dice Ernst Junger – recuerdan los privilegios de las formas de los Roma gracias a la pericia y ambición de los hombres y a la fuerza
troncos y las ramas del bosque. La tonsura del fraile dibuja sobre bruta de docenas y docenas de bueyes y esclavos, contra todo
su cráneo una figura relacionada con la sacralidad de su credo. Las lo razonable.
dos puntas de la montera del matador de toros aluden a los pitones También el orfebre en su taller medita sobre la forma de un
del bicho. La rotonda celebra al volante y a la rueda. Y el cuarto cáliz, donde habita lo sagrado. No puede permitirse que, por
recuerda al mundo del que para siempre forma parte. una eventualidad, la copa pueda volcarse durante la celebración
eucarística; sabe que tiene que haber tanto esfuerzo y esmero
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2| en el diseño del recipiente superior como en la confección de
la base. Por decirlo más claramente y por regresar a la idea
Atendiendo a la excepcionalidad de las cargas humanas y de que el cuarto es un texto: sabe que tiene que haber tanta
consideradas estas, sin exageración, como auténticos tesoros, se exageración, tanto delirio, arriba como abajo, tanto en lo que es
encuentran bases y apoyos desproporcionados en la historia de sujetado como en lo que sujeta.
la arquitectura. Pienso en los muros de más de cuatro metros
de espesor de la capilla de Ronchamp, derrumbados por la luz
del sur, expresando, con ese gesto, el cuidado sin límites con el
que el peso de la cubierta debe ser conducido hasta alcanzar la
cima de la montaña; o pienso en los pilares de la oficina Johnson
Wax, de Frank Lloyd Wright, que se abren como estructuras
arborescentes en la parte superior y que se estrechan en la inferior
como si quisiesen ser juncos que crecen de abajo hacia arriba en

280 281
admiración como reserva.
Y recuerdo aquí una anécdota contada por el escritor italiano
Claudio Magris. Durante una visita a una importante central
térmica en el Danubio, cuando se encontraba en una sala donde
se estaba proyectando un vídeo sobre el enorme esfuerzo que
había supuesto la construcción de aquella central, entró un
grupo de escolares con sus profesoras. Aquellos niños, ajenos a
todo ese trabajo titánico que se iba mostrando en las imágenes,
el hormigonado, el movimiento de los camiones cargados de
roca y de tierra, el heroico andamiaje de la presa…se reían y
jugaban.
Sí, desde luego que le impresiona al escritor la construcción de
la central térmica, pero aún le impresiona mucho más cuando
tiene que superponer, a esa hazaña constructiva, la presencia
de unos escolares tan desaplicados. Unos niños que no dejan
de representar, por cierto, lo que son los seres humanos, lo que
somos en parte cada uno de nosotros: unos seres distraídos,
apandillados, incompletos, que pueden sin embargo talar los
bosques, dinamitar las rocas, mover toneladas de tierra, cortar
02 Vicenza, villa Almerico Capra detta “la Rotonda”.
y desviar la corriente de un río helado y gigante y levantar
3| una construcción inaudita desde la que desborda suficiente
energía para toda una región, todo ello siempre y cuando se lo
Esta es la planta alta de la Villa Rotonda, una obra realizada por propongan.
Palladio en 1566, sólo cuarenta años después que el Palacio de La discordancia entre las dos plantas de la Villa Rotonda ofrece
Carlos V. No es el plano más conocido del bello edificio, aquel algo semejante a la experiencia de la central térmica. Aquí están
que presenta a sus cuatro sonrientes pórticos abiertos a las cuatro también los mismos altibajos que hacen escribir unos bellos
orientaciones y contrarrestando esa explosión espacial hacia el renglones a Magris. También la arquitectura agolpa dentro de
paisaje mediante una importante estancia circular aplomada en un mismo interior hechos que no concuerdan. A veces casi
el corazón de la casa. Este es, por el contrario, el piso que se parece que se complace no sólo en hacerlo sino en demostrarlo,
encuentra justamente arriba, en una localización un poco oculta. como si fuese consciente de que las construcciones acaban
De su existencia dan señales las ventanitas rectangulares que siendo documentos antropológicos y textos insobornables. Sin
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pueden detectarse en los cuatro alzados de la villa si se miran duda que a la arquitectura le gusta ocultar, y a la vez exhibir,
con detenimiento. el desconcertante conocimiento que posee sobre las fuerzas
En esta planta alta, abuhardillada en algunas zonas, aparecen y debilidades de sus protagonistas. En las gárgolas de las
unas subdivisiones que no guardan ningún tipo de orden entre catedrales, personajes grotescos, informes, obscenos, cohabitan
sí. Son, sin duda, las habitaciones de los siervos, los almacenes junto a las cruces y las devotas vidrieras polícromas.
y las dependencias de servicio. Este estrato superior de la Villa
Rotonda desoye el orden tan suntuosamente trazado en la planta
inmediatamente inferior y señala hasta qué punto es necesario,
para construir adecuadamente una casa y para hacerla viable
en el tiempo, atender otros asuntos que pudieran considerarse
de menor rango. A mí me parece que esta superposición de
intenciones toca de lleno el alma de la arquitectura, ese arte de
construir que contempla las posibilidades humanas con tanta

282 283
el germen, de una historia de arquitectura. El suelo es, como decía
Juhanni Pallasma, el más antiguo elemento arquitectónico. Pero si
el suelo es el más viejo elemento arquitectónico, entonces el techo
es el más joven elemento arquitectónico. El techo es el que viene
más tarde, es el que conlleva mayor dificultad, el que requiere un
conocimiento técnico, un dominio, una dosis de riesgo. El techo
salta, surge, viene después, es más alocado y acelerado, es más
fuerte y engreído. Es el que manda.
El texto escrito por la casa Adler presenta al techo indirectamente.
Como siempre, contra toda evidencia, el techo no es el
protagonista de este relato. Pero sí lo son sus guardianes, los
pilares dispuestos mediante esos cuartetos que tanto recuerdan
las felices combinaciones de los instrumentos musicales o de los
versos. Ellos, renovando la construcción de ese joven y valiente
techo a cada hora, se entrometen en la vida de la casa para advertir
a las terrazas, a los jardines, a las habitaciones y a cada una de
las cosas o de las personas que allí se guardan, sobre el amplio
grado de libertad del que disfrutan y sobre la condición única e
irrepetible que finalmente tienen.

03 Planta de la casa Adler.

4|

La planta de la casa Adler está caracterizada por la presencia de un


elemento muy olvidado en las escuelas de arquitectura: los pilares
de la estructura. Creo que muchos estudiantes de arquitectura
colocan los pilares al final de su proceso reflexivo como si se
tratase de un remedio, un emplasto aplicado en última instancia
para evitar la caída del edificio. Habría que decirles que eso ya no
se llama pilar, sino puntal.
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Un cuarto también es un texto | Luis Martínez Santa-María


Pero aquí, para Louis Kahn, el pilar es un elemento muy importante.
La casa se convierte, gracias a él, en un hecho construido. En un
hecho, no en un objeto, sino en algo que surge, que fluye…. Y así, 04 Planta de la Capilla de Ronchamp.
a pesar de la libertad que manifiestan cada una de las habitaciones
con su disposición en la planta, los majestuosos pilares, con la 5|
belleza de su fluyente quietud y de su solidaridad, trabajando más
a favor de la expresión que de cualquier otra mecánica, hechizan Quiero aprovechar este plano de situación de la capilla de
con su tam-tam el orden del conjunto y cautivan toda existencia Ronchamp para decir que Le Corbusier muy raramente orientó
que se encuentre bajo ellos. los planos disponiendo el norte en la parte alta del dibujo.
Una lonja, el allanamiento para la trilla que se sitúa junto a una casa Muchas veces los profesores transmitimos de forma irreflexiva
de campo, las extensiones que se utilizan como secaderos agrícolas, que el norte debe estar colocado arriba y tal vez nos equivocamos.
las pistas, los recintos lisos construidos a veces con una base muy Para Le Corbusier el norte debe de estar colocado donde el
pobre, todas esas explanaciones y demarcaciones suponen el inicio, sentido del proyecto lo determine.
284 285
El camino del peregrino hacia la capilla es un camino ascendente esa primera fila vacía por si llega el profesor; el profesor, al llegar,
y esquivo. Cuando este casi ha alcanzado la parte alta de la tampoco quiere ocuparla porque piensa en su catedrático; el
colina y se encuentra a una decena de metros del objetivo de su catedrático a su vez considera la remota posibilidad de que el mismo
peregrinación, percibe que tiene que rodear el edificio, yéndose director de la escuela pudiera presentarse; y si viniese finalmente
hacia el oeste, para encontrar una discreta puerta dispuesta más ese director tampoco querría ocupar ningún sitio porque estimaría,
lejos, en la fachada norte. Esta pequeña puerta septentrional es y creo que muy juiciosamente, que son los alumnos, todos los
muy importante. alumnos del centro que él dirige, los que deberían sentarse allí para
Estoy seguro de que el arquitecto deseaba que los fieles ingresasen aprender todo lo posible estando muy cerca. ¡Qué misterio el de la
en el templo por ella para que tuvieran que encontrarse de primera fila vacía! ¿Para quién es?
frente, nada más entrar, con la profunda pared desplomada que Sí; siempre parece que debería haber un espacio reservado por
mostraría, con todo su grosor, casi solidificados, como terrones si en algún momento, en alguna ocasión, pudiese acercarse
de luz, a los rayos del sol procedentes del mediodía. alguien, no sabemos quién, que fuese más allá de las expectativas
Sí; ese caminante tiene que subir un poco más, tiene que girar presentes. También el alto de la colina de la capilla de Ronchamp,
alrededor del templo y tiene que descender finalmente hasta vacío, atiende a la lluvia, a los rayos del sol y de las tormentas y a
encontrarse con una pequeña puerta despreciada por los rayos las hojas y castañas que caen de los árboles cercanos mientras, a
del sol. Esto es lo que cualquier peregrino haría si estuviese cambio de su desocupación, envía un delicado gesto hacia algo o
allí, en Ronchamp, en Francia. Pero resulta que, si observamos hacia alguien que no se encuentran allí. Ese lugar intacto, más aún,
atentamente el plano, es el itinerario que también un lector, ese lugar sobre el que pesa una decisión humana para que siga
desde su mesa de estudio, se ve obligado a describir: subir con permaneciendo intacto, supone una esperanza cognoscitiva, una
sus ojos, ascender hacia arriba y hacia la derecha, llegar hasta emocionante definición de lo que también es la arquitectura.
la parte alta del plano, colocarse detrás del templo y bajar
resbalando por la parte derecha del documento hasta encontrar
la puerta. La orientación del plano está fijada para que el ojo
realice dentro de él un circuito muy semejante al que tendrían
que hacer sobre el lugar las piernas y el corazón de un peregrino.
Pero sobre esta valiosa obra, que nunca terminará de arrojar nuevas
lecturas, me gustaría hacer un comentario de orden distinto. Le
Corbusier no levantó la capilla de Ronchamp en la cota más alta
de la montaña, cuya curva de nivel, intacta, puede verse claramente
dibujada en el mismo documento. Recusando la oportunidad
de situarse en la cima, construyó la capilla un poco desplazada
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hacia la parte inferior. Es algo que da que pensar porque, cuántas
veces, ante una determinada localización, parecería deseable el
lugar con la mejor vista o el sitio más alto y significante. Aquí el
arquitecto rechaza esa oportunidad y lo hace justo en una ocasión
en que tendría casi la obligación de colocarse en la cumbre del
promontorio para levantar una capilla precisamente dedicada a IMÁGENES
Nuestra Señora de los Altos.
Esta reluctancia a hacerse con el sitio preferente me recuerda 01 629 x 1300mm. Biblioteca del Palacio Real de Madrid IX/M/242/2
algo que pasa a menudo. También en una sala de conferencias las 02 600 x 505mm. 1960. Pianta del piano attico in Rilievi di villa Rotonda, Vicenza,
personas tienden a no sentarse en la primera fila. Esta fila queda tav.7 © CISA A. Palladio
generalmente vacía porque siempre parece que sus plazas están 03 Louis I. Khan. Complete work 1935-1974. The Swiss Federal Institute of
reservadas. ¿Pero para quién están reservadas? En una escuela Technology, Zurich, 1977
de arquitectura, por ejemplo, el estudiante piensa que debe dejar 04 Fondation Le Corbusier, París.

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Entre 2012 e 2022, fizeram parte do Colectivo Prática[s] de
Arquitectura:

André Oliveira, André Prata, António Pedro Faria, Catarina Queirós,


Filipa Araújo, Francisca Marques, Francisco Ascensão, Francisco
Amoedo Pinto, Joana Coutinho, João Salsa, Jorge Correia, José
Alexandre Tavares, Luís Piteira, Margarida Matos Martins, Marisa
Oliveira, Orlando Gilberto-Castro, Rita Furtado, Tiago Ascensão,
Tiago Ferreirinho.
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Edição
Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto
Coordenação Científica
Manuel Mendes

Equipa Editorial Apoios ISBN versão impressa


André Oliveira 978-989-8527-53-0
André Prata
António Pedro Faria ISBN versão digital
978-989-8527-54-7
Filipa Araújo
Francisco Amoedo Pinto
Depósito Legal
Joana Coutinho 509579/22
João Salsa
José Alexandre Tavares Impressão
Luís Piteira Raínho & Neves, Lda.
Margarida Matos Martins
Orlando Gilberto-Castro Tiragem
Rita Furtado 250 exemplares
Tiago Ascensão
Disponível no Repositório Aberto
Tiago Ferreirinho da Universidade do Porto

Logótipo Agradecimentos Fevereiro 2023


Gonçalo Alves Costa Carolina Medeiros, Cláudia
Marta Ramos Almeida, Maria Margarida
Balsemão, Paula Abrunhosa,
Ricardo Leitão, Teresa Serôdio

Nota técnica
A equipa editorial do colectivo Prática[s] de Arquitectura escreve segundo a ortografia anterior ao Acordo
Ortográfico de 1990. A opção pessoal de cada autor/a foi todavia respeitada.
As referências bibliográficas foram uniformizadas, sempre que possível e pertinente.
Cada autor/a é inteiramente responsável pelos materiais – textos e/ou imagens – dos respectivos
contributos.

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