ARTIGOS
COVID-19 E CIRCUITOS DO CAPITAL 21
Rob Wallace, Alex Liebman, Luis Fernando Chaves e Rodrick Wallace
BACURAU 220
Para além do nevoeiro... no meio da barbárie
Frederico Rodrigues Bonifácio e Maria Clara Salim Cerqueira
EDITORIAL
Mas assim se engana, a nosso ver, quem pensa que só se trata da reprodução
“automática” de relações de produção. O capital tem de passar no seu outro, o trabalho
e a produção incessante de mercadorias, para se pôr como o que aparenta ser:
crescimento justo e equilibrado, desenvolvimento sustentável ao infinito, bem-estar
individual e coletivo etc. Como sempre, o sistema busca legitimar-se através da
funcionalidade técnica de uma vida administrada recheada por mercadorias e
discursos de integração (e indignação), no qual o zeloso trabalho de todos encontra o
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seu lugar. E é por isso que os capitalistas ou seus prepostos no governo tomam a
dianteira para reiniciar o curso da máquina momentaneamente extraviada trabalhando
como os funcionários mais ativos do capital. O Brasil, com seu presidente sociopata
liquidando qualquer limite entre público e interesses privados da oligarquia neoliberal
que o sustenta no poder, cumpre o destino de vanguarda mundial nesse assunto,
apesar das aparências contrárias. A classe dirigente veste a máscara de “trabalhador
patriota” que cumpre à perfeição o papel do “capitalista ideal”, aderindo ao uniforme
da ordem e do progresso, com paramentos e gestos protofascistas diários, apontando
como Inimigo número 1 a “liberdade” aparente de quem supostamente parou de
trabalhar na quarentena. Os planos de reforço da austeridade e retomada desenfreada
do crescimento já aparecem no horizonte. Para onde vamos é uma pergunta
inconveniente. É isso que permite tal forma de governo se legitimar e se manter mesmo
quando prega o genocídio “inevitável” de 100, 200… 500 mil, por que não?, reiterando
seus vícios através do império da mentira e obtendo o apoio das classes médias, dos
grandes aos pequenos empresários e de boa parte das camadas populares, que aqui
nem bem receberam o auxílio emergencial (aparecendo-lhes talvez como um benefício
dado pelo seu carrasco) mas já apenas podem sonhar em voltar ao “normal”. O normal
lamentavelmente é a coação ao trabalho precário, um “se virar” na tempestade para
trazer algum sustento para casa. É por isso também que esse governo já choca tão
pouco a opinião pública brasileira e em breve mundial há muito funcionalizada pela
indústria capitalista da cultura (agora agravada pela “era de pós-verdade”). Nesse
intervalo, o consenso mínimo sobre a realidade e o sentido do processo social foi
completamente destruído – menos aquele que estabelece que tudo o que é relevante
para o deus-mercado precisa ficar intocado. Aqui a totalidade coercitiva pode surgir
como uma injúria e um insulto ao “bom senso” democrático. O antigo “espetáculo
integrado” (Debord) se normaliza à exaustão, mas convertendo-se abertamente em
espetáculo desintegrado, no qual a norma é uma espécie de vale-tudo para retomar o
fluxo dos negócios, mais atuais ou mais degradados, a grilagem de terras, a expansão
das fronteiras agrícolas, o desmatamento etc., que já não escondem que servirão
apenas a ilhas de bem-estar que ampliarão as desigualdades, a dessolidarização e o
crescimento insustentável com base em empregos de merda, novas ondas de
encarceramento em massa (racializado), violência (em especial a de gênero) e
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destruição ambiental. Alguns líderes mundiais saem por cima e com o prestígio
reforçado por atitudes humanitárias, é verdade, prometendo retomadas milagrosas do
crescimento perdido já para 2021. Outros têm a sorte de ter o apoio do alto escalão dos
proprietários e é o que basta, restando apenas a questão “ética” de segunda ordem de
como fazer para esconder o elevado número dos cadáveres da opinião pública. No
fundo, se o vírus não afeta muito mais a classe média e os ricos, eis o que importa, é o
que se requer para voltar à rotina, agora em ritmo redobrado de exploração para
compensar os meses parados. Em todos os casos trabalha-se militarmente como nunca
e por isso esse governo da crise como governo da morte é perfeito, alimentando o ódio
e o ressentimento popular contra quem exige medidas de proteção social e mudanças
estruturais imediatas. Só assim, de fato, reforçado pelo fanatismo e a militarização do
trabalho, como reside em seu conceito, o “capital é produtivo” (como dizia Marx no
Capítulo VI Inédito de O capital, a respeito da reprodução das relações de produção
como um dos produtos fetichistas finais da realização do capital).
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Como todo leitor que acompanha a Sinal de Menos sabe, sempre estimamos a
a crítica social complexa embutida em obras de arte, sem compartimentações entre
teoria crítica e teoria estética. Assim, os próximos textos assumem esse risco de falar de
arte e crítica de arte nesse momento grave em que o sistema imerge na falsidade
espetacular e a extrema-direita flerta com as estratégias de manipulação e estetização
política do fascismo. Levar a sério a literatura como potente reveladora do processo
social é o que CLÁUDIO R. DUARTE procura no ensaio Em estado de fazenda –
Lima Barreto e o desmanche da ilusão nacional. Antes marginalizado, hoje
ainda talvez subestimado pela opinião pública, Lima Barreto sai a campo para tomar à
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O volume 2 de nosso número 14 deve ser lançado muito em breve, com textos
de calibre mais teórico, acompanhando mas cruzando, assim, para o lado oposto dos
que pensam que entrar em movimento é tudo e é o que basta.
Maio de 2020.
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ORIGENS DA PANDEMIA
Rob Wallace – Entrevista com Yaak Pabst
Depende do estágio em que você está no surto local do Covid-19: inicial, pico, final?
Qual a qualidade da resposta de saúde pública da sua região? Qual é a sua composição
populacional? Qual a sua idade? Você tem deficiências imunológicas? Qual o seu
estado de saúde? Para indagar sobre uma possibilidade indiagnosticável, a sua
imunogenética, a genética subjacente à sua resposta imunológica, se alinha com o vírus
ou não?
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Com certeza, e estamos ainda apenas no início do surto. É importante entender que
muitas novas infecções mudam no curso da epidemia. A infecciosidade, a virulência, ou
ambas, pode ser atenuadas. Por outro lado, outros surtos tem virulência intensificada.
A primeira onda da pandemia de gripe na primavera de 1918 foi uma infecção
relativamente moderada. Foram a segunda e a terceira ondas naquele inverno
adentrando 1919 que mataram milhões.
Seria o primeiro a celebrar se esse surto se revelar fraco. Mas esses esforços para
descartar o Covid-19 como um perigo potencial citando outras doenças letais, em
especial a gripe comum, é um dispositivo retórico infeliz para desviar a preocupação
com o coronavírus.
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Não faz muito sentido comparar dois patógenos em pontos diferentes de suas curvas
epidemiológicas. Sim, a gripe sazonal infecta muitos milhões no mundo todo a cada
ano, matando, segundo estimativas da OMS, até 650,000 pessoas. O Covid-19, porém,
está apenas iniciando a sua jornada epidemiológica. E, diferentemente da gripe, não
temos vacina e tampouco imunidade de rebanho para desacelerar a infecção e proteger
as populações mais vulneráveis.
O perigo real de cada novo surto é o fracasso ou, melhor dizendo, a recusa conveniente
de compreender que cada novo Covid-19 não é um incidente isolado. O aumento da
incidência dos vírus esta estreitamente vinculado à produção de alimentos e à
rentabilidade das empresas multinacionais. Quem pretende compreender porque os
vírus estão tornando-se mais perigosos deve investigar o modelo industrial da
agricultura e, mais concretamente, da produção pecuária. Na atualidade, poucos
governos e poucos cientistas estão preparados para fazê-lo. Muito pelo contrário.
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particular que descartam as causas estruturais que estão levando múltiplos patógenos
marginais a se tornarem celebridades mundiais de forma repentina, um atrás do outro.
Quem é o culpado?
Neste momento, não há patógenos que estejam fora do circuito do capital. Mesmo os
mais remotos se encontram afetados, ainda que perifericamente. O ebola, o zika, o
coronavírus, a reaparição da febre amarela, uma variedade de gripes aviárias e a peste
suína africana são alguns dos muitos patógenos que saem das zonas mais remotas do
interior até os meandros periurbanos, as capitais regionais, até chegar à rede mundial
de transportes. Dos morcegos frugívoros no Congo até matar os banhistas de Miami,
são poucas semanas.
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A agricultura controlada pelo capital, que substitui as ecologias mais naturais, oferece
os meios exatos pelos quais os patógenos podem evoluir em fenótipos mais virulentos e
infeciosos. Não se poderia projetar um sistema melhor para criar doenças mortais.
Como é isso?
O quê?!
Sim e não. Há pistas espaciais que apontam na direção dessa noção. O rastreio dos
contatos relacionou as infecções com o mercado atacadista de frutos do mar de Hunan
em Wuhan, onde se vendiam animais selvagens. A amostragem ambiental parece
apontar para o extremo oeste do mercado onde ficavam os animais selvagens.
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alimentos silvestres estão se formalizando cada vez mais como setor econômico. Mas
sua relação com a agricultura industrial vai além de simplesmente compartilhar os
mesmos investidores. À medida que a produção industrial – porcos, aves domésticas e
similares – se expande até as matas primárias, ela exerce pressão sobre os
comerciantes de alimentos silvestres para que se adentrem mais nas matas em busca
de populações animais, aumentando a interface de contato com novos patógenos e as
infecções por estes, incluindo o Covid-19.
Sim, mas isso não é uma excepcionalidade chinesa. Os EUA e a Europa serviram como
marco zero para novas influenzas também, como recentemente o H5N2 e o H5Nx, e
suas multinacionais e representantes neocoloniais impulsionaram o surgimento da
ebola na África Ocidental e do zika no Brasil. Os burocratas da saúde pública dos
Estados Unidos protegeram o agronegócio durante as eclosões de H1N1 (2009) e
H5N2.
Sim. O perigo de um patógeno desse tipo é que as autoridades sanitárias não conhecem
a distribuição estatística do risco. Não temos nem ideia de como o patógeno responde.
Passamos de um surto em um mercado a infecções disseminadas por todo o mundo em
questão de semanas. O patógeno poderia simplesmente se exaurir. Isso seria ótimo,
mas não sabemos. Uma melhor preparação melhoraria a chance de reduzir a
velocidade de escape do patógeno.
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Usar um surto para testar a última novidade em termos de controle autocrático para
estendê-la após o surto é o capitalismo de desastre desgovernado. Em termos de saúde
pública, creio que é melhor equivocar-se por excesso de confiança e compaixão, que
são variáveis epidemiológicas importantes. Sem qualquer uma das duas, as jurisdições
perdem o apoio de suas populações. O sentido da solidariedade e de respeito comum é
uma parte fundamental para suscitar a cooperação que necessitamos para sobreviver
juntos a essas ameaças. Quarentenas autoimpostas com o apoio adequado – controle
por parte de brigadas de bairro treinadas, caminhões de alimentos que vão de porta em
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Para reduzir a aparição de novos surtos de vírus, a produção de alimentos tem que
mudar radicalmente. A autonomia dos agricultores e um setor público forte podem
frear a degradação ambiental irreversível e as infecções descontroladas. Introduzir
variedades de gado e de cultivos – e uma repopulação estratégica da fauna silvestre –
tanto à escala da exploração agrícola individual quanto do nível regional. Permitir que
os animais destinados à alimentação se reproduzam in situ para transmitir as
imunogenéticas bem-sucedidas. Conectar a produção justa com a circulação justa.
Subsidiar preços e programas de compras dos consumidores que apoiam a produção
agroecológica. Defender estes experimentos tanto das compulsões que a economia
neoliberal impõe aos indivíduos e às comunidades, quanto da ameaça repressiva do
Estado dirigido pelo capital.
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O agronegócio como modo de reprodução social deve terminar para sempre, mesmo
que somente por uma questão de saúde pública. A produção altamente capitalizada de
alimentos depende de práticas que colocam em risco a humanidade inteira, neste caso
ajudando a desencadear uma nova pandemia mortal. Deveríamos exigir que os
sistemas alimentares sejam socializados de tal forma que patógenos tão perigosos não
cheguem a surgir. Para isto será necessário, em primeiro lugar, reintegrar a produção
de alimentos às necessidades das comunidades rurais. Isto requererá práticas
agroecológicas que protejam o meio ambiente e os agricultores enquanto eles
produzem nossos alimentos. No quadro global, devemos curar as rupturas metabólicas
que separam nossas ecologias de nossas economias. Em resumo, temos um planeta a
ganhar.
(Traduzido por Daniel Cunha a partir da versão em inglês, com consulta das perguntas em
alemão, tal como publicadas na rede:
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Cálculo
A China, seu surto inicial agora em contracção, volta a respirar mais facilmente.
A Coreia do Sul e Singapura também. A Europa, especialmente Itália e Espanha, e cada
vez mais outros países, já se dobram sob o peso das mortes, ainda no início do surto. A
América Latina e a África só agora começam a acumular casos, alguns países
preparando-se melhor do que outros. Nos Estados Unidos, um país que se considera o
mais rico da história do mundo, o futuro próximo parece sombrio. O surto não tem o
pico previsto para antes de maio e já os trabalhadores da saúde e os doentes dos
hospitais estão a lutar pelo acesso ao fornecimento cada vez mais reduzido de
equipamentos de protecção individual.
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mas isolamento suficiente para que casos isolados não sejam capazes de produzir
novas cadeias de infecção. Apenas 5% dos susceptíveis em contacto com um caso na
China foram subsequentemente infectados. Com efeito, a equipe Taleb prefere o
programa de supressão da China, saindo todos o suficientemente rápido para levar o
surto à extinção, sem entrar numa maratona de dança entre o controle da doença e a
garantia de que a economia não tenha escassez de mão de obra. Por outras palavras, a
abordagem estrita (e intensiva em recursos) da China liberta a sua população da
sequestração de meses – ou mesmo anos – que a equipe do Imperial recomenda a
outros países.
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uma simulação da pandemia em 2017, mostrando que o país não estava preparado.
Nem quando, como declarado numa manchete da Reuters, os Estados Unidos
“cortaram o trabalho de especialista do CDC na China meses antes do surto do vírus”,
ainda que a falta de contacto directo precoce de um especialista americano no terreno
na China tenha certamente enfraquecido a resposta dos EUA. Nem começou com a
infeliz decisão de não usar os kits de teste já disponíveis fornecidos pela Organização
Mundial de Saúde. Juntos, os atrasos nas primeiras informações e a falta total de testes
serão sem dúvida responsáveis por muitas, provavelmente milhares de vidas perdidas.
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Intervenção
O que deve ser feito em vez disso? Primeiro, precisamos entender que, ao
responder à emergência da maneira correcta, ainda estaremos a enfrentar tanto a
necessidade como o perigo.
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sociedade com base na expropriação, desde o aluguel até às sanções contra outros
países, para que as pessoas possam sobreviver tanto à doença como à sua cura.
Até que tal programa possa ser implementado, no entanto, a maior parte da
população está a ser deixada ao abandono. Sem prejuízo de uma pressão contínua a ser
exercida sobre governos recalcitrantes, no espírito de uma tradição largamente perdida
na organização proletária que remonta há 150 anos atrás, as pessoas comuns que são
capazes devem juntar-se aos grupos de ajuda mútua e brigadas de bairro que estão a
surgir. O pessoal profissional de saúde pública que os sindicatos possam dispensar
deve treinar esses grupos, para impedir que actos de bondade disseminem o vírus
involuntariamente.
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Muito mais que a pesca, a alimentação selvagem mundial é um sector cada vez mais
formalizado, cada vez mais capitalizado pelas mesmas fontes que apoiam a produção
industrial. Apesar de não ser nada semelhante na magnitude da produção, a distinção é
agora mais opaca.
Infiltração
Esta conexão precisa ser elaborada, tanto para nos ajudar a planejar durante
este surto quanto para entender como a humanidade se meteu numa tal armadilha.
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América Latina e África, perdeu um ponto crítico. O foco nas zonas de surtos ignora as
relações compartilhadas pelos actores económicos globais que moldam as
epidemiologias. Os interesses do capital, que apoiam as mudanças – induzidas no
desenvolvimento e na produção – no uso da terra e no surgimento de doenças em
partes subdesenvolvidas do globo, recompensam os esforços para atribuir a
responsabilidade pelos surtos às populações indígenas e às suas assim consideradas
práticas culturais “sujas”. A preparação de carne de animais selvagens e os enterros
domésticos são duas práticas culpadas pelo surgimento de novos agentes patogénicos.
O delinear de geografias relacionais, em contraste, de repente transforma Nova Iorque,
Londres e Hong Kong, fontes-chave do capital global, em três dos piores focos do
mundo.
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Ecossistemas nos quais tais vírus “silvestres” eram em parte controlados pelas
complexidades da floresta tropical estão a ser drasticamente reduzidos pelo
desflorestamento liderado pelo capital e, no outro extremo do desenvolvimento
periurbano, por déficits de saúde pública e de saneamento ambiental. Enquanto muitos
agentes patogénicos silvestres estão a morrer com as suas espécies hospedeiras como
resultado disso, um subconjunto de infecções que antes se esgotavam relativamente
rápido na floresta, ainda que apenas por uma taxa irregular de encontro com suas
espécies hospedeiras típicas, estão agora a propagar-se entre populações humanas
susceptíveis, cuja vulnerabilidade à infecção é frequentemente exacerbada nas cidades
por programas de austeridade e regulação deteriorada. Mesmo com vacinas eficazes, os
surtos resultantes são caracterizados por maior extensão, duração e dinâmica. O que
antes eram disseminações locais são agora epidemias que se arrastam através das redes
globais de viagens e comércio.
Por esse efeito de paralaxe – por uma simples mudança do contexto ambiental –
padrões antigos como ébola, Zika, malária e febre amarela, evoluindo
comparativamente pouco, todos eles se transformaram em ameaças regionais. De
repente, de uma disseminação ocasional para aldeões remotos, eles passaram a infectar
milhares de pessoas nas grandes cidades. No sentido ecológico inverso, até mesmo os
animais selvagens, que eram comumente há muito tempo reservatórios de doenças,
estão sofrendo as consequências. Com as suas populações fragmentadas pelo
desflorestamento, macacos nativos do Novo Mundo susceptíveis à febre amarela
selvagem, à qual estavam expostos há pelo menos cem anos, estão a perder a
imunidade de grupo e a morrer às centenas de milhares.
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Expansão
Por mais que não seja intencional, toda a linha de produção está organizada em
torno de práticas que aceleram a evolução da virulência patogénica e a transmissão
subsequente. O cultivo de monoculturas genéticas – animais e plantas com genomas
quase idênticos – remove os amortecedores imunológicos que, em populações mais
diversas, retardam a transmissão. Os agentes patogénicos agora só podem evoluir
rapidamente, dados os genótipos imunológicos comuns dos hospedeiros. Enquanto
isso, as condições de aglomeração deprimem a resposta imunológica. O tamanho da
população animal nas grandes fazendas e a densidade das fazendas industriais
facilitam uma maior transmissão e a infecção recorrente. O alto rendimento, parte de
qualquer produção industrial, veicula um fornecimento continuamente renovado de
susceptibilidades a nível de curral, fazenda e região, removendo os limites da evolução
da letalidade patogénica. O alojamento de muitos animais juntos recompensa as
linhagens que melhor podem se disseminar através deles. Diminuir a idade de abate –
para seis semanas nas galinhas – é provável que seleccione agentes patogénicos
capazes de sobreviver a sistemas imunológicos mais robustos. Aumentar a extensão
geográfica do comércio e exportação de animais vivos aumenta a diversidade dos
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Libertação
Há uma ironia reveladora em Nova York, uma das maiores cidades do mundo,
em confinamento contra a COVID-19, à distância de um hemisfério das origens do
vírus. Milhões de nova-iorquinos estão escondidos no parque habitacional
supervisionado até recentemente por uma tal Alicia Glen, até 2018 vice-prefeita para a
habitação e desenvolvimento económico da cidade. Glen é uma ex-executiva da
Goldman Sachs, tendo supervisionado o Urban Investment Group desta empresa de
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investimentos, que financia projectos nos tipos de comunidades que as outras unidades
da empresa ajudam a guetizar.
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Como caracterizar tais sistemas, como fizemos acima, para além do episódico e
circunstancial? O nosso grupo está a meio do desenvolvimento de um modelo que
ultrapasse os esforços da medicina colonial moderna, presentes na eco-saúde e na One
Health [Uma só Saúde], que continuam a culpar os pequenos proprietários indígenas e
locais pelo desflorestamento que leva ao surgimento de doenças mortais.
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ou no seu curso clínico, mas também no campo das relações ecossistémicas que o
capital e outras causas estruturais têm desactivado em seu próprio benefício. A grande
variedade de agentes patogénicos, representando diferentes taxas, hospedeiros, modos
de transmissão, percursos clínicos e resultados epidemiológicos, todos os sinais de
identificação que nos enviam de olhos esbugalhados a pesquisar a internet a cada
surto, marcam diferentes partes e caminhos ao longo dos mesmos tipos de circuitos de
uso da terra e de acumulação de valor.
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.
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https://monthlyreview.org/
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O CRESCIMENTO E A CRISE DA
ECONOMIA BRASILEIRA
NO SÉCULOXXI COMO CRISE DA
SOCIEDADE DO TRABALHO
Bolha das commodities, capital fictício e crítica do valor-dissociação1
Fábio Pitta
1- Introdução
A opção por Jair Bolsonaro como presidente do Brasil nas eleições de 2018,
posição que assumiu a partir de janeiro de 2019, é relativamente recente e carece ainda
de uma variedade de análises mais aprofundadas. Candidato de extrema-direita,
amalgamou uma miríade de eleitores de todas as camadas sociais brasileiras
(ANDERSON, 2019), incluindo boa parte de antigos eleitores do Partido dos
Trabalhadores (da esquerda institucional), os quais inclusive haviam sido
“beneficiados” pelas políticas de distribuição de capital fictício promovidas por Luís
Inácio ‘Lula’ da Silva e Dilma Rousseff, ao longo de seus 13 anos de governo (2003-
2016).
1 O presente texto foi redigido no final de 2019, após alguns meses na Alemanha e Europa, onde
apresentei as formulações do mesmo em diferentes círculos do Grupo Exit! como em Berlin,
Hamburgo, Koblenz, Kyllburg, Bochum, Darmstadt, Nuremberg, Paris e na Reunião do Conselho
(anual) do Exit!, em Junho de 2019. Assim, a apresentação foi desdobrada, concluída e apresentada
como texto, com previsão de publicação na Revista Exit!, número 18, de 2020/2021. Antes do início da
redação deste, a formulação final sobre a crise brasileira ainda foi apresentada no Seminário
“Territorialização do Capital e Gestão Catastrófica do Colapso” organizado pelo Grupo de Crítica do
Valor-Dissociação de São Paulo (Grupo de Sexta do LABUR, do qual sou parte), em agosto de 2019.
Agradeço a todos que participaram comigo de diferentes formas de tais processos.
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2 A ideia aqui não é esgotar o fenômeno relacionado à eleição de Bolsonaro e seu significado. Como
forma de indicação, apesar de discordamos do argumento geral do texto e das determinações
escolhidas por seu autor, Perry Anderson (2019) pode auxiliar na descrição de tal fenômeno para o
público internacional, a partir de um ponto de vista vinculado ao marxismo tradicional (KURZ, 2004;
ver discussão sobre tal formulação no item 2 do presente texto, a seguir). Inclui-se nesta apresentação
de Anderson uma discussão acerca do golpe de Estado que culminou no impeachment de Dilma
Rousseff (2016) e na prisão do ex-presidente Lula (2018), acusado de corrupção. Importa a nós, aqui,
observarmos o ponto de chegada – enquanto totalidade concreta da contradição em processo do valor-
dissociação como forma social capitalista – de adesão de grande parcela dos brasileiros a um governo
de extrema-direita, a fim de podermos relacioná-lo com a crise econômica brasileira recente (cujas
mediações necessárias serão apresentadas ao longo de todo o texto) como explicitação da inserção da
particularidade brasileira na crise imanente e fundamental do capital, tomada de posição crítica que
adotaremos aqui.
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.
4 “Em última análise, na realidade, a vida social não é regulada por meio das decisões conjuntas e
conscientes dos membros da sociedade democrática. Os procedimentos democráticos da liberdade de
expressão, da tomada de decisão política e das eleições livres não estão a montante, mas a jusante dos
efeitos da “física social” dos mercados anônimos. Todas as decisões tomadas pelas instituições
democráticas não representam qualquer controle autônomo sobre a utilização plena de sentido dos
recursos comuns, mas são sempre já pré-formadas por meio do automatismo do sistema econômico,
que, enquanto tal, não é democraticamente negociável, porque está associado a uma “natureza”
[social] inelutável. Isto justifica a priori a mobilização mais louca e mais absurdamente violenta dos
recursos materiais e humanos” (KURZ, 1999b).
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.
A introdução acima, por sua vez, tem apenas como intenção nos permitir fazer a
seguir uma discussão categorial sobre a particularidade brasileira no século XXI, no
que se refere às categorias do capital entendido como totalidade fragmentada do
valor-dissociação (SCHOLZ, 2009 e KURZ, 2014) e sua contradição em processo
(MARX, 1983) como dominação da forma social capitalista sobre os seres humanos,
como tais formados neste processo social mesmo.
No presente texto, darei ênfase ao processo histórico recente das categorias de
capital, terra, trabalho e dissociação, a fim de lograr a crítica às tentativas do campo
autodenominado “progressista”, “keynesiano” ou “socialista” de analisar a crise
econômica brasileira recente. Tais tentativas partem de uma leitura de economia
política ou de uma crítica da economia política, esta a partir do ponto de vista de defesa
do trabalho do marxismo tradicional, como seu limite de crítica. Desta forma, o quadro
geral da crítica reduzida que se promoveu até aqui no âmbito da economia também se
atém às mesmas referências e formulações teóricas até aqui existentes, a despeito das
particularidades da crise mundial do capital de 2008, estando a produção de
mercadorias mediada determinantemente pelo mercado de capitais globalizados
(KURZ, 1999b), designado convencionalmente por “sistema financeiro”. De nosso
ponto de vista, a análise da inserção brasileira na bolha das commodities e a recente
crise econômica brasileira deveria colocar em questão os velhos paradigmas teóricos de
análise, o que não ocorre dado o apagamento que a lógica dedutiva destes promove a
fim de fazer a realidade caber em seus pressupostos teóricos e nos seus campos já
estabelecidos de práticas políticas. Em geral, o que veremos são posições que defendem
a insuficiência de processos de modernização promovidos pelos governos do PT,
recolocando exigências de industrialização a partir de posturas dualistas e
desenvolvimentistas, que leem o Brasil como atrasado frente a supostas economias
centrais do capitalismo, sendo que foi em tais países que a crise do capital de 2008
manifestou-se inicialmente. No limite do que se pretende mais radical
(“revolucionário”), as formulações baseadas em interpretações de teoria da
dependência, vinculadas ao marxismo tradicional, atualizadas para o que designam
como momento “financeirizado” da acumulação capitalista, se limitam a classificar as
camadas rentistas como “especuladores” estrangeiros e nacionais “parasitários” que
teriam “sugado” a indústria nacional e seus trabalhadores e teriam se “aproveitado” da
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crise econômica para acumularem e manterem seu domínio social hoje global. Sua
análise da atual crise econômica brasileira formula uma leitura em busca das causas
econômicas da mesma, a fim de tentar recolocar o país em retomada de crescimento,
em aberta apologia da riqueza capitalista como monstruosa coleção de mercadorias
(MARX, 1983). Isso a partir da posição teórica de um sujeito a observar a sociedade
como objeto a ser conhecido, que se coloca de fora do processo histórico, analisa-o e
propõe as soluções para os seus aparentes problemas e assim acaba por reproduzir as
bases sociais deste processo mesmo.
Tais críticas reduzidas reafirmam ou no mínimo hipostasiam, assim, os
fundamentos sociais comuns da concorrência universal, do trabalho e do patriarcado
como única forma de sociabilidade possível e reconduzem à determinação da
valorização do valor como fim tautológico abstrato e absurdo e que fica por isso
abstraído e não criticado.
O procedimento crítico que pretendemos desdobrar no presente texto (expresso
em sua própria estrutura) visa incorporar a sugestão de um realismo dialético
(SCHOLZ, 2009) para o cotejamento entre a revisão de uma bibliografia por nós
selecionada – que ainda no campo da parcialidade da economia (como uma área
autonomizada das ciências modernas) tentou interpretar a recente crise econômica
brasileira – e elementos da particularidade do processo histórico recente das categorias
capital, terra, trabalho e dissociação no Brasil, a fim de que estes neguem as conclusões
de tal bibliografia, por meio de um movimento de apreensão da sociedade como
totalidade concreta (MARX, 2008; SCHOLZ, 2009). Já importa adiantarmos que a
categoria marxiana de capital fictício (MARX, 1984c) será para nós aqui central e a
mediação que a mesma permite como forma de ser do momento histórico hodierno
exigirá que também apresentemos uma discussão acerca das categorias do capital a
nível mundial, a fim de relacionarmos o período recente brasileiro ao momento atual
do capital como totalidade. Tal discussão sobre o presente momento histórico
capitalista como totalidade será levada a cabo a partir da análise crítica de textos
selecionados sobre a crise do capital de 2008 e sua relação com o momento capitalista
a partir dos anos 70 e o que ficou conhecido por certos autores como seu processo de
“financeirização”, de “dominância financeira” ou momento de acumulação baseado no
“neoliberalismo”, do qual tal “financeirização” é parte.
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concreta por meio da crítica social que explicite os pressupostos sociais negativos do
fenômeno de boom e crise da economia brasileira no século XXI, a fim de aprofundar a
discussão teórica acerca dos mesmos. Para nós, o momento da reflexão teórica é
fundamental pois visa explicitar a necessidade de suplantação de uma forma de relação
social objetificada e naturalizante, momento que não se propõe buscar a realização de
uma suposta identidade sujeito-objeto, mas tem por horizonte a crítica radical da
forma moderna de relação entre os homens por meio das coisas e seu fetichismo da
mercadoria e de sujeito (MARX, 1983), forma mesma de dominação social, a fim de
suplantá-la.6
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preços dos títulos de propriedades nos mercados financeiros globais, aparecendo aos
capitalistas como redução na oferta de crédito internacional (denominado por estes
“problema de liquidez”) e consequente diminuição da demanda por mercadorias e
retração do comércio mundial (TOOZE, 2018). Entre 2009 e 2010 o PIB no Brasil
cresce novamente, mas, a partir de 2012, isso já não se repete. O índice de inflação
superou as margens (SINGER, 2018, p. 67) estipuladas pelo governo (6,5 % ao ano), já
em 2013, o que afetou imediatamente as camadas médias, baixas e miseráveis da
sociedade brasileira (SINGER, 2018); e, por último, indicador relevante para as
análises do marxismo tradicional, a taxa de lucro também apresentou declínio, já a
partir de 20108 (Gráfico 2). Podemos adiantar, porém, que tal queda na taxa de lucro
não travou imediatamente os investimentos no setor convencionalmente designado por
produtivo, ou seja, o aumento da composição orgânica dos capitais continuou a
ocorrer, até por volta de 2013 (REZENDE, 2016 e CARNEIRO, 2018, p. 24). Rezende
(2016) inclusive destaca que após a crise de 2008, o investimento se recuperou
rapidamente à revelia dos sinais econômicos – queda do comércio mundial e da taxa de
lucro, por exemplo – e é justamente a essa característica que o autor remete a
“financeirização” da economia brasileira, como veremos.
A partir de 2014 tem-se no Brasil deflação dos preços dos ativos financeiros em
geral (títulos de propriedade), alta inflação; explosão do endividamento (das famílias,
das empresas e do Estado tanto interno quanto externo; REZENDE, 2016); redução da
produção, comercialização e consumo de mercadorias; e recuperações judiciais e
falências de empresas em números massivos (CARNEIRO, 2018 e SINGER, 2018).
8 Faz-se mister adiantarmos aqui que tal taxa de lucro não logra evidenciar a separação entre lucros
provenientes de simulação de acumulação capitalista por meio de capital fictício, inclusive para
capitais industriais, daqueles lucros ou rendas provenientes do capital financeiro. Também tal taxa de
lucro apaga uma importante diferenciação entre trabalho produtivo e improdutivo, equiparando tudo.
Importa destacar, porém, que nem mesmo uma simulação fictícia de valorização de valor lograva se
realizar a partir do momento aqui tematizado, o que aparece também na queda do PIB,
consequentemente.
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Fonte: Rezende (2016, p. 17), dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
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EUA como momentos relevantes para a queda nas taxas de lucros das empresas
brasileiras, como veremos, estes tentam ainda vislumbrar a possibilidade de
autonomia da economia nacional produtiva e capaz de valorização de valor por si
mesma (do que discordamos) frente aos impactos da crise do capital a nível mundial, a
partir de 2008 e ao aprofundamento da crise europeia e da desaceleração da economia
chinesa, a partir de 2011 (TOOZE, 2018). É a forma de apreensão do que designam por
processo de “financeirização do capitalismo”9 (BRAGA, 2017), compreendido do ponto
de vista de um individualismo metodológico10 (KURZ, 2014), que permite tal
aparência de autonomia hipostasiada da relação entre economia brasileira e
capitalismo global e seu momento histórico como forma de relação social, como se
aquela pudesse se desacoplar destas e valorizar o valor de forma autônoma caso
efetivamente alcançasse certos patamares de produtividade e composição orgânica de
seus capitais. Um paradigma de progresso, modernizador e produtivista continua a
imperar nas mentes dos interlocutores a quem assim dirigiremos nossas críticas.
Apresentarei aqui algumas das tentativas de explicação para tal fenômeno de
crise econômica brasileira. Selecionei aquelas mais relevantes que incorporam uma
discussão sobre “financeirização” da economia brasileira e que abordam as categorias
de capital a juros ou capital fictício para intermediar o nível nacional brasileiro com o
9Remetemos o leitor para a explicação de Braga (2017) para o designado processo de “financeirização do
capitalismo”. Tal autor foi um dos primeiros a caracterizar (já nos anos 1980) desta forma o
capitalismo mundial a partir dos anos 1970 e descreve o histórico de apropriações do conceito. Não o
utilizamos como categoria de análise, mas para nos referirmos a um conjunto de autores com os quais
dialogaremos aqui e que, cada qual a seu modo, perceberam a intermediação do capital financeiro
(portador de juros ou fictício) como condição para o capitalismo a partir dos anos 1970. Como
veremos, discordamos aqui desta forma de classificação dos desdobramentos históricos do processo
social capitalista a partir de tal década, ao formularmos à nossa maneira a determinação do capital
fictício para o momento de crise do capitalismo desde então.
10 Aqui nos apropriamos da crítica que Kurz (2014, p. 29) faz a um procedimento de teoria positiva do
conhecimento que constitui em, na observação de um objeto (ou um fenômeno ou conjunto destes) a
ser conhecido, abstrair intelectualmente suas características mais gerais a partir de um caso individual
e formulá-las no conhecimento enquanto essenciais e constitutivas. Kurz está dedicado, por exemplo, à
crítica das apreensões que deduzem o plano do capital global a partir de diferentes capitais
individuais. Desta forma, a acumulação de capital por um capital individual ou setor produtivo não
significa em si que o capital a nível global, enquanto totalidade, valorize o valor. Assim, o que compõe
o todo social não é a soma das suas partes e o que define a essência (negativa) dos fenômenos é a
mediação social das partes enquanto totalidade. O momento histórico da forma da relação social
(valor-dissociação) define a parte, não existindo partes autônomas em relação à totalidade, mas
apenas autonomizadas, ou seja, aparentam estar separadas sem o serem, já que mediadas. Se a
sociedade capitalista como totalidade fragmentada (SCHOLZ, 2009) apresenta uma simulação de
reprodução por meio da mediação do capital fictício em razão de sua crise fundamental, a partir dos
anos 1970 (KURZ, 2014), não é possível separar a economia nacional brasileira deste momento da
totalidade. Veremos como isso se dá concretamente adiante.
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11 O carry trade é um tipo de investimento financeiro que visa aproveitar o diferencial de juros para
captação de dívida em determinados mercados e aplicar em taxas de juros maiores pagas em outros,
aproveitando também o diferencial no câmbio da transação. Após 2008, com o quantitative easing
(QE) de bancos centrais de países como EUA e de países europeus e de consequente baixas taxas de
juros, era interessante adquirir uma dívida (principalmente em dólar) fora do Brasil e aplicar tal
dinheiro em dívida interna brasileira, em reais, que pagavam taxas de juros maiores. Tal investimento
foi muito utilizado por todo tipo de investidor e só foi sendo reduzido a partir de 2011 e 2012, com a
taxação com impostos sobre o mesmo por Guido Mantega, Ministro da Fazenda no primeiro mandato
de Dilma Rousseff.
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12 Para a crítica a este procedimento, ver por exemplo, Kurz (2004), principalmente o item “3) O
conceito negativo de substância do trabalho abstrato na crítica da economia política de Marx”. Para
ele, ali, o valor de uso e a corporeidade da mercadoria também são abstrações, em relação
imanentemente dialética com a abstração do valor. Hipostasiar qualquer um dos polos do duplo da
mercadoria significa projetar para outro momento histórico uma abstração real da forma social do
valor-dissociação, incorrendo em manter, seja pro passado, seja para o futuro, fundamentos dessa
forma mesma. Por exemplo, as abstratas noções de corporeidade das mercadorias e sua utilidade só
podem ser assim formuladas em razão da abstração que o valor faz das diferenças qualitativas das
distintas mercadorias, o que permite a equiparação entre trabalho e coisas e a existência social da
mais-valia, a valorização do valor como fim-em-si-mesmo, a dinâmica de crise, o capital fictício e a
dissociação também como constitutiva de sua (do valor) totalidade fragmentada. A ontologização do
trabalho concreto e do valor de uso reproduzem, assim, os fundamentos sociais mesmos que
constituem a possibilidade de desacoplamento entre dinheiro e valor, capital e trabalho, como em
Kurz (2004); o que não está limitado ao desacoplamento entre abstrato e concreto, dinheiro e
materialidade dos valores de uso, como em Belluzzo. Para uma crítica da ontologia do trabalho em
Belluzzo (2012) ver Pitta (2016).
13 Mantidas as devidas diferenças conceituais entre economia política e marxismo, poderemos nos apoiar
no quadro geral até aqui apresentado, a fim de não estorvar o leitor com a repetição acerca da
interpretação individual de cada autor para os processos econômicos já descritos.
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14 Fazendo ainda jus ao argumento de Batista (2018), a taxa de lucro volta a subir parcialmente (2009-
2010) quando da subida dos preços das commodities entre 2009 e 2011, 2012, o que teria aprofundado
o apresentado no excerto acima (BATISTA, 2018).
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relação de troca e sua correspondente razão instrumental, ver Scholz (2009) e Kurz (2007).
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não biologizado, nem naturalizado, mas também não pode ser simplesmente deduzido
do polo do valor (SCHOLZ, 2009).
Aliás, como as formulações que até aqui apresentamos ficam apenas no âmbito
disciplinar parcelar da Economia18, nada é referido criticamente por elas em relação a
patriarcado, racismo, antissemitismo ou nível psicossocial da contradição em processo
do valor-dissociação como forma social basilar.
O último autor a quem desejamos ainda nos referir para abordarmos a economia
brasileira desde 2003, é Felipe Rezende (2016), o qual se utiliza da leitura dos ciclos
financeiros do capitalismo do keynesiano (socialista) Hyman Minsky, no texto
Financial fragility, instability and the Brazilian crisis: a Keynes-Minsky-Godley
approach.
O interesse em Rezende (2016) se dá por razões paradoxais. Como seu pano de
fundo teórico podemos replicar aqui as formulações de Belluzzo (2012) já expostas
acima. Para ele a crise no capitalismo é cíclica e financeira, ou seja, o desacoplamento
entre capital financeiro e “economia real” devido à especulação financeira geraria as
crises que deveriam ser evitadas com regulação estatal e aumento da produtividade
econômica. Como em Rezende, porém, não há uma formulação de teoria do valor
trabalho – tudo aparece “financeirizado”, ou seja, mesmo o capital produtivo aparece
como ativo financeiro de maneira trans-histórica – o autor reconhece, assim, a subida e
queda dos preços das commodities nos mercados de futuros internacionais como uma
bolha financeira e tenta explicar por que os capitalistas produtores destas mercadorias
no Brasil continuaram investindo em tal setor (e mesmo como um todo para a
18 Isso nos obriga em alguns momentos a um salto do nível dos fenômenos da superfície da instância
econômica para o plano categorial da sociabilidade capitalista, procedimento que só poderia ser mais
teoricamente aprofundado com mais espaço, o que não será possível fazer no presente ensaio.
Sugerimos a discussão que Kurz faz (2014), a partir do que denomina quarto complexo a ser
tematizado pela sua crítica radical e que aparece discutido ao longo do livro Dinheiro sem valor
(2014): “O quarto complexo afere o estatuto das categorias na relação entre essência e aparência.
Tratar‑se‑á, no caso das categorias da crítica da economia política, de determinações da essência de
um ‘apriorismo transcendental’ que não podem manifestar‑se imediatamente enquanto tal, mas
constituem ainda assim a realidade social, ou podem os fenómenos capitalistas ser compreendidos
diretamente nas categorias e existir de forma independente? Como categorias reais transcendentais,
não podem ser empíricos; e, se forem entendidos como empíricos, não carecem de definição
transcendental. No primeiro entendimento, teoria e empiria não podem fundir‑se uma com a outra e
as aparências têm de ser, antes de mais, decifradas; no segundo, a essência e a aparência, e com elas
também a teoria e a empiria, coincidem imediatamente, ou as próprias categorias são imediatamente
empíricas. Nesse caso, já apenas existem, a bem dizer, aparências, por um lado, e a sua observação
‘científica’, por outro” (KURZ, 2014, pgs. 28 e 29).
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economia brasileira), mesmo após a crise do capital de 2008 e a queda nas taxas de
lucros – já em 2007 e, após breve recuperação (ver Gráfico 2), após queda nas taxas de
lucros de 2010 em diante, – o que contraria os autores até aqui apresentados.
Ou seja, Rezende assume que há, em nossas palavras, uma determinação dos
mercados de capitais sobre o chamado capital produtivo, formulação com a qual
concordamos de certa forma para a atualidade capitalista e que explicitaremos abaixo
ao abordarmos como historicamente isso ocorreu para o capital como totalidade
(fragmentada) (após os anos 1970). Ao mesmo tempo, ao não aceitar que o trabalho é a
substância do capital e que é a valorização do valor por meio deste que permite ao
capital se reproduzir ampliadamente, Rezende naturaliza a economia, que reproduziria
ciclos especulativos eternamente se não fosse regulada e fomentada. Assim, também
não há a possibilidade em Rezende de se apreender um movimento histórico do capital
como contradição em processo que teria conduzido a sociedade capitalista ao presente
momento em que a criação de capital fictício e a intermediação social fundada no
mesmo, a partir dos anos 1970, fosse determinante para a simulação limitada de
reprodução desta sociedade em crise. Para Rezende, baseando sua leitura em Keynes e
Minsky, tudo indica que sempre foi assim e continuará sendo.
Em Rezende (2016) o crescimento econômico brasileiro entre 2003 e 2008 se
relacionou diretamente com a bolha imobiliária financeira internacional por meio da
bolha das commodities:
It has already been suggested that the conditions that prevailed prior to
the 2007-2008 Global Financial Crisis, which benefited developing
economies, were characterized as a bubble and the positive conditions
experienced by developing economies are unlikely to return (REZENDE,
2016, p. 19).
Para ele, os governos Lula teriam sido capazes de tirar proveito de tal contexto
econômico mundial e aumentar a produtividade capitalista brasileira, “distribuir
riqueza” e “fomentar desenvolvimento econômico”, positivando fenômenos sociais que
sua análise não interessa em tematizar e nem mesmo teoricamente criticar como
indícios historicamente determinados que são da forma de ser da dominação social da
contradição em processo do valor-dissociação como forma social própria do
capitalismo. Estes desdobramentos estão hipostasiados a partir da formulação de leis
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19 Em oposição a tal forma de ler o que aparece como leis naturais de uma teleologia dos homens em
geral, Kempter (2016) ressalta que Kurz “submeteu a um exame, no decorrer da década de 1990, não
apenas o capitalismo actualmente existente (...) mas toda a formação histórica. (...) Ele partiu,
portanto, do pressuposto de que o fim à vista da economia de mercado capitalista implica que esta
também tem um começo historicamente identificável, uma ‘história da constituição’ e uma ‘história da
imposição’, e um posterior desenvolvimento progressivo ‘em processo’ [negativo, como contradição
em processo], e não repousa de certa maneira em si mesma na eternidade, como constante
ontologicamente solidificada, ainda que entendida em evolução. [Colchetes nossos]
Com isto ele virou-se contra as ideias a-históricas e anti-históricas generalizadas de estados de
equilíbrio e processos cíclicos da economia de mercado. Notoriamente que é óbvio e, portanto,
conhecido por todos, dentro e fora das ciências económicas, que a economia moderna trouxe o
contínuo aumento da produção de bens, maior estoque de capital, inovação tecnológica, expansão do
círculo de consumidores, etc., mas isso normalmente não conduz à consideração histórica dos eventos
económicos.
Em vez disso, os mais diferentes analistas da economia moderna permanecem presos a um
pensamento circular a-histórico, que marcou a ciência económica desde os seus começos.
Repetidamente são forçadas analogias médicas, mecânicas ou cosmológicas para constatar o eterno
retorno do sempre igual (perante a milagrosamente aumentada riqueza de bens) e pintar idílios de
mercado” (KEMPTER, 2016).
É justamente a crítica a tal acepção a-histórica da sociabilidade capitalista que tentamos explicitar no
presente artigo por meio da apresentação de relação imanente entre bolha das commodities e crise
econômica brasileira recente e desdobramento histórico das categorias do capital a nível mundial.
Assim, também, buscamos apresentar uma crítica fundamental desta formação social, que também
deve ser levada em consideração no que aparece como periferia do capitalismo no momento presente.
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That is, over periods of prolonged expansion fragility rise, exposing the
economy to the possibility of a crisis. This rise in financial fragility, in
turn, has the potential to lead to a slowdown in economic growth,
stagnation or even a recession (REZENDE, 2016, p. 14).
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.
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No item a seguir desejamos abordar, por meio de uma discussão com teóricos
vinculados ao marxismo tradicional, como historicamente o capitalismo atingiu o que
denominam momento de sua “financeirização”, a partir da década de 1970. Assim,
poderemos preparar, ao nível do capital global como totalidade, nossa formulação para
mediarmos o fenômeno econômico de bolha das commodities e crise brasileira recente
com a inserção do Brasil no que é apreendido por nós como crise do trabalho e
consequente crise fundamental do capital – baseado este na forma social do valor-
dissociação – e sua determinação da simulação de reprodução social (em crise) por
meio do capital fictício a partir dos anos 1970, como em Scholz (2009) e Kurz (2004 e
2014).
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20 Vale a ressalva de que os mais desavisados aproximam as teses de Kliman (2012) às teses da crítica do
valor-dissociação, em razão de sua explicação para a crise capitalista da década de 1970 levantar a
hipótese de uma queda tendencial da taxa de lucro, assim como em Kurz (2005). Porém, Kliman se
baseia em uma ontologia do trabalho e não formula uma crise do mesmo como entrelaçada à crise do
capitalismo dos anos 1970, apresentando, assim, uma distância em relação à crítica do valor
simplesmente em seus aspectos mais fundamentais, no que diz respeito à formulação da forma da
mediação social, da forma de dominação desta, dos processos de crise e do próprio objeto da crítica
para suplantação do capitalismo, como veremos ainda neste item do texto.
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valorização de valor por parte do capitalismo como totalidade (ou da classe capitalista,
para ficarmos com os autores), mas como prova da continuidade de sua reprodução
ampliada. No limite, o capital monopolista e sua “financeirização” recente
significariam a reprodução de um capitalismo estagnado, que apresentaria baixas taxas
de investimento produtivo em razão da crise de subconsumo que tal processo teria
constituído, o que acarretaria em altas taxas de desemprego e realimentação do
problema da estagnação:
Our argument in this book, derived from Magdoff and Sweezy in
particular, is that a realistic assessment of recent economic history is
best conducted within a framework that focuses on the interrelationship
between the stagnation tendency of monopoly capital and the forces that
to some extent counter it. The largest of the countervailing forces during
the last three decades is financialization – so much so that we can speak
today of “monopoly-finance capital”. The expansion of debt and
speculation that characterized the U. S. economy (and advanced
capitalism as a whole) since the late 1960s represented the main means
by which the system managed to avoid sinking into a deep slump, while
not enabling it to overcome the underlying stagnation tendency
(FOSTER & MAGDOFF, 2009, p. 19).
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22 “Already peoples throughout the world have reached the conclusion that the only rational answer is to
replace the current rotten system with a more humane order geared to collective needs. For centuries
the friends and enemies of social progress have called this alternative of a people-directed economy
and society ‘socialism’” (FOSTER e MAGDOFF, 2009). Fica aqui questionado por nós o que os autores
entendem por tal sistema...
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23 Chesnais destacou: “Where I use the term finance capital, the editors of Monthly Review use broadly
that of ‘monopoly capital’” (CHESNAIS, 2016, pg. 6, nota 24).
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24 “Williams and Kliman have vigorously challenged the position held by several heterodox and some
Marxist economists that the cause of the fall in the rate of capital accumulation is due to the diversion
of profits from productive investment towards financial uses”. (…)
“Williams and Kliman argue, on the basis of sophisticated statistical data, that the fall in the rate of
accumulation (i.e. the growth rate of accumulated productive investment) over the postwar period as a
whole was, on the contrary, due entirely to the fall in corporations’ rate of profit. Firms did not slow
down their investments for lack of funds, which were available on the financial markets, nor because of
the shift in the distribution of profits between retained profits and dividends, but because the rate of
profit fell and so profitable investments declined” (CHESNAIS, 2016, pg. 17).
25 Para uma crítica detalhada da concepção de Harvey de “financeirização” e crise do capitalismo e sua
75
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26 “Acima de tudo, uma nova arquitetura financeira global foi criada para facilitar a circulação do fluxo
internacional de capital-dinheiro líquido, para onde fosse usado de modo mais rentável. A
desregulamentação das finanças, que começou no fim dos anos 1970, acelerou-se depois de 1986 e
tornou-se irrefreável na década de 1990. A disponibilidade do trabalho não é mais problema para o
capital, e não tem sido pelos últimos 25 anos. Mas o trabalho desempoderado significa baixos salários,
e os trabalhadores pobres não constituem um mercado vibrante” (HARVEY, 2011, p. 22).
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Os termos aqui utilizados por Kliman não são casuais. Para ele, não há uma
dinâmica histórica irreversível de desdobramento da contradição imanente à forma
social capitalista. A queda tendencial da taxa de lucro implica, em Kliman, uma
redução apenas relativa do trabalho a ser explorado frente ao acúmulo de trabalho
morto a ser por aquele valorizado. Ou seja, o aumento da composição orgânica do
capital em Kliman é sempre apenas relativo. Desta forma, Kliman está aqui mais
próximo de Harvey do que gostaria de imaginar. Naquele, assim como neste, o trabalho
é ontológico e por isso Kliman não pode vislumbrar um processo de
dessubstancialização do próprio valor, em razão da diminuição do próprio trabalho
vivo produtivo capitalista que apresentaremos a seguir, isso para ele é inconcebível. Ou
seja, havendo produção crescente de mercadorias, em Kliman, haveria sempre
crescente produção de valor a partir da exploração do trabalho, sendo a exploração o
cerne de sua crítica. A partir de sua formulação, para nós insuficiente, apesar da
produção crescente de materialidade de mercadoria que (dedutivamente) para ele
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28 Ainda é relevante a crítica que Thomas Meyer (2019) veicula contra a formulação de crítica do valor
por Ernst Lohoff, do Grupo Krisis, para tratar do momento capitalista a partir dos anos 1970.
Sugerimos aqui que os interessados se dirijam a tal texto.
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Aqui, chegamos com Kurz aos anos 1970 e sua formulação de crise do trabalho, como
crise da substância do capital, o que poderemos assim afirmar para o ponto de vista do
capitalismo como totalidade e em relação a seu nível categorial (como constituição e
crise de suas categorias), não mais no que diz respeito a análises que se debruçavam
nos fenômenos macroeconômicos que discutimos anteriormente, forma apenas de
manifestação da essência negativa da sociabilidade aqui em questão, a partir de então
em seu momento de crise fundamental.
Até a década de 1970 capital, terra e trabalho operaram autonomizadamente,
mediados pelo movimento da substância negativa do trabalho. O capital individual e
seus processos de acumulação, ou a classe trabalhadora e seu acesso às mercadorias
produzidas no momento de prevalência do chamado Estado de Bem-Estar Social, não
portam em si o ponto de vista da totalidade, o que nos conduziria ao já tematizado
ponto de vista do individualismo metodológico, que toma a parte pelo todo, sendo este
acessado apenas por meio do olhar para o processo histórico das categorias do capital
mesmas (KURZ, 2014), agora formadas e operando enquanto desdobramento da
valorização do valor que até os 70 se realizava produtivamente.
A partir dos anos 1970, porém, para Kurz, o mecanismo de compensação se
extingue. A queda tendencial da taxa de lucro, como resultado da superacumulação de
capitais (KURZ, 2005, p. 223) do boom fordista baseado na mais-valia relativa,
principalmente no pós-II Guerra Mundial, atinge seu limite histórico, momento que
não mais será recuperado. Qualquer tentativa de tornar tal momento do
desdobramento da dinâmica histórica da contradição em processo da valorização do
valor em ideal social fetichista a ser reconstituído é apologia ideológica da dominação
social abstrata da substância negativa do valor, a qual Kurz logra criticar e pretende
por isso superar [überwinden].
Para Kurz – rompendo aqui assim com todas as formulações anteriormente
apresentadas por nós –, a partir dos anos 1970, a continuidade da concorrência
intercapitalista na tentativa de superação da crise econômica teria conduzido o sistema
patriarcal produtor de mercadorias baseado na relação social do valor-dissociação a
seu limite histórico absoluto, já que o novo salto de desenvolvimento das forças
produtivas, com a terceira revolução industrial (KURZ, 1999a), teria criado uma
situação estruturalmente inédita até então, a saber, a de expulsão em termos
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que necessitam se mediar pelo mesmo para sobreviverem. Nada a ver com as
explicações de lógica identitária de roubo dos postos de trabalho por parte dos
imigrantes e refugiados a correrem para as anteriores economias centrais do
capitalismo em busca de sobrevivência, o que ninguém mais hoje pode garantir.
O terceiro e último momento de nossa discussão aqui levantada por meio das
formulações de Kurz seria o de nos perguntarmos o que teria passado, então, a ocorrer
a partir dos anos 1970, para a reprodução capitalista em crise fundamental? Aqui a
categoria marxiana de capital fictício (MARX, 1984c) passa por nós a ser mobilizada
para designar a simulação de acumulação de capital, que não mais se realiza
substancialmente ao nível da totalidade do mesmo. Kurz, assim, não se refere a um
capital portador de juros a se valorizar por meio do comércio de dinheiro nos mercados
de capitais, que se apropriaria de parte da mais-valia global produzida a valorizar o
valor em processos produtivos, para o momento histórico aqui em questão. Kurz
formula o capital fictício como desacoplamento [Entkoplung] entre criação de dinheiro
(como representante do valor a ser produzido e a substancializá-lo) – por meio da
originação e circulação de capital fictício29 – e o próprio valor, cuja valorização, a partir
de então se tornara inviável historicamente (KURZ, 2019, p. 55), já que a massa
absoluta de valor produzido ao nível da totalidade do capital declina desde então, em
razão da expulsão do trabalho vivo dos processos produtivos de mercadoria (mesmo
com a expansão da produção desta). Em Kurz, o capital fictício passou a ser, a partir
dos anos 1970, a determinação para a simulação de acumulação capitalista e sua
reprodução, ou seja, ele se tornara a forma de ser da própria mediação social da
mercadoria. Isso é fundamentalmente diferente do tratamento que os autores por nós
até aqui apresentados deram à concepção de acumulação capitalista e “financeirização”
do capital, a partir dos anos 1970.
Nestes, conforme esperamos ter logrado explicitar, a “financeirização” aparecia
como possibilidade de ampliação da acumulação capitalista, que acabava por se
29 Marx, já em seu capítulo sobre o capital fictício (1984b, L. III, Tomo 1, Capítulo XXV), demonstrou
como a criação e circulação de capital fictício funcionam como criação de dinheiro: “O crédito que o
banqueiro dá pode ser em várias formas, por exemplo, letras de câmbio contra outros bancos, cheques
contra os mesmos, aberturas de crédito da mesma espécie, finalmente, no caso de bancos emissores,
nas próprias notas bancárias do banco (...). Essa última forma de crédito salta aos olhos do leigo como
especialmente importante, primeiro, porque essa espécie de dinheiro de crédito sai da mera circulação
comercial para a circulação geral e funciona aqui como como dinheiro (...) (MARX, 1984b, p. 304).
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realizar, fosse nas mãos dos capitalistas produtivos, fosse nas mãos do sistema
financeiro, ou em ambos. Isso apareceu nas explicações de Foster e Magdoff (2009),
Harvey (2011) e inclusive Kliman (2012), para quem a acumulação de capital
continuaria a ocorrer após a década de 1970, porém com queda da taxa de lucro, no
sentido de diminuição apenas relativa do trabalho vivo disponível a valorizar o
trabalho morto aplicado na produção de mercadorias, aqui a diferença fulcral entre ele
e Kurz. No que diz respeito ao Brasil do século XXI, a “financeirização” também foi
entendida como capaz de fomentar a valorização do valor, na maioria das explicações
sendo lida como responsável por “sugar” o valor produzido pelo trabalho em processos
produtivos de reprodução ampliada do capital, a qual, seguindo a sugestão de
dessubstancialização do capital a nível global que apresentamos acima a partir de
Kurz, para nós, não teria significado nenhuma acumulação produtiva de capital, mas
sim uma bolha financeira, enquanto bolha das commodities, como veremos mais
detalhadamente abaixo.
No entanto, desejamos ainda apresentar que as formulações de Kurz acerca da
determinação do capital fictício para a reprodução social capitalista recente
acompanharam, historicamente, o próprio desdobramento da contradição em processo
do valor-dissociação no momento de sua crise fundamental, a partir dos anos 1970 e as
diferentes formas de ser do capital fictício ao longo dos últimos anos. Cabe uma breve
referência a tal desdobramento para podermos, enfim, embasarmos o caminho para
mediarmos a inserção do Brasil na simulação fictícia de reprodução capitalista, desde
os anos 1970, no que é para nós a crise fundamental da sociedade capitalista baseada
no valor-dissociação.
Kurz apreendeu em diferentes momentos a simulação de acumulação capitalista
por meio do capital fictício. Vou me deter em três formulações que exprimem três
distintos momentos históricos de tal mediação. São elas: O colapso da Modernização
(1999a), de 1991; A ascensão do dinheiro aos céus (2019), de 1995; e Weltkapital
[Capital Mundial], de 2005. Vale a ressalva de que em Dinheiro sem valor (2014), de
2012, Kurz ainda desdobra as análises de 2005, porém, em Weltkapital, Kurz
desenvolve a formulação “paradoxal” (em suas palavras – KURZ, 2005, p. 240-241) de
um capital real fictício [fiktives Realkapital], para designar um capital fictício que
passa pela produção dessubstancializada de mercadorias, ou seja, passa pela sua
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corporeidade. Este será nosso ponto de chegada desejável a partir das investigações de
Kurz, o que nos permitirá voltarmos à particularidade recente brasileira.
Assim, em seu primeiro livro sobre o tema, O colapso da modernização, além de
formular sua teoria da crise fundamental do capital, Kurz (1999a) já destaca que a crise
da valorização do valor – valorização que se deu ao longo do boom fordista a partir da
combinação entre determinação pela mais-valia relativa e expansão das cadeias de
crédito globais – teria resultado em uma rodada de extensão da produção de
mercadorias pelas empresas em crise ainda por algum período, pelo menos até meados
dos anos 1980, ao que a falência deste processo se apresentou socialmente com o
travamento da produção no centro do capitalismo e seus índices de estagnação e com a
crise das dívidas externas da América Latina, a partir da moratória mexicana de 1983 e
da moratória brasileira de 1986, no que concerne à periferia do capital.
Os países da América Latina haviam fomentado sua modernização retardatária
(KURZ, 1999a) via créditos internacionais provenientes de capitais financeiros ociosos
em busca de valorização, a partir dos anos 1950, mas com ênfase nos anos 1960 e nova
rodada de empréstimos nos anos 1970. Apesar de terem realizado suas modernizações,
já incorporando tecnologias também provenientes do Departamento I das economias
centrais do capitalismo – como parte daquele mecanismo de extensão das cadeias
produtivas fordistas que temporariamente funcionou como contratendência à queda
tendencial da taxa de lucro do capital a nível global – os países do chamado terceiro
mundo também apresentaram queda tendencial de suas taxas de lucro e,
consequentemente, expulsão tanto relativa como absoluta (esta, principalmente a
partir dos anos 1980) de trabalhadores dos seus processos produtivos30; além de, no
geral, terem perdido na concorrência do mercado mundial para os países centrais do
capitalismo, o que significou o colapso daquela modernização.
Assim, até meados dos anos 1980, a reprodução das empresas nos países de
modernização retardatária, incluída aqui, com suas particularidades, a URSS, se deu
por meio de rolagem de suas dívidas e tentativa de estender para o futuro a promessa
de valorização do valor, o que não era possível de ocorrer devido aos desdobramentos
30 No que diz respeito à modernização retardatária com expulsão de trabalho vivo do processo produtivo,
por exemplo, na particularidade da agroindústria canavieira ver, por exemplo, Pitta (2016). No que diz
respeito à indústria automobilística brasileira, ver, por exemplo, Barcellini (2012).
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Em 2001, estoura a bolha da Nasdaq (KURZ, 2005), o que levou o governo dos
EUA a reduzir drasticamente as taxas de juros da economia e a fomentar o crédito ao
sistema financeiro. Isso alimentou as duas principais bolhas a determinarem a
simulação de reprodução capitalista mundial no século XXI, a bolha das commodities e
a bolha imobiliária dos EUA e da Europa, uma bolha financeira mundial, que acabou
por desdobrar “a maior bolha financeira de todos os tempos e o milagre do consumo
dos EUA” (KURZ, 2008).
A migração da poupança da sociedade para os investimentos financeiros, que já
vimos acima ter parcialmente acontecido em relação à bolha da Nasdaq, significou a
partir de 2002 e 2003, então, que tal tipo de tentativa de simulação de acumulação de
capital se generalizava para os mercados de derivativos dos mais diversificados, com
centralidade nos pacotes de dívidas imobiliárias nos EUA e Europa. A bolha imobiliária
dos EUA e da Europa, enquanto bolha financeira mundial (aqui a contribuição de
Weltkapital – KURZ, 2005) alimentou a bolha das commodities (2002 – 2011) e foi
retroalimentada por ela. Tal economia de bolhas é a que nos permite alcançarmos a
formulação de Kurz de um capital fictício real [fiktives Realkapital, KURZ, 2005, p.
240-241), por meio da inflação dos preços dos títulos de propriedade nos mercados
secundários de derivativos financeiros que se desdobrou também na inflação dos
preços das próprias mercadorias, que de certa forma também passaram a funcionar
como se fossem meros títulos de propriedade (ou “ativos financeiros”), porém, em
processo de diminuição da substância do valor, o trabalho, a ser representado por sua
corporeidade material, daí o “paradoxo” para Kurz (ou seja, as mercadorias passam a
ter seus preços inflacionados ao mesmo tempo que seus valores diminuem):
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31 “O capital mundial como capital de crise da terceira revolução industrial é então fundamentalmente
“capital fictício”; e a ele relacionado ou gerado em segunda linha está o “capital real fictício”, como nós
poderíamos expressar paradoxalmente. Pois não se trata mais de um capital real acumulado
autonomamente, cuja superacumulação fordista resultou originalmente na nova economia de bolhas
financeiras, mas sim da produção real de mercadorias impulsionada unicamente por poder de compra
proveniente de capital fictício inflado; assim sendo, de uma reciclagem do capital de bolhas na
economia real. A relação de investimentos de portfólio e investimentos diretos corresponde a estas
condições. O ponto de partida das cadeias de criação de valor é cada vez mais irreal e disso pode-se
concluir, de toda forma, a inevitabilidade de uma reação em cadeia de desvalorização de dimensões
globais.” (KURZ, 2005, p. 240-241, nossa tradução).
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32 “Como se por um passe de mágica, não se trata aqui, tanto para o credor quanto para o devedor, nem
da seriedade da situação [da bolha financeira], nem menos ainda de um investimento real privado ou
comercial e seus rendimentos, mas sim somente da esperada subida especulativa dos preços dos
títulos de propriedade - uma creatio ex nihilo capitalista. Ao final, há mais dinheiro lá do que o
investidor originalmente nunca teve. Assim, ao mesmo tempo em que das bolhas financeiras é criada
liquidez para consumo e investimento em determinadas regiões e é alavancada uma conjuntura de
simulação, esta estimula, por outro lado, importação de mercadorias e serviços. Assim, o processo
global especulativo se entrecruza e se entrelaça cada vez mais com a economia empresarial
transnacional dos setores produtivos e dos serviços. E esse entrecruzamento pode levar então, de sua
parte, capital especulativo novo e transnacional aos setores da “indústria financeira” que já
experimentavam um boom naquele momento, de onde ele será transportado ao nível nacional por
meio dos instrumentos correspondentes e contrabandeado parcialmente aos mercados internos da
economia real na forma de demanda. Este efeito cumulativo é erótico/excitante” (KURZ, 2005, p. 243,
nossa tradução).
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33 Dinheiro não pode virar mais dinheiro sem passar pela exploração de trabalho suficiente para
valorizá-lo. O desacoplamento entre ambos só pode ocorrer por um dado período de tempo, sendo a
deflação dos títulos de propriedade resultado de uma bolha que estoura, na tentativa de
reacoplamento entre eles, o que não é mais possível de ocorrer após os anos 1970. A lógica do
capitalismo em sua crise do trabalho é a das bolhas financeiras e do casino (KURZ, 2019), que não
ocorre nunca nos mesmos moldes, mas de forma cada vez mais violenta e profunda, já que a lacuna
entre dinheiro e valor (trabalho) continua a se ampliar com o desdobramento do processo social. A
crença na chamada “new economy”, de que o preço das ações das empresas na NASDAQ poderia inflar
infinitamente, independente do que ocorria nas empresas por trás de tais ações (duplicatas de
mercadorias), se esvai, junto do estouro desta bolha.
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Long-term rates were below the short-term interest rates set by the Fed.
This was usually a signal for trouble. It meant that the normal bank-
funding model of borrowing short to lend long no longer made any
sense.
[…]
As the escalated interest payments hit, a wave of defaults was more or
less inevitable. Once that began it was only a matter of time before house
prices stopped increasing and the market turned. At that point, millions
of speculative real estate investments would go bad. Families would lose
their homes (TOOZE, 2018, Part I, Chapter 2: Subprime).
A subida das taxas de juros pelo Federal Reserve (O Banco Central dos EUA) fez
com que a criação de dinheiro fictício pela intermediação entre sistema financeiro e
produção de mercadorias sem substância fosse reduzida, em um processo que acabava
por restringir tanto a capacidade dos consumidores de acessarem novas dívidas para
consumirem novas casas, assim como de pagarem suas dívidas anteriores, inclusive em
razão do aumento dos juros (pós-fixados) de suas hipotecas. Os preços das casas
passam a cair, impedindo também o refinanciamento das famílias e os pacotes de
títulos de dívidas nos mercados secundários também se desinflacionam, conduzindo à
generalização da retração do crédito e do consumo, enquanto formas fenomênicas do
estouro da bolha, a partir de 2007 e 2008.
Cabe uma menção aqui à relação deste processo com a superfície da economia
mundial. No ápice da bolha financeira mundial diversas foram as economias nacionais
e conglomerados transnacionais a emprestarem dinheiro para os EUA e seu mercado
financeiro, participando assim de tal simulação fictícia de acumulação de capitais (o
Brasil inclusive passou a ser credor líquido do FMI e dos EUA). Ao mesmo tempo, a
capacidade fictícia de consumo criada por tal momento fomentou o boom chinês 34 (no
34 Kurz (1995, 2005 e 2014) analisa tal processo a partir do que denominou circuito de déficit do
Pacífico, a partir do qual o aumento do consumo fomentado por capital fictício dos EUA também pôde
ser sustentado por empréstimos chineses (possíveis por seus superávits na balança comercial),
enquanto o endividamento estadunidense só aumentava, o que estabelecera uma relação insustentável
de endividamento entre os dois países. Quanto ao boom chinês, só possível então pela bolha financeira
mundial, mesmo Harvey (2019, pg. 30) aceita que este não tenha incorporado novos trabalhadores ao
seu processo produtivo neste momento, já que entende que houve um deslocamento de cadeias
produtivas dos países ocidentais para lá (China). Teoricamente, porém, o aumento ou redução do
número absoluto de trabalhadores não nos diz, isoladamente, sobre um capital ser produtivo ou
improdutivo em si mesmo. Por exemplo, capitais sustentados a capital fictício e fora da média social de
tempo para se fazer uma dada mercadoria também devem ser considerados improdutivos (KURZ,
2019). No caso da China, por sua vez, o aumento da composição orgânica do capital com expulsão do
trabalho do processo produtivo nas últimas décadas também deve ser considerado ao se estudar tal
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século XXI), o qual realimentou a subida nos preços das commodities, cuja bolha de
preços havia autonomamente se iniciado em 2002, em razão do fetichismo de
“segurança” para investidores (GIBBON, 2013), que tais mercados pareciam oferecer
após a crise da bolsa da Nasdaq dos EUA. Com o estouro de ambas as bolhas, a crise
fundamental do capitalismo em seu momento de dessubstancialização, em razão da
irreversível crise do trabalho, aparece aos sujeitos sujeitados neste processo como crise
econômica cíclica, cujas causas são buscadas nas suas mais diversas formas, como
vimos anteriormente ao apresentarmos os autores que tentam apreender tal processo
por eles designado por “financeirização” do capital como: neoliberalismo, subconsumo,
superprodução, superacumulação de capital e queda tendencial da taxa de lucros, entre
outros.
O tão propagado por estas explicações desacoplamento entre os preços dos
chamados ativos financeiros, relacionados que estão à quantidade de negociação dos
mesmos nos mercados de capitais, e o crescimento do PIB mundial, com o crescimento
da produção de mercadorias nos mercados globais, não é capaz de apreender o
processo até agora descrito por nós, por meio das formulações de Robert Kurz (1999a,
2005, 2014 e 2019). Primeiramente porque o cálculo do PIB, como soma dos preços
negociados nas diferentes economias nacionais não logra apreender a determinação da
simulação fictícia da produção e realização das mercadorias, agora em
dessubstancialização de valor. O marxismo tradicional, que ontologiza o trabalho e
positiviza a relação entre o trabalho e seu produto, ou a relação sujeito-objeto, não
logra apreender que o fetichismo da mercadoria da abstração que se realizava na
representação corpórea fantasmagórica (e por isso contraditória e não idêntica) do
valor – que assim não está contido nas mercadorias – é agora simulado por meio da
expansão do capital fictício, que também se representa fantasmagoricamente na
corporeidade das mercadorias, ficcionalização hodierna do fetichismo da mercadoria e
de sujeito que se objetifica socialmente, porém hoje nesta forma particular. O
desacoplamento entre dinheiro (o qual no momento do capitalismo das bolhas
financeiras se amplia) e valor, em dessubstancialização desde os anos 1970 – e que com
a continuidade da concorrência capitalista continua a se aprofundar, promovendo
país mediando-o com o nível global, o que não temos condições de fazê-lo de maneira suficiente no
presente texto.
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crises cada vez mais violentas e catastróficas – também não permite que as taxas de
lucros das empresas sejam critério para se constatar a realização da valorização do
valor do capital a nível global, já que então estas também estão mediadas por capital
fictício e sua imanente lógica contemporânea de bolhas financeiras.
Não cabe assim, para nós, nenhuma formulação que vise à continuidade de
paradigmas modernizadores ou produtivistas a fim de nos relacionarmos criticamente
com os processos acima apresentados, formulação que aparecia seja no que diz respeito
às análises mais reformistas, seja naquelas que se pretendem superadoras do
capitalismo, mas fazem apologia da produção abstrata de coisas por parte do trabalho,
desde que superada a alienação entre ambos. O objeto da crítica, sugerimos assim, não
deve se dirigir então à forma de produção de coisas (o que já pressupõe a relação
sujeito-objeto da forma mercadoria, ADORNO, 1995), mas justamente à forma
capitalista da relação social da sociedade do trabalho, ou seja, o que denominamos
aqui, com Kurz e Scholz, de relação social baseada no valor-dissociação e a dominação
social de sua contradição em processo de desdobramento histórico, que atingiu sua
crise fundamental a partir dos anos 1970 e por isso precisa ser suplantada
(überwunden).
a própria particularidade em sua forma expressa. Tal forma nega, como veremos, as
próprias formulações teóricas anteriores, que como vimos, tentavam ler a crise
econômica brasileira recente ou por meio da crítica ao rentismo financeiro (“criador de
instabilidades”) e defesa do capital produtivo, ou, no limite do marxismo tradicional,
por meio da reposição de uma formulação de teoria da dependência (financeirizada)
que seria causadora do atraso econômico brasileiro, o qual teria ainda aparecido como
conflito distributivo e conduzido ao golpe parlamentar contra Dilma Rousseff e à
extrema-direita ao poder. Assim, poderemos explicitar formas de existência da
particularidade da reprodução capitalista no Brasil que negam as interpretações
anteriormente apresentadas acerca da sua forma de reprodução para o século XXI, em
razão de um ponto de vista que visa a totalidade concreta, e que nos leva a formular o
Brasil como parte da crise fundamental do trabalho e do valor-dissociação, desde os
anos 70 e 80.
Já adiantamos que, a partir de 2002, com o início da bolha das commodities nos
mercados de capitais internacionais, inicia-se uma retomada de alta do PIB brasileiro,
mas que se vincula com a determinação categorial do capital fictício e com a crise
fundamental do capital. Desta forma, não houve valorização do valor, no Brasil, a
partir de 2003/2004, mas inflação dos títulos de propriedade nos mercados
financeiros internacionais como bolha financeira, a qual moveu um processo de
crescimento econômico como simulação por meio da determinação do capital fictício
da acumulação de capital e da valorização do valor, inclusive com aumento da
produtividade do trabalho (aumento da composição orgânica do capital) e da produção
de mercadorias, concomitante à expulsão do trabalho vivo do processo produtivo (em
números absolutos, ou seja, continuidade da dessubstancialização do capital na
particularidade brasileira), sendo a crise econômica a partir de 2012 fenômeno de
estouro desta bolha.
Para qualificarmos melhor tais assertivas, precisaremos esmiuçar um pouco
mais a economia brasileira recente, sempre mediando com o processo histórico das
categorias do capital atualmente em seu momento de crise, tendo em vista uma
apreensão de realismo dialético (SCHOLZ, 2009) para acessarmos a totalidade
capitalista como totalidade concreta fragmentada por meio da particularidade
brasileira.
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Gibbon alega que a subida nos preços das commodities ocorreu devido ao
aumento da demanda no comércio de derivativos de commodities negociados nos
mercados de futuros (e sem entrega propriamente física das commodities negociadas),
com cada vez maior participação de fundos de investimento de todos os tipos neste
mercado de capitais, principalmente também pela ausência de correlação entre os
movimentos dos preços em tal tipo de mercado e aqueles de equities e títulos, em baixa
após a quebra da NASDAQ. Ou seja, por motivos estritamente financeiros, em busca de
“balancear” investimentos em um momento de crise econômica, as maiores poupanças
do capitalismo mundial conduziram o mercado de derivativos de commodities a uma
bolha financeira.
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35 Diversos são os teóricos da “financeirização” do capital a explicitarem a transmissão dos preços dos
mercados de derivativos para preços presentes, também negociados nos mercados financeiros, assim
como a demonstrarem a transmissão destes para os preços de mercado das mercadorias subjacentes a
tais mercados de derivativos. O próprio Gibbon (2013) assume que: “behaviour of financial investors
following, for example, passive long-only strategies affect the behavior of all market participants, since
it is typically misunderstood by non-financial market participants as incorporating important new
information about supply and demand” (GIBBON, 2013, p. 10). Para uma discussão acerca do capital
fictício nos mercados de derivativos e sua forma de transmissão de preços para os preços presentes de
mercado, ver Carneiro et al. (2015).
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da subida dos preços das próprias casas, a partir das quais a sociedade podia fazer
novas dívidas, saldar anteriores e iniciar novas rodadas de consumo.
Algo correlato e concomitante ocorria no Brasil, já que a bolha das commodities
se mediou em relação à economia brasileira de forma central e determinante. Em
relação às empresas produtoras de commodities, como veremos agora, estas puderam
se financiar em dólares ao adquirir créditos nos mercados de capitais internacionais
sobre os próprios preços futuros de derivativos das commodities, preços em ascensão
como acabamos de ver. Como adquiriam dívidas em montantes muito acima do que
sua capacidade produtiva permitia – em razão da concorrência para acessarem tais
preços, o que quem não o fizesse “perderia” a possibilidade de nova rodada de
industrialização de suas produções – entravam em um processo de expansão tanto
intensivo quanto extensivo de suas produções, a fim de tentar adquirir ainda novas
dívidas no futuro (saldando as anteriores com estas, inclusive). Este processo de
simulação fictícia de acumulação só podia perdurar enquanto os balanços das
empresas parecessem passíveis de lidar com tais dívidas (BRAGA, 2017), ou seja,
enquanto durava a alta dos preços de futuros de commodities. Após isso, as falências
passaram a se generalizar, o que apareceu na economia brasileira como recessão,
desemprego, alto endividamento e inflação.
Tomemos a particularidade da agroindústria canavieira brasileira (a maior do
mundo no século XXI) e paulista (a maior do Brasil), produtora de cana-de-açúcar,
açúcar, etanol e eletricidade. O caso é paradigmático do que aconteceu com os
produtores de commodities no Brasil em geral. Após apresentar relativa estagnação
nos anos 1990 (BACCARIN, 2005), a partir do desmonte dos fomentos do Estado
brasileiro para sua expansão endividada dos anos 1970 e 1980 como parte da
modernização retardatária nacional (PITTA, 2011; PITTA e MENDONÇA, 2018), com a
subida dos preços do açúcar nos mercados de commodities internacionais no século
XXI tal agroindústria iniciou um processo de expansão, com financiamento a partir de
dívidas garantidas pelos altos preços de futuros do açúcar. Desta forma, a
agroindústria canavieira como um todo, em razão da concorrência por “aproveitar” tais
preços determinados pela bolha das commodities, havia de expandir tanto
aprofundando sua produtividade por meio de aumento da composição de seus capitais
como incorporando novas áreas, a fim de simular ser capaz de saldar suas dívidas
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atentarmos para o movimento histórico das categorias do capital enquanto totalidade concreta,
podemos incorrer no equívoco de estabelecermos uma continuidade entre o período escravista (1500
até 1888), o posterior de formação do trabalho no Brasil (1888 a meados de 1950, este processo não
tem um marco preciso) e o da particularidade do momento de crise do trabalho, após o colapso da
modernização (1970). Conhecido por “boia-fria”, o cortador de cana da agroindústria é migrante
sazonal, sobre o qual incide profundo racismo e foi apreendido pelo marxismo tradicional brasileiro da
teoria da dependência como superexplorado e miserável em razão do imperialismo do capital
internacional sobre o nacional e seus trabalhadores. Para nós, a forma de trabalho que o mesmo
apresenta deve ser apreendida como completamente distinta do escravo ou do trabalhador assalariado
de meados do século XX. A concorrência entre os trabalhadores para manterem os postos de trabalho
assalariado em processo de expulsão do trabalho da produção de mercadorias é o que explica o
aumento das taxas de exploração do mesmo, como veremos agora no texto.
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1970, nos anos 1990 eram 400 mil, já em sua extrema maioria apenas cortadores
manuais de cana-de-açúcar, e em 2014 chegou-se a apenas 90 mil trabalhadores
aproximadamente (PITTA e MENDONÇA, 2018). A redução dos postos de trabalho no
corte manual de cana-de-açúcar conduziu à redução do preço pago ao cortador por
tonelada de cana-de-açúcar cortada, já que a concorrência pelos últimos postos de
trabalho fazia com que o trabalhador aceitasse qualquer condição oferecida, o que fez
também com que os cortadores passassem a cortar cada vez mais cana-de-açúcar,
aumentando a produtividade do trabalho a fim de “compensar” a queda nos preços
pagos por tonelada cortada, já que seu pagamento se dá por produção. A concorrência
entre os próprios trabalhadores pelos últimos postos de trabalho levou a que, no auge
do processo de mecanização da colheita de cana, entre 2005 e 2009, ocorressem
diversas mortes nos canaviais brasileiros por excesso de trabalho (PITTA, 2016).
Observamos que não havia a violência direta “chicoteando” um escravo para forçá-lo ao
trabalho como no Brasil Colonial, mas a violência econômica da crise do trabalho e seu
desemprego estrutural aos quais estamos submetidos, já que sem nos vendermos como
força de trabalho para acessarmos dinheiro e podermos consumir estamos fadados à
exclusão e à superfluidade (Überflussigkeit – SCHOLZ, 2008) social e, no limite, à
morte. Novamente, o limite é a sobrevivência como determinação da mercadoria como
possibilidade de existência no capitalismo.
Vale o destaque de que uma colhedeira de cana-de-açúcar, a substituir por volta
de 120 cortadores manuais, é um robô automatizado, muitas vezes guiado a GPS. Por
sua vez, casos extremos de exploração do trabalho não ficaram, em tal momento
histórico, restritos aos cortadores manuais de cana-de-açúcar, sendo frequente casos
de trabalho análogo ao de escravo sobre os próprios pilotos de colhedeiras e demais
trabalhadores da frente mecanizada, trabalhadores alfabetizados que são hábeis e se
responsabilizam pelo manuseio de maquinário complexo, o que envolve diversos tipos
de risco. A crise do trabalho atinge, assim, todas as formas de trabalho, não apenas
aquelas tradicionalmente alvo das críticas do marxismo tradicional, como o trabalho
manual, taxado por estes como “degradante” para os anos de modernização
retardatária brasileira, como se fosse possível apenas desejar como ponto de chegada
da crítica um “trabalho justo”, por meio da superação de um suposto “atraso” a causar
tais formas de trabalho mesmas. Na realidade, o que estamos aqui formulando é que as
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38 Crise do trabalho (KURZ, 1999a e SCHOLZ, 2009) não significa fim da mediação social pelo trabalho e
aqui a tragédia. A forma social continua seu desdobramento contraditório, aprofundando sua crise
fundamental, o que se desdobra em barbárie social, como formularemos a seguir. O cerne da crítica,
aqui, como já destacamos, deve ser a relação social capitalista de mediação pelo trabalho e pela
mercadoria como bases da sociabilidade do valor-dissociação.
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Brasil no século XXI. Esta apareceu como crescimento econômico e foi entendida como
valorização produtiva de valor pela totalidade dos autores que apresentamos
anteriormente, simulação que é momento da mediação do Brasil na crise fundamental
do capital em razão da crise do trabalho (presente no capitalismo brasileiro e mundial),
crise esta desdobrada dos próprios processos de desenvolvimento das forças produtivas
inexoráveis e imanentes à própria sociabilidade capitalista.
O distributivismo de crise por meio do endividamento das empresas, da
sociedade em geral (GIAVAROTTI, 2017) e do próprio Estado brasileiro e a forma de
tentativa de gestão da barbárie (MENEGAT, 2019a) empreendida pelo Estado
brasileiro sob os governos de esquerda do Partido dos Trabalhadores (2003 a 2016)
contêm em sua própria forma a crise fundamental do valor-dissociação e só foram
possíveis em razão da inflação dos preços dos derivativos de commodities nos
mercados financeiros internacionais, parte da totalidade fragmentada capitalista que o
Brasil é e que ruiu após o estouro da bolha financeira mundial, a qual se desdobrou na
queda dos preços das commodities a partir de 2011 (Gráfico 3), na crise econômica
brasileira a partir de 2012/2013, no golpe parlamentar contra Dilma Rousseff e na
eleição do governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro. Qualquer tentativa de se
manter os fundamentos sociais de tal processo, como por exemplo, a apologia de
retomada de tais governos de esquerda por parte do campo denominado progressista e
pelos marxistas tradicionais brasileiros, como saída da situação presente e superação
do atual governo de extrema-direita, não conduz a nenhuma crítica dos fundamentos
que conduziram a tal momento mesmo, já que repõe a ontologia do trabalho, a forma
mercadoria, a mais-valia, a valorização do valor como finalidade social tautológica, o
fetichismo de sujeito (tão presente neste pensamento da esquerda que acha que é capaz
de conter a crise social e as crises econômicas por meio do retorno da democracia
representativa com base no Estado de direito), a contradição em processo do valor-
dissociação e seu momento de crise fundamental atual. Tal crise fundamental, como
vimos, nesta forma de relação social, só pode se aprofundar repondo uma economia de
bolhas financeiras que retroalimenta a dessubstancialização do capital, ao mesmo
tempo que repõe o fetichismo da mercadoria e de capital ficticiamente. A forma social
estar em crise não significa que não continue a se reproduzir de forma trágica e ao não
tematizá-la por meio da crítica teórica negativa e radical como momento necessário
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Se nos anos 1980 tratamos da crise das dívidas externas da América Latina,
agora, com a criação de mercados secundários para as dívidas dos países ao redor do
mundo, o cerne do endividamento brasileiro passa a ser a dívida interna, em reais, a
partir de investimentos procurados pelo capital financeiro em razão do diferencial de
taxas entre as baixas taxas de juros que pagava para adquirir dólares nos mercados
internacionais (em razão da bolha da NASDAQ, a partir de 2001) e as maiores taxas
que recebia ao investir em títulos da dívida pública brasileira (o chamado carry trade).
A possibilidade de acessar tal endividamento permitiu ao Estado brasileiro fomentar
programas de assistência social de distribuição de capital fictício e apareceram como
aumento da demanda interna e ascensão de uma nova camada média brasileira
(SINGER, 2018), baseada então esta nos fundamentos aqui apresentados. A produção
de mercadorias internas ao Brasil pôde, assim, simular uma acumulação de capital por
meio de capital fictício, a qual apareceu como crescimento econômico, sendo que o
mesmo não resultou imediatamente em inflação em razão do mecanismo de caráter
estritamente financeiro de apreciação do real frente ao dólar que a entrada de capitais
financeiros internacionais gerava (Gráfico 4, abaixo). Esse processo continuou por um
período de tempo e se retroalimentou, até mesmo porque continuou a aumentar a
capacidade de importação de mercadorias da economia brasileira como um todo.
O segundo movimento dos mercados de capitais no Brasil a partir de
investidores internacionais, mas também nacionais, o que incluiu aí o tal surgimento
de uma camada média cada vez mais dependente de reproduzir seu poder de consumo
a partir de seus investimentos financeiros, foi a exponencial alta da bolsa de valores
brasileira, a BM&FBOVESPA, cujos preços das ações também acompanharam o
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processo por nós aqui descrito para a economia brasileira como um todo e também
funcionaram como inflação dos títulos de propriedade a fundamentar consumo de
mercadorias mediado por capital fictício:
39 Aqui cabe um breve esclarecimento sobre o Gráfico 4. Quanto menor a linha referente à taxa de
câmbio para a relação reais brasileiros x dólares dos EUA, maior a capacidade aquisitiva do real frente
ao dólar.
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fixo no Brasil não param – como vimos anteriormente a partir de Rezende (2016), o
que também demonstram Milanez (2017), Asevedo (2017), ao tratarem
respectivamente da produção de minério de ferro e petróleo; e também verificamos
para a produção da agroindústria canavieira, para a produção de soja e para a indústria
avícola (SILVA, 2013).
Claro que já em 2009 diversas falências ocorreram e o PIB mundial despencou,
inclusive o brasileiro (ver Gráfico 1). Porém, no Brasil, após 2009, mesmo com a queda
do comércio mundial e dos preços de mercado das mercadorias, o investimento é
fortemente retomado. Rezende (2016) explicou isso pelo ciclo financeiro de Minsky
como otimismo e má avaliação financeira dos capitalistas, do que discordamos. No
caso brasileiro, após 2009, o Estado passa a agir mais fortemente tentando fomentar a
economia e passa a ser muito mais atuante na criação de capital fictício interna ao país
do que no momento anterior, de preponderância de tal criação via mercado de capitais
e sua circulação nos mercados produtores de mercadorias. O Estado brasileiro passou a
promover corte de impostos aos setores industriais e aumentou o investimento na
“produção do espaço” (aqui entrarão as obras para a Copa do Mundo de 2014 e
Olimpíadas de 2016, assim como as grandes obras como estradas e hidroelétricas por
meio do Programa de Aceleração do Crescimento I e II – PACs –, de 2007 e 2010
respectivamente). Aumentam assim também o distributivismo de crise e o fomento ao
crédito para consumo para todas as camadas sociais brasileiras e empresas.
Ao mesmo tempo, apesar da queda no comércio internacional, os preços das
commodities escalam novamente (Gráfico 3) – apenas entre 2009 e 2010, passando a
declinar de forma definitiva a partir de 2011 – como tentativa de grande parte do
investimento financeiro mundial de se proteger da crise de 2008 (GIBBON, 2013). A
economia brasileira, então muito mais endividada e com forte piora nas possibilidades
de realização das mercadorias, continua a investir mesmo assim (REZENDE, 2016 e
CARNEIRO, 2018), justamente por precisar pagar dívidas passadas e necessitar
aumentar suas produções na tentativa de fazê-lo e na tentativa de adquirir novas
dívidas para rolar as anteriores.
Ainda assim, apenas este último momento, entre 2009 e 2012, foi entendido por
Carneiro (2018), Batista (2018) e Rezende (2016) como momento de prevalência de
uma “pirâmide financeira” (ou esquema “Ponzi” para a economia brasileira) em razão
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41 Tooze (2018) demonstra como mesmo os capitais tidos como mais produtivos do mundo, como a
General Motors (por exemplo, maior produtora da indústria automotiva do mundo até aquele
momento) ou mesmo a Arábia Saudita como maior produtor de petróleo do mundo (a partir de 2014:
ASEVEDO, 2017), quando da deflação dos preços internacionais, tiveram problemas para se
reproduzirem. A GM teve de ser “salva” pelo governo dos EUA e a Islândia (como outro exemplo),
muito atrelada aos investimentos financeiros nos EUA, quebrou logo na crise de 2008 (TOOZE, 2018).
Empresas brasileiras das mais significativas em seus setores como Sadia e Aracruz (FARHI e BORGUI,
2009) também faliram neste momento, pra não falar das empresas da agroindústria canavieira já
destacadas anteriormente.
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como a de que ocorreria uma reposição hoje da acumulação primitiva como saída para
a crise de valorização do valor, formulação que está na boca de Harvey com sua
“produção do espaço” e “acumulação por despossessão” (2011) ou em Dörre (2015),
com o conceito de Landnahme (criticados em SCHOLZ, 2019).
Desejamos incialmente nos deter na produção agrícola (industrializada)
brasileira. Vale a ressalva de que também para o caso da terra, a própria
particularidade das formas de expropriação que se aprofundaram com a bolha das
commodities carrega em si a ficcionalização da renda da terra e da produção do espaço,
movimento só possível de ser apreendido por meio de um ponto de vista que busca o
movimento da totalidade concreta e não se coloca de fora da sujeição da contradição
em processo do valor-dissociação. Se destacamos anteriormente que a subida dos
preços das commodities nos mercados de capitais determinou uma expansão tanto
intensiva como extensiva da produção destas mercadorias em razão das empresas
capitalistas concorrerem por tal subida, tal movimento conduziu a uma subida dos
preços da terra agrícola, em razão do aumento de sua demanda. O preço da terra
estava, assim, determinado por uma renda da terra fictícia, vinculada à bolha das
commodities. Acontece que, após 2008 e a queda dos preços das commodities e da
crise do capital mundial, diversos são os conglomerados que passam a investir na terra
como ativo financeiro, movimento que foi apreendido em escala mundial por Saskia
Sassen (2014), por exemplo, ao descrever então a constituição de um mercado global
de terras. Diversas empresas produtoras de commodities no Brasil se associaram a
capitais financeiros internacionais e passaram a estabelecer imobiliárias agrícolas a
investir na terra como se fosse um ativo financeiro à parte, ou seja, passaram a investir
esperando o preço da terra continuar a subir para vende-la posteriormente, mesmo
sem necessariamente produzir nada ali (PITTA, 2016 e 2018 e PITTA e MENDONÇA,
2018). Isso não deixou de mobilizar expropriações sobre pequenos proprietários rurais
(principalmente sobre populações de negros, descendentes de escravos, indígenas e
outros grupos) nas áreas denominadas de fronteira agrícola, como é o caso do
MATOPIBA (PITTA e MENDONÇA, 2018), por nós estudado. Isso não significou, no
entanto, que tais expropriações estivessem movendo uma valorização do valor, como se
compusessem uma reposição de acumulação primitiva a compensar a crise do capital
de 2008, por exemplo. A própria forma da mesma ocorrer se dá, por exemplo,
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42 Este processo de formação do trabalho no Brasil não ocorreu sobre camponeses ou relações de
produção pré-capitalistas, mas sobre uma realidade de fronteira aberta que necessitava se utilizar de
violência direta para forçar e mobilizar trabalho, o que Marx já destacara em sua teoria da moderna
colonização (MARX, 1984a, Livro I, Tomo I, capítulo XXV). Para a formulação da formação do
trabalho no Brasil e o colapso da modernização, ver Grupo de Crítica do Valor-Dissociação São Paulo
(2010).
43 Para a palestra dividida com David Harvey, na qual sugerimos tal formulação, ver:
<https://pcp.gc.cuny.edu/2017/02/financial-markets-and-land-speculation-02-15/>. Também
devemos considerar a concepção de produção do espaço, com outra formulação em Lefebvre, para
quem o espaço como abstração concreta determina a reprodução das relações sociais de produção
capitalistas. Para nós tal reprodução hoje ocorre ficcionalizando a forma mercadoria de relação social,
como vimos, o que é a crise de tal reprodução mesma. Ver tal discussão em Pitta (2016), capítulo 3.
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Não obstante concordarmos aqui com o modo como o Coletivo Passa Palavra
apreende as formas de manifestação do que é para nós a crise do trabalho e a crise
fundamental do capital ao longo da bolha das commodities no Brasil, vale destacarmos
que, concomitantemente ao que ocorria em relação ao próprio trabalho em crise, um
estado de exceção permanente também se aprofundava, a fim de mobilizar a sociedade
brasileira como um todo a se enquadrar no projeto do Partido dos Trabalhadores de
tentar administrar a crise do capital. Em sua forma, o aumento do encarceramento em
massa, do genocídio da população negra a predominar nas periferias das grandes e
médias cidades brasileiras, de concentração de terras rurais e de capitais e da
desigualdade social são as formas de ser do asselvajamento e da lógica sacrificial da
crise fundamental do capital. Alguns exemplos são sintomáticos de tais processos
como, vale ressaltarmos, a criação da Força Nacional pelo Partido dos Trabalhadores
(ligada ao poder Executivo), responsável direta por garantir as expropriações e
execuções das obras de infraestrutura do PAC, a qual despejou populações negras e
indígenas, pequenos produtores rurais e habitantes das periferias das cidades para
tanto; assim como assassinou inclusive trabalhadores assalariados que paralisaram os
canteiros de obras de tais construções. Aqui, o caso da hidroelétrica de Belo Monte é
sintomático, já que hoje é a terceira maior do mundo, a qual nem a ditadura militar
(1964-1985) conseguira construir, e na qual a Força Nacional atuou e a viabilizou,
expropriando, externalizando custos de destruição da natureza e assassinando
trabalhadores em greve.
Outra marca do governo do Partido dos Trabalhadores é a formulação da Lei
Antiterrorismo (de 16 de março de 2016 – MENEGAT, 2019a, p. 163-164), que passou
inclusive a ser aplicada contra movimentos sociais, como por exemplo, sobre membros
do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra/MST (NOSSA, O Estado de São Paulo,
03 de agosto de 2016) – base de apoio do Partido dos Trabalhadores no poder ao longo
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continuar a ocorrer até a distribuição dos meios de produção aos trabalhadores, desde
que sem estagnação do desenvolvimento das forças produtivas.
Com a extrema-direita no poder, a simulação de ascensão de camadas médias, o
distributivismo de crise e o asselvajamento por meio de tentativas de gestão da
barbárie do estado de exceção permanente assumem a explicitação quase-imediata da
economia de saque e da nova guerra total (MENEGAT, 2019a), que já estavam lá
presentes, mas se tornam reconhecíveis para a subjetividade social. “Ultraliberalismo”
ou “necroliberalismo” como tentativas de retomada de processos de acumulação de
capital que não lograrão suceder, mas que se caracterizam pelo aceleracionismo
(CATALANI, 2019) da exploração do trabalho, das expropriações e da destruição da
natureza, se combinam com a guerra total para contenção da maioria a ser excluída,
como supérfluos para estes processos. Neste sentido, aqui, nos distanciamos da
interpretação de Paulo Arantes (ARANTES, 13 de junho de 2019) ao analisar a
militarização recente no país, seja a partir das ações do Estado, seja por meio das
gangues e milícias (cada vez mais entrelaçadas ao próprio Estado), ao apreendê-las por
meio da antiga crítica do neoliberalismo e de suas políticas de privatização de
empresas, como forma de tentativa de redução de custos e retomada de uma
acumulação de capital que mesmo antes já não era mais viável de ocorrer, conforme
pretendemos ter deixado claro ao fim deste texto. O que está a acontecer contém em
sua própria forma a crise do capital e sua determinação pela inflação dos títulos de
propriedade, daí a necessidade de acessar os mercados de capitais como finalidade de
simulação de acumulação via capital fictício45 (PITTA, 2017) das empresas mobilizadas
45 O mesmo vale aqui para interpretações acerca da chamada “uberização” do trabalho, que continuam a
tentar apreender o movimento histórico do capital ao assumir o ponto de vista do trabalho, que
aparece como cada vez mais explorado sob novas formas, o que diz pouco acerca da capacidade de
valorização do valor do capital como totalidade, conforme já demonstramos. Algumas explicações para
tais processos não são bem-sucedidas inclusive em apreender como a própria empresa Uber, por
exemplo, apesar de tanto explorar trabalho acumula prejuízos. Recentemente, após sua abertura de
capital em bolsa de valores nos EUA, ficou clara a necessidade de mediação pelos mercados de capitais
para tal empresa tentar simular acumulação capitalista por meio do acesso à inflação de títulos de
propriedade, o que nada garante que tal simulação venha a se efetivar. Um tanto caricata (de um
marxismo tradicional que tenta encaixar dedutivamente a realidade em seus pressupostos teóricos
anacrônicos) é a explicação para anos de prejuízo por meio do argumento da prática do dumping por
parte das empresas concorrentes neste tipo de setor, apesar de não conseguirem entender por que
parece assim que o dumping e o prejuízo destas seriam eternos (LOPEZ, InfoMoney, 20 de maio de
2019), uma contradição nos próprios termos desta explicação...
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pela guerra total46. Assim, os grupos sociais de supérfluos aparecem como promessa
futura de rebeldes a serem contidos e controlados, o que pode inflacionar os títulos de
propriedade da indústria armamentista, ativar a aquisição de dívidas por parte destas
empresas tendo por garantia tais títulos inflacionados, o que realimenta a mobilização
da produção e seu desenvolvimento das forças destrutivas47. Tal movimento é a própria
catástrofe social da crise do capital em desdobramento, que continua a aprofundar a
própria crise imanente do capital ao fomentar a inexorável expulsão do trabalho vivo
do processo produtivo, ao mesmo tempo que nos mantemos inseridos na mediação do
valor-dissociação em dissolução, mediação que, no entanto, não é suplantada, mas
reposta, inclusive já que necessitamos continuar trabalhando em um momento de
superfluidade do trabalho. Isso não ocorre como esgotamento da necessidade da
exploração do trabalho para a valorização do valor por parte do capital, já que este
continua a ser sua substância e fundamento, mas por impossibilidade do capital em
fazê-lo, dado o irreversível nível de produtividade dos próprios capitais.
A passagem acima exposta acerca da guerra total contemporânea e da
possibilidade de intermediação do capital fictício em seu momento de inflação dos
títulos de propriedade não pode ser entendida de maneira imediata, como simples
cálculo racional de um sujeito positivo que opta pela aniquilação social do outro e de si
(como é o caso do homem-bomba ou do amoque), próprios que são do fim de linha da
sociabilidade capitalista. Assim, devemos, com Leni Wissen (2017), a partir de Adorno
(1966 e 1967), nos remeter ao nível psicossocial do sujeito da crise do capital, o qual é
46 Jeremy Scahill, em Dirty Wars (2013), critica a “guerra ao terror”, que é em si mesmo “terrorista”,
com suas medidas de estado de exceção permanente via técnicas de tortura, ataques de drones e
análise de dados por algoritmos (o Big Data, para tanto ver Thomas Mayer, Big Data e o novo mundo
inteligente como estágio supremo do positivismo, 2018), como uma profecia autorrealizável que cria o
próprio terrorista, a qual se aprofunda ampliada e tautologicamente. Veja por exemplo o caso da
inflação das ações da Raytheon e demais indústrias bélicas após o lançamento da Mother of All Bombs
(MOAB) em um complexo de túneis no Afeganistão, logo que Trump assumiu o poder, o que moveria a
ampliação da produção bélica e o aprofundamento do surgimento de grupos “terroristas” a tentar fazer
frente à “guerra ao terror”.
47 Sugerimos ao leitor conferir ainda o texto de Menegat (2019b, pg. 170), que apreende os processos
supra mencionados, por exemplo, o do protagonismo militar a partir de 2019 no Brasil como
“compondo o campo ativado pela ‘nova-direita’, [que] tem como pano de fundo uma adequação às
necessidades em curso das guerras de ordenamento mundial, como modos atualizados da gestão da
crise do capital agravada desde 2008. Tal protagonismo dos militares não é o início do estado de
exceção, mas tão somente um momento de aprofundamento do mesmo que tenderá a continuar no
próximo período”.
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48 No momento em que redigimos as palavras finais deste texto (outubro/novembro de 2019) a Turquia
ataca Rojava, região do Norte e Nordeste da Síria de maioria curda (mas que também comporta outros
grupos étnicos) que foi criada sem visar a implantação de um Estado e experimenta a autogestão das
fábricas pelos trabalhadores para produção, troca e consumo de mercadorias, a partir de tentativas de
tomada de decisão sobre tal processo em comunas e assembleias não hierarquizadas e que visavam a
crítica ao patriarcado. Após a já esperada “traição” do governo terrorista dos EUA – o qual forneceu
suporte para as tropas de Rojava aniquilarem o Estado Islâmico nos últimos anos –, Rojava teve que se
aliar ao terrorista facínora sírio Bashar al-Assad e prometer dissolver seus exércitos no exército sírio
para não ser dizimada. Após isso, EUA, Rússia, Turquia e Síria decidiram estabelecer uma faixa de
segurança (“safe zone”) fronteiriça “não ocupada” entre Síria e Turquia, a qual passa sobre os
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desdobramento trágico. Para nossa crítica a tal experiência, considerada por nós relevante e
significativa, mas que não tematizou teoricamente as bases sociais do capitalismo como sociedade do
trabalho fundada na mediação social da mercadoria e do valor, impedindo também uma possível
experiência prática neste sentido, ver “Uma crítica à economia em Rojava”, do Comitê de
Solidariedade à Resistência Popular Curda de São Paulo (2016).
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A TRAJETÓRIA DO ANTROPOCENO E
O GENERAL INTELLECT
Crítica imanente das ciências naturais para uma improvável
emancipação1
Daniel Cunha2
Computer love
Computer love
(Kraftwerk)
1 Esta é uma versão expandida de uma palestra originalmente apresentada no seminário Ciência e a
Hipótese Comunista, organizado pelo Centro de Estudos da Ideia e da Ideologia, UFF, Rio de Janeiro,
Julho de 2018, e na conferência Climate of Crisis: Life, Power, and Planetary Justice in the
Capitalocene, organizada pela World-Ecology Research Network, Binghamton (EUA), Fevereiro de
2020. Uma versão preliminar foi publicada no Blog da Consequência
(https://blogdaconsequencia.com/2018/09/12/a-trajetoria-do-antropoceno-ciencia-natureza-e-
emancipacao-ou-por-uma-critica-imanente-das-ciencias-naturais-2/). Agradeço o Centro de Estudos
da Ideia e da Ideologia, especialmente Joelton Nascimento, Sílvia Ramos Bezerra e Gabriel
Tupinambá, pelo convite para o seminário no Rio. Agradeço Cláudio R. Duarte, Raphael F. Alvarenga,
Joelton Nascimento, Fábio Pitta, Maurílio Botelho, Douglas Rodrigues Barros, Edemilson Paraná,
Jason W. Moore, Tobias Menely, Daniel Boscov-Ellen, Alan Rudy, Joseph Keith, Troy Vettese, e outros
cujos nomes não tenho registro, pelas perguntas, comentários e críticas sobre versões anteriores deste
artigo. Agradeço José Mauro Garboza Júnior e Jeff Almeida pelo auxílio com ciatações. A
responsabilidade é exclusivamente minha. Esta pesquisa foi apoiada por uma Provost’s Doctoral
Summer Fellowship da Binghamton University.
2 Doutorando em Sociologia (Binghamton University), M. Sc. Ciência Ambiental, Engenheiro Químico.
E-mail: dcunha77@outlook.com
147
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3 O conceito de fetichismo que uso aqui deriva de Marx em O capital, o que implica dizer que é
essencialmente diverso daquele utilizado pelo marxismo histórico, que o trata como “falsa
consciência” ou “véu” que encobre os “reais interesses de classe”. Na concepção original marxiana, o
fetichismo conforma as mediações sociais capitalistas realmente como relações sociais entre coisas e
relações coisificadas entre pessoas, com a mercadoria e seu caráter contraditório como célula
fundamental. As classes, então, aparecem como “máscaras de caráter” e “personificações de categorias
econômicas”, derivando do valor (inversão de sujeito e objeto). Ver também Postone (2014), Jappe
(2006), Colletti (1992).
148
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**
149
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(Kraftwerk)
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4 É por isso que no início do último capítulo dos Grundrisse Marx faz a observação: “Dieser Abschnitt
nachzunehmen” – trazer esta seção para a frente – infelizmente traduzido pela edição da Boitempo
como “retomar esta seção”.
5 Refiro-me às abstrações violentas “natureza” e “sociedade” (quando a sociedade não é conceituada
como parte da natureza, sendo isso uma expressão real das tendências da forma social) em oposição à
abstração de pensamento “natureza”, que permanece um conceito necessário para se referir à
existência de um mundo externo cujas “leis” e “padrões” são independentes de volições humanas.
Sobre abstração violenta, ver Sayer (1983,121).
151
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plantações de algodão no sul dos Estados Unidos no século XIX já estavam plenamente
integradas na dinâmica capitalista da valorização do valor. Ambas usavam o trabalho
escravo e apropriavam a fertilidade natural do solo em fronteiras de mercadorias, a
fronteira onde a natureza não-capitalizada é apropriada e se torna parte do circuito do
capital.6 Aquelas plantações de algodão foram parte constitutiva fundamental da
Revolução Industrial, entendida como histórico-mundial (ao invés de britânica), como
condição de possibilidade para o incremento de capital fixo nas fábricas têxteis
britânicas (Cunha 2018).
6 Este é o problema da reprodução ampliada do capital, como elaborado por Marx no segundo volume do
Capital, discutido por Rosa Luxemburgo e repensado por Jason W. Moore com o seu conceito de
“fronteira de mercadoria”. Ver Moore (2000; 2015, ch. 2).
7 Derivo essa dialética de controle e descontrole de Campagne (2017, 84-86), em estudo comparativo
entre os conceitos de Antropoceno elaborados por Jason W. Moore, Andreas Malm e por mim. Isso
também pode ser derivado de Marx: “na sociedade do modo de produção capitalista a anarquia da
divisão social do trabalho e o despotismo da divisão manufatureira do trabalho se condicionam
mutuamente” (2011b, 430).
152
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processo, como exposto por Marx, à medida que as forças produtivas se desenvolvem
constitui-se um “general intellect”, como força produtiva social que se realiza mais
como conhecimento e supervisão do maquinário do que como processo de trabalho
direto (Marx 2011a, 587-591). Nesse ínterim, para que o capital aplique as “leis da
natureza” na produção de mercadorias, ele é obrigado a lidar com a “resistência da
matéria”, uma matéria que, contrariamente ao valor de troca que comanda a produção
capitalista, não é fungível, é dotada de propriedades sensíveis específicas.
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em áreas cada vez mais rurais e despovoadas, e puderem deslocar-se para os centros
urbanos dotados de força de trabalho abundante e barata (Malm 2016). Savary,
Newcomen e Watt e seus engenheiros e trabalhadores fizeram a máquina a vapor
funcionar na prática. No século XIX, o seu funcionamento foi formalizado em
universidades, por figuras como Carnot e Clapeyron, até que Clausius enunciou
claramente as duas leis da termodinâmica: “a energia do universo é constante; a
entropia do universo tende ao máximo” (Muller 2007, cap. 1-3).
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Aqui fica claro que esse é o tipo de conceitualização que se originou na ciência
do imperialismo, para a qual os jardins botânicos foram instrumentais. A lista poderia
seguir: a exaustão dos solos pela agricultura capitalista induziu o desenvolvimento da
ciência do solo e métodos de regeneração da fertilidade, por exemplo.8 Em 1883, essa
8 Como destacado por Marx em sua famosa discussão sobre a agricultura capitalista: a crescente
preponderância da população urbana “desvirtua o metabolismo entre o homem e a terra, isto é, o
retorno ao solo daqueles elementos que lhe são constitutivos e foram consumidos pelo homem sob
forma de alimentos e vestimentas, retorno que é a eterna condição natural da fertilidade permanente
do solo.” Mas ele continua: “ao mesmo tempo que destrói as condições desse metabolismo,
engendradas de modo inteiramente natural-espontâneo, a produção capitalista obriga que ele seja
sistematicamente restaurado em sua condição de lei reguladora da produção social e numa forma
adequada ao pleno desenvolvimento humano.” Essa necessidade de restauração impulsiona o
desenvolvimento da ciência do solo (Liebig), mas sob condições despóticas que causa o “martirológio
dos produtores” e o “esgotamento das fontes duradouras dessa fertilidade” (Marx 2011b, 573). Não
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obstante o martirológio e a ruína, a ciência do solo (a lei do mínimo etc.) desenvolvida sob condições
despóticas é parte do general intellect, com frequência ignorada em análises dessa passagem.
9 Sobre a terceira revolução industrial e a automação, ver Ramtin (1991).
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as condições de vida sobre a terra é também a época que, em virtude deste mesmo desenvolvimento
técnico e científico separado, dispõe de todos os meios de controle e previsão matematicamente
indubitável para medir por antecipação aonde leva - e até que data - o crescimento automático das
forças produtivas alienadas da sociedade de classes: ou seja, para medir a rápida deterioração das
próprias condições de sobrevivência, no sentido mais geral e mais trivial da palavra.”
13 Na escala regional e nacional esse controle pode ser momentaneamente possível, mesmo que sem
desenvolver o seu potencial pleno. Na Floresta Amazônica, o sistema de monitoramento por satélite
acoplado a um modelo matemático ajudou a reduzir a taxa de desmatamento. Porém, sob pressão do
mercado mundial, o programa de monitoramento foi deslegitimado e o desflorestamento voltar a ser
acelerado no governo Bolsonaro. Ver Almeida et al. (2016), Escobar (2019) e Cunha (2019a).
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(Kraftwerk)
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.
Outra vertente da crítica das ciências naturais é aquela que pode ser
caracterizada como “primitivista”: a rejeição total das ciências naturais e das forças
produtivas da modernidade como puramente destrutivas e indesejáveis. No Brasil, sob
o viés particular do reconhecimento da cosmologia ameríndia, isso reverteu em
primitivismo ideológico quando se faz curto-circuito com a política em Viveiros de
Castro e Danowski (2017). Aí se imiscuem desde o malthusianismo do “há gente
demais no mundo” (129), o rebaixamento das forças produtivas via apologia da
“gambiarra” (132-3), e até o retorno do mito na “psicopolítica do tecnoxamanismo”
(131).15 De maneira similar, recentemente Royer (2020) criticou o meu texto “O
Antropoceno como fetichismo” (Cunha 2015) do ponto de vista de um “isomorfismo
estrutural que existe entre o capitalismo termoindustrial e o conhecimento científico”.
Royer parece sugerir com isso que há identidade entre os dois, assim rejeitando
qualquer noção de general intellect para além do capital. De maneira que, ao referir-se
ao aquecimento global, estaria a ser pego no contrapé, visto que, como já exposto, a sua
teoria deriva do conhecimento gerado pelo próprio capitalismo termoindustrial.16 Esse
tipo de rejeição em bloco das forças produtivas, caracterizei em outra ocasião como
“síndrome de Dr. Gori”, em referência ao personagem do seriado japonês Spectreman
(Cunha 2015c).17
15 Minha crítica a Danowski e Viveiros de Castro não se refere ao seu trabalho antropológico proprimente
dito (a maior parte do livro citado), mas ao curto-circuito entre antropologia e política (a parte final do
livro), que, a meu ver, conduz a proposições reacionárias (no limite, malthusianas e dessocializantes).
Uma visão positiva das elaborações de Viveiros de Castro (e de Carolyn Merchant), que inclusive tem
alguns pontos de contato com o argumento desenvolvido neste ensaio, ainda que por caminho muito
diverso, pode ser encontrada em Marques (2016).
16 A crítica de Royer é mais ampla, sendo aqui destacado apenas o que interessa ao presente argumento.
17 No seriado, Dr. Gori cria monstros a partir da poluição. Ele se dirige assim à sua criatura do primeiro
episódio, ordenando-a que destrua as forças produtivas: “Os terráqueos primam pela estupidez.
Transformaram o seu belo planeta num deserto contaminado... Embora a civilização dos terráqueos
não seja tão atrasada, eles insistem em dilapidar a natureza.Tamanha estupidez não pode ser
tolerada... Avante Hidrax! Destrua tudo o que tiver pela frente!” Ver em:
https://www.youtube.com/watch?v=HqlukRAANFw
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.
164
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.
(Roswitha Scholz) e Evelyn Fox Keller, a ciência natural encontra-se “com os dois pés
do lado público/masculino”, que se opõe à esfera privada/feminina como esferas
constituintes da sociedade produtora de mercadorias. As metáforas de gênero de Bacon
– a ciência como “encontro conjugal do espírito com a natureza” nas “câmaras mais
íntimas” através da “coerção, assédio, perseguição e conquista” (citado em Ortlieb
1998) – são apresentadas como evidência, sem no entanto mencionar o caráter
“hermafrodita” da ciência em Bacon na análise de Keller (1985), como descrito
anteriormente.
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.
Lohoff (2002) respondeu a Jappe com uma severa crítica. Jappe se colocaria no
campo do “contra-iluminismo”. Segundo Lohoff, a rejeição das tecnologias genéticas
não estaria em questão, mas sim a base desta rejeição: “a levar a sério as proposições
de Jappe, todas as pequenas e grandes inovações dos últimos duzentos anos devem ser
descartadas, e todo o desenvolvimento das forças produtivas nesse período deve ser
considerado puramente negativo”, “do CD-player ao zíper” (tradução livre).
Questionando se devemos nos livrar da panela de teflon por causa de sua origem, ele
conclui que tal origem, por si só, não pode ser o fundamento para decidir se uma
determinada tecnologia pode ser utilizada em contextos diferentes da valorização do
valor. Propõe um critério que se aproxima do “grau de subsunção” (expressão minha),
já que a biotecnologia opera a sua “reductio ad unum” imediatamente sobre a
realidade sensível, mudando o seu caráter irreversivelmente, enquanto no caso da
microeletrônica essa abstração é a princípio separável daquela. A questão central para
Lohoff é: “de qual ponto de vista argumenta a crítica radical?” Lohoff acusa Jappe de
fazer a sua crítica a partir das noções de “indivíduo como unidade qualitativa” e de
“natureza”, o que apenas reproduziria a subjetividade e objetividade capitalistas. A
crítica de Lohoff a Jappe, vê-se, ainda é parecida com a crítica dos românticos de 1987.
168
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.
169
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.
como esse sujeito nefasto produz objetos potencialmente úteis para uma sociedade
emancipada:
170
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.
Na verdade, para Scholz (2018) “tratar-se-ia, mais uma vez, de dar seguimento
à ‘primazia do objecto’ (Adorno), o que, em relação a certos objectos, pode significar
que eles só podem ser apreendidos com a matemática ou com as ciências naturais”.
Entre este “certos objetos” aludidos por Scholz, deduz-se, está o clima ancestral
(prévio ao humano) e futuro do planeta. Porém, para Scholz, a ancestralidade e o não-
humano não podem ser apreendidos “do ponto de vista de um sujeito autônomo” e
nem do “ancestral”, o que seria na verdade “uma fuga da realidade da sociedade do
fetiche da dissociação-valor em sua atual crise fundamental”, já que hipostasia o
171
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.
Há, porém, um aspecto ainda não teorizado pelos autores referidos da crítica do
valor que precisa ser incorporado se não se quer cair para a acusação de “ilusão
172
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.
173
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.
mas tem que “ouvir a natureza”, ainda que em condições despóticas (o projeto
baconiano “hermafrodita”, como caracterizado por Keller). Em outras palavras,
modelos matemáticos da natureza (ao menos os aplicados na produção) não podem
ser reduzidos a uma abstração no sentido de Sohn-Rethel, como afirma Ortlieb (1998),
visto que internalizam em seus parâmetros a “resistência da matéria”. Mesmo sob
condições de dominação, a natureza não é muda: apenas um sujeito pode ser reduzido
a objeto. Há elementos dessa formulação quando Postone elabora sobre “o sonho
implícito pela forma capital é de total ausência de limites, uma fantasia de liberdade
como a total libertação da matéria e da natureza”; quando Kurz reconhece que
“converter a própria natureza num estado a-histórico, de plena compatibilidade com a
abstracção do valor, nivelando qualquer diferença entre a natureza e a sociedade
capitalista” é “um projecto necessariamente votado ao fracasso”; quando Ortlieb é
obrigado a reconhecer, enfim, que o seu refrigerador não é pura ilusão.19 Porém, a
natureza não é conceituada como sujeito, ficando a questão como uma ponta solta das
formulações. Esses momentos mal-resolvidos são resíduos da abstração violenta
(gewaltsame absktraktion), do conceito que não captura momentos do objeto.20
Apesar de todos os autores até aqui citados terem plena consciência da crise
ecológica, nenhum, exceto Adorno e Marcuse, parece ter superado uma concepção da
natureza como “coisa morta”, que é na realidade uma concepção da modernidade
capitalista. Kurz (2003a) intuiu que
19 Como engenheiro químico e cientista ambiental, fiz pesquisa na área de modelos matemáticos de
reatores. Ver, por exemplo, Secchi et al (2001); reparar que os modelos são contrapostos à realidade
empírica no processo de validação e ajuste. É aqui que a natureza é “ouvida”.
20 Sobre “abstração violenta” ou forçada, ver Sayer (1983, 121). O clássico exemplo é Ricardo tentando
identificar a taxa de lucro imediatamente na taxa de mais-valia, como expõe Marx (2011b, 378).
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21Kurz (1987a) critica a subjetivação da natureza em Adorno e Horkheimer nestes termos: “a natureza
cega [subjektlose Natur] é reinterpretada como uma ‘vítima’ da auto-alienação humana ontológica, ou
seja, como um sujeito que sofre [leidenden Subjekt], objetivado pela lógica da ‘dominação’ humana.”
Aqui tomamos a forma da dominação da natureza como historicamente determinada na sociedade da
mercadoria, objetivada pela valorização do valor.
22 “A natureza resiste elementar e cegamente com a força terrível do seu obscuro, caótico, mas
inumerável e infinito exército de elementos. Para conquistá-la, a humanidade deve organizar-se como
um exército poderoso.” (Bogdanov 1980, 1).
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23 Evidentemente, essas abstrações podem ser utilizadas para os mais diversos fins. Sabe-se que a teoria
da evolução biológica flertou com o racismo e o darwinismo social, e Kropotkin teve de intervir para
mostrar que competição não é tudo. A termodinâmica, como registra Tanja Paulitz, foi utilizada contra
a emancipação feminina na Alemanha, sob o argumento de que a atividade intelectual seria uma
“concorrência energética” com a atividade reprodutiva. Daí, porém, a dizer que “a termodinâmica foi
dotada de uma metafísica que pressupunha um sujeito do conhecimento com base no gênero”, há um
salto mortal perigoso da sociologia para epistemologia. A menos que se queira recusar as geladeiras
(um “artefato” trivial projetado à base da termodinâmica) como metafísicas ou patriarcais. Ver Meyer
(2018a).
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**
Emancipação epistemológica
(Kraftwerk)
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Os modelos matemáticos das ciências naturais são alavancas para que possamos
“mudar de futuro” ao antecipar a catástrofe (Dupuy 2004), rompendo com a camisa de
força do valor que os mantém como instrumentos de contemplação. Enquanto
movimentos anti-sistêmicos estão claramente débeis, a ficção científica pode nos
oferecer alguma inspiração sobre como a ciência pode ser reconfigurada e utilizada
para além da valorização do valor. Na verdade, de acordo com Fredric Jameson (2005),
a esperança utópica encontrou nela um refúgio. Bogdanov (1984), em seu Red Star de
1908, imaginou uma sociedade marciana na qual um sistema estatístico distribui o
“trabalho” social necessário entre todos, de acordo com as aptidões e preferências de
cada indivíduo. O sistema estatístico tornaria possível que todo indivíduo pudesse ser
alocado a uma atividade de seu interesse, assim como, inversamente, que toda
atividade necessária pudesse ser alocada a algum interessado (Bogdanov 1984, 62-68).
Obviamente, isso requer a comunização da terra e dos meios de produção, de maneira
que não haveria requisição de tempo de trabalho em abstrato. Isso seria de certa forma
a realização do tipo de comunismo visualizado por Marx e Engels n’A ideologia alemã,
onde o indivíduo poderia caçar, pescar ou criticar, sem a compulsão de fixar-se em
qualquer destas atividades como uma “profissão”.25 Ou, ainda, a realização do mote da
Crítica do programa de Gotha: “de cada um de acordo com as suas habilidades, a cada
um de acordo com as suas necessidades” (Marx sd). Mas o que é o sistema estatístico
imaginado por Bogdanov senão o big data, não aplicado no mercado financeiro, mas
24Modelos matemáticos sempre podem “funcionar” apenas de maneira instrumental, enquanto deixam
de lado variáveis e processos fundamentais por razões mais ou menos conscientes (ideológicas). Por
exemplo, o modelo de um processo químico pode representar com elevada acurácia os seus processos
internos e sua eficiência enquanto deixa de lado a modelagem das emissões poluidoras, ainda que isso
seja tecnicamente possível, já que esta é uma “externalidade” da maximização dos lucros. A regulação
ambiental, por sua vez, pode exigir (em tese) a modelagem da poluição. Ver também os modelos
epidemiológicos discutidos por Wallace et al nesta edição, que modelam apenas a externalidade (a
pandemia), reificada dos circuitos do capital. Os modelos matemáticos do sistema climático também
modelam apenas externalidade, mas por estarem sob constante escrutínio da comunidade científica
transnacional institucionalizada no IPCC, com acesso praticamente irrestrito ao general intellect
(dados de monitoramento, reconstruções climáticas, desenvolvimentos teóricos, etc.) e terem por
objeto a totalidade do sistema climático,incorporam grande capacidade de autocrítica social.
25 “na sociedade comunista, onde cada um não tem um campo de atividade exclusivo, mas pode
aperfeiçoar-se em todos os ramos que lhe agradam, a sociedade regula a produção geral e me confere,
assim, a possibilidade de hoje fazer isto, amanhã aquilo, de caçar pela manhã, pescar à tarde, à noite
dedicar-me à criação de gado, criticar após o jantar, exatamente de acordo com a minha vontade, sem
que eu jamais me torne caçador, pescador, pastor ou crítico.” (Marx e Engels 2007, 38).
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Na trilogia marciana de Robinson (Red Mars, Green Mars, Blue Mars), escrita
na década de 1990, o planeta vermelho é colonizado e terraformado por uma
comunidade de cientistas, em meio a revoluções sociais que se livram do capitalismo
terráqueo, que buscava converter Marte em uma fronteira de mercadorias através da
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do que “controle”, uma “ordem” como aquela imaginada por Baudelaire, que permite
que o repouso suplante a industriosidade e o planeta se torne um Lebenswelt ou
“universo estético” que realiza a arte (ver Marcuse 1975, 149; Adorno 1993 , 137-8;
Marcuse 1969, 31; Debord 2009; Cassegard 2016).
Aqui tanto a evolução biológica quanto a geologia histórica (da qual ele tomou o
conceito de “formação”) são tomadas como meios para explicar o atraso entre o
desenvolvimento histórico e sua conceituação.27 Ele então elabora:
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EM ESTADO DE FAZENDA
Lima Barreto e o desmanche da ilusão nacional
Cláudio R. Duarte
1 BARRETO, Afonso Henriques de Lima. Diário íntimo. (Org. Francisco de Assis Barbosa, com
colaboração de Antonio Houaiss e Manuel Cavalcanti Proença). São Paulo: Brasiliense, 1956, p. 49,
grifo nosso.
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A revolta foi ampla, a repressão violenta. Lima aproveita para refletir sobre o
“progresso” do país, suas formas de governo, a identidade nacional de fundo que toma
figura em eventos desse tipo. Indo direto ao ponto, creio que isso se resolve, caso
seguirmos uma certa linha de tensões deixada por sua obra, nessa expressão
despretensiosa e irônica mas muito perspicaz do autor: um “estado de fazenda”.
Marc Ferrez. Escravizados na colheita de café, c. 1882. Vale do Paraíba, RJ / Acervo IMS.2
Aqui a metáfora do estado de sítio como “estado da fazenda” tem de ser tomada
quase como em Kafka, “ao pé da letra”3, e para não dizer que já se trata de um mundo
kafkiano, digamos pré-kafkiano: mundo obcecado pela forma de reiteração do poder
numa sociedade ex-escravista. Ao que nos parece Lima Barreto não foge ao círculo de
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concretização dessa metáfora territorial, que podemos tomar como essência de seu
procedimento estético e o que há de mais crítico e atual em sua obra. É como uma cor
fundamental que se apresenta em vários matizes. Assim, essa identidade
social/nacional negativa, de fazenda escravista, que solda a ideia de nação à forma
violenta do Estado, a uma construção fictícia do Estado e para o Estado, não é o
produto de uma soma – antes ao contrário, de duas subtrações. É a partir disso que as
carapaças ideológicas são como que retiradas e essa metáfora territorial passa a se
materializar. A primeira subtração evidente é a do nacionalismo, a segunda a do
cosmopolitismo, ambos necessitando um enquadramento pelo contexto, o de cada
momento, o de cada obra, para se obter sua determinação específica.
4 COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. 5ªed. São Paulo: Ed. Unesp, 2010, p. 58.
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5 BARRETO, “O único assassinato de Cazuza” in:__. Contos completos. (Organização e Introdução Lilia
M. Schwarcz). São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 533-34, grifo nosso.
6 MARTINS, José de Souza. Expropriação e violência. 2ªed. São Paulo: Hucitec, 1982; OLIVEIRA,
Francisco de. Brasil: uma biografia não autorizada. São Paulo: Boitempo, 2018; cf. também com o
ensaio de Fábio PITTA, nesta edição de Sinal de Menos. Na literatura latino-americana, Horacio
Quiroga tratou desse tema abordando o grupo de trabalhadores mensú, submetidos à semiescravidão
nas madeireiras na região da tríplice fronteira, dentre outros lavradores prestes à proletarização, como
apontei num artigo anterior: DUARTE, Cláudio R. “Ex-homens na fronteira literária latino-
americana”. Sinal de menos, nº 13, 2019.
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Crônicas da violência
“Aos cinquenta e três anos, não tinha mais um parente próximo junto de si.
Vivia, por assim dizer, só, tendo somente a seu lado um casal de pretos velhos, aos
quais ele sustentava e dava, ainda por cima, algum dinheiro mensalmente” 9 – assim
vinha sendo caracterizada, no conto anteriormente citado, a vida do protagonista
Cazuza, que resolve “retirar-se da liça”10 – “desesperançado”, “mas não desesperado”,
refugiando-se numa casa num “subúrbio afastado”, qual o “Náutilus” de Júlio Verne,
deixando para trás a vida de “funcionalismo”, “burocracismo” e “literatura” que tentara
7 ANTÔNIO, João. Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1977, p. 13-4.
8 Idem, ibidem, p. 15.
9 BARRETO, “O único assassinato do Cazuza”, op. cit., p. 533.
10 Idem, ibidem, p. 532.
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por anos sem receber nenhum reconhecimento numa sociedade regulada pelo favor e o
mandonismo. Nesse “refúgio de infelizes” que é o subúrbio para Lima – uma terceira
espécie de subtração como veremos –, o personagem comenta que se “livrou” dessas
práticas do “interior”. Como aqui todo significante mesmo metafórico tende a ter um
peso literal, Cazuza foge à violência desse campo geral confessando que também ele
matara quando criança. Suspense... “o meu pé descalço apanhou um pinto e eu o
esmaguei” no quintal da antiga casa (...) “Foi esse o único assassinato que cometi.”11
Por identificação mimética obscura e talvez algo inconsciente, que deita raízes
profundas em toda a obra de Lima, é ao frágil animal esmagado que o narrador insinua
a identidade geral de homens, coisas e animais, numa relação simbiótica que se
mostra inicialmente entre Cazuza e a velha casa, o médico com quem conversa e os
velhos pretos abandonados nos confins da cidade. A oralidade do “causo” brasileiro
como forma desse conto aqui também não é sem menos, sinalizando essa estrutura
relacional que combina a forma da prosa individualista mais moderna (que estoura no
romance burguês) e as ilusões também elas individualistas do universo dos arranjos
pessoais e da viração, que vêm do escravismo colonial. 12 Por isso mesmo sem solução,
diferentemente do molde romântico, que veio de Macedo e Alencar, algo diferente de
Almeida, cuja estrutura mais funda já abrigava um universo sombrio de rixas,
vinganças e compensações imaginárias, que fundiam e distinguiam dominantes e
dominados, e que se manifestava como luta generalizada, no limite dando sinal de uma
“guerra civil do trabalho” intestina entre a polícia e os despossuídos, mas também
entre homens livres pobres e escravos.13 Por aqui, se vê a clareza de Lima Barreto ao
trazer tais relações de favor, submissão e luta, até entre os próprios despossuídos, ao
primeiro plano. E por isso também deve bastar: o conto termina aí nessa ironia trivial,
sem graça – o verdadeiro enredo está no segundo plano dessas relações de identidade
entre homens, animais e coisas mais ou menos cristalizados kafkianamente em suas
funções –, sem esboçar mais qualquer tensão, nem clímax ou desfecho surpreendente.
Por aqui já se vê como a prosa barretiana tem muito do ar de uma crônica da violência,
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que suspende o sentido com uma portada, preferindo desmascarar um real que em si
parece ter algo de incrível e inaceitável, violentamente fantástico – pois como dito no
conto: quem tem “fortuna” no país se “alicerça no crime, no assassinato”! –, deixando a
indagação pelo que sobra fazer nesta condição de vida mutilada, ou qual miragem de
autonomia ainda resta num vínculo de favor e dominação direta combinado à forma-
mercadoria, nesse estado de fazenda geral:
14 Como assinala Bosi, “nos romances de Lima Barreto há, sem dúvida, muito de crônica: ambientes,
cenas quotidianas, tipos de café, de jornal, da vida burocrática, às vezes mencionados ou mal
esboçados, naquela linguagem fluente e desambiciosa que se sói atribuir ao gênero. O tributo que o
romancista pagou ao jornalista (aliás, ao bom jornalista) foi considerável: mas a prosa de ficção em
língua portuguesa, em maré de academicismo, só veio a lucrar com essa descida de tom, que permitiu
à realidade entrar sem máscara no texto literário.” (BOSI, Alfredo. História concisa da literatura
brasileira. São Paulo: Cultrix, 1990, p. 360). Assim, compreenderemos melhor esse juízo crítico de
Antonio Candido que captou metade do que parece estar em jogo nesta prosa: “Lima Barreto é um
autor vivo e penetrante, uma inteligência voltada com lucidez para o desmascaramento da sociedade e
a análise das próprias emoções, por meio de uma linguagem cheia de calor. Mas é um narrador menos
bem realizado, sacudido entre altos e baixos, frequentemente incapaz de transformar o sentimento e a
ideia em algo propriamente criativo. A análise dos escritos pessoais contribui para esclarecer isto,
mostrando inclusive de que maneira o interesse dos seus romances pode estar em material às vezes
pouco elaborado ficcionalmente, mas cabível enquanto testemunho, reflexão, impressão de cunho
individual ou intuito social — como se o fato e a elaboração não fossem de todo distintos para quem a
literatura era uma espécie de paixão e dever; e até uma forma de existência pela qual sacrificou outras”
(CANDIDO, Antonio. “Os olhos, a barca e o espelho” in:__. Educação pela noite e outros ensaios. São
Paulo: Ática, 1989, p. 38-39).
15 Do modo mais plangente num conto menor de um trabalhador português, Manel Capineiro, cuja vida
“se faz no capinzal” junto a seus dois bois amados – “ele e os bois vivem em verdadeira comunhão”, até
que ambos são atropelados por um trem: “-Ai! mô gado! Antes fora eu!...” (BARRETO, “Manel
Capineiro” in: __. Contos completos, op. cit., p. 479).
16 BARRETO, “No tronco” in: __. Contos completos, op. cit., p. 596.
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“debrum de absurdo”.17 O que traz à mente títulos como Histórias e sonhos, sua única
coletânea de contos publicada em vida. Um nome significativo se se pensar a dialética
entre os dois termos, pois como Lima reflete parafraseando Dostoiévski, “a realidade é
mais fantástica do que tudo o que a nossa inteligência pode fantasiar.”18
Ora, esse processo brutal contrastava com o das potências industriais europeias
em expansão, i.e., com países de história nacional muito mais homogênea e
cristalizada, que nos serviam como espelho e miragem. Assim, uma reação a esse
descompasso nascia à época, segundo Sevcenko: o mito compensatório da
superioridade do “país novo” como um “gigante adormecido” que se associava a uma
ideologia liberal modernizadora, às vezes mais cosmopolita, às vezes mais nacionalista.
Ou seja, duas reações para a mesma questão – a da formação. A “atitude reformista e
salvacionista” dos intelectuais engajados como Lima e Euclides da Cunha constituiria,
segundo o historiador, uma espécie de terceira via pautada por um tipo de
“nacionalismo intelectual” interessado em conhecer o próprio Brasil, a identidade de
seu povo, suas riquezas e potencialidades, aplicar as técnicas modernas à produção, à
ciência e à imprensa, visando desenvolver uma república burguesa moderna. Sem
dúvida, o impulso pode ser o mesmo, mas se tratava de um programa de reformas que
a própria plutocracia da Primeira República tudo faria para deslocar e enterrar:
construir um Estado moderno e uma nação moderna baseada no trabalho assalariado e
na livre empresa, numa democracia pluriétnica e solidária, na escolarização e na saúde
de massas, no utilitarismo do conhecimento e na eficiência produtiva etc. 19 Resta saber
como na estrutura formal dessa prosa manifesta-se o desmanche de tais ilusões
necessárias – “ou o recolhimento interior e a negação da própria lógica da luta” – como
bem viu o historiador, de modo pioneiro.20
17 Como é dito num fragmento de conto inacabado: BARRETO, “Os pedaços” in: __. Contos completos,
op. cit., p. 592.
18 Citado por SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão. (Tensões sociais e criação cultural na
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Histórias e sonhos foi publicado após a grande guerra, em 1920. Não será um
nome formidavelmente ambíguo e revelador? Em “Congresso Pan-Planetário”, acha-se
um conto alegórico sobre o imperialismo estadunidense em forma de conferência de
paz. Júpiter (Estados Unidos) é o dominador no Congresso, propondo, ao fim, a
“fraternidade de todos os animais do Universo: homens e gatos, burros e jupiterianos,
marcianos e raposos.” Mas Júpiter tem a fama de odiar, discriminar e matar “gatos”
(negros) a “pauladas, a fogo, a fouce”, de restabelecer a escravatura quando assim
puder (Texas/México em 1837), impondo seu comércio e sua “atividade sem limites”23
21 É o que declara em alemão uma personagem de uma crônica publicada poucos dias antes da Abolição
da escravidão, provavelmente para despistar uma possível censura: “Es dürfte leicht zu erweisen sein,
dass Brasilien weniger eine konstitutionelle Monarchie als eine absolute Oligarchie ist.“ (MACHADO
DE ASSIS, J. M. “Bons dias!, 11 de maio de 1888” in: __. Obra completa. Rio de Janeiro: José Aguilar,
1959, Vol. III, p. 519).
22 Conferir esses que estão entre seus melhores contos: “A cartomante”, “Clara dos Anjos”, “A mulher do
Anacleto”, “O filho da Gabriela”, “Cló”, “Babá” (in:__. Contos completos, op. cit.).
23 A descrição do trabalho em abstrato é aqui digna de nota: “Demais, Júpiter estava em tal estado de
adiantamento que precisava mostrar-se ao sistema todo. Produzia por ano 200 000$000 de toneladas
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goela abaixo dos outros planetas/países (“e isto com alguma violência, que me eximo
de contar. De passagem, digo-lhes que ele ocupou um pedaço de Mercúrio.”).24
Isso que dá, assim, em personagens tão peculiares quanto esquisitas, tão reais
quanto estranhas e mais estranhas quanto mais sofridas e destinadas à vaidade, à
ilusão de liberdade, ao isolamento e à autonegação. Os casos memoráveis são muitos,
dentre eles: o famoso major Policarpo Quaresma (cf. adiante), ou aquele Gabriel
impossível do conto “Dentes negros, cabelos azuis”, cujo modo biface é uma costura de
“sensibilidade” e “tentação delirante”, um “acúmulo de desastres” 28, no qual se formula
“a lógica da hostilidade” que cerca os não-brancos nesta sociedade racista, pessoas
autoritarismo brasileiro. São Paulo/Belo Horizonte: Ed. Fund. Perseu Abramo/Autêntica, 2013.
28 BARRETO, A. H. de Lima. “Dentes negros e cabelos azuis” in:__. Contos completos, op. cit., p. 322.
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Vejamos uma outra portada dessa espécie, que não por acaso leva à morte. “De
manhã”, lemos em “A nova Califórnia” depois da profanação de túmulos e do
extermínio recíproco dos habitantes de Tubiacanga em sua procura fetichista por
ossos, “o cemitério tinha mais mortos do que aqueles que recebera em trinta anos de
existência. Uma única pessoa lá não estivera, não matara nem profanara sepulturas:
fora o bêbedo Belmiro.”38 É este olhar de banda, olhar marginal, olhar de um bêbedo
estropiado qualquer que sobra para contar essa história39, mais ou menos indiferente
“sob o dossel eterno das estrelas”, que parece informar, em vários desses escritos, a
versão barretiana do ponto de vista da morte como “estrutura recorrente da cultura
brasileira.”40 A diferença específica a ser introduzida, aqui, é que o abandono, a ruína e
37 Para a crítica a Coelho Neto e aos simbolistas “nefelibatas”, ver do autor: “Literatura e política”(em A
Laterna 18/01/1918) e “A crítica de ontem” (Revista Contemporânea, 10/05/1919) in: BARRETO,
Afonso H. de Lima. Impressões de leitura e outros textos críticos (Org. e Introd. Beatriz Resende). São
Paulo: Companhia das Letras, 2017; ver: RESENDE, Beatriz. “Lima Barreto: a opção pela marginália”
in: SCHWARZ, R. (org.). Os pobres na literatura brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 73-78.
38 BARRETO, A. H. de Lima. “A nova Califórnia” in:__. Contos completos, op. cit., p. 70.
39 Um final que obviamente remete ao divórcio entre sonho e realidade do aventureiro nos “saloons” e às
“ghost-towns” deixadas após o rápido esgotamento da febre do ouro na Califórnia (FOHLEN, Claude.
O faroeste. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, cap. II).
40 PASTA JR., José Antônio. “O ponto de vista da morte. Uma estrutura recorrente da cultura brasileira”.
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a morte não são de fato indiferentes, pois constituem a perspectiva de quem foi para a
margem41 e para o buraco, reconhece suas raízes familiares tiradas do eito e das
senzalas neste “estado de fazenda” generalizado, e se converte francamente na
perspectiva imanente do alienado (suposto) entre os alienados, do “rebotalho”
internado e administrado pelo Estado policial, do “diabo” excluído da comunidade e de
um virtual “exterminado”42, que às vezes parece habitar “o cemitério dos vivos.”43
É por isso que nesse conto fundamental de Lima há quem planta a semente da
morte na cidade, o forasteiro Raimundo Famel, com seu plano impossível da alquimia
de ossos em ouro, há os que trabalham com a cura dos corpos (o farmacêutico Bastos)
ou do discurso retórico (o Capitão Pelino) e há também quem governa o município (o
coletor Carvalhais, o coronel Bentes, rico fazendeiro e presidente da câmara) e põe,
junto ao farmacêutico desta “nova Califórnia”, a ideia do saque de sepulturas em
prática após o sumiço de Famel. O ponto de vista de Famel, segundo o narrador
onisciente, é similar ao de um governante racista que comanda uma fazenda de
escravos, feita de crianças comparáveis ao gado bem tratado antes do abate:44
volúvel, cruel e falaz quanto Brás Cubas, Bento Santiago ou o conselheiro Ayres. Algo disso sobressai
sem dúvida no narrador onisciente de “A nova Califórnia”.
41 Num outro conto interessante – “O moleque” (in: __. Contos completos, op. cit., p. 150-1), menino
negro que sofre a injúria racista e quer a descontar com o uso de uma máscara de “diabo” carnavalesco
- temos a demarcação desse lugar negativo historicamente resistente: “o não lugar do demônio social
que blasfema sob o olhar atarantado dos grã-finos” (Antonio Arnoni Prado, “Prefácio” de RESENDE,
Beatriz. Lima Barreto e o Rio de Janeiro em fragmentos. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2016).
42 Para utilizar um termo de Quincas Borba (MACHADO DE ASSIS, J. M. “Quincas Borba”. Obra
vida. De mim para mim, tenho certeza que não sou louco; mas devido ao álcool, misturado com toda
espécie de apreensões que as dificuldades de minha vida material há seis anos me assoberbam, de
quando em quando dou sinais de loucura: deliro” (“Diário do hospício”, 04/01/1920). (BARRETO, A.
H. de Lima. Diário do hospício e O cemitério dos vivos. Organização e notas: Augusto Massi e Murilo
Marcondes de Moura. São Paulo: Companhia das Letras, 2017). Para uma análise interessante ver
HIDALGO, Luciana. “Lima Barreto e a literatura da urgência: a escrita do extremo no domínio da
loucura”. Tese de Doutorado em Letras. Rio de Janeiro: UERJ, 2007.
44 Num outro conto essa analogia também é feita: “Esses Feitais eram célebres pelo sadio tratamento de
gado de engorda que davam aos seus escravos e também pela sua teimosia escravagista” (BARRETO,
A. H. de Lima. “O caçador doméstico” in: __. Contos completos, op. cit., p. 312, grifo nosso).
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O que Flamel deseja não tem a ver com a paixão romântica e a república idílica da obra
de Saint-Pierre (Paul et Virginie, 1787), mas é mais que os mortos do cemitério, o
direito autoral da obra macabra (“a prioridade da minha invenção”), a propriedade
exclusiva de um saber imaginário delirante, que leva ao final a cidade à autodestruição.
Pois a pequena cidade aqui se une diante do pensamento fetichista: “Se fosse possível
fazer, se daqueles míseros despojos fúnebres se pudesse fazer alguns contos de réis,
como não seria bom para todos eles!”. A unidade nacional romântica ironicamente
construída é então esta de uma luta fratricida pelos ossos. E o método barretiano de
narrar é o traço grosso anteriormente apontado, que infla e ironiza, subtraindo toda
esperança:
“Às necessidades de cada um, aqueles ossos que eram ouro viriam
atender, satisfazer e felicitá-los; e aqueles dois ou três milhares de
pessoas, homens, crianças, mulheres, moços, e velhos, como se fossem
uma só pessoa, correram à casa do farmacêutico.
A desinteligência não tardou a surgir; os mortos eram poucos e não
bastavam para satisfazer a fome dos vivos. Houve facadas, tiros,
cachações. Pelino esfaqueou o turco por causa de um fêmur e mesmo
entre as famílias questões surgiram. Unicamente, o carteiro e o filho não
brigaram. Andaram juntos e de acordo e houve uma vez que o pequeno,
uma esperta criança de onze anos, até aconselhou ao pai: ‘Papai vamos
aonde está mamãe; ela era tão gorda…’.”46
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Afonso H. de Lima. “Opiniões do Gomensoro” in:__. Contos completos, op. cit., p. 602.).
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Pátria fantasma
papel de velharia. Fica patente o seu caráter ilusório, além de provinciano e complementar de formas
arcaicas de opressão” (SCHWARZ, “Nacional por subtração”, op. cit., p. 34).
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“E que tinha ele feito de sua vida? Nada. (...) A pátria que quisera ter era
um mito; era um fantasma criado por ele no silêncio de seu gabinete.
Nem a física, nem a moral, nem a intelectual, nem a política que julgava
existir, havia.”58
– mas ao final tarde demais, quando vê o que acontece efetivamente com o significante
“Pátria” durante a Revolta da Armada e a grande repressão florianista: caos, arbítrio,
54 Cf. HOBSBAWM, Eric e RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1997. Para o processo brasileiro: CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas. (O imaginário
da República no Brasil). São Paulo: Companhia das Letras, 1990; CHAUÍ, op. cit.
55 Caio Prado Jr. aponta “a falta de nexo moral que define a vida brasileira em princípios do século
passado, a pobreza de seus vínculos sociais. Tomo aquela expressão ‘nexo moral’, no seu sentido amplo
de conjunto de forças de aglutinação, complexo de relações humanas que mantêm ligados e unidos os
indivíduos de uma sociedade e os fundem num todo coeso e compacto. A sociedade colonial se definirá
antes pela desagregração, pelas forças dispersivas; mas elas são em nosso caso as da inércia e esta
inércia, embora infecunda, explica suficientemente a relativa estabilidade da estrutura colonial: para
contrariá-la e manter a precária integridade do conjunto, bastarem os tênues laços materiais
primários, econômicos e sexuais, ainda não destacados de seu plano original e mais inferior que se
estabelecem como resultado imediato da aproximação de indivíduos, raças grupos díspares, e não vão
além deste contato elementar. É fundada nisto, e somente nisto, que a sociedade brasileira se manteve,
e a obra da colonização pôde progredir.” (PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo.
(Colônia). São Paulo: Brasiliense/Publifolha, 2000, p. 357).
56 ARANTES, Paulo E. “Nação e reflexão” in:__. Zero à esquerda. São Paulo: Conrad, 2004; SCHWARZ,
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desordem, prisões e crimes impunes, enfim: o poder militar que o aprisiona e o executa
friamente. Primeira subtração consequente, sete véus de ilusão nacional fora, resta o...
estado de sítio.
59 HORKHEIMER, Max. Eclipse of Reason. London/New York: Continuum Books, 2004, p. 80.
60 BARRETO, Triste fim de Policarpo Quaresma, op. cit., p. 174.
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“Não havia mais piedade, não havia mais simpatia, nem respeito pela
vida humana; o que era necessário era dar o exemplo de um massacre à
turca, porém clandestino, para que jamais o poder constituído fosse
atacado ou mesmo discutido. Era a filosofia social da época, com forças
de religião, com os seus fanáticos, com os seus sacerdotes e pregadores, e
ela agia com a maldade de uma crença forte, sobre a qual fizéssemos
repousar a felicidade de muitos.”61
deve unir-se, harmoniza em Lima Barreto as unidades mínimas do relato - que não decorrem das que
as antecedem e não provocam (ou provocam frouxamente) as que lhes sucedem. Aí reina, solerte, o
demônio da separação” (Idem, ibidem, p. 56-57).
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do país de Al-Patak, que ele tinha usurpado da maneira mais inconcebível” 64 – tornou-
se uma maneira precisa de traçar um paralelo e dar o recado silencioso das
circunstâncias históricas moldadas pela “liberdade ocidental” do valor de troca,
manobrada por seus governos: “Outra coisa que notou foi que os subúrbios tinham
casas de pedra e cal. O presidente imaginava que neles só houvesse choupanas,
palhoças e barracões. Isso alegrou-o muito porque podia aumentar os impostos.”65
Aqui entram pela pena do escritor aquela arquitetura e urbanismo erguidos na capital
federal após a operação do “bota-abaixo” e a política da “Regeneração” durante a belle
époque, que visou, como se sabe, um modelo hierárquico e segregacionista de cidade,
dando a impressão de “terra estrangeira” nos trópicos cercada das “imundícies” dos
subúrbios e bairros populares. Invertendo o ângulo, Lima aponta como isso serve ao
isolamento e ao controle socioterritorial das populações tidas como bárbaras e
rebeldes, prestes a se tornarem casos de polícia, e como o mundo da lei, da alta política,
dos funcionários e da plutocracia é o lado avesso, aqui também, da “estupidez,
degradação e imundície” potemkianas aludidas por Benjamin em Kafka.66
64 BARRETO, “S. A. I. Jan-Ghothe”/“Contos argelinos” in:__. Contos completos, op. cit., p. 355.
65 Idem, “Medidas de Sua Excelência”/“Contos argelinos” in: __. Contos completos, op. cit., p. 391.
66 Para essas semelhanças extemporâneas que estamos sugerindo: BENJAMIN, Walter. “Franz Kafka. A
propósito do décimo aniversário de sua morte” in: __. Obras escolhidas, vol.1. São Paulo: Brasiliense,
1985, p. 139 e 141. Noutra chave, poderíamos ver em Lima Barreto um dos precursores das narrativas
sobre ditadores latino-americanos (Astúrias, Carpentier, Garcia Márquez, Roa Bastos).
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nossos.
70 Idem, “O reconhecimento/”Contos argelinos”in:__. Contos completos, op. cit., p. 369-70.
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71
BENJAMIN, “Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte”, op. cit., p. 150.
72 BARRETO, “O homem que sabia javanês” in: __. Contos completos, op. cit., p. 72.
73 Idem, Os bruzundangas; incluindo Outras histórias dos bruzundangas. São Paulo: Ática, 1985, p. 43.
74 SEVCENKO, Literatura como Missão, op. cit., p. 162.
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Machado de Assis em Esaú e Jacob75, é ter se tornado algo claro nesse momento
histórico:
75 Ver DUARTE, Cláudio R. “Nada em cima de invisível: Esaú e Jacob, de Machado de Assis. (As
aventuras do dinheiro na transição do Império à República)”. Tese de doutorado. São Paulo: DTLLC-
FFLCH/USP, 2018.
76 BARRETO, Os bruzundangas, op. cit., p. 45.
77 Idem, ibidem, Cap. XIII, “A sociedade”, p. 74-76.
78 Idem, “O falso dom Henrique V (Episódio da história da Bruzundanga)” in: __. Contos completos, op.
cit., p. 468.
79 Idem, “Uma anedota” in:__. Contos completos, op. cit., p. 393-4.
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metáforas com os fatos que lhes dizem respeito” – o que então pode ser tomado, como
dizia Günter Anders, ao “pé-da-letra”:
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Num dos contos de Lima Barreto mais complexos – “Cló” –, que é impossível
resumir sem perder as nuances e a excelência de sua escrita literária, tão mal lida e
interpretada ao cabo desses cem anos, o velho professor decadente Maximiliano, sua
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esposa, seu filho e sua filha Clódia descobrem, numa noite do carnaval carioca, esse
“encanto” material que coage mas também seduz as suas vítimas ao autossacrifício no
altar do valor de troca. Nessa atmosfera de “gozo e luxúria”, duplicada pela visão do
professor bêbado que já passou da conta das cervejas acumuladas na mesa,
Maximiliano encontra o amigo rico deputado, “bacharel vulgar e obscuro”, com “rosto
de ídolo peruano”.85 O velho doutor Maximiliano se imagina superior a ele e a todos.
Mas em seu “olhar calmo”, em sua memória derretida pela fixação em resultados do
jogo do bicho, “não havia mais espanto, nem reprovação, nem esperança” 86. É o olhar
do puro sujeito mercantil à procura de dinheiro e gozo. O velho doutor “não cansou de
observar, um por um, aqueles homens e aquelas mulheres, homens e mulheres cheios
de vícios e aleijões morais; e ficou um instante a pensar se a nossa vida total, geral,
seria possível sem os vícios que a estimulavam, embora a degradem também”. 87 Esse
olhar lascivo se estende à própria filha Clódia, “a Cló, em família”, que o narrador, em
estilo indireto livre, ou seja, fundido à consciência da personagem, descreve como
tendo “um temperamento e feitio de espírito” dionisíaco “de uma grande hetaira”.88
Fingindo a moral familiar e a autoridade do pai – traço de rigor para um velho lente e
professor de piano, que aliás, por causa disso, despreza as “bizarras e bárbaras
cantorias” da música negra no carnaval, tanto como a “maleabilidade e a ductilidade”89
não só do deputado, mas de todo o povo negro e pobre dos subúrbios – o fato é que
Maximiliano é quem, maleável e fino no trato, humilha-se e convida o deputado André
para visitar a filha e sua família naquela noite de carnaval. Dá-se então uma série de
inversões, tipicamente burguesas, de sujeito e objeto. Detalhe crucial: Clódia irá a um
baile de luxo na “casa dos Silvas”: “Cló vai de preta mina”.90 O deputado não recusa o
convite, sentindo o ar reverencial e a insistência da oferta do professor. Decerto
Maximiliano enxerga criticamente algo atrás do véu desse encanto: “refletiu, talvez
com profundeza, mas certo com muita amargura, sobre a má organização da nossa
sociedade”.91 Contudo, ele dá meia-volta, projetando-se e fazendo-se um duplo na
85 BARRETO, Afonso H. de Lima. “Cló” in:__. Contos completos, op. cit., p. 168.
86 Idem, ibidem, p. 167.
87 Idem, ibidem, p. 167.
88 Ibidem, p. 168.
89 Ibidem, p. 169.
90 Ibidem, p. 170.
91 Ibidem, p. 168, grifo nosso.
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filha, tentando vendê-la como amante ao deputado casado: “Mas não foi adiante e
procurou decifrar o problema da sua multiplicação em Cló, tão maravilhosa e tão
rara.”92
92 Ibidem, p. 168.
93 SCHOLZ, Roswitha. “O valor é o homem: teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os
sexos”. Trad: J.M. Macedo. Novos estudos CEBRAP, nº. 45. São Paulo, 1996; Cf. para uma boa síntese,
também, o texto de Jéssica L. Menegatti, nesta edição de Sinal de Menos.
94 BARRETO, “Cló” in:__. Contos completos, op. cit., p. 173.
95 Idem, ibidem, p. 176.
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professor/homem venal;
moral familiar/prostituição moral e corporal;
homem superior decadente/deputado fraco e obscuro, mas rico;
música branca/música negra etc.
– bem como do próprio Eu:
Por uma nesga de luz nessa sala divisamos a História. Os versos da canção
funcionam como a memória de uma situação histórica degradante: a casa-grande que
invade a senzala para arrebatar sexualmente a escrava, aqui convertido num mero
jogo de sedução carnavalesca, que para o leitor desmente esse delírio bovarista a dois
ou em família.96
Por fim, algo dessa mesma contradição posta mas não resolvida mostra-se no
conto “O filho de Gabriela”.97 Trata-se do filho de uma empregada doméstica
(Gabriela), doente e menosprezado no início da infância e do texto (inclusive, sem um
nome até idade avançada), mas que no final é adotado pela rica casa de sua antiga
patroa (dona Laura), quando sua mãe falece. Gabriela era “atrevida”, insubmissa à
vontade da patroa, e assim demite-se para viver de casa em casa à procura de emprego.
O garoto é batizado Horácio, vai à escola, enfrenta a disciplina da casa, mas, se tem o
humor instável e algo espivetado da mãe, por certo respira o ar dos austeros modos
comerciais e jurídicos do velho conselheiro.
96 “Quanto mais a sociedade se inclina para a totalidade que se reproduz no encanto dos sujeitos, tanto
mais profunda se torna também a sua tendência para a dissociação. Essa tendência tanto ameaça a
vida da espécie, quanto desmente o encanto do todo, a falsa identidade entre sujeito e objeto”
(ADORNO, Dialética negativa, op. cit., p. 287).
97 BARRETO, Afonso H. de Lima. “O filho da Gabriela” in:__. Contos completos, op. cit., p. 98-108.
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BACURAU
Para além do nevoeiro... no meio da barbárie1
1
CONTÉM SPOILERS!
2 Doutorando em Geografia pela Universidade Federal de Minas Gerais.
3 Doutoranda em Geografia pela Universidade Federal de Minas Gerais.
4 Cf. “Jovem negro é torturado por seguranças de supermercado após tentativa de furto de chocolate”
(2019).
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Após a morte de dona Carmelita aos 94 anos e a chegada de sua neta Teresa, o
lugarejo vê-se atormentado por uma série de fatos perturbadores: discos
voadores/drones sobrevoam o céu do povoado, um caminhão pipa responsável pelo
abastecimento do local é cravejado de balas, a localidade desaparece dos mapas on-
line, o sinal de telefonia celular é interrompido, uma série de assassinatos brutais
começa a ocorrer – logo saberíamos que pela ação de estrangeiros que parecem
praticar uma espécie de jogo de caça que tem por alvo a população local –, a energia
elétrica é cortada e o cerco parece se fechar cada vez mais. A música que introduz a
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primeira cena do longa, utilizada também aqui como epígrafe, nos indica os elementos
tratados na obra, os quais explicitaremos ao longo do texto: em meio à brasilidade não
muito bem definida e singela, temos as tecnologias e os estrangeirismos, através dos
quais ou apesar deles “a paixão há de brilhar na noite de uma cidade do interior”,
palavras cantadas por Gal Costa, que na música segue: “como um objeto não
identificado”7, o que parece reafirmar a sensação de nevoeiro.
7 VELOSO, Caetano. “Não identificado”. Intérprete: Gal Costa. In: Gal Costa. 1LP. Rio de Janeiro:
Universal Music International Ltda., 1969.
8 O OVO DA SERPENTE. Direção: Ingmar Bergman. Alemanha/EUA, 1977.
9 O termo “personalidade autoritária” aqui empregado remete-se às formulações de Theodor Adorno e
dos membros do Instituto de Pesquisa Social sobre o perfil do cidadão médio estadunidense na década
de 1950. De fronte de um conservadorismo que se acentuava nos Estados Unidos no período, Adorno
se viu na necessidade de compreender este fenômeno e contribuir para evitar que essa tendência ao
fascismo descambasse para uma tragédia tal e qual a que vivenciara na Alemanha. Sua extensa
investigação sobre os costumes, hábitos e crenças da população estadunidense nesse período resultou
no extenso A personalidade autoritária, cujos fundamentos são bem expostos por Max Horkheimer
no Prefácio da obra: “Este livro trata sobre a discriminação social. No entanto, seu proposto não é
acrescentar simplesmente alguns poucos descobrimentos empíricos, mas um já amplo corpo de
conhecimento. O tema central da obra é um conceito relativamente novo: o surgimento de uma espécie
‘antropológica’ que chamaremos o tipo de homem autoritário. Diferentemente do intolerante de velho
cunho, este parece combinar ideias e atitudes típicas de uma sociedade altamente industrializada com
crenças irracionais ou antirracionais. É ao mesmo tempo esclarecido e supersticioso, orgulhoso de seu
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15 ADORNO, Theodor. “Parataxis: zur späten Lyrik Hölderlins”. In:__. Noten zur Literatur. Gesammelte
Schriften vol. 11, Frankfurt: Suhrkamp, 1978, p.450, tradução nossa.
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Por isso, para Adorno, a interpretação de uma obra de arte deve ater-se à crueza e
literalidade do texto – donde, aliás, advém sua eloquência. Apenas a granulosidade da
tessitura narrativa pode revelar seu teor de verdade.
Não obstante, uma vez reconhecida em sua objetividade e não mais presa à
intenção do artista, a obra que fala por si mesma comunica-se a seu público, e é,
portanto, recepcionada. E é preciso ter em conta que toda recepção que torna ou não
uma obra um cânone “se resolve como estrutura histórica, o que a converte em
cambiante, movediça e sujeita aos princípios reguladores da atividade cognitiva e do
sujeito ideológico, individual ou coletivo, que o postula”.16 Em outros termos, Bacurau,
tal como toda obra – fílmica ou não – pode ser compreendida não apenas pela intenção
do artista, mas também por sua recepção, e esta última não pode ser compreendida a
despeito do movimento da própria história. Como diria Silviano Santiago ao comentar
a crítica literária de Antonio Candido, “a primeira atitude de quem laça um animal
selvagem no campo aberto e o adestra no curral da fazenda é a de procurar e descobrir,
ou de inventar, um novo ambiente de vida que venha a lhe satisfazer as necessidades
vitais e lhe ser agradável aos sentidos, ambiente em que o animal chegue a se
locomover com antiga desenvoltura e graça, quase como se não tivesse sido retirado
pelo amansador do habitat originário”17. Um filme com a eloquência de Bacurau tem
demandado precisamente esse amansar que, dialeticamente, o coloca de maneira
apaziguada neste ou naquele campo. Campos que por vezes menos expressam a
intenção do artista que apascentam um tipo específico de recepção, canonizando a obra
segundo seus termos.
16 POZUELO, José Maria. Teoria del canon y literatura española. Madrid: Ed. Catedra, 2000, p.236,
tradução nossa.
17 SANTIAGO, Silviano. Genealogia da ferocidade. Recife: Cepe, 2017, 35.
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18 BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de História” In: __. Magia e técnica: arte e política: ensaios
sobre a literatura e o conceito de cultura. São Paulo: Brasiliense: 1985a, p.231.
19 Lembremo-nos que as principais obras de Kleber Mendonça Filho tiveram como cenário uma grande
cidade, mais precisamente Recife. É o caso dos clássicos Recife Frio, O som ao redor e Aquarius.
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periclitantes”20, por uma força de luta e resistência descomunal; ao mesmo passo que
tal ação humana é sempre mediada pelo nível do fantástico: seja um morro que fala e
seus profetas neurastênicos, seja pela figura messiânica que guia os fiéis do sertão até o
mar, seja pelo psicotrópico que repõe a força e a coragem ante à barbárie...
O que se pode notar é que nas leituras acerca do sertão, que marcam a formação
social brasileira, o propriamente humano imiscui-se com o inumano, com o metafísico.
Em Guimarães Rosa, mesmo que conclua que Diabo não há, Riobaldo precisa de longa
travessia para pôr à prova tal ideia. Em Os sertões, mesmo com a visada menos aberta
ao fantástico – pela própria formação positivista do autor – Euclides da Cunha não
hesita em afirmar que Antônio Conselheiro “veio impelido por uma potência superior,
bater de encontro a uma civilização”21, e apenas nessa medida pôde ir “para a História
como poderia ter ido para o hospício.”22
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24 Ibidem, p.18.
25 Ibidem, p.20
26 Ibidem, p.25.
27 Ibidem, p.340.
28 Ibidem, p.85.
228
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29 Ibidem, p.64.
30 Ibidem, p.65.
31 Ibidem, p.88.
32 Ibidem, p.101.
33 Ibidem, p.106.
34 HEGEL, Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p.316.
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Nesse aspecto, o sertão e seu povo, seriam já um em-si, que por meio de seu
próprio martírio poderiam realizar certa missão histórica – a realização de uma pátria
eminentemente brasileira. No entanto, a imagem de rara violência dialética, do sorriso
de uma criança com a boca explodida por granada no desenlace da batalha de Canudos,
revelaria o caráter contraditório dessa missão.
35 Ibidem, p.317.
36 CUNHA, Os sertões, op. cit., p.165.
37 Ibidem, p.272.
38 Ibidem, p.448.
230
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39 Ibidem, p. 438.
40 Ibidem, p.130.
231
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de última geração, ao mesmo tempo é marcado pelas mesmas relações coronelistas que
se poderia verificar no século XIX, como bem expressa a figura do prefeito Tony Jr. (o
Jr. no nome, aliás, salienta bem que ele não deve ser filho de qualquer um) com sua
política populista e seus desmandos – como na cena que leva à força uma prostituta da
comunidade.
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sobre a qual ele não pode refletir sem horror. Devem sua existência não
somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corvéia
anônima dos seus contemporâneos. Nunca houve um monumento da
cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim
como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo
de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o
materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a
história a contrapelo.”41
O patrimônio em sua forma museificada parece expressar essas ruínas como
monumentos da barbárie. O que no caso do cangaço assume posição sui generis, pois a
memória objetual preservada em seu museu – e representada em Bacurau – já parece
ser a história dos vencidos e não a dos vencedores. Particularidade que é própria à
formação social brasileira e que também pode ser lida em Euclides da Cunha,
Guimarães Rosa e Glauber Rocha. A compreensão de Grande Sertão: Veredas ou
mesmo de Deus e o diabo na terra do sol esbarram necessariamente na figura dos
grandes coronéis e proprietários de terras e nas utopias negativas que estes acabam –
involuntariamente – por mobilizar. “Ao contrário do estanceiro, o fazendeiro dos
sertões vive no litoral, longe dos dilatados domínios que nunca viu, às vezes. Herdaram
velho vício histórico. Como os opulentos sesmeiros da colônia, usufruem,
parasitariamente, as rendas das suas terras, sem divisas fixas. Os vaqueiros são-lhes
servos submissos”42, nos retratava Euclides da Cunha. O poder tirano dessas figuras
parasitárias serviu de espécie de gatilho para a formação de bandos de cangaço como se
vê tanto em Rosa quanto em Rocha. Na outra face da mesma moeda estariam os
modernizadores que gostariam de romper com o atraso seja dos parasitas seja dos
cangaceiros, mas para tanto carecem jogar o mesmo jogo da violência. Superar a
violência pela violência. Superar o atraso pelo atraso. Figuras representadas por Zé
Bebelo, em Grande Sertão, e por Antônio das Mortes, em Deus e o diabo, que
expressariam o que Paulo Arantes compreendeu por “milagres da dialética, usar
métodos bárbaros na luta contra a barbárie”.43 Configuração na qual todas as utopias
(e distopias) que envolvem o sertão – sejam elas modernizadoras ou não – passam
mais das vezes pela redenção pelo sangue.
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44ADORNO, Theodor. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p.29.
45Ibidem, p.118.
46 BONIFÁCIO, Frederico Rodrigues. Deus e o diabo na terra do sol: crise, conservadorismo e
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cerne de toda identidade produzida até hoje”.47 Se como nos diria Adorno, “a
antecipação filosófica da reconciliação é um atentado contra a reconciliação real” 48, a
reconciliação extorquida do povo com sua própria história, a fim de minimamente
sobreviver ao presente, não apenas é frágil, como reafirma um passadismo, onde a
história é menos um vasto campo de elaboração que um reificado campo de situações
já experimentadas.
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O século XX, marcado pelas guerras mais que por qualquer revolução já tendeu
a conferir maior relevância à história e sua elaboração, como mesmo as formulações de
Benjamin e Adorno aqui resgatadas demonstram. O século XXI, ao menos no primeiro
quinto, parece substancialmente distinto dos dois anteriores. Se a revolução ou a
guerra apresentavam algum horizonte de conciliação, ainda que através de uma
barbárie temporária, o século atual parece fornecer um dissolver sem conciliação. Se
diagnósticos como os levados a cabo por Robert Kurz estiverem corretos – e o atual
estado de coisas parece atestar que sim – o século XXI seria não o século das
revoluções ou das guerras, mas dos colapsos: ambientais, dos regimes democráticos,
das promessas emancipatórias, e todos eles se comunicando ao colapso da forma-valor
como cerne da mediação social no mundo moderno. Se o que entrava em crise e/ou era
dissolvido pelas revoluções e guerras eram, por assim dizer, particularidades
constituintes do moderno, o que agora parece entrar em estado terminal é a própria
universalidade da forma social moderna calcada na valorização do valor. Esse dissolver
sem promessa de conciliação, sem promessa de futuro, marca a semântica do tempo
contemporâneo. Se o futuro parece inexistente, ou ao menos um eterno arrastar e
aprofundar das condições distópicas do presente, as utopias e promessas políticas
parecem todas voltadas para o passado.
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52 KRACAUER, Siegfried. O ornamento da massa. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p.107.
53 BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”.In: __. Magia e técnica:
arte e política: ensaios sobre a literatura e o conceito de cultura. São Paulo: Brasiliense: 1985b, p.179.
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narrativas com esse desenvolvimento acaba por propiciar é a venda da “mera imagem
do exercício de fuga da totalidade social. Trata-se efetivamente de uma catarse, ou seja,
da anulação do poder subjetivo de resistência perante a opressão social”. 57 A catarse
conforma-se, por fim, com a sensação de cada espectador de ter compreendido a
complexidade da obra e sua profícua alegoria com a distopia real do Brasil
contemporâneo.
face a destrutibilidade do (des)controle metabólico do capital.”In: Anais XIX ENG, João Pessoa, 2018.
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59 BONIFÁCIO, Deus e o diabo na terra do sol: crise, conservadorismo e necessidade do mal no Brasil
contemporâneo, op. cit., p.240.
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241
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61 Cf. “Garota de 13 anos atira em homem que entrou em fazenda em MT”, (2019)
62 ARANTES, Paulo. Sentimento da dialética. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
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63 MENEGAT, Marildo. Estudo sobre a dialética civilização x barbárie na tradição crítica brasileira.
Relatório final de atividades do pós-doutorado. São Paulo: FFLCH, USP. 2011, p. 39.
64 Como podemos ver nos dados levantados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT, 2018), a violência dos
conflitos no campo que se referem à terra, à água, conflitos trabalhistas e outros, que em uma década
aumentaram consideravelmente o número de pessoas envolvidas: de 628.099 em 2009 para 960.342
em 2018. A crescente violência também pode ser observada no espaço urbano, com as investidas na
“pacificação” das favelas do Rio de Janeiro através da implantação das Unidades de Polícia
Pacificadora (UPPs), que em uma década (de 2006 a 2016) foi possível perceber que “os números de
violência do Rio retornam a patamares anteriores à implantação das UPPs” (2016).
65 Ibidem, 2011. p. 30.
243
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nesse arranjo social, e não deve ser confundida com a capacidade de resistência dos
determinados grupos.
Vemos que a violência não se põe apenas em relação aos pobres e condenados
sertanejos de Pernambuco. “O horror, que antes confortava a classe média branca que
somente seria usado contra os de baixo, tornou-se há tempo o regime geral”68. Esse
regime geral, por vezes colocado como regime de exceção, torna-se nesse momento a
condição para qualquer grupo social. A violência se expande quase que como um modo
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69 “O simples fato – quase um sintoma psicanalítico – de o comandante da Rota precisar dizer que a
abordagem nos Jardins deve diferenciar-se da abordagem nas periferias aponta que estranhamente a
violência concreta – em vestes estatais – já chegou aos Jardins”. BONIFÁCIO, Deus e o diabo na terra
do sol: crise, conservadorismo e necessidade do mal no Brasil contemporâneo, op. cit., p.242-3.
70 MENEGAT, Estudo sobre a dialética civilização x barbárie na tradição crítica brasileira, op. cit.,
p.29.
71 SINAL DE MENOS. Editorial. Sinal de Menos n.1. São Paulo, 2009, p.2.
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contemporâneo menos espesso, sem que com isso consiga avançar criticamente sobre a
imagem dialética que ele mesmo produz. Não parece ocasional que uma produção
progressista do último quartel da segunda década do século XXI se aproxime tanto da
obra maior de um autor positivista dos primórdios do século XX. Se a substância da
barbárie de Bacurau e de Canudos é historicamente muito distinta, sua aparência
permite a ilusão de uma atemporalidade do sertão. A tal ponto que as mesmas armas –
literais ou metafóricas – possam ser usadas em combate. E o pássaro de Minerva
continua a levantar vôo apenas quando as sombras da noite começam a cair. 72 Nada
mais prosaico que um pássaro de hábitos noturnos dê nome à comunidade e ao filme,
que nos é apresentado, logo em sua primeira cena, com uma mandíbula de tubarão no
meio de uma estrada do sertão pernambucano – o sertão [ainda] vai virar mar?
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1 Os autores gostariam de agradecer a Daniel Cunha, Fred Lyra e Cecília Pires pela leitura e a discussão
deste texto.
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importada quanto a ideia dos laços fundamentais que perfazem a civilização nesse
novo contexto distópico inteiramente imaginado: a diferença que aglutina e que dá
resposta à intolerância fascista e sua violência abstrata. Aliado à belíssima fotografia e
ao controle do ritmo e do foco narrativo, eis o que fará desse filme de Kleber Mendonça
e Juliano Dornelles também uma obra politicamente resistente neste tempo de cultura
global anestesiada face à afirmação de identidades locais, regionais e nacionais e ao
colapso social real, que já despontam no horizonte.
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2 Para uma boa leitura do filme de Walter Lima Jr., ver: XAVIER, Ismail. “Brasil ano 2000: o mal
congênito da província” in:__. Alegorias do subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo, cinema
marginal. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 198-228.
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Voltando à abertura, a voz da Gal Costa anuncia uma “canção de amor” (a esse
Brasil profundo e esquecido, riscado do mapa? à cultura popular nordestina, em riscos
de extinção como tudo o mais?), uma “canção singela, brasileira”, uma “paixão [que]
há de brilhar na noite, no céu de uma cidade do interior, como objeto não
identificado”– dado o contexto atual soa quase como uma evocação de uma utopia
perdida em tempos pós-apocalípticos. De chofre, a descida vertiginosa à dura realidade
terrestre, em que somos conduzidos, como no filme de Lima Jr., por um caminhão pela
estrada adentro.
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refúgio de criminosos dessa sociedade colapsada, como Pacote e como Lunga e seu
bando, cuja integração na comunidade não é simples ponto de graça. Os latrocínios de
Pacote (apelidado o “Rei do Teco”) nas grandes cidades circulam de maneira irônica
num top ten assistido diariamente pelos moradores, o que ele mesmo reprova. No
fundo sente-se que é apenas tolerado por Plínio, apesar de bem acolhido pelas filhas do
professor. Lunga por sua vez tem a cabeça posta a prêmio pela justiça do Brasil do Sul e
vive apartado de Bacurau, sendo mal visto por Damião, embora tenha tentado tomar
de assalto a represa privatizada, guardada por jagunços armados, episódio em que
saíram três mortes. Numa das cenas impagáveis do filme, a visita do prefeito
oportunista buscando a reeleição tem como resposta a recusa do vilarejo em legitimá-lo
como seu representante, enquanto a chegada de dois forasteiros sulistas de motocicleta
aguça o senso de curiosidade cheia de medo e desconfiança por trás de diálogos tensos,
que parecem hospitaleiros e cordiais mas que sugerem conflitos de classe, status,
“raça” e agora também de raiz regional. Onde então a carência de tensão interna no
filme? A instabilidade, a infração, o conflito e a guerra social estão na verdade
implícitos até o momento do sumiço repentino de Bacurau do mapa tal como
preparado pelo casal de forasteiros. Estes últimos servem como ponte com o mundo
externo, supostamente em ordem. Em termos estéticos, como veremos, a obra não
deixará de abordar a clássica “dialética da malandragem” (segundo Antonio Candido 3),
a alternância entre os polos da ordem e da desordem, e, ainda que as acomodações
internas ao povoado não eliminem os contrastes e as tensões, chama-as na hora H à
aliança e à resolução; do outro lado, a ordem supostamente superior do modelo
estrangeiro – o qual, lembrava Candido a propósito da América puritana, como
desrecalque ou compensação volta-se para fora com uma fúria truculenta sem limites –
exibe-se ele também, ao final, como desordem e autodestruição.
3 CANDIDO, Antonio. “Dialética da malandragem” in: __. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas
Cidades, 1993.
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das demais personagens pelo espaço vai se formando uma perspectiva interna à
comunidade, embrenhando-se em suas relações práticas, fechando-se na proximidade
dos objetos cotidianos arruinados e nos corpos visivelmente sofridos, mormente em
suas expressões faciais e vocais, escorando-se na boa atuação do elenco de atores
conhecidos que se misturam até a quase diluição entre os figurantes amadores
(provenientes dos locais de filmagem). Aqui a montagem recebe a impressão da forte
cor local, sua imagem e seu ritmo. É o que conflui nas belas cenas do funeral de dona
Carmelita. Esta passagem do fora ao dentro, do extraterrestre ao mundo terreno,
terminando literalmente numa procissão para o enterro, corresponde à necessidade de
uma gradativa desaceleração e estabilização do primeiro ato. Pressupondo certo nível
de sobrevivência da produção local, aqui é o dinamismo da sociedade do trabalho que é
posto em sala de espera, irritando quem ansiava por velocidade, tiroteios e
individualização de condutas de um filme de ação em moldes americanos. Sinônimo de
modernidade, a velocidade não passa muito além de um modo de gerir a sociedade - ou
de sobreviver a ela, como vimos na direção do caminhão por Erivaldo, em todo caso
quase sempre ligado à aceleração dos processos de acumulação de capital, aceleração
que se tornou segunda natureza, estruturando todas as esferas da vida social, das
formas do pensamento e da experiência. Não por acaso, muitas técnicas do cinema
foram inventadas em linha cruzada com tecnologias de guerra (tomadas aéreas, voos
rasantes, cortes abruptos) e o imaginário bélico4, o que evidentemente se reflete no
segundo ato de Bacurau. Nesse ritmo desacelerado prenuncia-se o movimento
simbólico fundamental do filme: a superação do individual num coletivo em
transformação, que se revelará plenamente no ato final. Não por nada, o funeral da
matriarca negra, com o povoado todo cantando (de forma meio improvisada) “Bichos
da noite”, de Sérgio Ricardo, é uma das cenas mais tocantes que vimos no cinema em
muito tempo, dando a dimensão dos referenciais e dos sentidos que o filme propõe. A
lentidão do primeiro ato é estratégica para criar um bom exame do pequeno grupo
local, com direito ao escrutínio de seus fatores de coesão e conflito autenticamente
brasileiros e nordestinos, sempre surpreendendo com a nota específica através da
análise dos detalhes, contrapondo-se explicitamente ao que alguns viram como simples
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close na reação de cada um, nos tiros à queima-roupa que recebem ao sentarem-se à
mesa desses chacais traiçoeiros, que recebem as ordens de um Outro invisível através
dos fones de ouvido. Aqui, então, a velocidade ganha primazia.
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de quem sofre e vive no buraco do mundo – um jogo de perspectivas que amiúde atinge
a mínima célula formal (a câmera na grua, o travelling de um campo a outro, a dioptria
cindida e a obtenção da dualidade focal etc.) bem como a estrutura geral da obra, o que
se complexifica quando nos perguntamos pelo que determina esse jogo e quais são suas
reviravoltas, que têm fundo histórico.
Forasteiros entre si
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https://www.dw.com/pt-br/extrema-direita-da-alemanha-se-arma-cada-vez-mais/a-50625224
(Acesso em 30/04/20).
7 MAHMOOD, Basit. “Far right Britain First patrolling beaches to ‘catch migrants’”. Metro, 19 Sep.
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onda do futuro12 que já nos afoga. É isso que o filme pressente, colocando em dúvida a
linha progressista ascendente do passado, que vai dar nisso que está aí e ora se
apresenta nos meios de massa, bem como os rumos supostamente promissores do One
World globalizado.
“– Por que vocês estão fazendo isso?” – interrogam três vezes, perplexos mas
sobriamente lógicos, os moradores. Conseguir captar essa ideologia e essa barbarização
ascendentes – em sua versão mais oca e irracional e no entanto coerente em seu
método, provavelmente de maneira independente da cultura cinematográfica e dos
filmes mais atuais13 – precisamente em seu embate com a realidade histórica, que
resiste à mera eliminação, é o que faz a obra ser instigante. Mas olhar para tal processo
exige valorizar o esforço de dupla negação, que o filme imprime em suas células
narrativas.
***
Comecemos então pelo fim, pelo buraco, pelo oco despropósito da matança e o
fim de linha do grupo invasor, o mais mal apurado pela crítica até aqui. É um tanto
evidente que os diretores se valem de recursos narrativos de abstração, purificação de
traços, dicotomização e esquematização caricata de personagens. É o que se vê
sobretudo na caracterização do bando invasor. Todavia, isso não é necessariamente um
defeito do filme, que contrabalança essa negação com a apreensão positiva de um
conteúdo real. Na verdade, esse uso parece estar em função do conteúdo e da lógica de
perspectivas da montagem: Bacurau incorpora o tema da invasão (alienígena até, com
o drone em formato de disco voador), a fotografia semiárida com cores quentes
(sobretudo na primeira metade) e frias (ao estilo dos filmes americanos), o tema da
caçada humana (recorrente na filmografia hollywoodiana, que inclui O alvo, estrelado
pelo valentão Van Damme) a fim de compor, no conjunto de tais elementos, uma
complicação e uma corrosão interna do esquema lógico da divisão entre mocinhos e
bandidos, recorrente na indústria da cultura. O filme tem o mérito de se autorizar a
12 LUTTWACK, Edward. “Por que o fascismo é a onda do futuro”. Novos estudos, n.40, 1994, p.145-151.
13 Ao contrário do que pensam os críticos apressados, além da referência aos processos neofascistas
atuais, o tema da violência, do ressentimento e da vingança, num contexto de conflitos rurais e
urbanos, de expropriação e êxodo foi intensamente trabalhado por Kleber Mendonça em O som ao
redor (2013). Ele independe, portanto, da referência a filmes estrangeiros da vez.
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fazer, em seus próprios termos, uma interpretação crítica dos países do norte global
através de uma operação que talvez agradasse a um filósofo como Žižek: uma operação
de superidentificação com esse Outro14.
14 ŽIŽEK, Slavoj. Looking Awry: An Introduction to Jacques Lacan through Popular Culture.
Cambridge: MIT Press, 1991.
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pelos diretores invisíveis do game). Ele torna-se a pura desintegração em si e por isso
parece indeciso ao final. Desgarrando-se do grupo, o líder conduz esse roteiro fantasma
ao paroxismo, atirando a esmo, assassinando o cão, os trabalhadores do caminhão de
caixões e ao término, quando sente o barco naufragar, os próprios companheiros.
Como um Coronel Kurtz das Américas, aqui vale também o lema: “Exterminate all the
brutes!” Nesse sentido, sua tentativa de suicídio leva essa lógica alucinada ao
paroxismo da desintegração como consumação de uma identidade lógica perfeita: se o
objetivo é exterminar tudo o que é “inferior” não deve sobrar ninguém, nem ele
mesmo.
15 KURZ, Robert. “A origem destrutiva do capitalismo” in:__. Os últimos combates, op. cit., p. 239-45.
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Assim, foi preciso buscar onde há cisões internas para mostrar que o clichê do
puro mal encarnado contém contradições, que se resolvem pelo reforço suicida da
identidade exterminista. O que parece uma incoerência formal da obra à primeira vista
ganha o bom fundamento da comparação e do contraste entre dois tipos de
socialização moderna reais, no fundo estranhos à pasteurização dos filmes do gênero, e
que só em leituras superficiais prevalecem, reforçando o puro maniqueísmo.
Não será o mais típico do filme (que alguns classificaram como um faroeste
sertanejo) situações estranhas que desautomatizam a percepção, como nesse caso em
que o líder invasor vai ajustar as contas com uma médica, mulher lésbica, inofensiva,
sem sair nenhum tiro? Cena em que ocorre uma “conversa” que desmonta não apenas a
ideologia da democracia e da liberdade moderna, por suposto destruída desde antes
pela mera afirmação do mal radical pela tropa, mas a ideia mesma de “diálogo” entre
seres totalmente estranhos e coisificados – que no entanto interagem, pondo em cena
algo muito próximo ao fetichismo da mercadoria na sua versão mais arcaica: o ato de
“troca” original entre o colonizador europeu militarizado e o indígena colonizado,
ambos suprimíveis pela maquinaria anônima do Capital. Note-se que, de outra
perspectiva, a cena toda é irônica e praticamenteinverossímil: Domingas recebe o líder
campeão das atrocidades para uma conversa “amigável”, uma espécie de diálogo
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Dessa maneira, parece mais apropriado ler essa composição em que sucede o
contraste das figuras dos dois líderes como uma crítica das teorias e padrões
importados, que “colonizam” a própria obra enquanto forma mental, social e cultural
invasora, sem deixar-se reduzir a ela. Aqui, se se quiser, o lugar da crítica ao
imperialismo, de resto filtrado, negado e ausente de sua problemática central. Assim,
sua narrativa incorpora tais fórmulas e modelos para negá-los e revertê-los no seu
contrário, apontando que tudo tornou-se também uma forma abstrata em grande
escala, que é parte do despropósito do espetáculo capitalista mundial. O fato de que os
próprios moradores de Bacurau estão siderados por cenas de violência de programas
televisivos e não saem dos celulares no final, provavelmente para postar os resultados
do massacre em redes sociais, esboça uma crítica dessa sociedade da imagem
autonomizada, que engolfa a todos. Nessa linha, o “neofascismo” ou o “imperialismo”
do grupo invasor, construído dessa maneira esquemática e algo caricatural, tem a
forma dessa sociedade do espetáculo em decomposição16. Note-se então que ele está
desconectado de qualquer menção a um projeto ultranacionalista de expansão
territorial de um Estado complexo e estruturado, reduzindo-se a uma identidade
formal vazia e subordinada de mero sujeito do trabalho e do dinheiro – este o
significado de que o bando “oficialmente” não está no Brasil, obviamente
16 “O espetáculo é o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem” (DEBORD, Guy. A
sociedade do espetáculo/Comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto,
1997, p.25, § 34). Na obra original (1967), Debord dividia a lógica do espetáculo em “difuso” e
“concentrado”; mais tarde, em seus Comentários (1988), passa a falar de um “espetáculo integrado”
(ibid., p. 172-3), cujas propriedades seriam a integralização do “devir-falsificação do mundo” pela
“razão mercantil”: “a incessante renovação tecnológica, a fusão econômico-estatal, o segredo
generalizado, a mentira sem contestação e o presente perpétuo” (ibid., p. 173-175). O que aparece em
Bacurau é uma espécie de giro a mais nesse torniquete, até fazer o espetáculo integrado se
desintegrar: a identidade entre vida e imagem falsificada é praticamente total, mas a mentira e a falta
de lógica se apresentam como tais, como o puro oco do fetichismo, dando vez ao reaparecimento de
algum lastro de comunidade e memória histórica.
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17 Uma parte da crítica aplica o conceito de “imperialismo” de modo indeterminado. Não basta haver
uma tropa invasora num wargame terrorista para refundar a estratégia neocolonialista num contexto
de colapso civilizatório mundial tal como visado pelo filme. Nessas condições, um “imperialismo de
segurança e exclusão” tende a funcionar contra imigrantes, refugiados e “supérfluos” em geral, bem
como forma de garantir a confiança no dinheiro e no crédito mundial, ordenando as condições de
valorização transnacional do capital altamente ficcionalizado nas ilhas de rentabilidade do centro e da
periferia, enquanto uma “economia de saque” se difunde pelo resto sob o comando de oligarquias e
bandos armados (KURZ, Robert. Poder mundial e dinheiro mundial. Crônicas do capitalismo em
declínio. Rio de Janeiro: Consequência, 2015, p. 44 e 66). O mesmo valeria para o conceito de
“fascismo” solto de determinações históricas mais precisas. O vazio do neofascismo atual, que floresce
na crise da sociedade do trabalho, na implosão do laço social e dos projetos nacionais para grandes
maiorias, se combina com o anticomunismo difuso, o conservadorismo religioso e autoritário
tradicional, o patriotismo de fachada e o individualismo neoliberal.
18 HORKHEIMER, Max & ADORNO, Theodor W. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos.
Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p.186-194; KURZ, Robert. “A síndrome neofascista da Fortaleza Europa”
in: __. Com todo vapor ao colapso, op. cit.
19 GRAHAM, Stephen. Cidades sitiadas. (O novo urbanismo militar). São Paulo: Boitempo, 2016, Cap. 6:
“Arquipélago de parque temático”; CHAMAYOU, Grégoire. Teoria do drone. São Paulo: Cosac Naify,
2015.
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20 Nesse sentido, pode-se lembrar do que diz Adorno a respeito: “A obra de arte deve absorver até
mesmo seu inimigo mais mortal, a intercambialidade; ao invés de furtar-se na concreção, deve
apresentar o contexto total de abstração através de sua própria concreção e assim resistir a ele.”
(ADORNO, Theodor W. Ästhetische Theorie. In:__. Gesammelte Schriften, Band 7. Frankfurt am
Main: Surhkamp, 1972, p. 203).
21 Cf. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer I: O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Ed. UFMG,
2014.
22 PASOLINI, Pier Paolo. Scritti corsari. Milano: Garzanti, 2013.
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23 “A revolução microeletrônica e a nova mídia fortaleceram uma tendência social que apaga as
fronteiras entre a existência e a aparência, entre a realidade e a simulação. (...) O homem fez de si
mesmo algo supérfluo e agora não passa de um produto simulado pela mídia. (...) Os yuppies, eles
próprios um produto da mídia, começaram a simular os critérios capitalistas de eficiência e sucesso,
em vez de cumpri-los efetivamente. Quanto maiores os investimentos em tecnologia avançada e
quanto maior a racionalização da produção e dos serviços, tanto menor é o rendimento do sistema. (...)
A essência da economia especulativa é obter um aumento fictício do valor sem respaldo em nenhum
trabalho produtivo, contando apenas com a negociação de títulos de propriedade. (...) As grandes
empresas auferem lucros monumentais não mais pelo sucesso no mercado real, mas pelas manobras
de seu setor financeiro no mercado especulativo do capital fictício. (...) O capitalismo simula a si
próprio (...) a notável ‘cultura da simulação’ nos permite supor que a realidade capitalista tornou-se
irreal. Talvez o indício mais forte do fim dessa realidade da aparência seja o fato de certos homens não
se levarem mais a sério e nem mesmo saberem se realmente ainda existem.” (KURZ, “A realidade
irreal” in:__. Os últimos combates, op. cit., p.127-134).
24GRAHAM, Cidades sitiadas, op. cit., p. 279 e ss.
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canalha moral gringa não é extrínseco ao país. Ao contrário, a forma em que esses não-
indivíduos foram mirados e cancelados pelo drone e o esquadrão da morte é homóloga,
senão idêntica, à que funda a posição e a visão do prefeito e dos dois forasteiros do Sul.
A aparição de Tony Jr. como figura política caricata, quase poderíamos dizer de
uma personagem caricata de Lima Barreto ou do realismo fantástico, não impede de
revelar como as coisas realmente funcionam por aqui: como abstração e alienação
radical entre representantes e representados, segundo a forma degradada de um
espetáculo que se mostra enquanto tal. O carro de som no último, o jingle ridículo, a
pose “racional”, as promessas de campanha: um caminhão de clichês e demagogia
respondidos com a ausência e o desprezo pela comunidade. O vilarejo é tratado como
massa de manobra eleitoral, força de trabalho barata e corruptível, corpos prostituídos
e submetidos à coerção física e ao sequestro, à precariedade e à insegurança, um passo
antes de serem riscados do mapa e tornados puro lixo descartável – um fado
prenunciado pelos caixões ofertados, os livros despejados do caminhão (com direito a
filmagem!), os restos de comida vencida e os remédios que sobram para doação pelo
prefeito cara de pau. Numa transição irônica a la Star Wars (“linear wipe”), uma
paralela direta deste olhar é traçada com a visão “alienígena” do drone, que persegue
Damião em sua moto de volta para casa, assustando mais os espectadores no cinema
do que a personagem mesma, que cedo percebe estar o povoado diante de um aparelho
estranho à região. O suspense do sentido da ação, nesse início, é um dos pontos fortes
manejados pelo roteiro. É com ele também que sentimos lentamente a atmosfera nova
de uma sociedade em gestação que, diante da contradição brutal entre progresso
técnico-científico e destruição dos laços sociais comuns, iria perdendo amarras
ideológicas da superstição e da submissão natural ao existente.
25 “Nada é mais continuado, tampouco é tão permanente, ao longo desses cinco séculos, do que essa
classe dirigente exógena e infiel a seu povo. No afã de gastar gentes e matas, bichos e coisas para
lucrar, acabam com as florestas mais portentosas da terra. Desmontam morrarias incomensuráveis, na
busca de minerais. Erodem e arrasam terras sem conta. Gastam gente, aos milhões.// Tudo, nos
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país de negros, indígenas, pardos e mestiços em que habita, como bons herdeiros de
“puros” bandeirantes ou gringos imaginários, acostumados a tratar a vida como trata o
espaço: correndo a caçar ouro e esmeraldas, índios e negros escravizados e fugidos,
mais tarde recebendo o apoio oficial das políticas de imigração e embranquecimento
populacional, e agora servindo à Gringolândia neofascista importada. Ali tratava-se da
missão de matar e passar o rodo. A indústria de caixões ganharia o dia. O prefeito
imbecil figuraria no acordo, levando dinheiro por isso, talvez para gerir o que sobrasse
após a razia, talvez apenas recebendo a tropa como “visita turística”, nesse caso
também sem saber da carnificina que ali ocorreria e que provavelmente também o
atingiria no final.
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Ambos então são tirados ironicamente como “caubóis”, em seguida como “mexicanos
brancos”, embora o homem poderia ser tido como um “italiano” e a mulher talvez
passasse como de “origem polonesa”, mas ela tem o lábio e o nariz diferentes segundo
Terry, que entregam a sua race mixing, ou o “pé na senzala” como ainda se diria de
maneira racista no Brasil. Mero bullying, pois ambos não passam afinal de “latinos” –
e idiotas pretensiosos. Eles então se justificam como de origem europeia, vindos da
parte mais rica do país. Tremem a voz, se angustiam e baixam o olhar arrogante de
“sujeitos” com que entraram em cena. Obrigados a encarar seu ato criminoso contra os
locais, gravado do alto pelo drone e o capacete do motoqueiro, eles fogem à vista do
horror tornado espetáculo. Segundo o roteiro, eles encontraram e indicaram Bacurau
para os gringos. Mas parecem despertar: “Por que vocês estão fazendo isso?”, pergunta
a moça – a mesma questão de Damião e de Domingas, mais adiante –, momentos antes
de entrarem para a “body count” fascista. A gringa babysitter é clara: “roubaram” as
nossas mortes, tomaram a nossa posição. Michael completa o delírio acusando-os de
“assassinos” do próprio povo, aquilo que de fato eles se converteram. Sua função social
no Brasil do Sul (o homem morto é revelado como “assessor de desembargador
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Em seguida, o foco vai para os invasores que observam o quadro de baixo para
cima escondidos entre as pedras. Dá-se o ataque e eles põem fogo no telhado de palha
(imagem típica de um filme de guerra sobre o Vietnã como Platoon), que é respondido
com o fogo do bacamarte de Damião. Se o combinado entre os gringos era um tiro para
cada usando armas vintage, eles de fato recebem o combinado, ironicamente, direto na
cabeça. A câmera então mergulha do alto – mas sem a aparelhagem do drone – para
filmar o desespero da invasora Kate, que resta viva e apela descarregando uma arma
moderna. Ela é abatida e ocorre a mesma inversão de ângulo quando Damião e esposa
olham de cima para os olhos de Kate ferida de morte no chão: “Você quer viver ou
morrer?”; é então obrigada a traduzir as falas dos sertanejos (via telefone celular) para
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implorar alguma ajuda. Aqui, fulgura o destino deste individualismo mórbido: ser
abandonada pelo seu grupo de sociopatas, depender do auxílio de dois odiosos
sertanejos velhos e nus, sangrar até morrer e terminar na posição de alien numa
enfermaria improvisada no “fim do mundo”. A ironia de tais inversões é incrível.
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alvo, o protagonismo por vezes passando inclusive aos projéteis disparados. Por
contraste, a cena de troca de tiros em Bacurau, quando a revanche finalmente se dá, de
dentro da escola para a rua, dura poucos segundos.
Isso nos leva adiante, ou mais precisamente para trás, antes do ataque, lá onde a
obra põe os verdadeiros núcleos de tensão pressupostos e construídos no primeiro ato.
Uma das principais qualidades de Bacurau é tocar na ferida do apartheid e da guerra
racial e interétnica, ligados ao elemento classista, que molda a história da América e do
Brasil, o suposto país cordial26. Cabanos, Palmares, Canudos, Cangaço, matanças nos
centros urbanos do Norte e do Sul formam a linha histórica contínua do “estado de
guerra” sugerida pelo filme, e que se condensa nas personagens de Lunga e Pacote.
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27 Walter Benjamin teorizou o cinema como uma possibilidade de apresentar “um aspecto da realidade
livre de qualquer manipulação pelos aparelhos, precisamente graças ao procedimento de penetrar,
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com os aparelhos, no âmago da realidade” (BENJAMIN, Walter, “A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica” in:__. Obras escolhidas, vol. 1. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 187). Assim,
com as técnicas de figuração e montagem, a câmera nos abre, “pela primeira vez, a experiência do
inconsciente ótico, do mesmo modo que a psicanálise nos abre a experiência do inconsciente pulsional.
De resto, existem entre os dois inconscientes as relações mais estreitas. Pois os múltiplos aspectos que
o aparelho pode registrar da realidade situam-se em grande parte fora do espectro de uma percepção
sensível normal. (...) a percepção do público se apropria dos modos de percepção do psicótico ou do
sonhador” (ibid., p. 189).
28 Sobre a tópica do cangaceiro e do bandido social no cinema brasileiro, ver: BERNARDET, Jean-
Claude. Brasil em tempo de cinema. (Ensaio sobre o cinema brasileiro de 1958 a 1966). São Paulo:
Companhia das Letras, 2007, p. 59-61; XAVIER, Ismail. “O cinema brasileiro dos anos 90” in:
MENDES, Adailton (org.). Ismail Xavier - Encontros. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009, p. 134 e
ss.; Idem, “O dragão da maldade contra o santo guerreiro: mito e simulacro na crise do messianismo
in:__. Alegorias do subdesenvolvimento, op. cit., p. 264-312.
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olhos psiquicamente alterados de Teresa. Sim, o matador Acácio grita e dialoga com os
mortos, como se pudesse ressuscitá-los, como se pudesse fazer voltar a ação no tempo,
como se tivesse o poder de reparar e anular toda uma vida coletiva malograda. A
mesma intensidade se dá na belíssima cena de Damião em seu rancho, talvez a mais
bela cena do longa, cultivando nu as suas plantas e psicotrópicos, em uma calmaria
reflexiva matuta, noutro diálogo “impossível” com a natureza (pássaros cantam ao
fundo), ele mesmo meio pássaro, meio gente, sob o cheiro de barro molhado, lenha
queimando e felicidade no sexo, antes da tempestade de chumbo da qual ele e esposa
saem por cima. Não à toa, é o que mais parece gerar repulsa ao invasor (“Por que ele
tem de ser tão velho? E pelado?”)
29Lembrando que também Diadorim/Deodorina “é uma experiência reversível que une fasto e nefasto,
lícito e ilícito, sendo ele próprio duplo na sua condição” (CANDIDO, Antonio. “O homem dos avessos”
in: __. Tese e antítese. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006, p. 115).
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A capoeira jogada por uma roda heterogênea de pessoas marca essa emergência
viva – cortada no entanto pelos sons sintéticos de “Night”, de John Carpenter. Aqui,
outra mostra do choque de forças, que atravessa a obra como forma. Na cena da
partilha das doações – outro exemplo notável por configurar um tipo de comunismo
(“a cada um segundo suas necessidades”) sem supressão de liberdades (quem quiser
usar o remédio, adverte Domingas, “que use, mas está avisado”) e no qual apela-se ao
uso da consciência individual em nome do bem comum –, um contraste é estabelecido
entre, de um lado, o “forte psicotrópico” ingerido ato contínuo pela gente de Bacurau e
o fármaco tarja-preta, consumido massivamente no Brasil atual. Enquanto aquele
expande os sentidos, promovendo o senso de comunidade, intensificando a libido e, no
momento decisivo, fornecendo a impavidez necessária à dureza do combate, o remédio
controlado, “um inibidor do humor disfarçado de analgésico forte”, anestesia todos
esses afetos. Esta dupla visão da droga é vislumbrada na obra de um Aldous Huxley, na
qual, embora figure sempre como fator de unificação essencial à comunidade, adquire
conotações distintas segundo a situação: no Admirável mundo novo (distopia), ela tem
função de conformar o indivíduo ao status quo, a fazer com que aquiesça com o destino
social do qual não pode escapar, ao passo que no último romance, A ilha (utopia), tem
que ver com o alargamento da percepção e desperta nos usuários os sentimentos mais
nobres. Num caso, ela é peça fundamental no processo de robotização da
personalidade, fomentando a adesão cega ao existente, no outro, ela agencia
justamente o contrário – é vetor humano de comunhão, desejo de ruptura e superação.
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Mais à frente, como dito, o revide fulminante é curto, eficaz, sem qualquer
deleite ou catarse especial, quebrando o pacto formal com os americanismos do
gênero. A única hybris fica por conta de Lunga que cumpre o script alegórico da
“vingança cangaceira”, com seu necessário momento sanguinolento e não-angelical,
sustentando a legitimidade do acerto de contas dos esbulhados postos fora-da-lei.
Pouca vibração também quanto ao destino funesto do prefeito, que se confronta com
Pacote e o resto: boca chacoalhada e tampada, olhos vendados por uma máscara de
monstro, nu e expulso como um bode expiatório. Mas algo mais surge desse ato em
nome de uma defesa coletiva. Pois tirada desse buraco mais fundo da história da
opressão colonial como estado de exceção permanente (um buraco que lembra aliás as
táticas da guerrilha vietcongue), tais personagens não terminariam justamente pondo
em xeque a reversibilidade brasileira da ordem e da desordem identificadas mais de
uma vez por Candido (e seguido por Roberto Schwarz e Paulo Arantes30)? Pois, como
viemos apontando ao longo deste ensaio, a ação toda tem um claro ponto de fuga que
inverte completamente o sinal da “ordem social” desenvolvida, virando do avesso os
polos da ordem e da desordem aparentes, imantados em torno do critério fetichista
naturalmente estabelecido pelo valor e o trabalho social abstrato. É essa inversão
impensável, aliás, que mais tem incomodado os críticos liberais ou marxistas-leninistas
tradicionais, que acusam o filme de aderir ao “mito do cangaço” ou de Lampião. O
30 Candido foi dos primeiros a notar as implicações estruturais internalizadas pelas grandes obras
nacionais, obras de um país gerido sob o ritmo pendular de norma e contravenção, o que ele
descobrira em Manuel Antônio de Almeida (Memórias de um sargento de milícias, analisada em
“Dialética da malandragem”, op. cit.), mas que em verdade já comparecia, por exemplo, no “mundo
muito misturado” da ficção de Guimarães Rosa, também ele imantado por “um princípio de
reversibilidade” de contrários, que deixava, por exemplo, “a geografia deslizar para o símbolo e o
mistério”, “o jagunço oscilar entre o cavaleiro-soldado e o bandido”, “a mulher e o homem”, numa
longa série de interversões do mesmo no outro, que se universaliza. E é esse mesmo “sentimento de
contrários” que retorna no clássico “Esquema de Machado de Assis”, seja na “reversibilidade entre a
razão e a loucura”, seja no “contraste entre a normalidade social dos fatos e a sua anormalidade
essencial” (CANDIDO, Antonio. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970).Por fim, é isso o que
numa chave materialista totalizada por nosso tempo parece remeter às formas do estado de exceção
generalizado do capitalismo brasileiro, cuja dinâmica local informa sobre o processo mundial,
principalmente após a virada de 1848, as práticas do neocolonialismo e a marcha batida que foi dar no
“apocalipse nazi”. Esses foram os pontos sugeridos pelas análises de Roberto SCHWARZ, tomando a
volubilidade e as imposturas de Brás Cubas como orientação e depoimento formal (Um mestre na
periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades, 1990) e Paulo ARANTES,
costurando as linhas dialéticas da “dualidade estrutural” da formação nacional (O sentimento da
dialética na experiência intelectual brasileira. (Dialética e dualidade segundo Antonio Candido e
Roberto Schwarz). São Paulo: Paz e Terra, 1992; Idem, O novo tempo do mundo e outros estudos
sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo, 2014).
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31 Aqui um paralelo possível com uma obra-prima de Akira Kurosawa, Os sete samurais (1954). Num
país dilacerado pela guerra civil (no período conhecido como Sengoku) uma aldeia de camponeses
pobres pede ajuda a um grupo esfaimado de samurais sem mestre (ronin) para defender o vilarejo de
um bando de bandidos sanguinários que planeja atacá-los para roubar-lhes a colheita, deixando atrás
de si o costumeiro lastro de assassinatos, estupros e terra queimada. Renegados e abnegados –
engajando-se numa guerra difícil de ser vencida, que não lhes trará nem dinheiro nem glória –, os
samurais aos poucos constituem com os aldeões uma comunidade plebeia em luta contra a força
invasora daninha. Deduz-se que não há salvação sem solidariedade e a força do coletivo: “Ao proteger
os outros”, diz um dos samurais, o simpático Kambei Shimada, “você se salva a si mesmo. Se você só
pensa em si mesmo, você só vai se autodestruir.” A estratégia de luta também é reminiscente da usada
em Bacurau: “O inimigo”, diz ainda Kambei, “deve ser atraído para dentro. Para que possamos atacá-
lo. Se apenas nos defendermos, perdemos a guerra.” Para além do enredo, no plano da sintaxe
cinematográfica, as transições (wipes) de Bacurau são seguramente uma referência (homenagem) ao
mestre japonês, que consagrou a técnica.
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É por isso também que a remissão alegórica não à figura mítica mas ao destino
histórico do bando de Lampião (que os mais ligeiros quiseram ainda associar, em tom
geral, com o cine violência de Tarantino) parece-nos um tanto ambivalente e fora da
pista correta quando se examina a ocupação do sítio, o Museu e o que é
verdadeiramente encenado principalmente neste epílogo: note-se que quem veio
vaidoso para massacrar e tem as cabeças cortadas é o bando ianque (que assume assim
o lugar dos míticos bandidos-assaltantes do sertão, ou, noutra referência críptica, o do
grande tubarão-branco de Jaws, nesse mar extinto no meio do sertão), enquanto
Lunga e Pacote mais ou menos se dissolvem integrados na defesa coletiva da vida por
uma comunidade em luto pelos seus mortos, recordados em forma de lista narrada ao
final – uma comunidade dos pássaros cinzentos aguerridos que podem então sair de
seus buracos e ganhar a luz. Um fim incomum, estranhamente lutoso e utópico.
32 LEFEBVRE, Henri. La production de l’espace. Paris: Anthopos, 1974, especialmente, “VI. Des
contradictions de l’espace a l’espace différentiel”; MUMFORD, Lewis. A cidade na história. (Suas
origens, transformações e perspectivas). São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 1-64.
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Assim, talvez, algumas coisas tenham ficado muito mais subentendidas do que
deveriam, mais do que o sentido da obra mesmo parece requerer: onde está por
exemplo a vida produtiva do povoado? Há conflitos de terra? Vimos que sim, na
disputa pela água – mas então por que Bacurau parece cristalizar na mente dos
espectadores a imagem de um invasor exclusivamente externo? Quem domina a
represa e qual a sua relação com o prefeito? Por outro lado, ainda, a nova divisão inter-
regional do trabalho e as relações entre os dois Brasis podem ser resumidas ao
preconceito, à animosidade ou à indiferença do encontro de dois grupos
representativos de cada lado? O Nordeste excluído da federação sugere, ao contrário,
um verdadeiro colapso iminente, a impossibilidade mesma da reprodução dessa parte
mais pobre do país. São questões importantes que remetem a reflexão das formas para
os materiais em bruto, às vezes pouco visados, subestimados ou menos trabalhados
pela obra.
Mas não haveria algo de abstrato e impreciso em tais considerações? Pois logo
vêm à mente as cenas de uma vida que se reproduz num contexto de negação da
sociedade do trabalho e suas coerções: na escola e sua biblioteca, no museu, na
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enfermaria etc., em que veremos então que Plínio e a professora ensinam por meio da
cooperação e pedagogias ativas, os velhos livros parecem ordenados e abertos ao uso
coletivo, a coordenadora do museu demonstra viva consciência histórica ao incorporar
o rastro de sangue como novo testemunho, a doutora Domingas cuida dos necessitados
de maneira humanizada e gratuita, com o auxílio dos remédios e vacinas trazidos por
Teresa... não por acaso, também, as sequências mais fortes nos pareceram aquelas em
que há a presença intensa de personagens em atividade, confrontando as exigências da
vida e lidando com o choque do imprevisto: Damião cultivando suas plantas e
enfrentando a invasão, Pacote ao volante do jipe desesperado, Lunga e seu bando de
cachorros mortos e famintos, cavando buracos para enterrar as vítimas e os algozes,
Teresa não fugindo ao olhar dos corpos dos assaltantes no chão durante o cortejo final
que lembra os mortos do povoado em geral etc. Meio por acaso, outra ponta solta entre
tantas, ficamos sabendo que a comunidade – tal um novo quilombo – vem recebendo
cada dia mais “refugiados” da grande cidade como Teresa (que não deixa de estar
referenciada nas “migrações de retorno” que marcam o país desde os anos 1980), mas
não sabemos exatamente por quê, quem são, o que farão ali para sobreviver, assim
como não sabemos a verdadeira situação política e econômica do país cindido. Com o
que o povoado ganha ares de um projeto de comunidade autogerida utópica,
entrevendo-se e subentendendo-se, contudo, que é no campo das mediações sociais
práticas que algo ali se reproduz, e não a partir de meras ideias.
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33 Assim ganha outro sentido a última fala de Plínio, dita em tom irônico e acusando o excesso do real
(“–A gente tá sob um poderoso psicotrópico… e você vai morrer”), em resposta à ameaça terrorista do
prefeito – ameaça cujo teor é uma outra enormidade: “–Isso aqui é um rabo de foguete que vocês estão
se metendo… Esse povo é gente importante. O problema da água a gente resolve? Resolve... agora, isso
aqui, isso aqui não vai ficar barato não, Lunga! … Eu mesmo vou morrer por causa disso… isso aqui em
menos de 24 horas vai virar cinza!”). Sem o efeito coletivo permanente do “poderoso psicotrópico”
parece que será impossível sobreviver à repressão anunciada...
34 DUNKER, Christian. “Oniropolítica: alegorias da violência no Brasil contemporâneo”, Blog da
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Ou sua ousadia formal estaria criada por essa estratégia de emulação específica
conduzida até a corrupção e a demolição de seus próprios critérios internos? Sem
dúvida, este é o ponto mais forte e cativante de Bacurau, quando se interpreta
formalmente suas cenas: por via do filme de gênero e suas imitações ele atrai um
público diversificado, diverte sem cair na corrente pop, prende o interesse e engendra
todo um novo diálogo público com grande potencial de se tornar crítico ao longo do
tempo; a superidentificação com o Real abre caminho, nesse caso, para uma espécie de
desidentificação geral, inclusive com os equacionamentos e as saídas propostas pela
esquerda e o marxismo tradicionais; e ainda, se estivermos corretos, inova reatando
laços com a linha de obras brasileiras que pensaram questões fundamentais da
formação periférica (a dialética de ordem e desordem, local e mundial, sujeito e objeto
etc.). Aqui, como também meramente indicamos como hipótese de estudo, num
registro negativo ao propor uma “saída” estética (que jamais pode ser confundida com
uma saída político-ideológica) que havia sido descartada pelos artistas depois do
recrudescimento da repressão da Ditadura ou colocada em dúvida após a frágil
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35 Nesse sentido, o filme reata com algo da conjuntura do pré-1964, o elã do “bandido social” com traços
de vingador protorrevolucionário de obras como Deus e o diabo na terra do sol, lançado por Glauber
Rocha em 1964, desviando-se porém de seu horizonte cristão salvacionista num mesmo movimento
em que configura, por meios estéticos muito mais tradicionais, o “sertão como inferno” e a “nação
como miragem”, reengendrando a crítica do populismo da produção glauberiana posterior a 1964, e
que, por outro lado ainda, passa além das alegorias da derrota (às vezes travestidas de massa crítica) e
das tramas do individualismo de massas, do brutalismo da criminalidade e da violência urbanas, do
ressentimento e da vingança do homem isolado, muito ligadas à filmografia nacional mais recente
(Ver: XAVIER, Alegorias do subdesenvolvimento, op. cit., p.7-60; Idem, Ismail Xavier - Encontros,
op. cit., p. 153-173; Idem, O cinema brasileiro moderno. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001, p. 127 e
ss.).
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Frederico Lyra1
1 O que segue são comentários e divagações feitos a partir de notas tomadas durante viagem para a
cidade do Recife (Olinda e Paulista) entre dezembro de 2019 e janeiro de 2020. Isto é, notas de casa.
2 Ver : Côrtes, Mariana. O Diabo e a Fluoxetina. Pentecostalismo e psiquiatria na gestão da diferença.
Curitiba, Appris, 2017.
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entregador. Controle de fluxo e movimento infinito. Não dá para imaginar a vida sem
alguém para entregar o que quer que seja, e sem alguém para liberar a entrada ou
interfonar para alguém vir buscar a encomenda. O encontro dos dois pólos é
certamente um dos mais comuns na cidade. Se é verdade que ninguém da classe média
e alta exerce nenhuma destes dois trabalhos, este binômio é cada vez mais o
fundamento da vida destes – não por acaso a entrega e a vigia continuaram a todo
vapor durante a pandemia do covid-19. Do outro lado, entre os mais desfavorecidos,
parece que todo mundo tem algum parente ou conhecido que exerce um dos dois pólos
como ocupação. Com o motorista de Uber é um pouco diferente, pois quem entra no
carro pode muito bem estar indo ou voltando do trabalho, mas ali dentro ele é cliente.
Não consigo lembrar como a vida na cidade era antes do Uber, e duvido que alguém
consiga. Parece que sempre existiu Uber. Os ônibus são desde sempre precários, agora
ficaram raros e muito caros. O preço da passagem simplesmente não bate com a renda
média da cidade. Para os dias de trabalho, sobretudo, temos agora novas ciclofaixas. O
seu uso contínuo para se deslocar para o trabalho já está aumentando. É através delas
que os trabalhadores do UberEats que se deslocam de bicicleta conseguem chegar a
tempo de fazerem as suas entregas. Mas, o calor atrapalha bastante. Há alguns anos a
prefeitura do Recife reserva um espaço da cidade, concentrado no centro e na zona
norte (mais nobre), para que os habitantes possam fazer um passeio ciclístico aos
domingos e feriados no horário de 7h às 16h. Uma possível rotina de um domingo
qualquer talvez se resuma a um passeio de bicicleta, ir à igreja e tomar um remédio
para conseguir dormir (talvez devêssemos incluir um almoço familiar também). É bem
possível que seja através do uso massivo das ciclofaixas pelos trabalhadores precários
que a cidade do Recife realize o seu sonho secular de reatar os laços com a sua cidade-
irmã Amsterdam.
Se a Cidade do Recife é desde sempre uma cidade dividida, essa divisão parece
estar se acentuando. Os morros parecem estar cada vez mais altos e a periferia cada vez
mais distante. A proximidade-distante do Centro Cultural Xambá é testemunha isso.
Há uma nova normalidade no ar, uma sensação, falsa ou não, de que tudo vai melhorar
ou de que tudo estaria se ajustando. Nem melancolia, nem otimismo; “segue o barco”.
É difícil dizer o quanto a nova norma é nova para aqueles que estão a tanto tempo na
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No dia que desci do avião a mídia noticiava uma briga familiar, que agora se
tornara pública. Não era uma briga qualquer, pois envolvia a Mãe, o Irmão e o Filho do
falecido ex-governador Eduardo Campos – deve-se incluir também no meio dessa
salada a Prima do ex-governador que faz parte da “oposição”. Parecia que eu acabara
de descer num Feudo, mas como não houve Idade Média no Brasil, era mesmo do bom
e velho (neo)Coronelismo que estávamos falando – sem esquecer que o atual
governador e o prefeito da cidade do Recife foram escolhidos a dedo por Eduardo
Campos quando ainda estava em vida (embora o seu espírito parece guiar as eleições
que vem). Nos primeiros dias após a eleição do Capitão ventilou-se que a Resistência
Institucional que faria corajosamente frente àquilo que estava tomando
democraticamente o poder de assalto viria, de uma forma ou de outra, do Nordeste. Os
Governadores dessa região chegaram a fazer uma espécie de turnê internacional para
angariar recursos e parcerias bilaterais para essa região. Este movimento de
desagregação institucional nacional ficou ainda mais visível com o acúmulo de crises
que se segue. O fato da região historicamente mais pobre do país estar se articulando
nos mais diversos níveis independentemente do governo central é sinal claro da
acelerada desagregação nacional em curso. Do ponto de vista pernambucano, no
entanto, fica difícil imaginar como uma resistência ao que está posto como o novo
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3 Ver : https://jconline.ne10.uol.com.br/canal/mundo/brasil/noticia/2019/08/30/populacao-
comemora-chegada-da-forca-nacional-em-paulista-386898.php.
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veio foi para o que o pior não aconteça, se ela sair o pior surgirá. Por isso o temor da
população não deixa de ter a sua justificativa, não é com a intervenção pacificadora que
eles devem se preocupar, mas com o que dela vai restar.Inicialmente prevista para
durar 120 dias, a Missão foi prorrogada por mais seis meses, não sem descartar a
possibilidade deste prazo ser novamente estendido ad eternum: “‘A principal obra
desse programa é esse segundo momento, que é tratar as pessoas. Pegar bolsões de
pobreza, trabalhar a inserção social e fazer espaços de convivência, quadras
poliesportivas. Por onde a Força Nacional está atuando, eles já convergem no
diagnóstico do que se precisa para essas comunidades’, afirmou o prefeito de Paulista,
Júnior Matuto”4.
É cada vez mais comum ouvir em conversas ou ler por aí a seguinte expressão:
“Pernambuco, o Meu País”. Há algumas variações dela que circulam como: “orgulho de
ser pernambucano”. Há uma espécie de nacionalismo pernambucano que data de
muito tempo e que tem uma maneira própria de situar a história do Estado em relação
ao resto do país que parece estar ganhando novamente força. Houve realmente um
Estado que em determinado momento foi de fato insurgente e que se levantou por ao
menos três vezes ao longo do século XIX contra a sua integração naquilo que estava
tomando forma e viria a ser conhecido como Brasil. Mas se antes era uma reação
concreta a um processo de formação, ela aparece agora ressuscitada como um
sentimento oco de reação, por enquanto imaginária, a um processo de deformação
acelerada em curso. A alegoria em Bacurau de um ataque do sul-sudeste ao nordeste
materializa de certa forma o sentimento na forma de representação artística. Cada vez
menos gente quer ser brasileiro. Que a emblemática cena do assassinato dos invasores
do sul-sudeste pelos invasores norte-americanos tenha sido motivo de ovação em
praticamente todas as seções de Barucau no Estado onde o diretor do filme nasceu,
4 Ver:https://folhape.com.br/noticias/noticias/grande-
recife/2020/01/13/NWS,127580,70,752,NOTICIAS,2190-AGENTES-FORCA-NACIONAL-VAO-
FICAR-MAIS-SEIS-MESES-PAULISTA.aspx.
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pode ser um sinal que outras rupturas de maior porte possam estar se encaminhando
no Brasil5.
***
5 Para uma primeira tentativa de pensar estas questões: Lyra, Frederico. “Fraturas vindo à tona”.
Lavrapalavra, 20 outubro 2019. Disponível em: https://lavrapalavra.com/2019/10/29/fraturas-
vindo-a-tona/. (Acesso em 01 de abril 2020.)
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eliminado, sugere o filme6. Participar a todo custo do carnaval é parte incluída nos
rituais de sofrimento7 que sem vêem submetidos todos aqueles trabalhadores.Não é à
toa que na sua atualização do conceito de indústria cultural, Robert Kurz diga que a
pós-modernidade aparece, entre outras coisas, como um carnaval de fim de linha 8. “O
carnaval, como um período de tempo limitado e repetido todos os anos na mesma
época, onde se provoca a ruptura da ordem social e a inversão de valores e papéis,
caracterizada na expressão ‘o mundo pelo avesso’, tem raízes em tradições milenares
na Europa Ocidental. A ruptura da ordem social vai dar lugar a manifestações de fuga
das situações do cotidiano”9. Pouco importa quanto, paga-se qualquer preço para fugir,
mesmo que por alguns pouco dias de carnaval, da centralidade negativa do trabalho
(Paulo Arantes).
Em Recife e Olinda faz muito tempo que o carnaval não acaba na Quarta-Feira de
Cinzas. De um tempo para cá as prévias se iniciam em meados de setembro. Como
neste ano de 2020 o carnaval ocorreu no final de fevereiro, tivemos ao todo mais ou
menos seis meses de festa. É verdade, porém, que nos primeiros meses de prévias, o
carnaval só acontece nos finais de semana. Pouco a pouco é que ele vai invadindo os
outros dias. No primeiro domingo do ano de 2020, o único dia que pude comparecer, a
6 Para um comentário detalhado sobre o filme Estou me Guardando para quando o Carnaval Chegar,
ver: Cris R & Júlio C. “Estou me guardando para quando o carnaval chegar: faz parte dessa solidão”.
Data: 07 dezembro 2019. Data de acesso: 30 de março de 2020. Disponível em:
https://passapalavra.info/2019/12/129172/
7 Cf. Viana, Silvia. Rituais de sofrimento. São Paulo, Boitempo, 2013.
8 Kurz, Robert. “A indústria cultural no século XXI. Sobre a actualidade da concepção de Adorno e
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folia já estava para além de uma simples prévia. Neste ano de 2019 o tradicional bloco
Eu Acho é Pouco – criado em 1976 como um bloco que tinha a intenção de ser crítico à
ditadura vigente, pouco a pouco ele se tornou um dos blocos mais frequentados e
representativos da classe média e dos artistas locais – realizou uma festa prévia para
comemorar o fato de que faltavam apenas 200 dias para o carnaval. Outro fenômeno
dos últimos anos é uma espécie de invasão da classe média em alguns dos bairros mais
populares de Olinda na busca por um carnaval mais autêntico que estaria por aí,
perdido em algum lugar. É como se houvesse uma Revelação carnavalesca por
encontrar – mas é bem verdade que de fato ela talvez ainda exista, mesmo que só como
projeção ideológica. Por um lado, o carnaval de Olinda/Recife é o único do Brasil que
continua a ser realmente predominantemente popular. Não parece haver de fato
carnaval em outros locais. Por outro lado, a crescente mercantilização deste parece
aparece como tendência dominante. A cada ano que passa o último carnaval popular, é
cada vez menos popular. É o que um estudioso dos maracatus, Ivaldo Marciano, chama
de “espetacularização do carnaval”11, fenômeno que ocorre através da sua
“institucionalização”12. Não haveria razão para o carnaval escapar da tendência de
integração total pela lógica da desintegração que rege o sistema capitalista. Com mais
da metade do ano dedicada ao carnaval fica cada vez mais complicado de dizer qual é o
estado atual do mundo. Se ele já estaria ou não de ponta cabeças, ou se ele ainda
estaria em vias de totalizar esse movimento de inversão de seu estado. Giorgio
Agamben, entre outras coisas, identifica em festas populares periódicas, como o
carnaval, uma possível paródia do estado de exceção que estaria pulsando no coração
destas situações e zonas de anomia festivas13. É verdade que começando as prévias com
200 dias para o carnaval, ainda ficam faltando 165 dias para que se complete o
calendário anual. Ainda falta muito para o carnaval durar o ano inteiro. Ao mesmo
11 “Ao longo desses anos, o modelo de carnaval-espetáculo cresceu e ganhou força suficiente para que
atualmente possa ser pensado como uma festa espetacularizada, permeada por vários espetáculos. Ao
contrário do carnaval carioca, em que o desfile das escolas de samba possui força suficiente para
invisibilizar outros tipos de carnaval existentes no Rio de Janeiro, no Recife ocorrem disputas por
legitimidade e visibilidade entre diferentes tipos de espetáculos”. (Lima, Ivaldo Marciano de França.
Mas, o que é mesmo maracatu nação? Salvador, Eduneb, 2013, p. 104).
12 “O carnaval recifense sofreu uma paulatina institucionalização desde o momento em que foi
‘assumido’ pelo poder público municipal. Esta institucionalização culminou com transformações
diversas, algumas das quais combatidas ainda hoje pelos tradicionalistas, defensores do carnaval
participação”. (Idem, p. 112).
13 Agamben, Giorgio. « État d’exception ». in:__. Homo Sacer l’intégrale. Paris, Seuil, 2016, p. 237-239.
298
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tempo esse intervalo de tempo pode ser rapidamente preenchido. Por definição, não é
possível determinar de antemão quando o carnaval vai acabar. Pode ser que desta vez
ele não acabe nunca – em 2020 só com o coronavírus teria sido possível pará-lo.
Pensando bem, na verdade não, ele só foi deslocado. Ele continuou no espetáculo
diário do Capitão. Já dizia um estudioso das revoltas populares francesas “se além dos
dias marcados, os gestos do Carnaval encontram um papel insurrecional, deve-se então
reconhecer aos seus atributos um valor emblemático, ou eles se identificaram à causa
da cidade ou da província e se tornaram símbolos patrióticos, ou ainda eles carregam
nas suas referências aos transbordamentos carnavalescos um tipo de convite implícito
à revolta”14. Carnaval é também reação do ressentimento, por isso não pode parar. Na
ideia mesmo de carnaval já está contida a ambivalência das duas direções que ele pode
tomar. O mundo de ponta cabeças ou é pura desintegração ou é utopia concreta. “Eu
acho é pouco, é bom demais”, diz o bloco. Parece claro para onde o carnaval está nos
levando.
14 Bercé, Yves-Marie. Fête et révolte. Des mentalités populaires du XVI au XVIII siècle. Paris, Hachette
littératures, 1976, p. 82.
299
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CONSIDERAÇÕES SOBRE A
DISSOCIAÇÃO-VALOR NA
ATUALIDADE
Asselvajamento do patriarcado e abordagem das diferenças em
Roswitha Scholz
Este artigo trata não apenas das linhas gerais que compõem a teoria da
dissociação-valor, da filósofa alemã Roswitha Scholz, mas também aborda brevemente
alguns aspectos relevantes de seu trabalho para compreendermos o que ela chama de
“asselvajamento do patriarcado”, uma definição que se torna nítida com a atual crise
do capitalismo contemporâneo e sua face política neofascista. Aqui também faço
algumas considerações sobre o enquadramento teórico de Scholz sobre a questão das
diferenças, o que abrirá a possibilidade de tecer uma crítica acerca do espaço assumido
pela interseccionalidade sob o ponto de vista da autora.
A cisão do valor
O motivo central que fez com que Roswitha Scholz se afastasse do grupo Krisis,
fundando com Robert Kurz a Exit!, se deveu à recusa entre seus membros em conceder
à sua “teoria da dissociação-valor”2 a centralidade fundamental – que ela via como
intransigível – na forma de conceber o modelo capitalista.
300
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.
3 Ibid.
4 Ibid.
5 Ibid.
6 Ibid.
7 Ibid.
301
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.
Valor e não valor são faces da mesma moeda que compõem a integralidade da
vida social no capitalismo, como expressões de caráter sexual, isto é, como dois
“universos” que têm como “nexo constitutivo”8 e como “próprio núcleo” a
masculinidade e a feminilidade, respectivamente. A realização do valor, que se
constitui como uma tarefa de homens, assume sua primazia social em simultaneidade à
consolidação da dominação masculina na sociedade capitalista.
8 SCHOLZ, Roswitha. “O valor é o homem: teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os
sexos”. Tradução: José Marcos Macedo. Novos estudos CEBRAP, nº 45. São Paulo, 1996. Disponível
em: http://www.obeco-online.org/rst1.htm. Acesso em janeiro de 2019, p. 17.
9 Ibid., p. 33.
10 Ibid.
11 SCHOLZ, 2000.
12 “Poder-se-ia então dizer: se à mercadoria corresponde a forma abstracta, ao dissociado corresponde a
ausência de forma abstracta; no caso do dissociado, poder-se-ia falar paradoxalmente duma forma de
ausência de forma”. Ibid.
13 SCHOLZ, 1996, p. 33.
14 BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo: fatos e mitos. Volume 1. Tradução: Sérgio Milliet. 3ª edição.
302
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Patriarcado selvagem
15 SCHOLZ, 2000.
16 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia 1. Lisboa: Assírio e
Alvim, 1972, p. 28.
17 Ibid.
18 SCHOLZ, 2000.
303
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há muito que se verifica a tendência para uma integração mais forte das
mulheres na sociedade “oficial” (pública e conotada como masculina no
patriarcado produtor de mercadorias). Contudo, mesmo na situação
modificada pós-moderna, agora como antes, elas continuam a ser
responsáveis pela lida da casa e pelas crianças, ao contrário dos homens;
agora como antes, continua a ser raro encontrá-las nas alavancas de
comando do poder na esfera pública; agora como antes, ganham em média
menos que os homens etc. (cf., por exemplo, Beck/Beck-Gernsheim,
1990). Houve, portanto, uma modificação da estrutura da dissociação-
valor, a “dupla socialização” ganhou uma nova qualidade. As mulheres
estão agora “duplamente socializadas”, e não apenas objectivamente,
como antes, mas agora mesmo na sua imagem modelo já não estão fixadas
apenas à vida de dona de casa e de mãe. Com isto também a situação
psíquica das mulheres se modifica (...) mas sem que a forma da
dissociação-valor tenha sido superada.20
19 Ibid.
20 Ibid.
21 Ibid.
22 Ibid.
304
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taxas de lucro: “a lógica de “salário, preço e lucro” (Marx), ou seja, a forma fetichista do
‘valor’, está a determinar objectiva e normativamente quase tudo, justamente na época
em que se torna em definitivo obsoleta”.23
Os acontecimentos do presente demonstram claramente como a crise em
processo insere como ordem do dia um cenário de recrudescimento da forma
neoliberal do capitalismo, de modo a garantir sua manutenção, ou, na pior das
hipóteses, a repartição de seus despojos entre uma classe dirigente de privilegiados. Se
nos anos 90 ainda era possível a sustentação de um modelo de neoliberalismo das
diversidades, o “seja você mesmo, inove!”, incentivado desde que o modus operandi
capitalista pudesse passar ao largo de críticas24, a rudeza da conjuntura atual
demonstra o cerco fechado pela necessidade de preservação da valorização imparável
do valor por intermédio de formas políticas nitidamente neofascistas, imbuídas da
máxima brutalidade na exploração da existência humana, num mix vulgar de
precarização e conservadorismo radicais.
Desde o modelo brasileiro, entreguista e aniquilador de direitos sociais, cujo
desastroso presidente é autor das bravatas “não te estupro porque você não merece” 25 e
"O Brasil é uma virgem que todo tarado de fora quer"26, passando pelo Chile, em que o
líder golpista é intitulado de “Macho Camacho”, até o nacionalismo americano de
23 Ibid.
24 “Adoramos pensar que as diferenças que nos dividem não são diferenças entre os que têm dinheiro e
os que não têm, mas, ao contrário, que são diferenças entre os que são negros e os que são brancos,
asiáticos ou latinos ou o que seja. Um mundo em que alguns de nós não têm dinheiro o suficiente é um
mundo em que as diferenças entre nós apresentam um problema: a necessidade de acabar com a
desigualdade ou de justificá-la. Um mundo em que alguns de nós são negros e alguns são brancos — ou
bi-racial ou nativo-americano ou transgênero — é um mundo em que as diferenças entre nós
apresentam uma solução: valorizar nossa diversidade. Então gostamos de falar a respeito de diferenças
que podemos valorizar, e não gostamos de falar sobre aquelas que não podemos. De fato, não
gostamos sequer de saber que elas existem”. MICHAELS, Walter Benn. The Trouble with Diversity:
How We Learned to Love Identity and Ignore Inequality. 10ª anniversary edition. New York:
Metropolitan Books, 2006, p.3 (trad. minha).
25 MARTINELLI, Andréa. 'Não te estupro porque você não merece', repete Bolsonaro a deputada Maria
305
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Trump, com seu “Grab ’em by the pussy. You can do anything” 27, o novo fascismo não
esconde, ainda, o seu caráter eminentemente misógino, de reforço às categorias da
dissociação-valor, conforme descritas por Scholz.
A figura da mulher como “antípoda” materializa-se não somente no fato de
aumentarem a olhos vistos os contextos de violência contra a mulher, feminicídios
epidêmicos, atos de repressão política contra mulheres insurgentes (vide os estupros
ocorridos no Chile até o trágico episódio de linchamento público da prefeita boliviana
do partido de esquerda, Patricia Arce, que foi agredida, arrastada e teve seus cabelos
cortados), como também quando a crise revela que a adesão popular ao fascismo é
imbuída pela ânsia ao retorno à uma certa “virilidade perdida”.
Neste sentido, Scholz nos fornece um bom diagnóstico: se no contexto
capitalista o trabalho serve, tradicionalmente, como o “doador de identidade” à
masculinidade, a sua crise e incipiência progressiva, manifesta na “uberização” da força
de trabalho, demonstram que a categoria, ao contrário, não mais se presta a fornecer a
sustentação viril ao macho pós-moderno, que intui aí o seu “perigo de castração”28. O
que é “ser homem”, se não mais se pode ser um provedor?
Vê-se, assim, na crise mais “um abrandamento dos papéis tradicionais de género
em condições de empobrecimento”29, do que a ainda longínqua emancipação das
identidades de gênero: configurações familiares compostas exclusivamente por
diferentes gerações de mulheres sobrecarregadas pela responsabilidade do sustento
familiar contrastam com homens que “arrastam-se de emprego em emprego e de
27 THE NEW YORK TIMES. Transcript: Donald Trump’s Taped Comments About Women. 2016.
Disponível em https://www.nytimes.com/2016/10/08/us/donald-trump-tape-transcript.html. Acesso
em dezembro de 2019.
28 “De fato, a onda de racionalização iniciada nas duas últimas décadas através de novas tecnologias e da
globalização dos mercados não afeta apenas as mulheres com função remunerada (embora elas sejam
as mais atingidas), mas também um número crescente de homens. Como não se trata mais de um
mero desemprego "cíclico", mas sim estrutural, também nesse sentido uma nova qualidade é
alcançada. Ao mesmo passo, o absurdo e o poder de destruição do "trabalho" abstrato vêm a lume
tanto subjetiva quanto objetivamente (crise ecológica). O próprio desenvolvimento tecnológico e
estrutural torna cada dia mais obsoleto esse marco constitutivo da identidade masculina no
patriarcado do valor. Em todos os níveis, também os homens são forçados a refletir sobre sua
identidade tradicional, seja ela pessoal e subjetiva ou social. O "trabalho" abstrato não pode mais ser o
campo social pelo qual se orienta a identidade masculina. Os poucos movimentos masculinos já
existentes, de resto, põem em questão os pontos de referência de sua identidade”. SCHOLZ, 1996, p.
35.
29 SCHOLZ, Roswitha. O ódio às mulheres está novamente a aumentar. 2017. Tradução: Boaventura
306
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.
30 Ibid.
31SCHOLZ, 2000.
32 SCHOLZ, Roswhita. Estende o teu manto, maria!:Produção e reprodução na crise do capitalismo.
periferia do capitalismo”. In: CEVASCO, Maria Elisa; OHATA, Milton (Org.). Reflexões sobre a obra
de Robert Schwarz. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 153.
307
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.
Parto aqui para uma breve reflexão sobre a abordagem das diferenças na teoria
de Roswitha Scholz. Negros, ciganos (sobre os quais Roswitha trata em seu trabalho
que os compara à figura do homo sacer, de Giorgio Agamben34), judeus, palestinos,
toda sorte de problemáticas de classe, étnicos, de diversidade de gênero: como figura a
interseccionalidade para a filósofa de Nuremberg, frente à centralidade assumida em
sua teoria pela dinâmica sexual em relação dialética com o valor? Como sustentar a
centralidade da questão de gênero, principalmente se considerarmos que no contexto
da contemporaneidade “asselvajada” não apenas mulheres, mas uma série de grupos
tidos como “minoritários” encontram o seu lugar de marginalização e violência?
Em termos gerais, Roswitha defende que, muito embora a teoria da dissociação-
valor descreva a ideia de uma “meta-estrutura”35 do capitalismo, em que dissociação e
valor contrapõe-se, compondo uma totalidade de cunho sexual, o próprio fato desta
elaboração teórica centralizar-se na ideia de reconhecimento da alteridade inferior do
dissociado feminino já faria com que ela trouxesse dentro de si o seu “autodesmentido
interno”36, ou seja, já abarcaria em seu corpo o espaço para o reconhecimento de todas
as características marcadas no capitalismo sob a forja da diferença.
Como forma de sustentar sua hipótese, Scholz formula a ideia de planos “macro,
meso e microscópico”:
34 SCHOLZ, Roswitha. Homo Sacer e os ciganos. 2017. Tradução de Boaventura Antunes, Lumir Nahodil
e Virgínia Freitas. Disponível em http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz7.htm. Acesso em dez
de 2019.
35 SCHOLZ, 2000.
36 SCHOLZ, Roswitha. O Tabu Da Abstracção No Feminismo. 2011. Disponível em http://www.obeco-
308
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.
37 SCHOLZ, Roswitha. A nova crítica social e o problema das diferenças: Disparidades económicas,
racismo e individualização pós-moderna. Algumas teses sobre o valor-dissociação na era da
globalização. 2004. Tradução: Lumir Nahodil e Boaventura Antunes. Disponível em
http://obeco.planetaclix.pt/roswitha-scholz3.htm Acesso em janeiro de 2018.
38 “A negação da fisicalidade natural e material constitui a realidade positiva da fisicalidade abstrata
social dos processos de troca onde a rede da sociedade é tecida”. SOHN-RETHEL, Alfred. Intellectual
and Manual Labour: aCritique of Epistemology. London: Macmillan, 1978. p. 56-57, (trad. minha).
309
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.
39 Ibid.
40 “A produção é imediatamente consumo, e o consumo é imediatamente produção; cada termo é
imediatamente o seu contrário. Mas, simultaneamente, há um movimento mediador entre ambos; a
produção é intermediária do consumo, cuja matéria cria; sem esta, aquele ficaria privado do seu
objeto; por sua vez, o consumo é intermediário da produção, pois proporciona aos seus produtos o
sujeito para o qual eles o são (produtos). O produto só atinge o seu finish final no consumo. Uma via
férrea onde não circulam trens, que não é usada, que não é consumida, pode dizer-se que é imaginária,
que não existe. Sem produção não há consumo; mas sem consumo, também não há produção, pois,
nesse caso, a produção seria inútil”. MARX, Karl. Introdução à Contribuição para a Crítica da
Economia Política. 1859. Disponível em
https://www.marxists.org/portugues/marx/1859/contcriteconpoli/introducao.htm. Acesso em
janeiro de 2018.
41 SCHOLZ, 2000.
310
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.
42 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital.
Tradução Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 113.
43 Ibid., p. 204.
44 ŽIŽEK, Slavoj. “Como Marx inventou o sintoma?” In: ZIZEK, Slavoj (org.). Um mapa da Ideologia.
311
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.
negro do mundo”45, o que, em outras palavras, poderia ser qualificado como a trágica
equiparação da coletividade a uma massa cada vez mais uniforme de dissociados.
Em suma...
312
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.
Introdução
Apesar das poucas citações diretas a Lacan em Pele negra, máscaras brancas
(cinco apenas), Fanon demonstra estar em um diálogo frutífero que por vezes se vale
de proposições acerca da teoria lacaniana da psicose (2008, p. 67), por outras difere
313
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.
Sabemos também que Fanon vem a falecer antes de Lacan apresentar sua teoria
dos discursos, um ponto de virada importante em sua obra. Poderíamos dizer que
Fanon veio a conhecer apenas o primeiro Lacan. Também por isso pretende-se
demonstrar as possibilidades de diálogo entre a sociogenia crítica que parte da
dialética entre colonizador/colonizado (a que Fanon apresenta em Pele negra,
Máscaras Brancas), a teoria dos discursos (que Lacan formaliza no livro XVII de seus
seminários, chamado O Avesso da Psicanálise) e, fundamentalmente, a utilização da
teoria dos discursos para a crítica da ideologia (como elaborada por Žižek em várias de
suas obras). Carregamos aqui a consciência de que tanto a psicanálise, como sabia
Fanon, quanto, em especial, a teoria de Lacan, muito tem a contribuir para a teoria
social marxista – como insiste Badiou, Žižek e tantos outros. Partiremos assim de uma
retomada geral do debate através do conceito de sujeito na filosofia francesa do século
XX, até chegarmos na definição lacaniana e sua formulação pelo modelo do
significante, apropriando-se e subvertendo este modelo da própria linguística de
Saussure. Avançaremos para a crítica da ideologia tal qual apresentada por Žižek e, por
fim, as possíveis relações destas com leituras contemporâneas de Fanon e suas
contribuições fundamentais à crítica da ideologia – seja a ideologia racialista, seja à
ideologia em um sentido geral.
314
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.
Sendo assim, teremos essa dualidade demarcada na filosofia francesa do século XX.
Essa observação é fundamental para compreendermos as contribuições desse evento
filosófico, tanto para a teoria de modo geral (o legado do estruturalismo e do pós-
estruturalismo), quanto para o conceito de sujeito em específico. Essa elaboração parte
do diálogo de tais influências que retornam ao conceito de sujeito desde Descartes a
partir de uma compreensão das influências externas. O sujeito passa a ser abordado,
pelos autores desse movimento, a partir de múltiplas perspectivas.
315
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.
Badiou nos lembra que Lacan chegou a lançar uma palavra de ordem para um
retorno a Descartes. Sartre trata, em um de seus famosos textos, da liberdade em
Descarte. É conhecida também a hostilidade de Deleuze contra o mesmo. Enfim, há
“uma batalha em torno da noção de sujeito, que frequentemente toma a forma de uma
controvérsia quanto a herança cartesiana” (BADIOU, 2015).
Também nos ensina Badiou que a filosofia francesa no século XX foi buscar na
Alemanha uma nova relação entre conceito e existência, onde encontramos um
verdadeiro debate sobre a herança do pensamento alemão, de Kant a Heidegger. Essa
busca se dá enquanto a primeira de duas operações intelectuais, de buscas
metodológicas. A segunda, não menos importante, é em relação à ciência. Os franceses
quiseram “arrancar a ciência do domínio estrito da filosofia do conhecimento”
(BADIOU, 2015, p. 12). Daí poderemos começar a compreender o estilo metodológico
na tradição do estruturalismo, e também a complexa e mal compreendida abordagem
de Lacan que será fundamental para compreendermos a questão do sujeito enquanto
descentrado; questão que será cara à formulação teórica da psicanálise e à filosofia que
se engajou com as questões que o inconsciente trouxe, em especial para a temática da
liberdade. Sobre isso, precisaremos então abordar o que define Lacan acerca da
questão do sujeito.
Em seu famoso retorno a Freud, Lacan retoma seu projeto pelo avesso,
articulando-se junto ao movimento de Saussure e Lévi-Strauss no estruturalismo
linguístico e antropológico. Também será influenciado por Hegel, via Kojève. Além
disso, irá, ao longo do desenvolvimento de seus seminários, incorporar ferramentas da
lógica matemática e da topologia para reelaborar a metodologia da formulação teórica
e, uma de suas principais preocupações, da transmissão da psicanálise. Podemos dizer
que a teoria lacaniana se funda por redefinir preceitos éticos e reformular a posição da
psicanálise em relação às ciências e à filosofia. Lacan aborda a psicanálise a partir de
uma ética. Seu objetivo também é o de combater mal-entendidos sobre o inconsciente
316
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A assunção jubilatória de sua imagem especular, por esse ser ainda mergulhado
na impotência motora e na dependência da amamentação que é o filho do
homem no estágio de infans, parece-nos pois manifestar, numa situação
exemplar, a matriz simbólica em que o Euse precipita numa forma primordial,
antes de se objetivar na dialética da identificação com o outro e antes que a
linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito. (LACAN, J. “O
Estádio do Espelho como formador da função do eu” in: Um mapa da ideologia,
2010, p. 98).
317
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Mas o ponto importante é que essa forma situa a instância do eu, desde
antes de sua determinação social, numa linha de ficção, para sempre
irredutível para o indivíduo isolado – ou melhor, que só se unirá
assintoticamente ao devir do sujeito, qualquer que seja o sucesso das
sínteses dialéticas pelas quais ele tenha que resolver, na condição de Eu,
sua discordância de sua própria realidade. (Idem, ibidem.)
Em que pode ser útil a teoria lacaniana dos discursos para compreendermos a
ideologia e sua função, seu lugar, na estruturação da realidade? Para início de reflexão,
precisamos compreender que a teoria dos discursos desenvolvida por Lacan se apoia
tanto no estruturalismo linguístico e antropológico quanto nas subversões produzidas
pela sua intervenção, a partir do que Freud descobre sobre o inconsciente. Comecemos
pela apropriação e subversão do conceito de significante operado por Lacan.
318
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nenhum dos elementos da cadeia consiste na significação que ele é capaz no momento
mesmo” (LACAN, 1978, p. 232-233). Daí veremos sua justificativa acerca da primazia
do significante, e também sua crítica a Saussure que considera a linearidade “como
constituinte da cadeia do discurso, conformemente a sua emissão por uma única voz e
na horizontal” quando, na escrita da teoria psicanalítica apresentada por Lacan, “é
necessária, mas não suficiente”, devido sua dimensão retroativa. Lacan também
indicará as duas vertentes do campo efetivo que o significante constitui para se dar aí o
sentido: metonímia (quando dizemos que há no mar trinta velas, onde sabemos que a
palavra barco se esconde nessa relação) e metáfora (onde se troca uma palavra por
outra, como quando “amor é fogo que arde sem se ver”, e grande é o crédito dado por
Lacan tanto aos poetas quanto ao movimento surrealista, no que diz respeito nosso
conhecimento dos usos da metáfora). Lacan finalmente chegará à questão do sujeito
cartesiano, o cogito ergo sum, e à possível relação subversiva entre este e a finalidade
proposta pela descoberta de Freud: Wo Es war, soll Ich werden. Podemos resumir
brevemente a questão com a seguinte citação de Lacan:
Daí emerge o sujeito, “em virtude do significante que funciona como representando
esse sujeito junto a um outro significante” (LACAN, 1994, p. 11). Lacan, mais para
frente, desenvolverá sua teoria dos quatro discursos, dos quais não precisamos abordar
todos, senão o primeiro: o discurso do mestre. Começa por ele e não é à toa. O discurso
do mestre é aquele que, da posição de agente, endereça um significante mestre (S1) em
uma bateria de significantes ordenados (S2) que, por sua vez, se encontra no lugar do
Outro, no lugar (como nos diz Lacan) daquilo que se convencionou chamar de um
saber. O discurso do mestre não precisa ser sustentado necessariamente por uma
figura direta de um mestre, podendo operar simplesmente pela legitimidade que evoca,
seja pelo motivo que for. O significante mestre, por sua vez, opera uma função de
estofo, comanda um ordenamento discursivo. Sendo o inconsciente discurso do Outro,
nele opera também um ordenamento do significante mestre sobre sua estrutura. É
320
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Vemos então que esse discurso diz também algo da ordem da política, do poder
e do ordenamento (ou coesão) de um laço social, seja individual ou coletivo. Žižek
articulará o conceito de significante mestre junto à crítica da ideologia. Gunkel define o
conceito žižekiano de crítica da ideologia como aquilo que busca expor a dimensão
ideológica “implícita” que fundamenta um significante mestre:
321
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ele, como vimos, o sujeito é uma categoria ideológica. O que isso quer dizer? Veremos a
seguir a dimensão em que Althusser se afasta de Lacan, a proposição žižekiana em
relação à ideologia e sua possibilidade de articulação com a crítica feita por Fanon em
Pele negra, máscaras brancas.
Althusser desenvolve sua ideia partindo das formulações acerca dos AIEs
(Aparelhos Ideológicos de Estado, relacionando-os também aos Aparelhos Repressivos
do Estado, os AREs) e define a constituição subjetiva através da interpelação
ideológica: quando um policial interpela (convoca, adverte, demanda) um indivíduo,
este é interpelado enquanto sujeito por instâncias que cumprem uma função ideológica
de reprodução das relações de produção (ALTHUSSER, 1978/2010). É importante
demarcar que a relação entre AIEs e AREs não são de autoexclusão, de modo que
apesar de uns definirem-se mais pela característica repressiva e outros pela ideológica,
ambos são tanto um quanto outro (de tal modo que a polícia militar é um aparelho
repressor, mas internamente possui seus próprios aparelhos ideológicos, ao passo que
redes televisivas são aparelhos ideológicos que internamente possuem seus próprios
aparelhos repressores, por exemplo).
Althusser vai definir então suas teses acerca da ideologia, conceituando-a como
a-histórica no sentido específico que Freud dá para o inconsciente enquanto
atemporal, de tal modo que “a eternidade do inconsciente guarda alguma relação com a
eternidade da ideologia em geral” (ALTHUSSER, L. 1978/2010, p. 125). Em um
segundo momento, Althusser definirá também a ideologia enquanto uma
“representação” da relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de
existência e possuidora de uma existência material. Por fim, Althusser afirma que não
existe prática que não seja através e dentro de uma determinada ideologia, ao passo de
que não existe ideologia exceto pelo sujeito e para sujeitos. Daí teremos sua tese
central no texto Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado: a ideologia interpela o
indivíduos como sujeitos.
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Mas como sabemos, a identidade não é algo fixo, essencial e imutável, não é
estanque e muito menos não relacional. A identidade é um processo simbólico que
estrutura o ego e, por sua limitação estrutural, é sempre implicada pela sua falta, já que
toda identidade necessita de uma constituição junto ao Outro (da alteridade radical, da
linguagem, etc.) e esse Outro é, por definição, faltoso, furado. Voltaremos a esse ponto
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mais adiante, por hora basta dizermos que a identidade se dá a partir de um processo
de estruturação simbólica do imaginário, mas vai além da simples nomeação. De
acordo com Žižek, já em Hegel encontramos a percepção de que há algo de violento na
própria simbolização: quando nomeamos uma coisa, o próprio ato de nomeação reduz
tal coisa a um traço e implica sua inserção em uma rede de significações exterior à
própria coisa. Mas, não podemos esquecer, essa violência pode se dar também em uma
dimensão libertadora. Não seria a diferenciação entre trabalhador (ou a categoria força
de trabalho, como apresentada n’O Capital) e proletário um grande exemplo de
violência simbólica emancipadora? Žižek, enquanto bom hegeliano, percebe os deslizes
de Lacan ao analisar as categorias marxistas de exército industrial de reserva e
população excedente
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Mas o que significa essa maneira autêntica na qual precisamos ser destituídos
de nossas “raízes” para que essa subjetividade, que demanda e depende de ação
emancipatória, possa surgir? Podemos encontrar uma pista na passagem de Pele
Negra, Máscaras brancas, onde Fanon apresenta sua crítica ao culto da inteligência:
Não se deve tentar fixar o homem, pois o seu destino é ser solto. A
densidade da História não determina nenhum de meus atos. Eu sou meu
próprio fundamento. É superando o dado histórico, instrumental, que
introduzo o ciclo de minha liberdade. (FANON, Pele negra, máscaras
brancas, 2008, p. 190)
Ao se produzir a raça como tecnologia de poder para controle dos corpos — dos que são
livres ou escravos, humanos ou não humanos, nativos ou civilizados, etc. — desenvolve-
se uma condição ideológica que toma os corpos como suporte material desse universo
simbólico. Ora, não era justamente essa a pretensão do racismo científico, como nos
mostra a frenologia?! Antes, o próprio espaço simbólico que constitui a formação de
nossa consciência, subjetividade e identidade é onde se desenvolve a ideia de raça para
que esta torne-se uma abstração real, no sentido marxista que Douglas Rodrigues
Barros toma emprestado em seu livro Lugar de negro, lugar de branco? Esboço para
uma crítica da metafísica racial, e o utiliza no mesmo sentido — enquanto algo que
não possui fundamento substancial mas produz realidade, organiza a vida em seus
efeitos materiais.
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Douglas trará as armas da crítica fanoniana para nos lembrar que os dois
movimentos comuns são já inscritos na lógica simbólica da colonização: 1) a
superidentificação com o mundo colonial, seu estilo, linguagem, símbolos; a
caracterização do poder nos termos da branquitude, e 2) a negação que busca um
retorno a si, às origens, ao mundo perdido e a um mito originário que é,
necessariamente, inexistente. Ambas as posições são coniventes com a lógica colonial,
apesar de aparentemente distintas — até opostas. Se a primeira é mais fácil de
imaginarmos, a segunda hoje pode ser ouvida por qualquer neonazista europeu ou
supremacista branco norte-americano: a ideia de retorno é justamente o que eles
querem impor aos árabes, mexicanos, chineses, sírios, líbios… Qualquer pessoa não-
branca é “convidada” a regressar para sua “origem”— às vezes mesmo que essa pessoa
tenha nascido no território do respectivo país ao qual “não pertence”. De certa forma, a
violência terrorista do Estado de Israel contra o legítimo território palestino não se
fundamenta justamente nesse mito originário da terra sagrada? Um povo que foi
vítima de uma das mais traumáticas e rememoradas atrocidades racistas e genocidas
do séc. XX, que foram subjugados à perseguição e extermínio em escala industrial por
conta de um discurso paranoide orientado pela abstração real da ideia de raça, hoje
protagoniza uma das maiores atrocidades em curso no contemporâneo. Hoje para um
judeu afirmar-se antirracista, seguindo a máxima de que não basta não ser racista, ele
categoricamente precisa se afirmar anti-sionista, ou seja, contra o Estado de Israel, que
invade território palestino.
Isso nos traz a um imbróglio tão pertinente quanto espinhoso, fundamental para
abordarmos a política no contemporâneo: a questão das identidades se torna central
para a manutenção dos (des)governos neoliberais, de tal forma que a própria extrema-
direita protofascista estadunidense e europeia já se define enquanto identitária.
Enquanto isso, o debate da esquerda rendida aos limites neoliberais se dá na
reafirmação da identidade enquanto sua bandeira de luta. Não seria o momento de nos
questionarmos sobre a identidade enquanto categoria central para a política
emancipatória? Mas, melhor dizendo, não se trata de negligenciar ou abandonar a
categoria da identidade, até porque isso não faz o menor sentido. Porém, para aqueles
que pensam ser esse o horizonte do embate político e não o de superação dessa camisa
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de força imposta objetivamente para nós, tanto pela violência da linguagem quanto
pelo preço de sangue da violência sistêmica, nosso questionamento já não é mais uma
questão de “se devemos”, mas de como faremos essa crítica à categoria da identidade
que vise uma superação qualitativa do sujeito frente às suas determinações simbólicas.
Para livrarmo-nos dessas fantasias, precisamos nos livrar também dos gozos do
sentido que ainda nos amarram ao pensamento identitário. É necessário aqui
atentarmos que a crítica da ideologia se revela não apenas como uma crítica da
economia política, mas uma crítica da economia libidinal. Para essa crítica, precisamos
nos aprofundar no materialismo simbólico que é constitutivo do sujeito. Sabemos do
diálogo e influência que o pensamento de Fanon teve em relação à filosofia francesa do
século XX, em especial com Sartre e Lacan, que aparece em algumas citações de Pele
negra, máscaras brancas, tanto enquanto referência como objeto de elaboração crítica
acerca da teoria psicanalítica, por exemplo, quando Fanon sugere uma problemática
sobre o estádio do espelho, como formulado por Lacan, quanto a função simbólica do
Outro em relação ao branco e ao negro, como quando diz “que é, tomando como
referência a essência do branco, que o antilhano é percebido pelo seu semelhante”
(FANON, F. Pele negra, máscaras brancas, 2008, p. 142). Aqui vemos surgir a
dimensão do Outro enquanto constitutivo da relação com o semelhante, um Outro
branco que se revela mediando a relação mesmo entre colonizados. Não é à toa que
quando lemos esta obra fica evidente que Fanon já premeditava uma recepção ríspida
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Conclusão
Das conclusões que podemos tirar desse percurso, ressaltemos três: a primeira é
a importância de retornarmos a Fanon, com o mesmo rigor teórico que ele nos
presenteia. É importante que o leiamos à luz do que fora elaborado após sua produção,
da teoria contemporânea, junto também dos desdobramentos de autores com os quais
ele dialogava entusiasticamente. Sua obra ainda tem muitas possibilidades de
articulação a serem exploradas junto aos seus interlocutores, em específico o que
ressaltamos aqui (Lacan), e essa atualização e diálogo é obrigação a todos que
pretendem disseminar seu legado ainda profícuo. Em segundo lugar, vale dizer que ler
Fanon com Lacan ressalta uma dimensão política do segundo que normalmente não
percebemos, ou que alguns ignoram. Ou seja, Lacan é fundamental para a política
contemporânea caso o leiamos com as lentes forjadas e polidas por