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Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto

REGULAÇÃO ESTATAL
E INTERESSES PÚBLICOS

- - MALHEIROS
i~iEDITORES
REGULAÇÃO ESTATAL E INTERESSES PÚBLICOS

© FLORIANO PEIXOTO DE AzEVEDO MARQUES NETO

ISBN 85-7420-372-6

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Composição
PC Editorial Ltda.

Capa
Criação: Vânia Lúcia Amato
Arte: PC Editorial Ltda.
À LAURA e ao JoAQUIM,
nascidos ao longo da preparação deste trabalho.

E à ANA CRISTINA,
Impresso no Brasil
que supriu com doçura de mãe
Printed in Brazil
04-2002 a ausência episódica do pai dos dois.
O ESTADO DESAFIADO !OI

estatal levaria à perda de soberania, porquanto vulneraria seu caráter


de exclusividade. Outra, de que as então emergentes organizações su-
pranacionais (citava a Comunidade Européia do Carvão e do Aço, em-
brião da CEE), no seu dizer, "patenteiam os sintomas do futuro desa-
parecimento do Estado, pois já funcionam há tempo suficiente para
provar que substituem com vantagem aquelas pessoas de Direito In-
temacional".1
Três décadas depois, não vemos razão para abandonar as duas tri-
lhas indicadas por Ataliba Nogueira.
2. Dizíamos que o modo de produção capitalista cumpre um pa-
Capítulo III pel determinante no processo de emergência e evolução do Estado
O ESTADO DESAFIADO: Moderno. Como assinala Eros Grau, tal Estado nasce e se afi1ma como
TRANSFORMAÇÕES ECONÔMICAS, SOCIAIS produto do Capitalismo, ainda - diz ele - "que se possam encontrar
os ptimeiros traços de seu perfil em momentos históricos anteriores". 2
E POLÍTICAS CONTEMPORÂNEAS
2. I Na passagem do Absolutismo para o Estado Modemo, o Capi-
E SEUS REFLEXOS NO PODER POLÍTICO talismo então emergente necessitava de uma concentração do poder po-
lítico e de uma clara demarcação da sua esfera de ação, de modo a pre-
servar as condições necessárias à sua implementação e reprodução. Ao
/1/.1 Introduçâo. !1!.2 O novo ciclo capitalista e a internacionalização da eco-
longo dos séculos que se seguiram ao ocaso da Idade Média o Capita-
nomia. 111.3 A fragmentação social: emergência e afirmação dos grupos de lismo foi demandando uma crescente estabilidade das expectativas, a
interesse. JJI.4 Os reflexos da globalização e da fi'agmentação no poder deci- previsibilidade da ação do poder político - o que foi sendo conseguido
sório: a crise do Estado Nacional. lll.5 A crise da noção de soberania. 111.6
A crise da dicotomia público/privado.
pela afirmação do primado da lei e a efetivação do Estado de Direito.
2.2 De outro lado, no século que se findou- ou, se quise1mos, após
"Assim também é hoje. A mudança das estruturas há de ser profunda. As o fmal do que Hobsbawn chamou de o "longo século XIX", encen·ado,
fronteiras dos Estados já não são mais adequadas para conter as instituições segundo o historiador inglês, após o final da I Grande Guen·a- o Capi-
que regulem globalmente a vida sociaL E tais instituições hão de ser múltiplas, talismo necessitava de grandes somas de capital e de meios para aden-
ao contrário do Estado, que pretende monopolizá-las."
trar um novo estágio de desenvolvimento. Carecia de condições tanto
(Ataliba Nogueira, "Perecimento do Estado", RDP 14115, 1970)
de acumulação (para garantir os pressupostos econômicos da continui-
dade de sua evolução, enredada numa crise até então sem preceden-
III.l Introdução tes) quanto de estabilização (de modo a assegurar alguma estabilidade
social, afastando, assim, riscos de colapso das suas estmturas de con-
1. O texto que serve de epígrafe ao presente capítulo, publicado trole e amortização do conflito3 inerente a suas contradições internas'
há mais de 30 anos, revela uma percepção extremamente aguçada do e, ainda, socializando o risco social trazido pelo seu próprio devir5).
então Catedrático da Faculdade de Direito da USP. São impressionan-
temente atuais os elementos que o autor seleciona para indicar, segun- 1. Ataliba Nogueira, "Perecimento do Estado", RDP 14/15.
do suas palavras, "que o Estado tende a desaparecer". Tal assertiva 2. La Doble Desestructuración y la Inte1pretación de! Derecho, p. 29 (trad. nossa).
ainda hoje chega a chocar, pela sua veemência. Ao tempo de sua es- 3. Cf. François Ewald, "A concept of social Jaw", in Gunther Tcubner (org.),
Dilemmas of Lmv in the Welfare State, especialmente pp. 45-46.
crita gerava intennináveis polêmicas.
4. V., a esse respeito, Boaventura de Sousa Santos, O Estado e a Sociedade em
Sustentava o autor duas linhas de argumentação. Uma, que a Portugal (1974-1988), especialmente pp. 197-214.
emergência de agrupamentos sociais capazes de relativizar o poder 5. Cf. François Ewald, L 'État-Providence, pp. 349 e ss., especialmente p. 350.
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2.3 Assim, premido pelas necessidades do Capitalismo, o Estado Contudo, o que não se pode desconsiderar é que no contexto atual
buscou se reamoldar às suas novas funções, passando a exercer fim- se colocam novas demandas e novas condicionantes para a ação do
ções impensáveis para o modelo liberal que estava na origem do Esta- Estado.
do Moderno. Naquele momento fazia-se imperativo o fortalecimento E estas se põem, especialmente, quando tomamos o Estado na
do Estado Nacional como pré-condição para o desenvolvimento do concepção adotada primacialmente neste trabalho- qual seja, a de Es-
sistema capitalista. Assim foi feito. tado como centro decisório. O que importa destacar é que- tangidos
2.4 Nos dias de hoje, é sabido, vive-se um novo ciclo do Capita- pelos processos sociais, econômicos e políticos ora vivenciados,
lismo. Ditado pela influência da tecnologia e por novos modos de or- marcados pela transnacionalização dos processos decisórios e pela
ganização da produção, verifica-se que o modelo capitalista predomi- emergência de novos atores sociais (organizações, corporações, con-
nante (profundamente influenciado pelo Capitalismo Financeiro, como glomerados econômicos etc.) - os Estados Nacionais passam a ter
veremos) passa a prescindir da configuração e do modo de ação do questionado seu papel central no processo de decisão política.
poder político que antes demandava. Sem deixarem de ser atores relevantes, os Estados passam a com-
Mais ainda, passa a, muita vez, desnecessitar do Estado Nacional partilhar o espaço decisório com outros atores, tendo que ora coadju-
como elo essencial na estmturação da cadeia produtiva. Diante deste vá-los, ora compor seus interesses, ora ainda se afirmar coercitivamen-
contexto, que procuraremos analisar com um pouco mais de atenção te (quando presentes condições políticas para tanto).
adiante, emergem novas concepções do que deva ser o papel do Esta-
4. O objetivo deste capítulo é expor, de forma panorâmica, o con-
do; constrói-se um novo discurso; pressiona-se pelo exercício de um
junto de fatores que, no campo econô1nico, social e político, concor-
novo papel. Em suma, peleja-se pela redução ou retirada do Estado de
rem para a construção de um cenário de desafios ao Estado Moderno
todos os campos em que os atores econômicos possam atuar com maior
e, por conseqüência, ao modelo jurídico-administrativo que lhe é ine-
eficiência ou desejam atuar com ampla liberdade.
rente (ao menos nos lindes do paradigma acima divisado). Pot1anto,
3_ Correta e pertinente é a ressalva de que não se pode aderir às não cabe fazer, aqui, uma análise aprofundada do fenômeno da assim
construções ideológicas cunhadas nos centros do Capitalismo (que chamada globalização econômica, nem da emergência de pluralismos
continuam a existir, em que pese ao caráter policêntrico do sistema sociais ou, mesmo, da crise da representação política. 8
atual). Nos dizeres de Raffaelle De Giorgi, não podemos cair nas ar-
Para a abrangência deste trabalho, cumpre-nos apenas delimitar
madilhas dos modismos conceituais 6 Tampouco se pode desconhecer
os fatores que, para nós, interferem significativamente nos vetores do
que o Capitalismo, desde os tempos da expansão ultramarina, que coin-
Estado, vistos anterionnente. Concordando com Lechner, 9 entendemos
cide com seu período de emergência, sempre teve uma dimensão mun-
dializada7
mundo" (p. 55). Porém- adverte-, "cabe observar que o caráter internacional, mundial,
global ou planetário do Capitalismo não é sempre o mesmo'' (p. 56).
6. "Democracia, Estado e Direito na sociedade contemporânea", Cadernos da 8. V., a esse respeito, como referência obrigatória, os trabalhos de Celso Campi-
Escola Legislativa 2(4)/12. Adverte o autor que "as modas conceituais são idênticas longo: Representação Política e Ordem Jurídica, especialmente pp. 96 e ss., c Direito
às demais: inundam o mercado, dão segurança aos consumidores, gratificam por seu e Democracia, 1997.
ineditismo e são fugazes. Nos anos 80 estava em moda a Pós-Modernidade. Hoje a 9. Segundo Norbert Lechner, autor que em seus escritos denota grande lucidez
palavra-de-ordem é globalização. Enxertada na velha arquitetura conceitual de auto- analítica: "O fim do século está marcado por uma grande tensão: o duplo processo de
descrição da sociedade moderna, globalização evoca, exclusivamente, preocupações globalização e de fragmentação. Por um lado, assistimos a um processo acelerado de
ingênuas, produz fechamentos e faz com que pareçam efeitos perversos manifestações globalização econômica; a grande internacionalização dos mercados culmina num novo
que, ao contrário, são determinações estruturais da sociedade contemporânea. Globali- Estado em que os circuitos produtivos, comerciais, financeiros e tecnológicos configu-
zação sugere, também, idéias protecionistas, reserva de mercados e impedimentos à ram uma complexa rede planetária( ... ). Por outro lado, observamos uma não menos
circulação de bens. Daí os perigos e as involuções que se seguem: ressurgimento de poderosa tendência à fragmentação. Acentua-se a segmentação econômica entre os paí-
nacionalismos, medo das diferenças e novos fundamentalismos" (p. 13). ses, mas, ainda mais grave, é acelerada a desintegração no interior de cada país" ("Es-
7. V., neste sentido, Octávio Ianni, A Sociedade Globalizada, pp. 35 e ss.: "A tado, mercado e desenvolvimento na América Latina", Lua Nova~ Revista de Cultura
rigor, a história do Capitalismo pode ser vista como a história da mundialização do e Política 28-29/241). Embora o autor esteja enfocando prioritariamente a fragmenta-
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que são eles (a) a globalização econômica, que assume papel relevan- de Estados independentes, sistema este no qual as estruturas políticas
te nos anos 90, e (b) o processo de complexização e fragmentação so- denominadas 'Estados soberanos"_são legitimadas e delimitadas" 16
cial, impulsionado a partir dos anos 70. Não se pode, todavia, desconsiderar que - como afilmam dois
Após fazê-lo, apontaremos as conseqüências destes processos nos destacados parlamentares de incontestável cmte progressista - "a glo-
vetores de concentração, delimitação e legitimação do poder político, balização, mundialização, ou como se queira chamar, é um fato. Um
indicando quais são, a nosso ver, as questões postas pelos sistemas fenômeno ÍlTeversível, com efeitos danosos para os mais fracos já há
econômico, social e político exigindo resposta por parte do sistema muito denunciados, mas, ao mesmo tempo, com potencialidades posi-
jurídico, m01mente no âmbito do Direito Público. tivas capazes de produzir altemativas que nos elevem a um novo pata-
mar civilizatório". 17
Fato ou modismo, a verdade é que a manifestação contemporâ-
IIL2 O 11ovo ciclo capitalista
nea deste processo assume contornos antes incogitáveis.
e a internacionalização da economia
6. Vários fatores concorrem para isso. O primeiro, e talvez prin-
5. Muitos autores, mormente aqueles dotados de capacidade crí- cipal deles, é a evolução tecnológica.
tica mais aguçada, têm advertido que o fenômeno de "globalização" 6.1 Evolução que se apresenta forte, mormente no tocante aos
(internacionalização, planetarização ou, ainda, mundialização 10 ) não tneios de comunicação. Efetivamente, nos últimos 1O ou 15 anos, os
é novo. 11 Outros - como Boaventura Santos 12 - consideram-no já avanços no setor de Informática e de Telecomunicações e sua conju-
como um "senso comum". minação naquilo que os especialistas (tão dados a neologismos) de-
Segundo Paulo Nogueira Batista Jr., "sob diversos pontos de vis- signam de telemática tmnaram disponíveis meios de circulação e arti-
ta a 'globalização' é uma falsa novidade", na medida em que muitos culação de informação nunca antes cogitáveis fora da seara da ficção
dos elementos nonnalmente apontados para demonstrar seu caráter de científica, pennitindo, inclusive, alterar o próprio conceito de moeda. 18
alteração no quadro do Capitalismo contemporâneo constituem "a re- 6.2 De outro lado, há também enormes avanços tecnológicos na
tomada de processos e tendências bastante antigos" 13 área de Transportes, o que envolve não só meios mais velozes e con-
É bem verdade que o Capitalismo sempre teve uma propensão in- fiáveis, como também o desenvolvimento (suportado em pesados in-
ternacionalista, 14 haja vista a relação que seu advento guarda com a vestimentos em Informática) de sofisticados recursos logísticos. Isso
expansão ultramarina 15 Contudo- como assinala Immanuel Wallers- permite uma circulação de bens e mercadorias em quantidade e em
tein -, "a superestrutura da economia-mundo capitalista é um sistema níveis de confiabilidade também absolutamente incogitáveis há algu-
mas décadas.
ção étnica e cultural (no bojo dos regionalismos), seu raciocínio está adequado à nossa 7. Tais avanços tecnológicos trazem, por sua vez, mudanças gran-
abordagem referente à fragmentação mesmo em outros âmbitos. des no âmbito financeiro e econômico.
to. Aluisio Pimenta, "Globalização, mundialização e planetarização", Gazeta
Mercantil 14.10.1996, p. A-3.
16. The Politics ofthe Word-Economy, 1988, apud Otávio Ianni, Teorias da Glo-
11. Cf. Paul Singer, "Globalização positiva e globalização negativa: a diferença
balização, pp. 34-35.
é o Estado", Novos Estudos CEBRAP 48/41.
17. Cf. Eduardo Jorge e Luiz Gushiken, "Uma Federação democrática mundial",
12. "Os tribunais e a globalização", O Estado de S. Paulo 23.11.1996, p. A-2. Folha de S. Paulo 2.7.1996, p. A-3.
13. "O círculo de giz da globalização", Novos Estudos CEBRAP 49/86. Apesar 18. Cf. o que perora Nicho las Negroponte, professor do MIT e um dos mais "en-
da crítica, o próprio autor vai registrar mais adiante (p. 96) que a globalização assu- cantados" teóricos das benesses daquilo que chama de ciberespaço: "Os europeus es-
miu "uma importância estratégica". tão buscando há anos a criação de um sistema monetário unificado. No momento em
14. Cf. Octávio Ianni, Teorias da Globalização, pp. 135-137. Acerca do caráter que o dinheiro digital está sendo desenvolvido, eles continuam a argumentação sobre
mundializado da economia capitalista no âmbito das assim denominadas economias- sua moeda unificada. Enquanto eles discutem, muito dinheiro criado por entidades que
mundo é obrigatória a referência a Fernand Braudel, A Di!lâmica do Capitalismo, 2~ não são governos vai estar circulando. O ciberespaço provavelmente vai atropelares-
ed., 1986, e O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo na Epoca de Felipe li, 1984. sas negociações políticas, porque o ambiente eletrônico tem grande chance de tomar
15. Cf. Giovanni Arrighi, O Longo Século XX, 1994. essas questões irrelevantes" (O Estado de S. Paulo 31.3.1996, p. D-7).
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7.1 Do ponto de vista financeiro assistimos a uma circulação de ção da estrutura produtiva num dado local como meio de obter a eco-
capitais sem precedentes - circulação, esta, que se revela não só no nomia de escala necessária à viabilização da produção. Ainda que o
advento de intrincados 1necanismos de financiamento, como também Capitalismo se estmturasse internacionalmente no auge do modelo
na emergência de um certo virtualismo financeiro, representado pelas fordista, fazia-o dentro dos marcos nacionais. Sintomático seja que,
negociações especulativas não lastreadas em disponibilidades finan- neste período, o instnunento de mundialização deste Capitalismo fos-
ceiras efetivas, mas que são possiveis dada a plena integração dos sis- se a empresa multinacional (empresa operando em vários Estados Na-
temas financeiros de todo o mundo via telemática. Assim, o capital cionais, mas com sua matriz bastante enraizada em mn Estado Nacio-
financeiro, que sempre fora apátrida, tmna-se absolutamente desen- nal), e não a empresa transnacional ou supranacional (empresas que
raizado territorialmente e, destarte, praticamente incontrolável pelos operam em escala mundial integrada, quer em termos de processo pro-
mecanismos tradicionais disponíveis pelos diversos países integrantes dutivo, quer em relação aos mercados visados, não se estabelecendo
do sistema financeiro internacional. integral e permanentemente em país algum).
Essa característica levará, inclusive, a um crescimento desmedido As transfmmações tecnológicas (não só nos supra-indicados se-
do Capitalismo Financeiro, em detrimento mesmo de outros setores tores de Comunicação e Transportes, mas em toda gama de avanços
econômicos. A opulência do setor financeiro e bancário internacional, havidos nos materiais, insumos e equipamentos empregados na pro-
envolvendo também os fundos mútuos e fundos de pensão, exerce um dução) permitem que os processos industriais se desvencilhem do mo-
papel de tal vulto que passa a obmnbrar no cenário econômico mundial delo fordista, passando a independer da concentração produtiva e de
setores antes vetoriais do Capitalismo, cmno a produção de bens de grande emprego de mão-de-obra. É o que se convencionou chamar de
capital, setor automobilístico, indústria química, entre outros. 19 toyotismo ou pós-fordismo.
7.2 Do ponto de vista econômico há que se destacar que os avan- Tal padrão produtivo estrutura-se pela fragmentação e especiali-
ços tecnológicos permitem a introdução de modos de produção indus- zação da produção, dando lugar à intemacionalização do processo pro-
trial completamente diversos daqueles que, por décadas, marcaram o dutivo ou, se quisermos, à emergência da desterritorialização como
Capitalismo OcidentaL O modelo anterior baseava-se na concentra- processo significativamente novo e surpreendente. Em suma, "for-
ção da produção em enonnes plantas industriais, o que acarretava a mam-se estruturas de poder econômico, político-social e cultural in-
necessidade de grande concentração de mão-de-obra, enonne mobili- ternacionais, mundiais on globais descentradas, sem qualquer locali-
zação de recursos e baixa mobilidade da produção. zação nítida neste ou naquele lugar, região ou Nação (.. .) parecendo
Em uma palavra, o "modelo fordista" de produção 20 implicava flutuar por sobre Estados e fronteiras, moedas e línguas, grupos e clas-
uma nacionalização da produção, assim entendida como a nucleariza- ses, movimentos sociais e partidos políticos". 21
Dito de outro modo, passa a ser possível a estmturação do pro-
19. Como assinala Wolfgang H. Reinicke, "o advento da securitização em mea- cesso industrial em uma rede na qual vários microprocessos indepen-
dos da década de 1980 transformou o mundo financeiro, facilitando estratégias empre- dentes vão se somando e integrando. 22 Emerge possível, neste contex-
sariais globais, proporcionando a devedores e credores acesso a mercados financeiros to, a "intenmcionalização da organização industrial".
de outros países e contribuindo para o crescimento explosivo dos fluxos transnacionais
de capital registrado na década passada. Em especial o mercado de derivativos acele- A internacionalização apresenta-se não só na produção de bens
rou o crescimento e a volatilidade dos fluxos internacionais de capital. Em 1995, o de consumo, a partir da agregação de componentes ou insumos elabo-
valor total do comércio mundial e dos investimentos externos diretos foi equivalente a rados e advindos de vários paises diferentes, mas também na enorme
apenas seis dias de movimentação financeira nos mercados de câmbio globais" ("Poli-
ticas públicas globais", Foreign Affairs, ed. brasileira, Ga::eta k/ercanti/12.12.1997, p. capacidade que as estruturas industriais têm de mobilizar e desmobili-
26- grifas nossos). zar seu aparato produtivo em um país, remobilizando-o em outro (pos-
20. V., acerca do modelo fordista de produção e sua crise, Simon Clarke, "Crise
do fordismo ou crise da Social-Democracia", Lua Nova- Revista de Cultura e Políti-
ca 24/117 e ss. V. também Robert Boyer, "Alternativas ao fordismo: uma análise pro- 21. Octávio lanni, A Sociedade Globaii=ada, p. 93.
visória", Revista de Ciências Sociais (Coimbra) 35/17. 22. V. José Eduardo Faria, Os Novos Desafios da Justiça do Trabalho, pp. 54-70.
108 REGULAÇÃO ESTATAL E INTERESSES PÚBLICOS O ESTADO DESAFIADO 109

to que parcelas centrais no processo produtivo passam a ser o capital Este processo se inicia ainda no ápice do fordismo 27 e faz emer-
intensivo e a tecnologia, aos quais a mobilidade é intrínseca). gir uma rede de consumo a um só tempo padronizada e regionalizada:
Deste modo, assiste-se a uma total desconexão entre a estrutura um mix de influências de culturas e valores de várias pattes (influên-
produtiva e o nexo territorial nacional, tornando-se desterritorioliza- cias regionalizadas) do Globo, que são processados, descontextnali-
da a estrutura produtiva. Como assinala Jürgen Habermas, "com a in- zados, mercantilizados e difundidos em escala mundial, 28 em um mix
temacionalização dos mercados financeiros, de capitais e de trabalho, de influências, criando um mínimo denominador comum (devidamen-
os governos nacionais têm sentido crescentemente o descompasso en- te padronizado, estandardizado, modelado para o mercado) de padrões
tre a limitada margem de manobra de que dispõem e os imperativos de consumo "neutro" quanto "irresistível". Isto acaba por criar expec-
decorrentes basicamente não das relações de comércio em nível mun- tativas e necessidades sociais que os sistemas econômico e político
dial, mas das relações de produção tramadas globalmente. Estas esca- não se mostram habilitados a absorver e atender.
pam 1nais e mais às políticas intervencionistas dos gove1nos". 23 9. Temos, então, em patamar nunca dantes verificado, uma "mun-
Verifica-se, portanto, o processo que já se designou de "fábrica dialização da economia mediante a internacionalização dos mercados
global", resumindo-a como sendo aquela que produz "com gerentes e de insumo, consumo e financeiro" que, para se afi1mar e expandir, aca-
trabalhadores de um país, tecnologia ou financiamento de outros, para ba por transpor os limites geográficos das economias nacionais, ''limi-
vendas a terceiros". 24 tando crescentemente a execução das políticas cambial, monetária e
tributária dos Estados Nacionais" 29
8. À enonne mobilidade dos capitais financeiros e à impressio-
nante flexibilidade da produção econômica (especialmente no setor 10. Paralelamente (ainda que não independentemente) a isso tudo,
industrial, mas também no âmbito da produção agrícola" e mesmo da verifica-se a afirmação dos organismos multilaterais. Por sobre os es-
prestação de serviços 26 ) vai se agregar também a transnacionalização combros da II Guerra Mundial começa a ser edificada uma rede de
dos mercados. organismos de cooperação, coordenação, fomento ou ajuda que inten-
trun atuar por sobre os Estados Nacionais - ou, se quisermos, numa
Influenciado pelos mecanismos de comunicação de massa e pela perspectiva de "internacionalização do Estado". 30
sofisticação da tecnologia de venda (o que envolve também brutais
desenvolvimento e integração nos mecanismos de publicidade e na in- Tal circunstância vai ser impulsionada em grande medida pelo
culcação de padrões estéticos e culturais também mundializados), o fato de que muitos problemas vividos (relacionados, por exemplo, ao
consumo também se globaliza. meio ambiente, minorias, terrorismo, oceanos, fluxos migratórios, cri-

27. V. Simon Clarke, "Crise do fordismo ... ", Lua Nova- Revista de Cultura e
23. "O Estado~ Nação Europeu frente aos desafios da globalização", Novos Estu-
Política 241133-135.
dos CEBRAP 43/99.
28. Octávio Ianni, A Sociedade G!obalizada, pp. 99-100.
24. Roberto Campos, "Parem o mundo que eu quero saltar... ", Folha de S. Paulo
29. José Eduardo Faria (org.), Direito e Globafização Econômica, P. ed., 2.1 tir.,
2.7.1996, p. A-4.
p. 10.
25. V., por exemplo, a intensa discussão recentemente levantada acerca do em-
30. Segundo Sabino Cassese: "Los Poderes Públicos hacen frente a esta crecien-
prego de tecnologias transgênicas na produção agrícola mundial e a impressionante
te intemacionalización de los problemas nacionales multiplicando las relaciones bila-
participação dos insumos tecnológicos importados (de maquinários a agrotóxicos, pas-
teralcs y multilatcrales, y constituycndo organizaciones intemacionales. Existcn, hoy
sando por sementes) e principalmente o surgimento de enclaves de exportação de fru- día, organizaciones intemacionales gubemativas (se usa este ténnino para distinguir-
tas, como ocorre no Chile e no Nordeste Brasileiro, na produção agrícola dos países las de las de origen privado) en los campos de la defensa, de la moneda, de la policía,
subdesenvolvidos. de los ferrocarriles, de correos, de la sanidad, dei tráfico aéreo y marítimo, de la utili-
26. Como demonstra a crescente utilização de franquias no setor terciário, nas zación dei espacio, dei uso de la platafonna marítima, de la meteorologia, de las fuen-
quais a marca, a tecnologia e mesmo os equipamentos necessários à atividade econô- tcs de energía, dei trabajo, dei crédito, de la política social, dei comercio, dei desarrollo
mica são internacionalizados, sendo-o também a apropriação de grande parte dos lu- económico, de la ciencia, de la cultura, de la energía nuclear, de los derechos dei autor
cros. Exemplo paradigmático são as franquias de lavanderias, com a crescente instala- y de la protección de las patentes industriales" (Las Bases del Derecho Administrati-
ção de redes estrangeiras. vo, p. 315).
110 REGULAÇÃO ESTATAL E INTERESSES PÚBLICOS O ESTADO DESAFIADO 111

mes transnacionalizados 31 ) somente podem ser tratados a partir de ini- em grande medida possível graças ao continuado esforço de difi.Jsão
ciativas transnacionais. Este processo desdobra-se etn vários. da importância da preservação e ampliação dos mecanismos de prote-
I 0.1 De um lado, crescem o poder e a influência de instituições ção dos direitos humanos e de mna estratégia bem delineada de am-
de fmnento e coordenação financeira. Passam elas a exercer enonne pliação de sua base de incidência, acaba por estabelecer uma mudança
influência na definição de políticas econômicas e monetárias, lastrean- de pautas e enfoques da questão dos direitos humanos e da sua tutela.
do-se tanto no suporte financeiro das grandes potências quanto no in- Chega-se hoje a um estágio que Lindgren Alves refere como "cons-
teresse e necessidade de preservar as condições de reprodução do truções internacionais" que "ultrapassam as noções tradicionais de so-
Capitalismo Financeiro que, em grande medida, alavanca o processo berania e interesses", 35 somente possível porque traze1n o "indivíduo
de globalização. 32 ao primeiro plano do Direito Internacional e o cidadão a um domínio
antes reservado exclusivamente aos Estados". 36
10.2 De outro lado, assistimos a um forte processo de integração
econômica entre países e mesmo entre blocos econômicos. Tal inte- Pontifica Flávia Piovesan que "estes processos levam, por sua
gração atua cmno causa e conseqüência do processo de intenlaciona- vez, à fonnação de um sistema normativo internacional de proteção
lização, pois se a globalização deriva do quadro de transfonnações dos direitos humanos, de âmbito global e regional, como também de
econômicas e financeiras acima delineado, ela também irá retroali- âmbito geral e específico". 37
mentar este processo, na medida em que incrementa a transnacionali- Os frutos deste processo começam a ser colhidos. Provas deles
zação do capital e do processo de produção e comércio, fazendo-os são a estruturação de organismos internacionais de proteção aos direi-
independer, ainda mais, dos estritos limites nacionais. E, interessante- tos humanos, a crescente repercussão dos relatórios destes organismos
mente, embora estes blocos econômicos e os organismos internacio- (oficiais ou não) sobre o estado da arte destes direitos ao longo do
nais que lhes dão suporte baseiem-se em tratados firmados entre os mundo e o desconforto que causam aos governos. 38 De todos os fatos
países-membros, assiste-se a um processo de autonomização destes que poderiam ser relacionados, talvez o mais simbólico desta difusão
orgamsmos. do discurso transnacional dos direitos humanos39 seja mesmo a dis-
Calha recorrer a um exemplo dado por Paul Singer, que, referin- cussão acerca da jurisdição invocada por diversos países europeus (a
do-se aos órgãos de direção da União Européia, alude que "o impor- partir do exemplo espanhol) para julgar o ex-ditador Augusto Pino-
tante é que os comissários não representam os países que os desig- chet U garte pelas violações cometidas por ele e por seu governo.
nam; seu juramento os compromete com a Comunidade cmno um 11. Para fazer frente a todos estes fatores, a que aludimos apenas
todo". 33 No mesmo sentido vai Cassese ao afmnar que nos "secretaria- panoramicamente Gá que abordá-los de forma detida importaria desviar
dos" destas organizações não há representantes dos Estados-membros, ainda mais do foco do presente trabalho), faz-se mister a emergência de
mas sim "um funcionário intemacional". 34 um novo arcabouço de Direito Internacional, "em ct~o âmbito os pro-
10.3 Por fim, há que se invocar também a maturação e dissemi- cessos de elaboração normativa se dão no plano das interdependências
nação dos valores e do discurso dos direitos humanos. Este processo,
35. Os Direitos Humanos como Tema Global, p. 5.
31. Segundo Wanda Capeller, da Universidade de Toulouse: "O fenômeno da glo- 36. Lindgrcn Alves, Os Direitos... , p. 20.
balização das relações econômicas e sociais se reproduz também nas esferas do crime 37. Direitos Humanos e o Direito Constitucionallntemacional, p. 304, e, ainda,
e seu controle" (Tribuna do Direito, outubro de 1994, p. 20). Temas ele Direitos Humanos, 1998. V. também Francesco Cocozza, Diritto Comune
32. "Em outras palavras, o poder real não está totalmente nos escritórios das cor- delle Libertà in Europa, 1994, especialmente a "Introdução" de Augusto Barbera.
porações, mas nos mercados financeiros. O que é válido para os diretores de corpora- 38. V., como exemplo, o texto de Paulo de Tarso Flecha de Lima, "Responder é
ções é também válido para os que controlam o poder político nacional. Cada vez mais preciso", Folha de S. Paulo 7.1.1995, p. A-3.
são eles controlados pelos mercados financeiros ( ... )" (Paul M. Sweezy, "The triumph 39. O qual- conforme Paulo Sérgio Pinheiro- se traduz no fato de que "a defesa
offinancial capital", Monthly Review 46110, n. 2). dos direitos humanos já não é tema do Direito Interno de cada país" ("Transparência é
33. "Globalização positiva... ", Novos Estudos CEBRAP 48/55. preciso", Folha de S. Paulo I 1.1.1995, p. A-3). V. também o artigo de Fãbio Konder
34. Las Bases... , p. 316. Comparato, "Para estrangeiro ver", Folha de S. Paulo 6.1.1998, p. A-3.
112 REGULAÇÃO ESTATAL E INTERESSES PÚBLICOS O ESTAOO DESAFIADO 113

sociais e econômicas descentralizadas". 40 Nos dizeres de Eros Grau, Em suma, destes processos todos de internacionalização advêm
"esse modo de produção social globalizado dominante, resultante da- também conseqüências fortes e visíveis para a estruturação do Di-
quela nova revolução industrial, reclama(rá) um outro Direito". 41 reito, o qual permite campo para desenvolvimento, mes1no no âmbi-
Este arcabouço nos traz para a "expansão de um Direito paralelo to interno aos Estados, de novos mecanismos jurídicos. Tais efeitos
ao dos Estados, de natureza mercatória" 42 Tal/ex mercatoria tem lu- retomarão às nossas reflexões tão logo voltemos a enfocar os efeitos
gar não só no âmbito dos organismos internacionais, mas na própria destas transformações no Direito Administrativo. Vale por ora aludir
relação entre as corporações empresariais privadas. Neste contexto à sempre precisa lição de Canotilho, que, reavaliando as categorias do
perde força o padrão normativo ditado pela imperatividade e imposi- Constitucionalismo dirigente que cunhou, afirma que atualmente
tividade típicas do Direito Positivo e seus mecanismos de controle "confiar ao Direito o encargo de regular, de forma autoritária e in-
coercitivos, os quais dão lugar a mecanismos de soft law, a vincula- tervencionista, equivale a desconhecer outras formas de direcção po-
ções de natureza obrigacional, a legislações produzidas no âmbito de lítica que vão desde os modelos regulativos típicos da subsidiarieda-
organismos multilaterais e vinculantes dos atores econômicos, muito de (... ) até aos modelos neocorporativos, passando pelas normas de
mais pela sua adequação ao jogo internacionalizado de mercado do delegação conducentes a regulações descentradas e descentraliza-
que pelo receio das eventuais sanções advindas do seu descumprimen- das".46
to43 12. É de se destacar, porém, que este processo não faz desapare-
A expansão do Direito Internacional (quer numa vertente de um cer o Estado e os mecanismos jurídicos que lhe são próprios. Por
Direito de integração regional, quer na perspectiva de um Direito Pri- exemplo, no tocante à seara trabalhista, tem a Organização Internacio-
vado inter-relacionai próprio às transações privadas inter ou intra- nal do Trabalho se manifestado sobre a centralidade do Estado como
grandes organizações) agregará ao Direito todo um arcabouço de ins- influência dominante e imprescindível nos resultados do mercado de
tnunentos de previsão e dirimência de conflitos, que, inclusive, passa trabalho 47
a penetrar nas próprias ordens jurídicas nacionais. É o caso, por exem- De outro lado, crescem as manifestações de aguçamento e apro-
plo, dos mecanismos de arbitragem. 44 fundamento do Estado enquanto repressor das condutas tidas como
Deste modo, o avanço do Direito Intemacional e a ampliação do infracionais ou criminosas. Ao contrário de assistirmos neste campo a
seu espaço de inserção nas relações privadas traz como conseqüência uma tendência de relativização do Estado, crescem e se agravam os
uma forte tendência de flexibilização, de especialização e de diminui- mecanismos de punição, apesar de toda uma linha da Criminologia
ção do caráter autoritário do Direito. Nas palavras de André-Noel que se inclina por um Direito Penal Mínimo. Assiste-se, no Direito
Roth, "o Direito Nacional adquire de maneira ampliada a forma do Penal, a uma tendência de verdadeiro ensandecimento das penas. 48
Direito Internacional" 45 13. A tudo isso se acrescenta também a perda de importãncia do
Estado Nacional num contexto de beligerância internacional 49 Claro
40. José Eduardo Faria, O Direito na Economia G/obalizada, ta ed., 3~ tir., p. 109. que tal fator não significa dizer que o mundo deixou de presenciar
41. Eros Grau, O Direito Posto e o Direito Pressuposto, 3a ed., p. 81. conflitos armados ou barbáries. Muito ao contrário, pois que a emer-
42. José Eduardo Faria (org.), Direito e Globalização Econômica, P ed., 2a tir.,
p. 11.
43. Para uma visão extremamente ampla e pertinente deste processo, v. a coletâ- 46. "Rever ou romper com a Constituição dirigente? Defesa de um Constitucio-
nea organizada por Paulo Borba Casella, Contratos Internacionais e Direito Econômi- nalismo moralmente reflexivo", Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Po!iti-
co no MERCOSUL, 1996. Nesse livro, vários autores, passando por temas diversos ca 15/9.
relacionados à integração econômica, colocam muitos dos pressupostos desta formula- 47. In Gazeta Mercantil27.11.1996, p. A-li.
ção jurídica aplicável às novas relações econômicas aqui abordadas. 48. Para uma critica ao processo de endurecimento das sanções penais como for-
44. V., a esse respeito, Carlos Alberto Carmona, A Arbitragem no Processo Civil ma de conter a criminalidade crescente em virtude da erosão dos padrões de sociabili-
Brasileiro, 1993, especialmente pp. 45-46. dade, v. Alberto Zacharias Toron, Crimes Hedio11dos: o Mito da Repressão Penal, es-
45. ''O Direito em crise: fim do Estado Moderno?", in José Eduardo Faria (org.), pecialmente pp. 133 e ss.
Direito e Globalização Econômica, 1~ ed., 2~ tir., p. 21. 49. V. Gianfranco Poggi, Lo Stato: Natura, Sviluppo, Prospettive, pp. 262 e ss.
I I4 REGULAÇÃO ESTATAL E INTERESSES PÚBLICOS O ESTADO DESAFIADO I I5

gência dos nacionalismos50 é diretamente conelacionada com o pro- Porém, as transfonnações vividas nos últimos tempos pelo Estado
cesso de globalização, 51 pois, !asseado o liame nacional, pennite-se o não são ditadas apenas de fora para dentro. Tampouco são de corte me-
ressurgimento dos nacionalismos, dos fundamentalismos e dos radi- ramente econômico. Há, internamente, no âmbito social, uma outra or-
calismos religiosos. dem de processos que se imbrica com as condicionantes da globaliza-
Ocorre que, diante da supremacia bélica de algumas potências ção,55 produzindo mn segundo nível de desafios ao Estado Modemo e
(particulmmente dos Estados Unidos) e da sofisticação tecnológica do aos seus vetores primaciais. É o que intentamos abordar na seqüência.
aparato militar contemporâneo, 52 perde sentido o Estado-Nação como
interlocutor militar da conflitividade mundial, dando lugar aos espaços III.3 A fragmentação social:
de composição ou concertação dos interesses dos diversos países, 53 mor- emergência e afirmação dos grupos de interesse
mente das potências econômicas, tornando-se a força militar um 1nero
aparato a ser utilizado, em casos-limites e específicos, como despro- 15. Como vimos anterionnente, mn dos pressupostos da constru-
porcional poder de sanção, sempre após esgotados outros mecanismos ção teórica do Estado Modemo é a emancipação dos súditos, transfor-
de coerção. 54 São ilustrativos, neste sentido, os acontecimentos en- mados em cidadãos. Esta passagem pressupõe, ainda, um raciocínio
volvendo a Iugoslávia, ou mesmo o Afeganistão, os quais mais se paralelo igualmente relevante. A sociedade (esfera privada) é entendi-
aproximaram de uma ação policial unilateral das forças da ONU do da como composta por um conjunto de cidadãos, portadores, cada
que propriamente de um conflito bélico, dada a absoluta despropor- qual, de interesses próprios, individuais.
ção das forças envolvidas. Tmnbém ilustrativa é a neutralização do O campo da fusão e articulação dos interesses comuns destes in-
poderio militar de Rússia e China em fimção dos interesses econômi- divíduos é a esfera pública. Tal constmção teórica passa, portanto, pela
cos e comerciais de cada um destes países. superação dos corpos intennediários de que nos fala Montesquieu, 56 e
14. Deriva, portanto, deste contexto de globalização, intemaciona- que tanto preocupava Rousseau. No âmbito da sociedade restaria a
lização ou mundialização um plexo de fatores que coloca o Estado num pulverização, a atomização de interesses, esforçando-se cada qual in-
contexto histórico muito diverso do que aquele no qual foram gesta- dividualmente para alcançar seus próprios objetivos. Em comum os
dos os elementos que o caracterizam, conforme visto no Capítulo L indivíduos teriam apenas a necessidade, o interesse ou a imprescindi-
bilidade do convívio social.

50. Cf. Ernest Gellncr, Naciones y Nacionalismo, 1991.


Ademais, é pressuposto do Estado Modemo um viés de universa-
51. V. Jolm Newhouse, "A ascensão do regionalismo europeu", Foreign A.ffairs lidade e de homogeneidade da sociedade. Para que se construa o dis-
I4.2.I997, pp. 18 c ss. curso da Modemidade é imprescindível que a sociedade seja vista
52. Octávio Ianni, A Sociedade Globalizada, p. 58. como um todo unifonne, monolítico, homogêneo, ungido por uma ra-
53. Analisando a noção de interdependência complexa, Tullio Vigevani, João cionalidade que lhe dá coesão interna. "Isso tudo pressupunha a cen-
Paulo Viega e Karina Lília P. Mariano destacam que no contexto atual de globalismo tralidade da idéia de Nação e a possibilidade de representação de um
assistiriamos a um quadro no qual, "onde existe interdependência complexa, a utiliza-
ção da força militar, ou sua ameaça, pareceria tornar-se desnecessária. Devido à am- centro decisório capaz de exprimir o interesse geraL " 57
plitude da agenda mundial, querelas econômicas ou ambientais tomariam inapropriado
o uso da força militar. No entanto, a posse de poder militar pode significar um elemen- 55. É de rigor dizer que tais fatores somente são apartados, aqui, para fins de me-
to de influência política, ou barganha, ainda que isso não implique no uso efetivo des- lhor aclarar a exposição. Isso porque não se pode dissociar os processos de globalização
se poderio" ("Realismo versus globalismo nas relações internacionais", Lua Nova - dos de fragmentação social, pois que uns interferem nos outros de forma veemente. Como
Revista de Cultura e Política 34/17). anota Gílson Schwartz: "Os mercados tornaram-se cada vez mais extensos e diversifi-
54. "Os países em desenvolvimento que violam direitos humanos básicos perde- cados, mas aumentaram também a necessidade e a possibilidade de fragmentação"
rão a sua parcela dos bilhões de dólares da ajuda da Comunidade Econômica Euro- ("Estado e soberania na era do know-ware", Revista do Serviço Público 118/137).
péia.( ... ). Não estamos tentando impor uma espécie de modelo europeu ou ocidental 56. Cf. Gian Mario Bravo e Corrado Malandrino, Projilo di Storia de! Pensiero
de desenvolvimento. Isso é uma cenoura e não um porrete. Quando se usa o porrete, Político, pp. 197-203.
em geral é muito tarde" (Lucy Walker, "Evil regimes to be refused cash", The European 57. Cf. Rafaelle de Giorgi, "Democracia ... ", Cadernos da Escola Legislativa
25-27.1. 1991, p. 7, apud Octávio Ianni, A Sociedade G!obalizada, p. 43). 2(4)/I2.
116 REGULAÇÃO ESTATAL E INTERESSES PÚBLICOS O ESTADO DESAFIADO 117

16. Ocorre que com o desenvolvimento do sistema capitalista tendidas leva aqueles indivíduos, inicialmente organizados socialmente
vai-se assistindo ao surgimento, no âmbito social, de nuclearizações para reivindicar seus interesses, a fortalecer e ampliar seus mecanis-
de interesses, em tmno dos quais criam-se estruturas associativas, for- mos de organização de modo a pressionm· o Estado pm·a, num contexto
mais ou informais, e que passam a atuar como corpos autônomos e, de escassez de recursos, terem suas expectativas seletivamente atendi-
como tais, se relacionar tanto com a esfera pública como com os de- das62
mais gmpos de interesse. 58 Esta pressão mostra-se triplamente desafiadora do Estado, pois
17. Este parcelamento da sociedade homogênea típica da Moder- as demandas se apresentam (a) crescentes, em face do contínuo au-
nidade chamamos, aqui, de fragmentação social. Por este desígnio mento das expectativas sociais, (b) gradualmente mais complexas e
amplo estamos contemplando vários tipos de processos de estratifica- contraditórias e (c) apontam para a impotência do Estado em respon-
ção e parcelamento da esfera privada, envolvendo o neocorporativis- der a elas, quer por exigüidade de recursos, quer por inadequação de
mo, o pluralismo e o surgimento de movimentos sociais. fluxos e procedimentos. 63
Enfim, estamos nos referindo ao fenômeno, cada vez mais cres- Os sociólogos e os cientistas políticos identificam vários modos
cente, da emergência de atores sociais e políticos coletivos que refogem de apresentação destas pressões. Desta vasta literatura, procuramos
à estmtura básica quer da institucionalidade estatal, quer dos meca- segmentar três blocos. Fazemo-lo para fins apenas de exposição.
nismos de representação política próprios à Modernidade. Como as- 18. De um lado, há os movimentos sociais (ligados a igrejas, as-
senta Celso Campilongo, em "sociedades complexas de modo geral, sociações de bairro e, posterionnente, a gmpos representativos de mi-
mas no Brasil de fonna particularmente acentuada, a fragmentação de norias), que, a partir da década de 70, se agmpam em torno de ques-
interesses, a estratificação social, a diferenciação cultural, regional e tões e necessidades específicas, concretas, que afetam a vida dos seus
ideológica, provocam uma verdadeira 'crise de racionalidade' do mo- membros. Originalmente estes movimentos têm baixa institucionali-
delo jurídico calcado na soberania da maioria"." zação, são excessivamente centrados nas suas metas e possuem um
Tais processos adquirem grande impulso no período em que o Es- baixo nível de integração entre seus membros, o que acarreta certa des-
tado crescentemente passa a intervir na economia e assumir funções continuidade de sua ação.
de provedor das necessidades sociais, explodindo a partir daquilo que Inobstante, particularmente a partir do êxito no atendimento de
diversos autores denominam de "falência do welfare state". 60 Tal ex- parte das demandas que levavam ao agmpamento inicial, tais movi-
plosão advém do fato de que, com a crise do modelo de Estado inter- mentos adquirem uma certa institucionalidade intema e alguma esta-
vencionista, crescem as demandas e diminui a capacidade do sistema bilidade organizacional, podendo, inclusive, espraiar seu raio de ação
político de atendê-las. 61 A multiplicação de demandas sociais desa-
para fora dos limites e objetivos inicialmente traçados. Neste segundo
momento tais movimentos passam a pelejar não mais apenas por ques-
58. Como demonstra Habennas, o núcleo institucional da sociedade civil hoje "é tões concretas do seu dia-a-dia, incorporando também pautas de rei-
formado por associações e organizações livres, não-estatais e não-econômicas, as quais
ancoram as estruturas de comunicação da esfera pública nos componentes sociais do
mundo da vida. A sociedade civil compõe-se de movimentos, organizações e associa- 62. Este aspecto é bem nuançado por Eunice Ribeiro Durham: "Vimos que os
ções, os quais captam ecos dos problemas sociais que ressoam nas esferas privadas, movimentos se articulam pela formulação de uma carência coletiva. Os indivíduos mais
condensam-nos e os transmitem, a seguir, para a esfera pública politica" (Direito e diversos tomam-se iguais na medida em que sofrem a mesma carência. A igualdade da
Democracia: entre Facticidade e Validade, v. II, p. 99). carência recobre a heterogeneidade das positividades (...).No movimento, face à mes-
59. Direito e Democracia, p. 53. ma carência, todos se tomam iguais. Os movimentos sociais se constituem, portanto,
60. A esse respeito, v. Giuliano Cazzola, Lo Stato Sacia/e tra Crisi e Riforme: i! como um lugar privilegiado onde a noção abstrata da igualdade pode ser referida a
Caso Ira/ia, 1994. uma experiência concreta de vida" ("Movimentos sociais: a construção da cidadania",
61. "A sociedade, vivendo em ambiente democrático e imersa em um processo Novos Estudos CEBRAP 10/28).
de ampliação dos direitos de cidadania, exige e solicita cada vez mais, alterando a qua- 63. Para uma análise dos fatores determinantes dessa crise, v. Pietro BarceHona e
lidade e a quantidade de suas demandas" (Marco Aurélio Nogueira, "Govemabilidade Antônio Cantara, "El Estado Social entre crisis y reestruturación", in J. C. Atienza e
democrática progressiva", Lua Nova- Revista de Cultura e Política 36/121). M. A. Garcia Herrera, Derecho y Economia en el Estado Social, pp. 49-70.
118 REGULAÇÃO ESTATAL E INTERESSES PÚBLICOS O ESTADO DESAFIADO 119

vindicações "pós-materialistas", 64 como a preservação do meio am- de uma questão temática aglutinadora, sendo certa que o interesse
biente, o pacifismo, a condição de gênero e outras tantas. aglutinador cuida de uma identidade grupal, mormente ligada à per-
19. De outro lado temos o processo que alguns autores denomi- tença a um dado estamenta profissional ou de ramo de atividade eco-
nam de neoc01porativismo, 65 alertando para sua diferença frente ao nômica.
corporativismo clássico. 20. Há, por fim, uma terceira ardem de processos que levam à
O corporativismo tradicional, de cmte fascista, emergente nas dé- fragmentação social e que os sociólogos denominam genericamente
cadas de 30 e 40, seria caracterizado pela representação de interesses de pluralismos. Diferentemente dos movimentos sociais e das estrutu-
reunidas em unidades de número limitada, estruturadas hierarquica- ras neocorporativas, assiste-se ao crescente processo de fonnação de
mente, e a pmtir de uma diferenciação funcional ordenada. Mais ain- clivagens sociais a partir de processos de marginalização cultural, ét-
da, caracterizá-lo-ia o fato de serem estas organizações criadas, reco- nica, social ou religiosa.
nhecidas, por vezes licenciadas e, acima de tudo, monitoradas pelo Tais processos não têm o eixo de identidade temática ou teleoló-
Estado 66 gico dos movimentos sociais, nem a identidade profissional (ou, se
O neocarporativismo (ou corporativismo societal), por seu huno, quisermos, de categoria econômica) que se utiliza para caracterizar o
seria aquele em que agtupamentos sociais, em regra originados de al- neocorporativismo. Têm, ademais, uma característica de maior espon-
guma agregação profissional, passam a se autonomizar frente ao Esta- taneidade associativa e de informalidade, sem que isso impeça, por
do, transformando-se em pennanente elemento de pressão e contrapo- vezes, uma relação estreita e intensa de interesses.
sição -ainda que sem perspectiva de aposição frontal -a esse Estado. A emergência de pluralismos sociais pode ser entendida como o
Nas palavras de Celso Campilongo, enquanto no corporativismo surgimento da segmentação social em grupos marginalizados por ra-
fascista o controle estatal sobre as organizações corporativas é total, zões econômicas, sociais, religiosas ou culturais e que acabam por se
"no 1nodelo neocorporativista essa representação dos interesses parti- agregar em torno de interesses comuns, normalmente relacionados,
culares funciona independentemente da definição estatal do seu pa- num primeiro momento, à constituição de mecanismos de proteção
pel"•' contra repressões ou violações (vindas quer do aparato estatal, quer
De todo modo, conforme indicam os teóricos do neocorporati- de outras setores da sociedade) ou para compensação de sua hipossu-
vismo, temos o surgimento de organizações de traços corporativos, li- ficiência. Num segundo momento tais grupos adquirem um caráter de
gadas a setores específicos da economia, e que se formam com um reivindicação ou pressão do aparato social pelo atendimento de de-
nível razoável de espontaneidade (sem a influência detenninante do mandas básicas, fazendo-a, entretanto, de fonna desarticulada e epi-
Estada), porém com um grau de institucionalidade bastante maior do sódica ou, então, convertendo-se em movimentos sociais.
que aquele verificado na casa dos movimentos sociais. O crescimento deste pluralismo social, que se reflete também em
Também, diferentemente daqueles, possuem um grau de transito- pluralismos jurídicos, como tão bem demonstrou Boaventura de Sou-
riedade menor, já que o liame de união dos seus membros prescinde sa Santos, 68 também concorre para romper com a perspectiva de ho-
mogeneidade social que está na base do Estado Moderno 69
64. O conceito foi retirado de Boaventura Sousa Santos, Pela Mão de Alice: o
Social e o Político na Pós~Modemidade, p. 88. 68. O Discurso e o Poder, 1988, e "Notas sobre a história jurídica e social de
65. A esse respeito, v.: Claus Offe, Capitalismo Desorganizado, pp. 242 e ss.; Pasárgada", in Cláudio Souto e Joaquim Falcão, Sociologia e Direito, pp. 109 e ss.
Philippe Schimitter, "Democratic theory and neocorporatist practice'', Social Research, 69. Como indica Albrecht Wellmer, analisando a questão da fragmentação da
v. 50. V. também Marco Marrafi (org.), La Società Neo~C01porativa, 1981. Para uma Modernidade no campo das Artes: "El momento postmoderno es una especie de expio~
crítica, ainda que não frontal, à pcnnanência dos fenômenos neocorporativistas, y. Gun- sión de la épisteme moderna en e! que la razón y su sujcto - como detentador de la
ther Teubner, O Direito como Sistema AutopoiJtico, pp. 273 e ss. 'unidad' y la 'totalidad'- vuclan en pedazos. Si se mira con más detenimiento, cierta~
66. Cf. José Eduardo Faria (org.), Direito e Globa/izaçào Econômica, 1~ ed., 2~ mente se trata de un movimiento de destrucción- o dcsconstrucción- dei cogito, de la
tir., 1998. racionalidad totalizadora, iniciado hace mucho en el Arte Moderno" (Sobre la Dia!éc~
67. Representação Política... , p. 105. tica de Modernidad y Postmodernidad, p. 52).
REGULAÇÃO ESTATAL E INTERESSES PÚBLICOS O ESTADO DESAFIADO 121
120

Para fins do que ora expomos, o que releva é que a fonnação des- Assün_, resta abalado também o liame de homogeneidade social
tas aglutinações plurais no âmbito social indica o surgimento de no- que permilla a constmção das fónnnlas generalizantes do bem comum
vos centros, não-estatais, de referência para parcelas significativas da o~ da vontade geral. Ao invés da aglutinação homogeneizante da so-

sociedade. Como demonstra Arjun Appadurai, muitos atores culturais, ciedade moderna, emerge a solidão coletiva, qne assim vem descrita
religiosos, políticos e econômicos "já estão desenvolvendo formas por Ianni: "indivíduos, famílias, grupos, classes e outros segmentos
não-estatais de organização macropolítica: grupos de interesse, movi- socmts perdem-se no desconcerto do mundo", em grande medida
70 porque "são continuamente bombardeados por mensagens recados
Inentos sociais e lealdades transnacionais já existentes".
e interpretações distantes, díspares, alheias", enquanto "os' sistemas
21. Estes processos de fragmentação social, por qualquer viés ou mundiais mais ativos e poderosos articulam e rearticulam interesses e
método de análise que se os tome, implicam o reconhecimento de que sig~ificado~ :elativos à apropriação econômica e à dominação políti-
a sociedade contemporânea passa, gradativamente, a assistir à aglutina- ca, as condiçoes de produção e pmticipação na cultura". 73
ção dos indivíduos em grupos de interesse que, com maior ou menor
Aii;da segundo Ianni, é como se a cultura nacional-popular de
institucionalidade, passam a ser vistos pelos indivíduos como espaços
legítimos de aglutinação dos seus interesses e instnnnentos efetivos Gramsci desse lugar à cultura internacional-popular referida por Re-
. 74 e que correspondena
nato 0 rtiz, .
a um plexo de bens e valores cultu-
para atendimento de suas necessidades.
r~is produzidos, transmitidos e consumidos como mercadoria lançada
Como - monnente num quadro de saturação das demandas sociais simultaneamente em diversos mercados culturais. Segundo ele, "o
e escassez de recursos públicos para seu atendimento - o acolhimento mesmo processo de globalização, que debilita o Estado-Nação, ou re-
dos interesses de alguns grupos coloca-se como excludente ao proces- define as condições de sua soberania, provoca o desenvolvimento de
samento dos interesse de outros,7 1 emerge mn processo de fraciona- diversidades, desigualdades e contradições em escala nacional e mun-
mento da idéia de universalidade ou de homogeneidade do interesse dial" .." Tal diversidade faz maiores e mais complexos os interesses
social. 72 sociaiS e demanda atendimento ou processamento por parte das insti-
Este processo de fragmentação é incrementado pelo fato (reflexo tuições sociais e estatais.
daquele brutal desenvolvimento tecnológico de que falamos há pouco) A complexização e a multiplicação dos valores e interesses indi-
de que os indivíduos passam a ter acesso a um número de infonna- viduais refletem:se, por óbvio, no crescimento das clivagens sociais.
ções e de padrões de consumo extremamente diversificado. Mesmo H~be~as bem Ilustra este processo, afinnando que: "Hoje, porém,
para as parcelas pauperizadas da sociedade (o que no caso brasileiro nos vivemos em sociedades pluralistas qne se afastam muito do for-
representa a maioria da população) é incomparavelmente maior o ple- mato de um Estado-Nação fundado numa população relativamente ho-
xo de itens de "consumo" (quer culturais, materiais ou afetivos) do mogênea em termos culturais. Já é enonne a diversidade das fonnas
homem contemporâneo frente àquele individuo vivente há três ou qua- culturais de vida, dos grupos étnicos, de visões de mundo e das reli-
tro décadas. giões, ou no mínimo em franca expansão". 76
22. É ce~o que os interesses representados por grupos, movimen-
70. "Soberania sem territorialidade", Novos Estudos CEBRAP 49139. tos, corporaçoes ou associações não possam ser tidos como individuais
71. Mais uma vez vale recorrer à capacidade de síntese de Celso Campilongo: - na medida em que transcendem o âmbito de um só indivíduo assu-
"Em face das demandas contraditórias levadas ao Estado de modo contraditório por
mindo nm caráter coletivo (v.g., de todos os membros do gmpo' ou de
grupos e classes com interesses distintos, conflitantes e excludentes, as respostas esta-
tais, por meio de regras fixas e hierarquizadas que estabelecem limites rígidos para sua
ação administrativa, revelam-se impotentes nas matérias não rotineiras e não padroni- 73. A Sociedade Globalizada, p. 100.
záveis" (Direito e Democracia, p. 53). 74. A Moderna Tradição Brasileira (Cultura Brasileira e Indústria Cultural)
72. Enfocando o fenômeno do neocorporativismo, Gianfranco Poggi aponta para pp. 205 e ss. '
os seus riscos, indicando que ele "implica una tendenza delle strutture statali contem-
75. Octávio Ianni, A Sociedade Globalizada, pp. 47-48.
poranee a regredire verso assetti politico-amministrativi simili a quelli che avvevano
preceduto il sorgere o il maturare dello Stato Moderno" (Lo Stato: ... , p. 277). 76. "O Estado-Nação Europeu ... ", Novos Estudos CEBRAP 43196.
122 REGULAÇÃO ESTATAL E INTERESSES PÚBLICOS O ESTADO DESAFIADO 123

todos aqueles pertencentes a uma dada categoria social). De outro 24. Como pettinentemente aponta importante teórico da Esquer-
lado, estes interesses não podem ser desidentificados com a parcela da Brasileira, 80 todos estes processos de fragmentação social, consti-
social que os titulariza. Quão mais diversificados se tomam os cottes tuem, contraditoriamente, uma força e uma impotência.
sociais, mais distante fica o ideal universalizante e homogêneo da Força porque indicam a capacidade dos setores sociais de resistir
identidade coletiva total do Estado-Sociedade 77 à violência do mundo globalizado. Impotência porque revelam a inca-
23. Ato contínuo a essa organização da sociedade em grupos de pacidade de atacar as fontes concretas dos problemas ensejadores da
interesse, assiste-se a parcela destes grupos (diante da insuficiência fragmentação.
dos aparatos do Estado em prover tais necessidades) tomar para si o Dessa aparente contradição - diz- emerge uma enorme constela-
encargo de realizar iniciativas voltadas ao atendimento de finalidades ção de organizações civis para a defesa de uma gama enonne de direi·
coletivas. 78 Trata-se do processo de aparecimento de ''organizações tos e interesses de setores inferiorizados no jogo social.
não-governamentais''.
25. É verdade que o Estado vai desenvolvendo mecanismos para
Estas entidades podem ser tomadas, nos conto mos aqui adotados,
se relacionar com estas organizações, movimentos, associações. Po-
como manifestações operacionais daqueles agrupamentos de interesse
rém, paulatinamente, o corpo social fragmentado vai estabelecendo
(na feição de 1novimentos sociais, neocorporativos ou enclaves plura-
fonnas de relacionamento diferenciadas com o aparato estatal a partir
lísticos) que passam a assumir funções concretas de natureza social
de cada nível de demanda e de cada patamar organizacional e institu-
antes a cargo do aparato estatal (por exemplo, proteção e amparo ao
cional que estes centros de interesse possuam. Assim, coloca-se em
menor) ou que por ele nunca foram integralmente assumidas, em que
xeque a unicidade do poder decisório estatal.
pese à sua relevância pública (por exemplo, preservação do meio am-
biente). Celso Lafer expõe com clareza os efeitos da fragmentação no Es-
Antecipe-se que a emergência destes novos atores coloca em xe- tado, enquanto poder decisório, ao afirmar que atualmente, e em espe-
que a própria divisão entre as esferas pública e privada. Isso porque, cial nas Democracias, o Estado "é muito menos um ente soberano, do-
embora construídas à margem do aparato estatal, seu raio de ação, tado de poder de império e capaz de declarar, em última instância, a
abrangência dos interesses que perseguem e dependência de meios es- positividade da lei. Ele é muito mais um mediador e fiador das nego-
tatais dão a essas organizações um caráter publicizado. 79 ciações que se desenvolvem entre grandes organizações - como em-
presas, sindicatos e grupos de pressão"" (grifas nossos).
77. Falando dos interesses coletivos, José Eduardo Faria bem ilustra este proces- Este papel é exercido fora dos parâmetros unilaterais que carac-
so ao afirmar que tais interesses, sendo "inerentes a grupos, comunidades, corporações terizavam o poder político no Estado Modemo, pois "os conflitos de
ou classes, ou seja, interesses conflitantes (e muitas vezes excludentes) entre si, a idéia interesse entre organizações, que asseguram o pluralismo nas forma-
de interesse comum, geral e universal já não pode mais ser concebida como uma espécie
de 'princípio totalizador' destinado a compor, integrar, harmonizar e organizar os inte- ções sociais complexas, são freqüentemente resolvidos por acordos,
resses individuais" (Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça, ta ed., 3~ tir., p. 106). que, como todos os acordos, resultam em concessões recíprocas e du-
O raciocínio é, ao nosso ver, plenamente aplicável ao conceito de interesse público. ram o tempo que as partes têm interesse em respeitar". 82 Daí concluir
78. Exemplos deste processo são as alianças firmadas entre grandes conglomera- Lafer que este processo não se estabiliza, sendo imperativo o contí-
dos empresariais e organizações não-governamentais no sentido de adotar políticas de
proteção ambiental independentes de políticas governamentais, com olhos voltados di- nuo processo mediador do Estado, o qual somente pode sobreviver se
retamente para os efeitos positivos indiretos na estratégia de marketing e de cornpeti-
tividade dessas empresas. Em palestra proferida no Banco Mundial, os então Presidentes
70% das suas filiadas mantêm alguma parceria com os órgãos públicos (Folha de S.
Mundiais da Asea Brown Boveri e da British Petroleum asseveravam, em uníssono,
Paulo 9.7.1996, p. 1.10).
que "o envolvimento das empresas com questões ambientais e sociais, como Saúde e
Educação, não é filantropia, nem relações públicas, mas sim uma exigência para se 80. V. Tarso Genro, "Uma estratégia socialista. Vinte teses em defesa de urna
manter a competitividade a longo prazo" (Ga::.eta Mercanti/30.9.1996, p. A-5). teoria democrática do Estado", Folha de S. Paulo 20.4.1997, p. 3-5.
79. Demonstração disso são os resultados de pesquisa por amostragem realizada 81. A Reconstrução dos Direitos Humanos, p. 72.
pela Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais que concluiu que 82. Celso Lafer, A Reconstituição ... , p. 72.
124 REGULAÇÃO ESTATAL E INTERESSES PÚBLICOS O ESTADO DESAFIADO 125

lograr êxito em renovar, constantemente, estes pactos sociais, median- internacionais (Banco mundial, FMI etc.) restringem a autonomia es-
do, mticulando e dialogando com estas "grandes organizações". tatal de tal modo que numerosos instmmentos (política monetária, gas-
to fiscal), que antes estavam à disposição do Estado, transfonnam-se
Vê-se, desde logo, que esta atuação não será possível sem 1m1a
em condições ou parâmetros extemos, que definem o quadro da ação
transformação radical do papel do Estado. Tal mudança impacta forte-
estatal". 86
mente os pressupostos do Estado Moderno, ao menos se tomado a par-
tir dos traços que delimitamos no início deste trabalho. Por força do processo de industrialização econômica, o Estado
Nacional perde gradativamente a capacidade de dirigir e balizar a pro-
dução nacional e de controlar a riqueza financeira 87 - o que, segundo
III.4 Os reflexos da globa/ização e da fi·agmentação Paul Singer, implica o risco de impotência do Estado Nacional para
no poder decisório: a crise do Estado Nacional proteger "os direitos de apropriação sobre parcelas de apropriação na-
cional futura". 88
26. A convergência dos dois fatores (globalização, por um lado,
28. Vimos anterionnente que no presente trabalho estmnos toman-
e fragmentação, por outro) põe à prova, necessariamente, as bases em
do o Estado, preferencialmente, na sua acepção de poder decisório
que se ergue o Estado Nacional. (v.g., capacidade de deliberar, politicamente, sobre a alocação de bens,
Nas palavras de um observador lúcido e atento, Ha coexistência direitos, oportunidades e recursos amealhados junto à coletividade so-
entre interdependência e globalização, de um lado, e fracionamento cial, com vistas, potencialmente, a atender às necessidades dispersas
político e social, de outro, lembra muito mais a constituição de um por essa coletividade) - o que envolve inclusive o poder de dizer mo-
mosaico medieval de que uma nova ordem que ultrapasse as relações nopolisticamente o Direito válido no seu território.
entre Estados soberanos"." Diante dos processos de globalização econômica e jurídica e de
O fato é que - consoante demonstra Enrique Zuleta Puceiro - o fragmentação social, este poder decisório é fortemente posto à pro-
processo de estabelecimento do poder político a partir de uma concer- va.s9
tação de interesses, necessidades ou conveniências dos indivíduos iso- Isto vem bastante bem sintetizado por Celso Campilongo, cujas
ladamente tomados cede lugar a uma nova rede de interesses. "As palavras fazemos nossas: "Juristas e politicólogos, até bem pouco tem-
grandes organizações econômicas, os sindicatos, os partidos e a buro- po, não divergiam em definir a soberania como o poder de dizer, mo-
cracia seriam as novas partes do novo contrato social. " 84 nopolisticamente, o Direito válido em determinado território. Hoje,
Tais novos atores (no conjunto dos quais colocaríamos também entre essa esfera formal da autoridade política e as práticas e estrutu-
todos aqueles gmpos de interesse e instituições multilaterais acima di- ras reais do Estado existe uma enorme diferença. A internacionaliza-
visados) integrariam este "novo contrato social", o qual- ainda se- ção da produção e das operações financeiras impossibilita a fixação
gundo Puceiro- "se define em função de estratégias conco!Tentes [co-
lidentes} dos interesses patticulares". 85 86. "Estado ... ", Lua Nova- Revista de Cultura e Política 28-29/244.
27. Estes processos todos, é óbvio, vão abalar os pressupostos do 87. V. Paul Kennedy, "A ONU precisa sintonizar o futuro", O Estado de S. Pau-
Estado Moderno, o qual, como vimos, liga-se umbilicalmente à sua lo 2.7.1995.
88. "O Estado Nacional é um imperativo democrático", Folha de S. Paulo
territorialidade nacional. Afinal - como nos ensina Leclmer -, tal 19.3.1995, 2' Caderno, p. 2.
processo de globalização "caracteriza-se justamente por ultrapassar 89. Segundo José Eduardo Faria, para se ajustar estruturalmente às pressões con-
o âmbito do Estado Nacional". Diz o autor: "Atualmente, as instâncias flitantes e excludentes das sociedades complexas, diversificadas e heterogêneas, o Es-
tado "facilita o deslocamento da ação política de seus canais tradicionais" e, de outro
lado, para além de privatizar alguns conflitos, "estimula transformações por meio das
83. Luiz Gonzaga Belluzzo, "Viagem pela realidade imaginãria", Carta Capital quais o poder decisório se transfere das instituições governamentais fonnais para mol-
21.8. I 996, p. 35. des mais difusos de organização das desigualdades sociais, setoriais e regionais'' (cf.
84. Enrique Zuleta Puceiro, Teoria del Derecho, p. 143 (trad. nossa). "A nova Constituição e a reorganização jurídico-institucional do país", Nomos 9-10(1-
85. Idem, ibidem. 2)/92).
126 REGULAÇÃO ESTATAL E INTERESSES PÚBLICOS
O ESTADO DESAFIADO 127

autóctone das diretrizes econômicas nacionais. As decisões racionais


ou de coordenação de mercados comuns guardam l~a ~nmme inter-
não podem ignorar a interconexão das economias, os demais Estados,
relação com os grandes atores econômicos transnacwna1s.
as organizações intergovemamentais e os gmpos de pressão transna-
cionais. O Direito Internacional crescentemente retira do Estado a li- Como assevera José Reinaldo Lima Lopes, "seja como for, o fato
berdade de tratar seus cidadãos como lhe pareça melhor. Os grandes é que 0 Estado torna-se menos capaz de legislar soberanamente: gru-
blocos de poder e os esquemas internacionais de defesa militar debili-
tam a autoridade do Estado. Tudo isso modifica substancialmente o dos Sete limitam sua capactdade dectsona . E, refenndo-se ao9
pos internos e 0 govemo intm:nacional do .FM~, ~o GATT e do Grupo

modelo jurídico concebido de Estado-Nação a partir das diferentes ins- GATT e à OMC, David Korten é explícito ao afirmar o pode: que,
tâncias que interferem no processo decisório do Direito ten·itorial". 90 nestas instâncias, exercem as grandes corporações tl~ansna~~onms, m-
28.1 Do ponto de vista econômico, as grandes corporações eco- fluindo inclusive nas regras editadas por estes orgamsmos.
nômicas e financeiras vão, num ciclo vicioso, criando um liame de 28.2 Sob 0 ponto de vista jurídico, de outro lado, :om a crescente
vinculação pelo qual impõem aos Estados recuos no exercício de sua contingência dos Estados em se obrigar com c.on~ençoes, tratados ou
capacidade de intetferir no jogo econômico. Esta dependência leva a acordos inten1acionais (não só na área de comercto, mas na sem a a~­
um processo pelo qual - sob pena de sua ineficácia e a partir de um biental" e dos direitos humanos96 ) emerge um outro campo. de restn-
constante jogo de enfrentamento - as grandes corporações fazem re- ção à atividade despeiada do poder decisório estatal no âmbtto ternto-
fém o poder decisório formalmente detido pelo Estado, sob a ameaça rial nacional. 97
de retirada de investimentos, 91 desmobilização de plantas industriais
ou, no caso dos países periféricos, simplesmente de marginalização · · · · ", m
93. "Crise da norma jurídica e a reforma do Jud!clano · Jose· Eduardo Faria
no panorama econômico mundial. 92 (org.), Direitos Humanos,. .. , ta ed., 3a tir., p. 91.
94. When Corporations ... , p. 177. _ .
Este processo reflete-se também na crescente vinculação dos Es-
95 "Com efeito, na generalidade das quase três centenas de conv~nçoes multlia-
tados aos organismos multilaterais. E em tais organismos estão pre- terais sobre proteção do ambiente( ... ) o comportamento dos Estados de1xa de se~ e~u~­
sentes os interesses das grandes corporações. Não só as agências de cionado em termos exclusivamente de competência, cob~rt~ pelo sacr~~santo pnnc1p1o
fomento (essencialmente dependentes dos aportes dos países desen- da não-ingerência ou da autolimitação imposta pelos direito~ dos Vlzmhos. (... ). ~s­
volvidos, que, por seu turno, têm sua capacidade financeira dependente sim instala-se m~a nova lógica de construção jurídica dos mstrumentos convenciO- ! ',
nai;: a procura de um rigoroso equilíbrio bilateral entre Estad?s-. membros uns ~m face
diretamente das grandes corporações e dos grandes agentes financei- dos outros tende a ceder perante a central idade do intere~se pubhco ?u comum mte~~­
ros) como também os organismos reitores do comércio internacional cional" (cf. José Manuel Pureza, "Globalização e Direito Intern~cwnal: da b~a VIZI-
nhança ao patrimônio comum da Humanidade", Lua Nova~ RevlSla de Cultwa e Po-
90. Direito e Democracia, pp. 100-101. I
Ji
lítica 30179). . . . van ando
96. Note-se neste particular que o moderno Constituc10nahsmo vem ~ . ç
9 I. Claus Offe bem ilustra este processo com uma referência que parece talhada I' no sentido de que a assinatura de um tratado inter_na~ionat ve.rsante s~bre d1re1t~s l~u­
para o panorama brasileiro dos dias de hoje: "Um Estado (... ) muito dependente de !iH manos faz suas disposições incorporarem-se ao Dtr~1to do pa1s. s?bsc.ntor, presc~n~m­
investimentos privados começa a fazer o que as empresas quiserem para não perder
do-se da mediação do Poder Legislativo correspectivo (cf. Flav1~, P1~vesan~ Dzreztos
força econômica. Vim uma relação desigual, em que o mercado tem todas as fichas na
Humanos ... , pp. 103 e ss., e Antônio Augusto Cançado Tri~d~de, A mtera,?ao ~nt~e o
mão. Em última instância, isso acaba afetando a confiança na Democracia. ( ... ). Na :I Direito Internacional e 0 Direito Interno na proteção dos direitos humanos , A1qwvos
Austrália, por exemplo, uma empresa ganhou uma concessão para fazer uma rodovia li do Ministério da Justiça 46/27-54, n. 182). Este processo ~ p~r7~e-nos ~!aro ~ t~m­
na região de Melburnc. ( ... ). Só que ela recebeu, além disso, a garantia de que nos
bem demonstra a restrição ou o solapamento da capacidade dec1sona enfetxada no s-
próximos 30 anos não será construído um 'metrô' na região" (revista Veja 8.4.1998, i/
p. 12). r tado Moderno (v.g., Estado Nacional). . ..
92. Este processo é assim resumido por David C. Korten: "When the economy is
I 97 Este processo e reconhecido explicitamente pelos titulares do poder declso-
I rio cent~L v. como exemplo o discurso do Presidente ~erna~,do ~enrique C~rdoso e~
global and governments are national, global corporations and financiai institutions
palestra proferida em 1996 no Centro Internacional Indmno: Intimamente vmcu.tad~ a
function largely beyond the reach ofpublic accountability, governments become more
uestão da globalização econômica e a mudança no papel do Estado. A globahzaçao
vulnerable to inappropriate corporate influence, and citizenship is reduced to making
;i i fica que as variáveis externas passaram a ter influência acrescida nas agendas do-
consumer choices among the products corporations find it profitable to offer" (When
Corporations Rufe lhe World, p. 92). mfsticas, reduzindo 0 espaço disponivel para as escolhas nacionais" (Folha de S.
Paulo 28.1.1996, p. 1-8- grifes, obviamente, nossos).
128 REGULAÇÃO ESTATAL E INTERESSES PÚBLICOS O ESTADO DESAFIADO 129

Ainda no tocante ao Direito, são crescentes as pressões pela uni- Da fragmentação social deriva um processo de multiplicação das
fOJmização ( v.g., internacionalização) dos instmmentos jurídicos no fontes de nonnatividade social, pondo, portanto, em questão a unici-
âmbito dos acordos comerciais, o que faz imperativas a combinação e dade e a homogeneidade do próprio modelo positivista de Direito.
a conciliação de regras e procedimentos internos aos países, os quais 29. Todas estas mudanças impactam o modelo de Estado e de Di-
são substituídos por diversos e diferenciados mecanismos de "Direito reito próprios à Modernidade, abalando sua estmtura enquanto depen-
Comunitário". 98 dentes de um poder decisório absoluto e unívoco no âmbito territorial
28.3 Já o processo de fragmentação social e política também so- nacional. Colocam em crise "a capacidade de decisão suprema, inter-
lapa o poder decisório, na medida em que tanto põe à prova a ex- na e externa, do poder estatal e da possibilidade de direção, pelo alto,
clusividade da autoridade como leva também ao questionamento do da vida em sociedade". 103 Nas palavras de Paul Kermedy, o Estado
próprio monismo jurídico." Nacional, "principal agente autônomo nas questões políticas e inter-
O Estado passa a ter que conviver com outros núcleos de auto- nacionais nos últimos séculos, parece não apenas ser o 'tipo errado'
ridade representados pelos diversos agmpamentos, transitórios ou de unidade para enfrentar as circunstâncias mais novas". Mais ainda,
não, de interesses. Tais agrupamentos passam a ter, crescentemente, verifica-se uma situação contraditória, segundo a qual para algumas
autonomia em relação ao aparato estatal. 100 Mais ainda, passa a ser questões "é uma unidade demasiado grande para operar com eficiên-
indesviável a necessidade de interlocução, de mediação com estas cia", enquanto para outras "é pequeno demais". 104
instâncias sociais, as quais passam a substituir os partidos no pro- O fato é que isto tudo acarreta uma crise no modelo político e
cesso de interlocução política, 101 inclusive no tocante à produção le- jurídico próprio à modernidade de Estado. Segundo Boaventura de
gislativa.102 Sousa Santos, "a transuacionalização da economia e o capital político
que ela transporta transformam o Estado numa unidade de análise re-
98. A esse respeito, v. José de Castro Meira, "Globalização e Direito", Boletim lativamente obsoleta, não só nos países periféricos e semiperiféricos,
de Direito Administrativo 71145 e ss. V. também Carlos Ari Sundfeld e Oscar Vilhena como quase sempre sucedeu, mas também, e crescentemente, nos paí-
Vieira (orgs.), Direito Global, 1999. ses centrais". 105
99. "Ocorrendo simultaneamente, essas mudanças contribuem para a erosão do
O mais interessante é que - ainda segundo Boaventura - vai se
monismo jurídico, outro principio básico constituído e consolidado em tomo do Esta-
do-Nação, e abrem caminho( ... ) para a existência de distintas ordens jurídicas autôno- revelar um contraditório processo segundo o qual o Estado, antes de
mas num mesmo espaço geopolítico, intercruzando-se e interpenetrando-se de modo se democratizar e se permear à sociedade, compensa sua perda de au-
constante" (cf. José Eduardo Faria, O Direito ... , P ed., 3a tir., p. 15). toridade pelo "aumento do autoritarismo", fazendo-o em parte pela
100. Cf. Robert A. Dahl, I Dilemi de/la Democrazia Pluralista, p. 36: "Le orga- "congestão institucional da burocracia" (processo ao qual nos repor-
nizzazioni economiche, in particolare !e imprese ed i sindacati, reintrano anch'esse
all'interno dei problemi dell'autonomia e dei controllo. La !oro autonomia ê alio stesso
tamos no final do capítulo anterior), em parte, paradoxalmente, "pela
tempo un fatto, un valore e fonde di pericoli. In tutti i paesi democratici !e imprese devolução à sociedade civil de competências e funções" que assmnira
prendono decisioni importanti che non vengono interamente controllate dai funzionari anteri01mente e que agora parece "estmtural e irremediavelmente in-
dei governo". capaz de exercer e desempenhar". I 06
101. Para uma análise da relação entre os grupos de interesse e as instâncias par-
tidárias a referência obrigatória é Claus Offe, Capitalismo Desorganizado, especial- Nos dizeres de Celso Antônio Bandeira de Mello, assistimos a
mente pp. 223 e ss., e Problemas Estruturais do Estado Capitalista, especialmente pp. um processo de "distanciamento cada vez maior entre cidadãos e as
292 e ss. Além deles, v. os trabalhos de Celso Campilongo retrocitados.
I02. Miguel Reale defende uma mudança de enfoque "na configuração do Parla-
mento como órgão destinado a legislar e a fiscalizar a Administração, decidindo sobre 103. Cf. Roberto Ruffilli, "Gli ultimi sviluppi dei dibattito sullo Stato nell'età
tudo de per si, como 'representante exclusivo e soberano da vontade popular'", pro- contemporanea", in Roberto Ruffilli (org.), Crisi del/o Stato e Storiografia Contempo-
ranea, p. 169.
pugnando pela possibilidade de um novo modelo democrático que "pressuponha a co-
participação, na elaboração de leis, das organizações não-governamentais (ONGs), des- 104. Cf. Paul Kennedy, Preparando o Século XXI, p. 129.
de que deforma explícita e transparente" ("A sociedade civil e a idéia de Estado- O 105. Pela Mão de Alice:... , p. 89.
Estado da civilização cibernética", RDA abril-junho de 1996, p. 17). 106. Idem, p. 89.
O ESTADO DESAFIADO 131
130 REGULAÇÃO ESTATAL E INTERESSES PÚBLICOS

instâncias decisórias que lhes afetam diretamente a vida". E o autor 31. Be':' deve; que este processo, malgrado assistir a uma gran-
parece concordar com parte do nosso diagnóstico ao afirmar que "a de ~cel~raçao na d~cada de 90, com a difusão dos processos de glo-
claríssima tendência à fonnação de blocos de Estado, de que a Europa bahzaçao ou mund~ahzação antes vistos, tem origens um pouco mais
é a mais evidente demonstração, revela o surgimento de fótmulas po- remotas. 112 Já em 1983 Nicola Mateucci, descrevendo o verbete "So-
berama" do festejado Dicio1~ário de Política capitaneado por Bobbio,
líticas organizatórias muito distintas das que vigoraram no período
asst~alava, com clareza, a cnse do Estado Moderno e do seu vetor pri-
imediatamente anterior e, como dito, um distanciamento quase inevi-
mactal.
tável entre o cidadão e o Poder". !0 7
Pedimos licença para transcrever suas palavras, porquanto extre-
Esta crise abate os próprios pressupostos do Estado Moderno, re-
mamente atuats e precisas. Dizia o autor italiano que o Estado Moder-
fletindo-se nos vetores que identificamos no início deste trabalho.
no, emedado _em sua crise, "não mais [seria} capaz de se apresentar
:orno centro umco e autônomo de poder, sujeito exclusivo da política,
III.5 A crise da noção de soberania umco protagomsta da arena intemacional".113
O diagnóstico (ou, ousaríamos dizer, o prognóstico) de Mateucci
30. O primeiro pressuposto- quiçá o mais sensível deles- talvez
correspondta exatamente àquele que acima intentamos firmar. Suas
seja a concentração do poder, traduzida numa crise do conceito de so-
palav~·as: "'Para o fim deste monismo contribuíram, ao mesmo tempo,
berania. Lembramos que, como antes esperamos ter mostrado, o con-
a reahdade cada vez mais pluralista das sociedades democráticas bem
ceito de soberania intrínseco ao Estado Modemo fora f01jado (política
como o novo caráter dado às relações internacionais". 114 '
e doutrinariamente) na eliminação dos particularismos das ordens lo-
cais e da pluralidade de poderes extranacionais. 32. Na_verdade: ~noção de soberania é posta em colapso quer na
sua dtmensao doutnnana, quer na sua dimensão política.ll5
Ocorre que, no contexto pautado pelas transformações aqui enu-
meradas, em que pese à permanência formal (ou quase isto) dos Esta-
dos Nacionais, em termos concretos os Estados, convivendo com uma _Il~. Y~le lembrar que a chamada teoria da soberania restrita, que excluía a imuniw
108 dade JUn~dJCronal dos Estados no tocante aos seus atos de Direito Privado e Comercial,
diversidade de pólos de poder, intemos e externos ao seu território, data da deca_da ~e 50. A ~sse re~peit~ v. Amoldo Wald, "A renegociação da dívida exterw
passam a conviver com o petmanente desafio da sua exclusividade e na e o respetto a soberama nacronal , Revista de Informação Legislativa 97/103-110.
unicidade enquanto poder decisório: "descobrem-se materialmente li- 113. In Norberto Bobbio e outros, Dicionário de Política, p. 1.187.
mitados em sua autonomia decisória". 109 . 114. Idem, p. 1:187. Logo adiante, mesmo considerando os impactos internacio-
n~t~ ape~~s sob o p:tsma da colaboração internacional, o autor sentenciava que se asw
Ou então, como assevera Otávio Ianni, "'é claro que não se apa- ststm a~ desa~arectmento da plenitude do poder estatal caracterizada justamente pela
gam o princípio da soberania nem o Estado-Nação, mas são radical- s.ob~rama; por ISSO, o Estado acabou quase se esvaziando e quase desapareceram seus
hmttes".
mente abalados em suas prerrogativas", haja vista que se alteram "as
configurações e movimentos da sociedade global" 110 Segundo o au- 11_5. T~lvez o exemplo mais paradigmático deste processo de relativização da
sober~ma _s~Ja o q~e oco~re no âmbito da Comunidade Européia. Neste sentido põe-se
tor: "A soberania do Estado-Nação não está sendo simplesmente limi- paradtgmattca a d1scussao travada no âmbito do Tribunal Constitucional Federal d
tada, mas abalada pela base" . 111 Alemanha em torno da emenda_ c??stitucional que, para permitir seu ingresso na CE;,
expressamente afirmav~ a pos~t~thdade .de que a Federação Alemã viesse a "transferir
p~deres soberanos por mtermed1o de le1 com anuência do Senado", conforme a reda~
I 07. Celso Antônio Bandeira de Mello, "Estado y Democracia: la integración ?ao que se _da':a ao _art. 23 da Ca~ta Germânica .. ~ai dispositivo foi questionado quanto
supranacional", in Eduardo García de Enterria e Manuel Clavero Arevalo (orgs.), E! a .sua constJ~~IOnaildad~, _na medtda em que- dtzmm seus opositores- violava o princí-
Derecho Público de Fina!es de Sigla, pp. 65w66. ~to de_m~cratJco. A dec1sao da Corte Constitucional afirmou que o princípio democrá~
l 08. Cf. Claudio Bonvecchio, "Lo Stato e i! sovranazionale", in Maurizio Basw tlco nao Impede a Alem~nha de tomar parte de comunidade supranacional. Inobstante,
ciu (org.), Crisi e Metam01josi de la Sovranitá, p. 76 (trad. nossa). reafirmou que a soberan.'~ perten.ce ao povo alemão e que ele, Tribunal Constitucional,
I09. José Eduardo Faria, O Direito ... , 1a ed., 3a tir., p. 23. preserva-s~ como guardtao dos lineamentos que refletem e garantem esta soberania. A
esse respetto, ~.: Oscar Vil~ena Vieira, A Constituição e sua Reserva de Justiça, pp.
11 O. Teorias da Globalização, p. 34.
156-159, e Jose Eduardo Fana, O Direito ... , P ed., 3~ tir., pp. 220-221, nota de rodapé I.
lll. Idem, ibidem.
132 REGULAÇÃO ESTATAL E INTERESSES PÚBLICOS O ESTADO DESAFIADO 133

32.1 Do ponto de vista doutrinário, a simples afirmação dos orga- lência do Estado Moderno enquanto detentor do poder político con-
nismos e instâncias internacionais, a partir da criação da Organização centrado, soberano. Como bem diz Luigi Ferrajoli, 119 há uma crise
das Nações Unidas, já corrói a noção de soberania, por contradizer "pelo alto" ditada pelos processos de "maciça transferência de poder
seus próprios pressupostos teóricos. É que, como vimos, do ponto de decisório para entes superestatais e extraestatais" tais como a Comu-
vista da construção teórica no bojo da qual foi ela gestada, a sobera- nidade Européia, a ONU, e outras tantas organizações internacionais
nia se afirmaria como absoluta e perpétua. Tal construção enreda uma em matéria financeira, monetária, assistencial etc. De outro lado, uma
am1adilha: estes atributos não admitem, logicamente, sua relativiza- crise "por baixo", representada pelos "impulsos centrífugos e pelos
ção. Daí a precisa afirmação de Claudio Bonvecchio no sentido de processos de desagregação interna" nos quais se encontram eles forte-
que admitir a mitigação ou a relativização da soberania importa, em mente inseridos.
suma, negar sua própria existência. 116 32.4 Diante deste contexto, claro resta que o conceito de soberania
32.2 Do ponto de vista político também se põe insustentável a não pode mais ser tomado como elemento edificante das concepções de
plenitude do conceito de Estado Soberano (conf01me visto anterior- Estado e de Direito. No vácuo da sua crise, fica patente que o Estado,
mente), porquanto "qualquer concepção de soberania que a tome como na acepção adotada neste trabalho, sofre profunda alteração, porquanto
uma forma ilimitada e indivisível de poder público, portanto, está pos- -conforme já apontado acima quando da citação do pensamento de Cel-
ta em questão". Isso porque, hodiernamente, a soberania "já se divide so Lafer - deixa "de ser um /ocus natural e privilegiado de direção,
entre um certo número de agências - nacionais, regionais, intetnacio- deliberação, alocação de recursos e imposição de comportamentos
nais - e é limitada pela própria natureza dessa pluralidade" .m obrigatórios, limitando-se a atuar como simples mecanismos de coor-
A pressão dos interesses econômicos transnacionalizados (obe- denação, de adequação de interesses e de ajustes pragmáticos". " 0
dientes a dinâmicas econômica e financeira radicalmente mundializa-
das) e dos interesses organizados presentes numa sociedade complexa III. 6 A crise da dicotomia público/privado
e multifacetada obriga o poder político a atuar longe da imperativida-
de e unilateralidade monocrática que modelavam o Estado originado 33. Melhor sorte não assiste ao outro vetor estruturante do mode-
do período absolutista. Este passa a ter que exercitar papéis "que são lo de Estado Moderno - a delimitação do poder a partir da separação
antes os de inte1mediação e de garantidor de soluções pactuadas em entre as esferas pública e privada.
arenas extraparlamentares e extrajudiciais", e menos de "detentor do Como já antecipava Dalmo Dallari há quase 30 anos, nos tempos
poder de império, segundo a representação clássica da soberania" I" atuais "as atividades públicas e privadas se interpenetram de tal ma-
32.3 Em suma, os processos de globalização e fragmentação aci- neira que o Estado, freqüentemente, utiliza técnicas jurídicas anterior-
ma divisados, próprios da contemporaneidade, levam a uma duplá fa- mente exclusivas do Direito Privado, enquanto os particulares, por seu
lado, agem, cada vez com maior freqüência, segundo as regras tradi-
116. Em suas palavras: "Infatti, una sovranità o e talc in tutta la sua picnezza cionalmente consideradas como de Direito Público". 121 A descrição
oppure non e tale. In questo secando caso non sussiste sovranità (... ). Postulare una corresponde, com perfeição, a um dos traços característicos da inter-
qualsiasi forma di limitazione alia sovranità, negandone, di conseguenza, ii carattere penetração entre as duas esferas: o intercambiamento de instrumentos
assoluto ed indiscutible, connesso alia stessa esistenza" (cf. Claudio Bonvecchio, "Lo jurídicos.
Stato ...", in Maurizio Basciu (org.), Crisi ... , p. 78).
117. David Held, "A Democracia, o Estado~ Nação e o sistema global", Lua Nova Porém, nos últimos anos (com a aceleração dos processos antes
~ Revista de Cultura e Política 23/178. Interessante destacar que He1d coloca como analisados) a implosão da separação entre público e privado (e, por
uma das balizas de uma "autonomia democrática" que deve emergir deste processo de
globalização a necessidade de articulação das comunidades políticas territorialmen~te
delimitadas (agências, associações, organizações) de modo a tomar o Estado~Naçao 119. "La sovranità ncl mondo moderno: crisi e metamorfosi", in Maurizio Bas-
parte de um processo democrático (p. 191). ciu, Crisi e Metammfosi de La Sovranità, pp. 64~65.
118. José Eduardo Faria, "Dilemas e desafios do Direito do Trabalho", Revista 120. José Eduardo Faria, O Direito ... , ta ed., 3~ tir., p. 37.
do TRT-8' Região 27(53)/28-29. 121. Dalmo Dallari, O Futuro do Estado, p. 80.
134 REGULAÇÃO ESTATAL E INTERESSES PÚBLICOS
O ESTADO DESAFIADO 135

conseqüência, o esgarçamento dos limites de abrangência- e legiti- va privada, irá, ao longo do tempo, apresentar-se de formas bastante
mação - da atuação do poder político) adquire outros contornos. Passa, diversas. De início tínhamos a utilização do instnunento contratual,
nos dizeres de Giannotti, por uma profunda revolução que a distancia que ensejava enonnes polêmicas quanto à sua natureza. Ao depois
tanto da sua origem grega quanto daquela concepção cunhada quando veio a se somar a utilização de fórmulas empresariais - empresas pú-
do aparecimento do Estado Moderno. 122 blicas e sociedades de economia mista - para realização não só de
34. Desde logo, há que se registrar que este processo de implosão serviços públicos, como também de atividades econômicas. Hoje assis-
da célebre dicotomia- ou, se quise1mos, esta interpenetração de esfe- te-se a tal cruzamento se dar pela adoção de sofisticados mecanismos,
ras- tem início na medida em que o desenvolvimento capitalista im- como as participações societárias em empresas privadas ou a monta-
peliu o Estado a assumir tarefas sociais, abandonando seu papel de gem de projetos financeiros para fomento de atividades empresariais
mero observador e controlador do jogo econômico. Como assinala Al- privadas.
berto do Amaral Jr., "a mudança estrutural que acabou por alterar a Este processo vem analisado de forma veemente por Maria João
relação entre o setor público e o setor privado somente ocorreu quan- Estorninho, para quem nos dias de hoje (período que denomina de Es-
do o Estado assumiu novas funções na vida social", 123 desviando-se tado Pós-Social) "o movimento de 'privatização' da Administração
da simples tarefa de preservar a ordem, a segurança e a paz para in- Pública agrava-se devido à própria crise do Estado-Providência e a
cumbir-se de funções (quer de ordenação, quer de estruturação, quer Administração Pública, qual náufrago que procura agarrar-se à tábua
de compensação) econômicas e sociais. de salvação, tenta hoje desesperadamente reencontrar eficiência, no-
É razoavelmente simples de se entender a relação da modificação meadamente através de fenômenos de privatização e de revalorização
das funções do Estado com o colapso da dicotomia público/privado. da vida civil" . 125
Afinal, como vimos anteriormente, toda a dicotomia se estrutura a par- Porém, isso não ocorre apenas no âmbito do sistema jurídico. Re-
tir da perspectiva de delimitação do poder político. Na medida em que flete-se também no que se convencionou chamar de "socialização do
o devir do sistema econômico levou ao desbordamento destes limites Estado" e de "estatização da sociedade", 126 de tal sorte que não mais é
e que o poder político passou a atuar na seara dantes reservada aos possível, nem mesmo em termos teóricos ou retóricos, sustentar a va-
particulares, põe-se em xeque a apartação das esferas. lidade da dicotomia público/privado para fins de delimitação do cam-
35. Pulverizada a linha demarcatória (se é que, em termos con- po de atuação do poder político. Em urna palavra, ternos revelada a
cretos, podemos dizer que a mesma existira mesmo no modelo libe- insuficiência da própria dicotomia Estado/sociedade civil. 127
ral) entre o que é público e o que é privado, passa a ser freqüente e
3 6. Se o fenômeno de interpenetração entre as esferas tem início
crescente o intercâmbio entre instrumentos, valores e pressupostos. A
quando da mudança de funções do Estado, também é verdade que ele
imissão mais visível é justamente dada pelo cruzamento entre Direito
vai se aprofundar mediante a internacionalização e fragmentação es-
Público e Direito Privado de que nos fala Dalmo Dallari na cita retro.
tudadas neste capítulo.
Habetmas vai no mesmo sentido, teorizando sobre a "privatização do
Direito Público" e a correspondente "publicização do Direito Priva- 37. Os processos de fragmentação social implodem de vez a pos-
do".I24 sibilidade de preservação conceitual ou política da dicotomia público/
privado. Em grande medida, o processo de emergência de grupos de
O crescente recurso do Estado a mecanismos de Direito Privado,
de modo a fazer frente à sua ação em searas antes exclusivas da iniciati-
125. A Fuga para o Direito Privado, p. 354.
122. V. José Arthur Giannotti, "O público e o privado", Folha de S. Paulo 126. Maria João Estorninho, A Fuga ... , p. 180.
6.4.1995, pp. 5-6. O texto consta da coletânea Saúde 110 Brasil: Retratos de uma En- 127. Cf. Boaventura de Sousa Santos, O Estado e a Sociedade ... , pp. 96-97. Cel-
cruzilhada, Salvador, Sarah Letras, 1995. so Campilongo traduz este processo da seguinte maneira: "Neste processo, a definição
123. Proteção do Consumidor no Contrato de Compra e Venda, p. 78. do público e do privado, a separação entre Estado e sociedade, o ato de representar e o
de ser representado, tornam-se cada vez menos distintos" (Representação Política
124. Mudança Estrutural da Esfera Pública, p. 180. p. lll).
136 REGULAÇÃO ESTATAL E INTERESSES PÚBLICOS O ESTADO DESAFIADO 137

interesse, associações ou organizações não-governamentais implica a político do Estado estrangeiro, ainda que por este sejam, episodica-
atribuição de um status público a estas instituições. mente, deles portadores 130 ) acabam por exercer uma influência deter-
37.1 Tal caráter reflete-se não só na obtenção de beneficios (tri- minante na operação do poder político. Com isso, o Estado Nacional
butários, sociais, eventualmente de acesso preferencial a bem públi- toma-se sujeito a interesses particulares de gmpos não radicados in-
co), mas também traduz a assunção de prerrogativas e de ascendência ternamente às suas fronteiras territoriais.
sobre um determinado agmpamento social, cujos integrantes (indiví- O processo de socialização do Estado assume um caráter globa-
duos) passam a ter com a instituição uma referência mais forte que lizado. Como pondera Norbert Lechner, "a globalização incorpora os
com o próprio Estado. Nas palavras de Celso Campilongo, este verda- diversos aspectos da vida social a um 'sistema mundial' e tem sua con-
deiro "poder privado" levanta uma forte dúvida acerca da sua compa- trapartida na internacionalização, ou seja, estratégias que vinculam o
tibilidade com a Democracia politica. 128 'nacional' aos processos de mundialização".J31
37.2 Portanto, o processo de fragmentação social (o qual, apesar 38.1 São visíveis e bastante fortes os efeitos do processo de inter-
de ser aqui assim tratado, antes de implicar uma pulverização do po- nacionalização econômica na superação da separação público/ptivado.
der social, acaba por significar uma aglutinação do poder atomizado Partindo dos contomos expostos nos itens III.2 e III.4, acima, verifi-
dos indivíduos, substituídos estes por gmpos, associações, institui- camos que o poder decisório, antes monopolizado na esfera pública
ções) leva à destmição da noção de espaço público, tanto da constm- intema, se desloca para novos centros, extemos ao Estado Nacional e
ção liberal (quer no matiz contratualista, quer no individualismo utili- influenciados ou dominados por interesses econômicos.
tarista) quanto da concepção hegeliana (que concebe o público como 38.2 Mais que isso, o processo de globalização, corno demons-
um ente superior, transcendente aos indivíduos). trado, cria uma sobreposição das duas esferas, tendendo a transportar
37.3 Ao fazê-lo, põe em questão o Estado como detentor do mo- todas as decisões políticas, econômicas e sociais para o cenário supra-
nopólio do poder decisório, deslocando (sem privar as instituições es- nacional, onde vigoram as regras do mercado (ou seja, sujeito àquela
tatais de alguma alçada decisória) tal poder também para instituições nova /ex mercatoria de que há pouco falávamos).
sociais (privadas). Assiste-se ao processo de privatização do público 39. Inúmeras são as manifestações do processo de globalização
por meio da "substituição do Estado enquanto definidor dos interes- levando à superação da clássica dicotomia. Esse quadro é notável
ses gerais por grupos ou corporações", 129 as quais, naturalmente, en- quando observamos o atual contexto da intervenção do Estado na eco-
redam-se, tangidas pelos interesses privados de seus membros. nomia. Premidos pelo curso da internacionalização econômica, os Es-
3 7.4 O poder decisório com relação à alocação de bens, direitos e tados Nacionais procuram redimensionar a atuação das suas empresas
oportunidades públicas (v. Capítulo I), antes monopólio do espaço pú- estatais. E o fazem por meio de dois processos antagônicos, que, no
blico, passa a ser também exercitado por instituições privadas, quer entanto, apontam para a inviabilidade da dicotomia aqui tratada.
porque estas assumem a co-responsabilidade pelo atendimento de de- 39.1 Em algumas situações o poder político retira-se da explora-
mandas sociais, quer porque elas se tomam interlocutores obrigatórios ção direta de atividade econômica ou da prestação de serviços públicos.
do Poder Público no processo decisório, sem o quê resta ameaçada a Verifica-se aí urna privatização típica (mediante a venda do controle
efetividade daquela decisão. de empresas estatais) na qual o Estado atua perseguindo as melhores
38. Já do ponto de vista da internacionalização, a separação pú- condições de venda e, portanto, age corno se fosse um agente do mer-
blico/privado põe-se ainda mais sem sentido, na medida em que os cado, a partir da lógica específica da esfera privada (v.g., busca da
inputs internacionais não-estatais (ou seja, não originados pelo poder
130. "Os chefes de governo se tornaram agentes diretos do mercado, como cai-
128. Representação Política ... , p. 110. xeiros viajantes das suas empresas 'competitivas"' (C[ Tarso Genro, "Globalismo e
129. Cf. Pedro de Vega Garcia, "Dificultades y problemas para la construcción Crise Política", in Folha de São Paulo 21.1.1997, p. A-3).
de la igualdad", in Antonio Enrique Pérez Lufi.o (org.), Dereclws Humanos y Constitu- 131. "A reforma do Estado e negociação política", Lua Nova -Revista de Cultu-
cionalismo Ante el Tercer Milenio, p. 277. ra e Politica 37/40.
138 REGULAÇÃO ESTATAL E INTERESSES PÚBLICOS O ESTADO DESAFIADO 139

maximização do lucro) - o que traz perplexidades quando cotejado democráticos). Assim, segundo essa linha de crítica, o fortalecimento
com os pressupostos que devem balizar a ação na esfera pública. da CEE traria o risco de um enfraquecimento dos mecanismos de con-
39.2 Em outras situações o poder político opta por incrementar a trole do processo decisório.
atuação e flexibilizar a gestão das empresas estatais. E o faz mediante 40.2 O fato é que os comitês e secretariados dos blocos econômi-
a adoção de sofisticados mecanismos empresariais. 132 Nestes casos te- cos, assün como os organismos multilaterais, ainda que integrados for-
mos uma privatização atípica, na qual o Poder Público lança mão de malmente por Estados Nacionais, tornrun-se espaços de articulação
instrumentos jurídicos próprios ao mundo privado (fusão e incorpora- dos interesses políticos e econômicos dos diversos atores transnacio-
ção empresarial, joint ventures, acordos de acionistas, contratos de nais. E nesse jogo o interesse dos Estados torna-se apenas mais um
gestão, propriedades cruzadas, grupos societários). Tais mecanismos dos atores em conflito, nem sempre tomado de fonna predominante.
colocam o poder político diante de lógicas e compromissos incogitá- Cada um destes organismos, tanto os secretariados da CEE, do NAFTA
veis se admitida a nítida separação público/privado. e do MERCOSUL como a ONU, o FMI, a OIT, a OMC, o BIRD, o
39.3 Em uma e em outra situação vê-se que o contexto da econo- BID, entre outros, "contempla, crescente1nente, os interesses e os pa-
mia contemporânea aprofunda os processos de interpenetração das es- péis das corporações", desenvolvendo suas atividades a partir do re-
feras pública e privada que se iniciam no Welfare State, levando-os a conhecimento das corporações transnacionais "como estruturas nnm-
um estágio em que se toma praticamente impossível desvencilhar cada diais de poder11 , fazendo, destarte, com que o "imperialismo e a inter-
uma das esferas de modo a detetminar o confinamento do poder polí- dependência sejam recriados e superados pelo globalismo". 133
tico. 41. A globalização e a fragmentação social têm como conseqüên-
40. O fato é que o processo de internacionalização e globalização cia um processo de fracionamento do poder decisório estatal em sua
da economia contribui para a crise da dicotomia em apreço porque manifestação normativa. Decorrência do convívio de diversas fontes
também introduz novos espaços decisórios (supranacionais), nos quais normativas internas e externas às fronteiras do Estado Nacional- nos
os atores privados - mormente as grandes corporações econômicas - diz Celso Campilongo -, "é certo que essa fragmentação nom1ativa
têm um papel relevante, quando não predominante. Como já dissemos, diminui a capacidade do Estado-Nação fazer prevalecer os interesses
é o que ocone no âmbito das experiências de integração econômica, públicos sobre os interesses específicos dos agentes produtivos" 134
das quais o melhor exemplo é a Comunidade Econômica Européia. 42. Isto se põe mais veemente quando tomamos por base o que
40.1 Não é sem motivo que a grande questão hoje em debate na vem ocorrendo no âmbito da Comunidade Econômica Européia e que,
Ciência Política européia seja o chamado "déficit democrático" da não há dúvida, irá crescente1nente ocorrer entre nós caso avancem os
CEE. De maneira bastante sintética, tal crítica volta-se contra o fato esforços de integração do Brasil a blocos econômicos. Ademais, tal
de que ao crescimento da impmtância dos órgãos técnicos da CEE não fato já não nos é distante, como ilustra a recente restrição oferecida
corresponde um fortalecimento do Parlamento Europeu. Seguiria daí pela· Organização Mundial do Comércio ao Programa de Apoio às
um processo segundo o qual a crescente autonomia decisória das Co- Exportações (PROEX) brasileiro, no âmbito da reclamação "Bombar-
missões (espaço predominantemente tecnocrático e sob forte influên- dier vs. En1braer".
cia das corporações econômicas) tenderia a aniquilar o papel do Par- Antoine Winckler 135 ilustra de forma muito feliz a erosão da di-
lamento (espaço predominantemente político e sujeito aos controles cotomia público/privado operada a partir das decisões da Comissão e,
principalmente, da Cmte de Justiça da Comunidade Européia.
I32. É o que se percebe, por exemplo, no setor de telecomunicações (no qual
bons exemplos são as empresas estatais de telefonia da Espanha, Itália e Alemanha, 133. Octávio Ianni, Teorias da G!obalização, p. 149.
com forte participação no controle de empresas privadas ou privatizadas de outros paí- 134. "Teoria do Direito e globalização econômica", in Carlos Ari Sundfeld c Os-
ses) ou, mesmo, no setor postal (onde recentemente a empresa postal alemã adquiriu o car Vilhena Vieira (orgs.), Direito Global, p. 91.
controle de uma concorrente privada, além de participações estratégicas em outra em- 135. "Public et privé: l'absence de préjugé'', in Archives de Philosophie du Droil
presas do setor). 4l/301M315. Os parágrafos seguintes se suportam no referido artigo.
T
140 REGULAÇÃO ESTATAL E INTERESSES PÚBLICOS O ESTADO DESAFIADO 141

42.1 Do ponto de vista do Direito Público, a ação do Direito Co- 42.1.3 Idêntico processo teve lugar na vedação às empresas pú-
munitário (via, principalmente, decisões da Corte) abalou de fonna no- blicas monopolistas de ampliar seu privilégio para abar·car atividades
tável os pressupostos do juspublicismo, tais como a noção de serviço correlatas - posição firmada pela Corte no bojo do caso "Corbeau",
público e de sua prestação necessariamente monopolística. Assim, al- qne teve por objeto o monopólio postal belga. 142 Aqui ficou decidido
gumas decisões tomadas, em especial a partir do início da década de 90, que o Estado não pode lançar mão de monopólios públicos, salvo
abalaram as bases, por exemplo, do que Carlos Ari Sundfeld denomina quando patente a necessidade destes para atendimento de uma neces-
de "velhos serviços públicos de regime jurídico afrancesado". 136 sidade de interesse geral (v.g., a preservação de um serviço universal),
42.1.1 Assim ocorreu com a decisão no caso "Hõffner vs. Macro- e no âmbito estrito desta atividade.
ton"137 e no caso "Merci Convenzionali vs. Sidemrgica Gabrielli (Por- 42.2 As categorias do Direito Privado também são postas a pique
to de Gênova)". 138 Nestes julgados a Corte interferiu diretamente nos pela afirmação do Direito Comunitário. Como assevera Winckler, do
institutos de Direito Público dos Estados-membros para afinnar que mesmo modo que afeta as bases do Direito Público, "o Direito Comn-
quando o Estado intervém no mercado, como empreendedor ou inves- nitálio acaba por criar, em certos casos, uma expropriação parcial das
tidor comercial, ele não pode diferençar-se dos outros operadores do
atividades privadas".' 4'
mercado, devendo perseguir um padrão de eficácia mínima "'sancio-
nado por verdadeiras medidas de desestatização forçada"-' 39 42.2.1 Assim ocorre com as decisões que limitam a abrangência
do direito de propriedade intelectual, das qnais é bom exemplo aquela
42.1.2 Idêntica restrição ao âmbito de aplicação dos institutos de
extraída dos casos "Sterling Dmg" 144 e "Winthrop" 145 (que consagra-
Direito Público pelos Estados-membros da CCE verifica-se nas recen-
ram a "teoria do esgotamento de direitos"), bem como aquelas que
tes decisões daquela Corte de Justiça relativas à extensão dos mono-
obrigaram uma empresa detentora de posição dominante num merca-
pólios sobre serviços essenciais. É o que se verifica, por exemplo, no
do a tomar disponível a seus competidores instalações (inclusive re-
caso "RTT vs. GB-Imno-BM e Sérvices de Télécommunication". 140
Aqui a Corte de Justiça firmou entendimento que não só limita a atua- des) suas que sejam essenciais ao exercício da atividade, como no caso
ção do Estado no domínio econômico, como confina e restringe a pró- "Magic vs. RTE, BBC e ITP", 146 no âmbito do qual restou consagrada
pria amplitude de aplicação de institutos de Direito Público, inclusive a "teoria dos bens essenciais".
a noção de serviço público. Atua, assim, no sentido de "esvaziar os Em todos estes casos as decisões da Corte impuseram ao Direito
Poderes Públicos de seus atributos exorbitantes" qne lhes petmitiam Privado um certo processo de publicização, tomado agora não pela
agir com uma posição dominante nos mercados. 141
142. Julgado C-320191, de 19.5.1993, Rec. CJCE, p. I-2.533. Aqui se diseutia a
136. "A Administração Pública na era do Direito Global", in Carlos Ari Sundfeld possibilidade de um particular prestar serviços postais correlatos não oferecidos pelo
e Oscar Vilhena Vieira (orgs.) Direito Global, p. 161. serviço postal tradicional (público).
137. Julgado C-41190, de 23.4.1991, Rec. CJCE, p. I-1.979. Neste julgado dis- 143. "Public et privé: ... ", Archives de Philosophie du Droit 41/311 (trad. nossa).
cutia-se o monopólio do Estado Alemão sobre a colocação de pessoal nos trabalhos
144. Julgado l5/74, de 31.10.1974, Rec. CJCE, p. 1.147. Neste caso discutiu-se
contratados por empresas privadas.
se a permissão por parte do detentor de um direito de propriedade industrial para co-
138. Julgado 179190, de 10.12.1991, Rec. CJCE, p. I-5.889. Neste caso discutia-
mercialização deste invento num Estado-membro permitiria a restrição à comerciali-
se a validade do monopólio de operações de manutenção portuária outorgado pelo Es-
zação em outro Estado-membro.
tado Italiano a empresas privadas.
139. Antoine Winckler, "Public et privé: ...", Archives de Phi/osophie du Droit 145. Julgado 16174, de 31.10.1974, Rec. CJCE, p. 1.183. Neste caso discutiu-se
4I/307 (trad. nossa). a mesma situação do caso "Sterling Drug", só que agora versando sobre o direito de
140. Julgado C-18188, de 13.12.1991, Rec. CJCE, p. I-5.941, e os julgados co- marca.
nexos C-271190, C-281190 e C-189190, estes de 17.12.1992, Rec. CJCE, p. I-5.833. 146. Julgados T-69189, 70189 e 76189, de 10.7.1991, Rec. CJCE, p. II-4.123. Es-
Nestes casos discutiu-se a conformidade aos tratados de constituição da CEE da am- tes casos opunham três emissoras de televisão européias a uma empresa que pretendia
pliação do privilégio monopolista relacionado a serviços públicos para abranger ativi- editar uma revista com a programação reunida das três emissoras, ao que estas se opu-
dades ancilares (aparelhos terminais ou serviços agregados). nham alegando o direito de autor sobre a programação. A matéria foi resolvida a favor
141. Antoine Winckler, "Public et privé: ...", Archives de Philosophie du Droit da Magic em sede de apelo ao Tribunal da Corte, que consagrou a tese que interdita o
4I/309 (trad. nossa). monopólio ao uso da propriedade intelectual.
REGULAÇÃO ESTATAL E INTERESSES PÚBLICOS O ESTADO DESAFIADO 143
142

perspectiva do Direito Público estatal, mas do Direito Comunitário, fatuamente da dicotomia público/privado, põe em colapso o modelo
que não deixa de ter um caráter vinculante. de Estado Moderno, ao menos na configuração do Estado Nacional. 150
O arcabouço institucional e jurídico vinculado a eles não poderia res-
Fica claro para nós que a emergência do Direito Comunitário no tar incólume.
âmbito da fonnação dos blocos econômicos também acaba por invia-
bilizar, ao menos no tocante aos campos jurídicos, a dicotomia públi- A globalização econômica e a fragmentação social trazem abaixo
co/privado. Isso na medida em que impõe novos padrões juridicos, não o paradigma de Direito Administrativo Moderno. E o fazem começan-
mais balizados pela clássica divisão. do por abalar sua pedra angular - a noção de interesse público. É o
que pretendemos demonstrar no capítulo seguinte.
43. Em suma, à luz das transfonnações acima vistas, parece-nos
superada a perspectiva de limitação da atuação do poder político a par-
tir da separação entre público e privado; e, por outro lado, parece tam-
bém insustentável, sob o prisma teórico, a fmmulação da grande di-
cotomia referida por Bobbio. 147
Nossa preocupação com este aspecto não é, contudo, teórica. Ela
decorre - isto, sim- dos enormes efeitos que o esvaecimento da dico-
tomia traz para a operação do poder político. Mais particularmente,
para o processo de mediação e de definição do interesse público pau-
tante da atividade do poder político (o qual, como vimos, estrutura
grandemente o paradigma de Direito Administrativo moderno). A
atenção a esse ponto parece procedente, pois, como 1nais uma vez alu-
de Habennas: "A integração do setor público com o setor privado cor-
respondia, particularmente, a uma desorganização da esfera pública
que outrora intermediava o Estado com a sociedade". Tal "função me-
diadora" passa a ser exercida, além dos partidos políticos, pelas insti-
tuições "constituídas a partir da esfera privada". 148
Bem aponta Alberto do Amaral Jr. que "o Direito Público tradicio-
nal, que somente conhecera relações de subordinação hierárquica, vê-
se agora dominado pela lógica das relações contratuais na medida em
que contratos semipúblicos celebrados entre partidos, sindicatos, as-
sociações privadas e o próprio Estado tendem a substituir a regula-
mentação legal. O processo de privatização do Direito Público se com-
pleta com a transferência de tarefas públicas a pessoas privadas e com
a utilização pelos Estados de critétios próprios do Direito Privado nas
suas funções de promoção, distribuição e fomento". 149
44. O solapamento dos eixos da concentração e da delimitação
do poder político, decorrente da crise da noção de soberania e do en- 150. Estamos, como já referido anteriormente, mantendo a vinculação ao nosso
ver existente entre as noções de Estado Moderno e Estado Nacional. Isto porque, ao
147. Fenômeno que de fonna alguma escapa do filósofo italiano, confonne ve- nosso ver, é indissociável à construção da Modernidade política a territorialização do
mos em Estado, Govemo e Sociedade, 311. ed., p. 26. poder, como demonstra Octávio Ianni. Inobstante, devemos aludir, como adiante vere-
148. V., neste sentido, J. Habermas, Mudança Estrutural..., p. 209. mos, que estes processos não podem ser lidos como denotadores do fim da idéia de
Estado.
149. Proteção do Consumid01: .. , p. 80.

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