Você está na página 1de 351

[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

[-]Sumário # 14, vol. 1


EDITORIAL 4

ENTREVISTA (Origens da Pandemia) com Rob Wallace, 12


por Yaak Pabst

ARTIGOS
COVID-19 E CIRCUITOS DO CAPITAL 21
Rob Wallace, Alex Liebman, Luis Fernando Chaves e Rodrick Wallace

O CRESCIMENTO E A CRISE DA ECONOMIA BRASILEIRA 38


NO SÉCULO XXI COMO CRISE DA SOCIEDADE DO TRABALHO
Bolha das commodities, capital fictício e crítica do valor-dissociação
Fábio Pitta

A TRAJETÓRIA DO ANTROPOCENO E O GENERAL INTELLECT 147


Crítica imanente das ciências naturais para uma improvável emancipação
Daniel Cunha

EM ESTADO DE FAZENDA 190


Lima Barreto e o desmanche da ilusão nacional
Cláudio R. Duarte

BACURAU 220
Para além do nevoeiro... no meio da barbárie
Frederico Rodrigues Bonifácio e Maria Clara Salim Cerqueira

OBJETO NÃO IDENTIFICADO 250


Bacurau: cenas de um mundo pós-colapsado
Cláudio R. Duarte, Thiago Canettieri e Raphael F. Alvarenga
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

VELHAS NOVIDADES ALEGÓRICAS DO RECIFE 290


Frederico Lyra

CONSIDERAÇÕES SOBRE A DISSOCIAÇÃO-VALOR 300


NA ATUALIDADE
Asselvajamento do patriarcado e abordagem
das diferenças em Roswitha Scholz
Jéssica Cristina Luz Menegatti

FANON VIA LACAN 313


Aportes teóricos para uma leitura contemporânea
Cian S. Barbosa Whately

PLANETA DE FAVELAS 334


15 anos depois
Guilherme Chalo e Maurílio Botelho
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

EDITORIAL

A atual pandemia do coronavírus (covid-19) escancara todos os fundamentos


apodrecidos da sociedade das mercadorias. A capa de Felipe Drago representa esse
descontrole social, utilizando o padrão formado pelas curvas de contágio e morte, mas
que podem sugerir também os sonhos molhados dos global players nas bolsas. “A
locomotiva da economia não pode parar!” – já começa a gritar o andar de cima, que há
muito vive saltando de vagão em vagão, em ganhos simulados nos mercados
financeiros e especulativos. O capital está travado e ameaça entrar numa longa
depressão e assim colidir com seus limites se continuar na mesma rota suicida, mas,
neste largo limiar de transição para o nada, é claramente mais fácil sacrificar as
pessoas, eliminar alguns milhões de infectados, deixando-os morrer num isolamento
doloroso, do que modificar um pouco que seja a rotina ensandecida dos negócios atuais
e futuros. E quem dirá decepar a cabeça cega dessa máquina automática de sucção de
trabalho vivo e exploração destrutiva de todos os meios? Não há como enxergar a
negação nesse campo cego. Deve ser por isso que a esquerda tradicionalmente ligada
apenas ao desenvolvimento acelerado das forças produtivas deposita sua fé nas
emissões supostamente ilimitadas do crédito estatal (através de planos de um novo
keynesianismo de emergência, em que pesa também a difusão ideológica fanática da
“teoria monetária moderna”) ou espera a retomada da máquina chinesa de “produção
socialista de mercadorias” para dar um jeito na coisa toda (como se esta fosse
independente da concorrência mundial, de circuitos de dívidas e do novo imperialismo
de crise que já anuncia suas novas rodadas).

Mas assim se engana, a nosso ver, quem pensa que só se trata da reprodução
“automática” de relações de produção. O capital tem de passar no seu outro, o trabalho
e a produção incessante de mercadorias, para se pôr como o que aparenta ser:
crescimento justo e equilibrado, desenvolvimento sustentável ao infinito, bem-estar
individual e coletivo etc. Como sempre, o sistema busca legitimar-se através da
funcionalidade técnica de uma vida administrada recheada por mercadorias e
discursos de integração (e indignação), no qual o zeloso trabalho de todos encontra o

4
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

seu lugar. E é por isso que os capitalistas ou seus prepostos no governo tomam a
dianteira para reiniciar o curso da máquina momentaneamente extraviada trabalhando
como os funcionários mais ativos do capital. O Brasil, com seu presidente sociopata
liquidando qualquer limite entre público e interesses privados da oligarquia neoliberal
que o sustenta no poder, cumpre o destino de vanguarda mundial nesse assunto,
apesar das aparências contrárias. A classe dirigente veste a máscara de “trabalhador
patriota” que cumpre à perfeição o papel do “capitalista ideal”, aderindo ao uniforme
da ordem e do progresso, com paramentos e gestos protofascistas diários, apontando
como Inimigo número 1 a “liberdade” aparente de quem supostamente parou de
trabalhar na quarentena. Os planos de reforço da austeridade e retomada desenfreada
do crescimento já aparecem no horizonte. Para onde vamos é uma pergunta
inconveniente. É isso que permite tal forma de governo se legitimar e se manter mesmo
quando prega o genocídio “inevitável” de 100, 200… 500 mil, por que não?, reiterando
seus vícios através do império da mentira e obtendo o apoio das classes médias, dos
grandes aos pequenos empresários e de boa parte das camadas populares, que aqui
nem bem receberam o auxílio emergencial (aparecendo-lhes talvez como um benefício
dado pelo seu carrasco) mas já apenas podem sonhar em voltar ao “normal”. O normal
lamentavelmente é a coação ao trabalho precário, um “se virar” na tempestade para
trazer algum sustento para casa. É por isso também que esse governo já choca tão
pouco a opinião pública brasileira e em breve mundial há muito funcionalizada pela
indústria capitalista da cultura (agora agravada pela “era de pós-verdade”). Nesse
intervalo, o consenso mínimo sobre a realidade e o sentido do processo social foi
completamente destruído – menos aquele que estabelece que tudo o que é relevante
para o deus-mercado precisa ficar intocado. Aqui a totalidade coercitiva pode surgir
como uma injúria e um insulto ao “bom senso” democrático. O antigo “espetáculo
integrado” (Debord) se normaliza à exaustão, mas convertendo-se abertamente em
espetáculo desintegrado, no qual a norma é uma espécie de vale-tudo para retomar o
fluxo dos negócios, mais atuais ou mais degradados, a grilagem de terras, a expansão
das fronteiras agrícolas, o desmatamento etc., que já não escondem que servirão
apenas a ilhas de bem-estar que ampliarão as desigualdades, a dessolidarização e o
crescimento insustentável com base em empregos de merda, novas ondas de
encarceramento em massa (racializado), violência (em especial a de gênero) e
5
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

destruição ambiental. Alguns líderes mundiais saem por cima e com o prestígio
reforçado por atitudes humanitárias, é verdade, prometendo retomadas milagrosas do
crescimento perdido já para 2021. Outros têm a sorte de ter o apoio do alto escalão dos
proprietários e é o que basta, restando apenas a questão “ética” de segunda ordem de
como fazer para esconder o elevado número dos cadáveres da opinião pública. No
fundo, se o vírus não afeta muito mais a classe média e os ricos, eis o que importa, é o
que se requer para voltar à rotina, agora em ritmo redobrado de exploração para
compensar os meses parados. Em todos os casos trabalha-se militarmente como nunca
e por isso esse governo da crise como governo da morte é perfeito, alimentando o ódio
e o ressentimento popular contra quem exige medidas de proteção social e mudanças
estruturais imediatas. Só assim, de fato, reforçado pelo fanatismo e a militarização do
trabalho, como reside em seu conceito, o “capital é produtivo” (como dizia Marx no
Capítulo VI Inédito de O capital, a respeito da reprodução das relações de produção
como um dos produtos fetichistas finais da realização do capital).

Noutras palavras, as relações capitalistas tenderão imediatamente a ser


reproduzidas não apenas pela ideologia ou a inércia conceitual-categorial dessa
sociedade fetichista, mas também por força política do Estado, e sem dúvida da
maneira mais brutal possível, recompondo uma estrutura social em frangalhos – com
milhões e milhões de desempregados e subempregados precarizados em condições
cada vez mais miseráveis e próximas a uma economia de guerra, visando-se inclusive aí
a aperfeiçoar os métodos de controle e vigilância militarizados, já disponíveis ao poder
geral de polícia em situações de exceção contínua. Que isso seja capitalismo de “livre
mercado” ou momento de alguma transição histórica para um outro sistema de
dominação social ainda pior, é o que não sabemos. O que se vê na ascensão de grupos
de extrema-direita, que se arma e exige que o Estado relaxe a quarentena e endureça
contra os “comunistas”, é índice de uma divisão radical em curso. Quando as coerções
objetivadas do processo são reforçadas por meio do trabalho de todos os agentes, que
contam apenas com o funcionamento normal da máquina via injeção trilionária de
mais capital fictício, a crítica tem de apontar os becos sem saída se quiser encontrar
algum ponto de contradição ou de revelação crítica nessa pandemia.

6
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

O capital fictício trilionário emitido é uma promessa ambígua, contraditória


até a raiz da própria palavra, um ato que se desmente a cada passo: uma promessa de
que nenhum futuro haverá para além do capitalismo de desastre, mas também a
promessa de que os fundamentos dessa sociedade são voláteis e se declaram como uma
espécie de hálito quente de um zumbi que já devora as próprias carnes. Para a máquina
continuar funcionando ad infinitum é preciso muito engajamento – e é esse
engajamento que não nos falta. A coisa nua, escancarada, se veste politicamente, isto é,
ativamente, pelos que se sentem paralisados e encantados diante do monstro. Ninguém
sabe onde está a saída, enquanto todos se espantam diante do poder formidável do
capital de recuperar e normalizar qualquer situação. Mas não foi isso exatamente o que
ocorreu em 1929 e mais tarde na ascensão do nazifascismo, ou na grande crise de
2008? Assim, esta edição de Sinal de Menos procura ligar alguns pontos essenciais da
crise a fim de mapear o que há de não-idêntico nesta marcha para o pior, o que pode
gerar, neste movimento, uma consciência lúcida de que esse sistema de coerções cegas
prossegue em sua marcha para a frente apenas de uma maneira forçada.

Começamos com uma Entrevista de ROB WALLACE a Yaak Pabst publicada


originalmente no jornal alemão Marx21. Wallace é biólogo evolucionista e filogeógrafo
para a saúde pública, autor de Pandemia e Agronegócio, e fala sobre a crise do
coronavírus. A entrevista é aqui publicada na íntegra.

Em seguida, apresentamos a tradução do texto de ROB WALLACE, ALEX


LIEBMAN, LUIS FERNANDO CHAVES e RODRICK WALLACE, Covid-19 e
circuitos do capital, feita por Boaventura Antunes, parceiro de Portugal, a quem
agradecemos. Os autores desnaturalizam a pandemia, mostrando como ela foi gestada
pelos modos de produção e distribuição do capitalismo contemporâneo, que se
configuram como verdadeira incubadora de patógenos.

Na sequência, em O crescimento e a crise da economia brasileira no


século XXI como crise da sociedade do trabalho, FÁBIO PITTA argumenta que
o crescimento da economia brasileira a partir de 2003 e a crise desta após 2012/2013
se relacionam com a economia de bolhas financeiras alimentadas a capital fictício, em
consonância com o capitalismo contemporâneo em seu momento de crise
fundamental. Fábio Pitta participa ativamente dos círculos de debate da “crítica do

7
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

valor-dissociação” em São Paulo, com interlocução ativa em Portugal, Alemanha e


França, em que aliás traduções deste ensaio estão sendo providenciadas. Segundo o
texto, uma bolha de derivativos de commodities impulsionou as exportações e a
capacidade de endividamento do país. Isso permitiu uma concorrência pelas dívidas
por parte das empresas “produtivas”, o que aprofundou o desenvolvimento das forças
produtivas, o aumento da composição orgânica dos capitais e a expulsão de trabalho
vivo de processos produtivos. Tais processos perduraram até o estouro da bolha das
commodities, entre 2011 e 2014, como consequência do estouro da bolha financeira
mundial de 2008. Após 2012, aprofundou-se o asselvajamento social, sem que isso
possa conduzir à retomada da acumulação substancial de capital.

No próximo texto, DANIEL CUNHA se concentra sobre o problema do valor


de verdade das ciências naturais, questão crucial para a teoria crítica em momento de
pandemia e aquecimento global, que são enfrentados racionalmente a partir dos seus
conceitos matematizados. Porém, constata-se que muitas epistemologias correntes
criticam os fundamentos das ciências naturais ao mesmo tempo em que aceitam o seu
diagnóstico da crise ecológica global. O problema investigado, portanto, é o de uma
possível aporia da história: pode um sujeito constituído por relações de fetiche
produzir conhecimento válido para além dessa forma social fetichista? Em A
trajetória do Antropoceno e o general intellect, o autor argumenta que é
preciso fazer a crítica imanente das ciências naturais, de maneira que as “tensões de
cisalhamento” geradas pelo que ele chama de “general intellect planetário” possam
realizar o seu potencial crítico-emancipatório.

Como todo leitor que acompanha a Sinal de Menos sabe, sempre estimamos a
a crítica social complexa embutida em obras de arte, sem compartimentações entre
teoria crítica e teoria estética. Assim, os próximos textos assumem esse risco de falar de
arte e crítica de arte nesse momento grave em que o sistema imerge na falsidade
espetacular e a extrema-direita flerta com as estratégias de manipulação e estetização
política do fascismo. Levar a sério a literatura como potente reveladora do processo
social é o que CLÁUDIO R. DUARTE procura no ensaio Em estado de fazenda –
Lima Barreto e o desmanche da ilusão nacional. Antes marginalizado, hoje
ainda talvez subestimado pela opinião pública, Lima Barreto sai a campo para tomar à

8
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

letra a metáfora do estado de sítio ampliado como um “estado de fazenda”. Passando


pela leitura imanente de diversos textos e tendo esse fio como seu condutor, o artigo
aponta a estratégia literária de subtração de duas ilusões necessárias do país na
Primeira República (o nacionalismo e o cosmopolitismo), que encetam uma terceira
estratégia de subtração do encanto, dessa vez como desintegração que abre o
movimento contido por tais identidades fetichistas, encontrados na dinâmica de sua
prosa de confronto com os resultados do escravismo colonial, fazendo antever um resto
social imanente que não se dobra sem mais à modernização autoritária que ainda hoje
enfrentamos nesse trajeto de longa duração.

Seguem-se duas análises de Bacurau (2019), filme de Kleber Mendonça Filho


e Juliano Dornelles. No artigo Bacurau: para além do nevoeiro… no meio da
barbárie, FREDERICO RODRIGUES BONIFÁCIO e MARIA CLARA SALIM
CERQUEIRA fazem uma análise da recepção da obra, tendo em vista o contexto
bolsonarista em uma era de expectativas decrescentes. A velha aposta nos “milagres da
dialética” – para nos valermos dos termos de Paulo Arantes – se reafirma na
contemporaneidade como traço constitutivo da experiência estética e intelectual
brasileira acerca do sertão ao menos desde Euclides da Cunha. Os autores apontam que
o longa, embora apresente um profícuo diagnóstico deste tempo histórico, não
apresenta qualquer alternativa emancipatória – como parte substancial da crítica tem
compreendido –, senão que reafirma a barbárie como forma de ser da mediação social
em tempos de colapso.

A segunda análise é de certa forma um contraponto a isso. Em Objeto não


identificado - Bacurau: cenas de um mundo pós-colapsado, CLÁUDIO R.
DUARTE, THIAGO CANETTIERI e RAPHAEL F. ALVARENGA se propõem a tarefa de
uma crítica imanente do filme, que assim, lido sob a disciplina de sua forma, passa a
render significados insuspeitados pela crítica. Nesse sentido, teríamos aí de fato um
“objeto não identificado” que não pode ser visto do espaço, das alturas de um espírito
classificatório, mas apenas determinado através do debate específico e inquietante que
se extrai dessa situação particular de comunidade involuntária e autogerida num
futuro próximo pós-catastrófico. Inquietante também, então, porque o filme incomoda
a boa gente cidadã ao lidar com uma negatividade radical posta em contexto, que,

9
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

como convém, é dupla, dá rebote e tensiona o espírito. Se essa forma sedimenta a


violência da sociedade contemporânea ao mesmo tempo ela põe a questão pelo seu
outro não identificado, condensado na lógica de suas cenas.

No ensaio Velhas novidades alegóricas do Recife, FREDERICO LYRA


faz um breve percurso sobre as mutações recentes que um lugar particular do Brasil, a
cidade do Recife, a sua região metropolitana e mesmo o Estado de Pernambuco como
um todo, vem sofrendo nos últimos anos. A política institucional local, a cultura
popular, a indústria cultural, o carnaval, as mudanças urbanas, o mundo do trabalho, o
cinema são tratados de maneira a criar uma constelação alegórica onde se encontram
mutações as mais diversas.Tenta-se assim refletir sobre a aceleração da lógica da
desintegração.

Em Considerações sobre a dissociação-valor na atualidade,


JÉSSICA CRISTINA LUZ MENEGATTI retoma a crítica do patriarcado produtor de
mercadorias elaborada por Roswitha Scholz, do grupo Exit!. Nessa conceituação, o
asselvajamento do patriarcado empiricamente observável é explicado como um
momento da crise sistêmica – ainda mais nesse momento da pandemia em que as
denúncias de violência contra as mulheres cresceram em média 45% no Brasil. Além
disso, a autora busca estender o seu significado interseccional, considerando
igualmente o problema das “outras diferenças”, tais como o racismo.

No artigo Fanon via Lacan, CIAN BARBOSA procura articular elementos


contemporâneos para uma releitura da contribuição crítica de Frantz Fanon, à luz da
crítica da ideologia articulada ao pensamento de Lacan. Após apresentar elementos
teóricos fundantes dos paradigmas franceses do século XX, com os quais ambos
autores estavam implicados, o artigo busca esboçar as relações mútuas entre Fanon e
Lacan, em uma leitura retroativa. Aqui a contribuição da obra fanoniana se revela tanto
uma crítica ainda atual da ideologia racialista, quanto portadora de lições basilares
para a crítica da ideologia em geral.

O último texto deste volume de certa maneira concentra, resume, sintetiza


muito do esforço de reflexão que essa revista buscou realizar diante da situação de crise
do capital e crise da pandemia do covid-19. É nas grandes cidades que todos os temas

10
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

abordados explodem e se potencializam. O artigo Planeta de Favelas: 15 anos


depois, de GUILHERME CHALO e MAURÍLIO BOTELHO, faz uma avaliação das
principais discussões levantadas pelo geógrafo Mike Davis em seu já clássico texto
publicado na New Left Review em 2004 e depois ampliado no famoso livro Planeta
Favela. O objetivo é atualizar algumas das reflexões a partir dos dados mais recentes
do processo de favelização mundial, levando em consideração não apenas os relatórios
da ONU-Habitat (que serviram de motivação inicial para Mike Davis) mas divulgações
recentes sobre o avanço da precarização habitacional e da pobreza, tanto no Primeiro
quanto no Terceiro Mundo. Entre os aspectos considerados fundamentais para
compreender a explosão das favelas no mundo estão o desemprego crescente e a
exclusão social, pois a base de uma favelização generalizada é a constituição de um
excedente populacional decorrente da crise estrutural do capitalismo.

O volume 2 de nosso número 14 deve ser lançado muito em breve, com textos
de calibre mais teórico, acompanhando mas cruzando, assim, para o lado oposto dos
que pensam que entrar em movimento é tudo e é o que basta.

Maio de 2020.

11
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

ORIGENS DA PANDEMIA
Rob Wallace – Entrevista com Yaak Pabst

Rob Wallace é biólogo evolucionista e filogeógrafo para a saúde pública, afiliado do


Instituto para Estudos Globais da Universidade de Minnesota. Ele trabalha há 25 anos
com diferentes aspectos das novas pandemias e é autor do livro Pandemia e
Agronegócio: Doenças Infecciosas, Capitalismo e Ciência, em tradução recém lançada
pela editora Elefante/Igrá Kniga. A entrevista foi originalmente publicada pelo jornal
alemão Marx21em 11.03.2020.

Rob, você pesquisa as pandemias há bastante tempo. Quão perigoso é o


novo coronavírus?

Depende do estágio em que você está no surto local do Covid-19: inicial, pico, final?
Qual a qualidade da resposta de saúde pública da sua região? Qual é a sua composição
populacional? Qual a sua idade? Você tem deficiências imunológicas? Qual o seu
estado de saúde? Para indagar sobre uma possibilidade indiagnosticável, a sua
imunogenética, a genética subjacente à sua resposta imunológica, se alinha com o vírus
ou não?

Então todo alarde sobre o vírus é apenas alarmismo?

Não, com certeza não. No nível da população, a taxa de letalidade ou TL do Covid-19


estava ficando entre 2 e 4% no início do surto em Wuhan. Fora de Wuhan, a TL parece
cair para em torno de 1% ou até menos, mas também parece ter picos aqui e ali,
incluindo locais na Itália e nos Estados Unidos. A sua extensão parece pequena em
comparação com, digamos, a SARS, com 10%, a gripe espanhola de 1918, com 5-20%, a
“gripe aviária” (H5N1), com 60%, ou alguns casos Ebola com 90%. Mas com certeza ela
supera a TL de 0,1% da gripe sazonal. Mas o perigo não é apenas em termos de taxa de
letalidade. Temos que enfrentar a chamada taxa de ataque: que proporção da
população global é atingida pelo surto.

12
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Você pode ser mais específico?

A rede de viagens global tem conectividade recorde. Sem vacinas ou antivirais


específicos para os coronavírus, e tampouco qualquer imunidade de rebanho nesse
estágio, mesmo uma cepa com apenas 1% de mortalidade pode apresentar um perigo
considerável. Com um período de incubação de até duas semanas e crescentes
evidências de algum nível de transmissão antes do desenvolvimento da doença – antes
que se saiba que a pessoa está infectada – provavelmente poucos lugares estariam
livres de infecção. Se, digamos, o Covid-19 registrar 1% de letalidade no processo de
infecção de quatro bilhões de pessoas, isso resulta em 40 milhões de mortos. Uma
pequena proporção de um número grande pode ser ainda um número grande.

Esses são números assustadores para um patógeno que ostensivamente


não é tão virulento...

Com certeza, e estamos ainda apenas no início do surto. É importante entender que
muitas novas infecções mudam no curso da epidemia. A infecciosidade, a virulência, ou
ambas, pode ser atenuadas. Por outro lado, outros surtos tem virulência intensificada.
A primeira onda da pandemia de gripe na primavera de 1918 foi uma infecção
relativamente moderada. Foram a segunda e a terceira ondas naquele inverno
adentrando 1919 que mataram milhões.

Mas os céticos da pandemia argumentam que muito menos pacientes


foram infectados e mortos pelo coronavírus do que por uma típica gripe
sazonal. O que você pensa disso?

Seria o primeiro a celebrar se esse surto se revelar fraco. Mas esses esforços para
descartar o Covid-19 como um perigo potencial citando outras doenças letais, em
especial a gripe comum, é um dispositivo retórico infeliz para desviar a preocupação
com o coronavírus.

Então a comparação com a gripe comum é inadequada...

13
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Não faz muito sentido comparar dois patógenos em pontos diferentes de suas curvas
epidemiológicas. Sim, a gripe sazonal infecta muitos milhões no mundo todo a cada
ano, matando, segundo estimativas da OMS, até 650,000 pessoas. O Covid-19, porém,
está apenas iniciando a sua jornada epidemiológica. E, diferentemente da gripe, não
temos vacina e tampouco imunidade de rebanho para desacelerar a infecção e proteger
as populações mais vulneráveis.

Mesmo que a comparação seja enganosa, ambas as doenças são causadas


por vírus, inclusive de um grupo específico, dos vírus RNA. Ambos causam
doenças. Ambos afetam a área da boca e da garganta, e às vezes os
pulmões. Ambos são muito contagiosos.

Essas semelhanças são superficiais, e ignoram um aspecto crítico na comparação de


dois patógenos. Sabemos muito sobre a dinâmica da gripe. Sabemos muito pouco sobre
o Covid-19. Ele está mergulhado em incertezas. Na verdade, muito sobre o Covid-19 só
poderá ser conhecido depois que o surto se desenvolver plenamente. Ao mesmo tempo,
é importante entender que se não se trata de Covid-19 versus gripe. É Covid-19 e gripe.
A emergência de múltiplas infecções capazes de se tornarem pandemias, atacando
populações em conjunto, deveria ser a preocupação central.

Você está investigando as epidemias e suas causas há vários anos. Em seu


livro “Big Farms Make Big Flu” [Agronegócio e Pandemia], você procura
traçar estas conexões entre as práticas agrícolas industriais, a agricultura
orgânica e a epidemiologia viral. Quais são suas descobertas?

O perigo real de cada novo surto é o fracasso ou, melhor dizendo, a recusa conveniente
de compreender que cada novo Covid-19 não é um incidente isolado. O aumento da
incidência dos vírus esta estreitamente vinculado à produção de alimentos e à
rentabilidade das empresas multinacionais. Quem pretende compreender porque os
vírus estão tornando-se mais perigosos deve investigar o modelo industrial da
agricultura e, mais concretamente, da produção pecuária. Na atualidade, poucos
governos e poucos cientistas estão preparados para fazê-lo. Muito pelo contrário.

Quando surgem novos surtos, os governos, os meios de comunicação e inclusive a


maior parte do establishment médico estão tão centrados em cada emergência

14
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

particular que descartam as causas estruturais que estão levando múltiplos patógenos
marginais a se tornarem celebridades mundiais de forma repentina, um atrás do outro.

Quem é o culpado?

Mencionei a agricultura industrial, mas há um escopo maior. O capital está


promovendo a apropriação de terras nas últimas matas primárias e terras agrícolas de
pequenos proprietários em todo o mundo. Estes investimentos impulsionam o
desmatamento e o desenvolvimento que levam à aparição de enfermidades. A
diversidade funcional e a complexidade que representam estas enormes extensões de
terra estão simplificadas de tal maneira que os patógenos que antes estavam contidos
se estão sendo transmitidos aos rebanhos locais e às comunidades humanas. Em
resumo, as metrópoles, lugares como Londres, Nova Iorque e Hong Kong, devem ser
considerados nossos principais focos de enfermidades.

Em relação a que doenças isto ocorre?

Neste momento, não há patógenos que estejam fora do circuito do capital. Mesmo os
mais remotos se encontram afetados, ainda que perifericamente. O ebola, o zika, o
coronavírus, a reaparição da febre amarela, uma variedade de gripes aviárias e a peste
suína africana são alguns dos muitos patógenos que saem das zonas mais remotas do
interior até os meandros periurbanos, as capitais regionais, até chegar à rede mundial
de transportes. Dos morcegos frugívoros no Congo até matar os banhistas de Miami,
são poucas semanas.

Qual é o papel das empresas multinacionais neste processo?

O planeta Terra em grande medida é um Planeta Fazenda neste momento, tanto em


biomassa como em terra utilizada. A agroindústria tem como objetivo controlar o
mercado de alimentos. A quase totalidade do projeto neoliberal se organiza em torno
do apoio aos esforços das empresas com sede nos países industrializados mais
avançados para roubar a terra e os recursos dos países mais fracos. Como resultado
disso, muitos desses novos patógenos que antes eram mantidos sob controle por
ecologias florestais que são resultado de longa evolução estão se desprendendo,
ameaçando o mundo inteiro.

15
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Quais os efeitos dos métodos de produção agroindustriais sobre isto?

A agricultura controlada pelo capital, que substitui as ecologias mais naturais, oferece
os meios exatos pelos quais os patógenos podem evoluir em fenótipos mais virulentos e
infeciosos. Não se poderia projetar um sistema melhor para criar doenças mortais.

Como é isso?

O crescente monocultivo genético de animais domésticos elimina qualquer barreira


imunológica disponível para frear a transmissão. Maiores populações e densidades
facilitam maiores taxas de transmissão. Estas condições de superlotação deprimem a
resposta imunológica. O alto volume de processamento oferece um fluxo contínuo de
animais suscetíveis, o combustível para a evolução da virulência. Em outras palavras, a
agroindústria está tão centrada nos lucros que se considera que o risco de promover a
seleção de um vírus que poderia matar um bilhão de pessoas vale a pena.

O quê?!

Estas empresas podem simplesmente externalizar os custos de suas operações


epidemiologicamente perigosas aos demais. Desde os próprios animais até os
consumidores, os trabalhadores das fazendas, os ambientes locais e governos para
além das fronteiras. Os danos são tão extensos que se retornássemos esses custos aos
balanços das empresas, a agroindústria tal como a conhecemos terminaria para
sempre. Nenhuma empresa poderia arcar com os custos dos danos que impõe.

Em muitos meios de comunicação se afirma que o ponto de partida do


coronavírus foi um “mercado de alimentos exóticos” em Wuhan. Está
certa esta descrição?

Sim e não. Há pistas espaciais que apontam na direção dessa noção. O rastreio dos
contatos relacionou as infecções com o mercado atacadista de frutos do mar de Hunan
em Wuhan, onde se vendiam animais selvagens. A amostragem ambiental parece
apontar para o extremo oeste do mercado onde ficavam os animais selvagens.

Mas, quanto devemos retroceder, quão amplamente devemos investigar? Quando


exatamente começou a emergência? O foco no mercado elide as origens da agricultura
silvestre no interior e sua crescente capitalização. A nível mundial, e na China, os

16
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

alimentos silvestres estão se formalizando cada vez mais como setor econômico. Mas
sua relação com a agricultura industrial vai além de simplesmente compartilhar os
mesmos investidores. À medida que a produção industrial – porcos, aves domésticas e
similares – se expande até as matas primárias, ela exerce pressão sobre os
comerciantes de alimentos silvestres para que se adentrem mais nas matas em busca
de populações animais, aumentando a interface de contato com novos patógenos e as
infecções por estes, incluindo o Covid-19.

O Covid-19 não é o primeiro vírus que se desenvolve na China que o


governo tenta abafar.

Sim, mas isso não é uma excepcionalidade chinesa. Os EUA e a Europa serviram como
marco zero para novas influenzas também, como recentemente o H5N2 e o H5Nx, e
suas multinacionais e representantes neocoloniais impulsionaram o surgimento da
ebola na África Ocidental e do zika no Brasil. Os burocratas da saúde pública dos
Estados Unidos protegeram o agronegócio durante as eclosões de H1N1 (2009) e
H5N2.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou agora uma “emergência


sanitária de interesse internacional”. É correta esta decisão?

Sim. O perigo de um patógeno desse tipo é que as autoridades sanitárias não conhecem
a distribuição estatística do risco. Não temos nem ideia de como o patógeno responde.
Passamos de um surto em um mercado a infecções disseminadas por todo o mundo em
questão de semanas. O patógeno poderia simplesmente se exaurir. Isso seria ótimo,
mas não sabemos. Uma melhor preparação melhoraria a chance de reduzir a
velocidade de escape do patógeno.

A declaração da OMS também é parte do que eu chamo de teatro da pandemia. As


organizações internacionais morreram frente à inação. Me vem à mente a Liga das
Nações. O grupo de organizações da ONU está sempre preocupado com a sua
relevância, poder e financiamento. Mas esse ativismo [actionism] também poderia
convergir na preparação e prevenção que o mundo necessita para quebrar as cadeias de
transmissão de Covid-19.

17
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

A reestruturação neoliberal do sistema de saúde piorou tanto a pesquisa


quanto a atenção geral para com os pacientes, por exemplo nos hospitais.
Que diferença que poderia fazer um sistema de saúde melhor financiado
para lutar contra o vírus?

Esta é a história terrível, mas reveladora, do empregado da companhia de


equipamentos médicos de Miami, que ao voltar da China com sintomas de gripe fez o
correto pela sua família e sua comunidade, e exigiu que um hospital local fizesse um
teste para Covid-19. Ele se preocupava que sua opção mínima do Obamacare não
cobriria os testes. E tinha razão. De repente, se viu devendo 3270 dólares. Uma
exigência para os EUA poderia ser a aprovação de uma lei de emergência que estipule
que, durante um surto de pandemia, todos os custos médicos pendentes relacionados
aos testes de infecção e o tratamento depois de um resultado positivo devam ser pagos
pelo governo federal. Afinal, queremos encorajar as pessoas a buscarem ajuda, ao invés
de se esconderem e infectarem outros porque não podem pagar o tratamento. A
solução óbvia é um serviço nacional de saúde – com pessoal e equipamentos
suficientes para manejar tais emergências que afetam toda a comunidade – para que
nunca surja um problema tão ridículo como o de desencorajar a cooperação da
comunidade.

Assim que se descobre o vírus em um país, logo os governos de todas


partes reagem com medidas autoritárias e punitivas, como a quarentena
obrigatória de regiões inteiras de países e cidades. Essas medidas drásticas
são justificadas?

Usar um surto para testar a última novidade em termos de controle autocrático para
estendê-la após o surto é o capitalismo de desastre desgovernado. Em termos de saúde
pública, creio que é melhor equivocar-se por excesso de confiança e compaixão, que
são variáveis epidemiológicas importantes. Sem qualquer uma das duas, as jurisdições
perdem o apoio de suas populações. O sentido da solidariedade e de respeito comum é
uma parte fundamental para suscitar a cooperação que necessitamos para sobreviver
juntos a essas ameaças. Quarentenas autoimpostas com o apoio adequado – controle
por parte de brigadas de bairro treinadas, caminhões de alimentos que vão de porta em

18
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

porta, licenças de trabalho remuneradas e seguro-desemprego – podem suscitar esse


tipo de cooperação, de que estamos todos juntos nisto.

Como talvez você saiba, na Alemanha há um partido nazista de fato, a AfD,


que tem 94 assentos no parlamento. A direita nazista dura e outros grupos
relacionados com políticos da AfD usam a crise do coronavírus para fazer
agitação. Eles espalham informações (falsas) sobre o vírus e demandam
medidas mais autoritárias do governo: restringir os voos e a entrada de
imigrantes, fechamento de fronteiras e quarentenas forçadas...

A proibição de viagens e o fechamento de fronteiras são demandas com as quais a


direita radical quer racializar o que agora são enfermidades globais. Isto, obviamente, é
um absurdo. Neste momento, dado que o vírus está a caminho de propagar-se por
todas as partes, o sensato é trabalhar no desenvolvimento de um tipo de saúde pública
resiliente no qual não importa quem seja que busque um hospital com uma infecção,
tenhamos os meios para tratá-la e curá-la. Certamente, é preciso parar de saquear as
terras dos povos de outros países, que é o que gera as migrações, e dessa forma
podemos evitar, em primeiro lugar, que surjam novos patógenos.

Quais seriam as mudanças sustentáveis?

Para reduzir a aparição de novos surtos de vírus, a produção de alimentos tem que
mudar radicalmente. A autonomia dos agricultores e um setor público forte podem
frear a degradação ambiental irreversível e as infecções descontroladas. Introduzir
variedades de gado e de cultivos – e uma repopulação estratégica da fauna silvestre –
tanto à escala da exploração agrícola individual quanto do nível regional. Permitir que
os animais destinados à alimentação se reproduzam in situ para transmitir as
imunogenéticas bem-sucedidas. Conectar a produção justa com a circulação justa.
Subsidiar preços e programas de compras dos consumidores que apoiam a produção
agroecológica. Defender estes experimentos tanto das compulsões que a economia
neoliberal impõe aos indivíduos e às comunidades, quanto da ameaça repressiva do
Estado dirigido pelo capital.

O que deveriam exigir os socialistas frente à crescente dinâmica dos surtos


de enfermidades?

19
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

O agronegócio como modo de reprodução social deve terminar para sempre, mesmo
que somente por uma questão de saúde pública. A produção altamente capitalizada de
alimentos depende de práticas que colocam em risco a humanidade inteira, neste caso
ajudando a desencadear uma nova pandemia mortal. Deveríamos exigir que os
sistemas alimentares sejam socializados de tal forma que patógenos tão perigosos não
cheguem a surgir. Para isto será necessário, em primeiro lugar, reintegrar a produção
de alimentos às necessidades das comunidades rurais. Isto requererá práticas
agroecológicas que protejam o meio ambiente e os agricultores enquanto eles
produzem nossos alimentos. No quadro global, devemos curar as rupturas metabólicas
que separam nossas ecologias de nossas economias. Em resumo, temos um planeta a
ganhar.

(Traduzido por Daniel Cunha a partir da versão em inglês, com consulta das perguntas em
alemão, tal como publicadas na rede:

- Em inglês, em Marx21: https://www.marx21.de/coronavirus-agribusiness-would-risk-


millions-of-deaths/

- Em alemão, em Marx21: https://www.marx21.de/download/marx21-magazin-nummer-61/)

20
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

COVID-19 E CIRCUITOS DO CAPITAL

Rob Wallace, Alex Liebman, Luis Fernando Chaves e Rodrick Wallace1

Cálculo

COVID-19, a doença causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, o segundo vírus da


síndrome respiratória aguda grave desde 2002, é agora oficialmente uma pandemia.
No final de março, cidades inteiras estão confinadas e, um a um, os hospitais estão a
ficar superlotados, num bloqueio dos cuidados médicos provocado pela afluência de
doentes.

A China, seu surto inicial agora em contracção, volta a respirar mais facilmente.
A Coreia do Sul e Singapura também. A Europa, especialmente Itália e Espanha, e cada
vez mais outros países, já se dobram sob o peso das mortes, ainda no início do surto. A
América Latina e a África só agora começam a acumular casos, alguns países
preparando-se melhor do que outros. Nos Estados Unidos, um país que se considera o
mais rico da história do mundo, o futuro próximo parece sombrio. O surto não tem o
pico previsto para antes de maio e já os trabalhadores da saúde e os doentes dos
hospitais estão a lutar pelo acesso ao fornecimento cada vez mais reduzido de
equipamentos de protecção individual.

Enfermeiros, aos quais o Centro de Controle e Protecção de Doenças (CDC)


horrivelmente recomendou o uso de lenços e cachecois como máscaras, já declararam
que "o sistema está condenado".

1 Rob Wallace é epidemiologista evolucionário e foi consultor da FAO e do Centro de Controle e


Prevenção de Doenças (CDC, agência estadunidense de proteção da saúde). Seu livro Pandemia e
Agronegócio foi recém lançado no Brasil (Elefante/Igra Kniga). Alex Liebman é estudante de
doutorado em geografia humana na Rutgers University, com mestrado em agronomia pela University
of Minnesota. Luis Fernando Chaves é ecologista especializado em doenças e foi presquisador sênior
do Instituto Costarricense de Investigación y Enseñanza en Nutrición y Salud (INCIENSA) em Tres
Rios, Costa Rica. Rodrick Wallace é cientista pesquisador na Divisão de Epidemiologia do New York
State Psychiatric Institute na Columbia University. Eles agradecem os perspicazes comentários de
Kenichi Okamoto.

21
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Entretanto, a administração dos Estados Unidos continua a cobrir a oferta de


cada estado na compra de equipamentos médicos básicos que antes se recusou a
adquirir para eles. Anunciou também medidas repressivas nas fronteiras como sendo
uma intervenção de saúde pública, enquanto o vírus se espalha por todo o país.

Uma equipe de epidemiologia do Imperial College fez uma projecção segundo a


qual a melhor campanha de mitigação – aplanando a curva de acumulação de casos
através da quarentena dos casos detectados e do distanciamento social dos idosos –
ainda deixaria os Estados Unidos com 1,1 milhões de mortos e um total de casos oito
vezes maior do que o total de camas de cuidados intensivos do país. A supressão da
doença, procurando acabar com o surto, levaria a saúde pública mais longe em caso de
quarentena ao estilo chinês (e familiar) e de distanciamento comunitário, incluindo o
encerramento de instituições. Isso baixaria os valores da projecção para cerca de
200.000 mortes nos Estados Unidos.

O grupo do Imperial College estima que uma bem sucedida campanha de


supressão teria de ser prosseguida por pelo menos dezoito meses, com uma sobrecarga
de contracção económica e decadência nos serviços comunitários. A equipe propôs
equilibrar as exigências de controle da doença e da economia através da alternância de
entrada e saída em quarentena comunitária, em função de um nível definido de leitos
de tratamento intensivo ocupados.

Outros construtores de modelos puxaram para trás. Um grupo liderado por


Nassim Taleb, com a fama do Black Swan [Cisne Negro], declara que o modelo do
Imperial College não inclui rastreamento de contactos e monitoramento porta a porta.
O contraponto deles não percebe que o surto quebrou a anterior vontade de muitos
governos para empreender esse tipo de cordão sanitário. Não será antes de o surto
começar a declinar que muitos países verão tais medidas, esperançosamente com um
teste funcional e preciso, conforme apropriado. Como disse um brincalhão: “O
Coronavírus é demasiado radical. A América precisa de um vírus mais moderado, ao
qual possamos responder gradualmente”.

O grupo Taleb nota a recusa da equipe do Imperial em investigar sob que


condições o vírus pode ser levado à extinção. Tal extirpação não significa zero casos,

22
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

mas isolamento suficiente para que casos isolados não sejam capazes de produzir
novas cadeias de infecção. Apenas 5% dos susceptíveis em contacto com um caso na
China foram subsequentemente infectados. Com efeito, a equipe Taleb prefere o
programa de supressão da China, saindo todos o suficientemente rápido para levar o
surto à extinção, sem entrar numa maratona de dança entre o controle da doença e a
garantia de que a economia não tenha escassez de mão de obra. Por outras palavras, a
abordagem estrita (e intensiva em recursos) da China liberta a sua população da
sequestração de meses – ou mesmo anos – que a equipe do Imperial recomenda a
outros países.

O epidemiologista matemático Rodrick Wallace, um de nós, inverte


completamente a modelagem. A modelagem de emergências, por mais necessária que
seja, falha quando e por onde começar. As causas estruturais também fazem parte da
emergência. A inclusão delas ajuda-nos a descobrir a melhor maneira de responder,
indo além de apenas reiniciar a economia que produziu o dano. Escreve Wallace:

Se os bombeiros receberem recursos suficientes, em condições normais


a maioria dos fogos quase sempre pode ser contida com o mínimo de
vítimas e de destruição de propriedades. No entanto, essa contenção
está criticamente dependente de um empreendimento muito menos
romântico, mas não menos heróico, o persistente e contínuo esforço que
limita o risco das construções através do desenvolvimento e aplicação de
códigos, e que também garante que os recursos de combate ao fogo,
saneamento e conservação dos edifícios sejam fornecidos a todos os
níveis necessários...
O contexto conta para a infecção pandémica e as actuais estruturas
políticas, que permitem às empresas agrícolas multinacionais privatizar
os lucros, ao mesmo tempo que externalizam e socializam os custos,
devem ficar sujeitas à ‘aplicação do código’ que reinternaliza esses
custos, se se pretende evitar uma doença pandémica verdadeiramente
mortal em massa num futuro próximo.

O fracasso na preparação e reacção ao surto não começou apenas em dezembro,


quando os países de todo o mundo não responderam, depois de a COVID-19 se ter
espalhado a partir de Wuhan. Nos Estados Unidos, por exemplo, não começou quando
Donald Trump desmantelou a equipe de preparação para a pandemia da sua equipe de
segurança nacional, ou quando deixou 700 lugares no CDC por preencher. Também
não começou quando a administração federal não agiu de acordo com os resultados de

23
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

uma simulação da pandemia em 2017, mostrando que o país não estava preparado.
Nem quando, como declarado numa manchete da Reuters, os Estados Unidos
“cortaram o trabalho de especialista do CDC na China meses antes do surto do vírus”,
ainda que a falta de contacto directo precoce de um especialista americano no terreno
na China tenha certamente enfraquecido a resposta dos EUA. Nem começou com a
infeliz decisão de não usar os kits de teste já disponíveis fornecidos pela Organização
Mundial de Saúde. Juntos, os atrasos nas primeiras informações e a falta total de testes
serão sem dúvida responsáveis por muitas, provavelmente milhares de vidas perdidas.

As falhas foram realmente programadas há décadas, uma vez que os bens


comuns da saúde pública foram simultaneamente negligenciados e monetizados. Um
país capturado por um regime de epidemiologia individualizada, just-in-time – uma
contradição total –, com camas e equipamentos hospitalares insuficientes para
situações normais, é por definição incapaz de mobilizar os recursos necessários para
prosseguir um tipo de supressão como o da China.

Seguindo o argumento da equipe de Taleb sobre estratégias de modelagem em


termos mais explicitamente políticos, o ecologista da doença Luis Fernando Chaves,
outro co-autor deste artigo, faz referência aos biólogos dialécticos Richard Levins e
Richard Lewontin, para concordar que “deixar os números falarem” apenas mascara
tudo aquilo que foi assumido de antemão. Modelos como o estudo do Imperial limitam
explicitamente o escopo da análise a questões restritas, enquadradas dentro da ordem
social dominante. Propositadamente, eles não conseguem captar as forças de mercado
mais amplas, que impulsionam os surtos e as decisões políticas subjacentes às
intervenções.

Conscientemente ou não, as projecções resultantes colocam a saúde de todos em


segundo plano, incluindo os muitos milhares de pessoas mais vulneráveis que seriam
mortas caso um país alternasse entre o controle da doença e a economia. A visão
foucaultiana de um Estado agindo sobre uma população no seu próprio interesse
representa apenas uma actualização, embora mais benigna, da pressão malthusiana
pela imunidade de grupo que o governo Tory da Grã-Bretanha e agora a Holanda
propuseram – deixar o vírus se espalhar pela população sem obstáculos. Há poucas
evidências, além da esperança ideológica, de que a imunidade de grupo garanta o fim

24
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

do surto. O vírus pode facilmente evoluir por baixo do cobertor imunológico da


população.

Intervenção

O que deve ser feito em vez disso? Primeiro, precisamos entender que, ao
responder à emergência da maneira correcta, ainda estaremos a enfrentar tanto a
necessidade como o perigo.

Precisamos nacionalizar os hospitais, como a Espanha fez em resposta ao surto.


Precisamos aumentar os testes em volume e reduzir o tempo de execução, como o
Senegal fez. Precisamos socializar os produtos farmacêuticos. Precisamos impor
protecções máximas ao pessoal médico para diminuir as baixas. Temos de assegurar o
direito de consertar ventiladores e outros equipamentos médicos. Temos de começar a
produzir em massa cocktails de antivirais, tais como remdesivir e a velha cloroquina
anti-malária (e quaisquer outros medicamentos que pareçam promissores) enquanto
conduzimos ensaios clínicos para testar se funcionam para além do laboratório. Deve
ser implementado um sistema de planejamento para (1) forçar as empresas a produzir
os ventiladores e o equipamento de protecção individual necessários aos trabalhadores
da saúde e (2) dar prioridade na sua alocação aos locais com maiores necessidades.

Devemos estabelecer um corpo pandêmico maciço para fornecer a força de


trabalho – da pesquisa aos cuidados – que se aproxime da ordem de exigência que o
vírus (e qualquer outro agente patogénico que venha) nos está a colocar. Fazer
corresponder o número de casos ao número de leitos de tratamento intensivo, pessoal e
equipamentos necessários, para que a supressão possa compensar a lacuna dos
números atuais. Por outras palavras, não podemos aceitar a ideia de meramente
sobreviver ao ataque aéreo em curso da COVID-19, apenas para retornar mais tarde ao
rastreamento dos contactos e ao isolamento dos casos, a fim de conduzir o surto abaixo
do seu limiar. Devemos contratar pessoas suficientes para identificar a COVID-19 casa
a casa agora mesmo, e dotá-las do equipamento de protecção necessário, tais como
máscaras adequadas. Ao longo do processo, precisamos suspender a organização da

25
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

sociedade com base na expropriação, desde o aluguel até às sanções contra outros
países, para que as pessoas possam sobreviver tanto à doença como à sua cura.

Até que tal programa possa ser implementado, no entanto, a maior parte da
população está a ser deixada ao abandono. Sem prejuízo de uma pressão contínua a ser
exercida sobre governos recalcitrantes, no espírito de uma tradição largamente perdida
na organização proletária que remonta há 150 anos atrás, as pessoas comuns que são
capazes devem juntar-se aos grupos de ajuda mútua e brigadas de bairro que estão a
surgir. O pessoal profissional de saúde pública que os sindicatos possam dispensar
deve treinar esses grupos, para impedir que actos de bondade disseminem o vírus
involuntariamente.

A insistência em integrarmos as origens estruturais do vírus no planeamento de


emergência oferece-nos a chave para darmos cada passo em frente na protecção das
pessoas antes dos lucros.

Um dos muitos perigos reside na normalização da “loucura” [batshit crazy]


actualmente em curso, uma caracterização fortuita dada à síndrome de que os doentes
sofrem – a proverbial merda de morcego [bat shit] nos pulmões. Precisamos lembrar
do choque que sofremos ao saber que outro vírus da SARS emergiu dos seus refúgios
na vida selvagem e, numa questão de oito semanas, se espalhou por toda a
humanidade. O vírus surgiu no extremo de uma linha de abastecimento regional de
alimentos exóticos, desencadeando com sucesso uma cadeia de infecções de humano
para humano no outro extremo da cidade em Wuhan, na China. A partir daí, o surto
difundiu-se localmente e saltou para aviões e trens, espalhando-se por todo o globo
através de uma teia estruturada por ligações de viagens e descendo numa hierarquia de
cidades maiores para menores.

Além de descrever o mercado de alimentos selvagens à maneira do típico


orientalismo, pouco esforço tem sido feito na mais óbvia das questões. Como é que o
sector dos alimentos exóticos chegou a um ponto em que podia vender os seus
produtos ao lado de animais de consumo mais tradicional no maior mercado de
Wuhan? Os animais não estavam a ser vendidos no fundo de um caminhão ou numa
viela. Pense-se nas licenças e pagamentos envolvidos (e na sua desregulamentação).

26
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Muito mais que a pesca, a alimentação selvagem mundial é um sector cada vez mais
formalizado, cada vez mais capitalizado pelas mesmas fontes que apoiam a produção
industrial. Apesar de não ser nada semelhante na magnitude da produção, a distinção é
agora mais opaca.

A sobreposição da geografia económica estende-se desde o mercado de Wuhan


até ao interior, onde os alimentos exóticos e tradicionais são cultivados em explorações
que se situam nos limites de uma região selvagem em contracção. À medida que a
produção industrial invade a última parte da floresta, as explorações de alimentos
silvestres têm de penetrar mais para cultivar as suas iguarias, ou invadir os últimos
locais. Como resultado, os agentes patogénicos mais exóticos, neste caso a SARS-2,
encontram o seu caminho para um caminhão, seja nos animais que servem de alimento
ou na mão-de-obra que os cuida, indo rapidamente de uma ponta à outra de um
circuito periurbano mais extenso, antes de atingirem o palco mundial.

Infiltração

Esta conexão precisa ser elaborada, tanto para nos ajudar a planejar durante
este surto quanto para entender como a humanidade se meteu numa tal armadilha.

Alguns agentes patogénicos emergem logo a partir dos centros de produção.


Vêm-me à mente bactérias de origem alimentar como a Salmonella e a Campylobacter.
Mas muitas, como a COVID-19, têm origem nas fronteiras da produção do capital. De
facto, pelo menos 60% dos novos agentes patogénicos humanos emergem
disseminando-se a partir de animais selvagens para as comunidades humanas locais
(antes de os mais bem sucedidos se espalharem para o resto do mundo).

Uma série de especialistas influientes no campo da eco-saúde, alguns


financiados em parte pela Colgate-Palmolive e pela Johnson & Johnson, empresas que
impulsionam o desflorestamento liderado pelas agroindústrias, produziram um mapa
global baseado em surtos anteriores, desde 1940, sugerindo onde novos agentes
patogénicos podem emergir e avançar. Quanto mais quente a cor no mapa, mais
provável é que um novo agente patogénico surja lá. Mas ao confundir essas geografias
absolutas, o mapa vermelho-quente da equipe na China, Índia, Indonésia, e partes da

27
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

América Latina e África, perdeu um ponto crítico. O foco nas zonas de surtos ignora as
relações compartilhadas pelos actores económicos globais que moldam as
epidemiologias. Os interesses do capital, que apoiam as mudanças – induzidas no
desenvolvimento e na produção – no uso da terra e no surgimento de doenças em
partes subdesenvolvidas do globo, recompensam os esforços para atribuir a
responsabilidade pelos surtos às populações indígenas e às suas assim consideradas
práticas culturais “sujas”. A preparação de carne de animais selvagens e os enterros
domésticos são duas práticas culpadas pelo surgimento de novos agentes patogénicos.
O delinear de geografias relacionais, em contraste, de repente transforma Nova Iorque,
Londres e Hong Kong, fontes-chave do capital global, em três dos piores focos do
mundo.

As zonas de surto, entretanto, já nem sequer estão organizadas sob as políticas


tradicionais. A troca ecológica desigual – redirecionando os piores danos da agricultura
industrial para o hemisfério sul – transformou-se, do mero despojamento recursos
locais pelo imperialismo tendo o Estado como batedor, em novos complexos com
variadas escalas e matérias-primas. O agronegócio está a reconfigurar as suas
explorações extractivistas em redes espacialmente descontínuas em territórios de
diferentes escalas. Uma série de “Repúblicas da Soja” de base multinacional, por
exemplo, estende-se agora pela Bolívia, Paraguai, Argentina e Brasil. A nova geografia
é incorporada por mudanças na estrutura de gestão das empresas, capitalização,
subcontratação, substituição da cadeia de suprimentos, arrendamento e agrupamento
transnacional de terras. Na transposição das fronteiras nacionais, esses “países de
matérias-primas”, flexivelmente incorporados através de ecologias e fronteiras
políticas, estão a produzir novas epidemiologias ao longo do caminho.

Por exemplo, apesar do deslocamento geral da população das áreas rurais


comoditizadas para as favelas urbanas, que continua hoje em dia em todo o mundo, a
linha divisória rural-urbano, que impulsiona grande parte da discussão em torno do
surgimento de doenças, ignora a mão-de-obra com destino rural e o rápido
crescimento das cidades rurais em desakotas (aldeias urbanas) ou Zwischenstadt
(entre cidades) periurbanas. Mike Davis e outros identificaram como essas paisagens
recentemente urbanizadas agem como mercados locais e centros regionais para a

28
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

passagem de matérias-primas agrícolas globais. Algumas dessas regiões chegaram


mesmo a ser “pós-agrícolas.” Como resultado, as dinâmicas das doenças florestais, as
fontes primordiais dos agentes patogénicos, não estão mais restritas apenas ao interior
dos países. Suas próprias epidemiologias associadas se tornaram relacionais, sentidas
através do tempo e do espaço. Uma SARS pode de repente ser vista a se alastrar para o
ser humano na grande cidade, apenas a alguns dias da sua caverna de morcegos.

Ecossistemas nos quais tais vírus “silvestres” eram em parte controlados pelas
complexidades da floresta tropical estão a ser drasticamente reduzidos pelo
desflorestamento liderado pelo capital e, no outro extremo do desenvolvimento
periurbano, por déficits de saúde pública e de saneamento ambiental. Enquanto muitos
agentes patogénicos silvestres estão a morrer com as suas espécies hospedeiras como
resultado disso, um subconjunto de infecções que antes se esgotavam relativamente
rápido na floresta, ainda que apenas por uma taxa irregular de encontro com suas
espécies hospedeiras típicas, estão agora a propagar-se entre populações humanas
susceptíveis, cuja vulnerabilidade à infecção é frequentemente exacerbada nas cidades
por programas de austeridade e regulação deteriorada. Mesmo com vacinas eficazes, os
surtos resultantes são caracterizados por maior extensão, duração e dinâmica. O que
antes eram disseminações locais são agora epidemias que se arrastam através das redes
globais de viagens e comércio.

Por esse efeito de paralaxe – por uma simples mudança do contexto ambiental –
padrões antigos como ébola, Zika, malária e febre amarela, evoluindo
comparativamente pouco, todos eles se transformaram em ameaças regionais. De
repente, de uma disseminação ocasional para aldeões remotos, eles passaram a infectar
milhares de pessoas nas grandes cidades. No sentido ecológico inverso, até mesmo os
animais selvagens, que eram comumente há muito tempo reservatórios de doenças,
estão sofrendo as consequências. Com as suas populações fragmentadas pelo
desflorestamento, macacos nativos do Novo Mundo susceptíveis à febre amarela
selvagem, à qual estavam expostos há pelo menos cem anos, estão a perder a
imunidade de grupo e a morrer às centenas de milhares.

29
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Expansão

Já só pela sua expansão global, a agricultura de matérias-primas serve tanto de


propulsor quanto como nexo, através do qual agentes patogénicos de diversas origens
migram dos reservatórios mais remotos para os centros populacionais mais
internacionais. É aqui, e ao longo do caminho, que novos agentes patogénicos se
infiltram nas comunidades ligadas à agricultura. Quanto mais longas as cadeias de
abastecimento associadas e quanto maior a extensão do conexo desflorestamento, mais
diversos (e exóticos) os agentes patogénicos zoonóticos que entram na cadeia
alimentar. Entre os agentes patogénicos emergentes e reemergentes recentemente,
provenientes de toda a área antropogénica, encontram-se peste suína africana,
Campylobacter, Cryptosporidium, Cyclospora, Ebola Reston, E. coli O157:H7, febre
aftosa, hepatite E, Listeria, vírus Nipah, febre Q, Salmonella, Vibrio, Yersinia, e uma
variedade de novas variantes de gripe, incluindo H1N1 (2009), H1N2v, H3N2v, H5N1,
H5N2, H5Nx, H6N1, H7N1, H7N3, H7N7, H7N9, e H9N2.

Por mais que não seja intencional, toda a linha de produção está organizada em
torno de práticas que aceleram a evolução da virulência patogénica e a transmissão
subsequente. O cultivo de monoculturas genéticas – animais e plantas com genomas
quase idênticos – remove os amortecedores imunológicos que, em populações mais
diversas, retardam a transmissão. Os agentes patogénicos agora só podem evoluir
rapidamente, dados os genótipos imunológicos comuns dos hospedeiros. Enquanto
isso, as condições de aglomeração deprimem a resposta imunológica. O tamanho da
população animal nas grandes fazendas e a densidade das fazendas industriais
facilitam uma maior transmissão e a infecção recorrente. O alto rendimento, parte de
qualquer produção industrial, veicula um fornecimento continuamente renovado de
susceptibilidades a nível de curral, fazenda e região, removendo os limites da evolução
da letalidade patogénica. O alojamento de muitos animais juntos recompensa as
linhagens que melhor podem se disseminar através deles. Diminuir a idade de abate –
para seis semanas nas galinhas – é provável que seleccione agentes patogénicos
capazes de sobreviver a sistemas imunológicos mais robustos. Aumentar a extensão
geográfica do comércio e exportação de animais vivos aumenta a diversidade dos

30
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

segmentos genómicos que seus agentes patogénicos associados trocam, aumentando a


taxa na qual os agentes patogénicos exploram suas possibilidades evolutivas.

Enquato a evolução dos agentes patogénicos se acelara de todas essas formas,


há, porém, pouca ou nenhuma intervenção, mesmo a pedido da própria indústria,
excepto o que é necessário para resgatar as margens fiscais de um trimestre perante a
repentina emergência de um surto. A tendência é para menos inspecções
governamentais de fazendas e fábricas de processamento, legislação contra a vigilância
governamental e a exposição por activistas, e legislação até mesmo contra reportagens
nos meios de comunicação sobre as especificidades de surtos mortais. Apesar das
recentes vitórias nos tribunais contra a poluição por pesticidas e porcos, o comando
privado da produção continua inteiramente focado no lucro. Os danos causados pelos
surtos resultantes são externalizados no gado, colheitas, vida selvagem, trabalhadores,
governos locais e nacionais, sistemas de saúde pública e agrossistemas alternativos no
exterior, como uma questão de prioridade nacional. Nos Estados Unidos, o CDC
[Centro para o Controle de Doenças] relata que os surtos de origem alimentar estão a
expandir-se em número de Estados afectados e de pessoas infectadas.

Ou seja, a alienação do capital está a ser recompilada a favor dos agentes


patogénicos. Enquanto o interesse público é barrado à porta da fazenda e da fábrica de
alimentos, os agentes patogénicos escapam da biossegurança pela qual a indústria está
disposta a pagar e volta para o público. A produção diária assume o risco
lucrativamente, corroendo os nossos bens comuns partilhados de saúde.

Libertação

Há uma ironia reveladora em Nova York, uma das maiores cidades do mundo,
em confinamento contra a COVID-19, à distância de um hemisfério das origens do
vírus. Milhões de nova-iorquinos estão escondidos no parque habitacional
supervisionado até recentemente por uma tal Alicia Glen, até 2018 vice-prefeita para a
habitação e desenvolvimento económico da cidade. Glen é uma ex-executiva da
Goldman Sachs, tendo supervisionado o Urban Investment Group desta empresa de

31
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

investimentos, que financia projectos nos tipos de comunidades que as outras unidades
da empresa ajudam a guetizar.

Glen, naturalmente, não é de modo nenhum pessoalmente responsável pelo


surto, mas é antes um símbolo de uma ligação que nos atinge mais de perto. Três anos
antes de a cidade a contratar, após uma crise habitacional e uma Grande Recessão em
parte de sua própria fabricação, o seu antigo empregador, juntamente com JPMorgan,
Bank of America, Citigroup, Wells Fargo & Co. e Morgan Stanley, ficou com 63% do
financiamento de emergência federal resultante. A Goldman Sachs, livre de encargos,
passou a diversificar as suas participações para fora da crise. A Goldman Sachs
adquiriu 60% das acções da Shuanghui Investment and Development, parte do
gigantesco agronegócio chinês que comprou a Smithfield Foods, sediada nos EUA, a
maior produtora de porcos do mundo. Por US$ 300 milhões, também obteve a
propriedade de dez granjas de aves em Fujian e Hunan, uma província de Wuhan e
bem dentro da captação de alimentos selvagens da cidade. Investiu até outros US$ 300
milhões ao lado do Deutsche Bank na criação de porcos nas mesmas províncias.

As geografias relacionais exploradas acima fizeram todo o círculo de volta. Lá


está a pandemia que está presentemente a afectar os círculos eleitorais de Glen, de
apartamento em apartamento em Nova Iorque, o maior epicentro da COVID-19 dos
EUA. Mas também é preciso reconhecer que ciclo de causas do surto se estendeu em
parte a partir de Nova Iorque antes de ter início, por menor que seja o investimento da
Goldman Sachs neste caso para um sistema do tamanho da agricultura chinesa.

O dedo nacionalista apontando, a partir do racista “vírus chinês” de Trump e


através do continuum liberal, obscurece os conselhos directivos globais interligados de
Estado e capital. “Irmãos inimigos”, como Karl Marx os descreveu. A morte e os danos
sofridos pelos trabalhadores no campo de batalha, na economia e agora em seus sofás,
lutando para recuperar o fôlego, revelam tanto a competição entre as elites que
manobram pelos recursos naturais em declínio quanto os meios compartilhados para
dividir e conquistar a massa da humanidade presa nas engrenagens dessas
maquinações.

32
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Na verdade, por um lado, uma pandemia que surge do modo de produção


capitalista e que se espera que o Estado administre, por outro, pode oferecer uma
oportunidade a partir da qual os gestores e beneficiários do sistema podem prosperar.
Em meados de fevereiro, cinco senadores e vinte congressistas dos EUA alienaram
milhões de dólares em acções por eles detidas em indústrias susceptíveis de serem
prejudicadas pela pandemia que se aproximava. Os políticos basearam o seu “inside
trading” em conhecimentos não públicos, mesmo quando alguns dos representantes
continuaram a repetir publicamente as missivas do regime de que a pandemia não
constituía grande ameaça.

Para além de tão crassos assaltos, a corrupção do lado do Estado é sistémica, um


marcador do fim do ciclo de acumulação dos EUA, quando o capital realiza os seus
lucros.

Há algo de comparativamente anacrónico nos esforços para manter a roda


girando, mesmo que organizada com base na reificação das finanças, que se sobrepõe à
realidade das ecologias primárias (e das epidemiologias relacionadas) em que se
baseiam. Para o Goldman Sachs, ele mesmo, a pandemia, como as crises anteriores,
oferece “espaço para crescer”:

Partilhamos o optimismo dos vários especialistas em vacinas e


investigadores de empresas biotecnológicas, com base no bom
progresso que tem sido feito em várias terapias e vacinas até agora.
Acreditamos que o medo diminuirá com as primeiras provas
significativas de tal progresso...
Tentar lucrar com a queda quando a meta de final do ano é
substancialmente mais alta é apropriado para day traders, seguidores
do momento e alguns gestores de hedge funds, mas não para
investidores de longo prazo. De igual importância é considerar que não
há garantia de que o mercado atinja níveis mais baixos, que possam ser
usados como justificativa para vender hoje. Por outro lado, estamos
mais confiantes de que o mercado acabará por atingir meta mais alta,
dada a resiliência e a superioridade da economia dos EUA.
E, finalmente, pensamos que os níveis actuais proporcionam uma
oportunidade para aumentar lentamente os níveis de risco de uma
carteira. Para aqueles com liquidez disponível e perseverança com a
alocação estratégica correcta de ativos, este é o momento de começar a
adicionar incrementalmente em acções do índice S&P.

33
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Pessoas de todo o mundo, apreensivas com a carnificina em curso, tiram


conclusões bem diferentes. Os circuitos do capital e da produção, marcados por
agentes patogénicos tal qual marcadores radioativos, um após o outro, são
considerados inaceitáveis.

Como caracterizar tais sistemas, como fizemos acima, para além do episódico e
circunstancial? O nosso grupo está a meio do desenvolvimento de um modelo que
ultrapasse os esforços da medicina colonial moderna, presentes na eco-saúde e na One
Health [Uma só Saúde], que continuam a culpar os pequenos proprietários indígenas e
locais pelo desflorestamento que leva ao surgimento de doenças mortais.

A nossa teoria geral do surgimento neoliberal de doenças, incluindo, sim, na


China, combina:

– circuitos globais do capital;

– a utilização desse capital destruindo a complexidade ambiental regional que


mantém sob controle o crescimento da população de agentes patogénicos virulentos;

– os aumentos resultantes nas taxas e na amplitude taxonómica dos eventos de


disseminação;

– a expansão dos circuitos periurbanos de mercadorias que transportam estes


novos agentes patogénicos disseminados no gado e na mão-de-obra do interior mais
profundo para as cidades regionais;

– as crescentes redes globais de viagens (e comércio pecuário) que transportam


os agentes patogénicos das referidas cidades para o resto do mundo em tempo recorde;

– as formas como estas redes reduzem o atrito de transmissão, selecionando


para a evolução de maior letalidade os agentes patogénicos tanto nos rebanhos como
nas pessoas;

– e, entre outras imposições, a ausência de reprodução no próprio local na


pecuária industrial, removendo a selecção natural como um serviço ecossistêmico que
oferece protecção em tempo real (e quase gratuita) contra doenças.

A premissa operativa subjacente é que a causa da COVID-19 e de outros agentes


patogénicos deste tipo não se encontra apenas no objecto de qualquer agente infeccioso

34
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

ou no seu curso clínico, mas também no campo das relações ecossistémicas que o
capital e outras causas estruturais têm desactivado em seu próprio benefício. A grande
variedade de agentes patogénicos, representando diferentes taxas, hospedeiros, modos
de transmissão, percursos clínicos e resultados epidemiológicos, todos os sinais de
identificação que nos enviam de olhos esbugalhados a pesquisar a internet a cada
surto, marcam diferentes partes e caminhos ao longo dos mesmos tipos de circuitos de
uso da terra e de acumulação de valor.

Um programa geral de intervenção corre em paralelo para muito além de um


vírus em particular.

Para evitar os piores resultados aqui, a desalienação oferece a próxima grande


transição humana: abandonar as ideologias de colonizadores, reintroduzir a
humanidade nos ciclos de regeneração da Terra e redescobrir o nosso sentido de
individuação em multidões para além do Estado do capital. No entanto, o economismo,
a crença de que todas as causas são apenas económicas, não será libertação suficiente.
O capitalismo global é uma hidra com muitas cabeças, apropriando, internalizando e
ordenando múltiplas camadas de relação social. O capitalismo opera em terrenos
complexos e interligados de raça, classe e género, no curso da actualização de regimes
regionais de valor lugar a lugar.

Correndo o risco de aceitar os preceitos do que a historiadora Donna Haraway


descartou como história de salvação – “podemos desarmar a bomba a tempo?” – a
desalienação tem de desmantelar essas multiformes hierarquias de opressão e as
formas locais específicas de interacção com a acumulação. Ao longo do caminho, temos
de navegar para fora das reapropriações expansivas do capital, através de
materialismos produtivos, sociais e simbólicos. Isto é, para fora do que se resume a um
totalitarismo. O capitalismo comoditiza tudo – a exploração de Marte aqui, o sono ali,
as lagoas de lítio, a reparação de ventiladores, até mesmo a própria sustentabilidade, e,
por aí afora, essas muitas permutações são encontradas muito para além da fábrica e
da fazenda. Não poderia ser mais claro que todos os caminhos de quase toda a gente
em toda a parte estão sujeitos ao mercado, que num tempo como este é cada vez mais
antropomorfizado pelos políticos.

35
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Em resumo, uma intervenção bem sucedida, impedindo qualquer um dos


muitos agentes patogénicos que fazem fila em todo o circuito agroeconómico de matar
um bilhão de pessoas, deve passar por um confronto global com o capital e seus
representantes locais, por mais que qualquer soldado da burguesia, entre eles Glen,
tente mitigar os danos. Como o nosso grupo descreve em alguns de nossos últimos
trabalhos, o agronegócio está em guerra com a saúde pública. E a saúde pública está a
perder.

No entanto, se a humanidade maior ganhar um conflito de gerações como este,


podemos nos recolocar num metabolismo planetário que, ainda que diferente de lugar
para lugar, reconecta as nossas ecologias e as nossas economias. Tais ideais são mais
do que questões de utopia. Ao fazer isso, convergimos para soluções imediatas.
Protegemos a complexidade da floresta que impede os agentes patogénicos mortíferos
de alinhar os hospedeiros para um lançamento directo na rede mundial de viagens.
Reintroduzimos as diversidades de animais e culturas, e reintegramos a criação de
animais e culturas em escalas que impedem que os agentes patogénicos aumentem em
virulência e extensão geográfica. Permitimos que os animais que nos servem de
alimento se reproduzam no próprio local, reiniciando a selecção natural que permite a
evolução imunológica para rastrear agentes patogénicos em tempo real. Em
perspectiva geral, paramos de tratar a natureza e a comunidade, tão plenos de tudo o
que precisamos para sobreviver, como apenas mais um concorrente a ser corrido pelo
mercado.

A saída é nada menos do que o nascimento de um mundo (ou talvez mais na


linha de voltar à Terra). Também vai ajudar a resolver – mangas arregaçadas – muitos
dos nossos problemas mais urgentes. Nenhum de nós, presos em nossas salas de estar
de Nova York a Pequim, ou, pior, de luto pelos nossos mortos, quer passar por tal surto
novamente. Sim, as doenças infecciosas, durante a maior parte da história humana a
nossa maior fonte de mortalidade prematura, continuarão a ser uma ameaça. Mas,
dado o bestiário de agentes patogénicos agora em circulação, os piores dentre eles
agora com disseminação quase anual, estaremos provavelmente a enfrentar outra
pandemia mortal em muito menos tempo do que a pausa de cem anos desde 1918.

36
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Conseguiremos ajustar fundamentalmente os modos como nos apropriamos da


natureza e ter um descanso dessas infecções?

(Original “COVID-19 and Circuits of Capital”, publicado em Monthly Review, 01.05.2020

https://monthlyreview.org/

Tradução de Boaventura Antunes)

37
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

O CRESCIMENTO E A CRISE DA
ECONOMIA BRASILEIRA
NO SÉCULOXXI COMO CRISE DA
SOCIEDADE DO TRABALHO
Bolha das commodities, capital fictício e crítica do valor-dissociação1

Fábio Pitta

“A crítica não é injusta quando destrói


– esta ainda seria sua melhor
qualidade – mas quando, ao
desobedecer, obedece.”
(ADORNO, 1998, p. 11)

1- Introdução

A opção por Jair Bolsonaro como presidente do Brasil nas eleições de 2018,
posição que assumiu a partir de janeiro de 2019, é relativamente recente e carece ainda
de uma variedade de análises mais aprofundadas. Candidato de extrema-direita,
amalgamou uma miríade de eleitores de todas as camadas sociais brasileiras
(ANDERSON, 2019), incluindo boa parte de antigos eleitores do Partido dos
Trabalhadores (da esquerda institucional), os quais inclusive haviam sido
“beneficiados” pelas políticas de distribuição de capital fictício promovidas por Luís
Inácio ‘Lula’ da Silva e Dilma Rousseff, ao longo de seus 13 anos de governo (2003-
2016).
1 O presente texto foi redigido no final de 2019, após alguns meses na Alemanha e Europa, onde
apresentei as formulações do mesmo em diferentes círculos do Grupo Exit! como em Berlin,
Hamburgo, Koblenz, Kyllburg, Bochum, Darmstadt, Nuremberg, Paris e na Reunião do Conselho
(anual) do Exit!, em Junho de 2019. Assim, a apresentação foi desdobrada, concluída e apresentada
como texto, com previsão de publicação na Revista Exit!, número 18, de 2020/2021. Antes do início da
redação deste, a formulação final sobre a crise brasileira ainda foi apresentada no Seminário
“Territorialização do Capital e Gestão Catastrófica do Colapso” organizado pelo Grupo de Crítica do
Valor-Dissociação de São Paulo (Grupo de Sexta do LABUR, do qual sou parte), em agosto de 2019.
Agradeço a todos que participaram comigo de diferentes formas de tais processos.

38
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Bolsonaro, já qualificado como o “presidente do colapso” (NOBRE, 2018) ou


fomentador de um “holocausto ecológico” (MILANEZ, 2019), parece promover um
aceleracionismo de crise (CATALANI, 2019). Tendo sido eleito sob a autodesignação
de “Donald Trump brasileiro”, fortemente amparado por uma campanha eleitoral via
WhatsApp (o que atingia muito maior número de eleitores do que a propaganda
eleitoral baseada na televisão e no rádio, emulando a forma da campanha eleitoral por
meio do Big Data de Donald Trump, esta majoritariamente via Facebook), recebeu
suporte direto do sistema financeiro, da maior parte do setor industrial, da
comunidade neopentecostal e demais cristãos conservadores, das agroindústrias e do
setor produtor de commodities e das forças armadas.
Apenas nas camadas mais miseráveis da população brasileira não foi mais
votado do que o candidato do Partido dos Trabalhadores Fernando Haddad
(ANDERSON, 2019)2. As demais camadas da sociedade brasileira, movidas por medo e
ressentimento, relacionados à perda de seu poder de consumo devido à crise
econômica que passou a ser sentida no país como um todo a partir de 2012/2013,
aderiram às propostas expressamente machistas, racistas, homofóbicas e
conspiratórias de um ex-capitão do exército, famoso por sua defesa pública da ditadura
militar (1964 – 1985) e de suas reconhecidas práticas de extermínio e tortura de
opositores e das camadas sociais excluídas brasileiras.
Bolsonaro é fruto de seu tempo. Representa a particularidade brasileira para um
fenômeno de ascensão de governos de extrema-direita no mundo (SCHOLZ, 2020).
Em termos ideológicos, formulou um discurso que relaciona a atual crise econômica
brasileira à esquerda composta por “vagabundos corruptos” no poder, que deveriam
ser exterminados a partir de agora, já que desejariam “implantar uma ditadura

2 A ideia aqui não é esgotar o fenômeno relacionado à eleição de Bolsonaro e seu significado. Como
forma de indicação, apesar de discordamos do argumento geral do texto e das determinações
escolhidas por seu autor, Perry Anderson (2019) pode auxiliar na descrição de tal fenômeno para o
público internacional, a partir de um ponto de vista vinculado ao marxismo tradicional (KURZ, 2004;
ver discussão sobre tal formulação no item 2 do presente texto, a seguir). Inclui-se nesta apresentação
de Anderson uma discussão acerca do golpe de Estado que culminou no impeachment de Dilma
Rousseff (2016) e na prisão do ex-presidente Lula (2018), acusado de corrupção. Importa a nós, aqui,
observarmos o ponto de chegada – enquanto totalidade concreta da contradição em processo do valor-
dissociação como forma social capitalista – de adesão de grande parcela dos brasileiros a um governo
de extrema-direita, a fim de podermos relacioná-lo com a crise econômica brasileira recente (cujas
mediações necessárias serão apresentadas ao longo de todo o texto) como explicitação da inserção da
particularidade brasileira na crise imanente e fundamental do capital, tomada de posição crítica que
adotaremos aqui.

39
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

comunista no Brasil”, nada menos plausível depois de 13 anos de Partido dos


Trabalhadores no governo federal, sem terem tentado realizar nada perto disto. Desde
sua ascensão, Bolsonaro tem promovido reformas que visam acabar com as tentativas
de gestão da barbárie (MENEGAT, 2019a) dos governos anteriores, encerrando
programas de distribuição de capital fictício possíveis no ápice da bolha das
commodities (2002-2011, PITTA, 2018), fomentando a expansão da fronteira agrícola
sobre o que restou de florestas e reservas indígenas, desmontando a parca seguridade
social e leis trabalhistas existentes no Brasil contemporâneo. Sua agenda econômica é
qualificada de “ultraliberal”, porém, não exprime nenhum discurso de “retomada” de
crescimento econômico, explicitando que até mesmo a extrema-direita parece não
acreditar mais nesta possibilidade. Assim, ao nível ideológico, Bolsonaro sintetiza o
homem branco ocidental em crise pós-estouro da bolha econômica global de 2008:
ressentido, conspiratório, narcisista, parte de uma camada média com tendências a
amoque social. Após a posse de Bolsonaro, as estatísticas quanto ao número de
feminicídios (na maioria das vezes perpetrados pelos próprios maridos ou familiares
das vítimas), de assassinatos de grupos excluídos como indígenas, negros favelizados
ou encarcerados (pela polícia e grupos de extermínio), de desmatamento criminoso e
de suicídios no Brasil dispararam configurando números trágicos (BRUM, 2020).
A caracterização acima se limita ao nível dos fenômenos recentes do Brasil e nos
permite passar, por enquanto sucintamente, pelo nível das diferentes camadas sociais e
pelos níveis psicossocial (SCHOLZ, 2009) e ideológico, sem aqui ainda adentrarmos
uma análise categorial dos mesmos. Tal caracterização visa permitir apresentarmos,
por sua vez, a tomada de posição que os campos autodenominados “progressista” ou de
“esquerda”, “keynesiano” ou “socialista” brasileiros vêm adotando como tentativa de
crítica a tal quadro descrito. Tais setores da sociedade brasileira, com exceção de
alguns parcos casos de intelectuais isolados vinculados à tradição histórica da teoria
crítica, retomam sua velha defesa da democracia, dos direitos humanos, do
desenvolvimentismo e distributivismo econômico, tendo como mirada idealizada,
adivinhem: os anos de governo do PT no poder! “Lula Livre”; o retorno da “democracia
representativa” e do “Estado de direito” são suas principais bandeiras.
Parece que para boa parte do campo de oposição ao novo governo brasileiro sua
suposta crítica (para nós, já adiantamos, reduzida e insuficiente) se limitaria a
40
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

tematizar as políticas aceleracionistas conservadoras do novo presidente, tendo como


horizonte o retorno a um ideal de país localizado 10 anos atrás, quando o Brasil
apresentava alguma taxa de crescimento econômico (REZENDE, 2016), o que só pôde
ocorrer com distribuição de capital fictício em razão da melhora das contas do Estado
em função da bolha global das commodities que ocorria naquele momento. Por meio
do endividamento geral da sociedade brasileira (empresas – em dólar –, trabalhadores
precarizados e desempregados) e do próprio Estado (via dívida interna em reais), que
não se explicitou em toda sua profundidade até 2013 em razão da inflação dos títulos
de propriedade (KURZ, 2005) nos mercados de derivativos financeiros, camadas
miseráveis e pobres da sociedade brasileira passaram a compor uma suposta “nova
classe média” (SINGER, 2018), quando computada a capacidade de consumo da
sociedade em geral, a partir de 2005 em diante. Tais novas camadas médias3, que
passaram a ser então a maioria da sociedade brasileira, nada se assemelham com a
ascensão das camadas médias formadas no boom fordista do pós-II Guerra Mundial
(KURZ, 2019), do momento de acumulação capitalista baseada na mais-valia relativa e
de aumento do consumo em razão do aumento real dos salários das classes
trabalhadoras em processo de individualização (SCHOLZ, 2008). As tais novas
camadas médias brasileiras do capitalismo de bolhas financeiras do momento de crise
fundamental do capital (KURZ, 2004 e 2014), como veremos adiante, foram compostas
por uma miríade de trabalhadores precarizados, empregados em empresas
terceirizadas, basicamente nos setores de serviços e alimentadas a crédito e a bolsas do
Estado. O asselvajamento da sociedade capitalista brasileira já se aprofundava então
enquanto concorrência entre a população como um todo, atingindo inclusive a antiga e
minoritária camada média composta de brancos, mais vinculada a profissões liberais,
que após a crise econômica de 2012/2013 sentiu materialmente a perda de suas
anteriores condições econômicas e sociais (SINGER, 2018). Nos setores industriais
(incluída aqui a agroindústria e demais produções de commodities), a expulsão da
força de trabalho do processo produtivo apenas se aprofundava, uma característica já
3 Singer se refere, a partir de outros autores, a uma “nova classe média”, ao que aqui preferimos o termo
camada ao invés de classe, a partir de SCHOLZ (2008), Mittelschicht, do alemão, camada média. Para
a discussão sobre tal uso, ver Scholz (2008). Singer explicita que: “... a ‘nova classe média’ durante o
lulismo na verdade é composta de trabalhadores que teriam passado a fazer parte de um contingente
que superou a pobreza por meio de um emprego com carteira de trabalho, baixa remuneração e
condições de trabalho precárias” (SINGER, 2018, p. 92).

41
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

presente na sociedade brasileira desde a modernização retardatária do último quartel


do século XX, a qual se acelerou ainda mais a partir de 2002, sendo o desemprego
estrutural apenas momentaneamente dissimulado pelo crescimento de postos de
trabalho em setores categorialmente improdutivos (Kurz, 2019) do ponto de vista da
totalidade da acumulação capitalista e com as características acima mencionadas. Tal
processo assim idealizado do passado recente e projetado ao futuro paradoxalmente
como momento a ser retomado pela esquerda brasileira em geral, já contém em sua
forma de ser o próprio momento histórico do valor-dissociação em crise4 (SCHOLZ,
2009). Pode ser interpretado, como o faz Menegat (2019a), como tentativa de gestão
de populações e da barbárie do momento da crise fundamental do capitalismo, em
razão de uma conjuntural possibilidade de acesso a capital fictício. A crítica ao
conservadorismo de extrema-direita de Bolsonaro parte de uma esquerda brasileira
passadista (CATALANI, 2019) vinculada ao seu “auge” no boom da bolha financeira
mundial, cujo estouro em 2008 apenas é manifestação fenomênica da crise
fundamental do capital, que aí está desde a década de 1970, e de seus processos de
simulação de acumulação capitalista (KURZ, 2005 e 2014). De certa forma, tal
esquerda adere aos mesmos pressupostos históricos da forma social em processo que
Bolsonaro, diferenciados que estão ambos pelo boom e estouro da bolha financeira
mundial e sua mediação da economia brasileira com a bolha das commodities, e se
separam temporalmente apenas pela possibilidade ou não de tal tentativa de gestão da
barbárie na crise fundamental da forma social capitalista, sendo Bolsonaro expressão
atual da impossibilidade desta e da militarização explícita do país, na guerra aberta de
todos contra todos (tanto por parte do Estado e seu monopólio da força, como pelas
relações entre o partido de Bolsonaro e máfias e milícias armadas e suas promessas de
permitir armar a população em geral – ou aqueles que terão dinheiro para tanto).

4 “Em última análise, na realidade, a vida social não é regulada por meio das decisões conjuntas e
conscientes dos membros da sociedade democrática. Os procedimentos democráticos da liberdade de
expressão, da tomada de decisão política e das eleições livres não estão a montante, mas a jusante dos
efeitos da “física social” dos mercados anônimos. Todas as decisões tomadas pelas instituições
democráticas não representam qualquer controle autônomo sobre a utilização plena de sentido dos
recursos comuns, mas são sempre já pré-formadas por meio do automatismo do sistema econômico,
que, enquanto tal, não é democraticamente negociável, porque está associado a uma “natureza”
[social] inelutável. Isto justifica a priori a mobilização mais louca e mais absurdamente violenta dos
recursos materiais e humanos” (KURZ, 1999b).

42
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

A introdução acima, por sua vez, tem apenas como intenção nos permitir fazer a
seguir uma discussão categorial sobre a particularidade brasileira no século XXI, no
que se refere às categorias do capital entendido como totalidade fragmentada do
valor-dissociação (SCHOLZ, 2009 e KURZ, 2014) e sua contradição em processo
(MARX, 1983) como dominação da forma social capitalista sobre os seres humanos,
como tais formados neste processo social mesmo.
No presente texto, darei ênfase ao processo histórico recente das categorias de
capital, terra, trabalho e dissociação, a fim de lograr a crítica às tentativas do campo
autodenominado “progressista”, “keynesiano” ou “socialista” de analisar a crise
econômica brasileira recente. Tais tentativas partem de uma leitura de economia
política ou de uma crítica da economia política, esta a partir do ponto de vista de defesa
do trabalho do marxismo tradicional, como seu limite de crítica. Desta forma, o quadro
geral da crítica reduzida que se promoveu até aqui no âmbito da economia também se
atém às mesmas referências e formulações teóricas até aqui existentes, a despeito das
particularidades da crise mundial do capital de 2008, estando a produção de
mercadorias mediada determinantemente pelo mercado de capitais globalizados
(KURZ, 1999b), designado convencionalmente por “sistema financeiro”. De nosso
ponto de vista, a análise da inserção brasileira na bolha das commodities e a recente
crise econômica brasileira deveria colocar em questão os velhos paradigmas teóricos de
análise, o que não ocorre dado o apagamento que a lógica dedutiva destes promove a
fim de fazer a realidade caber em seus pressupostos teóricos e nos seus campos já
estabelecidos de práticas políticas. Em geral, o que veremos são posições que defendem
a insuficiência de processos de modernização promovidos pelos governos do PT,
recolocando exigências de industrialização a partir de posturas dualistas e
desenvolvimentistas, que leem o Brasil como atrasado frente a supostas economias
centrais do capitalismo, sendo que foi em tais países que a crise do capital de 2008
manifestou-se inicialmente. No limite do que se pretende mais radical
(“revolucionário”), as formulações baseadas em interpretações de teoria da
dependência, vinculadas ao marxismo tradicional, atualizadas para o que designam
como momento “financeirizado” da acumulação capitalista, se limitam a classificar as
camadas rentistas como “especuladores” estrangeiros e nacionais “parasitários” que
teriam “sugado” a indústria nacional e seus trabalhadores e teriam se “aproveitado” da
43
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

crise econômica para acumularem e manterem seu domínio social hoje global. Sua
análise da atual crise econômica brasileira formula uma leitura em busca das causas
econômicas da mesma, a fim de tentar recolocar o país em retomada de crescimento,
em aberta apologia da riqueza capitalista como monstruosa coleção de mercadorias
(MARX, 1983). Isso a partir da posição teórica de um sujeito a observar a sociedade
como objeto a ser conhecido, que se coloca de fora do processo histórico, analisa-o e
propõe as soluções para os seus aparentes problemas e assim acaba por reproduzir as
bases sociais deste processo mesmo.
Tais críticas reduzidas reafirmam ou no mínimo hipostasiam, assim, os
fundamentos sociais comuns da concorrência universal, do trabalho e do patriarcado
como única forma de sociabilidade possível e reconduzem à determinação da
valorização do valor como fim tautológico abstrato e absurdo e que fica por isso
abstraído e não criticado.
O procedimento crítico que pretendemos desdobrar no presente texto (expresso
em sua própria estrutura) visa incorporar a sugestão de um realismo dialético
(SCHOLZ, 2009) para o cotejamento entre a revisão de uma bibliografia por nós
selecionada – que ainda no campo da parcialidade da economia (como uma área
autonomizada das ciências modernas) tentou interpretar a recente crise econômica
brasileira – e elementos da particularidade do processo histórico recente das categorias
capital, terra, trabalho e dissociação no Brasil, a fim de que estes neguem as conclusões
de tal bibliografia, por meio de um movimento de apreensão da sociedade como
totalidade concreta (MARX, 2008; SCHOLZ, 2009). Já importa adiantarmos que a
categoria marxiana de capital fictício (MARX, 1984c) será para nós aqui central e a
mediação que a mesma permite como forma de ser do momento histórico hodierno
exigirá que também apresentemos uma discussão acerca das categorias do capital a
nível mundial, a fim de relacionarmos o período recente brasileiro ao momento atual
do capital como totalidade. Tal discussão sobre o presente momento histórico
capitalista como totalidade será levada a cabo a partir da análise crítica de textos
selecionados sobre a crise do capital de 2008 e sua relação com o momento capitalista
a partir dos anos 70 e o que ficou conhecido por certos autores como seu processo de
“financeirização”, de “dominância financeira” ou momento de acumulação baseado no
“neoliberalismo”, do qual tal “financeirização” é parte.
44
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

A crítica a tais formulações será mediada por uma análise do desdobramento


das formulações acerca do capital financeiro (Finanzkapital)de Robert Kurz (2005) no
que concerne à mediação da simulação de acumulação capitalista por meio de criação
de capital fictício, a partir de textos selecionados dos anos 90, 2000 e 2010 5 deste
autor da crítica do valor-dissociação. Isso nos permitirá inserir a particularidade
brasileira no nível global do capital e a apreendermos como totalidade concreta, sem
incorrer em um individualismo metodológico (KURZ, 2014). Vale adiantar que
especial ênfase será dada ao que Kurz (2005), a partir de Marx (1985), chamou de
inflação dos títulos de propriedade como momento de expressão do desacoplamento
(decoupling / Entkoplung) entre preço e valor no que concerne ao capital global no
início do século XXI, já como desdobramento da dessubstancialização do capital
(KURZ, 2004) que ocorria desde os anos 1970. Apresentaremos, então, como a
expansão da produção de mercadorias, no Brasil do século XXI, se deu determinada
pela mediação do capital fictício em crescimento (que não ficara circunscrito só ao
mercado de capitais em si), com centralidade na bolha das commodities, o que para
nós não significou valorização do valor. Elaboraremos então, na sequência, uma
formulação para a discussão acerca da relação entre desenvolvimento das forças
produtivas, queda da taxa de lucro, endividamento e inflação hoje, o que aparecerá de
maneira própria em nossa forma de interpretação da particularidade concreta
brasileira para tal período recente.
A formulação sobre o momento dissociado (SCHOLZ, 2008 e 2009) da forma
social capitalista será principalmente tematizada ao abordarmos a ascensão mediada
por capital fictício das novas camadas médias no Brasil durante o boom da bolha das
commodities e sua posterior decadência e explicitação de superfluidade
(Überflüssigkeit), quando retomarmos a discussão sobre a administração de crise dos
governos PT e a crise econômica brasileira mais ao final do texto.
Com isso pretendemos apresentar, de nossa parte, uma formulação que não visa
encontrar causas e soluções para a crise econômica brasileira, mas uma apreensão
5 A seleção dos textos visa apresentar os desdobramentos da formulação de Kurz acerca da
ficcionalização da economia capitalista como expressão dos desdobramentos históricos concretos da
determinação do capital fictício para a reprodução em crise da sociabilidade capitalista, pós anos 70.
Refiro-me aqui aos capítulos 8 e 9 de O colapso da modernização (1999a), texto original de 1991; A
ascensão do dinheiro aos céus (2019), original de 1995; Weltkapital, de 2005 e Dinheiro sem valor
(2014), original de 2012.

45
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

concreta por meio da crítica social que explicite os pressupostos sociais negativos do
fenômeno de boom e crise da economia brasileira no século XXI, a fim de aprofundar a
discussão teórica acerca dos mesmos. Para nós, o momento da reflexão teórica é
fundamental pois visa explicitar a necessidade de suplantação de uma forma de relação
social objetificada e naturalizante, momento que não se propõe buscar a realização de
uma suposta identidade sujeito-objeto, mas tem por horizonte a crítica radical da
forma moderna de relação entre os homens por meio das coisas e seu fetichismo da
mercadoria e de sujeito (MARX, 1983), forma mesma de dominação social, a fim de
suplantá-la.6

2- A economia brasileira no século XXI e as formulações de economia


política e do marxismo tradicional sobre a mesma

A crise fundamental do capitalismo (como exporemos adiante) aparece


socialmente como crise econômica brasileira a partir de 2012/2013, e selecionamos a
análise de economistas brasileiros sobre a mesma para os apresentarmos criticamente
a partir daqui. Uma série de fenômenos da superfície econômica são utilizados para a
qualificação de existência de uma crise. Em 2012 o crescimento do PIB7 (Produto
Interno Bruto, ver Gráfico 1, abaixo) cai para menos de 2%, se recupera um pouco em
2013, mas estagna novamente a partir 2014, apresentando forte contração a partir de
então. Desde 2003/2004 o mesmo havia apresentado crescimento expressivo, com
queda significativa a partir da crise mundial de 2008, que promoveu uma deflação dos

6 Para isso, ver a sugestão de um programa de abolições em Kurz (2014, p. 30).


7 Interessa esclarecer que para nós a referência aos dados estatísticos que realizaremos ao longo deste
ensaio conduz apenas a uma aproximação insuficiente dos processos que tentamos apreender.
Informados de que o valor é uma relação social fantasmagórica (MARX, 1983), que só pode ser
acessado teoricamente e por meio de suas formas de manifestação particulares, destacamos que a
coisa parece se complicar ainda mais quando abordamos produções de mercadorias mediadas por
capital fictício, como passa a ocorrer de forma determinante a partir da década de 1970, em um
processo de desacoplamento entre preço e valor, processo que passa pela própria corporeidade
material das mercadorias produzidas. De forma nenhuma, assim, tais dados exprimem empírica e
imediatamente o plano do valor, mas nos permitem tentar acessar, por meio de indícios (KURZ, 2014,
p. 183), a historicidade das categorias de capital, terra, trabalho e dissociação no que diz respeito ao
caso brasileiro: “A relação entre a estatística e o movimento real de valorização é indireta, não
podendo em caso algum ser expressa em dados empíricos, mas apenas ser tornada acessível por
indícios” (KURZ, 2014, p. 183).

46
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

preços dos títulos de propriedades nos mercados financeiros globais, aparecendo aos
capitalistas como redução na oferta de crédito internacional (denominado por estes
“problema de liquidez”) e consequente diminuição da demanda por mercadorias e
retração do comércio mundial (TOOZE, 2018). Entre 2009 e 2010 o PIB no Brasil
cresce novamente, mas, a partir de 2012, isso já não se repete. O índice de inflação
superou as margens (SINGER, 2018, p. 67) estipuladas pelo governo (6,5 % ao ano), já
em 2013, o que afetou imediatamente as camadas médias, baixas e miseráveis da
sociedade brasileira (SINGER, 2018); e, por último, indicador relevante para as
análises do marxismo tradicional, a taxa de lucro também apresentou declínio, já a
partir de 20108 (Gráfico 2). Podemos adiantar, porém, que tal queda na taxa de lucro
não travou imediatamente os investimentos no setor convencionalmente designado por
produtivo, ou seja, o aumento da composição orgânica dos capitais continuou a
ocorrer, até por volta de 2013 (REZENDE, 2016 e CARNEIRO, 2018, p. 24). Rezende
(2016) inclusive destaca que após a crise de 2008, o investimento se recuperou
rapidamente à revelia dos sinais econômicos – queda do comércio mundial e da taxa de
lucro, por exemplo – e é justamente a essa característica que o autor remete a
“financeirização” da economia brasileira, como veremos.
A partir de 2014 tem-se no Brasil deflação dos preços dos ativos financeiros em
geral (títulos de propriedade), alta inflação; explosão do endividamento (das famílias,
das empresas e do Estado tanto interno quanto externo; REZENDE, 2016); redução da
produção, comercialização e consumo de mercadorias; e recuperações judiciais e
falências de empresas em números massivos (CARNEIRO, 2018 e SINGER, 2018).

Gráfico 1: Crescimento real do PIB (% a.a.) a preços de mercado (referência 2000)

8 Faz-se mister adiantarmos aqui que tal taxa de lucro não logra evidenciar a separação entre lucros
provenientes de simulação de acumulação capitalista por meio de capital fictício, inclusive para
capitais industriais, daqueles lucros ou rendas provenientes do capital financeiro. Também tal taxa de
lucro apaga uma importante diferenciação entre trabalho produtivo e improdutivo, equiparando tudo.
Importa destacar, porém, que nem mesmo uma simulação fictícia de valorização de valor lograva se
realizar a partir do momento aqui tematizado, o que aparece também na queda do PIB,
consequentemente.

47
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Fonte: Rezende (2016, p. 17), dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Gráfico 2: Taxa de lucro, Brasil (2000 – 2015)

Fonte: Marquetti et al. (2016).

Apesar de todos os autores mencionarem o “boom das commodities” (para nós


uma bolha, PITTA, 2016 e 2018) e sua mediação com o estouro da bolha imobiliária do

48
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

EUA como momentos relevantes para a queda nas taxas de lucros das empresas
brasileiras, como veremos, estes tentam ainda vislumbrar a possibilidade de
autonomia da economia nacional produtiva e capaz de valorização de valor por si
mesma (do que discordamos) frente aos impactos da crise do capital a nível mundial, a
partir de 2008 e ao aprofundamento da crise europeia e da desaceleração da economia
chinesa, a partir de 2011 (TOOZE, 2018). É a forma de apreensão do que designam por
processo de “financeirização do capitalismo”9 (BRAGA, 2017), compreendido do ponto
de vista de um individualismo metodológico10 (KURZ, 2014), que permite tal
aparência de autonomia hipostasiada da relação entre economia brasileira e
capitalismo global e seu momento histórico como forma de relação social, como se
aquela pudesse se desacoplar destas e valorizar o valor de forma autônoma caso
efetivamente alcançasse certos patamares de produtividade e composição orgânica de
seus capitais. Um paradigma de progresso, modernizador e produtivista continua a
imperar nas mentes dos interlocutores a quem assim dirigiremos nossas críticas.
Apresentarei aqui algumas das tentativas de explicação para tal fenômeno de
crise econômica brasileira. Selecionei aquelas mais relevantes que incorporam uma
discussão sobre “financeirização” da economia brasileira e que abordam as categorias
de capital a juros ou capital fictício para intermediar o nível nacional brasileiro com o
9Remetemos o leitor para a explicação de Braga (2017) para o designado processo de “financeirização do
capitalismo”. Tal autor foi um dos primeiros a caracterizar (já nos anos 1980) desta forma o
capitalismo mundial a partir dos anos 1970 e descreve o histórico de apropriações do conceito. Não o
utilizamos como categoria de análise, mas para nos referirmos a um conjunto de autores com os quais
dialogaremos aqui e que, cada qual a seu modo, perceberam a intermediação do capital financeiro
(portador de juros ou fictício) como condição para o capitalismo a partir dos anos 1970. Como
veremos, discordamos aqui desta forma de classificação dos desdobramentos históricos do processo
social capitalista a partir de tal década, ao formularmos à nossa maneira a determinação do capital
fictício para o momento de crise do capitalismo desde então.
10 Aqui nos apropriamos da crítica que Kurz (2014, p. 29) faz a um procedimento de teoria positiva do

conhecimento que constitui em, na observação de um objeto (ou um fenômeno ou conjunto destes) a
ser conhecido, abstrair intelectualmente suas características mais gerais a partir de um caso individual
e formulá-las no conhecimento enquanto essenciais e constitutivas. Kurz está dedicado, por exemplo, à
crítica das apreensões que deduzem o plano do capital global a partir de diferentes capitais
individuais. Desta forma, a acumulação de capital por um capital individual ou setor produtivo não
significa em si que o capital a nível global, enquanto totalidade, valorize o valor. Assim, o que compõe
o todo social não é a soma das suas partes e o que define a essência (negativa) dos fenômenos é a
mediação social das partes enquanto totalidade. O momento histórico da forma da relação social
(valor-dissociação) define a parte, não existindo partes autônomas em relação à totalidade, mas
apenas autonomizadas, ou seja, aparentam estar separadas sem o serem, já que mediadas. Se a
sociedade capitalista como totalidade fragmentada (SCHOLZ, 2009) apresenta uma simulação de
reprodução por meio da mediação do capital fictício em razão de sua crise fundamental, a partir dos
anos 1970 (KURZ, 2014), não é possível separar a economia nacional brasileira deste momento da
totalidade. Veremos como isso se dá concretamente adiante.

49
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

global; assim como, de forma insuficiente como o formulam, para intermediar os


chamados setores produtivos das empresas capitalistas brasileiras. Isso nos permitirá,
após tal apresentação dos autores brasileiros, nos remetermos à discussão no
marxismo tradicional recente acerca da “financeirização” e crise do capitalismo a nível
global, para então apresentarmos as críticas destes por Robert Kurz. Após isso,
poderemos construir nossa análise crítica da mediação social capitalista por meio do
processo histórico de totalidade concreta das categorias de capital, terra e trabalho, no
Brasil, no século XXI.
Comecemos pela economia política de Ricardo Carneiro, em Navegando a
contravento (2018). Para Carneiro, foi a “alta no preço das commodities” relacionada à
financeirização da economia brasileira que permitiu o crescimento econômico entre
2003 e 2010 (CARNEIRO, 2018, p. 18). Para o autor, a “financeirização” globalizada da
economia brasileira já vinha ocorrendo desde o final dos anos 1980, em razão da
“desregulamentação neoliberal” e, a partir da alta nos preços das commodities (até a
crise de 2008), proporcionou acesso do Brasil ao mercado de capitais internacional, o
que fez crescer a dívida interna do país (em reais) e a dívida dolarizada das empresas e
promoveu a apreciação do real. Isso teria permitido ao governo Lula manter a inflação
sob controle e estabelecer programas de distribuição de renda e fomento ao crédito
para empresas e famílias. Para Carneiro, este período é de “regressão produtiva” (o que
muitos denominaram “reprimarização da economia brasileira”, como DELGADO,
2012), baseado na exportação de commodities e no aumento das importações de
manufaturados e capital financeiro. Tal movimento teria aumentado ainda mais a já
existente “dependência externa brasileira”, principalmente aos “ciclos” especulativos
do capitalismo financeiro internacional, forma do autor de se apropriar e classificar a
“financeirização” do capital.
Justamente, após a crise de 2008, devido à queda dos preços internacionais em
geral e apesar das políticas de redução de impostos e fomento à indústria brasileira por
parte do Estado (governos Lula e Dilma), teria ocorrido uma “desindustrialização” no
Brasil (CARNEIRO, 2018, p. 18), que por isso teria ficado ainda mais dependente dos

50
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

capitais financeiros internacionais em busca de carry trade11, uma forma de manter o


investimento por algum tempo, até sua queda a partir de 2013, configurando uma crise
econômica conforme já pontuamos fenomenicamente a partir de então.
A principal causa para Carneiro para a dependência brasileira ao capitalismo
internacional e suas crises cíclicas se deveu ao atraso industrial brasileiro, que não teria
acompanhado a “terceira revolução industrial” dos países centrais (2018, p. 14), daí sua
“desmedida” necessidade de acesso ao mercado financeiro (internacional e nacional).
Vale o destaque que para ele, quando Dilma Rousseff, a partir de 2012 – 2013, tentou
promover medidas tipicamente keynesianas “anticíclicas” como derrubada nas taxas de
juros, desvalorização do câmbio, limitação do carry trade, redução da cobrança de
impostos na tentativa de fomentar a indústria e manutenção do crédito, também
tentando fomentar o consumo (Rousseff também manteve a indexação do salário
mínimo à inflação), já seria “tarde” para conter a crise econômica. Neste momento, os
custos das empresas, principalmente suas dívidas (já que em dólares em sua maioria),
que vinham sendo roladas desde principalmente 2010 (em razão da queda das taxas de
lucros), explodiram, passando então a configurar para ele um “esquema Ponzi” (ou
“pirâmide financeira”). Em Carneiro (2018), a inflação assim teria rompido a faixa
estabelecida pelo governo Rousseff em razão de uma “desindustrialização” brasileira e
daí a necessidade de desvalorização do real (afetando a sociedade brasileira como um
todo). O capital reduziu o investimento após 2013 e a crise passou a ocorrer como
redução do PIB e no estouro do déficit fiscal e comercial do Estado (que já vinha
ocorrendo).
Apreendemos que Carneiro (2018) tem como pano de fundo que o capital
financeiro internacional desregulamentado promove bolhas financeiras e a
possibilidade de “lastreá-lo” está na produção de mercadorias. Fica a pergunta, por
que, mesmo tendo os supostos (para Carneiro) níveis mais elevados de produtividade e

11 O carry trade é um tipo de investimento financeiro que visa aproveitar o diferencial de juros para
captação de dívida em determinados mercados e aplicar em taxas de juros maiores pagas em outros,
aproveitando também o diferencial no câmbio da transação. Após 2008, com o quantitative easing
(QE) de bancos centrais de países como EUA e de países europeus e de consequente baixas taxas de
juros, era interessante adquirir uma dívida (principalmente em dólar) fora do Brasil e aplicar tal
dinheiro em dívida interna brasileira, em reais, que pagavam taxas de juros maiores. Tal investimento
foi muito utilizado por todo tipo de investidor e só foi sendo reduzido a partir de 2011 e 2012, com a
taxação com impostos sobre o mesmo por Guido Mantega, Ministro da Fazenda no primeiro mandato
de Dilma Rousseff.

51
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

composição orgânica do capital, até os países e empresas considerados os mais


produtivos do mundo faliram com a crise de 2008 (pra citar a General Motors, por
exemplo, a maior indústria automobilística do mundo, TOOZE, 2018)? Carneiro está
afeito à positivação do desenvolvimento das forças produtivas e produção da
monstruosa coleção de mercadorias. Não relaciona imanentemente capitalismo
financeiro e aumento da produtividade do capital. Repõe a defesa de uma explicação de
atraso para a relação entre economia brasileira e capitais industriais e financeiros
internacionais e sua formulação se limita a tentar encontrar causas e soluções para o
fenômeno de crise econômica, que para ele sempre se repete ciclicamente, ficando
restrita sua crítica, que assim não tematiza a própria forma social capitalista. Além
disso, vincula também o fenômeno da inflação àquele do atraso no desenvolvimento
das forças produtivas brasileiras frente ao capital dos países centrais do capitalismo.
Assim, a retomada do crescimento econômico com controle da financeirização é seu
ponto de chegada ideal.
Se nos voltamos ao texto de Luiz Gonzaga Belluzzo, O capital e suas
metamorfoses (2012), temos o desdobramento de um marxismo keynesiano que ajuda
a explicitar o que não aparece na explicação de Carneiro, apresentada acima. Belluzzo
interpreta a sociedade capitalista como uma antinomia de dominação do lado abstrato
sobre o lado concreto da forma social (o que ele denomina com Keynes “economia
monetária de produção”) (PITTA, 2016), a qual conduz, pela desregulamentação dos
mercados, à possibilidade de desacoplamento entre capital fictício e a produção de
materialidade das mercadorias produzidas pela indústria, a partir da década de 1970
(BELLUZZO, 2012). Como, para ele, produção e valorização de valor por meio da
exploração de trabalho não estaria mais em questão desde tal momento, Belluzzo
expressa um fetichismo de materialidade e de valor de uso, que seria para ele capaz de
conter o desacoplamento do capital fictício de seus “fundamentos”, “para além do
necessário”, desacoplamento que conduziria à formação de bolhas, fetichismo ao qual
se dirige a crítica do autor.
Belluzzo chega a embasar sua interpretação da sociedade capitalista
financeirizada pós anos 1970 na “ontologia do ser social” de Lukács, que visa uma
identidade sujeito-objeto como possível na relação trabalho concreto-produtos do
trabalho, a qual em Lukács é a formulação de uma ontologia do trabalho que, no
52
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

capitalismo, estaria sendo sugado do trabalhador em razão da abstração da forma-


valor12. Em Belluzzo, tal formulação é lida como perda de controle por parte da
sociedade de sua riqueza material socialmente produzida, já que bolhas financeiras
especulativas levariam ao travamento da economia, à inflação, ao desemprego, à
paralização da produção, à desigualdade social. Assim, para ele, o Estado deveria
regular o mercado a fim de estabelecer uma relação harmoniosa entre o lado abstrato e
o concreto da mercadoria, abstraindo o autor toda radicalidade crítica da formulação
de uma contradição na identidade do duplo da mercadoria (valor – valor de uso) como
forma social em Marx (KURZ, 2004). O Estado de Bem-Estar Social europeu é para
Belluzzo o paradigma ideal, uma sociedade de camadas médias satisfeita pelo consumo
de mercadorias a ser sustentado eternamente, e os anos Lula como sua mimese
brasileira deveriam ser resgatados e desenvolvidos, aprofundados.
A caracterização histórica feita até aqui acerca da superfície do processo
econômico recente brasileiro, neste início do século XXI, servirá ainda para as demais
apresentações que faremos a seguir13.
Abordaremos agora formulações do marxismo tradicional brasileiro e sua crítica
baseada na exploração do fruto do trabalho, no imperialismo e na atualização destes
pela mediação da “financeirização” da economia. “Enfeitiçados” que estão pelo
anacrônico paradigma de um capitalismo produtivo capaz de valorização do valor,
deduzem deste tal “financeirização” apenas como superestrutura global a se apropriar

12 Para a crítica a este procedimento, ver por exemplo, Kurz (2004), principalmente o item “3) O
conceito negativo de substância do trabalho abstrato na crítica da economia política de Marx”. Para
ele, ali, o valor de uso e a corporeidade da mercadoria também são abstrações, em relação
imanentemente dialética com a abstração do valor. Hipostasiar qualquer um dos polos do duplo da
mercadoria significa projetar para outro momento histórico uma abstração real da forma social do
valor-dissociação, incorrendo em manter, seja pro passado, seja para o futuro, fundamentos dessa
forma mesma. Por exemplo, as abstratas noções de corporeidade das mercadorias e sua utilidade só
podem ser assim formuladas em razão da abstração que o valor faz das diferenças qualitativas das
distintas mercadorias, o que permite a equiparação entre trabalho e coisas e a existência social da
mais-valia, a valorização do valor como fim-em-si-mesmo, a dinâmica de crise, o capital fictício e a
dissociação também como constitutiva de sua (do valor) totalidade fragmentada. A ontologização do
trabalho concreto e do valor de uso reproduzem, assim, os fundamentos sociais mesmos que
constituem a possibilidade de desacoplamento entre dinheiro e valor, capital e trabalho, como em
Kurz (2004); o que não está limitado ao desacoplamento entre abstrato e concreto, dinheiro e
materialidade dos valores de uso, como em Belluzzo. Para uma crítica da ontologia do trabalho em
Belluzzo (2012) ver Pitta (2016).
13 Mantidas as devidas diferenças conceituais entre economia política e marxismo, poderemos nos apoiar

no quadro geral até aqui apresentado, a fim de não estorvar o leitor com a repetição acerca da
interpretação individual de cada autor para os processos econômicos já descritos.

53
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

da riqueza produzida pela classe trabalhadora. Desse modo, modernização e


desenvolvimento das forças produtivas são subjetivados como se fossem positivos se
não alienados dos “verdadeiros sujeitos produtores da riqueza social”. Os autores que
aqui apresentaremos, a despeito dos desdobramentos globais da contradição em
processo do valor-dissociação no que diz respeito à relação fundamental de crise entre
aumento da composição orgânica do capital e força de trabalho explorável a valorizar o
valor, vão repor uma leitura de queda da taxa de lucro do capitalismo brasileiro, porém
causada, em tais autores, pelo atraso deste (sim, isto aparece aqui também na suposta
“crítica da economia política brasileira”), que combinado com um conflito distributivo
entre as classes sociais teria conduzido à crise econômica e ao golpe parlamentar de
2016 no Brasil.
Em Lucratividade e distribuição: a origem econômica da crise política
brasileira, Marquetti et al. (2016) observam na taxa de lucro do capital brasileiro a
determinação da crise econômica, que se manifestaria para eles a partir de 2013 /
2014. Com base no apresentado no Gráfico 2, acima, os autores vinculam o aumento da
demanda internacional por commodities com a subida da taxa de lucro, entre 2002 e
2010. Assim, taxa de lucro, aqui, significa uma acumulação produtiva de capital, com
exploração do trabalho e valorização do valor. O caráter “financeirizado” ou
ficcionalizado da própria taxa de lucro hoje, o que para nós já não nos permitiria
considerá-la daquela maneira, não está minimamente tematizado, como tentaremos
determinar adiante. Ou seja, apesar de não termos apresentada uma consideração
acerca do caráter das crises no capitalismo em Marquetti et al., a taxa de lucro é
entendida como variável econômica para determinar o aumento da produtividade do
capital ou a falta de investimento capitalista.
Um benefício da taxa de câmbio valorizada é possibilitar que os
aumentos salariais tenham efeitos reduzidos sobre os preços dos
produtos industriais devido à concorrência internacional. Ela também
diminui os efeitos do aumento dos preços internacionais das
commodities no mercado doméstico. A valorização do câmbio permitiu,
assim, que se combinasse o aumento do salário real com o controle da
inflação. A elevada taxa de juro real ao permitir a valorização cambial
também favoreceu o aumento da parcela salarial. O custo foi o
aprofundamento do processo precoce de desindustrialização da
economia brasileira (MARQUETTI et al., 2016).

54
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

A queda na taxa de lucro se deu, a partir de 2010, com a crise econômica


mundial e o fim da demanda por commodities (o que significara até então acumulação
de capital para Marquetti et al.). Em Marquetti et al. (2016) teria sido então o atraso
brasileiro na concorrência internacional que teria movido, no momento da crise
mundial, uma desindustrialização no Brasil e queda da taxa de lucro e seria isso que
teria conduzido à redução do investimento e queda na produtividade do capital, a
partir de então.
As políticas anticíclicas de Rousseff, a partir de 2012, conforme já pontuamos,
visaram desvalorizar o real, derrubar a taxa de juros e manter a política de fomento ao
consumo por meio de acesso ao crédito para as famílias e atrelamento dos salários à
inflação. Isso teria reiterado a queda nos lucros, em razão do aumento dos custos tanto
com dívida em dólar, quanto com os chamados “custos operacionais”, e favorecido o
trabalho em detrimento do capital produtivo e financeiro (com redução dos juros) e
gerado inflação. Ou seja, em Marquetti et al (2016) o “conflito distributivo” teria
favorecido o trabalhador e não o capitalista, o que teria aparecido na subida da taxa de
inflação. O descontentamento das classes capitalistas teria movido o golpe de Estado e
seus desdobramentos.
No Governo Dilma, houve uma forte queda da lucratividade em
decorrência da redistribuição da renda em favor do trabalho. Ocorreu o
que na literatura se denomina de “profit squeeze”, o esmagamento dos
lucros (...). A queda acentuada da taxa de lucro e a tentativa de reduzir a
taxa de juros no início de 2011 romperam o acordo de classes que
caracterizou o governo Lula. As reduções nos ganhos do capital
produtivo e financeiro são a origem econômica para a crise política do
Governo Dilma (MARQUETTI et al., 2016).

A “financeirização” aparece aqui em Marquetti et al. apenas no papel do setor


financeiro disputando a mais-valia produzida socialmente – enquanto conflito
distributivo –, mais-valia essa que teria crescido em termos absolutos com o aumento
da demanda mundial por commodities. Aparece também na intermediação com o
mercado internacional na definição da taxa de câmbio, já que, com o aumento das
exportações brasileiras e a manutenção de altas taxas de juros, a busca por
investimentos em carry trade teria permitido um quadro de crescimento econômico
com desindustrialização. Perguntamo-nos, entretanto, qual mudança na determinação
da taxa de lucro a “financeirização” teria promovido? Por que, mesmo apesar da queda

55
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

da taxa de lucro já em 2010, os investimentos só caem a partir de 2013? O que está


apagado e/ou abstraído na apresentação de Marquetti et al.? As transformações que a
chamada “financeirização” promoveram nos fenômenos econômicos não são aqui
apreendidas, apenas se deduz da tradicional explicação do atraso da economia
brasileira as causas de sua presente crise, vinculando imediatamente
desindustrialização, queda da taxa de lucro, travamento dos investimentos capitalistas
na indústria e inflação. Como veremos, não foi isso que ocorreu. Por que, mesmo tendo
a crise econômica se iniciado no supostamente mais industrializado centro do
capitalismo mundial, seria possível ao Brasil, ao superar seu suposto atraso econômico,
superar a dinâmica de crise econômica mundial, a partir de 2008, e dela se tornar
autônomo?
A formulação acerca do processo inflacionário se acentuar a partir da queda da
taxa de lucro e do travamento no desenvolvimento das forças produtivas também nos
remete a um capitalismo produtivo que valoriza o valor, que já não existe mais. Como
formularemos, a inflação ficou contida no Brasil no período aqui apresentado em razão
do câmbio valorizado pela bolha especulativa das commodities. Como já mencionamos
acima, por sua vez, a chamada “formação bruta de capital fixo” (REZENDE, 2016), que
em termos marxistas significa a continuidade do aumento da composição orgânica do
capital, só foi reduzida a partir de 2013, mesmo com queda da taxa de lucro declinante,
desde 2007 antes da crise de 2008 e após breve recuperação, desde 2010 (ver Gráfico
2, acima), já em um momento de alto endividamento das empresas e crise econômica
mundial (o que envolveu em geral dificuldade de rolagem de dívidas, redução de
demanda e comércio mundiais e queda nos preços dos ativos financeiros ao redor do
mundo e no Brasil). Para nós, é isso que tem relação com as transformações que a
determinação do capital fictício promoveu para o capitalismo como forma social, a
partir dos anos 1970, aparece na superfície do que se entende por “variáveis
macroeconômicas” de maneira particular e que apenas o relacionamento entre as
categorias de capital, terra e trabalho na economia brasileira com o movimento do
próprio capital global poderá nos ajudar a entender. Voltaremos a isso abaixo.
Felipe Batista, em Crise, Inflação e os Limites do Estado na Conjuntura
Brasileira (2018), apesar de se utilizar de uma explicação que lê no “ciclo das
commodities” a subida da taxa de lucro no Brasil (e consequentemente global) como
56
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

uma acumulação produtiva de capital por meio da realização da valorização do valor


com exploração do trabalho e sua queda em razão do atraso econômico brasileiro –
estando, assim, muito próximo de Marquetti et al. (2016) –, pelo menos busca
aprofundar a discussão da “financeirização” da economia capitalista com a apreensão
acerca da criação de capital fictício a partir de 2009 (BATISTA, 2018) por parte dos
governos Lula e Dilma, na tentativa de retomar o crescimento econômico, após a
primeira queda internacional no preço das commodities (2008). Teria sido, assim, tal
criação de capital fictício, mantendo o fomento ao consumo como política anticíclica
nestes governos; a redução de impostos com investimento estatal e fomento ao crédito,
tanto privado como estatal; e a manutenção do carry trade que teriam permitido que
as empresas rolassem suas dívidas a partir de 2010, mantivessem certo nível de
desenvolvimento das forças produtivas e os trabalhadores continuassem empregados
(até 2015). Seria deste processo de criação de capital fictício e queda da taxa de lucro
que o processo inflacionário teria se aprofundado:
Porém, havia um problema subjacente que as medidas fiscais e
creditícias do governo não conseguiram lidar; a partir de 2007 a
lucratividade brasileira começava a declinar (...). Essa tendência
declinante perdurou e se aprofundou ao longo da fase que compreende
2007 a 2014. As fortes intervenções dos bancos públicos no mercado de
crédito e a aceleração dos gastos públicos não detiveram a redução da
taxa de lucro, enquanto sustentavam artificialmente a demanda efetiva
pela criação de “moeda-extra” em apoio às empresas que enfrentavam
problemas em seus balanços devido a incongruência dos fluxos de caixa
em relação a estrutura de passivos, causada, em última análise, pela
lucratividade em queda (BATISTA, 2018)14.

O capital fictício como desacoplamento da multiplicação de dinheiro em relação


à valorização do valor (KURZ, 2019) apenas aparece aqui após uma suposta (para
Batista) acumulação produtiva de capital, que teria ocorrido até 2007 em razão do
“ciclo das commodities”. Taxa de lucro, em Batista (2018), é utilizada nos moldes do
marxismo tradicional, e inicia queda antes mesmo da crise global do capital de 2008.
Para ele, é o rentismo do sistema financeiro nacional e internacional e o atraso da
economia brasileira de setores que não o produtor de commodities que já moviam tal
queda (BATISTA, 2018).

14 Fazendo ainda jus ao argumento de Batista (2018), a taxa de lucro volta a subir parcialmente (2009-
2010) quando da subida dos preços das commodities entre 2009 e 2011, 2012, o que teria aprofundado
o apresentado no excerto acima (BATISTA, 2018).

57
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Estamos diante de formulações que entendem uma relação conjuntural entre


economia brasileira e mundial, incorrendo em um individualismo metodológico na
análise do processo histórico do capitalismo recente no Brasil. A utilização da queda da
taxa de lucro como critério de análise não se vincula a uma formulação crítica da forma
social capitalista como o desdobramento de um processo histórico contraditório
imanente a ele mesmo, mas reflete apenas conjunturas de crises cíclicas do capital, que
sempre se repetiriam, a partir, inclusive, de um reposição da interpretação de atraso e
de necessidade de modernização para a economia brasileira. No máximo, tais leituras
(MARQUETTI et al., 2016 e BATISTA, 2018) poderiam ser consideradas como
atualizando uma teoria da dependência brasileira agora “financeirizada”, já que tal
atraso poderia ser remetido a um “rentismo” do capital financeiro, como também em
Paulani (2017), que critica os elevados ganhos financeiros (em benefício das “finanças”,
como em Chesnais) no período em questão, em detrimento de uma suposta “produção
de riqueza real15” (PAULANI, 2017, p. 31). A tese defendida por estes autores de um
capital rentista e especulativo que se beneficia da produção de “riqueza real”, o que
positiva um paradigma produtivista e modernizador, chega até a assustar,
principalmente no que diz respeito ao marxismo tradicional na periferia que transfere
a crítica da exploração do trabalho para o nível da desigualdade internacional entre
centro e periferia, agora com o capital financeiro a “controlar” o processo.
Aliás, a crítica de fundo que embasa as interpretações acima se restringe a uma
crítica da distribuição da riqueza socialmente produzida e as conjunturas de crise
capitalista passariam centralmente por este problema. A crise econômica brasileira
recente, assim, teria se dado em razão do atraso no desenvolvimento das forças
produtivas e do conflito distributivo entre as classes, o que teria reduzido a taxa de

15 “Como demonstrado, um dos preços-chave do funcionamento da acumulação de capital, a taxa básica


de juros, vem se comportando de modo completamente avesso à expansão da produção e do
crescimento da riqueza reais. Esse comportamento produz um comportamento também arisco à
produção de outra variável-chave, a taxa de câmbio, uma vez que a absorção de crescentes volumes de
poupança externa produzida pela permanência de uma taxa real de juros elevada provoca uma
contínua valorização do câmbio, que só reverte da pior forma possível, ou seja, nos momentos de crise.
Ademais, no quadro de um regime de acumulação financeirizado, o próprio funcionamento dos
expedientes de valorização reforça esse movimento de sobrevalorização do câmbio: considerando a
existência no Brasil de um robusto mercado de derivativos e a ausência de controle sobre os fluxos
internacionais de capital, a taxa de câmbio passa a integrar a carteira dos investidores financeiros, que
procuram por rápidas valorizações especulativas de suas aplicações (...)” (PAULANI, 2017, p. 31).

58
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

lucro e o investimento capitalista, promovido inflação e conduzido então à depressão


econômica.
Neste sentido, nas interpretações apresentadas, ficamos limitados à crítica do
capitalismo como fundamentado na irracionalidade do mercado e na propriedade
privada dos meios de produção, forma de alienar o trabalhador do fruto de seu
trabalho, verdadeiro produtor da riqueza social, para quem a retomada desta
solucionaria as determinações contraditórias do capitalismo. Neste sentido, a
modernização não é tematizada como negativa – dominação impessoal social da
concorrência sobre os homens socializados na forma mercadoria e na sociedade do
trabalho, partes da totalidade do valor-dissociação – e está hipostasiada e deveria ser
levada a termo por um Estado socialista que controlasse a produção de mercadorias e
as retornasse aos trabalhadores, a fim de satisfazer “as verdadeiras necessidades”
destes. Assim, vale explicitar, na interpretação do marxismo tradicional (KURZ, 2004,
principalmente o item “3- O conceito negativo de substância do trabalho abstrato na
crítica da economia política de Marx”) o trabalho é ontológico e a crítica do capitalismo
se detém na forma de distribuição da riqueza produzida pelo mesmo. Nada se tematiza
acerca da sociedade que formata tal acepção e sua forma social de riqueza (a
mercadoria), a qual determina fetichistamente que a dominação dos homens sobre os
objetos a fim de satisfazer suas necessidades é o que deveria ser a finalidade das
sociedades em geral16. Tal positivação de uma idealizada identidade sujeito-objeto já
aparece criticada em Adorno (1995) e está apreendida por ele como forma de
dominação social da “relação de troca”17 sobre os homens. Aqui, de nossa parte,
definimos tal dominação social como mediação social dos homens pelas coisas,
fetichismo da mercadoria resultado de sua objetividade fantasmagórica (MARX, 1983
e sua leitura por KURZ, 2004, item 3). Este é o lado do valor na crítica do valor-
dissociação, que devidamente também tematiza como seu pólo contraditório o
momento reprodutivo da sociedade capitalista, imputado ao feminino e, por isso,
obscurecido da relação social, ou seja, dissociado, o qual também deve ser criticado e

16 Para um desenvolvimento da crítica do fetichismo da mercadoria em Belluzzo (2012) e Harvey (2011),


ver Pitta (2016).
17 Para a crítica a Adorno por meio da crítica do valor-dissociação e a insuficiência de sua crítica apenas à

relação de troca e sua correspondente razão instrumental, ver Scholz (2009) e Kurz (2007).

59
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

não biologizado, nem naturalizado, mas também não pode ser simplesmente deduzido
do polo do valor (SCHOLZ, 2009).
Aliás, como as formulações que até aqui apresentamos ficam apenas no âmbito
disciplinar parcelar da Economia18, nada é referido criticamente por elas em relação a
patriarcado, racismo, antissemitismo ou nível psicossocial da contradição em processo
do valor-dissociação como forma social basilar.
O último autor a quem desejamos ainda nos referir para abordarmos a economia
brasileira desde 2003, é Felipe Rezende (2016), o qual se utiliza da leitura dos ciclos
financeiros do capitalismo do keynesiano (socialista) Hyman Minsky, no texto
Financial fragility, instability and the Brazilian crisis: a Keynes-Minsky-Godley
approach.
O interesse em Rezende (2016) se dá por razões paradoxais. Como seu pano de
fundo teórico podemos replicar aqui as formulações de Belluzzo (2012) já expostas
acima. Para ele a crise no capitalismo é cíclica e financeira, ou seja, o desacoplamento
entre capital financeiro e “economia real” devido à especulação financeira geraria as
crises que deveriam ser evitadas com regulação estatal e aumento da produtividade
econômica. Como em Rezende, porém, não há uma formulação de teoria do valor
trabalho – tudo aparece “financeirizado”, ou seja, mesmo o capital produtivo aparece
como ativo financeiro de maneira trans-histórica – o autor reconhece, assim, a subida e
queda dos preços das commodities nos mercados de futuros internacionais como uma
bolha financeira e tenta explicar por que os capitalistas produtores destas mercadorias
no Brasil continuaram investindo em tal setor (e mesmo como um todo para a

18 Isso nos obriga em alguns momentos a um salto do nível dos fenômenos da superfície da instância
econômica para o plano categorial da sociabilidade capitalista, procedimento que só poderia ser mais
teoricamente aprofundado com mais espaço, o que não será possível fazer no presente ensaio.
Sugerimos a discussão que Kurz faz (2014), a partir do que denomina quarto complexo a ser
tematizado pela sua crítica radical e que aparece discutido ao longo do livro Dinheiro sem valor
(2014): “O quarto complexo afere o estatuto das categorias na relação entre essência e aparência.
Tratar‑se‑á, no caso das categorias da crítica da economia política, de determinações da essência de
um ‘apriorismo transcendental’ que não podem manifestar‑se imediatamente enquanto tal, mas
constituem ainda assim a realidade social, ou podem os fenómenos capitalistas ser compreendidos
diretamente nas categorias e existir de forma independente? Como categorias reais transcendentais,
não podem ser empíricos; e, se forem entendidos como empíricos, não carecem de definição
transcendental. No primeiro entendimento, teoria e empiria não podem fundir‑se uma com a outra e
as aparências têm de ser, antes de mais, decifradas; no segundo, a essência e a aparência, e com elas
também a teoria e a empiria, coincidem imediatamente, ou as próprias categorias são imediatamente
empíricas. Nesse caso, já apenas existem, a bem dizer, aparências, por um lado, e a sua observação
‘científica’, por outro” (KURZ, 2014, pgs. 28 e 29).

60
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

economia brasileira), mesmo após a crise do capital de 2008 e a queda nas taxas de
lucros – já em 2007 e, após breve recuperação (ver Gráfico 2), após queda nas taxas de
lucros de 2010 em diante, – o que contraria os autores até aqui apresentados.
Ou seja, Rezende assume que há, em nossas palavras, uma determinação dos
mercados de capitais sobre o chamado capital produtivo, formulação com a qual
concordamos de certa forma para a atualidade capitalista e que explicitaremos abaixo
ao abordarmos como historicamente isso ocorreu para o capital como totalidade
(fragmentada) (após os anos 1970). Ao mesmo tempo, ao não aceitar que o trabalho é a
substância do capital e que é a valorização do valor por meio deste que permite ao
capital se reproduzir ampliadamente, Rezende naturaliza a economia, que reproduziria
ciclos especulativos eternamente se não fosse regulada e fomentada. Assim, também
não há a possibilidade em Rezende de se apreender um movimento histórico do capital
como contradição em processo que teria conduzido a sociedade capitalista ao presente
momento em que a criação de capital fictício e a intermediação social fundada no
mesmo, a partir dos anos 1970, fosse determinante para a simulação limitada de
reprodução desta sociedade em crise. Para Rezende, baseando sua leitura em Keynes e
Minsky, tudo indica que sempre foi assim e continuará sendo.
Em Rezende (2016) o crescimento econômico brasileiro entre 2003 e 2008 se
relacionou diretamente com a bolha imobiliária financeira internacional por meio da
bolha das commodities:
It has already been suggested that the conditions that prevailed prior to
the 2007-2008 Global Financial Crisis, which benefited developing
economies, were characterized as a bubble and the positive conditions
experienced by developing economies are unlikely to return (REZENDE,
2016, p. 19).

Para ele, os governos Lula teriam sido capazes de tirar proveito de tal contexto
econômico mundial e aumentar a produtividade capitalista brasileira, “distribuir
riqueza” e “fomentar desenvolvimento econômico”, positivando fenômenos sociais que
sua análise não interessa em tematizar e nem mesmo teoricamente criticar como
indícios historicamente determinados que são da forma de ser da dominação social da
contradição em processo do valor-dissociação como forma social própria do
capitalismo. Estes desdobramentos estão hipostasiados a partir da formulação de leis

61
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

econômicas universais, necessárias e intocáveis19 (como o “ciclo financeiro” de Minsky)


e não criticadas como socialmente constituídas, porém inconscientes aos sujeitos
sujeitados em tal forma de sociabilidade, como vimos anteriormente em nossa crítica
ao fetichismo de “produção concreta”, valor de uso e materialidade das mercadorias em
Belluzzo.
Para Rezende, os problemas brasileiros teriam surgido quando do estouro da
“Global Financial Crisis” (Crise Financeira Global), de 2007, 2008. Sua explicação para
a intermediação entre estouro da bolha do subprime dos Estados Unidos e a bolha das
commodities e seu impacto na economia brasileira partem da “teoria dos ciclos
financeiros” de Hyman Minsky, a qual é aplicada e deduzida para o caso brasileiro para
comprovar a tese de Rezende:
Central to Hyman P. Minsky’s financial instability hypothesis was that
periods of economic stability and economic progress lead to dynamic
internal changes characterized by hedge, speculative, and Ponzi financial
positions. Minsky (…) focused on the destabilizing effects of stability and
declining margins of safety. The purchase of assets through the issuance
of debt is core to his financial instability theory. He pointed out that
periods of growth and tranquility validates expectations and existing
financial structures, which change the dynamics of human behavior
leading to endogenous instability, increasing risk appetite, mispricing of
risky positions, and the erosion of margins of safety and liquid positions.

19 Em oposição a tal forma de ler o que aparece como leis naturais de uma teleologia dos homens em
geral, Kempter (2016) ressalta que Kurz “submeteu a um exame, no decorrer da década de 1990, não
apenas o capitalismo actualmente existente (...) mas toda a formação histórica. (...) Ele partiu,
portanto, do pressuposto de que o fim à vista da economia de mercado capitalista implica que esta
também tem um começo historicamente identificável, uma ‘história da constituição’ e uma ‘história da
imposição’, e um posterior desenvolvimento progressivo ‘em processo’ [negativo, como contradição
em processo], e não repousa de certa maneira em si mesma na eternidade, como constante
ontologicamente solidificada, ainda que entendida em evolução. [Colchetes nossos]
Com isto ele virou-se contra as ideias a-históricas e anti-históricas generalizadas de estados de
equilíbrio e processos cíclicos da economia de mercado. Notoriamente que é óbvio e, portanto,
conhecido por todos, dentro e fora das ciências económicas, que a economia moderna trouxe o
contínuo aumento da produção de bens, maior estoque de capital, inovação tecnológica, expansão do
círculo de consumidores, etc., mas isso normalmente não conduz à consideração histórica dos eventos
económicos.
Em vez disso, os mais diferentes analistas da economia moderna permanecem presos a um
pensamento circular a-histórico, que marcou a ciência económica desde os seus começos.
Repetidamente são forçadas analogias médicas, mecânicas ou cosmológicas para constatar o eterno
retorno do sempre igual (perante a milagrosamente aumentada riqueza de bens) e pintar idílios de
mercado” (KEMPTER, 2016).
É justamente a crítica a tal acepção a-histórica da sociabilidade capitalista que tentamos explicitar no
presente artigo por meio da apresentação de relação imanente entre bolha das commodities e crise
econômica brasileira recente e desdobramento histórico das categorias do capital a nível mundial.
Assim, também, buscamos apresentar uma crítica fundamental desta formação social, que também
deve ser levada em consideração no que aparece como periferia do capitalismo no momento presente.

62
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

That is, over periods of prolonged expansion fragility rise, exposing the
economy to the possibility of a crisis. This rise in financial fragility, in
turn, has the potential to lead to a slowdown in economic growth,
stagnation or even a recession (REZENDE, 2016, p. 14).

Apresentamos que mesmo antes da crise capitalista de 2008 as “taxas de lucro”


da economia brasileira já declinavam. Como veremos, apesar dos altos preços das
commodities, a inadimplência sobre hipotecas nos Estados Unidos e Europa
aumentava e a oferta de dinheiro nos mercados financeiros já diminuía. Mesmo assim,
os empresários, tanto industriais quanto financeiros continuavam a adquirir dívida
sobre os preços de diversos títulos de propriedades negociados nos mercados de
dinheiro, como preço de ações na bolsa de valores, valorização cambial do real frente
ao dólar e, principalmente, altos preços das commodities nos mercados de futuros e a
investir no aumento da composição orgânica de seus capitais (no caso do “capital
real”). O mesmo aconteceu entre 2009 e 2010, quando tais preços voltaram a subir e
depois novamente declinaram, então drasticamente, em uma bolha financeira mais
rápida que a anterior, com investimentos perdurando por mais alguns anos para além
de seu estouro. Rezende explica tal movimento como “otimismo econômico” e erro de
avaliação de contexto do mercado mundial, o que conduziria a alto endividamento e
consequente industrialização da economia de um setor ou país, que não poderiam mais
se realizar por meio de lucros e rendas financeiras devido ao estouro da bolha, tal
“otimismo” é parte do ciclo financeiro na análise de Minsky. Nosso interesse na
formulação de Rezende (2016) está em sua avaliação de um “excesso” de
desenvolvimento das forças produtivas determinado por uma bolha financeira
internacional, o que também englobara as demais economias nacionais ao redor do
mundo e não mais em uma explicação de crise econômica devido ao atraso da
economia brasileira. Isso, por sua vez, não significa que Rezende abandone o
paradigma desenvolvimentista e modernizador como ponto de vista naturalizado do
qual parte.
Aqui, em Rezende (2016) tudo se resumiria a um erro de análise dos
“fundamentos” econômicos por parte dos capitalistas, levados a tal por leis imanentes
ao ciclo financeiro do capital. Vale lembrar que a suposta saída oferecida por Rezende
(2016) para a crise econômica brasileira seria o aumento do investimento estatal, a fim

63
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

de reduzir o endividamento das empresas e “famílias” e retomar o investimento


privado. O Estado deveria “salvar” empresas e “famílias” e manter a economia
capitalista brasileira em funcionamento. Nada que Dilma Rousseff não tenha tentado
fazer, como apresentamos por meio de Carneiro (2018), Marquetti et al (2016) e
Batista (2018), o que fez com que, (o que para nós é) a crise fundamental do
capitalismo como forma social aparecesse para a própria sociedade como crise
econômica no Brasil, após 2012, 2013. Para Rezende, Rousseff teria de fato tentado,
mas em quantidades “insuficientes”. O Estado deveria ter promovido ainda mais
criação de capital fictício interna ao país para tentar reformar a economia brasileira.
Novamente aqui, em Rezende (2016), o distributivismo de crise proporcionado
pela bolha das commodities dos governos petistas de Lula e Rousseff aparece
positivado e idealizado, porém “insuficiente”, ou seja, deveria ser retomado e
aprofundado.
Apresentaremos que a partir da dessubstancialização do capital e da
determinação do capital fictício para a reprodução da sociedade capitalista em sua crise
fundamental, a inflação dos títulos de propriedade (KURZ, 2005) nos mercados de
comercialização de dinheiro (financeiros) passa a definir os preços das mercadorias a
nível mundial e a capacidade de investimentos de uma empresa e de consumo da
sociedade em geral. Enquanto tais preços estão altos, como é o caso de momentos de
bolhas de dívidas e financeiras, as empresas (e a sociedade em geral) podem adquirir
dívidas sobre tais preços, investir no desenvolvimento das forças produtivas e
aumentar a composição orgânica de seus capitais, os quais apenas podem simular
ficticiamente valorizar o valor enquanto tais preços continuam a subir e a realização
das mercadorias também é simulada por meio também do endividamento da
sociedade. No momento de alta da bolha o endividamento das empresas (e da
sociedade), medido em relação aos preços dos títulos de propriedade, parece
relativamente baixo e sua simulação de adimplência pode continua a ocorrer. Quando
a bolha financeira estoura e os preços dos títulos de propriedade declinam as empresas
não conseguem novos créditos para simular a realização de sua produção e pagamento
das dívidas anteriores, as famílias reduzem o consumo, o que aparece socialmente
como crise de subconsumo, embora isso seja apenas uma consequência do estouro da
bolha e não o cerne desta. Por um tempo, em razão do alto endividamento das
64
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

empresas, na verdade estas continuam a tentar expandir sua produção, mesmo em


condições financeiras “piores” do que as do momento anterior, o que continua a
inundar o mercado com mercadorias que não mais se realizam, agravando o fenômeno
de crise econômica. No caso do Brasil, isso ocorreu com a economia nacional como um
todo, já que a inflação de títulos de propriedade como as ações de empresas em bolsa
de valores, os preços das commodities, os preços do real e do dólar como derivativo
cambial e da dívida interna e taxa de juros brasileiras foram centrais para a simulação
de acumulação capitalista no Brasil e apareceram como crescimento econômico entre
2003/2004 e 2012/2013. Após a queda nos preços das commodities, em 2008 e de
forma mais aprofundada a partir de 2011 – o que apareceu como queda na taxa de
lucros – as empresas ainda continuaram tentando o desenvolvimento de suas forças
produtivas e o aumento da composição orgânica de seus capitais, que no momento de
auge da bolha haviam sido relativamente altos. Para o caso brasileiro, pudemos
verificar isso, por exemplo, na particularidade de setores como as agroindústrias de
cana-de-açúcar (PITTA, 2016 e 2018) e soja (PITTA, BOECHAT e MENDONÇA, 2017),
na indústria avícola (SILVA, 2013), na indústria do minério de ferro (MILANEZ, 2017),
petrolífera (ASEVEDO, 2017), automotiva (BARROS e PEDRO, 2011) e na construção
civil (BARAVELLI, 2014 e MARTINS, 2016).
Ao tratar do capital fictício como determinante para a simulação de acumulação
de capital no momento de sua crise fundamental, após a década de 1970, Kurz formula
assim a formação e o estouro das bolhas de dívida e financeira como inflação dos
títulos de propriedade negociados nos mercados financeiros (com centralidade deste
procedimento a partir dos anos 1990, ver abaixo), mas que de forma mediada se
relacionam também com a produção de mercadorias, na chamada “economia real”:

Os lucros realizados de períodos de produção anteriores — o novo capital


monetário — já não se encaminham para investimentos reais e
produtivos na perspectiva do capital mas, empurrados pela necessidade,
fluem cada vez mais para os mercados financeiros para aí,
aparentemente sem recurso a processos produtivos reais, continuarem a
valorizar‑se. O capital monetário sem utilidade é, então, emprestado pelo
sistema bancário aos participantes no mercado já na penúria, a troco de
juros cada vez mais elevados, o que adia a sua insolvência, e/ou investido
em títulos de propriedade nos mercados mobiliários ou imobiliários, o
que leva a um aumento dos preços. Os proprietários de títulos de dívida

65
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

e de propriedade em forma de papel podem “julgar‑se ricos”, o que, em


termos secundários, parece gerar produção e o respectivo escoamento,
mas sem a base de substância do valor real. Após um determinado
tempo, as bolhas da dívida e financeiras, insufladas e falhas de
substância, têm evidentemente de rebentar. Segue‑se, num segundo
plano, a desvalorização do capital financeiro sob a forma de uma crise da
dívida e de um crash nas bolsas, o que, por seu lado, se repercute sobre
os mercados de mercadorias e de trabalho, podendo fazer com que a
espiral descendente dê lugar à queda livre (KURZ, 2014, p. 291).

No item a seguir desejamos abordar, por meio de uma discussão com teóricos
vinculados ao marxismo tradicional, como historicamente o capitalismo atingiu o que
denominam momento de sua “financeirização”, a partir da década de 1970. Assim,
poderemos preparar, ao nível do capital global como totalidade, nossa formulação para
mediarmos o fenômeno econômico de bolha das commodities e crise brasileira recente
com a inserção do Brasil no que é apreendido por nós como crise do trabalho e
consequente crise fundamental do capital – baseado este na forma social do valor-
dissociação – e sua determinação da simulação de reprodução social (em crise) por
meio do capital fictício a partir dos anos 1970, como em Scholz (2009) e Kurz (2004 e
2014).

3- O capital a partir dos anos 1970, seu denominado processo de


“financeirização” pelas explicações marxistas tradicionais da crise de
2008 e a crítica radical destes em Kurz

Em geral, os principais interlocutores que selecionamos para a presente parte do


texto se filiam ao marxismo tradicional, baseado em uma ontologia do trabalho
(KURZ, 2004). Estando nestas formulações o trabalho naturalizado e não entendido
como determinado historicamente e passível de ser suplantado, como queremos aqui
defender, a “financeirização” é em geral formulada como momento recente da
reprodução ampliada (como valorização do valor) do capitalismo como um todo.
Nestas formulações, as crises do capitalismo são apreendidas como cíclicas, mudando
historicamente apenas as formas de exploração do trabalho (assalariado) – o qual, para
elas, sempre existiu e assim deveria continuar existindo – e de acumulação de capital,
que também parece ser capaz de fazê-lo continuadamente ao se recuperar de suas
crises.

66
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Uma leitura que questione tais asserções, inclusive a capacidade do capital


indefinidamente lograr valorizar o valor – para nós fetiche de capital – é inconcebível
de antemão nestas formulações, já que havendo desigualdade social e realização de
trabalho concreto sempre haveria trabalho sendo explorado possível de resultar em
reprodução ampliada do capital; e é no ponto de vista do trabalho que o marxismo
tradicional se baseia para levar a termo sua crítica do capitalismo como forma de
sociedade.
As formulações aqui a serem criticadas também tendem a se identificar com um
ponto de vista positivo em relação à própria teoria que interpreta e/ou analisa a
sociedade. Seu ponto de vista costuma se posicionar de forma exterior a um objeto a
ser analisado, o que é mais uma implicação de uma concepção baseada na positividade
do trabalho, no caso o do intelectual, o qual poderia decifrar a verdade da sociedade e
proferir linearmente o que deve ser feito para superá-la (PITTA, 2016). Tal posição em
relação à própria teoria, positivada, no caso, tem por base uma lógica dedutiva (KURZ,
2007 e SCHOLZ, 2009), aplicada a partir de uma formulação teórica já pronta e
estabelecida e que deve enquadrar os recentes desdobramentos da sociabilidade
capitalista nas velhas fórmulas de interpretação da mesma, mesmo tendo a sociedade
capitalista apresentado características não antes apreensíveis em conjunto, a partir de
fenômenos como o desemprego estrutural, a precarização global generalizada do
trabalho e o aprofundamento de processos de expropriações – os quais não parecem
ser suficientes para substancializar o alto endividamento também generalizado de
países, empresas e famílias –; a consequente decadência e a angústia das camadas
médias (SCHOLZ, 2008); as altas quantidades de títulos negociados nos mercados de
capitais, beirando os quatrilhões de dólares (TOOZE, 2018), completamente
desacoplados dos próprios valores do PIB mundial (mesmo que este último já não nos
diga muita coisa); as guerras espalhadas pelo mundo, como guerras civis, por
procuração, híbridas e a crise dos refugiados, entre outros fenômenos, para citarmos
apenas alguns indícios daquelas características. No mínimo tais indícios deveriam
fomentar que colocássemos em questão nossas prévias interpretações sobre a
sociedade na qual estamos sociabilizados, repensando a própria teoria, como em
Scholz (2009), entendida a forma social como totalidade concreta (MARX, 2008, p.
258).
67
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Temos, assim, por exemplo, as interpretações que defendem uma teoria do


subconsumo, como Bellamy Foster e Magdoff (2009), em The great financial crisis,
aplicando as precedentes teses acerca do “capital monopolista”, de Sweezy e Baran,
para apreenderem o movimento da “financeirização” recente do capitalismo (todos
vinculados ao periódico Monthly Review). Também François Chesnais (2016), ora
próximo ao reformismo distributivista das teses do capital monopolista, ora mais
recentemente próximo das teses que explicam as crises capitalistas por meio da
concepção de sobreacumulação, formula uma “dominância das finanças” para explicar
o período recente e a crise capitalista de 2008. O geógrafo David Harvey, em O enigma
do capital (2011), crítico do neoliberalismo como forma de acumulação da classe
capitalista, após os anos 1970, também oscila entre um luxemburguismo
subconsumista e um leninismo da sobreacumulação de capital para tentar explicar as
mudanças do capitalismo desde os anos 1970 e a crise de 2008. Passaremos
sinteticamente pelas sugestões interpretativas de tais autores. O último autor do
marxismo tradicional que abordaremos será Andrew Kliman (2012), em The failure of
capitalism, próximo ao periódico New Left Review, o qual baseia na queda tendencial
da taxa de lucro do capital suas explicações para a “financeirização” recente e a crise de
2008 do capitalismo20.
Por sua vez, o que importa para nós aqui enfaticamente destacarmos é que tais
abordagens não pretendem apenas ler a sociedade capitalista como uma objetividade a
partir da dedução de formulações já prontas e aplicáveis, mas estabelecer a saída para
o fenômeno de crise econômica atual do capital, seja por meio das velhas fórmulas
distributivistas e modernizadoras, buscando assim as causas da crise para depois
planejarem sobre estas; seja por meio da defesa da revolução socialista nos moldes da
estatização dos meios de produção e tomada de poder pelos representantes do
proletariado. Ou seja, estamos diante de anacrônicas formulações para novos

20 Vale a ressalva de que os mais desavisados aproximam as teses de Kliman (2012) às teses da crítica do
valor-dissociação, em razão de sua explicação para a crise capitalista da década de 1970 levantar a
hipótese de uma queda tendencial da taxa de lucro, assim como em Kurz (2005). Porém, Kliman se
baseia em uma ontologia do trabalho e não formula uma crise do mesmo como entrelaçada à crise do
capitalismo dos anos 1970, apresentando, assim, uma distância em relação à crítica do valor
simplesmente em seus aspectos mais fundamentais, no que diz respeito à formulação da forma da
mediação social, da forma de dominação desta, dos processos de crise e do próprio objeto da crítica
para suplantação do capitalismo, como veremos ainda neste item do texto.

68
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

desdobramentos da sociedade capitalista, os quais pretendemos apresentar como


momento de crise fundamental do cego processo de valorização do valor como fim em
si tautológico e que só pode ser suplantado se criticado negativamente como forma de
relação social objetivada (fantasmagoricamente, MARX, 1983), a qual adquiriu
características únicas como desdobramento histórico de sua contradição basilar e que
só pode ser assim apreendida a partir do questionamento das próprias fórmulas
teóricas anteriores quando colocadas em tensão com o próprio movimento da dinâmica
histórica de formação e crise das categorias da sociabilidade na qual se inserem, em um
procedimento crítico que Roswitha Scholz denominou por realismo dialético
(SCHOLZ, 2009).
Robert Kurz o levou adiante ao formular a crítica do valor como crítica do
marxismo tradicional do movimento operário e explicitar a crise do trabalho e seu
caráter histórico, apreensível por meio de sua superfluidade e expulsão dos processos
produtivos, com a terceira revolução industrial, a da automação robótica e
microeletrônica, a partir dos anos 1970 e 1980. Isso conduziu à sua crítica do marxismo
da luta de classes de defesa da possibilidade de superação do capitalismo com a
estatização dos meios de produção, por meio da crítica da própria experiência
revolucionária soviética (1999a), a qual, para Kurz, hipostasiou e repôs o trabalho e o
alçou a sujeito escolhido da transformação da sociedade, apesar de manter a mediação
social da mercadoria e do valor (dissociação) e apenas criticar o capitalismo do ponto
de vista da distribuição do valor socialmente produzido (com centralidade na
distribuição dos meios de produção) e não da forma social que determina a mercadoria
(e aqui temos o trabalho como mercadoria especial) como forma da riqueza e a
valorização do valor (e seu imperativo de modernização) como processo contraditório e
por isso destrutivo e negativo. E Roswitha Scholz, que ainda foi a fundo na própria
crítica do valor, submeteu esta a uma crítica ulterior de sua lógica dedutiva e
explicitou o caráter fragmentado da totalidade social, a partir da crítica da dissociação
entre o caráter masculino da produção de valor e o feminino de reprodução deste – o
qual fica apagado e de fora do próprio processo de valorização, sem deixar de ser parte
da sociabilidade capitalista – como base fundamental da contradição em processo
supra referida. Daí a formulação da sociedade capitalista como mediação social do
valor-dissociação.
69
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

A crítica do sujeito21, inclusive daquele que conhece (KURZ, 2007) – aqui


também como autocrítica por meio de uma teoria aberta que se volta sobre si mesma –,
o que subentende o reconhecimento da relação contraditória entre sujeito e objeto, é
fundamental na crítica negativa por meio da crítica da sociabilidade capitalista como
valor-dissociação, já que é apenas ao se atentar para sua determinação aos
desdobramentos desta forma social como contradição em processo que logramos
perceber nossa própria participação em sua dinâmica histórica como dominação social
da forma sobre os homens nela formados e podemos estabelecê-la como o próprio
objeto da crítica.
Voltemos assim ao assim chamado processo de “financeirização” do capitalismo,
reconhecido pelos autores que iremos aqui discutir como ocorrido a partir dos anos
1970 e responsável pela crise de 2008. Destacamos que os autores aqui selecionados a
serem criticados reconhecem uma mudança qualitativa no processo histórico do
capitalismo a partir dos anos 1970, a qual definirá suas explicações para a crise de
2008, apesar desta não permiti-los questionar seus pressupostos teóricos dos quais
partem para apreender certas características de tal processo, o que os leva apenas a
reafirmá-los. Tal mudança, por sua vez, é apreendida também como transformação no
papel que o capital portador de juros e que o capital fictício passam a ter para o
processo de reprodução social. Passaremos por tais autores destacando como
formularam tal transformação, o que nos permitirá alcançar suas explicações para a
crise de 2008, como apreendem a própria forma social capitalista e como apresentam
“soluções” para lidar com a mesma.

21 Na ontologia do trabalho do marxismo tradicional da luta de classes, o proletariado é tomado como


sujeito revolucionário, por ser o trabalho a única mercadoria capaz de valorizar o valor e por isso
aparece positivamente como portador da verdade. Desta perspectiva, a “retomada” do trabalhador do
fruto de seu trabalho, engendrando uma identidade sujeito-objeto a ser desejada e alcançável, acaba
por estabelecer o ponto de chegada de sua crítica social. Não se formula, porém, no marxismo
tradicional, quais condições sociais são estabelecidas pelas categorias capitalistas que determinam o
trabalho como produtor de valor (trabalho abstrato e concreto) e a mercadoria (valor e valor de uso)
como forma da riqueza na sociedade capitalista, que engendra uma dinâmica histórica negativa e
destrutiva ao colocar o valor como finalidade abstrata social, esteja ele nas mãos dos capitalistas, esteja
nas mãos dos trabalhadores. Vale, por exemplo, a remissão a Marx (1984c, L. III, Tomo I, Seção I, cap.
I: “Preço de custo e lucro”), em sua crítica à autogestão das fábricas (e dos bancos) pelos trabalhadores
idealizada pelo anarquista Proudhon. Em sua crítica, Marx explicita que, mesmo com o mais-valor
retornando às mãos dos trabalhadores, a dinâmica de acumulação e concorrência continuariam a
impor o aumento da composição orgânica dos capitais e a valorização do valor como fim abstrato
tautológico em si mesmo e continuariam a determinar a dinâmica história da sociedade, em um
processo de dominação da forma social sobre os homens. Ou seja, isso não suplantaria o capitalismo.

70
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Foster e Magdoff (2009) se baseiam em uma crítica do capitalismo por meio da


formulação de um “capital monopolista” a dominar os trabalhadores e a sociedade em
geral. Para eles, o boom fordista, pós II Guerra Mundial e seus processos de
acumulação teriam se baseado no controle oligopolista dos preços de mercado por
parte de trustes e cartéis em processo de globalização, os quais teriam engendrado
processos de valorização do valor e conduzido à exploração do trabalho a níveis
“insustentáveis” (isso já assim se delineava desde o pós crise de 1929, para eles). A crise
do capitalismo dos anos 1970, assim, teria se dado devido a um problema de
subconsumo da classe trabalhadora, em razão dos altos preços oligopolistas das
mercadorias e altos níveis de exploração do trabalho.
Para estes autores, a “financeirização” do capitalismo, apesar de representar
uma certa novidade do capitalismo após os anos 1970, não seria resultado, por sua vez,
de uma mudança qualitativa na forma de ser do “capital monopolista”, mas apenas
desdobramento deste; ou seja, o capital monopolista continuaria a ser a forma de
acumulação e reprodução da empresa capitalista e a “financeirização”, na verdade,
teria conduzido apenas ao aprofundamento de tal processo. Com esta, a possibilidade
de créditos para a produção e realização de mercadorias por meio da “financeirização”
da economia como um todo teria permitido a extensão da acumulação por mais algum
período de tempo e conduzido o problema do subconsumo a um novo patamar ainda
mais crítico. A crise de 2008 seria o clímax desta transformação apenas quantitativa do
capital monopolista em relação à sua fase anterior à crise de acumulação do final dos
anos 1960. “Financeirização” em tais autores é apenas entendida como uma
superestrutura que se sobrepõe ao nível do capital produtivo, de modo a aprofundar a
apropriação da produção de valor produzido pela classe trabalhadora, constituindo
uma “troca injusta” de mercadorias.
Vale a ressalva de que tais processos de “financeirização”, em Foster e Magdoff,
teriam sido levados a cabo pelas classes dominantes do capitalismo por meio de
desregulamentação dos mercados de capitais internacionais, que foi o que teria
constituído a possibilidade de criação de bolhas especulativas e conduzido ao
desacoplamento entre crescimento econômico (medido pelo PIB, para tais autores, o
que já criticamos anteriormente) e os mercados financeiros. A categoria marxista de
capital fictício, aqui, por sua vez, não é entendida como indício da inviabilidade da
71
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

valorização de valor por parte do capitalismo como totalidade (ou da classe capitalista,
para ficarmos com os autores), mas como prova da continuidade de sua reprodução
ampliada. No limite, o capital monopolista e sua “financeirização” recente
significariam a reprodução de um capitalismo estagnado, que apresentaria baixas taxas
de investimento produtivo em razão da crise de subconsumo que tal processo teria
constituído, o que acarretaria em altas taxas de desemprego e realimentação do
problema da estagnação:
Our argument in this book, derived from Magdoff and Sweezy in
particular, is that a realistic assessment of recent economic history is
best conducted within a framework that focuses on the interrelationship
between the stagnation tendency of monopoly capital and the forces that
to some extent counter it. The largest of the countervailing forces during
the last three decades is financialization – so much so that we can speak
today of “monopoly-finance capital”. The expansion of debt and
speculation that characterized the U. S. economy (and advanced
capitalism as a whole) since the late 1960s represented the main means
by which the system managed to avoid sinking into a deep slump, while
not enabling it to overcome the underlying stagnation tendency
(FOSTER & MAGDOFF, 2009, p. 19).

Para Foster e Magdoff (2009) o crescimento econômico não seria uma


característica intrínseca ao capitalismo, mas deveria ser estimulado por meio da
intervenção estatal, com controle de preços e da centralização e concentração dos
capitais, distribuição de riqueza socialmente produzida e regulação do rentismo. A
crise do capital de 2008 é abordada a partir do problema de quais seriam as suas
causas e de como solucioná-las. Novamente, aqui, conforme vimos defendido por
autores marxistas e keynesianos no que dizia respeito à economia brasileira e seu
recente fenômeno de crise econômica, é a ausência de desenvolvimento econômico que
explicaria a “financeirização” e sua crise de 2008, ou seja, agora no que diz respeito ao
capital a nível global:
The financial explosion in the U.S. and other advanced capitalist
economies since the 1960s, we argue, is symptomatic of the underlying
stagnation tendency that has its roots in the whole pattern of
accumulation under monopoly-finance capital. It is this and not the
financialization (or even today’s crisis of financialization) that is the real
problem (FOSTER & MAGDOFF, 2009, p. 20).

A concepção subconsumista apresentada é deduzida de uma concepção de


capitalismo como que caracterizado pelo livre mercado e pela propriedade privada dos

72
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

meios de produção, ou seja, a crítica de Foster e Magdoff (2009) se dirige à


irracionalidade dos mercados que conduziria à falta de produtividade do capital e à
instabilidade das bolhas financeiras caracterizadas como especulativas por eles. Os
autores engendram uma saída meramente distributivista e que centra no planejamento
estatal da economia capitalista a possibilidade de retomada econômica e
“reacoplamento” entre “financeirização” e PIB dos países. No limite, tais autores nem
almejam ou formulam uma superação das contradições basilares da sociedade
capitalista, mas apenas sua adequação ao postulado de uma economia racionalizada e
regulada pelo Estado planificador como forma de alcançar preços justos de mercado,
crescimento econômico e o fim da especulação financeira promotora de instabilidades
generalizadas. Os autores estão presos a um paradigma, para nós, fetichista, que
positiva a produção de mercadorias e levam a termo uma crítica meramente moral dos
mercados financeiros por serem especulativos. O pagamento do preço justo das
mercadorias, incluída aí a mercadoria força de trabalho e, assim, a exploração “justa”
da mais-valia (claro que os autores não explicitam tal passagem, mas isso pode por nós
aqui ser destacado), conduziria a uma sociedade (ainda capitalista para nós) estável e
desejável aos mesmos.
Tal defesa não reconhece que racionalidade empresarial e/ou estatal são partes
– enquanto forma de subjetivação – imanentes da própria forma social do valor-
dissociação em processo, que visa o fim abstrato negativo da valorização do valor, o
qual não pode ser controlado. A questão, para nós, não seria a de solucionar as crises
do capitalismo, por meio de sua racionalização e aumento de sua produtividade (“a fim
de atender os reais interesses da população, democraticamente e racionalmente
decididos”22), mas apreender criticamente a forma de relação social que aparece como
controle positivo dos homens sobre o produto de seus trabalhos – aparecimento que
paralisa a crítica na forma da distribuição destes – mas é o seu oposto, dominação
social por meio da própria objetificação social do homem como se capaz de controlar as

22 “Already peoples throughout the world have reached the conclusion that the only rational answer is to
replace the current rotten system with a more humane order geared to collective needs. For centuries
the friends and enemies of social progress have called this alternative of a people-directed economy
and society ‘socialism’” (FOSTER e MAGDOFF, 2009). Fica aqui questionado por nós o que os autores
entendem por tal sistema...

73
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

mercadorias que produz, para nós fetichismo da mercadoria desdobrado no próprio


fetichismo de sujeito.
A curta menção aqui a François Chesnais (2016) se deve à sua importância para
aqueles que discutem o processo de “financeirização” do capitalismo no Brasil. Além
disso, Chesnais, em seu livro Finance capital today (2016), elabora uma autocrítica
interessante acerca de suas formulações pretéritas, as quais o aproximava dos teóricos
do capital monopolista, como vimos acima, para então alcançar uma formulação de
dominância do que designa por “finanças”, de maneira a se aproximar então da
explicação de superacumulação de Harvey e posteriormente de uma queda tendencial
da taxa de lucro em Kliman, autores que discutiremos logo a seguir.
Nos anos 1990, Chesnais discutiu o que denominou “mundialização” e a
mediação do “capital finança”23 para o capitalismo pós-fordista dos anos 1980 em
diante. Para tal momento, o próprio Chesnais explicitou seu reformismo (2016) ao
apreender as transformações do capitalismo por meio de explicações centradas na
crítica da liberalização dos mercados e de sua desregulamentação por parte das
economias nacionais. Autodenominando-se um regulacionista para suas formulações
dos anos 1990 e início do século XXI, Chesnais (2016) via no avanço do
“neoliberalismo” o fim do pacto de classes do boom fordista, do Estado de Bem-Estar
Social e da estabilidade econômica baseada em crescimento e distribuição de riqueza.
Este é o paradigma que trazia como referência, o qual positiva processos de
modernização e está vinculado à defesa de um capital produtivo, os quais já criticamos
anteriormente. A “financeirização”, assim, teria sido a responsável pela
desestabilização de um capitalismo anterior desejável de ser recuperado, a qual teria
promovido o surgimento de uma economia de bolhas especulativas financeiras e
conduzido à migração de capitais do processo produtivo para as finanças.
Teóricos marxistas tradicionais da luta de classes no Brasil têm neste Chesnais
regulacionista discutido acima uma das principais referências acerca do processo de
“financeirização” do capital, como apresentamos em nossa crítica a Paulani (2017), que
defende um capital produtivo frente ao “capital finança”, o qual é responsabilizado
pelas crises econômicas do capital, em razão de seu caráter especulativo e diversionista

23 Chesnais destacou: “Where I use the term finance capital, the editors of Monthly Review use broadly
that of ‘monopoly capital’” (CHESNAIS, 2016, pg. 6, nota 24).

74
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

da produção. Ou seja, para tais interpretações, as finanças, ao se apropriarem da mais-


valia produzida pelo todo da sociedade capitalista, por meio do capital a juros e fictício,
seria o lócus da acumulação de capital, que continuaria a ocorrer até hoje, em
detrimento da produção de mercadorias, o que conduziria a crises econômicas, não
sendo a mediação da mercadoria e a ontologia do trabalho aí criticados em suas
contradições e como fundamento da sociabilidade capitalista.
Após a crise de 2008, porém, Chesnais se aproximou, em um primeiro
momento, das teorias que explicam as transformações apresentadas pela sociedade
capitalista a partir dos anos 1970 por meio da referência às teses da superacumulação
de capital. A apresentação e crítica a esta formulação será por nós tematizada abaixo,
por meio da discussão com David Harvey. Já em Finance capital today, Chesnais
(2016) moveu então uma autocrítica ao seu regulacionismo reformista – que deveria
ser considerada por todos aqueles que desta formulação se apropriaram e continuam a
fazê-lo – ao exprimir a formulação de Kliman24 (e mais alguns outros autores) acerca
de uma queda tendencial da taxa de lucro a ter movido a “financeirização” do capital,
após os anos 1970, se aproximando de interpretações que visam explicitar o caráter
imanentemente contraditório da formação social capitalista, o qual conduziria a suas
crises. A crítica a Kliman também será endereçada por nós adiante. Ambas as críticas
caberão, também, às mudanças nas formulações de Chesnais.
David Harvey25, em O enigma do capital, por sua vez, é o autor que
selecionamos como representante do marxismo tradicional e da luta de classes a tratar
da “financeirização” do capital e da crise de 2008. Em Harvey, a principal
transformação do capitalismo a partir dos anos 1970 foi o chamado “neoliberalismo”,
entendido por ele como recente regime de acumulação de capital, baseado na
“acumulação por despossessão” e caracterizado tanto pela flexibilização do mercado de

24 “Williams and Kliman have vigorously challenged the position held by several heterodox and some
Marxist economists that the cause of the fall in the rate of capital accumulation is due to the diversion
of profits from productive investment towards financial uses”. (…)
“Williams and Kliman argue, on the basis of sophisticated statistical data, that the fall in the rate of
accumulation (i.e. the growth rate of accumulated productive investment) over the postwar period as a
whole was, on the contrary, due entirely to the fall in corporations’ rate of profit. Firms did not slow
down their investments for lack of funds, which were available on the financial markets, nor because of
the shift in the distribution of profits between retained profits and dividends, but because the rate of
profit fell and so profitable investments declined” (CHESNAIS, 2016, pg. 17).
25 Para uma crítica detalhada da concepção de Harvey de “financeirização” e crise do capitalismo e sua

crise de 2008, ver Pitta (2016).

75
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

trabalho, o que teria aumentado a exploração do trabalhador, como pela


desregulamentação dos mercados, o que, consequentemente, teria permitido a
“financeirização” da economia.
Será que a crise sinaliza, por exemplo, o fim do neoliberalismo de livre-
mercado como modelo econômico dominante de desenvolvimento
capitalista? A resposta depende do que entendemos com a palavra
neoliberalismo. Minha opinião é que se refere a um projeto de classe que
surgiu na crise dos anos 1970. Mascarada por muita retórica sobre
liberdade individual, autonomia, responsabilidade pessoal e as virtudes
da privatização, livre-mercado e livre-comércio, legitimou políticas
draconianas destinadas a restaurar e consolidar o poder da classe
capitalista (HARVEY, 2011, p. 16).

Em Harvey o “neoliberalismo” como forma de acumulação de capital nas mãos


da classe capitalista é desdobramento do boom fordista, que teria distribuído riqueza
para os trabalhadores, verdadeiros produtores da riqueza social no capitalismo, mas
que teria sido desmantelado pela classe capitalista a fim de lograr continuar seu
processo de acumulação, que teria chegado a um limite em razão de sua
superacumulação de capital até os anos 1970. Processos que combinavam
superexploração [Überausbeutung] do trabalho, reposição de processos de acumulação
primitiva mesmo no centro do capitalismo (denominados por Harvey “acumulação por
despossessão”) e “financeirização”26 – a qual permitia, por meio do endividamento de
empresas e trabalhadores, estender ainda mais a acumulação de capital, inclusive via
capital fictício – teriam conduzido a superacumulação de capital a um recente limite, o
qual a crise de 2008 representaria:
A lacuna entre o que o trabalho estava ganhando e o que ele poderia
gastar foi preenchida pelo crescimento da indústria de cartões de crédito
e aumento do endividamento [...]. As dívidas familiares dispararam, o
que demandou o apoio e a promoção de instituições financeiras às
dívidas de trabalhadores, cujos rendimentos não estavam aumentando.
Isso começou com a população constantemente empregada, mas no fim
da década de 1990 tinha de ir mais longe, pois esse mercado havia se
esgotado. O mercado teve de ser estendido para aqueles com
rendimentos mais baixos. [...] As instituições financeiras, inundadas com
crédito, começaram a financiar a renda de pessoas que não tinham renda

26 “Acima de tudo, uma nova arquitetura financeira global foi criada para facilitar a circulação do fluxo
internacional de capital-dinheiro líquido, para onde fosse usado de modo mais rentável. A
desregulamentação das finanças, que começou no fim dos anos 1970, acelerou-se depois de 1986 e
tornou-se irrefreável na década de 1990. A disponibilidade do trabalho não é mais problema para o
capital, e não tem sido pelos últimos 25 anos. Mas o trabalho desempoderado significa baixos salários,
e os trabalhadores pobres não constituem um mercado vibrante” (HARVEY, 2011, p. 22).

76
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

constante. Se isso não tivesse acontecido, então quem teria comprado


todas as novas casas e condomínios que os promotores de imóveis com
financiamento estavam construindo? O problema da demanda foi
temporariamente superado, no que diz respeito à habitação, pelo
financiamento da dívida dos empreendedores, assim como dos
compradores. As instituições financeiras controlavam coletivamente
tanto a oferta quanto a demanda por habitação! (HARVEY, 2011, p. 22).

A visão sinóptica da crise atual diria: embora o epicentro se encontre nas


tecnologias e formas de organização do sistema de crédito e do nexo
Estado-finanças, a questão subjacente é o empoderamento capitalista
excessivo em relação ao trabalho e à consequente repressão salarial,
levando a problemas de demanda efetiva acentuados por um
consumismo alimentado pelo crédito em excesso em uma parte do
mundo e por uma expansão muito rápida da produção em novas linhas
de produtos na outra parte (HARVEY, 2011, p. 100).

Harvey, como marxista tradicional da luta de classes, parte de uma formulação


de que trabalho é ontológico ao homem, como forma de mediação com a natureza, a
fim de produzir valores de uso para satisfazer necessidades humanas. Assim, não há o
endereçamento de uma crítica do trabalho, nem consequentemente do valor, já que
este é a forma social do trabalho no capitalismo e deveria ser restituído ao trabalhador
ao invés de apropriado pela classe capitalista por meio da exploração daquele, o que
para ele superaria o capitalismo, do que discordamos. Sua crítica incide, assim, na
apropriação do fruto do trabalho do trabalhador pelo capitalista, que assim se
beneficiaria socialmente, ao acessar mercadorias em detrimento da maioria da
população. Não está em questão, em Harvey, nenhuma crítica da forma da riqueza
social como fetichismo da mercadoria, nem da dissociação do valor como momento
fundamental da totalidade fragmentada capitalista.
A questão se coloca na positivação, novamente, da produção de mercadorias, e a
crítica se estabelece, em Harvey, em relação à sua distribuição na sociedade. Até
mesmo por isso a causa da crise, para ele, estaria na superacumulação de capitais e na
inviabilidade de continuar a ocorrer em razão da profunda desigualdade social por esta
criada. Não há a possibilidade do autor vislumbrar o caráter fantasmático da produção
de mercadorias (MARX, 1983), estando para ele o trabalho e seus produtos
positivamente identificados e o valor contido na materialidade da própria mercadoria.
No limite, a crítica endereçada por Harvey ao capitalismo está limitada a uma crítica da
alienação do produto do trabalho.

77
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

O capitalismo tem sobrevivido até agora apesar de muitas previsões


sobre sua morte iminente. Esse êxito sugere que tem fluidez e
flexibilidade suficientes para superar todos os limites, ainda que não,
como a história das crises periódicas também demonstra, sem violentas
correções. Marx [...] contrasta o ilimitado potencial de acumulação
monetária, por um lado, com os aspectos potencialmente limitadores da
atividade material (produção, troca e consumo de mercadorias), por
outro. O capital não consegue tolerar tais limites, ele sugere. ‘Cada limite
aparece’, observa, ‘como uma barreira a ser superada’. Há, portanto,
dentro da geografia histórica do capitalismo, uma luta perpétua para
converter limites aparentemente absolutos em barreiras que possam ser
transcendidas ou contornadas (HARVEY, 2011, p. 46).

Conforme concepção de trabalho ontológico em Harvey, sempre que há


produção de mercadorias há trabalho sendo explorado e possibilidade de acumulação
de capital, já que trabalho e materialidade se identificam, ao invés de formarem uma
contradição sujeito-objeto, constituídos fetichistamente como tais no próprio
capitalismo, como em Adorno (1995) e Kurz (2007). As crises do capitalismo seriam,
assim, cíclicas, um desacoplamento entre dinheiro, como representação do valor, e
valor, para Harvey, contido na materialidade das mercadorias. Consequentemente, o
reacoplamento entre dinheiro como “representação” e “materialidade” como
“realidade” sempre voltaria a ocorrer.
Cabe uma remissão aqui à ideia de produção capitalista do espaço (HARVEY,
2011) – cara à Geografia, disciplina na qual o marxismo de Harvey se encaixa – como
forma da tentativa do capitalismo se recuperar de suas crises sempre cíclicas. A partir
das concepções do filósofo Henri Lefebvre, Harvey formula que o espaço, no
capitalismo, é produzido como uma mercadoria e tal produção teria o papel de acelerar
a produção e circulação de capital e valorizar o valor. A externalização de capitais e a
reposição da acumulação primitiva (que Harvey denomina “acumulação por
despossessão”), dada uma crise de acumulação de capital em razão da sua
superacumulação em um determinado lugar, seria uma forma de contornar a própria
crise de acumulação, retomando a produção de valor, que sempre acabaria por ocorrer.
Isso inclusive no que diz respeito ao próprio espaço como forma de ser da abstração
real, valor que se materializa e permite a eterna continuidade da possibilidade de
acumulação de capital e da luta de classes como cerne do que se entende por
contradição no capitalismo.

78
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Em Harvey (2011), assim, não há a possibilidade de uma produção capitalista


que passe por uma crise do próprio valor, ou algo como uma dessubstancialização da
produção capitalista e do próprio trabalho, o que, como apresentaremos, permitirá que
leiamos a produção de mercadorias com cada vez menos valor, desde os anos 1970 e de
onde explicitaremos a inviabilidade da continuidade da valorização do valor, e da
idealização de uma relação identitária e positiva entre trabalho e mercadorias por este
produzida ou uma identidade sujeito-objeto. O caráter historicamente determinado do
próprio trabalho poderá, então, por nós ser formulado e a crítica do trabalho e do
valor-dissociação estará historicamente embasada.
Para encerrarmos nossa apresentação crítica de Harvey, cabe aqui explicitarmos
o que o mesmo visaria como ponto de chegada desejável para a apreensão que faz da
sociedade capitalista. Crítico que é da alienação do trabalho, da irracionalidade dos
mercados e suas crises, constituídos pela propriedade privada dos meios de produção,
Harvey apresenta, no limite, a necessidade de superação da contradição capital –
trabalho da condição de classes do capitalismo por meio da estatização dos meios de
produção e gestão desta produção mesma pelos trabalhadores a fim de realizarem a
identidade sujeito-objeto e satisfazerem suas “verdadeiras necessidades” por meio das
mercadorias a serem socialmente produzidas. O paradigma da produção de
mercadorias e, consequentemente, o de modernização como progresso, não está em
Harvey (2011) tematizado como passível de crítica desde que fique nas mãos dos
trabalhadores e realize sua verdade identitária na revolução socialista, a ser alcançada
pelo proletariado como sujeito da história. Fetichismo da mercadoria e de capital e sua
consequente ontologia do trabalho não são formulados, já que Harvey, ao assumir estes
como verdade social, fundamenta então o (seu) próprio papel de sujeito teórico capaz
de desvelar a verdade e, de forma exterior, poder ditar o caminho correto que os
sujeitos devem percorrer para a suplantação da sociabilidade capitalista, o que delimita
o alcance de sua própria crítica. Tal ponto de partida pressuposto por Harvey o impede
de vislumbrar por meio de um ponto de vista de totalidade concreta da contradição em
processo do capital a necessidade de tensionar com a dedução teórica que dá base para
sua leitura do que trata como objeto a ser analisado. No limite, para nós, ao abstrair
aspectos cruciais dos desdobramentos recentes do realismo dialético (SCHOLZ, 2009)
do valor-dissociação como totalidade concreta fragmentada, Harvey acaba por
79
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

hipostasiar fundamentos da sociabilidade capitalista, o que o leva a repor no


pensamento a reprodução de categorias basilares desta sociabilidade mesma como o
trabalho, o fetichismo da mercadoria e de capital, o fetichismo de sujeito, o que
pressupõe a dinâmica histórica destrutiva de dominação da contradição em processo
da valorização do valor e da dissociação, já que não almeja sua suplantação enquanto
forma da relação social constituída pela própria humanidade, mas que passa às nossas
costas e nos domina.
Chegamos a Andrew Kliman e seu The failure of capitalist production (2011). O
nosso interesse no autor se fundamenta em dois pontos principais. Primeiramente,
Kliman tenta se distanciar das formulações expostas acima, ressaltando que, ao
apreenderem de maneira equivocada as causas subjacentes da crise do capitalismo de
2008, não a formularam como imanente ao que denomina “sistema de produção
capitalista” baseado na contradição capital x trabalho, que tem por finalidade a
expansão da riqueza abstrata na forma do valor a beneficiar a classe capitalista,
contradição que se desdobraria para ele na queda tendencial da taxa de lucro como
critério do investimento capitalista e determinação da dinâmica histórica de tal
sistema. A queda da taxa de lucro seria a causa subjacente (underlying cause) das
crises cíclicas do capitalismo e aqui está nosso segundo ponto de interesse em suas
formulações.
Kliman, ao se posicionar em relação à “financeirização” do capitalismo desde os
anos 1970, sugere que:
The conventional wisdom implies that the latest economic crisis was an
irreducibly financial one. Of course, a financial crisis triggered the
recession, and phenomena specific to the financial sector (excessive
leverage, risky mortgage lending, and so on) were among its important
causes. But what I mean by “irreducibly financial” is that conventional
wisdom on the left holds that the recent crisis and slump are ultimately
rooted in the financialization of capitalism and macroeconomic
difficulties resulting from financialization.
The political implications of this controversy are profound. If the long-
term causes of the crisis and recession are irreducibly financial, we can
prevent the recurrence of such crises by doing away with neoliberalism
and “financialized capitalism”. It is unnecessary to do away with the
capitalist system of production—that is, production driven by the aim of
ceaselessly expanding “value”, or abstract wealth. Thus, what the crisis
has put on the agenda is the need for policies such as financial
regulation, activist (“Keynesian”) fiscal and monetary policies, and

80
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

perhaps financial-sector nationalization, rather than a change in the


character of the socioeconomic system. (KLIMAN, 2012, p. 6-7).

O autor, desta forma, almeja um distanciamento entre as formulações de Foster


e Magdoff (2009) e Harvey (2011), para quem as explicações destes para a
“financeirização” do capitalismo e sua crise de 2008 seriam estritamente reformistas e
não implicariam na necessidade de crítica do capitalismo como “sistema de produção”.
A regulação da “financeirização”, do subconsumo e da superacumulação das classes
capitalistas conduziriam à reprodução estável do “sistema”, segundo a leitura que
Kliman faz dos autores que analisamos anteriormente. Para acompanharmos sua
explicação, teremos que avançar em como Kliman analisa a queda tendencial da taxa
de lucro como causa subjacente para a “financeirização” do capitalismo e sua crise de
2008 e o que vislumbra como cerne da sociabilidade capitalista, a qual almejaria
superar.
Kliman se formula e se posiciona como um “socialista radical”, a superação das
crises do capitalismo estaria em sua suplantação e para tanto, há a necessidade de
formulação e transformação das condições sociais que fundamentam a acumulação de
capital como finalidade desta forma de sociedade. Kliman então explica a crise
capitalista da década de 1970 como causada por uma queda tendencial da taxa de lucro
que não teria sido superada desde então, já que o processo de “financeirização” do
capitalismo não teria permitido a destruição de capitais e a possibilidade de
reacoplamento entre capital constante, trabalho morto a ser valorizado e o capital
variável, trabalho vivo – contido para ele na corporeidade das mercadorias –, capaz de
valorizar o valor. Assim, a crise de 2008, como desacoplamento entre mercados
financeiros e valorização do valor é entendida como momento importante das causas
de tal crise do capitalismo, porém, não sua causa subjacente. Estaestariananão
“retomada” (“rebound”) da taxa de lucro, conduzindo o capitalismo a uma
“estagnaçãorelativa” (“relative stagnation”), desdeentão (KLIMAN, 2012, p. 9): “I offer
an explanation of why the recovery was incomplete: the amount of capital value
destroyed during the mid-1970s and early 1980s was not enough to restore the rate of
profit and thereby allow productive investment to proceed at a healthy pace” (Kliman,
2012, p. 13). Tal estagnação teria sido perpetuada pelo advento da “financeirização” e
pela economia baseada na criação de cadeias de dívida, capital fictício e bolhas

81
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

financeiras. Este o papel da “financeirização” para ele: perpetuação da queda da taxa de


lucro e da estagnação subjacente (underlying) do capitalismo, desde os anos 1970.
Como já adiantamos, leitores mais desavisados aproximam Kliman (2012) de
Robert Kurz, em razão do entendimento de que ambos estariam explicitando uma
continuidade secular da queda da taxa de lucro do capital, o que teria conduzido à
“financeirização” do capitalismo e ao estouro da bolha imobiliária de 2008. Aqui em
nosso texto, assim, desejamos explicitar diferenças cruciais e fundamentais entre
ambos os autores, o que ficará mais claro posteriormente ao apresentarmos, então, as
críticas de Robert Kurz ao marxismo tradicional da ontologia do trabalho e a sua
concepção de crise, nos quais Kliman também se enquadra. Isso porque segundo
Kliman:
The more sophisticated and widespread credit markets are, the greater is
the degree to which such “forced expansion” (…) can take place – but
also the greater the degree of ultimate contraction when the law of value
eventually makes its presence felt. It is like a rubber band stretching and
snapping back (Kliman, 2012, p. 14).

Os termos aqui utilizados por Kliman não são casuais. Para ele, não há uma
dinâmica histórica irreversível de desdobramento da contradição imanente à forma
social capitalista. A queda tendencial da taxa de lucro implica, em Kliman, uma
redução apenas relativa do trabalho a ser explorado frente ao acúmulo de trabalho
morto a ser por aquele valorizado. Ou seja, o aumento da composição orgânica do
capital em Kliman é sempre apenas relativo. Desta forma, Kliman está aqui mais
próximo de Harvey do que gostaria de imaginar. Naquele, assim como neste, o trabalho
é ontológico e por isso Kliman não pode vislumbrar um processo de
dessubstancialização do próprio valor, em razão da diminuição do próprio trabalho
vivo produtivo capitalista que apresentaremos a seguir, isso para ele é inconcebível. Ou
seja, havendo produção crescente de mercadorias, em Kliman, haveria sempre
crescente produção de valor a partir da exploração do trabalho, sendo a exploração o
cerne de sua crítica. A partir de sua formulação, para nós insuficiente, apesar da
produção crescente de materialidade de mercadoria que (dedutivamente) para ele

82
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

corresponderia a uma produção crescente de valor – que estaria contido27 naquela –, o


valor decresceria apenas relativamente em relação ao montante de trabalho acumulado
em trabalho morto na totalidade do sistema capitalista e a ser valorizado. O estouro das
bolhas financeiras com a destruição de capitais (trabalho morto) permitiria, para
Kliman, o reacoplamento e a retomada da acumulação de capital, inclusive o fim da
estagnação relativa do capital desde os anos 1970. Kliman chega a reivindicar uma “lei
do valor”, quando sabemos que Marx teria formulado uma crítica da economia
política, que, conforme a crítica do capitalismo que queremos apresentar, pode ser
apreendida como uma crítica do próprio valor, em razão de seu caráter historicamente
determinado, o que nos permite também apreender o caráter historicamente
determinado do próprio trabalho.
Em Kliman, no limite, a superação do “sistema capitalista de produção”
conduziria a algo muito próximo do que apresentamos em Harvey, estatização dos
meios de produção e condução da economia por um Estado nas mãos dos
trabalhadores, o que deveria, por meio da produção de mercadorias, restituir a estes o
fruto de seu trabalho a fim de atender às suas “verdadeiras necessidades”. Este seria
seu ideal de revolução em oposição ao regulacionismo que o mesmo criticou
anteriormente.
Capitalismo é, em Kliman (2012), definido então como uma forma da exploração
do trabalho, mediação social como dominação de uma classe sobre a outra a fim de se
“beneficiar” por meio do acesso aos produtos do trabalho de outrem, caracterizada por
meio da propriedade privada dos meios de produção e do mercado, a qual engendra
crises cíclicas na sua finalidade social de acumulação de riqueza abstrata. Fetichismo
27 Não há menção à concepção central de fantasmagoria de Marx (1983) em nenhum dos autores aqui
abordados, nem naqueles que tematizamos ao tratarmos do fenômeno de crise econômica brasileira,
nem nos que buscam apreender a forma de reprodução do capital em sua totalidade no presente item
de nosso texto. Tal categoria de análise é central em Marx, já aparece logo no primeiro capítulo de O
capital (1983) e permite ele desdobrar que valor não está contido na materialidade da mercadoria,
mas necessita da sua corporeidade para aparecer socialmente. É em razão de tal forma de
aparecimento que o que é uma contradição basilar, a contradição trabalho abstrato x trabalho concreto
ou valor x valor de uso é subjetivada socialmente como identidade sujeito-objeto e é de onde advém,
então, a crítica de Marx ao fetichismo da mercadoria. Apenas ao nos remetermos a tal formulação
radical e negativa de Marx acerca dos fundamentos da sociabilidade capitalista é que podemos
apreender o presente estágio deste como apresentando produção crescente de mercadorias e produção
decrescente de valor (no que diz respeito ao trabalho produtivo nos termos marxianos do mesmo),
conduzindo ao limite o que a mobilização da categoria de fantasmagoria da abstração real capitalista
de Marx nos permite formular. Ver tal tematização em Claus Peter Ortlieb, Uma contradição entre
matéria e forma (2009).

83
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

da mercadoria, de capital, ontologia do trabalho e fetichismo de sujeito, inclusive do


sujeito teórico que formula acerca do verdadeiro sujeito revolucionário a se realizar na
identidade do trabalho com seus objetos, identidade sujeito-objeto, o que é em Kliman
almejado, não são tematizados como próprios à forma de relação social que o autor
pretende criticar. Para nós, tal formulação de Kliman é hipostasia das abstrações
modernas e forma de consciência da própria coisificação da forma social na abstração
trabalho como naturalização de algo que aparece fetichistamente como uma
capacidade humana em geral (sans phrase) dos homens se realizarem por meio das
coisas, a qual, para nós, deve ser criticada em seu caráter historicamente determinado,
dominação social da contradição em processo da relação social baseada no valor-
dissociação que é, como apresentaremos agora por meio da concepção de Robert Kurz
acerca do capitalismo como “sistema do patriarcado produtor de mercadorias” e seus
desdobramentos recentes após o boom fordista e a sua crise fundamental a partir da
década de 1970.
Em Robert Kurz, o que apareceu até aqui na formulação dos autores
apresentados como momento de acumulação de capital a partir de seu processo de
“financeirização”, após a década de 1970, não é apreendido como nova forma de
valorização do valor. Para ele, estamos diante da crise fundamental do capitalismo
como forma de sociabilidade, expressa na crise historicamente determinada da sua
substância social (negativa), o trabalho. Para entendermos tal ruptura, necessitaremos
retomar alguns termos até aqui discutidos ao apresentarmos criticamente nossos
interlocutores acima28.
Kurz estaria de acordo que a centralidade que os mercados de capitais passam a
ter para a reprodução (em crise) da empresa capitalista, com determinação do capital
fictício neste processo, é fundamental de ser apresentada para entendermos a
sociabilidade capitalista hodierna, em sua crise fundamental a partir dos anos 1970.
Porém, a partir dos indícios fenomênicos de tal crise já anteriormente apresentados –
como o desemprego estrutural e a precarização do trabalho; a decadência das camadas
médias; a explosão dos preços dos derivativos negociados nos mercados financeiros e o

28 Ainda é relevante a crítica que Thomas Meyer (2019) veicula contra a formulação de crítica do valor
por Ernst Lohoff, do Grupo Krisis, para tratar do momento capitalista a partir dos anos 1970.
Sugerimos aqui que os interessados se dirijam a tal texto.

84
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

alto endividamento generalizado da sociedade, concomitante a seu asselvajamento –


Kurz passa a tensionar, já nos anos 1980, com o paradigma teórico de crítica do
capitalismo a partir do ponto de vista do trabalho, que almejava a distribuição dos
meios de produção e a realização de uma identidade sujeito-objeto, do qual ele também
partia anteriormente. Ao revisitar Marx, Kurz (1999a) passa a dar ênfase à
determinação da forma mercadoria de mediação social (a qual inclui os momentos da
metamorfose do valor como totalidade: produção, troca e consumo de mercadorias),
como relação entre os homens por meio das coisas, e à crítica do fetichismo da
mercadoria como central para a crítica radical do capitalismo, formulação que não teria
sido tematizada e por isso teria permanecido neutralizada no marxismo tradicional e
nas tentativas históricas práticas de superação do capitalismo no século XX, as quais
acabaram por reproduzir as bases desta forma social mesma, garantindo assim sua
continuidade.
Segundo sua formulação crítica, a dinâmica da unidade contraditória da forma
elementar da mercadoria impeliria os sujeitos (constituídos nesta generalidade apenas
nesta forma social) sujeitados a ela a concorrerem entre si pelos postos de trabalho ou
para produzirem mercadorias no tempo médio socialmente necessário, como mônadas
socializadas (KURZ, 1999a). O que aparece fetichistamente a tais sujeitos sujeitados
como seu controle acerca do processo social é uma compulsão do fim em si abstrato da
valorização do valor que engendra então a dinâmica histórica da contradição em
processo que se desdobra e nunca se repete. Estamos diante de uma forma de
dominação da abstração social que se realiza, tempo de trabalho que aparece por meio
da corporeidade das mercadorias, apagando suas qualidades sensíveis para compará-
las, caráter imanentemente destrutivo desta dinâmica mesma. Tal possibilidade de
equiparação por meio da abstração real já contém logicamente em si a mais-valia (ou
seja, a exploração do trabalho, a desigualdade social e seu asselvajamento) enquanto
diferença do tempo de trabalho socialmente necessário para se produzir uma
mercadoria e o tempo socialmente necessário para se produzir a mercadoria força de
trabalho, o salário. A mediação social da mercadoria carrega em si o trabalho como
substância do capital e aquela compulsão social negativa da tautologia aparentemente
sem fim da valorização do valor.

85
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Como o quantum de energia gasta no processo do seu dispêndio


não pode ser realmente separado da forma ou determinação
concreta desse mesmo dispêndio, e como, tratando-se de um
dispêndio definitivamente passado, não pode literalmente estar
"contido" nos objectos, a forma social de representação é de facto
neste aspecto irreal em duplo sentido. Mesmo assim, esse
quantum de energia teve de ser despendido realmente no
passado, pelo que, por outro lado, representa uma substância
física real (se bem que "representada" de modo paradoxal). A
forma da representação desta substância real, porém, nada tem
em si de físico, sendo antes uma abstracção real, um modo de
percepção e de acção socialmente constituído, em que as
substâncias naturais e os bens produzidos são realmente tratados
como se fossem objectos físicos de pura representação de
processos de combustão passados em corpos humanos.
O trabalho abstracto é por isso um determinado estado de
agregação da idealidade da forma moderna fetichista, que no
entanto não deixa de fazer referência a um quantum energético de
força de trabalho realmente despendida, ou seja, a um conteúdo
material quantificável (não em relação à mercadoria individual,
mas à média social das mercadorias). Este conteúdo, no entanto,
como abstracção é "fantasmático", não só enquanto resultado da
objectividade do valor, mas já no próprio processo do dispêndio,
ou seja, em termos práticos, como definição de uma massa de
dispêndio de nervo, músculo e cérebro separada da sua forma
material. Proceder-se a determinadas transformações de
materiais naturais com base na determinação essencial
apriorística de que aqui são despendidos quanta de energia
humana abstracta sem olhar à forma concreta do seu dispêndio -
tal determinação é substancial num sentido material, que não é
um sentido natural, mas sim social, e que não é trans-histórico,
mas sim historicamente específico na constituição do fetiche
moderno (KURZ, 2004).

Desta forma, conforme já apresentamos anteriormente ao criticar os autores


afeitos à apologia do trabalho, destacamos o conteúdo abstrato deste como
fantasmagoria, já que seu dispêndio calculado em tempo não está contido na
corporeidade dos valores de uso que o representam, e assim formulamos que uma
suposta identidade sujeito-objeto não se sustenta a partir de um ponto de vista crítico a
apreender o valor como substância negativa do capital (KURZ, 2004). Apresenta-se
para Kurz, assim, a possibilidade teórica de crítica do trabalho, do qual a reiterada
concepção do mesmo como ontológico pelo marxismo tradicional passa a ser
necessária de ser superada.

86
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Para tanto, Kurz formula o caráter historicamente determinado da abstração


real do trabalho que se materializa por meio das coisas, forma mercadoria, enquanto
processo de valorização do valor. Neste sentido, a possibilidade da generalidade
trabalho, em Kurz (2014), apenas ocorre enquanto processo de formação das
categorias do capital (capital, terra e trabalho) na ruptura da passagem do feudalismo
para o capitalismo, a partir da concorrência militar entre os feudos e do
desenvolvimento das forças destrutivas como processo concorrencial que se dá às
costas dos sujeitos que se formam historicamente enquanto tais. A imposição do
trabalho a permitir a acumulação de capital nas mãos dos Estados absolutistas em
guerra é que engendra a valorização do valor como finalidade social tautológica da
acumulação capitalista, a qual quem não acompanha está excluído e no limite morto. A
vida é, assim, o próprio limite.
Ainda com Kurz, a partir das revoluções burguesas, a igualdade jurídica da
forma abstrata do sujeito se impõe socialmente, porém, apenas será alcançada pela
classe trabalhadora a receber efetivamente o que vale enquanto mercadoria força de
trabalho (tempo de trabalho socialmente necessário para produzi-la) a partir das
revoluções socialistas e do boom fordista. A predominância da mais-valia absoluta até
o início do século XX é o determinante, então, da acumulação de capital e da
valorização do valor, e as crises desta é que impõem a constituição de novas formas de
exploração do trabalho. Isso porque o impulso impessoal da concorrência a mover o
desenvolvimento das forças produtivas desdobra aquela contradição basilar da
totalidade (fragmentada) social entre trabalho abstrato e concreto / valor e valor de uso
da mercadoria na contradição entre o montante de capital a se valorizar (corporificado
no dinheiro e na maquinaria, trabalho morto) e trabalho vivo a ser explorado
(mercadoria capaz de valorizar o valor), tornando cada vez mais difícil de a valorização
do valor ocorrer, o que Marx denominou aumento da composição orgânica dos capitais
e sua consequente queda tendencial da taxa de lucro (MARX, 1984c). Tal contradição
engendrava os momentos de paralisação relativa da produção de mercadorias e
apareciam como crises econômicas recorrentes, porém, destacamos, que nunca se
repetiam nos mesmos termos em relação à contradição inerente à composição orgânica
do capital, que só poderia se aprofundar:

87
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Assim, cada um dos elementos que se opõem à repetição das


velhas crises traz dentro de si o germe de uma crise futura muito
mais violenta (MARX, 1985, L. III, t. II, p. 28, nota 8, comentário
de Friedrich Engels).

A possibilidade da mais-valia relativa como central para a acumulação de capital


a partir da década de 30 do século XX, com expansão da linha de montagem fordista,
teria, conforme Kurz (2019), funcionado como uma contratendência à queda
tendencial da taxa de lucro, a partir da crise de 1929, ao incorporar trabalhadores ao
processo produtivo com a exportação de capitais e a possibilidade de, ao reduzir o valor
por unidade de mercadoria, permitir que a classe trabalhadora pudesse acessar tais
mercadorias por meio do consumo de massas, principalmente nos países então centrais
do capitalismo:
Porém, a produção da mais-valia relativa conduz a uma contradição
lógica. Ela aumenta a parcela de mais-valia por cada força de trabalho,
mas ao mesmo tempo, por causa dos efeitos da racionalização pro-
duzidos pelo mesmo desenvolvimento, emprega cada vez menos força de
trabalho para cada soma de capital (o que faz aumentar, como vimos, os
custos preliminares para cada emprego, ou seja, a intensidade de capital
ou a parcela de capital fixo na “composição orgânica”). Este segundo
efeito de tendência contrária compensa o primeiro efeito a longo prazo.
Isto significa que o aumento da taxa conjunta de mais-valia relativa para
cada força de trabalho é obtido ao preço de uma queda concomitante da
taxa de lucro para cada soma de capital investido. Tal efeito só pode ser
compensado se crescer a massa absoluta de força de trabalho
(produtiva!) utilizada, e, portanto, se juntamente com a massa absoluta
de mais-valia crescer a massa absoluta de lucro. Mas, isto só é possível
com uma extensão permanente do modo de produção, algo efetivamente
conseguido, em certa medida, no modo de expansão fordista (KURZ,
2019, p. 80).

Tal dinâmica histórica, assim, apesar de ainda relativamente ao trabalho morto


a ser valorizado mobilizar cada vez menos trabalho vivo, o que engendrara uma queda
tendencial da taxa de lucro, pôde ser compensada por meio da extensão do modelo
fordista (com extensão da massa absoluta de mais-valia explorada pelo capital como
totalidade), o que só ocorreu concomitantemente ao aprofundamento do acesso a
capital fictício a adiantar, via cadeias creditícias, trabalho futuro a ser explorado,
capital fictício que já aparecia socialmente por meio da inflação estrutural global do
capitalismo (KURZ, 2019), que se verificou com a crise deste momento de acumulação
no início dos anos 1970 na forma de estagflação e nova rodada de crise econômica.

88
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Aqui, chegamos com Kurz aos anos 1970 e sua formulação de crise do trabalho, como
crise da substância do capital, o que poderemos assim afirmar para o ponto de vista do
capitalismo como totalidade e em relação a seu nível categorial (como constituição e
crise de suas categorias), não mais no que diz respeito a análises que se debruçavam
nos fenômenos macroeconômicos que discutimos anteriormente, forma apenas de
manifestação da essência negativa da sociabilidade aqui em questão, a partir de então
em seu momento de crise fundamental.
Até a década de 1970 capital, terra e trabalho operaram autonomizadamente,
mediados pelo movimento da substância negativa do trabalho. O capital individual e
seus processos de acumulação, ou a classe trabalhadora e seu acesso às mercadorias
produzidas no momento de prevalência do chamado Estado de Bem-Estar Social, não
portam em si o ponto de vista da totalidade, o que nos conduziria ao já tematizado
ponto de vista do individualismo metodológico, que toma a parte pelo todo, sendo este
acessado apenas por meio do olhar para o processo histórico das categorias do capital
mesmas (KURZ, 2014), agora formadas e operando enquanto desdobramento da
valorização do valor que até os 70 se realizava produtivamente.
A partir dos anos 1970, porém, para Kurz, o mecanismo de compensação se
extingue. A queda tendencial da taxa de lucro, como resultado da superacumulação de
capitais (KURZ, 2005, p. 223) do boom fordista baseado na mais-valia relativa,
principalmente no pós-II Guerra Mundial, atinge seu limite histórico, momento que
não mais será recuperado. Qualquer tentativa de tornar tal momento do
desdobramento da dinâmica histórica da contradição em processo da valorização do
valor em ideal social fetichista a ser reconstituído é apologia ideológica da dominação
social abstrata da substância negativa do valor, a qual Kurz logra criticar e pretende
por isso superar [überwinden].
Para Kurz – rompendo aqui assim com todas as formulações anteriormente
apresentadas por nós –, a partir dos anos 1970, a continuidade da concorrência
intercapitalista na tentativa de superação da crise econômica teria conduzido o sistema
patriarcal produtor de mercadorias baseado na relação social do valor-dissociação a
seu limite histórico absoluto, já que o novo salto de desenvolvimento das forças
produtivas, com a terceira revolução industrial (KURZ, 1999a), teria criado uma
situação estruturalmente inédita até então, a saber, a de expulsão em termos
89
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

absolutosde trabalho vivo dos processos produtivos de valor, em razão da automação


destes promovida pela robótica e pela microeletrônica. O aumento da composição
orgânica do capital, assim, não mais conduz a uma diminuição relativa entre trabalho
morto a ser valorizado e trabalho vivo a ser explorado disponível no processo
produtivo, mas sim a uma redução absoluta do trabalho vivo que o capital teria
capacidade de explorar, o que não significa que tal contradição fundamental não
continue a se aprofundar a cada rodada de desenvolvimento das forças produtivas (o
que aparece agora com a chamada Revolução 4.0), mas apenas que não há mais
possibilidade de um suposto reacoplamento entre tais polos (que só pode parecer
assim o fazer por meio de uma simulação de acumulação via capital fictício, como
veremos, o que não significa nem reacoplamento, nem valorização do valor).
Com ênfase aqui, assim, no que diz respeito à totalidade da produção de valor, a
massa absoluta de valor produzido globalmente passa a declinar a partir dos anos 1970
e 1980 (KURZ, 2005, 2014, 2019), o que permite que Kurz conclua que uma idealidade
de identidade sujeito-objeto entre o trabalho e seus produtos a informar a apologia da
sociedade capitalista como a preencher de riqueza e satisfazer as necessidade humanas
dos ideólogos liberais e reformistas desta sociedade; assim como daqueles que
idealizam tal preenchimento e satisfação para um futuro almejado e a ser alcançado
com a distribuição dos meios de produção e uma “religação” (ligação que para nós
nunca existiu, a não ser enquanto idealização – ADORNO, 1995) do trabalhador aos
produtos de seu trabalho, seria anacrônica e não significaria a superação da sociedade
do trabalho e da mercadoria, mas sim sua reprodução, o que conduziria apenas ao
aprofundamento de sua crise social contemporânea e de seus processos de
asselvajamento social.
Diversos desdobramentos podem ser apresentados a partir das conclusões de
Kurz. Em primeiro lugar, explicita-se o movimento de seu pensamento a partir de um
realismo dialético que se dirige à sociabilidade capitalista como totalidade concreta a
nos dominar, o que o move à autocrítica dos limites históricos da própria forma do
sujeito (KURZ, 2007) como fetichismo de sujeito (naturalização da relação sujeito-
objeto), também do sujeito que conhece. A este movimento, como já destacamos,
Roswitha Scholz (2009), vai desdobrar uma totalidade fragmentada do valor na
dissociação do feminino e do problema das diferenças no racismo, antissemitismo,
90
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

diferentes relações de produção, entre outros. O dissociado, apagado e fora do âmbito


do valor, porém, interno ao capitalismo, não pode ser deduzido do valor, como se o
feminino também compusesse um tipo específico de trabalho explorado a valorizar o
valor, como no feminismo marxista, desejoso de integrar a mulher no âmbito do
trabalho e do próprio valor. O dissociado, como co-constitutivo do capitalismo, na
relação contraditória com o valor, diz respeito ao que aparece no feminino como o
oposto à racionalidade, tido socialmente por inferior e relativo ao nível da sensibilidade
e do care, na produção e reprodução da família, por exemplo. Scholz, assim, tampouco
vai defender uma positivação de um suposto “trabalho não pago” do feminino
dissociado a ser compensado. Por outro lado, também ao criticar o pós-estruturalismo,
não vai positivar tal âmbito dissociado como ontológico, potencial de superação da
razão instrumental do valor pela ênfase na sensibilidade, no care ou no amor. Em
Scholz (2013), o dissociado como categoria deve ser apreendido em sua própria
dinâmica, a compor o movimento da contradição em processo do capitalismo em
relação contraditória com o valor. Assim, a formação do dissociado no momento de
caça às bruxas do início do capitalismo, que acabou por imputar à mulher as
características do feminino acima mencionadas, não compôs uma acumulação
primitiva de capital no sentido do que ocorreu com o trabalho assalariado em
formação, por meio de processos de expropriação; mas sim, por meios violentos, tinha
por finalidade restringir e naturalizar a mulher ao momento reprodutivo do dissociado,
também fundamental a seu modo para a reprodução do valor-dissociação. Tal
processo, em desdobramento, teve seu ápice no momento do Estado de Bem-Estar
Social, com o modelo de mulher branca ocidental de classe média a não participar do
mercado de trabalho e se dedicar à reprodução da família, momento essencial para o
boom fordista e a valorização do valor baseada na mais-valia relativa de exploração do
trabalho assalariado. Co-constitutivamente, a crise do trabalho se media também com
a crise do patriarcado, da família nuclear burguesa e com a decadência das camadas
médias. A dupla socialização das mulheres, a receberem menos do que os homens por
postos de trabalho semelhantes e ao mesmo tempo continuarem imputadas ao lócus do
feminino na reprodução familiar diz respeito ao limite de crise fundamental do valor-
dissociação, após os anos 1970. O asselvajamento do patriarcado em sua decadência
recente está imanentemente relacionado a tal processo acima descrito. Voltaremos a
91
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

ele ao tratar da crise fundamental do capitalismo expressa em suas categorias de


capital, terra, trabalho e dissociado na particularidade brasileira. Scholz (2009), ao
criticar o método patriarcal dedutivo da própria crítica do valor, impele ao
reconhecimento de que a crítica radical também está sujeitada à dinâmica social da
contradição em processo e, por isso, deve levar a termo a crítica ao fetichismo de
sujeito e sustentar a manutenção da teoria aberta a tal movimento histórico da
contradição como dominação social, abertura que é o que permite tal reconhecimento
(SCHOLZ, 2009).
Em segundo lugar, a crítica do trabalho e de sua ontologia passam a ser
fundamentais, então, para a crítica social radical que pretende teoricamente apreender
a necessidade de superação social do trabalho, de sua forma mercadoria e do valor-
dissociação; e seu embasamento historicamente determinado passa a ser lido, tanto em
Kurz, como em Scholz, a partir do que denominam crise do trabalho (KURZ, 1999a)
como limite histórico da sociabilidade capitalista, a qual também deve desta forma ser
criticada para ser superada. O caráter historicamente determinado das categorias
capital, terra, trabalho e dissociação se revela como crise da substância do valor em
termos da totalidade fragmentada capitalista. A partir dos anos 1970, então, não é mais
possível pensarmos – se concordamos com a crítica aqui apresentada, o que para nós
se faz mister – em retomadas de processos de acumulação de capitais, os quais apenas
serão apreendidos desta forma por nossos interlocutores anteriormente apresentados
por compartilharem do ponto de vista de um individualismo metodológico que ao
observar que empresas ou ramos capitalistas individuais logram continuar se
reproduzindo (ao apresentarem lucro em suas contabilidades), defendem
imediatamente que a acumulação de capital continuaria a ocorrer, o que não diz nada
sobre a valorização do valor (que não mais ocorre) do ponto de vista do capital
enquanto totalidade e revelam o fetichismo de capital de tais interlocutores.
O que aparece, assim, como aumento da desigualdade social, a partir dos anos
1970, decadência das camadas médias e desemprego estrutural (administrado por meio
da precarização generalizada do trabalho como redistribuição social da própria crise
deste), se deu em razão da expulsão do trabalho dos processos produtivos e da
concorrência de mercado entre os trabalhadores pelos postos de trabalho disponíveis
remanescentes, passando a aceitarem quaisquer condições de trabalho existentes, já
92
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

que necessitam se mediar pelo mesmo para sobreviverem. Nada a ver com as
explicações de lógica identitária de roubo dos postos de trabalho por parte dos
imigrantes e refugiados a correrem para as anteriores economias centrais do
capitalismo em busca de sobrevivência, o que ninguém mais hoje pode garantir.
O terceiro e último momento de nossa discussão aqui levantada por meio das
formulações de Kurz seria o de nos perguntarmos o que teria passado, então, a ocorrer
a partir dos anos 1970, para a reprodução capitalista em crise fundamental? Aqui a
categoria marxiana de capital fictício (MARX, 1984c) passa por nós a ser mobilizada
para designar a simulação de acumulação de capital, que não mais se realiza
substancialmente ao nível da totalidade do mesmo. Kurz, assim, não se refere a um
capital portador de juros a se valorizar por meio do comércio de dinheiro nos mercados
de capitais, que se apropriaria de parte da mais-valia global produzida a valorizar o
valor em processos produtivos, para o momento histórico aqui em questão. Kurz
formula o capital fictício como desacoplamento [Entkoplung] entre criação de dinheiro
(como representante do valor a ser produzido e a substancializá-lo) – por meio da
originação e circulação de capital fictício29 – e o próprio valor, cuja valorização, a partir
de então se tornara inviável historicamente (KURZ, 2019, p. 55), já que a massa
absoluta de valor produzido ao nível da totalidade do capital declina desde então, em
razão da expulsão do trabalho vivo dos processos produtivos de mercadoria (mesmo
com a expansão da produção desta). Em Kurz, o capital fictício passou a ser, a partir
dos anos 1970, a determinação para a simulação de acumulação capitalista e sua
reprodução, ou seja, ele se tornara a forma de ser da própria mediação social da
mercadoria. Isso é fundamentalmente diferente do tratamento que os autores por nós
até aqui apresentados deram à concepção de acumulação capitalista e “financeirização”
do capital, a partir dos anos 1970.
Nestes, conforme esperamos ter logrado explicitar, a “financeirização” aparecia
como possibilidade de ampliação da acumulação capitalista, que acabava por se

29 Marx, já em seu capítulo sobre o capital fictício (1984b, L. III, Tomo 1, Capítulo XXV), demonstrou
como a criação e circulação de capital fictício funcionam como criação de dinheiro: “O crédito que o
banqueiro dá pode ser em várias formas, por exemplo, letras de câmbio contra outros bancos, cheques
contra os mesmos, aberturas de crédito da mesma espécie, finalmente, no caso de bancos emissores,
nas próprias notas bancárias do banco (...). Essa última forma de crédito salta aos olhos do leigo como
especialmente importante, primeiro, porque essa espécie de dinheiro de crédito sai da mera circulação
comercial para a circulação geral e funciona aqui como como dinheiro (...) (MARX, 1984b, p. 304).

93
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

realizar, fosse nas mãos dos capitalistas produtivos, fosse nas mãos do sistema
financeiro, ou em ambos. Isso apareceu nas explicações de Foster e Magdoff (2009),
Harvey (2011) e inclusive Kliman (2012), para quem a acumulação de capital
continuaria a ocorrer após a década de 1970, porém com queda da taxa de lucro, no
sentido de diminuição apenas relativa do trabalho vivo disponível a valorizar o
trabalho morto aplicado na produção de mercadorias, aqui a diferença fulcral entre ele
e Kurz. No que diz respeito ao Brasil do século XXI, a “financeirização” também foi
entendida como capaz de fomentar a valorização do valor, na maioria das explicações
sendo lida como responsável por “sugar” o valor produzido pelo trabalho em processos
produtivos de reprodução ampliada do capital, a qual, seguindo a sugestão de
dessubstancialização do capital a nível global que apresentamos acima a partir de
Kurz, para nós, não teria significado nenhuma acumulação produtiva de capital, mas
sim uma bolha financeira, enquanto bolha das commodities, como veremos mais
detalhadamente abaixo.
No entanto, desejamos ainda apresentar que as formulações de Kurz acerca da
determinação do capital fictício para a reprodução social capitalista recente
acompanharam, historicamente, o próprio desdobramento da contradição em processo
do valor-dissociação no momento de sua crise fundamental, a partir dos anos 1970 e as
diferentes formas de ser do capital fictício ao longo dos últimos anos. Cabe uma breve
referência a tal desdobramento para podermos, enfim, embasarmos o caminho para
mediarmos a inserção do Brasil na simulação fictícia de reprodução capitalista, desde
os anos 1970, no que é para nós a crise fundamental da sociedade capitalista baseada
no valor-dissociação.
Kurz apreendeu em diferentes momentos a simulação de acumulação capitalista
por meio do capital fictício. Vou me deter em três formulações que exprimem três
distintos momentos históricos de tal mediação. São elas: O colapso da Modernização
(1999a), de 1991; A ascensão do dinheiro aos céus (2019), de 1995; e Weltkapital
[Capital Mundial], de 2005. Vale a ressalva de que em Dinheiro sem valor (2014), de
2012, Kurz ainda desdobra as análises de 2005, porém, em Weltkapital, Kurz
desenvolve a formulação “paradoxal” (em suas palavras – KURZ, 2005, p. 240-241) de
um capital real fictício [fiktives Realkapital], para designar um capital fictício que
passa pela produção dessubstancializada de mercadorias, ou seja, passa pela sua
94
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

corporeidade. Este será nosso ponto de chegada desejável a partir das investigações de
Kurz, o que nos permitirá voltarmos à particularidade recente brasileira.
Assim, em seu primeiro livro sobre o tema, O colapso da modernização, além de
formular sua teoria da crise fundamental do capital, Kurz (1999a) já destaca que a crise
da valorização do valor – valorização que se deu ao longo do boom fordista a partir da
combinação entre determinação pela mais-valia relativa e expansão das cadeias de
crédito globais – teria resultado em uma rodada de extensão da produção de
mercadorias pelas empresas em crise ainda por algum período, pelo menos até meados
dos anos 1980, ao que a falência deste processo se apresentou socialmente com o
travamento da produção no centro do capitalismo e seus índices de estagnação e com a
crise das dívidas externas da América Latina, a partir da moratória mexicana de 1983 e
da moratória brasileira de 1986, no que concerne à periferia do capital.
Os países da América Latina haviam fomentado sua modernização retardatária
(KURZ, 1999a) via créditos internacionais provenientes de capitais financeiros ociosos
em busca de valorização, a partir dos anos 1950, mas com ênfase nos anos 1960 e nova
rodada de empréstimos nos anos 1970. Apesar de terem realizado suas modernizações,
já incorporando tecnologias também provenientes do Departamento I das economias
centrais do capitalismo – como parte daquele mecanismo de extensão das cadeias
produtivas fordistas que temporariamente funcionou como contratendência à queda
tendencial da taxa de lucro do capital a nível global – os países do chamado terceiro
mundo também apresentaram queda tendencial de suas taxas de lucro e,
consequentemente, expulsão tanto relativa como absoluta (esta, principalmente a
partir dos anos 1980) de trabalhadores dos seus processos produtivos30; além de, no
geral, terem perdido na concorrência do mercado mundial para os países centrais do
capitalismo, o que significou o colapso daquela modernização.
Assim, até meados dos anos 1980, a reprodução das empresas nos países de
modernização retardatária, incluída aqui, com suas particularidades, a URSS, se deu
por meio de rolagem de suas dívidas e tentativa de estender para o futuro a promessa
de valorização do valor, o que não era possível de ocorrer devido aos desdobramentos

30 No que diz respeito à modernização retardatária com expulsão de trabalho vivo do processo produtivo,
por exemplo, na particularidade da agroindústria canavieira ver, por exemplo, Pitta (2016). No que diz
respeito à indústria automobilística brasileira, ver, por exemplo, Barcellini (2012).

95
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

que apresentamos em termos de expulsão do trabalho vivo dos processos produtivos de


valor para o capital a nível mundial a partir de então. Tal processo de extensão das
cadeias de crédito por meio da rolagem de dívidas simulava a reprodução das
empresas, mas apenas por um período de tempo:
No terceiro volume de sua obra principal, Marx analisou as
características fundamentais desse processo, ainda em estado
embrionário no século XIX, criando para ele o termo "capital fictício".
Mas esse caráter fictício revela-se somente depois de terminar um
processo especulativo mais longo ou mais curto. Enquanto este está se
passando, o capital fictício, que não tem substância alguma, cria nos
participantes do mercado a ilusão de render muito mais lucro do que o
capital realmente produtivo. Precisamente por isso, o capital fictício
pode atuar sobre a produção real de bens e induzir processos de
produção materiais, cuja invalidade se revela apenas posteriormente, no
colapso inevitável da especulação. Essa conexão de fatos é ignorada
completamente até pelos teóricos acadêmicos esquerdistas, que
percebem o capital fictício somente no âmbito imediato dos setores
especulativos e para os quais toda produção aparentemente real é um
elemento da acumulação real (KURZ, 1999a, p. 202-203, nota 8).

Com a crise de acumulação do boom fordista e a enorme inadimplência em


razão da crise das dívidas da América Latina e países do terceiro mundo, o sistema
financeiro internacional teria passado a tentar conter as consequências deste processo
sobre seus rendimentos financeiros através dos chamados processos de securitização
das dívidas e criação dos mercados secundários de dívidas (KURZ, 2005), os quais são
efetivamente mecanismos de originação e circulação de capital fictício. Todo tipo de
poupador poderia migrar seus investimentos para tais títulos, que em diversas
situações significavam apostas apenas nos preços dos chamados derivativos
financeiros, os quais designavam títulos, taxas de juros ou câmbio, commodities, ações
de empresas em bolsas de valores, pacotes de dívidas, entre outros. Ou seja, em
realidade, tais derivativos passam a constituir uma duplicata de mercadoria (MARX,
1984c), enquanto títulos de propriedade (KURZ, 2005) (denominados “ativos
financeiros” no jargão econômico), nos quais seus preços podem oscilar conforme
investidores se interessem pelos rendimentos no próprio diferencial de preço dos
mesmos, mesmo se desacoplados da valorização do valor na produção de mercadorias
do chamado “capital produtivo” (o qual já consideramos em dessubstancialização a
partir dos anos 1970/1980):

96
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

A terceira revolução industrial é considerada, e não sem razão, a causa


de longe mais profunda da nova crise mundial. Pela primeira vez na
história do capitalismo os potenciais de racionalização ultrapassam as
possibilidades de expansão dos mercados. Na concorrência de crise, o
capital desfaz a sua própria "substância trabalho" (Marx). O reverso do
desemprego estrutural em massa e do subemprego à escala mundial é,
por isso, a fuga do capital monetário para a célebre economia das
"bolhas financeiras", uma vez que os investimentos adicionais na
economia real deixaram de ser rentáveis; é o que se depreende dos
excessos de capacidade de produção a nível global (exemplarmente na
indústria do automóvel) e das batalhas especulativas das "fusões e
aquisições" (KURZ, 2008).

Os anos 1990, que apresentaram sua simulação de acumulação de capital


baseada na bolha da Nasdaq, a bolsa de tecnologia dos EUA, podem ser considerados,
assim, o primeiro momento a nível nacional, no que diz respeito aos EUA, do
desdobramento da crise das dívidas da América Latina para a economia das bolhas
financeiras como forma de determinação do capital fictício para a reprodução social da
forma mercadoria e do valor-dissociação em sua crise fundamental. Tal
desdobramento na forma de simulação fictícia da reprodução capitalista, da rolagem
das dívidas à inflação das ações nas bolsas de valores fora expressa, por Kurz (2019),
em A ascensão do dinheiro aos céus (escrito em 1995).A criação de consumo
improdutivo, fictício, relacionado ao alto preço das ações dos títulos de propriedades
negociados em bolsa de valores já alimentara o crescimento de demanda por
mercadorias, a qual não ficou restrita aos EUA, mas se mediou com a Europa e os
chamados Tigres Asiáticos.
Tanto no marxismo tradicional, quanto na mídia de esquerda, tal momento
ficou conhecido como “neoliberalismo”, ou seja, como forma particular de acumulação
de capital, como em Harvey (2011). Suas críticas se dirigiam aos processos de
exportações de capitais dos conglomerados transnacionais em busca de redução de
custos com salários, matérias-primas e impostos, os quais foram entendidos como
reposição do imperialismo e da superexploração do trabalho, mediados pela
“financeirização” do capital, a qual aparecia por meio da desregulamentação das
economias nacionais em relação às entradas e saídas de capital internacional. Para nós,
tais movimentos do capital significaram a tentativa deste de lidar com sua crise
fundamental de acumulação, que buscava na ficcionalização da criação de dinheiro no

97
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

sistema financeiro (por meio de multiplicador bancário e alavancagens) a simulação da


valorização do valor, o que ao mesmo tempo se desdobrava em desenvolvimento das
forças produtivas e processos de redução de todo tipo de custos na economia chamada
real, características imanentes à concorrência da produção de mercadorias, que não
para de se aprofundar mesmo na crise. Tais processos continuavam com a exploração
dos trabalhadores (por unidade de trabalhador), que em razão do desemprego
estrutural, concorriam entre si aceitando quaisquer condições a fim de se
reproduzirem. Enquanto perdurou a alta nos preços das ações, a simulação de
acumulação se fez presente. Ao mesmo tempo, porém, em razão da imanente
continuidade do desenvolvimento das forças produtivas do capital global e da expulsão
do trabalho do processo produtivo, não havia mais nenhum “reacoplamento” possível
entre a criação de capital fictício (e sua circulação global com consequente aumento da
produção de mercadorias) e a produção de valor (que diminuía em termos do capital
como totalidade) através da exploração produtiva de trabalho.

A transformação que está ocorrendo não é o prolongamento de uma


tendência secular, mas uma ruptura estrutural. Não se trata de modo
algum de uma simples expansão do comércio internacional no mercado
mundial, nem de um mero aumento quantitativo da exportação de
capital entre as economias nacionais, mas, do fato da dissolução dessas
mesmas economias nacionais. Em outras palavras: o centro econômico
desse constructo moderno, a “nação”, é arrasado pela crise do
capitalismo. Com a retração dos Estados ou a virtualização capitalista
financeira da economia (e em paralelo), a globalização é, por um lado,
um produto imediato da Terceira Revolução Industrial e sua
“racionalização das pessoas”; por outro, porém, os três processos
sucessivos de retração do Estado, virtualização e globalização
repercutem e colidem entre si, muito embora, nesse aspecto, a economia
real constitua somente um apêndice da dinâmica especulativa
globalizada.
[...]
Assim, a virtualização da acumulação de capital por falta de substância
trabalho adicional inverteu completamente a relação do fluxo de
mercadorias e do fluxo financeiro em escala mundial: o movimento das
finanças globais não é mais a expressão dos respectivos fluxos de
mercadorias e serviços, mas, ao contrário, são precisamente os fluxos de
mercadorias reais (e, portanto, da reprodução material da humanidade)
que consistem agora em uma expressão, e mesmo em um subproduto, de
uma autonomizada “acumulação fantasma” do capital monetário
especulativo. O fim em si capitalista ganha aqui sua forma mais pura,
mas também uma forma de irrealidade que parece dominar a vida real,

98
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

enquanto o crash ainda não tenha ocorrido nos centros ocidentais


(KURZ, 1999b).

Em 2001, estoura a bolha da Nasdaq (KURZ, 2005), o que levou o governo dos
EUA a reduzir drasticamente as taxas de juros da economia e a fomentar o crédito ao
sistema financeiro. Isso alimentou as duas principais bolhas a determinarem a
simulação de reprodução capitalista mundial no século XXI, a bolha das commodities e
a bolha imobiliária dos EUA e da Europa, uma bolha financeira mundial, que acabou
por desdobrar “a maior bolha financeira de todos os tempos e o milagre do consumo
dos EUA” (KURZ, 2008).
A migração da poupança da sociedade para os investimentos financeiros, que já
vimos acima ter parcialmente acontecido em relação à bolha da Nasdaq, significou a
partir de 2002 e 2003, então, que tal tipo de tentativa de simulação de acumulação de
capital se generalizava para os mercados de derivativos dos mais diversificados, com
centralidade nos pacotes de dívidas imobiliárias nos EUA e Europa. A bolha imobiliária
dos EUA e da Europa, enquanto bolha financeira mundial (aqui a contribuição de
Weltkapital – KURZ, 2005) alimentou a bolha das commodities (2002 – 2011) e foi
retroalimentada por ela. Tal economia de bolhas é a que nos permite alcançarmos a
formulação de Kurz de um capital fictício real [fiktives Realkapital, KURZ, 2005, p.
240-241), por meio da inflação dos preços dos títulos de propriedade nos mercados
secundários de derivativos financeiros que se desdobrou também na inflação dos
preços das próprias mercadorias, que de certa forma também passaram a funcionar
como se fossem meros títulos de propriedade (ou “ativos financeiros”), porém, em
processo de diminuição da substância do valor, o trabalho, a ser representado por sua
corporeidade material, daí o “paradoxo” para Kurz (ou seja, as mercadorias passam a
ter seus preços inflacionados ao mesmo tempo que seus valores diminuem):

Das Weltkapital als Krisenkapital der dritten industriellen Revolution ist


also im wesentlichen „fiktives Kapital“; und daran anschließend oder
davon generiert in zweiter Linie „fiktives Realkapital“, wie man es
paradox ausdrücken könnte. Denn es handelt sich dabei nicht mehr um
eigenständig akkumulierendes Realkapital, aus dessen fordistischer
Überakkumulation die neue Finanzblasenökonomie ursprünglich
hervorging, sondern um einzig von Kaufkraft aus aufgeblasenem
„fiktivem Kapital“ hervorgetriebene reale Warenproduktion; also eben
um ein Recycling des Blasenkapitals in die Realökonomie. Das

99
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Verhältnis von Portfolio- und Direktinvestitionen entspricht diesen


Bedingungen. Der Ausgangspunkt der Wertschöpfungsketten ist
zunehmend irreal, und das läßt nach wie vor auf die Unausweichlichkeit
einer Entwertungskettenreaktion im globalen Ausmaß schließen31
(KURZ, 2005, p. 240-241).

A designada bolha financeira mundial, baseada na bolha imobiliária dos EUA e


Europa, diz respeito à possibilidade de criação de dinheiro fictício nos mercados
secundários de negociação dos preços dos títulos de propriedade, que acabou por
mover a escalada destes preços mesmos. Enquanto isto perdurou, de 2002 a 2008
(KURZ, 2014), tanto as empresas capitalistas produtoras de mercadorias reais quanto o
próprio mercado de capitais podiam pegar uma dívida sobre os preços de tais títulos de
propriedade, enquanto promessa futura de realização lucrativa de sua produção, o que
ativava o consumo improdutivo do Departamento I da economia, ao mesmo tempo que
os consumidores do Departamento II da economia também se financiavam sobre os
preços de seus investimentos nos próprios mercados de derivativos e acabavam por
consumir as mercadorias sem substância produzidas em cada vez maior quantidade e
por meio da intermediação do capital fictício.

Kunststück, geht es doch Kreditgebern wie Kreditnehmern weder um die


Seriosität der Ausgangslage noch überhaupt um eine private oder
kommerzielle Realinvestition und deren Erträge, sondern allein um die
erwartete spekulative Wertsteigerung der Eigentumstitel - eine
kapitalistische creatio ex nihilo. Zum Schluß ist mehr Geld da, als der
Investor ursprünglich nicht hatte. Indem so aus den Finanzblasen in
bestimmten Weltregionen Liquidität für Konsum und Investitionen
geschöpft und eine Scheinkonjunktur angekurbelt wird, regt diese
wiederum Importe von Waren und Dienstleistungen an. So verschränkt
und verfilzt sich der spekulative Gesamtprozeß immer mehr mit der
transnationalen Betriebswirtschaft des produzierenden Gewerbes und
der Dienstleistungen. Und diese Verschränkung läßt dann ihrerseits
neues spekulatives, transnationales Geldkapital in die gerade

31 “O capital mundial como capital de crise da terceira revolução industrial é então fundamentalmente
“capital fictício”; e a ele relacionado ou gerado em segunda linha está o “capital real fictício”, como nós
poderíamos expressar paradoxalmente. Pois não se trata mais de um capital real acumulado
autonomamente, cuja superacumulação fordista resultou originalmente na nova economia de bolhas
financeiras, mas sim da produção real de mercadorias impulsionada unicamente por poder de compra
proveniente de capital fictício inflado; assim sendo, de uma reciclagem do capital de bolhas na
economia real. A relação de investimentos de portfólio e investimentos diretos corresponde a estas
condições. O ponto de partida das cadeias de criação de valor é cada vez mais irreal e disso pode-se
concluir, de toda forma, a inevitabilidade de uma reação em cadeia de desvalorização de dimensões
globais.” (KURZ, 2005, p. 240-241, nossa tradução).

100
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

boomenden Sektoren der »Finanzindustrie« strömen, wo es mit den


entsprechenden Instrumenten auf die nationale Ebene
heruntertransformiert und teil weise wieder auf die real wirtschaftlichen
Binnenmärkte geschleust wird als Nachfrage. Dieser Kumulationseffekt
macht lüstern32 (KURZ, 2005, p. 243).

No que diz respeito, em termos de totalidade concreta, à própria produção


imobiliária nos EUA e Europa, a demanda de consumo improdutivo (fictício) pelas
casas moveu a subida dos próprios preços das casas (a partir de 2002) e permitiu que
seus proprietários, mesmo que de posse de hipotecas (mortgages) sobre suas casas,
fizessem novas dívidas sobre tal subida de preços, funcionando efetivamente tais
mercadorias casas como o que ocorria nos mercados de derivativos de negociação dos
títulos de propriedades. Acabavam assim por demandar novas casas, o que
realimentava tanto a inflação dos pacotes de dívidas destes mercados de derivativos, de
modo a fomentar o consumo das casas, como a inflação dos preços das próprias casas,
que apareciam no balanço das empresas produtoras de casas como “saúde” financeira
das mesmas. Temos de analisar tal movimento da simulação de valorização do valor
por meio de lucros fictícios das empresas produtoras de mercadorias com cuidado.
Estamos diante de uma conjuntura de alta dos preços dos títulos de propriedade e de
algumas mercadorias específicas (sendo no caso as do setor imobiliário a apresentar
alta inflação de seus preços) por um certo período (2002 – 2004), inflação que vai se
espalhar para o todo da economia, no caso dos EUA, principalmente a partir de 2005,
2006. Assim, a criação e circulação de capital fictício, passando inclusive pela produção
de mercadorias, e que acabava por se expressar por meio da corporeidade destas, não

32 “Como se por um passe de mágica, não se trata aqui, tanto para o credor quanto para o devedor, nem
da seriedade da situação [da bolha financeira], nem menos ainda de um investimento real privado ou
comercial e seus rendimentos, mas sim somente da esperada subida especulativa dos preços dos
títulos de propriedade - uma creatio ex nihilo capitalista. Ao final, há mais dinheiro lá do que o
investidor originalmente nunca teve. Assim, ao mesmo tempo em que das bolhas financeiras é criada
liquidez para consumo e investimento em determinadas regiões e é alavancada uma conjuntura de
simulação, esta estimula, por outro lado, importação de mercadorias e serviços. Assim, o processo
global especulativo se entrecruza e se entrelaça cada vez mais com a economia empresarial
transnacional dos setores produtivos e dos serviços. E esse entrecruzamento pode levar então, de sua
parte, capital especulativo novo e transnacional aos setores da “indústria financeira” que já
experimentavam um boom naquele momento, de onde ele será transportado ao nível nacional por
meio dos instrumentos correspondentes e contrabandeado parcialmente aos mercados internos da
economia real na forma de demanda. Este efeito cumulativo é erótico/excitante” (KURZ, 2005, p. 243,
nossa tradução).

101
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

significava aumento da massa de valor produzida pela exploração do trabalho em


processos produtivos capazes de valorizar o valor, mas seu oposto. Já que o
desenvolvimento das forças produtivas, desde os anos 1970 e 1980 significou, para nós,
o aumento da composição orgânica dos capitais tanto nos EUA (ALFREDO, 2010)
como a nível global (KURZ, 2014), com expulsão absoluta do trabalho vivo produtivo
dos processos produtivos capitalistas, poderíamos dizer que estamos diante de um
cenário realmente paradoxal. Ao mesmo tempo que é possível reconhecermos a subida
dos preços dos títulos de propriedade nos mercados financeiros, também apreende-se
o aumento de unidades de mercadorias produzidas, relacionado também ao aumento
da produtividade dos capitais (por exemplo, aqui no que diz respeito ao ramo
imobiliário, mas veremos como isso se replica também à produção real de commodities
e à produção de mercadorias a nível global), que retroalimentava a expulsão do
trabalho do processo produtivo, com declínio da produção da massa absoluta de valor
globalmente produzida. Um cenário deste tipo só pôde perdurar até o estouro da bolha
do capital mundial, o que ocorreu a partir de 2007-2008.33
Adam Tooze, em Crashed (2018), nos auxilia a sinteticamente descrever os
momentos históricos de tal processo de bolha financeira mundial (de 2002 a 2008), no
que diz respeito à centralidade da criação de capital fictício para a mediação entre
derivativos financeiros imobiliários e crescente produção real dessubstancializada das
mercadorias que aqueles representavam. Conforme tal processo avançou, entre 2002 e
2006, a inflação dos títulos de propriedades e das mercadorias casas passa a se
difundir por toda a sociedade estadunidense enquanto processo inflacionário que se
generalizava:
Certainly by 2004 it was clear that it was time to raise rates. In
seventeen tiny steps the Fed inched rates from 1 percent in June 2004 to
5.25 percent in June 2006. […] By the spring of 2006, to the alarm of
many commentators, the result was that the yield curve was inverted.

33 Dinheiro não pode virar mais dinheiro sem passar pela exploração de trabalho suficiente para
valorizá-lo. O desacoplamento entre ambos só pode ocorrer por um dado período de tempo, sendo a
deflação dos títulos de propriedade resultado de uma bolha que estoura, na tentativa de
reacoplamento entre eles, o que não é mais possível de ocorrer após os anos 1970. A lógica do
capitalismo em sua crise do trabalho é a das bolhas financeiras e do casino (KURZ, 2019), que não
ocorre nunca nos mesmos moldes, mas de forma cada vez mais violenta e profunda, já que a lacuna
entre dinheiro e valor (trabalho) continua a se ampliar com o desdobramento do processo social. A
crença na chamada “new economy”, de que o preço das ações das empresas na NASDAQ poderia inflar
infinitamente, independente do que ocorria nas empresas por trás de tais ações (duplicatas de
mercadorias), se esvai, junto do estouro desta bolha.

102
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Long-term rates were below the short-term interest rates set by the Fed.
This was usually a signal for trouble. It meant that the normal bank-
funding model of borrowing short to lend long no longer made any
sense.
[…]
As the escalated interest payments hit, a wave of defaults was more or
less inevitable. Once that began it was only a matter of time before house
prices stopped increasing and the market turned. At that point, millions
of speculative real estate investments would go bad. Families would lose
their homes (TOOZE, 2018, Part I, Chapter 2: Subprime).

A subida das taxas de juros pelo Federal Reserve (O Banco Central dos EUA) fez
com que a criação de dinheiro fictício pela intermediação entre sistema financeiro e
produção de mercadorias sem substância fosse reduzida, em um processo que acabava
por restringir tanto a capacidade dos consumidores de acessarem novas dívidas para
consumirem novas casas, assim como de pagarem suas dívidas anteriores, inclusive em
razão do aumento dos juros (pós-fixados) de suas hipotecas. Os preços das casas
passam a cair, impedindo também o refinanciamento das famílias e os pacotes de
títulos de dívidas nos mercados secundários também se desinflacionam, conduzindo à
generalização da retração do crédito e do consumo, enquanto formas fenomênicas do
estouro da bolha, a partir de 2007 e 2008.
Cabe uma menção aqui à relação deste processo com a superfície da economia
mundial. No ápice da bolha financeira mundial diversas foram as economias nacionais
e conglomerados transnacionais a emprestarem dinheiro para os EUA e seu mercado
financeiro, participando assim de tal simulação fictícia de acumulação de capitais (o
Brasil inclusive passou a ser credor líquido do FMI e dos EUA). Ao mesmo tempo, a
capacidade fictícia de consumo criada por tal momento fomentou o boom chinês 34 (no

34 Kurz (1995, 2005 e 2014) analisa tal processo a partir do que denominou circuito de déficit do
Pacífico, a partir do qual o aumento do consumo fomentado por capital fictício dos EUA também pôde
ser sustentado por empréstimos chineses (possíveis por seus superávits na balança comercial),
enquanto o endividamento estadunidense só aumentava, o que estabelecera uma relação insustentável
de endividamento entre os dois países. Quanto ao boom chinês, só possível então pela bolha financeira
mundial, mesmo Harvey (2019, pg. 30) aceita que este não tenha incorporado novos trabalhadores ao
seu processo produtivo neste momento, já que entende que houve um deslocamento de cadeias
produtivas dos países ocidentais para lá (China). Teoricamente, porém, o aumento ou redução do
número absoluto de trabalhadores não nos diz, isoladamente, sobre um capital ser produtivo ou
improdutivo em si mesmo. Por exemplo, capitais sustentados a capital fictício e fora da média social de
tempo para se fazer uma dada mercadoria também devem ser considerados improdutivos (KURZ,
2019). No caso da China, por sua vez, o aumento da composição orgânica do capital com expulsão do
trabalho do processo produtivo nas últimas décadas também deve ser considerado ao se estudar tal

103
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

século XXI), o qual realimentou a subida nos preços das commodities, cuja bolha de
preços havia autonomamente se iniciado em 2002, em razão do fetichismo de
“segurança” para investidores (GIBBON, 2013), que tais mercados pareciam oferecer
após a crise da bolsa da Nasdaq dos EUA. Com o estouro de ambas as bolhas, a crise
fundamental do capitalismo em seu momento de dessubstancialização, em razão da
irreversível crise do trabalho, aparece aos sujeitos sujeitados neste processo como crise
econômica cíclica, cujas causas são buscadas nas suas mais diversas formas, como
vimos anteriormente ao apresentarmos os autores que tentam apreender tal processo
por eles designado por “financeirização” do capital como: neoliberalismo, subconsumo,
superprodução, superacumulação de capital e queda tendencial da taxa de lucros, entre
outros.
O tão propagado por estas explicações desacoplamento entre os preços dos
chamados ativos financeiros, relacionados que estão à quantidade de negociação dos
mesmos nos mercados de capitais, e o crescimento do PIB mundial, com o crescimento
da produção de mercadorias nos mercados globais, não é capaz de apreender o
processo até agora descrito por nós, por meio das formulações de Robert Kurz (1999a,
2005, 2014 e 2019). Primeiramente porque o cálculo do PIB, como soma dos preços
negociados nas diferentes economias nacionais não logra apreender a determinação da
simulação fictícia da produção e realização das mercadorias, agora em
dessubstancialização de valor. O marxismo tradicional, que ontologiza o trabalho e
positiviza a relação entre o trabalho e seu produto, ou a relação sujeito-objeto, não
logra apreender que o fetichismo da mercadoria da abstração que se realizava na
representação corpórea fantasmagórica (e por isso contraditória e não idêntica) do
valor – que assim não está contido nas mercadorias – é agora simulado por meio da
expansão do capital fictício, que também se representa fantasmagoricamente na
corporeidade das mercadorias, ficcionalização hodierna do fetichismo da mercadoria e
de sujeito que se objetifica socialmente, porém hoje nesta forma particular. O
desacoplamento entre dinheiro (o qual no momento do capitalismo das bolhas
financeiras se amplia) e valor, em dessubstancialização desde os anos 1970 – e que com
a continuidade da concorrência capitalista continua a se aprofundar, promovendo

país mediando-o com o nível global, o que não temos condições de fazê-lo de maneira suficiente no
presente texto.

104
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

crises cada vez mais violentas e catastróficas – também não permite que as taxas de
lucros das empresas sejam critério para se constatar a realização da valorização do
valor do capital a nível global, já que então estas também estão mediadas por capital
fictício e sua imanente lógica contemporânea de bolhas financeiras.
Não cabe assim, para nós, nenhuma formulação que vise à continuidade de
paradigmas modernizadores ou produtivistas a fim de nos relacionarmos criticamente
com os processos acima apresentados, formulação que aparecia seja no que diz respeito
às análises mais reformistas, seja naquelas que se pretendem superadoras do
capitalismo, mas fazem apologia da produção abstrata de coisas por parte do trabalho,
desde que superada a alienação entre ambos. O objeto da crítica, sugerimos assim, não
deve se dirigir então à forma de produção de coisas (o que já pressupõe a relação
sujeito-objeto da forma mercadoria, ADORNO, 1995), mas justamente à forma
capitalista da relação social da sociedade do trabalho, ou seja, o que denominamos
aqui, com Kurz e Scholz, de relação social baseada no valor-dissociação e a dominação
social de sua contradição em processo de desdobramento histórico, que atingiu sua
crise fundamental a partir dos anos 1970 e por isso precisa ser suplantada
(überwunden).

4- Crítica do valor-dissociação para o Brasil do século XXI: crise


fundamental do capital, bolha das commodities e distributivismo de crise

De volta ao crescimento econômico e à crise econômica brasileira recentes,


podemos agora, a partir do que apresentamos do movimento histórico das categorias
do capitalismo, apreender estes fenômenos relacionados à economia brasileira como
indícios da contradição em processo do valor-dissociação, sem tentarmos deduzir de
formulações teóricas pressupostas e fechadas, a realidade social aqui em questão. Se o
que define a essência (negativa) das particularidades da sociabilidade capitalista é o
movimento histórico da mediação social como totalidade, que só pode ser acessada por
meio de suas partes (as quais assim contêm aquela), a formulação radicalmente crítica
deve, assim, mediar tanto a determinação atual da forma social como simulação de
valorização do valor pelo capital fictício (em seu momento de determinação pela
inflação dos títulos de propriedade formando as bolhas financeiras), quanto aquilo que
105
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

a própria particularidade em sua forma expressa. Tal forma nega, como veremos, as
próprias formulações teóricas anteriores, que como vimos, tentavam ler a crise
econômica brasileira recente ou por meio da crítica ao rentismo financeiro (“criador de
instabilidades”) e defesa do capital produtivo, ou, no limite do marxismo tradicional,
por meio da reposição de uma formulação de teoria da dependência (financeirizada)
que seria causadora do atraso econômico brasileiro, o qual teria ainda aparecido como
conflito distributivo e conduzido ao golpe parlamentar contra Dilma Rousseff e à
extrema-direita ao poder. Assim, poderemos explicitar formas de existência da
particularidade da reprodução capitalista no Brasil que negam as interpretações
anteriormente apresentadas acerca da sua forma de reprodução para o século XXI, em
razão de um ponto de vista que visa a totalidade concreta, e que nos leva a formular o
Brasil como parte da crise fundamental do trabalho e do valor-dissociação, desde os
anos 70 e 80.
Já adiantamos que, a partir de 2002, com o início da bolha das commodities nos
mercados de capitais internacionais, inicia-se uma retomada de alta do PIB brasileiro,
mas que se vincula com a determinação categorial do capital fictício e com a crise
fundamental do capital. Desta forma, não houve valorização do valor, no Brasil, a
partir de 2003/2004, mas inflação dos títulos de propriedade nos mercados
financeiros internacionais como bolha financeira, a qual moveu um processo de
crescimento econômico como simulação por meio da determinação do capital fictício
da acumulação de capital e da valorização do valor, inclusive com aumento da
produtividade do trabalho (aumento da composição orgânica do capital) e da produção
de mercadorias, concomitante à expulsão do trabalho vivo do processo produtivo (em
números absolutos, ou seja, continuidade da dessubstancialização do capital na
particularidade brasileira), sendo a crise econômica a partir de 2012 fenômeno de
estouro desta bolha.
Para qualificarmos melhor tais assertivas, precisaremos esmiuçar um pouco
mais a economia brasileira recente, sempre mediando com o processo histórico das
categorias do capital atualmente em seu momento de crise, tendo em vista uma
apreensão de realismo dialético (SCHOLZ, 2009) para acessarmos a totalidade
capitalista como totalidade concreta fragmentada por meio da particularidade
brasileira.
106
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

A exponencial subida nos preços dos mercados de derivativos de commodities,


para nós um processo de inflação deste título de propriedade (como um ativo
financeiro), se iniciou em 2002, justamente após o estouro da bolha da Nasdaq, nos
EUA, em 2001. Guilherme Delgado (2012) fora um dos primeiros a reconhecer tal
escalada nos preços e a relação da economia brasileira com tal processo:

Este esforço de lançamento, forçado pelas circunstâncias cambiais de


1999, encontrará um comércio mundial muito receptivo na década de
2000 para meia dúzia de commodities em rápida expansão nos ramos de
feed grains (soja e milho), açúcar-álcool, carnes (bovinas e de aves) e
celulose de madeira, que juntamente com os produtos minerais
crescerão fortemente e passarão a dominar a pauta das exportações
brasileiras no período.
(...)
Mas o sucesso mais imediato da opção primário-exportadora caberá ao
governo Lula no período 2003-2007, quando vigorosos saldos
comerciais, oriundos dessas exportações, superaram o déficit de serviços
da “Conta Corrente”, tornando-a superavitária (DELGADO, 2012, p. 94-
95).

Apesar do argumento de Delgado já anteriormente problematizado e criticado


por nós de que a questão explicativa da crise brasileira recente seria um suposto atraso
resultante da “reprimarização” da economia, interessa o reconhecimento dele de que o
cerne do crescimento econômico brasileiro da primeira década do século XXI esteve
relacionado à alta nos preços das commodities, para nós uma bolha financeira.
Peter Gibbon (2013), pesquisador dinamarquês que se dedicou a apreender as
determinações de tal subida dos preços dos derivativos de commodities nos mercados
de futuros destas, demonstra que isso aconteceu como um processo inicialmente
relativo apenas ao próprio mercado de capitais:

In the literature, the phrase ‘the financialization of commodity


derivatives’ has been used by commentators to refer variously to one or
more of the following:
- Growth in futures market share of market participants that are
essentially financial firms, including hedge funds, mutual funds and
pension funds. ‘Managed’ commodity assets increased in value from less
than US$10 billion at the end of the 1990s to around US$450 billion by
April 2011.
[…]

107
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

- Unprecedented levels of futures market volume growth unrelated to


changes in the size of physical markets – worldwide, the exchange-based
commodity derivative trade increased by over 300 percent between 2001
and 2007, while the OTC trade increased by 1400 percent.
[…]
In each case, financialization is stated to have emerged around 2001-3
and to have significantly accelerated from 2004-5. (GIBBON, 2013, p. 8-
9).

Gibbon alega que a subida nos preços das commodities ocorreu devido ao
aumento da demanda no comércio de derivativos de commodities negociados nos
mercados de futuros (e sem entrega propriamente física das commodities negociadas),
com cada vez maior participação de fundos de investimento de todos os tipos neste
mercado de capitais, principalmente também pela ausência de correlação entre os
movimentos dos preços em tal tipo de mercado e aqueles de equities e títulos, em baixa
após a quebra da NASDAQ. Ou seja, por motivos estritamente financeiros, em busca de
“balancear” investimentos em um momento de crise econômica, as maiores poupanças
do capitalismo mundial conduziram o mercado de derivativos de commodities a uma
bolha financeira.

Gráfico 3: Índice de preços internacionais de commodities (1999 – 2018)

Fonte: IMF Index Mundi. Disponível em:


<https://www.indexmundi.com/commodities/?commodity=commodity-price-index&months=240>

108
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Podemos observar no Gráfico 3 que o início da inflação dos preços das


commodities se dá logo após 2002 e não para até 2008, quando do início da crise
mundial, após o estouro da bolha imobiliária dos EUA e Europa (o que compôs então
uma bolha financeira mundial). Conforme a demanda por contratos de commodities
aumentava, fazendo seus preços subirem, tanto no que diz respeito a preços futuros
quanto a preços presentes das mesmas (o que não aparece no gráfico, que já mostra os
preços consolidados), tal processo retroalimentava a busca por tais títulos de
propriedades, o que promovia novos aumentos e novos ganhos de capitais para os
investidores, em razão do diferencial de preços negociados.
Temos que entender qual entrelaçamento existe entre o processo acima
apresentado e as categorias de capital, terra e trabalho, assim como para com as contas
públicas brasileiras (que é parte do movimento do capital). Já destacamos
anteriormente, com Kurz, que o momento de crise do trabalho e crise da valorização do
valor, a partir dos anos 1990, significou “o fim das economias nacionais”, que passam a
se determinar pelos mercados de capitais financeiros internacionais, lócus da criação
de capital fictício e de sua circulação, inclusive se realizando fantasmagoricamente pela
corporeidade das mercadorias produzidas35. Ou seja, sem deixar de se mediar com o
capitalismo do chamado capital “produtivo”, por ser produtor de mercadorias, mas em
dessubstancialização e em crise de valorização.
Assim, como vimos anteriormente, com a determinação da simulação de
acumulação capitalista pelo capital fictício e constituição dos mercados de
securitização de dívidas e dos mercados secundários, estes passam a determinar a
própria produção, troca e consumo das mercadorias. Conforme apresentamos para a
bolha financeira de 2008, os preços dos pacotes de títulos de dívidas, com centralidade
nas dívidas imobiliárias, alimentavam consumo nos EUA e Europa, inclusive em razão

35 Diversos são os teóricos da “financeirização” do capital a explicitarem a transmissão dos preços dos
mercados de derivativos para preços presentes, também negociados nos mercados financeiros, assim
como a demonstrarem a transmissão destes para os preços de mercado das mercadorias subjacentes a
tais mercados de derivativos. O próprio Gibbon (2013) assume que: “behaviour of financial investors
following, for example, passive long-only strategies affect the behavior of all market participants, since
it is typically misunderstood by non-financial market participants as incorporating important new
information about supply and demand” (GIBBON, 2013, p. 10). Para uma discussão acerca do capital
fictício nos mercados de derivativos e sua forma de transmissão de preços para os preços presentes de
mercado, ver Carneiro et al. (2015).

109
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

da subida dos preços das próprias casas, a partir das quais a sociedade podia fazer
novas dívidas, saldar anteriores e iniciar novas rodadas de consumo.
Algo correlato e concomitante ocorria no Brasil, já que a bolha das commodities
se mediou em relação à economia brasileira de forma central e determinante. Em
relação às empresas produtoras de commodities, como veremos agora, estas puderam
se financiar em dólares ao adquirir créditos nos mercados de capitais internacionais
sobre os próprios preços futuros de derivativos das commodities, preços em ascensão
como acabamos de ver. Como adquiriam dívidas em montantes muito acima do que
sua capacidade produtiva permitia – em razão da concorrência para acessarem tais
preços, o que quem não o fizesse “perderia” a possibilidade de nova rodada de
industrialização de suas produções – entravam em um processo de expansão tanto
intensivo quanto extensivo de suas produções, a fim de tentar adquirir ainda novas
dívidas no futuro (saldando as anteriores com estas, inclusive). Este processo de
simulação fictícia de acumulação só podia perdurar enquanto os balanços das
empresas parecessem passíveis de lidar com tais dívidas (BRAGA, 2017), ou seja,
enquanto durava a alta dos preços de futuros de commodities. Após isso, as falências
passaram a se generalizar, o que apareceu na economia brasileira como recessão,
desemprego, alto endividamento e inflação.
Tomemos a particularidade da agroindústria canavieira brasileira (a maior do
mundo no século XXI) e paulista (a maior do Brasil), produtora de cana-de-açúcar,
açúcar, etanol e eletricidade. O caso é paradigmático do que aconteceu com os
produtores de commodities no Brasil em geral. Após apresentar relativa estagnação
nos anos 1990 (BACCARIN, 2005), a partir do desmonte dos fomentos do Estado
brasileiro para sua expansão endividada dos anos 1970 e 1980 como parte da
modernização retardatária nacional (PITTA, 2011; PITTA e MENDONÇA, 2018), com a
subida dos preços do açúcar nos mercados de commodities internacionais no século
XXI tal agroindústria iniciou um processo de expansão, com financiamento a partir de
dívidas garantidas pelos altos preços de futuros do açúcar. Desta forma, a
agroindústria canavieira como um todo, em razão da concorrência por “aproveitar” tais
preços determinados pela bolha das commodities, havia de expandir tanto
aprofundando sua produtividade por meio de aumento da composição de seus capitais
como incorporando novas áreas, a fim de simular ser capaz de saldar suas dívidas
110
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

anteriores e concomitantemente fazer novas dívidas para novas rodadas de expansão


(PITTA, 2016 e 2018). Tal momento só foi possível até a queda dos preços do açúcar
nos mercados de derivativos internacionais, que no caso ocorreu a partir de 2011 e
conduziu à falência de mais de um quarto de tal setor, atingindo, após isso, número
menor de usinas do que aquele anterior ao início da escalada dos preços.
Se este processo acima descrito36 diz respeito à mediação do capital fictício para
simulação de reprodução ampliada do capital, no que diz respeito à terra e ao trabalho
também temos que nos atentar para as suas particularidades a fim de apreendermos tal
movimento como totalidade concreta. A expansão da agroindústria canavieira
determinada pela inflação do preço dos derivativos de açúcar como título de
propriedade conduziu, a partir de 2002, à mecanização do último momento do
processo produtivo de cana-de-açúcar que apresentava trabalho majoritariamente
manual até então, a saber: o do corte de cana. Desde os anos 1970, a modernização
retardatária brasileira já vinha expulsando trabalhadores do processo produtivo de
cana-de-açúcar (PITTA, 2016), ou seja, a industrialização da agricultura já promovia
aumento da composição orgânica dos capitais aplicados à agricultura brasileira, o que
resultara, nos anos 1980, na crise generalizada desta agroindústria, em razão do alto
endividamento das empresas e inviabilidade de continuidade de rolagem destas
dívidas. O corte de cana manual havia sido, porém, apenas parcialmente mecanizado
naquele momento.
No século XXI, por sua vez, a mecanização do corte de cana conduziu à expulsão
de trabalhadores do processo produtivo em números absolutos37: se no estado de São
Paulo existiam aproximadamente 2 milhões de trabalhadores na agricultura nos anos
36 Para análise detalhada dos dados relativos à agroindústria canavieira no século XXI, ver Pitta (2016) e
Pitta e Mendonça (2018).
37 Se observarmos apenas a forma do trabalho concreto do cortador de cana-de-açúcar, sem nos

atentarmos para o movimento histórico das categorias do capital enquanto totalidade concreta,
podemos incorrer no equívoco de estabelecermos uma continuidade entre o período escravista (1500
até 1888), o posterior de formação do trabalho no Brasil (1888 a meados de 1950, este processo não
tem um marco preciso) e o da particularidade do momento de crise do trabalho, após o colapso da
modernização (1970). Conhecido por “boia-fria”, o cortador de cana da agroindústria é migrante
sazonal, sobre o qual incide profundo racismo e foi apreendido pelo marxismo tradicional brasileiro da
teoria da dependência como superexplorado e miserável em razão do imperialismo do capital
internacional sobre o nacional e seus trabalhadores. Para nós, a forma de trabalho que o mesmo
apresenta deve ser apreendida como completamente distinta do escravo ou do trabalhador assalariado
de meados do século XX. A concorrência entre os trabalhadores para manterem os postos de trabalho
assalariado em processo de expulsão do trabalho da produção de mercadorias é o que explica o
aumento das taxas de exploração do mesmo, como veremos agora no texto.

111
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

1970, nos anos 1990 eram 400 mil, já em sua extrema maioria apenas cortadores
manuais de cana-de-açúcar, e em 2014 chegou-se a apenas 90 mil trabalhadores
aproximadamente (PITTA e MENDONÇA, 2018). A redução dos postos de trabalho no
corte manual de cana-de-açúcar conduziu à redução do preço pago ao cortador por
tonelada de cana-de-açúcar cortada, já que a concorrência pelos últimos postos de
trabalho fazia com que o trabalhador aceitasse qualquer condição oferecida, o que fez
também com que os cortadores passassem a cortar cada vez mais cana-de-açúcar,
aumentando a produtividade do trabalho a fim de “compensar” a queda nos preços
pagos por tonelada cortada, já que seu pagamento se dá por produção. A concorrência
entre os próprios trabalhadores pelos últimos postos de trabalho levou a que, no auge
do processo de mecanização da colheita de cana, entre 2005 e 2009, ocorressem
diversas mortes nos canaviais brasileiros por excesso de trabalho (PITTA, 2016).
Observamos que não havia a violência direta “chicoteando” um escravo para forçá-lo ao
trabalho como no Brasil Colonial, mas a violência econômica da crise do trabalho e seu
desemprego estrutural aos quais estamos submetidos, já que sem nos vendermos como
força de trabalho para acessarmos dinheiro e podermos consumir estamos fadados à
exclusão e à superfluidade (Überflussigkeit – SCHOLZ, 2008) social e, no limite, à
morte. Novamente, o limite é a sobrevivência como determinação da mercadoria como
possibilidade de existência no capitalismo.
Vale o destaque de que uma colhedeira de cana-de-açúcar, a substituir por volta
de 120 cortadores manuais, é um robô automatizado, muitas vezes guiado a GPS. Por
sua vez, casos extremos de exploração do trabalho não ficaram, em tal momento
histórico, restritos aos cortadores manuais de cana-de-açúcar, sendo frequente casos
de trabalho análogo ao de escravo sobre os próprios pilotos de colhedeiras e demais
trabalhadores da frente mecanizada, trabalhadores alfabetizados que são hábeis e se
responsabilizam pelo manuseio de maquinário complexo, o que envolve diversos tipos
de risco. A crise do trabalho atinge, assim, todas as formas de trabalho, não apenas
aquelas tradicionalmente alvo das críticas do marxismo tradicional, como o trabalho
manual, taxado por estes como “degradante” para os anos de modernização
retardatária brasileira, como se fosse possível apenas desejar como ponto de chegada
da crítica um “trabalho justo”, por meio da superação de um suposto “atraso” a causar
tais formas de trabalho mesmas. Na realidade, o que estamos aqui formulando é que as
112
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

mortes nos canaviais por excesso de trabalho estão imanentemente relacionadas ao


aprofundamento da industrialização das agroindústrias no Brasil no século XXI,
processo que já se iniciará no século XX, mas que agora diz respeito à própria forma de
ser do trabalho no momento de sua crise.
Kurz, em Dinheiro sem valor, destacou que com a expulsão do trabalho vivo do
processo produtivo em números absolutos, tampouco adianta aumentar a exploração
do mesmo via mais-valia absoluta, a fim de compensar tal diminuição, já que a vida do
trabalhador é o próprio limite da exploração. Com cada vez menor capacidade de
explorar trabalho de forma produtiva pelo capital, não há mais compensação possível
(KURZ, 2014), mesmo com uma combinação de aumento da mais-valia relativa e
absoluta, como é o caso para a agroindústria canavieira aqui apresentada como parte
do que ocorreu com a produção de commodities no Brasil, a partir dos anos 1970 e se
aprofundou no século XXI, e que é momento de expressão da totalidade da relação
capital x trabalho em sua crise fundamental a nível global:
Como já Marx demonstrou, a expansão que passa pela produção de
mais-valia absoluta depara com limites históricos, pois a própria
fisiologia humana tem limites e não pode ser sobrecarregada sem
restrições, o dia de trabalho não pode ser prolongado até ao infinito e o
processo de trabalho não pode ser condensado até ao infinito [...].
A concorrência obriga os capitais individuais a reduzir os custos ou a
aumentar o output por custos aplicados. Isto não só cria o incentivo para
a condensação e o prolongamento do processo de trabalho, mas
precisamente para o aumento das forças produtivas através do uso de
maquinaria cientificizada. Já vimos que este processo torna
sucessivamente redundante a força de trabalho (de forma relativa e, por
fim, absoluta [...]), ou seja, que a longo prazo subverte o fim‑em‑si
fetichista do modo de produção enquanto tal, torna‑o obsoleto e fá‑lo
embater no seu limite interno (KURZ, 2014, p. 251-252).

A nova rodada de industrialização e aumento da composição orgânica dos


capitais das agroindústrias e demais produtores de commodities, no Brasil no século
XXI, acompanha o que já destacamos ao apresentarmos as bolhas financeiras da
NASDAQ e imobiliária dos EUA e Europa (esta última como bolha financeira mundial).
Processos de expulsão do trabalho do processo produtivo se aprofundaram conforme a
inflação dos títulos de propriedade permitiu que a simulação fictícia de acumulação de
capital fomentasse a produção de mais mercadorias, a qual apareceu (sem o ser) como
real acumulação de capital aos sujeitos sujeitados neste processo e que voltam seus

113
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

pontos de vista apenas ao capital individual ou ao aumento da exploração do trabalho,


para logo defenderem a continuidade de uma valorização infinita do valor. Porém,
mesmo com mecanização dos processos produtivos, aumento da exploração do
trabalho via mais-valia relativa com aumento da produtividade do trabalho e
concomitante aumento da mais-valia absoluta – o que comporia em Harvey a
“acumulação por despossessão” (2011) e em Klaus Dörre (2015) uma Landnahme, às
quais em ambos somam-se ainda outras formas de expropriação, que trataremos a
seguir –, quando da deflação dos preços das commodities nos mercados internacionais,
nada disso foi suficiente para garantir a reprodução do capitalismo brasileiro, dada a
dessubstancialização do trabalho produtor de valor com redução absoluta da massa de
mais-valia produzida pelo capital brasileiro e global (KURZ, 2014).
As formulações acerca do atraso da economia brasileira em relação ao nível de
produtividade do capitalismo mundial, que apresentamos anteriormente no presente
texto, continuam apegadas a um paradigma modernizador, processo mesmo que
conduziu ao momento de crise das categorias do capital e ao aprofundamento da
contradição capital (dinheiro e meios de produção) e trabalho (valor) a um patamar
histórico único. Mesmo que seja possível argumentar que em relação a alguns setores
produtores de mercadoria o Brasil perca na concorrência em relação ao nível de
produtividade de outros países e setores, isso não quer dizer de forma alguma que o
aumento da composição orgânica dos capitais, no que diz respeito à própria economia
brasileira, não tenha determinado a expulsão do trabalho vivo do processo produtivo
de valor, dessubstancialização e crise do trabalho38 nacionalmente falando. Nenhuma
defesa de uma suposta continuidade dos processos de desenvolvimento das forças
produtivas e da modernização, seja para fazer o Brasil superar supostas diferenças nos
patamares de desenvolvimento das forças produtivas de seus capitais na concorrência
internacional, seja para garantir a distribuição dos meios de produção para os
trabalhadores por meio do socialismo, lidaria com os fundamentos do processo que
descrevemos até aqui, a saber, o de uma simulação fictícia de acumulação capitalista no

38 Crise do trabalho (KURZ, 1999a e SCHOLZ, 2009) não significa fim da mediação social pelo trabalho e
aqui a tragédia. A forma social continua seu desdobramento contraditório, aprofundando sua crise
fundamental, o que se desdobra em barbárie social, como formularemos a seguir. O cerne da crítica,
aqui, como já destacamos, deve ser a relação social capitalista de mediação pelo trabalho e pela
mercadoria como bases da sociabilidade do valor-dissociação.

114
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Brasil no século XXI. Esta apareceu como crescimento econômico e foi entendida como
valorização produtiva de valor pela totalidade dos autores que apresentamos
anteriormente, simulação que é momento da mediação do Brasil na crise fundamental
do capital em razão da crise do trabalho (presente no capitalismo brasileiro e mundial),
crise esta desdobrada dos próprios processos de desenvolvimento das forças produtivas
inexoráveis e imanentes à própria sociabilidade capitalista.
O distributivismo de crise por meio do endividamento das empresas, da
sociedade em geral (GIAVAROTTI, 2017) e do próprio Estado brasileiro e a forma de
tentativa de gestão da barbárie (MENEGAT, 2019a) empreendida pelo Estado
brasileiro sob os governos de esquerda do Partido dos Trabalhadores (2003 a 2016)
contêm em sua própria forma a crise fundamental do valor-dissociação e só foram
possíveis em razão da inflação dos preços dos derivativos de commodities nos
mercados financeiros internacionais, parte da totalidade fragmentada capitalista que o
Brasil é e que ruiu após o estouro da bolha financeira mundial, a qual se desdobrou na
queda dos preços das commodities a partir de 2011 (Gráfico 3), na crise econômica
brasileira a partir de 2012/2013, no golpe parlamentar contra Dilma Rousseff e na
eleição do governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro. Qualquer tentativa de se
manter os fundamentos sociais de tal processo, como por exemplo, a apologia de
retomada de tais governos de esquerda por parte do campo denominado progressista e
pelos marxistas tradicionais brasileiros, como saída da situação presente e superação
do atual governo de extrema-direita, não conduz a nenhuma crítica dos fundamentos
que conduziram a tal momento mesmo, já que repõe a ontologia do trabalho, a forma
mercadoria, a mais-valia, a valorização do valor como finalidade social tautológica, o
fetichismo de sujeito (tão presente neste pensamento da esquerda que acha que é capaz
de conter a crise social e as crises econômicas por meio do retorno da democracia
representativa com base no Estado de direito), a contradição em processo do valor-
dissociação e seu momento de crise fundamental atual. Tal crise fundamental, como
vimos, nesta forma de relação social, só pode se aprofundar repondo uma economia de
bolhas financeiras que retroalimenta a dessubstancialização do capital, ao mesmo
tempo que repõe o fetichismo da mercadoria e de capital ficticiamente. A forma social
estar em crise não significa que não continue a se reproduzir de forma trágica e ao não
tematizá-la por meio da crítica teórica negativa e radical como momento necessário
115
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

para sua superação, continuaremos submetidos à sua sujeição e a seus desdobramentos


(como o é a ascensão da extrema-direita no Brasil recente).
Cabe agora, para finalizarmos, mediarmos a bolha das commodities com a
economia brasileira em seus outros setores, de forma sintética, apenas para podermos
dialogar com os autores brasileiros acima apresentados no que diz respeito a como
apareceu neles a queda da taxa de lucros (para nós ficcionalizada) no Brasil no século
XXI, o endividamento generalizado e a inflação dos preços da economia, a partir de
2012, 2013.
Em primeiro lugar, cabe ressaltarmos que o que apresentamos em relação à
agroindústria canavieira é cabível para a produção de commodities no Brasil em geral.
O Brasil é o maior e mais produtivo produtor de soja do mundo junto dos EUA e
apresentou forte expansão e aumento da sua produtividade no século XXI, com
aumento da composição orgânica destes capitais (PITTA, BOECHAT e MENDONÇA,
2017). O mesmo ocorreu com a produção de suco concentrado de laranja (BOECHAT,
2014), com a produção de minério de ferro (MILANEZ, 2017), com a indústria avícola
(SILVA, 2013) e com a produção de petróleo e seus derivados (ASEVEDO, 2017), isso
para ficarmos em alguns dos principais produtos também já mencionados acima a
partir de Delgado (2012).
A subida dos preços dos derivativos de commodities fez com que o balanço
financeiro da economia brasileira como um todo também aparecesse como “saudável”
aos olhos de investidores internacionais, em busca de fonte de rendimentos para seus
investimentos. Alguns movimentos nos mercados de capitais brasileiros são
fundamentais para entendermos as implicações da bolha das commodities na
economia brasileira e no distributivismo de crise dos governos de esquerda no Brasil
recente. O primeiro é que com a simulação fictícia da acumulação, a balança comercial
brasileira e a própria conta corrente passam a aparecer como superavitárias, o que faz
com que diversos tipos de investidores, institucionais e individuais, passassem a buscar
títulos da dívida pública interna brasileira para investir seus capitais, com o próprio
Brasil se tornando, então, uma espécie de bolha financeira.

O sucesso aparente da solução exportadora significará na primeira


década do século XXI uma quadruplicação do seu valor em dólares – o
valor médio anual das exportações de 50 bilhões de dólares no período

116
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

1995 – 1999 cresce para cerca de 200 bilhões no final da década de


2000; mas o grande campeão dessa evolução é a categoria dos produtos
básicos, que pula de 25% da pauta para 45% em 2010. Se somarmos aos
produtos básicos os semimanufaturados, que na verdade correspondem
a uma pauta exportadora das cadeias agroindustriais e minerais,
veremos que esse conjunto de exportações [...] evoluirá de 44% no
período 1995 – 1999 para 54,3% no triênio 2008 – 2010 [...].
[...]
Mas o sucesso mais imediato da opção agrária-exportadora caberá ao
governo Lula no período 2003 – 2007, quando vigorosos saldos
comerciais, oriundos dessas exportações, superaram o déficit de serviços
da “conta Corrente”, tornando-a superavitária (DELGADO, 2012, p. 95).

Se nos anos 1980 tratamos da crise das dívidas externas da América Latina,
agora, com a criação de mercados secundários para as dívidas dos países ao redor do
mundo, o cerne do endividamento brasileiro passa a ser a dívida interna, em reais, a
partir de investimentos procurados pelo capital financeiro em razão do diferencial de
taxas entre as baixas taxas de juros que pagava para adquirir dólares nos mercados
internacionais (em razão da bolha da NASDAQ, a partir de 2001) e as maiores taxas
que recebia ao investir em títulos da dívida pública brasileira (o chamado carry trade).
A possibilidade de acessar tal endividamento permitiu ao Estado brasileiro fomentar
programas de assistência social de distribuição de capital fictício e apareceram como
aumento da demanda interna e ascensão de uma nova camada média brasileira
(SINGER, 2018), baseada então esta nos fundamentos aqui apresentados. A produção
de mercadorias internas ao Brasil pôde, assim, simular uma acumulação de capital por
meio de capital fictício, a qual apareceu como crescimento econômico, sendo que o
mesmo não resultou imediatamente em inflação em razão do mecanismo de caráter
estritamente financeiro de apreciação do real frente ao dólar que a entrada de capitais
financeiros internacionais gerava (Gráfico 4, abaixo). Esse processo continuou por um
período de tempo e se retroalimentou, até mesmo porque continuou a aumentar a
capacidade de importação de mercadorias da economia brasileira como um todo.
O segundo movimento dos mercados de capitais no Brasil a partir de
investidores internacionais, mas também nacionais, o que incluiu aí o tal surgimento
de uma camada média cada vez mais dependente de reproduzir seu poder de consumo
a partir de seus investimentos financeiros, foi a exponencial alta da bolsa de valores
brasileira, a BM&FBOVESPA, cujos preços das ações também acompanharam o

117
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

processo por nós aqui descrito para a economia brasileira como um todo e também
funcionaram como inflação dos títulos de propriedade a fundamentar consumo de
mercadorias mediado por capital fictício:

Gráfico 4: IBOVESPA em Dólares e Taxa de Câmbio BRL / USD39

Fonte: Banco Central do Brasil, organização Rezende (2016, p. 37).

Investimentos nos preços das ações em bolsa de valores (Gráfico 4) fizeram


também com que o quadro acima descrito se retroalimentasse e se aprofundasse.
Diversas são as empresas a abrirem capital em bolsa a partir de então, na tentativa de
se mediarem com capital fictício e apresentarem lucros em seus balanços de
pagamento, ao mesmo tempo que adquiriam dívidas sobre os preços de suas ações em
inflação, a fim de estabelecerem investimentos para expansão intensiva e extensiva de
suas capacidades produtivas. O processo de simulação da realização das mercadorias
produzidas e que resultou em crescimento econômico sem valorização do valor teve,
assim, seu momento interno à economia brasileira. Os capitais então empreenderam
processos de aumento de suas composições orgânicas e de expulsão do trabalho vivo do

39 Aqui cabe um breve esclarecimento sobre o Gráfico 4. Quanto menor a linha referente à taxa de
câmbio para a relação reais brasileiros x dólares dos EUA, maior a capacidade aquisitiva do real frente
ao dólar.

118
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

processo produtivo, o que apareceu com força, por exemplo, na indústria


automobilística brasileira. Em relação à essa indústria, tal processo de redução
absoluta de trabalho vivo do processo produtivo já vinha ocorrendo, cabe o destaque,
desde os anos 1980 e 1990, conforme Barcellini (2012), por exemplo. O mesmo
processo se aprofundou ainda mais a partir da bolha das commodities 40, já que a
própria política de distribuição de capital fictício para o consumo da sociedade
brasileira aparecia como crescimento econômico e o mesmo como garantia de
realização futura das mercadorias a serem produzidas. Vale a ressalva que, em razão da
apreciação do real e do diferencial de juros entre economia brasileira e os mercados
internacionais, mesmo empresas não vinculadas à exportação passaram a adquirir
dívidas em dólar sobre a inflação generalizada dos (seus) títulos de propriedade (títulos
de dívida pública, ações em bolsa de valores, investimentos em derivativos, entre
outros). Como vimos, isso só não se tornou inflação interna à economia brasileira pois
a retroalimentação da apreciação do real permitiu a ampliação da importação a preços
relativamente cada vez mais baixos. Vale ressaltar novamente que, aqui, contrariando
os autores apresentados, desenvolvimento das forças produtivas e dessubstancialização
conduzem à determinação da mediação do capital fictício para a reprodução capitalista
em crise, o que move inflação estrutural do capitalismo, a qual se fará presente no
Brasil a partir de 2012 / 2013, espalhando-se para a economia nacional como um todo,
como veremos ao tratarmos do momento de crise econômica brasileira.
Os autores a tratarem da economia brasileira recente pelos quais passamos,
como Carneiro (2018) e Delgado (2012), ou formularam a compreensão de uma
suposta “regressão produtiva” ou de uma “reprimarização” da economia brasileira,
desde o início da bolha das commodities, em 2002. Fazem-no medindo o aumento do
setor produtor de commodities (como as agroindústrias aqui abordadas) em relação à
indústria, assim como suas porcentagens na participação nas exportações e no PIB
brasileiro. Isso apenas ocorreu porque a subida dos preços de derivativos de
commodities (nos mercados internacionais) foi ainda maior em relação ao consumo
dos produtos denominados “industrializados” (como a indústria automobilística)

40 O nível de emprego na indústria automotiva nacional não acompanhou o crescimento da produção de


veículos nos últimos anos. Enquanto a produção aumentou 248% entre os anos de 1990 e 2009, o
número de empregados nas montadoras reduziu-se em 7,1%. Os dados indicam, portanto, que houve
ganhos em termos de produtividade do trabalho no período (BARROS e PEDRO, 2011, p. 184).

119
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

justamente porque a determinação da economia passou a ser mesmo a inflação dos


títulos de propriedade a fundamentar por meio de capital fictício a produção de
mercadorias e desta forma a bolha das commodities foi a determinação do processo
recente. Isso não significa, por sua vez, que os setores industriais como um todo
também não tenham apresentado expansão com aumento de suas composições
orgânicas e dessubstancialização, o que já mostramos acima ao tratarmos da indústria
automobilística, central para a valorização do valor no Brasil em meados do século XX,
ou seja, em um momento anterior da história do capitalismo no Brasil. Tais autores
sustentam um ideal produtivista e um paradigma modernizador que apaga as
determinações atuais da reprodução do capital. Além disso, vale o destaque de que o
maior crescimento foi do setor de serviços no Brasil, a partir de 2002, principalmente o
comércio e aquele relacionado a serviços financeiros, setor improdutivo do ponto de
vista da valorização do valor em termos marxianos.
O mesmo vale ao tratarmos do endividamento da sociedade brasileira como um
todo. Como proporção do PIB, que cresce ficticiamente a partir de 2003/2004, parece
que a dívida interna brasileira não estaria aumentando exponencialmente a partir de
então. Botelho (2019) mostra o oposto em termos absolutos. Apesar das reservas
internacionais e do pagamento, em 2005, de parte da dívida externa proveniente de
renegociação nos anos 1990 (Plano Brady, de securitização e criação de um mercado
secundário para estas dívidas), a dívida interna dispara, mas parece relativamente
baixa enquanto a bolha das commodities perdura, já que simula crescimento
econômico e na proporção entre ambas variáveis (endividamento x PIB) parece para a
avaliação de risco que o Brasil tem capacidade de saldar tal subida. Como tal
crescimento está simulado por capital fictício, quando a bolha estoura, principalmente
a partir de 2011/2012 e a relação ao PIB se transforma de repente, o endividamento das
empresas em dólar e em reais (também via juros subsidiados pelo Estado), dos
consumidores e do Estado brasileiro explicitam seus enormes montantes.
Tratemos agora da queda da taxa de lucro (ficcionalizada desde os anos 1970).
Tanto Marquetti et al. (2016), quanto Batista (2018), como vimos, focam na taxa de
lucro como “variável” determinante para o investimento capitalista. Como esperamos
já ter ficado claro, com a determinação de simulação de acumulação por meio de
capital fictício para a produção e realização das mercadorias, o papel da taxa de lucro
120
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

também se transforma. No Brasil, a mesma já apresentara queda a partir de 2007


(Gráfico 2), com os sinais iniciais de estouro da bolha financeira mundial do capital em
2007/2008, já que a liquidez internacional começava a ser reduzida e o custo para
tomada de crédito havia subido (TOOZE, 2018), principalmente para as empresas mais
endividadas. Internamente à economia brasileira, concomitantemente, a relação entre
inflação dos títulos de propriedade nos mais diversos mercados financeiros, a produção
de mercadorias e a realização das mesmas (também mediados por capital fictício) só
continuaria se apresentasse crescimento exponencial, o que também tinha limites na
própria capacidade de criação de capital fictício da própria circulação do capital
brasileiro e em sua mediação com os mercados internacionais.
Entre 2007 e 2008, os investimentos (por parte do sistema financeiro e
produtivo brasileiro) em derivativos cambiais por meio de aquisição de dívidas em
dólares e apostas na continuidade de apreciação do preço do real frente ao do dólar,
apreciação que tal mecanismo de aposta retroalimentava em si mesmo (FARHI e
BORGUI, 2009; PITTA, 2016), fez com que, a partir da crise de 2008, com a reversão
da taxa de câmbio (e depreciação do real), subida das taxas de juros no mercado
internacional e derrubada dos preços das commodities (Gráfico 3), diversas empresas
imediatamente entrassem em falência (FARHI e BORGUI, 2009). Muitas por estarem
especulando com câmbio, outras pois possuíam altas dívidas em dólar e não podiam
mais lastreá-las sobre preços futuros de commodities ou demais exportações, já que
tais preços despencavam.
Aquelas empresas que permaneceram produzindo o fizeram por meio de cada
vez maior endividamento, já que após a crise de 2008 o comércio mundial despencou,
o custo do dinheiro ficou mais caro nos mercados financeiros e os títulos de
propriedade a determinar a simulação de acumulação de capital não mais voltaram a
atingir os patamares anteriores a 2008 por longos anos. Ao mesmo tempo, a crise de
2008 aparece a alguns, como em Foster e Magdoff (2009), como crise de subconsumo,
em razão da repentina queda no comércio mundial, que para nossa formulação se dá
em razão da ficcionalização do consumo mundial, que desaparece com o fim da
inflação dos títulos de propriedade após a crise de 2008. O comércio mundial declina
como um todo (REZENDE, 2016, p. 21) e obviamente os preços das mercadorias
também o fazem, porém, apesar da queda na taxa de lucro, os investimentos em capital
121
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

fixo no Brasil não param – como vimos anteriormente a partir de Rezende (2016), o
que também demonstram Milanez (2017), Asevedo (2017), ao tratarem
respectivamente da produção de minério de ferro e petróleo; e também verificamos
para a produção da agroindústria canavieira, para a produção de soja e para a indústria
avícola (SILVA, 2013).
Claro que já em 2009 diversas falências ocorreram e o PIB mundial despencou,
inclusive o brasileiro (ver Gráfico 1). Porém, no Brasil, após 2009, mesmo com a queda
do comércio mundial e dos preços de mercado das mercadorias, o investimento é
fortemente retomado. Rezende (2016) explicou isso pelo ciclo financeiro de Minsky
como otimismo e má avaliação financeira dos capitalistas, do que discordamos. No
caso brasileiro, após 2009, o Estado passa a agir mais fortemente tentando fomentar a
economia e passa a ser muito mais atuante na criação de capital fictício interna ao país
do que no momento anterior, de preponderância de tal criação via mercado de capitais
e sua circulação nos mercados produtores de mercadorias. O Estado brasileiro passou a
promover corte de impostos aos setores industriais e aumentou o investimento na
“produção do espaço” (aqui entrarão as obras para a Copa do Mundo de 2014 e
Olimpíadas de 2016, assim como as grandes obras como estradas e hidroelétricas por
meio do Programa de Aceleração do Crescimento I e II – PACs –, de 2007 e 2010
respectivamente). Aumentam assim também o distributivismo de crise e o fomento ao
crédito para consumo para todas as camadas sociais brasileiras e empresas.
Ao mesmo tempo, apesar da queda no comércio internacional, os preços das
commodities escalam novamente (Gráfico 3) – apenas entre 2009 e 2010, passando a
declinar de forma definitiva a partir de 2011 – como tentativa de grande parte do
investimento financeiro mundial de se proteger da crise de 2008 (GIBBON, 2013). A
economia brasileira, então muito mais endividada e com forte piora nas possibilidades
de realização das mercadorias, continua a investir mesmo assim (REZENDE, 2016 e
CARNEIRO, 2018), justamente por precisar pagar dívidas passadas e necessitar
aumentar suas produções na tentativa de fazê-lo e na tentativa de adquirir novas
dívidas para rolar as anteriores.
Ainda assim, apenas este último momento, entre 2009 e 2012, foi entendido por
Carneiro (2018), Batista (2018) e Rezende (2016) como momento de prevalência de
uma “pirâmide financeira” (ou esquema “Ponzi” para a economia brasileira) em razão
122
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

da ampliação do endividamento das empresas em dólar concomitantemente à não


realização das suas mercadorias produzidas. Botelho (2019, p. 189) demonstra uma
capacidade ociosa dos capitais brasileiros como um todo, a partir de então. Diversas
empresas adquiriam dívidas em dólar, investiam uma parte em seus setores
produtivos, mas tentavam obter ganhos de capital estritamente nos mercados
financeiros, por exemplo, a partir do diferencial entre os juros pagos para captar
dinheiro em dólares nos mercados internacionais e o investimento em fundos, bolsa de
valores e, principalmente, nos títulos da dívida pública brasileira (carry trade). Isso
apareceu a todos os autores brasileiros analisados como desindustrialização brasileira,
o que na verdade é resultado da crise de 2008, a qual foi, no nível dos fenômenos
macroeconômicos, uma “depressão econômica”, como interrupção da simulação por
meio de capital fictício da reprodução do capital a nível mundial 41. Tal processo,
obviamente, conduziu ao acirramento da concorrência intercapitalista internacional e
brasileira. Ao mesmo tempo, o suposto desacoplamento entre rendimentos financeiros
das empresas e a realização das mercadorias, mesmo com continuidade temporária do
aumento da composição orgânica dos capitais até 2013 em razão da continuidade do
investimento capitalista, não é uma pirâmide financeira só para tal momento, pois a
produção de valor a fundamentar tal produção de mercadorias já declinava desde antes
da própria bolha das commodities para a economia brasileira como um todo. Assim, a
economia de bolhas já estava lá desde muito antes, como vimos, mesmo apesar do
aumento da produção de mercadorias, porém com cada vez menos substância,
produção que fomenta um fetichismo de materialidade (fisiocrática) na subjetividade
do capitalista, do analista de mercado, dos economistas aqui apresentados e da
sociedade em geral, que apenas designam por bolha o desacoplamento da relação entre
ganhos financeiros e tal materialidade produzida das mercadorias (que em nosso

41 Tooze (2018) demonstra como mesmo os capitais tidos como mais produtivos do mundo, como a
General Motors (por exemplo, maior produtora da indústria automotiva do mundo até aquele
momento) ou mesmo a Arábia Saudita como maior produtor de petróleo do mundo (a partir de 2014:
ASEVEDO, 2017), quando da deflação dos preços internacionais, tiveram problemas para se
reproduzirem. A GM teve de ser “salva” pelo governo dos EUA e a Islândia (como outro exemplo),
muito atrelada aos investimentos financeiros nos EUA, quebrou logo na crise de 2008 (TOOZE, 2018).
Empresas brasileiras das mais significativas em seus setores como Sadia e Aracruz (FARHI e BORGUI,
2009) também faliram neste momento, pra não falar das empresas da agroindústria canavieira já
destacadas anteriormente.

123
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

argumento representam cada vez menos valor e consequentemente um


desacoplamento fundamental entre preço e valor muito anterior).
Dilma Rousseff, entre 2012 e 2013, reduziu drasticamente os juros da economia
brasileira, desvalorizou o câmbio, impediu o carry trade (SINGER, 2018), fomentou o
crédito para o consumo e desonerou fiscalmente as empresas, a fim de aplicar políticas
keynesianas tradicionais de caráter anticíclico, com o intuito de incentivar o aumento
da produtividade do capital industrial nacional como tentativa de “resolver”: a queda
na taxa de lucro (ficcionalizada) das empresas – que caiu definitivamente a partir de
2010 (Gráfico 2) –, a deterioração nas condições da realização das mercadorias, a
retomada da inflação e a desaceleração do investimento a partir de 2013, vislumbrando
uma “eutanásia do rentista” a favor do capital chamado produtivo da economia
brasileira.
Contrariando tanto os reformistas keynesianos como o marxismo tradicional,
tais práticas apenas fizeram aparecer socialmente (à subjetividade dos sujeitos
sujeitados neste processo) a crise do capital que estava subjacente aos fenômenos aqui
descritos e que os impactos do fim da bolha das commodities para a economia
brasileira ainda não se manifestavam totalmente, já que as empresas ainda logravam
simular alguma reprodução (de 2009 a 2012) por meio do acesso aos mercados de
capitais, isso por sua vez apenas por um período determinado de tempo, já que tinham
cada vez mais dificuldade para acessar simulação fictícia de acumulação de capital com
suas produções, em razão de maior dificuldade de realização de suas mercadorias, para
tentarem se reproduzir.
Após as medidas de Rousseff, com a depreciação cambial do real, as dívidas das
empresas em dólar disparam, o custo operacional das mesmas consequentemente
também e a possibilidade de simularem por meio de carry trade alguma reprodução
fictícia se extinguiu. Os indícios que se explicitam são depreciação do real em relação
ao dólar, a retomada da inflação, o travamento do investimento em capital fixo, o alto
endividamento absoluto e relativo de empresas, sociedade e Estado, recuperações
judiciais e falências, e, a partir de 2015, desemprego da sociedade brasileira na faixa
dos 14%.
Uma última passagem pela categoria de terra vale ainda ser abordada
brevemente. Assim, poderemos também levantar a discussão crítica sobre formulações
124
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

como a de que ocorreria uma reposição hoje da acumulação primitiva como saída para
a crise de valorização do valor, formulação que está na boca de Harvey com sua
“produção do espaço” e “acumulação por despossessão” (2011) ou em Dörre (2015),
com o conceito de Landnahme (criticados em SCHOLZ, 2019).
Desejamos incialmente nos deter na produção agrícola (industrializada)
brasileira. Vale a ressalva de que também para o caso da terra, a própria
particularidade das formas de expropriação que se aprofundaram com a bolha das
commodities carrega em si a ficcionalização da renda da terra e da produção do espaço,
movimento só possível de ser apreendido por meio de um ponto de vista que busca o
movimento da totalidade concreta e não se coloca de fora da sujeição da contradição
em processo do valor-dissociação. Se destacamos anteriormente que a subida dos
preços das commodities nos mercados de capitais determinou uma expansão tanto
intensiva como extensiva da produção destas mercadorias em razão das empresas
capitalistas concorrerem por tal subida, tal movimento conduziu a uma subida dos
preços da terra agrícola, em razão do aumento de sua demanda. O preço da terra
estava, assim, determinado por uma renda da terra fictícia, vinculada à bolha das
commodities. Acontece que, após 2008 e a queda dos preços das commodities e da
crise do capital mundial, diversos são os conglomerados que passam a investir na terra
como ativo financeiro, movimento que foi apreendido em escala mundial por Saskia
Sassen (2014), por exemplo, ao descrever então a constituição de um mercado global
de terras. Diversas empresas produtoras de commodities no Brasil se associaram a
capitais financeiros internacionais e passaram a estabelecer imobiliárias agrícolas a
investir na terra como se fosse um ativo financeiro à parte, ou seja, passaram a investir
esperando o preço da terra continuar a subir para vende-la posteriormente, mesmo
sem necessariamente produzir nada ali (PITTA, 2016 e 2018 e PITTA e MENDONÇA,
2018). Isso não deixou de mobilizar expropriações sobre pequenos proprietários rurais
(principalmente sobre populações de negros, descendentes de escravos, indígenas e
outros grupos) nas áreas denominadas de fronteira agrícola, como é o caso do
MATOPIBA (PITTA e MENDONÇA, 2018), por nós estudado. Isso não significou, no
entanto, que tais expropriações estivessem movendo uma valorização do valor, como se
compusessem uma reposição de acumulação primitiva a compensar a crise do capital
de 2008, por exemplo. A própria forma da mesma ocorrer se dá, por exemplo,
125
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

utilizando dois tratores e um correntão para derrubada de florestas nativas (sem


praticamente nenhum trabalho vivo ali aplicado), sem se apropriar de trabalho passado
dos trabalhadores expropriados na própria abertura das fazendas (BOECHAT, PITTA e
TOLEDO, 2019), o que é diverso do que ocorria anteriormente no Brasil, ao longo do
século XX, em um momento em que a fronteira ainda estava aberta e deveria ser
“fechada” por meio da violência direta de coronéis proprietários de terras expropriando
o trabalho daqueles nas zonas rurais e com algum acesso à terra como meio de
produção (BOECHAT, 2009 e LEITE, 2010), o qual foi base do processo de
acumulação capitalista e formação do trabalho no Brasil, a partir do fim da escravidão
até meados do século XX42 (TOLEDO, 2008).
Sem podermos nos aprofundar mais aqui, vale o destaque de que não devemos,
então, tampouco tratar a fronteira do capital como se sempre fosse igual (TOLEDO,
2019), sendo também a destruição atual da natureza distinta do que já foi, já que
incapaz de valorizar o valor sem trabalho vivo suficiente a ser explorado no processo
produtivo, como é o caso da produção de soja na região supracitada do MATOPIBA
(BOECHAT, PITTA e TOLEDO, 2019; PITTA e MENDONÇA, 2018), mesmo com a
expropriação e exploração do trabalho que mobiliza. Vale o destaque que após 2008,
enquanto o preço das commodities despencava (com este já sendo determinado por
capital fictício em seu momento de inflação dos títulos de propriedade, como vimos), o
preço da terra continuava a subir, estando desacoplados um do outro (preço das
commodities e preço da terra). Sugeri a David Harvey que tal movimento significaria,
para os próprios termos utilizados por ele, uma produção fictícia do espaço43 (PITTA,
2016, página 201 e nota 106) e formulei que nenhuma “acumulação por despossessão”
é capaz de valorizar o valor, já que mesmo com combinação de exploração do trabalho

42 Este processo de formação do trabalho no Brasil não ocorreu sobre camponeses ou relações de
produção pré-capitalistas, mas sobre uma realidade de fronteira aberta que necessitava se utilizar de
violência direta para forçar e mobilizar trabalho, o que Marx já destacara em sua teoria da moderna
colonização (MARX, 1984a, Livro I, Tomo I, capítulo XXV). Para a formulação da formação do
trabalho no Brasil e o colapso da modernização, ver Grupo de Crítica do Valor-Dissociação São Paulo
(2010).
43 Para a palestra dividida com David Harvey, na qual sugerimos tal formulação, ver:

<https://pcp.gc.cuny.edu/2017/02/financial-markets-and-land-speculation-02-15/>. Também
devemos considerar a concepção de produção do espaço, com outra formulação em Lefebvre, para
quem o espaço como abstração concreta determina a reprodução das relações sociais de produção
capitalistas. Para nós tal reprodução hoje ocorre ficcionalizando a forma mercadoria de relação social,
como vimos, o que é a crise de tal reprodução mesma. Ver tal discussão em Pitta (2016), capítulo 3.

126
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

por meio de mais-valia relativa, absoluta e expropriações, o aumento inexorável da


composição orgânica dos capitais moveu expulsão do trabalho vivo do processo
produtivo, dessubstancializando o valor, o que aparece na incapacidade do próprio
capital retomar os processos de simulação de acumulação quando do estouro da bolha
financeira, ou seja, quando não acessa criação de dinheiro nos mercados financeiros a
mediarem fantasmagoricamente a produção de mercadorias.
Quanto à produção imobiliária urbana, destacamos com Martins (2016), que foi
a alta nos investimentos em bolsa de valores que moveu a expansão da produção
imobiliária, a partir da bolha das commodities. Em um primeiro momento, até a crise
de 2008, tal alta não se refletiu em um aumento significativo de produção fictícia do
espaço, mas em um movimento de abertura de capitais em bolsa, aquisição de dívidas
por parte de construtoras e incorporadoras e investimento em um banco de terras, as
quais também passam a apresentar subida de preços e serviram de garantia para novas
rodadas de subida dos preços das ações destas empresas em bolsa de valores e,
consequentemente, novas aquisições. Com a crise de 2008, foi por meio das políticas
públicas voltadas à transformação de tal banco de terras em produção imobiliária,
tanto em obras de infraestrutura (por meio dos PACs), como na produção habitacional
– mediada pelo consumo endividado (com parte desta financiada pelo próprio Estado),
inclusive para camadas sociais de baixa renda, como o Programa Minha Casa, Minha
Vida (MARTINS, 2016) – que se simulou ficticiamente a reprodução capitalista das
empresas do setor, se desenvolveu as forças produtivas e se fomentou a expulsão do
trabalho vivo do processo produtivo (BARAVELLI, 2014), o que se modifica após as
tentativas keynesianas de “eutanásia do rentista” de Dilma Rousseff, de 2012/2013.
Após isso, a crise fiscal e o endividamento do Estado brasileiro conduziram a própria
Rousseff a tentar um ajuste fiscal em 2015, o qual, a partir da impossibilidade de
continuidade de criação de capital fictício por parte do Estado brasileiro, resultaram na
depressão da economia brasileira a partir de então. O golpe parlamentar de 2016
encerrou o ciclo do Partido dos Trabalhadores no governo brasileiro, aprofundou ainda
mais o ajuste fiscal, reformou leis trabalhistas a fim de reduzir ainda mais os custos das
empresas, o que não conduzirá a nenhuma retomada de processos de valorização do
valor, conforme já argumentamos no presente artigo. Em 2018, eleições conduziram
Jair Bolsonaro, candidato de extrema-direita, à presidência da república, o qual tenta
127
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

aprofundar ainda mais tais medidas no plano da redução de custos do capital,


promovendo todos os tipos de cortes de gastos públicos e uma reforma da previdência.
A decadência das camadas médias que ascenderam socialmente ficticiamente ao longo
dos governos do Partido dos Trabalhadores se encontra em processo acelerado e parte
desta está retornando à miséria desde o estouro da bolha das commodities e
principalmente a partir de 2013, processo que se acentua desde então (BRUM, 2020).
Uma produção fictícia do espaço(dessubstancializada) como tentativa de reposição de
processos de acumulação primitiva não seria capaz, assim, de reverter tal inserção da
sociedade brasileira na crise fundamental do trabalho e da mediação social do valor-
dissociação.

5- À guisa de conclusão: a atual crise econômica brasileira, a ascensão da


extrema-direita e sua base histórica comum com os governos de esquerda
recentes

Por meio da apresentação e crítica das formulações de economistas keynesianos


e marxistas tradicionais para a crise econômica brasileira recente, tentamos formular
no presente texto que a mesma, assim como o crescimento econômico que a precedeu
no início de século XXI, fizeram parte, em sua própria forma de ser, da crise
fundamental do capital, caracterizada pela crise do trabalho, em razão da dinâmica
própria da forma social do valor-dissociação como contradição em processo à qual
enquanto sujeitos nos sujeitamos.
Consequentemente, o próprio momento da crítica teórica, embasado que está no
movimento da forma social apreendida como totalidade concreta, exigiu a necessidade
de tematizarmos o processo histórico das categorias do capital enquanto capital, terra,
trabalho e dissociação até sua crise, podendo, somente assim, visarmos sua
suplantação [Überwindung]. O momento de crescimento econômico brasileiro, de
2003/2004 a 2011/2012 e sua crise, assim como os governos do Partido dos
Trabalhadores nestes anos, expressam então em sua própria forma de ser a dinâmica
do valor-dissociação em crise, com sua economia de inflação dos títulos de propriedade
e consequente constituição de bolhas financeiras, desemprego estrutural, consumismo

128
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

de camadas médias, asselvajamento do patriarcado, do racismo e demais diferenças,


assim como o papel desempenhado pelo Estado na tentativa de gestor da barbárie, em
suas práticas de estado de exceção permanente desde o colapso da modernização, a
partir dos anos 1970 e 1980.
Desta maneira, a denominada ascensão de uma nova camada média de crise no
Brasil, a partir de 2003/2004, nada se assemelha com a ascensão das camadas médias
do centro do capitalismo ao longo do boom fordista de meados do século XX, baseado
no aumento dos salários dos trabalhadores e do Estado de Bem-estar Social em razão
do aumento da taxa de lucro do capital determinada pela acumulação baseada na mais-
valia relativa e expansão das cadeias produtivas, com incorporação de trabalho vivo
produtivo para tanto. Tal ascensão deve ser compreendida em mediação com o
movimento da forma social como totalidade concreta, ou seja, com criação de maior
capacidade de consumo improdutiva da população em razão da inflação dos títulos de
propriedade nos mercados de capitais e que apenas pode ocorrer por meio de acesso a
diversas formas de capital fictício, o que se revela no aumento generalizado do
endividamento das empresas capitalistas, do Estado e da sociedade como um todo. Tal
ascensão das camadas médias simulada por capital fictício já significava
aprofundamento da individualização (SCHOLZ, 2008) e da guerra de todos contra
todos, concomitante ao aprofundamento do consumismo espetacularizado como
critério da finalidade social.
Assim, o crescimento econômico mencionado acima deve ser apreendido nesta
mediação fictícia mesma, combinando aumento da composição orgânica dos capitais e
continuidade de expulsão da força de trabalho vivo dos processos produtivos de valor,
conforme tematizamos nos exemplos da produção de commodities, da indústria
automobilística e da construção civil no Brasil. A distribuição de capital fictício como
tentativa de gestão da barbárie (MENEGAT, 2019a) por meio das políticas sociais do
Partido dos Trabalhadores participa então da crise do trabalho em seu momento de
inflação dos títulos de propriedade.
Assim, por exemplo, ao mesmo tempo que propagandeava aumentar a
formalização do trabalho no Brasil, o mesmo ocorria com aumento da concorrência
entre aqueles que ascendiam às novas camadas médias via aumento de sua capacidade
de consumo (SINGER, 2018) e que, concomitante à tentativa de redução de custos por
129
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

parte do próprio capital, promovia aumento das terceirizações e da intensificação do


trabalho, ou seja, da concorrência entre trabalhadores e da exploração do trabalho
também a partir do aumento da produtividade do mesmo. Isso não significava
valorização do valor, já que o trabalho produtivo e produção de mais-valia se reduziam
em números absolutos, conforme apresentamos, por exemplo, por meio da
particularidade concreta da agroindústria canavieira, com seus processos de
mecanização do corte de cana-de-açúcar e as consequentes mortes nos canaviais em
razão dos trabalhadores cortarem cana até à exaustão a fim de tentarem se manter
empregados nos postos de trabalho em diminuição.
Desta maneira, explicitamos ainda, a suposta formalização do trabalho ao longo
do momento de ascensão do Brasil como bolha financeira ocorreu com aumento dos
indivíduos tratados como pessoas jurídicas (os MicroEmpreendedores Individuais –
MEIs, empregados por si mesmos e terceirizados), com aumento das precarizações em
razão do acirramento da concorrência, o que nada mais é se não a forma de ser do
desemprego estrutural da crise do capital em um momento de ascensão da bolha
financeira. Tudo isso ainda predominantemente sobre postos de trabalho
improdutivos, vinculados aos setores prestadores de serviços, ao comércio das
mercadorias e ao sistema financeiro (GIAVAROTTI, 2017). A forma da ascensão de tais
camadas médias se explicita socialmente com toda sua força após o estouro da bolha
das commodities, o que conduz à decadência destas em razão da inflação, da explosão
do desemprego, do endividamento generalizado e da retomada do aprofundamento da
miséria (SINGER, 2018).
O projeto de pacificação continuamente aprimorado durante os governos
petistas representou, na realidade, uma guerra permanente – visível não
apenas através dos índices crescentes de despejos, encarceramento,
chacinas, tortura e letalidade policial, mas também no trabalho. Ao lado
dos dispositivos repressivos de exceção, o motor da nossa [sic]
“economia emergente” foi um verdadeiro “estado de emergência
econômico”, em que a calamidade social justificava políticas ditadas pela
urgência. Sob o discurso da “ampliação de direitos”, proliferaram
variadas formas de subempregos, de rotinas maçantes e rendimentos
duvidosos, enfim, aquilo que vulgarmente se conhece como “trabalhos
de merda” ou “vagas arrombadas”.
O futuro prometido por programas de acesso a microcrédito, à casa
própria ou ao ensino superior, bem como pelo aumento dos empregos
(formais e informais), dissipou-se num presente perpétuo de trabalho
redobrado, endividamento, concorrência, insegurança, cansaço nas filas,

130
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

humilhação nos ônibus lotados, depressão e esgotamento mental. O


preço da euforia dos governos Lula e Dilma foi, em suma, uma
mobilização total para a sobrevivência, traduzida em porções maiores e
mais densas de vida aplicadas ao trabalho (PASSA PALAVRA, 25 de
janeiro de 2019).

Não obstante concordarmos aqui com o modo como o Coletivo Passa Palavra
apreende as formas de manifestação do que é para nós a crise do trabalho e a crise
fundamental do capital ao longo da bolha das commodities no Brasil, vale destacarmos
que, concomitantemente ao que ocorria em relação ao próprio trabalho em crise, um
estado de exceção permanente também se aprofundava, a fim de mobilizar a sociedade
brasileira como um todo a se enquadrar no projeto do Partido dos Trabalhadores de
tentar administrar a crise do capital. Em sua forma, o aumento do encarceramento em
massa, do genocídio da população negra a predominar nas periferias das grandes e
médias cidades brasileiras, de concentração de terras rurais e de capitais e da
desigualdade social são as formas de ser do asselvajamento e da lógica sacrificial da
crise fundamental do capital. Alguns exemplos são sintomáticos de tais processos
como, vale ressaltarmos, a criação da Força Nacional pelo Partido dos Trabalhadores
(ligada ao poder Executivo), responsável direta por garantir as expropriações e
execuções das obras de infraestrutura do PAC, a qual despejou populações negras e
indígenas, pequenos produtores rurais e habitantes das periferias das cidades para
tanto; assim como assassinou inclusive trabalhadores assalariados que paralisaram os
canteiros de obras de tais construções. Aqui, o caso da hidroelétrica de Belo Monte é
sintomático, já que hoje é a terceira maior do mundo, a qual nem a ditadura militar
(1964-1985) conseguira construir, e na qual a Força Nacional atuou e a viabilizou,
expropriando, externalizando custos de destruição da natureza e assassinando
trabalhadores em greve.
Outra marca do governo do Partido dos Trabalhadores é a formulação da Lei
Antiterrorismo (de 16 de março de 2016 – MENEGAT, 2019a, p. 163-164), que passou
inclusive a ser aplicada contra movimentos sociais, como por exemplo, sobre membros
do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra/MST (NOSSA, O Estado de São Paulo,
03 de agosto de 2016) – base de apoio do Partido dos Trabalhadores no poder ao longo

131
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

de todos os seus mandatos – demonstrando o acirramento do estado de exceção


permanente da crise fundamental do valor-dissociação no Brasil a partir de então.
No que diz respeito às políticas de distribuição de capital fictício que moveu a
denominada ascensão das camadas médias por meio do aumento do acesso a consumo
dos sujeitos monetarizados sem dinheiro (KURZ, 1999a) da crise do capital, desejamos
explicitar que foram dirigidas como tentativa de administração do próprio
asselvajamento da crise do capital, que assim, reiteramos, mesmo no auge da bolha das
commodities, já estava presente. O Bolsa Família era voltado às mulheres que
colocassem seus filhos na escola e o Programa Nacional de Agricultura Familiar
(PRONAF) visava conter as populações rurais em seus ínfimos pedaços de terra a
produzir mercadorias por meio de endividamento subsidiado para produção por parte
de pequenos agricultores (VECINA, 2018). O mesmo permitiu o acesso a outros tipos
de crédito por parte dos beneficiários e ativou consumo por meio de capital fictício por
um certo período de tempo. O tipo de contenção e administração de populações na
crise que o PRONAF representou teve seu paralelo nas grandes metrópoles no
encarceramento em massa da população negra e em seu genocídio nas gigantescas
favelas, que nunca pararam de crescer, representando tais casos padrões de
confinamento (LEITE e GIAVAROTTI, 2020) do estado de exceção permanente da
crise do trabalho e do capital (MENEGAT, 2019b).
O que ocorre com o Brasil, após o estouro da bolha financeira de 2008 e o
definitivo estouro da bolha das commodities, a partir de 2011 / 2012 é o
aprofundamento de processos próprios da crise fundamental do valor-dissociação que
já se faziam, assim, presentes ao longo dos próprios governos do Partido dos
Trabalhadores até então.
Sob o diagnóstico clássico baseado em paradigma modernizador e produtivista,
primeiramente Lula e depois Dilma Rousseff, passam, a partir de 2009 e com ênfase a
partir de 2011/2012, às desonerações fiscais das empresas, ao fomento à produção de
infraestrutura e ao consumo, o que conduz à redução da capacidade do Estado
brasileiro de distribuir capital fictício em razão do déficit fiscal e ao consequentemente
ao medo e angústia das camadas médias (SCHOLZ, 2008) que haviam recém acendido
socialmente de retornarem à exclusão e à miséria.

132
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

As medidas de política econômica de Dilma Rousseff, a partir de 2012, de


tentativa de fomentar o investimento capitalista para aumentar a produtividade do
capital e criar crescimento econômico por meio de redução de juros e desvalorização
cambial explicitam para a consciência social uma crise que já estava lá, como
fundamento do processo por nós aqui esmiuçado. Tais medidas explicitam a inflação
estrutural do capital, a partir de 2012, 2013 – relacionada que está ao desenvolvimento
das forças produtivas e aumento da composição orgânica do capital a mover sua
dessubstancialização e ficcionalização – na medida em que inviabilizam a continuidade
do acesso a endividamento em dólar e acesso a mercadorias importadas, o que
encarece a economia brasileira como um todo e afeta diretamente a camada média
recém criada, principalmente composta pela população negra. Ao mesmo tempo, as
tentativas de medidas anticíclicas de política econômica de Rousseff afetam também as
camadas média e alta brancas, por exemplo, com a redução da taxa de juros (que passa
de 12,50% em 2011 para 7,25, em 2013), já que tais camadas vinham compensando o
acirramento da concorrência e a precarização do trabalho através de investimentos
financeiros em fundos, ações e, principalmente, títulos de dívida pública. As mesmas
medidas atingem também as empresas e o sistema financeiro brasileiro, conforme já
destacamos, impedindo a continuidade de rolagem de seu endividamento por meio de
acesso ao mercado de capitais. Tais camadas médias precedentes compostas pela
população branca (SINGER, 2018, p. 82), que basicamente até então haviam mantido
seu status social, mas que já vinham se insatisfazendo com o aumento da concorrência
e da exploração e precarização do trabalho, rompem definitivamente com o Partido dos
Trabalhadores a partir da decadência social que passam também a enfrentar (SINGER,
2018, p. 82). O medo e a angústia da decadência e exclusão sociais são concretos a
partir de então e tais sentimentos (SCHOLZ, 2008) passaram a alimentar a oposição
social à esquerda no governo, a partir de um argumento de que a causa da crise se daria
pela corrupção dos governantes a se sustentarem no poder por meio de medidas
populistas para com os mais pobres, os quais então passam a ser alvo do ressentimento
quando da reversão do processo ascendente da bolha das commodities. Em relação ao
capital, vale ressaltarmos novamente, ocorre a partir de então a falência maciça e em
série de empresas capitalistas e a consequente piora no endividamento generalizado
(REZENDE, 2016) e nas taxas de desemprego (estas principalmente após 2015) da
133
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

sociedade brasileira, agravando a sublevação social que já se intensificara a partir de


2013. O ajuste fiscal tentado por Dilma, a partir de 2015 só aprofunda ainda mais a
depressão da economia brasileira.
As jornadas de junho de 2013, sucessão de manifestações que tomaram as
metrópoles e cidades médias do Brasil e levaram milhões de pessoas à ruas, se
iniciaram mobilizadas pela esquerda autonomista, desencadeadas pelo aumento dos
preços do transporte público, mas depois de algumas semanas foram aderidas pelas
camadas médias e altas motivadas pelo descrito anteriormente, o que compôs uma
frente transversal (SPÄTH, 2017) que incorporaria reivindicações das mais difusas e
dispersas, passando pela crítica das expropriações em razão das grandes obras, pela
defesa da melhoria dos serviços públicos (impactados pelo avanço da crise econômica),
até desembocar na crítica da corrupção daqueles no poder, como se esta fosse causa da
crise econômica e social que se explicitava àquelas consciências e se aprofundava.
O asselvajamento da crise do capital, como mediação social do valor-
dissociação, passa a se aprofundar ainda mais a partir de então, mas vale o enfático
destaque então, que o mesmo não ocorre de forma neutra e indiferente. Serão as novas
camadas médias e pobres compostas por negros e demais diferenças sociais (SCHOLZ,
2008) que principalmente experimentarão a ameaça e concretização da exclusão, da
superfluidade (Überflussigkeit – SCHOLZ, 2008) social e da miséria, a partir do fim
da possibilidade de distribuição de capital fictício do Estado brasileiro com a crise
econômica de 2012/2013, com o aumento da inflação e do endividamento da
sociedade. É esta parte das novas camadas médias que por medo de perder seu status
social recém adquirido também apoia a ascensão da extrema-direita e sua promessa de
segurança social aos postos de governo do Estado brasileiro. Ao mesmo tempo, a
violência do patriarcado em crise se aprofunda, incidindo o asselvajamento também
obviamente sobre as mulheres, vide explosão dos casos de feminicídio no país, a partir
de 2019 (BRUM, 2020). O mesmo ocorre com o genocídio das populações negras e
indígenas e sobre aqueles que não se enquadram em práticas heteronormativas, a
partir de tal momento, principalmente em razão do vigoroso aumento das religiões
neopentecostais nas periferias das cidades brasileiras e sua teologia da prosperidade a
sustentar a eleição de Bolsonaro e a defesa da moral de família burguesa e seu modelo
de patriarcado.
134
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Iniciamos o presente texto tematizando que com a ascensão da extrema-direita à


presidência do Estado brasileiro em 2019, o denominado campo progressista e de
esquerda teria assumido uma postura restaurativa44 (ARANTES, 10/09/2019), que se
caracteriza pelo culto ao passado recente (CATALANI, 2019), de ocupação do Estado
brasileiro pela esquerda. Formulações que criticam as políticas de Lula e Dilma
Rousseff as caracterizam como “tardias” ou “insuficientes” para livrar o Brasil da crise
econômica; ou como tendo engendrado um distributivismo ou uma democracia
“fracas” (SINGER, 2018), ou seja, também insuficientes. No limite, tais críticas
almejam a retomada destas políticas, sem conseguir vinculá-las aos seus
desdobramentos recentes de ascensão da extrema-direita no Brasil, como polo daquilo
mesmo que defendem, sendo um o momento de ascensão da bolha das commodities e
o outro reação ao seu fim, ambos parte da sujeição dos sujeitos sociais aos
desdobramentos históricos da contradição em processo do valor-dissociação, que
atingiu seu limite com a crise do trabalho e fomentou a economia de bolhas financeiras
mesma.
Tais posturas partem também de uma concepção fetichista de sujeito histórico,
ou seja, linear e progressiva, na qual se posicionam como se localizadas no final mais
“avançado” da história, que estaria “regredindo” com a extrema-direita no poder.
Continuam a defender a mobilização do trabalho e processos de modernização e
industrialização, justamente o que está na base da forma social como sujeito
automático (MARX, 1983) da contradição em processo e que conduziu à crise
fundamental da acumulação capitalista, à inflação e desemprego estruturais,
desencadeadores da opção recente pela extrema-direita por parte dos tornados
supérfluos sujeitos monetarizados sem dinheiro.
As acepções do marxismo tradicional, também modernizadoras e de mobilização
para o trabalho, não ficam distantes das formulações acima criticadas, já que também
leram na opção pelo Partido dos Trabalhadores uma parcial retomada dos produtos do
trabalho pelos trabalhadores, o que a seus olhos também deveria linearmente
44 “Quando começou essa avalanche em 2015, 2016, todo mundo falava imediatamente de resistência.
Resistência ao que exatamente? Você tem um campo democrático progressista que é puramente
restaurativo, que quer restaurar. Mas há uma ruptura importante, decisiva, histórica, inédita na
história do Brasil. Mesmo o governo dos militares, foi violento, mas não dá pra dizer que foi um
governo de extrema-direita. E a única resposta é restaurar o que havia antes deste governo? O que
havia antes é que engendrou essa ruptura...” (ARANTES, 10 de setembro de 2019, grifo nosso).

135
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

continuar a ocorrer até a distribuição dos meios de produção aos trabalhadores, desde
que sem estagnação do desenvolvimento das forças produtivas.
Com a extrema-direita no poder, a simulação de ascensão de camadas médias, o
distributivismo de crise e o asselvajamento por meio de tentativas de gestão da
barbárie do estado de exceção permanente assumem a explicitação quase-imediata da
economia de saque e da nova guerra total (MENEGAT, 2019a), que já estavam lá
presentes, mas se tornam reconhecíveis para a subjetividade social. “Ultraliberalismo”
ou “necroliberalismo” como tentativas de retomada de processos de acumulação de
capital que não lograrão suceder, mas que se caracterizam pelo aceleracionismo
(CATALANI, 2019) da exploração do trabalho, das expropriações e da destruição da
natureza, se combinam com a guerra total para contenção da maioria a ser excluída,
como supérfluos para estes processos. Neste sentido, aqui, nos distanciamos da
interpretação de Paulo Arantes (ARANTES, 13 de junho de 2019) ao analisar a
militarização recente no país, seja a partir das ações do Estado, seja por meio das
gangues e milícias (cada vez mais entrelaçadas ao próprio Estado), ao apreendê-las por
meio da antiga crítica do neoliberalismo e de suas políticas de privatização de
empresas, como forma de tentativa de redução de custos e retomada de uma
acumulação de capital que mesmo antes já não era mais viável de ocorrer, conforme
pretendemos ter deixado claro ao fim deste texto. O que está a acontecer contém em
sua própria forma a crise do capital e sua determinação pela inflação dos títulos de
propriedade, daí a necessidade de acessar os mercados de capitais como finalidade de
simulação de acumulação via capital fictício45 (PITTA, 2017) das empresas mobilizadas

45 O mesmo vale aqui para interpretações acerca da chamada “uberização” do trabalho, que continuam a
tentar apreender o movimento histórico do capital ao assumir o ponto de vista do trabalho, que
aparece como cada vez mais explorado sob novas formas, o que diz pouco acerca da capacidade de
valorização do valor do capital como totalidade, conforme já demonstramos. Algumas explicações para
tais processos não são bem-sucedidas inclusive em apreender como a própria empresa Uber, por
exemplo, apesar de tanto explorar trabalho acumula prejuízos. Recentemente, após sua abertura de
capital em bolsa de valores nos EUA, ficou clara a necessidade de mediação pelos mercados de capitais
para tal empresa tentar simular acumulação capitalista por meio do acesso à inflação de títulos de
propriedade, o que nada garante que tal simulação venha a se efetivar. Um tanto caricata (de um
marxismo tradicional que tenta encaixar dedutivamente a realidade em seus pressupostos teóricos
anacrônicos) é a explicação para anos de prejuízo por meio do argumento da prática do dumping por
parte das empresas concorrentes neste tipo de setor, apesar de não conseguirem entender por que
parece assim que o dumping e o prejuízo destas seriam eternos (LOPEZ, InfoMoney, 20 de maio de
2019), uma contradição nos próprios termos desta explicação...

136
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

pela guerra total46. Assim, os grupos sociais de supérfluos aparecem como promessa
futura de rebeldes a serem contidos e controlados, o que pode inflacionar os títulos de
propriedade da indústria armamentista, ativar a aquisição de dívidas por parte destas
empresas tendo por garantia tais títulos inflacionados, o que realimenta a mobilização
da produção e seu desenvolvimento das forças destrutivas47. Tal movimento é a própria
catástrofe social da crise do capital em desdobramento, que continua a aprofundar a
própria crise imanente do capital ao fomentar a inexorável expulsão do trabalho vivo
do processo produtivo, ao mesmo tempo que nos mantemos inseridos na mediação do
valor-dissociação em dissolução, mediação que, no entanto, não é suplantada, mas
reposta, inclusive já que necessitamos continuar trabalhando em um momento de
superfluidade do trabalho. Isso não ocorre como esgotamento da necessidade da
exploração do trabalho para a valorização do valor por parte do capital, já que este
continua a ser sua substância e fundamento, mas por impossibilidade do capital em
fazê-lo, dado o irreversível nível de produtividade dos próprios capitais.
A passagem acima exposta acerca da guerra total contemporânea e da
possibilidade de intermediação do capital fictício em seu momento de inflação dos
títulos de propriedade não pode ser entendida de maneira imediata, como simples
cálculo racional de um sujeito positivo que opta pela aniquilação social do outro e de si
(como é o caso do homem-bomba ou do amoque), próprios que são do fim de linha da
sociabilidade capitalista. Assim, devemos, com Leni Wissen (2017), a partir de Adorno
(1966 e 1967), nos remeter ao nível psicossocial do sujeito da crise do capital, o qual é

46 Jeremy Scahill, em Dirty Wars (2013), critica a “guerra ao terror”, que é em si mesmo “terrorista”,
com suas medidas de estado de exceção permanente via técnicas de tortura, ataques de drones e
análise de dados por algoritmos (o Big Data, para tanto ver Thomas Mayer, Big Data e o novo mundo
inteligente como estágio supremo do positivismo, 2018), como uma profecia autorrealizável que cria o
próprio terrorista, a qual se aprofunda ampliada e tautologicamente. Veja por exemplo o caso da
inflação das ações da Raytheon e demais indústrias bélicas após o lançamento da Mother of All Bombs
(MOAB) em um complexo de túneis no Afeganistão, logo que Trump assumiu o poder, o que moveria a
ampliação da produção bélica e o aprofundamento do surgimento de grupos “terroristas” a tentar fazer
frente à “guerra ao terror”.
47 Sugerimos ao leitor conferir ainda o texto de Menegat (2019b, pg. 170), que apreende os processos

supra mencionados, por exemplo, o do protagonismo militar a partir de 2019 no Brasil como
“compondo o campo ativado pela ‘nova-direita’, [que] tem como pano de fundo uma adequação às
necessidades em curso das guerras de ordenamento mundial, como modos atualizados da gestão da
crise do capital agravada desde 2008. Tal protagonismo dos militares não é o início do estado de
exceção, mas tão somente um momento de aprofundamento do mesmo que tenderá a continuar no
próximo período”.

137
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

tomado por sentimentos como medo e angústia de ameaça e concretização de


superfluidade social, ou por ressentimento que o move a culpabilizar e externalizar no
outro – no feminino ou em identidades racializadas – algo que é do processo social que
o sujeita e que assim ele acaba por reproduzir. Com isso, o nível psicossocial deve ser
apreendido em sua mediação social de valor-dissociação (WISSEN, 2017), o que nos
ajuda a explicar uma reafirmação do fetichismo de sujeito da crise, narcisista, que, ao
invés de tematizar teoricamente por meio da crítica negativa radical do trabalho e da
dissociação a crise social na qual estamos inseridos, escolhe a urgência e
imediaticidade de promessas práticas de aumento da segurança e da exclusão do outro,
o que repõe as bases sociais que nos conduziram ao presente momento, como
desdobramento da contradição em processo da dominação abstrata que se realiza por
meio do próprio fetichismo de sujeito.
“A democracia continua a devorar seus filhos” [“Die Demokratie frißt immer
noch ihre Kinder”] (SCHOLZ, 2020, “Prefácio”), a partir do fetichismo de capital e do
sujeito, que faz os homens acreditarem ser sua finalidade social última se realizarem
por meio de sua dominação sobre as coisas – positivação de uma idealidade da relação
contraditória sujeito x objeto – fetichismo justamente proveniente da finalidade
tautológica da valorização do valor como dominação social, o qual repõe o valor-
dissociação, a mais-valia, a queda tendencial da taxa de lucro, a crise fundamental do
capital, a superfluidade, o asselvajamento social e a guerra total. Para nós, é a
totalidade fragmentada da forma de relação social dos homens mediada pelas coisas
(mercadorias), ou seja, pela mediação do trabalho e do valor-dissociação, que deve ser
criticamente tematizada a fim de podermos vislumbrar a crítica do sujeito mesmo e a
possibilidade de nos relacionarmos de outra maneira, algo que está longe de ser
tentado na prática48 (KLOOS, 2019).

48 No momento em que redigimos as palavras finais deste texto (outubro/novembro de 2019) a Turquia
ataca Rojava, região do Norte e Nordeste da Síria de maioria curda (mas que também comporta outros
grupos étnicos) que foi criada sem visar a implantação de um Estado e experimenta a autogestão das
fábricas pelos trabalhadores para produção, troca e consumo de mercadorias, a partir de tentativas de
tomada de decisão sobre tal processo em comunas e assembleias não hierarquizadas e que visavam a
crítica ao patriarcado. Após a já esperada “traição” do governo terrorista dos EUA – o qual forneceu
suporte para as tropas de Rojava aniquilarem o Estado Islâmico nos últimos anos –, Rojava teve que se
aliar ao terrorista facínora sírio Bashar al-Assad e prometer dissolver seus exércitos no exército sírio
para não ser dizimada. Após isso, EUA, Rússia, Turquia e Síria decidiram estabelecer uma faixa de
segurança (“safe zone”) fronteiriça “não ocupada” entre Síria e Turquia, a qual passa sobre os

138
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Bibliografia

ADORNO, Theodor W. “Sociology and Psychology (I and II)”. New Left Review 46, 1967; e 47,
1968.

__________. “Sobre sujeito e objeto”. Em: Palavras e Sinais: modelos críticos 2. Petrópolis,
Editora Vozes, 1995.

__________. Prismas: crítica cultural e sociedade. São Paulo, Ed. Ática, 1998.

ALFREDO, Anselmo. “Crise imanente, abstração espacial. Fetiche do capital e sociabilidade


crítica”. Em: Revista Terra Livre, São Paulo, ano 26, volume 1, número 34, 2010.

ANDERSON, Perry. “Bolsonaro’s Brazil”. London Review of Books, London, Great Britain, vol.
41, n. 3, 2019.

ARANTES, Paulo. O último círculo: hipótese sobre a catástrofe brasileira. Palestra proferida
na Faculdade de Educação da UNICAMP, Campinas, 13 de junho de 2019. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=Mvp7kRgto68>.

__________. Entrevista a Leonardo Sakamoto: “Pode chegar a hora em que Bolsonaro não
aceite largar o poder, diz filósofo”. Em Blog do Sakamoto, 10 de setembro de 2019. Disponível
em: <https://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2019/09/10/pode-chegar-a-hora-em-
que-bolsonaro-nao-aceite-largar-o-poder-diz-filosofo/>.

ASEVEDO, Marcos. Petrobras: notícias sobre uma crise nada particular. A Petrobras e o Pré-
sal brasileiro no contexto de crise mundial da indústria de petróleo e de financeirização da
economia. Tese de Mestrado, UFRJ, Rio de Janeiro, 2017.

BACCARIN, José G. A constituição da nova regulamentação sucroalcooleira. Brasília, Editora


Unesp, 2005.

BARAVELLI, José Eduardo. Trabalho e tecnologia no Programa MCMV. Tese de Doutorado


em Arquitetura, FAU, USP, São Paulo, 2014.

BARCELLINI, Mariana. Modernização e produção automobilística no estado de São Paulo.


Transformações no processo de trabalho e sua leitura geográfica (1970-1990). Trabalho de
Graduação Individual, Bacharelado em Geografia, FFLCH, USP, São Paulo, 2012.

BARROS, Daniel Chiari e PEDRO, Luciana Silvestre. “As mudanças estruturais do setor
automotivo, os impactos da crise e as perspectivas para o Brasil”. Brasília, BNDES Setorial,
número, 34, setembro de 2011. Disponível em:
<https://web.bndes.gov.br/bib/jspui/handle/1408/1314>.

territórios de Rojava e determina a aniquilação de sua experiência na prática. Tal processo está em
desdobramento trágico. Para nossa crítica a tal experiência, considerada por nós relevante e
significativa, mas que não tematizou teoricamente as bases sociais do capitalismo como sociedade do
trabalho fundada na mediação social da mercadoria e do valor, impedindo também uma possível
experiência prática neste sentido, ver “Uma crítica à economia em Rojava”, do Comitê de
Solidariedade à Resistência Popular Curda de São Paulo (2016).

139
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

BATISTA, Felipe. “Crise, Inflação e os Limites do Estado na Conjuntura Brasileira”. Medium,


2018. Disponível em: <https://medium.com/@cadulipe.hard/1-introdu%C3%A7%C3%A3o-
f747d9b2e611>.

BELLUZZO, Luiz Gonzaga. O capital e suas metamorfoses. Campinas, Editora UNESP, 2012.

BOECHAT, Cássio Arruda. Região do Colonato: Mobilização do Trabalho e autonomização do


Capital na área de Olímpia (1857 – 1964) do Oeste Paulista. São Paulo, FFLCH – USP, 2009,
Dissertação de Mestrado.

____________. O colono que virou suco: terra, trabalho, Estado e capital na modernização
da citricultura paulista. São Paulo, FFLCH - USP, 2014. Tese de Doutorado.

BOECHAT, Cássio; PITTA, Fábio; TOLEDO, Carlos. “‘Pioneiros’ do MATOPIBA: a corrida por
terras e a corrida por teses sobre a fronteira agrícola”. Revista NERA - UNESP, Presidente
Prudente, v. 22, n. 47, pp. 87-122, Dossiê 2019.

BOTELHO, Maurilio. “Superacumulação e colapso do capitalismo no Brasil em retrospectiva”.


Revista Geografares, UFES, Espírito Santo, n. 28, 2019. Disponível em: <
http://periodicos.ufes.br/geografares/issue/view/991/showToc>.

BRAGA, José Carlos; OLIVEIRA, Giuliano; WOLF, PAULO; PALLUDETO, Alex; DEOS,
Simone. “For a political economy of financialization: theory and evidence”. Economia e
Sociedade, Campinas, v. 26, Número Especial, p. 829-856, dezembro de 2017. Disponível em:
<http://www.economia.unicamp.br/index.php/economia-e-sociedade/56-economia-e-
sociedade/765-For%20a%20political%20economy%20of%20financialization-
%20theory%20and%20evidence>.

BRUM, Eliane. “Os cúmplices”. El País, Brasil, 1 de janeiro de 2020. Disponível em:<
https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-01-01/os-cumplices.html>.

CARNEIRO, Ricardo. “Navegando a contravento”. Em: CARNEIRO, BALTAR e SARTI (orgs.).


Para além da política econômica. Editora UNESP, São Paulo, 2018.

CARNEIRO, Ricardo; ROSSI, Pedro; MELLO, Guilherme, CHILLIATO-LEITE, Marcos. “The


Fourth Dimension: Derivatives and Financial Dominance”. Review of Radical Political
Economics, vol. 47, número 4, 2015.

CATALANI, Felipe. A decisão fascista e o mito da regressão: o Brasil à luz do mundo e vice-
versa. Em Blog da Boitempo, 23 de julho de 2019. Disponível em:
<https://blogdaboitempo.com.br/2019/07/23/a-decisao-fascista-e-o-mito-da-regressao-o-
brasil-a-luz-do-mundo-e-vice-versa/>.

CHESNAIS, François. Finance capital today: Corporations and Banks in the Lasting Global
Slump. Ed. Brill, Holanda, 2016.

COMITÊ DE SOLIDARIEDADE À RESISTÊNCIA POPULAR CURDA DE SÃO PAULO. “Uma


crítica à economia em Rojava”. Em: Soresa Rojaveyê: revolução, uma palavra feminina. São
Paulo, Biblioteca Terra Livre, 2016.

140
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

DELGADO, Guilherme. Do capital financeiro na agricultura à economia do agronegócio:


mudanças cíclicas em meio século (1965-2012). Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2012.

DÖRRE, Klaus. “Die neue Landnahme. Dynamiken und Grenzen des Finanzmarkt-
Kapitalismus”. Em: Dörre, Klaus/Lessenich, Stephan/Rosa, Hartmut: Soziologie –
Kapitalismus – Kritik. Eine Debatte. Frankfurt am Main, Alemanha, 2009.

FARHI, Maryse e BORGUI, Roberto. “Operações com derivativos financeiros das corporações
de economias emergentes no ciclo recente”. Anais do II Encontro Internacional da Associação
Keynesiana Brasileira. Porto Alegre, UFRGS, setembro de 2009. Disponível em:
<https://www.academia.edu/10573616/Opera%C3%A7%C3%B5es_com_derivativos_financei
ros_das_corpora%C3%A7%C3%B5es_de_economias_emergentes_no_ciclo_recente1>.

FOSTER, John Bellamy e MAGDOFF, Fred. The great financial crisis: causes and
consequences [A grande crise financeira: causas e consequências – tradução nossa]. Nova
York, Editora Monthly Review, 2009.

GIAVAROTTI, Daniel. “Eles não usam macacão: crise do trabalho e reprodução do colapso da
modernização a partir da periferia da metrópole de São Paulo”. Tese de Doutorado em
Geografia Humana, FFLCH / USP, São Paulo, 2017. Disponível em:
<https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8136/tde-26032019-111308/pt-br.php>.

GIBBON, Peter. “Commodity Derivatives: Financialization and Regulatory Reform”. DIIS


WORKING PAPER2013:12, Danish Institute for International Studies, DIIS, Copenhagen, vol.
12, 2013.

GRUPO DE CRÍTICA DO VALOR-DISSOCIAÇÃO – SP. Formação do Trabalho e


Modernização Retardatária no Brasil [Nachholende Modernisierung und die Herausbildung
der Arbeit in Brasilien]. São Paulo, Dep. de Geografia, FFLCH, USP. Texto para debate entre o
Grupo de Crítica do Valor-dissociação-SP, Brasil e Gruppe Exit! (Verein Für kritische
Gesellschaftwissenschaften [Associação para as Ciências Sociais Críticas], Nuremberg,
Alemanha, 2010.

HARVEY, David. O Enigma do Capital e as crises do capitalismo. São Paulo, Boitempo


Editorial, 2011.

__________. “Teoria da crise e a queda da taxa de lucro”. Em: Revista Geografares, UFES,
Espírito Santo, n. 28, 2019. Disponível em:
<http://periodicos.ufes.br/geografares/issue/view/991/showToc>.

KEMPTER, Klaus. A importância da crítica do valor e da crítica da dissociação-valor para a


ciência da história: sobre a relevância persistente de Karl Marx. Publicação On-line no Site
do Gruppe Exit! (Verein Für kritische Gesellschaftwissenschaften [Associação para as Ciências
Sociais Críticas], Nuremberg, Alemanha, 2016. Tradução: Boaventura Antunes, 2016.
Disponível em: <http://www.obeco-online.org/klaus_kempter.htm>.

KLIMAN, Andrew. The failure of capitalist production: underlying causes of the Great
Recession [A falência da produção capitalista: as causas profundas da Grande Recessão –
tradução nossa]. Londres, PlutoPress, 2012.

141
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

KLOOS, Dominic. “Alternativas ao capitalismo. Em teste: a economia do bem comum”


[“Alternativen zum Kapitalismus. Im Check: Gemeinwohlökonomie“]. Em: Die Frage nach
dem Ganzen Zum gesellschaftskritischen Weg des Ökumenischen Netzes anlässlich seines 25
jährigen Bestehens, p. 299-356, Ökumenisches Netz Rhein-Mosel-Saar (Hrsg.), 2018. Original
disponível em: <https://www.oekumenisches-netz.de/wp-
content/uploads/2019/03/Festschrift-Die-Frage-nach-dem-Ganzen-25-Jahre-Netz-
Webversion-full.pdf>. Tradução de Boaventura Antunes (02/2019), disponível em:
<http://obeco-online.org/dominic_kloos.pdf>.

KURZ, Robert. O colapso da modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise da


economia mundial. 5. ed. São Paulo, Paz e Terra, 1999a.
__________. O fim da economia nacional. Em: Schwarzbuch Kapitalismus. 1999b. Tradução
André Villar. Disponível em: < http://www.obeco-online.org/rkurz430.htm>.
__________. “A substância do capital: O trabalho abstracto como metafísica real social e o
limite interno absoluto da valorização” [Die Substanz des Kapitals: abstrakte Arbeit als
gesellschaftliche Realmetaphysik und die absolute Schranke der Verwertung]. Revista exit!,
Krise und Kritik der Warengesellschaft, Editora Horlemann, Alemanha, número 1, 2004.
Tradução de Lumir Nahodil e Boaventura Antunes. Disponível em:
<http://obeco.planetaclix.pt/rkurz203.htm>.
__________. Das Weltkapital: Globalisierung und innereSchranke des
modernenwarenproduzierenden Systems [The world capital: globalization and the internal
limit of the the modern merchandise production system]. Edition TIAMAT, Alemanha, 2005.
__________. “Cinzenta é a árvore dourada da vida e verde é a teoria: o problema da práxis
como evergreen de uma crítica truncada do capitalismo e a história das esquerdas” [Grau ist
des Lebens goldner Baum und grun die Theorie: das Praxis-Problem als Evergreen verkurzter
Gesellschaftskritik und die Geschichte der Linken]. Revista exit!, Krise und Kritik der
Warengesellschaft, Editora Horlemann, Alemanha, número 4, 2007. Tradução de Boaventura
Antunes. Disponível em: <http://www.obeco-online.org/rkurz288.htm>.
__________. “Poder mundial e dinheiro mundial: a função económica da máquina militar
dos Estados Unidos no capitalismo global e os motivos ocultos da nova crise financeira”
[Weltmacht und Weltgeld: die ökonomische Funktion der US-Militärmaschine im globalen
Kapitalismus und die Hintergründe der neuen Finanzkrise]. Revista Widersprüch, Zurique,
Alemanha, número 53, 2008. Tradução de Boaventura Antunes. Disponível em:
<http://www.obeco-online.org/rkurz283.htm>.
__________. Dinheiro sem valor. Lisboa, Editora Antígona, 2014.

__________. “A ascensão do dinheiro aos céus: os limites estruturais da valorização do


capital, o capitalismo de cassino e a crise financeira global”. Em: BOECHAT et al. (orgs.).
Geografares, Revista do Programa de Pós-Graduação em Geografia e do Departamento de
Geografia da UFES, número 28, janeiro – junho de 2019. Disponível em: <
http://periodicos.ufes.br/geografares/issue/view/991>. Sítio consultado em junho de 2019.

LEITE, Ana Carolina Gonçalves. A modernização do Vale do Jequitinhonha mineiro e o


processo de formação do trabalhador bóia-fria em suas condições regionais de mobilização
do trabalho. São Paulo, FFLCH – USP, 2010. Dissertação de Mestrado

142
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

LEITE, Ana Carolina e GIAVAROTTI, Daniel. “Padrão territorial e crise do trabalho: O


confinamento como forma de territorialização das relações sociais capitalistas
contemporâneas”. Cuadernos de Geografia da Colombia, vol. 29, n.1 de 2020.

LOPEZ, Marcelo. “O que explica o fracasso dos IPOs da Uber e Lyft?”. Em: InfoMoney, 20 de
maio de 2019. Disponível em: <https://www.infomoney.com.br/colunistas/investimentos-
internacionais/o-que-explica-o-fracasso-dos-ipos-da-uber-e-lyft/>.

MARQUETTI, Adalmir; HOFF, Cecilia; MIEBACH, Alessandro. Lucratividade e Distribuição:


A origem econômica da crise política brasileira. Research Gate, 2016. Disponível em:
<https://www.researchgate.net/publication/312191358>.

MARTINS, Bruno. “Modelo crítico de expansão do setor Imobiliário brasileiro ao programa


Minha Casa Minha Vida”. Revista GEOgraphia, Rio de Janeiro, ano 18, número 36, 2016.

MARX, Karl. O Capital – Crítica da Economia Política. Livro I, Tomo I. São Paulo, Abril
Cultural, 1983 (Série “Os Economistas”).

__________. O Capital – Crítica da Economia Política. Livro I, Tomo II. São Paulo, Abril
Cultural, 1984a (Série “Os Economistas”).

__________. O Capital – Crítica da Economia Política. Livro II. São Paulo, Abril Cultural,
1984b (Série “Os Economistas”).

__________. O Capital – Crítica da Economia Política. Livro III, Tomo I. São Paulo, Abril
Cultural, 1984c (Série “Os Economistas”).

__________. O Capital – Crítica da Economia Política. Livro III, Tomo II. São Paulo, Abril
Cultural, 1985 (Série “Os Economistas”).

__________. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo, Editora Expressão


Popular, 2008.

MENEGAT, Marildo. A crítica do capitalismo em tempos de catástrofe: o giro dos ponteiros


no relógio no pulso de um morto. Ed. Consequência, Rio de Janeiro, 2019a.

__________. “Noites brancas – o exército como regulador imediato da gestão da barbárie”.


Em: BOECHAT et al. (orgs.). Geografares, Revista do Programa de Pós-Graduação em
Geografia e do Departamento de Geografia da UFES, número 28, janeiro – junho de 2019.
Disponível em: <http://periodicos.ufes.br/geografares/issue/view/991>. Sítio consultado em
junho de 2019b.

MEYER, Thomas. “Big Data e o novo mundo inteligente como estádio supremo do positivismo”
[“Big Data und die smarte neue Welt als höchstes Stadium des Positivismus”]. Em: Revista
exit! Krise und Kritik der Warengesellschaft, Alemanha, Abril de 2018. Disponível em:
<https://www.exit-online.org/link.php?tabelle=autoren&posnr=579>. Tradução de
Boaventura Antunes, 2018. Disponível em: <http://www.obeco-
online.org/thomas_meyer4.htm>.

143
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

__________. Crítica do valor como embalagem enganadora [Wertkritik als Mogelpackung].


Em: Site do GRUPPE Eixt! Krise und Kritik der Warengesellschaft, Alemanha, outubro de
2019. TRadução de Boaventura Antunes.

MILANEZ, Bruno. “Boom ou bolha? A influência do mercado financeiro sobre o preço do


minério de ferro no período 2000-2016”. Versus Jornal, Juiz de Fora, MG, vol. 1 (S2), 2017.

MILANEZ, Felipe. “É urgente combater o plano de holocausto ecológico do bolsonarismo”.


Carta Capital, São Paulo, 7 de junho de 2019. Available at: <
https://www.cartacapital.com.br/sustentabilidade/e-urgente-combater-o-plano-de-
holocausto-ecologico-do-bolsonarismo>.

NOBRE, Marcos. “O candidato do colapso”. Revista Piauí, São Paulo, Brazil, October 17, 2018.
Available at: <https://piaui.folha.uol.com.br/o-candidato-do-colapso/>.

NOSSA, Leonêncio. “Justiça mantém sem-terra presos com base na lei antiterrorismo”. O
Estado de São Paulo, 03 de agosto de 2016. Disponível em:
<https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,justica-mantem-sem-terra-presos-com-base-
na-lei-antiterrorismo,10000066632>.

ORTLIEB, Claus Peter. “Uma contradição entre matéria e forma: sobre a importância da
produção de mais-valia relativa para a dinâmica de crise final”. Alemanha, Revista exit! Krise
und Kritik der Warengesellschaft, número 6, 2009. Disponível em: <http://o-beco-
pt.blogspot.com/2010/06/claus-peter-ortlieb-uma-contradicao.html>.

PASSA PALAVRA (Coletivo). Olha como a coisa virou. Passa Palavra, 25 de janeiro de 2019.
Disponível em: <https://passapalavra.info/2019/01/125118/>.

PAULANI, Leda. “Não há saída sem a reversão da financeirização”. Estudos Avançados, 31


(89), 2017.

PITTA, Fábio. Modernização retardatária e agroindústria sucroalcooleira paulista: o


Proálcool como reprodução fictícia do capital em crise. Dissertação de Mestrado. São Paulo,
Universidade de São Paulo, 2011. Disponível em:
<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8136/tde-20102011-110312/pt-br.php>.

__________. As transformações na reprodução fictícia do capital na agroindústria


canavieira paulista: do Proálcool à crise de 2008. [The transformations in the fictitious
reproduction of capital in the São Paulo sugarcane industry: from the Pro-alcohol to the
crisis of 2008]. Tese (Doutorado em Geografia Humana) - FFLCH, Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2016. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8136/tde-
10052016-140701/pt-br.php>.

__________. “Pequeno ensaio crítico da democracia como uma das formas de terrorismo de
Estado” in: Terrorismo de Estado, direitos humanos e movimentos sociais (org. PITTA, Fábio;
MARIANA, Fernando; BRUNO, Lúcia; SILVA, Rodrigo R.), São Paulo, Editora Entremares,
2017.

_________. „Land als Spekulationsobjekt?“. Em: Die Frage nach dem Ganzen: zum
gesellschaftskritischen Weg des Ökumenischen Netzes anlässlich seines 25 jährigen
Bestehens, Ökumenisches Netz Rhein-Mosel-Saar (Hrsg.), p. 57 – 64, 2018.

144
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Disponível em: <https://www.oekumenisches-netz.de/wp-


content/uploads/2019/03/Festschrift-Die-Frage-nach-dem-Ganzen-25-Jahre-Netz-
Webversion-full.pdf>.

PITTA, Fábio T.; BOECHAT, Cássio A.; MENDONÇA, Maria Luisa. “A produção do espaço na
região do MATOPIBA: violência, transnacionais imobiliárias agrícolas e capital fictício”.
Revista Estudos Internacionais, Belo Horizonte, volume 5, número 2, 2017.

PITTA, Fábio T.; MENDONÇA, Maria Luisa. “The role of international financial capital in the
Brazilian land market”. Latin American Perspectives (LAPs), University of California,
Riverside, Califórnia, EUA, Volume 45, Issue 5, September, 2018.

REZENDE, Felipe. “Financial fragility, instability and the Brazilian crisis: a Keynes-Minsky-
Godley approach”. Discussion Paper nº 1, Multidisciplinary Institute for Development and
Strategies, Hobart and William Smith Colleges, NY, USA, 2016.

SASSEN, Saskia. Expulsions: brutality and complexity in the global economy. Belknap Press,
Harvard University Press, Cambridge, USA, 2014.

SCAHILL, Jeremy. Dirty wars: the world is a battlefield. Natin Books, USA, 2013.

SCHOLZ, Roswitha.“O ser-se supérfluo e a ‘angústia da classe média’: o fenómeno da exclusão


e a estratificação social no capitalismo” [“Überflüssig sein und „Mittelschichtsangst“: das
Phänomen der Exklusion und die soziale Stratifikation im Kapitalismus]. Revista exit! Krise
und Kritik der Warengesellschaft, Editora Horlemann, Alemanha, número 5, 2008. Tradução
de Boaventura Antunes e Lumir Nahodil. Disponível em: <http://www.obeco-
online.org/roswitha_scholz8.htm>.

__________. “Forma social e totalidade concreta: na urgência de um realismo dialético hoje”


[“Gesellschaftliche Form und konkrete Totalität”]. Revista exit! Krise und Kritik der
Warengesellschaft, Editora Horlemann, Alemanha, número 6, 2009. Tradução de Boaventura
Antunes e Virgínia Saavedra. Disponível em: <http://www.obeco-
online.org/roswitha_scholz12.htm>.

__________. “FEMINISMO – CAPITALISMO – ECONOMIA – CRISE: objecções da crítica


da dissociação-valor a algumas abordagens da actual crítica feminista da economia”
[FEMINISMUS – KAPITALISMUS – ÖKONOMIE – KRISE. Wert-Abspaltungs-kritische
Einwände gegenüber einigen Ansätzen feministischer Ökonomiekritik heute]. Revista exit!
Krise und Kritik der Warengesellschaft, Editora Horlemann, Alemanha, número 11, 2013.
Tradução de Boaventura Antunes. Disponível em: <http://www.obeco-
online.org/roswitha_scholz17.htm>.

__________. “Cristóvão Colombo forever? - para a crítica das atuais teorias da colonização
no contexto do ‘colapso da modernização’”. Revista Geografares, UFES, Espírito Santo,
número 28, 2019. Disponível em: <
http://periodicos.ufes.br/geografares/issue/view/991/showToc>.

__________. “Vorwort ‘Die Demokratie frisst ihre Kinder’” / “Prefácio” (de maio de 2018) ao
livro de Robert Kurz: A democracia devora seus filhos. Rio de Janeiro, Editora Consequência,
tradução do “Prefácio” Fábio Pitta, 2020 (no prelo).

145
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

SILVA, Allan Rodrigo de Campos. Imigrantes afro-islâmicos na indústria avícola halal


brasileira. Dissertação de Mestrado em Geografia Humana, FFLCH-USP, 2013.

SINGER, André. O lulismo em crise: um quebra-cabeça do período Dilma (2011 – 2016).


Companhia das Letras, São Paulo, 2018.

SPÄTH, Daniel. “Frente transversal em toda a parte!” [“Querfront allerorten!”]. Em: Revista
exit!, Alemanha, nº14, Maio de 2017. Tradução de Boaventura Antunes. Disponível em:
<http://www.obeco-online.org/daniel_spath8.pdf>.

TOLEDO, Carlos. A região da Lavras Baianas. Tese de Doutorado em Geografia Humana,


FFLCH, USP, São Paulo, 2008.

__________. “A fronteira da territorialização do capital”. Em CARLOS, Ana Fani e CRUZ,


Rita. A necessidade da Geografia. São Paulo, Editora Contexto, 2019.

TOOZE, Adam. Crashed: how a decade of financial crisis changed the world. Penguin
Publishing Group, EUA, 2018.

VECINA, Cecilia. As comunidades quilombolas em Eldorado (Vale do Ribeira/SP) e a


mobilização do trabalho imposta pelo PRONAF: a relação entre a expropriação e a
autonomização das categorias sociais capitalistas. Dissertação de Mestrado em Geografia
Humana, FFLCH, USP, 2018.

WISSEN, Leni. “A matriz psicossocial do sujeito burguês na crise: uma leitura da psicanálise de
Freud do ponto de vista da crítica da dissociação-valor” [“Die sozialpsychische Matrix des
bürgerlichen Subjekts in der Krise”]. Em: Revista Exit, número 14, 2017. Tradução Boaventura
Antunes, 2017. Disponível em: <http://www.obeco-online.org/leni_wissen.htm>.

146
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

A TRAJETÓRIA DO ANTROPOCENO E
O GENERAL INTELLECT
Crítica imanente das ciências naturais para uma improvável
emancipação1

Daniel Cunha2

Computer love
Computer love

(Kraftwerk)

Na época do Antropoceno, cujas manifestações percorrem todas as escalas e


temporalidades, de pandemias exponenciais anuais ao aquecimento global secular, é de
importância crucial para qualquer teoria crítica ou projeto emancipatório a
conceituação das ciências naturais e seu papel, tanto na imanência do capitalismo
quanto em relação a um movimento de superação. Tanto no caso da mudança climática
quanto no das pandemias, modelos matemáticos e computadores são intensamente
utilizados pelos que pretendem enfrentar as questões racionalmente. Porém, uma
análise de algumas daquelas conceituações revelam inconsistências significativas. Pois,

1 Esta é uma versão expandida de uma palestra originalmente apresentada no seminário Ciência e a
Hipótese Comunista, organizado pelo Centro de Estudos da Ideia e da Ideologia, UFF, Rio de Janeiro,
Julho de 2018, e na conferência Climate of Crisis: Life, Power, and Planetary Justice in the
Capitalocene, organizada pela World-Ecology Research Network, Binghamton (EUA), Fevereiro de
2020. Uma versão preliminar foi publicada no Blog da Consequência
(https://blogdaconsequencia.com/2018/09/12/a-trajetoria-do-antropoceno-ciencia-natureza-e-
emancipacao-ou-por-uma-critica-imanente-das-ciencias-naturais-2/). Agradeço o Centro de Estudos
da Ideia e da Ideologia, especialmente Joelton Nascimento, Sílvia Ramos Bezerra e Gabriel
Tupinambá, pelo convite para o seminário no Rio. Agradeço Cláudio R. Duarte, Raphael F. Alvarenga,
Joelton Nascimento, Fábio Pitta, Maurílio Botelho, Douglas Rodrigues Barros, Edemilson Paraná,
Jason W. Moore, Tobias Menely, Daniel Boscov-Ellen, Alan Rudy, Joseph Keith, Troy Vettese, e outros
cujos nomes não tenho registro, pelas perguntas, comentários e críticas sobre versões anteriores deste
artigo. Agradeço José Mauro Garboza Júnior e Jeff Almeida pelo auxílio com ciatações. A
responsabilidade é exclusivamente minha. Esta pesquisa foi apoiada por uma Provost’s Doctoral
Summer Fellowship da Binghamton University.
2 Doutorando em Sociologia (Binghamton University), M. Sc. Ciência Ambiental, Engenheiro Químico.
E-mail: dcunha77@outlook.com

147
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

ao mesmo tempo em que o diagnóstico último do Antropoceno é quase sempre aceito –


o planeta está sendo deslocado do seu “espaço de operação seguro”, o que resulta
potencialmente em catástrofes de escala global – as ciências naturais que possibilitam
esse diagnóstico são frequentemente criticadas unilateralmente como puros
instrumentos de dominação ou ideologia. Como pode o diagnóstico ser aceito se os
métodos subjacentes são unilateralmente rejeitados? Ou seria melhor negarde todo a
possibilidade de conhecimento da história natural, como de fato é feito por alguns
estudiosos? Em meu entendimento, uma teoria crítica emancipatória consequente deve
ser capaz de compreender as ciências naturais tanto em seus momentos de ideologia e
dominação quanto naqueles de esclarecimento e promessa de liberação: em outras
palavras, ela deve conceituar o caráter contraditório das ciências naturais no
capitalismo, que está historicamente situado no caráter contraditório da produção de
mercadorias e seu sujeito, ou seja, na “trajetória da produção” (Postone 2014) da
modernidade capitalista.

As questões subjacentes aqui são a relação entre sujeito e objeto, e a constituição


do próprio sujeito. Se este é constituído no interior das relações fetichistas da
mercadoria, pode o conhecimento gerado por ele ir além desta constituição fetichista?3
Em especial, é válido o conhecimento sobre a mudança climática, que se baseia em
grande medida em reconstruções do clima anteriores à existência não apenas da
sociedade da mercadoria, mas da espécie humana, e em modelos matemáticos que,
segundo importante intelectual da crítica do valor (C. P. Ortlieb), são “pura ilusão”?
Deveríamos, assim, ser agnósticos quanto à mudança climática sociogênica, como
defende Neil Smith? O sujeito da ciência é contraditório, como proposto por Adorno e
Horkheimer, ou puramente nefasto e pernicioso em sua “razão sangrenta”, como
proposto pelo Robert Kurz tardio? Pode um sujeito puramente pernicioso e funesto
produzir conhecimento ou “artefatos” úteis para a emancipação? E quais as

3 O conceito de fetichismo que uso aqui deriva de Marx em O capital, o que implica dizer que é
essencialmente diverso daquele utilizado pelo marxismo histórico, que o trata como “falsa
consciência” ou “véu” que encobre os “reais interesses de classe”. Na concepção original marxiana, o
fetichismo conforma as mediações sociais capitalistas realmente como relações sociais entre coisas e
relações coisificadas entre pessoas, com a mercadoria e seu caráter contraditório como célula
fundamental. As classes, então, aparecem como “máscaras de caráter” e “personificações de categorias
econômicas”, derivando do valor (inversão de sujeito e objeto). Ver também Postone (2014), Jappe
(2006), Colletti (1992).

148
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

consequências para a teoria do conhecimento gerado por este sujeito? O problema


proposto neste ensaio – o conhecimento da história natural para além da forma social
capitalista – é o de estarmos lidando com uma aporia da história. Sendo o sujeito da
mercadoria constituído no interior das relações de fetiche capitalistas, ele seria incapaz
mesmo de apreender a história exterior a esta forma social:

este abismo nem sequer com uma viagem no tempo seria


totalmente transposto, porque chegaríamos sempre ao passado
como indivíduos de constituição moderna que somos. E isto é
válido também para os futuros seres humanos de um mundo livre
da relação de valor-dissociação (Kurz 2006; grifo meu).

Este artigo enfrentará o problema começando com uma exposição sobre as


origens histórico-constitutivas de uma teoria científica: a teoria do aquecimento global
e suas consequências, que fazem uso de conceitos desenvolvidos sob a égide do
capitalismo: mais especificamente da mineração capitalista (geologia) e do capitalismo
termo-industrial (termodinâmica), bem como dos jardins botânicos imperiais
(ecologia). Esse desenvolvimento histórico é, de fato, um “embaraço” histórico para
boa parte das epistemologias correntes. Em seguida, serão discutidas algumas destas
epistemologias para enfim chegar a uma posição que determina as ciências naturais
enquanto contraditórias, contendo em si tanto elementos destrutivos da sociabilidade
humana e sua relação com a natureza quanto elementos de potencial liberação
humano-natural. Finalmente, será especulado sobre as possibilidades imanentes de
emancipação propiciadas pela ciência e o que seria uma epistemologia emancipatória,
tomando algumas propostas dos escritos da juventude e aspectos metodológicos de
Marx e elementos da ficção científica.

Politicamente, este artigo se posiciona no campo da “luta pela verdade”, como


proposto por Robert Kurz (2014), ainda que não coicidindo com o proponente na
solução do problema particular.

**

149
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Antropoceno e o general intellect

Another lonely night, lonely night


Stare at the TV screen, the TV screen

(Kraftwerk)

Paul Crutzen popularizou o conceito de Antropoceno em artigo publicado na


revista Nature, definindo-o como a “época geológica” que é “de muitas maneiras
dominada pelos humanos” (2002). Na época precedente, o Holoceno, e todas as
anteriores, o estado do sistema planetário era determinado por forças naturais, como
erupções vulcânicas, variações da órbita terrestre ou efeitos da evolução biológica,
como o surgimento dos primeiros organismos fotossintéticos que causaram a mudança
da composição da atmosfera. Nesse contexto, cientistas do sistema planetário alertam
que alguns parâmetros que mantinham a estabilidade do estado holocênico, ao qual a
civilização atual está adaptada, já ultrapassaram os limites considerados seguros, como
o ciclo do nitrogênio e diversidade genética; outros, como o ciclo do carbono (regulador
do clima) estão se aproximando da mesma situação (Rockstrom et al 2009; Steffen et
al 2015). Crutzen sugeriu como ponto de partida do Antropoceno a invenção da
máquina a vapor de Watt no século XVIII, que desde então intensificou a queima de
combustíveis fósseis (2002).

Muitas críticas foram elaboradas contra o conceito de Antropoceno,


questionando a presunção da “humanidade” realizada (Malm e Hornborg 2014; Moore
2017). Fraturas relacionadas a classe, centro-periferia, gênero, “raça” etc. tornam a
responsabilização da humanidade como um todo pela perturbação do sistema terrestre
muito pouco convincente. Mais do que isso, a própria noção de “dominação” ou
“controle” sobre o sistema planetário deve ser contestada. Pois não foi a intenção de
nenhum indivíduo, classe, ou Estado nacional, por exemplo, causar o aquecimento
global, a acidificação dos oceanos ou a perturbação do ciclo do nitrogênio. Aqui a noção
de fetichismo ou alienação, em sua relação com a teoria do valor em Marx, esclarece
como certos agentes “não o sabem, mas o fazem”: esse resultado inconsciente é
consequência das relações coisificadas do capitalismo (Cunha 2015a; 2015b). No
último capítulo dos Grundrisse, dedicado ao valor, Marx afirma que “a troca não

150
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

começa entre os indivíduos no interior de uma comunidade, mas ali onde as


comunidades terminam – em sua fronteira” (Marx 2011a, 756-7). A mercadoria, então,
então, aparece na abertura d’O Capital – no método dialético, a conclusão do método
de investigação abre o modo de exposição (Marx 2011b, cap. 1).4 N’O Capital a crítica é
imanente, mostrando a exposição que a mercadoria assume centralidade na forma
social capitalista. Isso se aplica desde o nível do indivíduo, que precisa trocar
mercadorias mesmo para a sua mais básica reprodução na sociedade da mercadoria. A
modernidade capitalista dissolve a comunidade e a aliena no valor, que assume o
caráter de mediação universal da vida social (Postone 2014; Colletti 1992; Jappe
2006). A dissolução da comunidade dissolve também a unidade do “trabalho” e do
objeto do “trabalho”, constituindo as abstrações violentas “Sociedade” e “Natureza”.5

Essa formação social determinada pelo fetichismo da valorização do valor e sua


esfera dissociada (reprodução, delegada ao “feminino”) produz uma forma alienada de
desenvolvimento histórico, marcada pela crescente composição orgânica do capital e
consumo de capital circulante (matérias-primas). À medida que capitais individuais
competem entre si e buscam eficiência crescente na produção de lucros, tanto mais a
produção material se baseia em capital fixo (maquinário) e menos em capital variável
(trabalho vivo), tornando o trabalho socialmente necessário uma base miserável para a
imensa riqueza material produzida pelas forças de produção avançadas (Marx 2011a,
587-591; Postone 2014, 2019; Kurz 2019). Mas, como destacado por Moore (2015),
muitos leitores de Marx se fixam unilateralmente no componente fixo do capital
constante (maquinário etc.), negligenciando o componente do capital circulante
(Moore 2015, 92-94). Este exerce uma mediação importante na trajetória da
composição orgânica do capital, com a produção de “naturezas históricas”
especialmente organizadas para a produção de capital circulante barato. As plantações
de cana de açúcar no Brasil colonial foram um exemplo precoce, enquanto as

4 É por isso que no início do último capítulo dos Grundrisse Marx faz a observação: “Dieser Abschnitt
nachzunehmen” – trazer esta seção para a frente – infelizmente traduzido pela edição da Boitempo
como “retomar esta seção”.
5 Refiro-me às abstrações violentas “natureza” e “sociedade” (quando a sociedade não é conceituada
como parte da natureza, sendo isso uma expressão real das tendências da forma social) em oposição à
abstração de pensamento “natureza”, que permanece um conceito necessário para se referir à
existência de um mundo externo cujas “leis” e “padrões” são independentes de volições humanas.
Sobre abstração violenta, ver Sayer (1983,121).

151
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

plantações de algodão no sul dos Estados Unidos no século XIX já estavam plenamente
integradas na dinâmica capitalista da valorização do valor. Ambas usavam o trabalho
escravo e apropriavam a fertilidade natural do solo em fronteiras de mercadorias, a
fronteira onde a natureza não-capitalizada é apropriada e se torna parte do circuito do
capital.6 Aquelas plantações de algodão foram parte constitutiva fundamental da
Revolução Industrial, entendida como histórico-mundial (ao invés de britânica), como
condição de possibilidade para o incremento de capital fixo nas fábricas têxteis
britânicas (Cunha 2018).

O que emerge, então, é uma dialética de controle e descontrole. O capital busca


produzir “naturezas históricas” à sua imagem (o que pode incluir o chicote), assim
como exerce o “despotismo na produção” (Marx) no chão da fábrica. Dada a dissolução
da comunidade e sua alienação no valor como mediação universal, e a acumulação
como trabalho morto (forças produtivas cada vez mais poderosas), a totalidade é
caracterizada pelo descontrole crescente.7 Não há plano algum para esquentar o
planeta; o aquecimento global é simplesmente a consequência inconsciente da busca
de lucros dos capitais individuais no mercado mundial. Como, portanto, ele consiste
em uma situação com determinações historicamente específicas, Moore e outros
propõem que essa época deveria ser chamada de Capitaloceno, abandonando todo
traço de a-historicidade, o que parece justificado (Malm e Hornborg 2014; Moore
2017). Durante o Capitaloceno, assim, as ciências naturais se desenvolvem para
subjugar a natureza como “substrato de dominação” nas unidades de produção
individuais (Adorno e Horkheimer 1985, 24). O capital promove os estudos dos
“padrões” ou “leis” da natureza (química, física, biologia etc.) de maneira que possa
aplicá-los à produção de mercadorias, de maneira regular, controlada e previsível, em
suma, “desencantada”. Isso pode ter lugar diretamente nas unidades de produção ou
em instituições como burocracias estatais e escolas técnicas (Laudan 1994, 47). Nesse

6 Este é o problema da reprodução ampliada do capital, como elaborado por Marx no segundo volume do
Capital, discutido por Rosa Luxemburgo e repensado por Jason W. Moore com o seu conceito de
“fronteira de mercadoria”. Ver Moore (2000; 2015, ch. 2).
7 Derivo essa dialética de controle e descontrole de Campagne (2017, 84-86), em estudo comparativo

entre os conceitos de Antropoceno elaborados por Jason W. Moore, Andreas Malm e por mim. Isso
também pode ser derivado de Marx: “na sociedade do modo de produção capitalista a anarquia da
divisão social do trabalho e o despotismo da divisão manufatureira do trabalho se condicionam
mutuamente” (2011b, 430).

152
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

processo, como exposto por Marx, à medida que as forças produtivas se desenvolvem
constitui-se um “general intellect”, como força produtiva social que se realiza mais
como conhecimento e supervisão do maquinário do que como processo de trabalho
direto (Marx 2011a, 587-591). Nesse ínterim, para que o capital aplique as “leis da
natureza” na produção de mercadorias, ele é obrigado a lidar com a “resistência da
matéria”, uma matéria que, contrariamente ao valor de troca que comanda a produção
capitalista, não é fungível, é dotada de propriedades sensíveis específicas.

Aquela ciência, portanto, que permanentemente busca reduzir a natureza a


“substrato de dominação” nas unidades privadas de produção contém em si, em germe,
a possibilidade de uma forma de relação diferente com a natureza, porque ela é
obrigada a lidar com o aspecto concreto-sensível da natureza na produção de
mercadorias. Isso se revela, inclusive, na “aplicabilidade” dessas ciências. A ciência
climática não seria possível sem o conhecimento gerado sob condições despóticas
capitalistas. Dois dos componentes principais dos modelos climáticos são a noção de
que o planeta tem uma história natural ao longo da qual as mesmas “leis” básicas se
aplicam (geologia); e a noção de que a energia não pode ser criada e tampouco
destruída, e flui de corpos quentes para corpos frios (termodinâmica). Com base nisso,
pode-se calcular o parâmetro principal daqueles modelos, a sensibilidade climática –
ou seja, o aumento da temperatura média global do planeta causado por um
determinado aumento da concentração de carbono atmosférico – com base em
variações climáticas passadas ou simuladas. Mais do que isso, os impactos da mudança
climática em ecossistemas só podem ser avaliados com um conhecimento prévio cuja
acumulação se iniciou com os impérios coloniais. Traçar a história desses
conhecimentos será ilustrativo.

As origens da geologia podem ser localizadas na mineralogia, que nasceu no


capitalismo primitivo na região mineradora da Europa Central (Laudan 1994; Adams
1938). A primeira classificação sistemática dos “fósseis” não baseada em explicações
mágicas foi proposta por Agricola (1494-1555) no século XV. Ele viveu e trabalhou
como médico nos Montes Metalíferos (Erzgebirge), a mais importante região
mineradora daquele tempo, e estava em constante contato com os mineiros. É
significativo que ele considerava o valor econômico dos minerais e rochas em seus
153
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

trabalhos, revelando assim a motivação para a racionalização da mineração. Três


séculos mais tarde, Abraham Werner, também vivendo nos Montes Metalíferos,
enquanto sistematizava as camadas geológicas e analisava a presença desigual de
fósseis em diferentes camadas, propôs a ideia de que o “nosso planeta é filho do tempo
e foi construído gradualmente”, cunhando o termo “formação” geológica. O caráter
variegado da crosta terrestre seria o resultado de grandes enchentes e outras
influências gigantescas (Adams 1938, 221), de maneira que ele pôde propor uma teoria
naturalista da origem da Terra baseada na ação da água (conhecida como teoria
neptúnica), mais tarde modificada pelo escocês Hutton ao incorporar o papel dos
vulcões (a teoria plutônica). Deve-se notar que a teoria neptúnica era ainda compatível
com a gênese bíblica, enquanto a teoria plutônica apresentava a Terra como um
processo ainda vivo, apresentando-se como mais claramente irreligiosa (Adams 1938).
A partir da mineração capitalista, então, de Agricola a Hutton, nasceu a moderna
ciência geológica: a Terra teria uma história que pode ser investigada tomando-se
amostras e fazendo trabalho de campo para a compreensão das camadas geológicas. Já
no século XIX, em paralelo, Cuvier na corte francesa e William Smith enquanto
trabalhando na construção de canais na Inglaterra perceberam a importância do
estudo dos fósseis para a datação das formações, o que deu origem à paleontologia.
Quando Lyell propôs a sua sistematização da geologia, Marx se tornou um leitor ávido
(Hundt 2004).

Voltando a atenção para a ciência da termodinâmica: ela se desenvolveu a partir


das máquinas térmicas da Revolução Industrial. A partir do século XVIII, as máquinas
a vapor de Savary e Newcomen, e mais tarde a máquina de Watt, eram usadas para
drenar minas de cobre e carvão, constantemente inundadas. No caso das minas de
cobre em Cornwall havia uma forte pressão pela eficiência, uma vez que o preço do
carvão e a eficiência da máquina determinavam a lucratividade da mina, sendo os
royalties pagos a Watt correspondentes a uma fração da economia de carvão (nas
minas de carvão, este era praticamente gratuito) (Rowe 1953). Pelo final do século
XVIII, Watt desenvolveu o movimento rotativo, permitindo o uso da máquina a vapor
em fábricas têxteis e metalúrgicas para impulsionar sopradores e sistemas de
maquinário. Desta forma, as fábricas foram liberadas da proximidade de quedas d’água

154
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

em áreas cada vez mais rurais e despovoadas, e puderem deslocar-se para os centros
urbanos dotados de força de trabalho abundante e barata (Malm 2016). Savary,
Newcomen e Watt e seus engenheiros e trabalhadores fizeram a máquina a vapor
funcionar na prática. No século XIX, o seu funcionamento foi formalizado em
universidades, por figuras como Carnot e Clapeyron, até que Clausius enunciou
claramente as duas leis da termodinâmica: “a energia do universo é constante; a
entropia do universo tende ao máximo” (Muller 2007, cap. 1-3).

A partir dessa contextualização histórica, atente-se para a afirmação do relatório


do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC):

as atividades humanas modificaram e continuam modificando a


superfície da Terra e sua composição atmosférica. Algumas dessas
mudanças tiveram impacto direto no balanço energético da Terra
e são, portanto, motores da mudança climática [...] como a
temperatura da Terra foi relativamente constante ao longo de
muitos séculos, a energia solar incidente deve estar
aproximadamente em equilíbrio com a energia irradiada (IPCC
2013, 53, 126),

O IPCC está aqui aplicando ao planeta a termodinâmica formalizada por


Clausius quando estudando as máquinas a vapor. A noção de “balanço energético”
deriva das leis da termodinâmica: energia não pode ser criada e tampouco destruída, e
flui de corpos quentes para corpos frios. Além disso, a própria ideia de que essas regras
são aplicáveis ao passado do planeta, e que elas podem ser investigadas com métodos
estratigráficos (análise da sobreposição de camadas geológicas), originou-se na
mineração capitalista.

No mesmo sentido, o conhecimento sobre espécies e ecossistemas em suas


relações globais se originou sob condições capitalistas, despóticas, e ainda assim são
úteis para fins diversos e críticos. Os jardins botânicos imperiais eram instituições
onde plantas eram estudadas com o objetivo de aumentar lucros capitalistas, ou, em
outras palavras, onde a botânica econômica se desenvolveu (Brockway 1979; Drayton
2000). Eles tiveram papel chave no imperialismo e colonialismo, como bem ilustrado
pelos Kew Gardens em Londres, que foi instrumental na expansão do Império
Britânico, ao promover a remoção de espécies de um habitat para estabelecer

155
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

plantações comerciais em outro. Além da remoção física, o jardim botânico também


promovia melhoramento e desenvolvimento de plantas, incluindo métodos de cultivo e
colheita, empregando um corpo de cientistas a serviço dos Royal Botanic Gardens. Esse
conhecimento era então transferido para as plantações coloniais. Antes do surgimento
da indústria química e dos materiais sintéticos, os jardins botânicos tiveram papel
similar na pesquisa acadêmico-industrial. O caso da transferência da seringueira
(borracha natural) do Brasil para a Malásia é emblemático. E, no entanto, a rede de
jardins botânicos centrada em Kew mas espalhada ao redor do Império também era a
instituição onde a taxonomia se desenvolveu, o que tornou possível o estabelecimento
das relações entre plantas no tempo e no espaço. Esse conhecimento foi necessário
para a biologia evolucionista e a ecologia. O próprio Darwin se correspondeu com os
Kew Gardens enquanto elaborava suas teorias (Brockway 1979, 92-99). Se, no
Capitaloceno, podemos fazer referência a uma Sexta Grande Extinção, ou à degradação
global de ecossistemas, essas noções mesmas são inimagináveis sem os jardins
botânicos imperiais, cujos objetivos eram, no entanto, capitalistas e imperialistas.

Novamente, atente-se para o relatório do IPCC:

a mudança climática pode alterar o habitat das espécies (...) [os


seus] impactos nos habitats para a biodiversidade já estão
ocorrendo (...). Modelos da alteração futura da distribuição de
ecossistemas induzida pela mudança climática sugerem que
muitas espécies poderiam estar fora de seus habitats preferenciais
dentro de poucas décadas (IPCC 2014a, 319)

Aqui fica claro que esse é o tipo de conceitualização que se originou na ciência
do imperialismo, para a qual os jardins botânicos foram instrumentais. A lista poderia
seguir: a exaustão dos solos pela agricultura capitalista induziu o desenvolvimento da
ciência do solo e métodos de regeneração da fertilidade, por exemplo.8 Em 1883, essa

8 Como destacado por Marx em sua famosa discussão sobre a agricultura capitalista: a crescente
preponderância da população urbana “desvirtua o metabolismo entre o homem e a terra, isto é, o
retorno ao solo daqueles elementos que lhe são constitutivos e foram consumidos pelo homem sob
forma de alimentos e vestimentas, retorno que é a eterna condição natural da fertilidade permanente
do solo.” Mas ele continua: “ao mesmo tempo que destrói as condições desse metabolismo,
engendradas de modo inteiramente natural-espontâneo, a produção capitalista obriga que ele seja
sistematicamente restaurado em sua condição de lei reguladora da produção social e numa forma
adequada ao pleno desenvolvimento humano.” Essa necessidade de restauração impulsiona o
desenvolvimento da ciência do solo (Liebig), mas sob condições despóticas que causa o “martirológio
dos produtores” e o “esgotamento das fontes duradouras dessa fertilidade” (Marx 2011b, 573). Não

156
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

acumulação de conhecimentos parciais já permitiu a Podolinsky (2008) conceituar o


trabalho humano como parte, em última análise, do fluxo de energia solar, e propor
que a acumulação dessa energia deveria ser revertida em redução do tempo de
trabalho; em 1919, Bogdanov (1980) desenvolveu a “tectologia”, a “ciência da
organização” precursora da cibernética, na qual estava incluída a “atividade
organizacional da natureza”; e em 1926, Vernadsky (1998) conceituou a“biosfera” na
escala planetária.Aqui já tomam forma os primeiros esboços dos modernos modelos
climáticos.

Acelerando o andamento da exposição, a segunda e a terceira revoluções


industriais (a última dependendo de desenvolvimentos da física quântica para a
fabricação de semicondutores) levaram os processos produtivos – unidades individuais
de produção sob condições despóticas – a níveis de sofisticação técnico-científica
impossíveis de imaginar no século XIX.9 A microeletrônica tornou possível a
automatização de processos, potencializando o general intellect embutido não apenas
no maquinário propriamente dito, mas também em computadores e modelos
matemáticos. Plantas industriais avançadas possuem uma infinidade de sensores
distribuídos – para medir temperatura, pressão, nível, vazão, composição etc. – que
transmitem as informações para uma sala de controle. Nessa sala de controle, a
informação é integrada por um modelo matemático do processo, que, se necessário,
atua sobre ele, através da abertura de válvulas e outras operações que mantêm o
processo nas condições desejadas. O modelo matemático é desenvolvido com base nas
ciências básicas fundamentais (física, química etc.). Qualquer estudante de graduação
de engenharia hoje em dia aprende a projetar sistemas de controle para equipamentos
e plantas industriais (Bequette 2019).

Mudemos a escala da unidade privada de produção para a escala planetária: o


desenvolvimento do general intellect tornou possível um monitoramento do sistema
planetário que pode ser caracterizado como espantoso: estações meteorológicas,
satélites, bóias de monitoramento oceânico, incontáveis métodos de análise e modelos

obstante o martirológio e a ruína, a ciência do solo (a lei do mínimo etc.) desenvolvida sob condições
despóticas é parte do general intellect, com frequência ignorada em análises dessa passagem.
9 Sobre a terceira revolução industrial e a automação, ver Ramtin (1991).

157
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

matemáticos rodando em supercomputadores tornam possível calcular, analisar e


extrapolar com relativa facilidade o estado do sistema planetário, em seus diferentes
compartimentos (atmosfera, oceanos, biomas...) e suas interações em diferentes
escalas.10Assim, por volta do último quarto do século XX, constitui-se um “general
intellect planetário”.11 Porém, ele se apresenta como conhecimento meramente
contemplativo: a produção e alocação de recursos continuam a ser determinadas pela
mediação do valor, o que significa que está fora de controle consciente no nível
global.12 Agora surgem, na verdade, algoritmos automatizados operando em bolsas de
valores e outros mercados atuando tão somente a base de sinais de preço, os chamados
robot traders. Desta forma, recursos são alocados de maneira automática, mas sem
nenhuma mediação com a enorme acumulação de conhecimento biogeosférico.
Quando muito, há “regulações” post festum, com estudos de impacto ambiental para a
“mitigação” dos efeitos mais perniciosos de projetos capitalistas à escala local e
regional. Tentativas de regular o clima global, como os protocolos de Kyoto e Paris,
fracassam miseravelmente.13 Nesse contexto, Hans Joachim Schellnhuber, um
renomado cientista do clima alemão e conselheiro de Angela Merkel, propôs
provocativamente que os dados de monitoramento e modelos matemáticos do sistema
planetário fossem realmente utilizados para controlar a sua totalidade (1998). Ele
cunhou o termo “geocibernética”, e sugeriu mesmo que ela representaria a emergência
de um “sujeito global”, fazendo referência ao Weltgeist hegeliano. Não resta dúvida que
uma “geocibernética” comandada por estados capitalistas sob a premissa da
continuação da valorização do valor representa uma ideia perturbadora, evocando
talvez um HAL 9000 planetário. Mas Schellnhuber teve o mérito de perceber que a
10 Muitos desses dados podem ser monitorados online em tempo real, como as temperaturas oceânicas
transmitidas pelas bóias Argos. Ver em https://argovis.colorado.edu/ng/home.
11Computer World, álbum da banda alemã Kraftwerk cuja composição Computer Love é aqui citada, não

por acaso pertence a essa época (1981).


12 Ver Debord (2009), já em 1971: “A época que possui todos os meios técnicos para alterar totalmente

as condições de vida sobre a terra é também a época que, em virtude deste mesmo desenvolvimento
técnico e científico separado, dispõe de todos os meios de controle e previsão matematicamente
indubitável para medir por antecipação aonde leva - e até que data - o crescimento automático das
forças produtivas alienadas da sociedade de classes: ou seja, para medir a rápida deterioração das
próprias condições de sobrevivência, no sentido mais geral e mais trivial da palavra.”
13 Na escala regional e nacional esse controle pode ser momentaneamente possível, mesmo que sem

desenvolver o seu potencial pleno. Na Floresta Amazônica, o sistema de monitoramento por satélite
acoplado a um modelo matemático ajudou a reduzir a taxa de desmatamento. Porém, sob pressão do
mercado mundial, o programa de monitoramento foi deslegitimado e o desflorestamento voltar a ser
acelerado no governo Bolsonaro. Ver Almeida et al. (2016), Escobar (2019) e Cunha (2019a).

158
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

totalidade planetária se encontra perigosamente fora de controle, e que as condições de


possibilidade técnico-científicas para tal controle já existem. Cabe a uma teoria crítica
não uma rejeição romântica ou reacionária desse tipo de proposta, mas a sua crítica
imanente.

**

Uma teoria crítica das ciências naturais?

I don't know what to do, what to do


I need a rendezvous, rendezvous

(Kraftwerk)

Após expor sucintamente o problema histórico da “trajetória do Antropoceno”,


onde já aparece um esboço de epistemologia das ciências naturais baseada no caráter
contraditório da produção de mercadorias e o desenvolvimento do general intellect
que dela deriva, este conceito preliminar será contrastado com outros enfoques. Após
Marx, a Teoria Crítica fez um primeiro e importante esforço nesse sentido, quando
Adorno e Horkheimer expõe sobre a dialética do Iluminismo:

o saber que é poder não conhece nenhuma barreira, nem na


escravização da criatura, nem na complacência em face dos
senhores do mundo. (...) A técnica é a essência desse saber, que
não visa conceitos e imagens, nem o prazer do discernimento, mas
o método, a utilização do trabalho de outros, o capital (Adorno e
Horkheimer 1985, 20).

A serviço do capital, a ciência torna-se patriarcal, pois “o que importa não é


aquela satisfação que, para os homens, se chama ‘verdade’, mas a ‘operation’, o
procedimento eficaz.” Assim, o casamento entre o entendimento humano e a natureza
das coisas em Bacon é patriarcal, já que a serviço do capital (Ibid., 20).A natureza é,
portanto, reduzida a “substrato de dominação” (Ibid. 1985, 24); mas o conhecimento
científico não se reduz a essa “operation”, restando portanto uma dialética. Outro

159
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

ponto crucial, a ser desenvolvido posteriormente, é que a natureza é colocada como


sujeito, ao menos em potencial, por Adorno e Marcuse.14

A crítica feminista da ciência é chave na presente exposição, pois, além do


conteúdo próprio, foi posteriormente apropriada pela crítica do valor alemã. Ao
debruçar-se sobre a sociologia da desigualdade de gênero na ciência e na reprodução
social, teóricas feministas caracterizaram as ciências naturais como estupradoras ou
torturadoras da natureza (Sandra Harding e Carolyn Merchant, respectivamente).
Harding, ao estudar o simbolismo de gênero na ciência, questiona por que as metáforas
mecânicas de Newton são geralmente consideradas produtivas, enquanto as metáforas
de gênero são ignoradas, questionando se as Leis de Newton não deveriam ser
consideradas um “manual de estupro” (Harding 1986, 113). Aqui vem à mente Thomas
Khun, que insistia que para entender as mudanças de paradigmas científicos deve-se
examinar “não apenas o impacto da natureza e da lógica, mas também as técnicas de
persuasão efetivas no interior dos grupos muito específicos que constituem a
comunidade dos cientistas”, porque, em última instância, os defensores de cada
paradigma necessariamente usarão argumentos circulares (Kuhn 1962, 94). A escolha
do paradigma seria em grande medida uma mera questão de “retórica”. Merchant situa
a si mesma na esteira de Kuhn, mas argumenta com razão que uma das limitações do
seu enfoque “é a ausência de uma interpretação das forças sociais externas às
atividades diárias dos praticantes da ciência em seus laboratórios e estações de campo”
(Merchant 2010, 3). Para preencher essa lacuna, ela propõe complementá-lo com uma
conceituação marxiana, afirmando que ela

distingue entre produção de valor de uso (ou produção para


subsistência) e produção para o lucro. Quando as pessoas
‘exploram’ a natureza não-humana, elas o fazem de duas maneiras:
ou elas fazem uso imediato para subsistência, ou elas trocam os
seus produtos como mercadorias para o lucro ou ganho pessoal
(Merchant 2010, 11).

Há aqui um importante mal-entendido: em Marx, valor de uso e valor estão em


unidade contraditória na mercadoria; o valor de uso não desaparece da produção para
o mercado capitalista. Ao remover essa contradição da conceituação marxiana,

14 Adorno (2008); Marcuse (1972).

160
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Merchant então proclama

a morte da natureza – o efeito mais abrangente da Revolução


Científica. Porque a natureza é agora vista como um sistema de
partículas mortas, inertes, movidas por forças externas, ao invés
de internas, a própria abordagem mecânica pode legitimar a
manipulação da natureza (Merchant 1980, 193; ênfase minha).

Se a natureza está “morta” e se move apenas através de “forças externas”, então


a ciência é pura ideologia ou “construção social”, mas fica difícil explicar como os
processos industriais de produção de mercadorias são reproduzíveis em diferentes
contextos com a aplicação do general intellect, ou mesmo como a acumulação de
capital é de todo possível.

Outra variação do ataque contra a validade das ciências naturais é a tese da


“produção da natureza” de Neil Smith (2008). De acordo com o proponente, “os seres
humanos produziram toda e qualquer natureza que se tornou acessível para eles”.
Novamente, a natureza aparece como completamente subsumida ao capital, ao menos
tendencialmente à medida que ele engloba o planeta inteiro, de maneira que

a unidade da natureza em direção à qual leva o capitalismo é


certamente uma unidade materialista, mas não se trata da
unidade física ou biológica do cientista natural. Ao invés disso,
trata-se de uma unidade social centrada no processo de produção
(Smith 2008, 81, ênfase minha).

Não há “padrões” ou “leis” da natureza independentes de processos de produção


humanos, ou, se há, eles são incognoscíveis. Smith é então consistente quando afirma
que é impossível determinar a influência humana na mudança climática, pois “assumir
uma trajetória de mudança ‘natural’” independente das volições humanas estaria em
conflito com a sua tese (ibid., 244). Mas a consistência vem com o alto preço do
agnosticismo quanto à influência humana sobre a mudança climática ou a história
natural em geral, pois “a natureza é portanto desde sempre socialmente delimitada”,
como comenta um adepto de suas proposições (Castree 2000, 25). Novamente: como
explicar a reprodutibilidade de processos cientificamente intensivos na produção de
mercadorias em diferentes contextos sociais?

Em uma conceitualização mais propriamente marxiana a natureza nunca morre

161
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

(mesmo que sob o capitalismo espécies e ecossistemas possam, de fato, morrer) e


nunca é completamente subsumida; ela permanece em contradição com a produção
capitalista de mercadorias, mesmo que apenas sob a forma de “inércia”: “inércia”
significa exatamente resistência à manipulação, e é por isso que essa manipulação
requer energia, seja fóssil ou alternativa, antes de mais nada. Além disso,
contrariamente a Smith, há um problema de consistência quando Merchant assume
como válido o dilema da mudança climática induzida pela ação humana, um problema
que só pode ser conceituado, como mostrado anteriormente, a partir do conhecimento
produzido na mineração e nos sistemas energético-industriais capitalistas, entre outros
(Marchant 2010, 263, 265-266, 269, 279). Se anatureza estivesse “morta” sob as
condições capitalistas (em outras palavras, se não houvesse contradição entre valor de
uso e valor), a mudança climática, cuja teoria se baseia em conhecimento gerado sob
essas condições mesmas, seria também pura ideologia, nada além de pura “construção
social”.

Paradoxalmente, ao denunciar unilateralmente as ciências naturais como


ideologia, Merchant, em última instância, renega a agência da natureza, o que parece ir
contra as suas intenções normativas. Caso se reconheça o caráter contraditório da
forma-mercadoria e, por extensão, das ciências naturais, deixa de ser problemático
reconhecer que o conhecimento da dominação excede a dominação, que o
conhecimento gerado no estudo da máquina a vapor pode ser aplicado no estudo do
sistema climático (e por sua vez servir de base à denúncia do capitalismo). Reconhecer
o caráter contraditório das ciências naturais também é reconhecer, ao mesmo tempo, a
sua configuração atual como violenta e patriarcal, como bem exposto, ainda que
unilateralmente, por Merchant e Harding. Aqui o enfoque de Evelyn Fox Keller sobre o
projeto baconiano parece mais acertado. Ao mesmo tempo que Bacon anuncia que
“venho de boa fé trazer para vós a Natureza com toda a sua prole para colocá-la a seu
serviço e fazê-la vossa escrava” ele também é consciente que “o homem é apenas o
servo e intérprete da natureza (...) Pois as cadeias de consequências não podem ser
afrouxadas ou quebradas por nenhuma força, nem pode a natureza ser comandada
exceto ao ser obedecida”. Para Keller, o projeto baconiano então resulta menos
masculino e mais hermafrodita (Keller 1985, cap. 2).

162
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Outra vertente da crítica das ciências naturais é aquela que pode ser
caracterizada como “primitivista”: a rejeição total das ciências naturais e das forças
produtivas da modernidade como puramente destrutivas e indesejáveis. No Brasil, sob
o viés particular do reconhecimento da cosmologia ameríndia, isso reverteu em
primitivismo ideológico quando se faz curto-circuito com a política em Viveiros de
Castro e Danowski (2017). Aí se imiscuem desde o malthusianismo do “há gente
demais no mundo” (129), o rebaixamento das forças produtivas via apologia da
“gambiarra” (132-3), e até o retorno do mito na “psicopolítica do tecnoxamanismo”
(131).15 De maneira similar, recentemente Royer (2020) criticou o meu texto “O
Antropoceno como fetichismo” (Cunha 2015) do ponto de vista de um “isomorfismo
estrutural que existe entre o capitalismo termoindustrial e o conhecimento científico”.
Royer parece sugerir com isso que há identidade entre os dois, assim rejeitando
qualquer noção de general intellect para além do capital. De maneira que, ao referir-se
ao aquecimento global, estaria a ser pego no contrapé, visto que, como já exposto, a sua
teoria deriva do conhecimento gerado pelo próprio capitalismo termoindustrial.16 Esse
tipo de rejeição em bloco das forças produtivas, caracterizei em outra ocasião como
“síndrome de Dr. Gori”, em referência ao personagem do seriado japonês Spectreman
(Cunha 2015c).17

Passemos agora para os autores da crítica do valor e próximos dela, como


Moishe Postone e os grupos Krisis e Exit!. Já em 1986-87, Ernst Lohoff e Robert Kurz
se debruçam sobre o tema. Para ambos, a má compreensão do conceito de forças
produtivas pelo marxismo tradicional, como um reducionismo a “meios de produção”
(cuja problemática se resume a quem as possui), levava ao surgimento de ideologias

15 Minha crítica a Danowski e Viveiros de Castro não se refere ao seu trabalho antropológico proprimente
dito (a maior parte do livro citado), mas ao curto-circuito entre antropologia e política (a parte final do
livro), que, a meu ver, conduz a proposições reacionárias (no limite, malthusianas e dessocializantes).
Uma visão positiva das elaborações de Viveiros de Castro (e de Carolyn Merchant), que inclusive tem
alguns pontos de contato com o argumento desenvolvido neste ensaio, ainda que por caminho muito
diverso, pode ser encontrada em Marques (2016).
16 A crítica de Royer é mais ampla, sendo aqui destacado apenas o que interessa ao presente argumento.
17 No seriado, Dr. Gori cria monstros a partir da poluição. Ele se dirige assim à sua criatura do primeiro

episódio, ordenando-a que destrua as forças produtivas: “Os terráqueos primam pela estupidez.
Transformaram o seu belo planeta num deserto contaminado... Embora a civilização dos terráqueos
não seja tão atrasada, eles insistem em dilapidar a natureza.Tamanha estupidez não pode ser
tolerada... Avante Hidrax! Destrua tudo o que tiver pela frente!” Ver em:
https://www.youtube.com/watch?v=HqlukRAANFw

163
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

ecologistas românticas e reacionárias, proposições como “small is beautiful” e “redução


de necessidades” que descartavam as forças produtivas como essencialmente
destrutivas. Isto acarretaria posições de defesa reacionária da dessocialização (Kurz
1987a, 1987b; Lohoff 1987).

Moishe Postone (2014/1993), buscando uma epistemologia rigorosa, rejeita


tanto o transcendentalismo de Kant, que busca resolver o problema do conhecimento
do objeto com um sujeito transcendental dotado de categorias de pensamento a priori,
quanto a metafísica hegeliana, que busca resolvê-lo abolindo metafisicamente a
separação entre sujeito e objeto (o Geist). O que Hegel identificou como o Geist, o
sujeito-objeto idêntico, seria, para Marx, expressão das relações sociais alienadas
expressas pela categoria do capital – o “sujeito automático”. De acordo com Postone,
“ao contrário de Hegel, Marx rejeita a ideia de conhecimento absoluto e nega que a
natureza, como tal, seja constituída” (2014, 252). Sujeito e objeto não são esferas
ontologicamente separadas que devem ser relacionadas, mas mutuamente constituídas
historicamente por “estruturas de mediação social” historicamente específicas que
constituem, por sua vez, os modos de prática social. Assim, enquanto a estruturação
matemática do tempo é um a priori em Kant, e o consequente problema de
circularidade (é preciso conhecer para poder conhecer) foi atacado por Hegel com o
recurso ao “conhecimento absoluto”, em Marx ele é estruturado pela categoria
historicamente específica do valor. Para Postone, portanto, a caracterização da
“dominação da natureza” pelo trabalho concreto em Adorno e Horkheimer é
incompleta, ao não tematizar a mediação do trabalho abstrato. A partir dessa teoria da
constituição histórico-social da subjetividade e objetividade modernas, Postone esboça
uma teoria das ciências naturais:

Da mesma forma, na ciência natural clássica moderna, atrás do


mundo concreto das múltiplas aparências qualitativas, há um
mundo que consiste em uma substância comum em movimento
que possui qualidades ‘formais’ e pode ser apreendido
matematicamente. Os dois níveis são ‘secularizados’. O da essência
oculta da realidade e um reino “objetivo” no sentido de que é
independente da subjetividade e opera de acordo com leis que
podem ser captadas pela razão. Assim como o valor de uma
mercadoria é abstraído das suas qualidades como valor de uso, a
verdadeira natureza, de acordo com Descartes, por exemplo,
consiste nas suas ‘qualidades primárias’, matéria em movimento,

164
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

que só pode ser apreendida pela abstração do nível das aparências


de particularidade qualitativa (‘qualidades secundárias’) . Este
último nível é função dos órgãos dos sentidos, o ‘olho de quem vê’.
Objetividade e subjetividade, mente e matéria, forma e conteúdo
são constituídos como fundamentalmente opostos e diferentes.
Sua possível correspondência se transforma em problema - eles
têm de ser mediados (Postone 2014, 204).

Há outro nível da análise de Postone no qual o estatuto das ciências


naturais aparece de maneira implícita. Na sua conceitualização da “trajetória da
produção”, Postone tematiza a estrutura temporal contraditória da modernidade:
ao mesmo tempo em que se tem o tempo abstrato (tempo de trabalho
socialmente necessário), constitui-se, através da acumulação de trabalho morto,
um tempo histórico, cumulativo. Essa acumulação de trabalho morto (aumento
da composição orgânica do capital) resulta, em última análise, no “anacronismo
do valor”, já que o tempo de trabalho socialmente necessário se torna uma base
mesquinha para a imensa riqueza material criada pelas forças produtivas
avançadas. Aqui Postone se baseia sobretudo no Marx dos Grundrisse, onde se
destaca o papel do general intellect, “do nível geral da ciência e do progresso da
tecnologia” (Marx, citado em Postone 2014, 41). Para Postone, essa dinâmica
temporal contraditória do capitalismo acaba por produzir “tensões de
cisalhamento” entre o que é e o que poderia ser:

Como a crescente oposição entre as duas dimensões de trabalho


social no capital e entre dois momentos da mesma forma social,
resulta em uma crescente tensão ou uma pressão de cisalhamento
econômico e social entre o existente e sua forma determinada.
Essa tensão reforça o capital e gera a possibilidade de separar
ambas as dimensões constitutivas das relações estruturadoras do
capitalismo. Ela aponta em direção à possível separação entre a
sociedade e sua forma capitalista. Segundo Marx, é esta lacuna
gerada estruturalmente entre o que é e o que poderia ser que
permite a possível transformação histórica do capitalismo e,
relacionalmente, fornece as bases imanentes para a possibilidade
da própria crítica.” (Postone 2014, 418)
Importa aqui ressaltar que para Postone, portanto, as bases da crítica são
imanentes, constituídas pela própria dinâmica capitalista, na qual, como mostrado, as
ciências naturais operam decisivamente na acumulação de trabalho morto (tempo
histórico) e agudização das tensões de cisalhamento. Essa dinâmica imanente produz a

165
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

“não-identidade” (Postone 2014, 109-110). Essa não-identidade também aparece


quando Postone argumenta que

O sonho implícito pela forma capital é de total ausência de limites,


uma fantasia de liberdade como a total libertação da matéria e da
natureza. Esse “sonho do capital” está se tornando o pesadelo
daquilo do que ele se esforça para se libertar — o planeta e seus
habitantes (Postone 2014, 445).
Aqui fica implícito que a natureza (o “planeta”) constitui um não-idêntico.
Voltaremos a esse ponto mais tarde.

Ortlieb (1998) retoma a questão das ciências naturais de maneira independente.


Ele destaca a natureza patriarcal das modernas ciências naturais, a partir de autoras
feministas (Harding e Fox Keller, ver acima), e destaca a sua “objetividade
inconsciente”, visto que a empiria não pode ser demonstrada por nenhum experimento
empírico (Hume) e deve recorrer a um a priori (Kant). Para Ortlieb, “as ciências
matemáticas da natureza baseiam-se no pressuposto básico de que existem leis da
natureza universalmente válidas, isto é, independentes do lugar e do tempo. (...)O
pressuposto seguinte é que as leis da natureza podem ser descritas
matematicamente.” Mas, ainda segundo Ortlieb, desenvolvendo o legado de Sohn-
Rethel,

o elo de ligação entre a sociedade das mercadorias e a forma


objectiva do conhecimento é o sujeito burguês, ou seja, a
constituição específica da consciência, que por um lado é
necessária para se poder existir na socialização das mercadorias e
do dinheiro, e que por outro lado tem de ter o sujeito do
conhecimento para ser capaz de conhecimento objectivo. (1998)
Em Ortlieb (assim como em Postone) não se trata mais da instrumentalização
das ciências matemáticas naturais, mas da sua própria constituição. Ele segue:

Cada medição é uma correlação entre o sujeito do conhecimento e


a natureza feita seu objecto mediada pelo método das ciências
matemáticas da natureza, e nunca pode, portanto, se referir à
natureza ‘per se’, mas sempre apenas a esta forma muito
específica de interacção (1998).
Essa relação sujeito-objeto não pode ser reduzida a nenhum de seus polos: não
são nem meros produtos do discurso e nem meras propriedades naturais
independentes do sujeito. Mas para Ortlieb, baseando-se na teoria do valor-dissociação

166
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

(Roswitha Scholz) e Evelyn Fox Keller, a ciência natural encontra-se “com os dois pés
do lado público/masculino”, que se opõe à esfera privada/feminina como esferas
constituintes da sociedade produtora de mercadorias. As metáforas de gênero de Bacon
– a ciência como “encontro conjugal do espírito com a natureza” nas “câmaras mais
íntimas” através da “coerção, assédio, perseguição e conquista” (citado em Ortlieb
1998) – são apresentadas como evidência, sem no entanto mencionar o caráter
“hermafrodita” da ciência em Bacon na análise de Keller (1985), como descrito
anteriormente.

No que se refere a perspectivas históricas, fazendo referência ao mesmo


fragmento dos Grundrisse que Postone utiliza para destacar o desenvolvimento das
forças produtivas até o ponto de minar o valor como fundamento da produção, Ortlieb
rejeita a crítica romântica da tecnologia, mas propõe que “nem o sujeito burguês pode
ser salvo incólume numa sociedade pós-capitalista, nem tão pouco se pode esperar
isso para as ciências naturais e a tecnologia por elas induzida, que pressupõem
precisamente esta constituição de sujeito.” Em comparação a Postone, Ortlieb adiciona
à especificidade histórica das modernas ciências naturais o problema da constituição
patriarcal, e parece menos otimista quanto a um fundamento imanente da crítica
(“tensão de cisalhamento”).

A partir de 2001, ocorreu uma importante polêmica na revista Krisis (pré-cisão


com a Exit) entre Anselm Jappe, Ernst Lohoff e Robert Kurz. Tratou-se de uma ampla
discussão crítica sobre o Iluminismo filosófico e o sujeito moderno, incluindo a questão
das ciências naturais e sua técnica derivada (a contribuição de Ortlieb, estranhamente,
não foi lembrada nesse debate). Jappe (2001) iniciou a celeuma ao criticar a
biotecnologia em si, e não apenas as suas aplicações particulares. Assim como o capital
fictício representaria o último estágio da lógica do valor, onde ela coincide com o seu
conceito, as tecnologias genéticas representariam a mesma conclusão no campo
científico. Para Jappe a “reductio ad unum” das tecnologias genéticas, assim como da
informática (redução ao gene e ao bit, respectivamente), reproduzem a lógica da
abstração do valor (à unidade de tempo de trabalho necessário). Com base nessa crítica
da essência dessas técnicas, Jappe recusa o transplante de órgãos e os tratamentos de
fertilidade. Jappe se aproxima da crítica romântica das forças produtivas,

167
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

questionando o potencial liberador das forças produtivas microeletrônicas: “a


concentração, as grandes dimensões, a especialização e a mecanização da agricultura
são incompatíveis com uma produção orientada ao uso e uma atividade prazerosa.”
Jappe se afasta, portanto, não apenas das “tensões de cisalhamento” imanentes de
Postone, mas também do general intellect ainda presente em Ortlieb.

Lohoff (2002) respondeu a Jappe com uma severa crítica. Jappe se colocaria no
campo do “contra-iluminismo”. Segundo Lohoff, a rejeição das tecnologias genéticas
não estaria em questão, mas sim a base desta rejeição: “a levar a sério as proposições
de Jappe, todas as pequenas e grandes inovações dos últimos duzentos anos devem ser
descartadas, e todo o desenvolvimento das forças produtivas nesse período deve ser
considerado puramente negativo”, “do CD-player ao zíper” (tradução livre).
Questionando se devemos nos livrar da panela de teflon por causa de sua origem, ele
conclui que tal origem, por si só, não pode ser o fundamento para decidir se uma
determinada tecnologia pode ser utilizada em contextos diferentes da valorização do
valor. Propõe um critério que se aproxima do “grau de subsunção” (expressão minha),
já que a biotecnologia opera a sua “reductio ad unum” imediatamente sobre a
realidade sensível, mudando o seu caráter irreversivelmente, enquanto no caso da
microeletrônica essa abstração é a princípio separável daquela. A questão central para
Lohoff é: “de qual ponto de vista argumenta a crítica radical?” Lohoff acusa Jappe de
fazer a sua crítica a partir das noções de “indivíduo como unidade qualitativa” e de
“natureza”, o que apenas reproduziria a subjetividade e objetividade capitalistas. A
crítica de Lohoff a Jappe, vê-se, ainda é parecida com a crítica dos românticos de 1987.

Robert Kurz em seguida iniciou a sua investida frontal contra o Iluminismo no


texto “Razão Sangrenta”, que Jappe responderia juntamente com a resposta a Lohoff.
Kurz (2003b) critica o sujeito capitalista como branco, masculino e ocidental (racista-
colonialista); a própria Razão do Ocidente deveria ser rejeitada em bloco, não restando
mais dialética (Adorno e Horkheimer): trata-se agora de “distanciar-se com raiva e
nojo de todo o lixo intelectual do Ocidente”. O fundamento do sujeito emancipatório
seria o “sofrimento” causado pelos “desaforos” do capitalismo. No que toca às ciências
naturais,

168
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

... a própria sensualidade se apresenta de modo histórica e


culturalmente diverso, incluindo a concepção de espaço e tempo. A
sensualidade, em vez disso, aparece de forma a-histórica, como a
desde sempre abstracta e indiferente relação de valor. Por outro
lado, a socialização do valor ‘trabalha’ com o poder, como
nenhuma formação anterior a ela, para adequar de facto
completamente ao seu próprio conceito à totalidade do mundo
natural e sensual, incluindo a sexualidade humana; ou seja, para
converter a própria natureza num estado a-histórico, de plena
compatibilidade com a abstracção do valor, nivelando qualquer
diferença entre a natureza e a sociedade capitalista (o que constitui
um projecto necessariamente votado ao fracasso) (Kurz 2003b).
Para Kurz, as ciências naturais aparecem como instrumentos de subsunção total
da natureza à lógica da valorização do valor (ainda que admita que isto seja fadado ao
fracasso; voltaremos a essa questão). Assim, como não há mais “sujeito” a ser salvo,
parece não haver nada de emancipatório no general intellect (que não é jamais
mencionado).

Em sua resposta a Lohoff e Kurz, Jappe redobra a sua aposta “romântica”: ao


aceitar o desafio do Lohoff em torno do “ponto de vista” da crítica, ele aponta para as
sociedades pré-capitalistas, uma vez que todas as sociedades existentes até hoje “eram
constituídas de forma fetichista”, e portanto “o indivíduo real, social, sensível surgido
ao longo dos últimos oito mil anos é, também, a consequência de relações de fetiche.”
No entanto, no que se refere ao “tipo de Homem que é formado por uma determinada
forma do fetiche”, o capitalismo se destacaria por sua negatividade sem precedentes.
Desta forma, as realizações humanas na música, literatura, arquitetura etc. teriam por
base um sujeito já formado no final do neolítico, quando do surgimento das primeiras
sociedades agrárias. No que se refere às frigideiras teflon, elas deveriam ser rejeitadas
por serem cancerígenas, e não no nível moral como subprodutos da indústria bélica e
aeroespacial. Ao defender o seu ponto de vista pré-capitalista do sujeito “que não
obedece à forma do valor”, Jappe desafia Kurz, ao dizer que a sua “tabula rasa” sem
nenhum “ponto de vista” a não ser um “sofrimento” abstrato acaba sendo mais
iluminista do que o próprio projeto iluminista.

Em sua resposta a Jappe, Kurz reafirma que a Razão ocidental é puramente


“sangrenta”, e lança mão do conceito de “artefatos da história” para poder explicar

169
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

como esse sujeito nefasto produz objetos potencialmente úteis para uma sociedade
emancipada:

a recuperação dos conteúdos, dos artefactos da História, pode ela


própria sempre apenas voltar a ser referente a conteúdos, ou seja,
respectivamente específica, dependente de qualidades e com
determinadas razões, nunca porém meramente abstracta e geral
em relação à forma do sujeito (Kurz 2003b).
Quanto à frigideira de teflon, ela

não pode ser rejeitada por ser um produto colateral da tecnologia


espacial capitalista e, com isso, do complexo militar e industrial e,
de uma forma geral, da forma do sujeito burguesa; mas ela tem
evidentemente de ser rejeitada se for cancerígena. Daí, no entanto,
não se pode derivar nenhuma teoria, sob pena de ser apenas a
“teoria da frigideira de teflon”, a qual, por falta de
generalizabilidade, nem chegaria a ser uma teoria (Kurz 2003b).
Assim, os produtos da moderna indústria “não são por si tão unidimensionais e
monolíticos”. Kurz reafirma então a tábua rasa “da forma do sujeito que se rege pela
lógica do valor e da dissociação” e da forma dissociada do feminino, “da generalidade
abstrata ou abstração real violadora da existência”, “da forma de uma relação de
fetiche.” Ao mesmo tempo, como visto, rejeita a tábua rasa dos “artefatos da História”.
Em Kurz não há, portanto, mediação entre o que ele chama de “artefatos da História” e
a forma do sujeito ou as forças produtivas. O intelecto geral deixa de ter qualquer
relação com potenciais emancipatórios ou “tensões de cisalhamento”. Tais “artefatos da
História” aparecem como estranhamente a-históricos, como se fossem “meteoritos”
caídos do céu, produzidos por sujeito nenhum ou em contexto sócio-histórico algum.18

Ortlieb, que em seu texto de 1998 ainda contextualizava a superação no general


intellect, em diálogo com Jorg Ulrich, é questionado sobre o fato de que as ciências
naturais seriam realmente “pura ilusão” matemática:

Para ficarmos no exemplo do teu refrigerador, é claro que ele não


resultou de um delírio qualquer. É interessante que quando
verificamos que os princípios de ciência natural que regem o
funcionamento do refrigerador são exatamente aqueles que tu
afirmas ser ilusão, a natureza regida por leis. Em outras palavras:
não há ‘refrigerador-em-si’, que em seu sere ser-aí (uso

18 Kurz possivelmente responderia a essa objeção recorrendo ao “indivíduo”, que é metodologicamente


paralelo ao “artefato”. Tanto “artefato” como “indivíduo” parecem resíduos de “abstrações violentas”,
do tratamento não-dialético do sujeito e das forças produtivas. Ver Kurz (2003a).

170
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

vocabulário heideggeriano de propósito) fosse completamente


independente da forma de conhecimento que precedeu a sua
construção. (Ortlieb e Ulrich 2007; tradução minha)
Ou seja, Ulrich questiona se o “artefato” pode ser separado a machado da sua
produção social, ou do sujeito que o produziu. Ortlieb responde que o seu refrigerador
funciona tanto quanto os métodos medievais de produção de cerveja funcionavam, e
que em ambos os casos não se tratava de pura ilusão. Para saber se esse artefato ou
técnica deve ser preservado para além da sociedade da mercadoria, Ortlieb lança mão
do conceito de “artefato da História” de Kurz (Ortlieb e Ulrich 2007). Não parece haver
mais traço de general intellect em Ortlieb, e portanto há o mesmo potencial técnico
liberador em sociedades sem general intellect (medievais ou mesmo neolíticas), visto
que sem as condições de possibilidade (mercado mundial, produção de mercadorias
desenvolvida e cientificamente intensiva), quanto na modernidade capitalista.

Recentemente, com a exaustão do pós-modernismo, ressurgiram vozes


clamando por um retorno ao realismo ou materialismo. Roswitha Scholz (2018)
elaborou importante revisão de autores significativos – Mauricio Ferraris, Markus
Gabriel, Graham Harman, Quentin Meillasoux, Nick Srnicek e Alex Williams, Ray
Brassier. Remetemos a Scholz (2018) para a crítica detalhada destes autores, onde fica
demonstrado que eles não contextualizam o sujeito da valorização-dissociação, e
portanto, em suas variantes, acabam por tentar fundar o realismo ou materialismo em
concepções mistificadas do sujeito e/ou do objeto. A paisagem pós-exaustão do pós-
modernismo é completada pelo big data, onde o conhecimento seria baseado
exclusivamente em dados, prescindindo de teoria, representando o “último estágio do
positivismo” (Meyer 2018b).

Na verdade, para Scholz (2018) “tratar-se-ia, mais uma vez, de dar seguimento
à ‘primazia do objecto’ (Adorno), o que, em relação a certos objectos, pode significar
que eles só podem ser apreendidos com a matemática ou com as ciências naturais”.
Entre este “certos objetos” aludidos por Scholz, deduz-se, está o clima ancestral
(prévio ao humano) e futuro do planeta. Porém, para Scholz, a ancestralidade e o não-
humano não podem ser apreendidos “do ponto de vista de um sujeito autônomo” e
nem do “ancestral”, o que seria na verdade “uma fuga da realidade da sociedade do
fetiche da dissociação-valor em sua atual crise fundamental”, já que hipostasia o
171
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

sujeito ou o objeto. Nesse contexto, Scholz (2018) reafirma o caráter da matemática


como forma de pensamento fetichista (também reafirmado por Ortlieb 2018) e a noção
de “artefatos da história” (Kurz) como método de “filtragem” das forças produtivas
para o pós-capitalismo. Cabe ressaltar: Scholz (2018) reafirma o caráter fetichista da
matemática ao mesmo tempo em que reconhece que “certos objetos [...] só podem ser
apreendidos com a matemática” e afirma que “a crítica da dissociação e do valor é
bastante aberta [...] no que diz respeito à ancestralidade a o não-humano”. Mais do
que uma forma de expressar o problema tratado neste ensaio, salvo engano, isto
apresenta o problema da incognoscibilidade da história natural como lacuna teórica,
mais do que como condição ontológica.

Há ou houve, portanto, no interior do debate na Wertkritik,uma gama de


proposições em relação às ciências naturais no que se refere ao “ponto de vista” da
crítica, ao sujeito e à base técnica que apontam para além do valor: ele é imanente às
forças produtivas avançadas; ele é imanente no general intellect, originando “tensões
de cisalhamento” cumulativas; ele está no homem pré-moderno a partir do fim do
neolítico, e não é imanente ao capitalismo, que de fato seria hostil a qualquer sujeito
ou técnica transcendente; ou está em todo lado, e lado determinado nenhum, em
“artefatos da História”. Com base no estudo histórico do desenvolvimento do general
intellect planetário da seção anterior, a concepção da “tensão de cisalhamento”
historicamente cumulativa parece mais adequada, sem esquecer que o poder
destrutivo se desenvolve simultânea e contraditoriamente. Sem o general intellect
discutido por Postone e pelo Ortlieb de 1998, a crise ecológica não poderia ser nem
mesmo conceituada, muito menos monitorada e projetada para o futuro com modelos
matemáticos, e somos pegos no contrapé sempre que nos referirmos a ela, ao mesmo
tempo que se nega toda a transcendência do general intellect (e portanto, do sujeito
que produz esse general intellect). Este general intellect parece ser cumulativo e
exceder o seu campo original de aplicação, ou seja, ele produz abstrações de
pensamento (mais do que “artefatos” particulares): de minas, máquinas a vapor e
jardins botânicos à mudança climática e seus impactos, na ilustração histórica.

Há, porém, um aspecto ainda não teorizado pelos autores referidos da crítica do
valor que precisa ser incorporado se não se quer cair para a acusação de “ilusão

172
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

matemática”: a agência da natureza teorizada com grande sensibilidade por Adorno e


Marcuse. Não se trata aqui de uma agência consciente (ainda que animais superiores
tenham formas de consciência): mas mesmo quando possui tão somente “inércia”, a
natureza é mais do que “coisa morta” – “matéria inerte” é matéria que resiste à
manipulação, e portanto requer energia para tal. A concepção de que as ciências
naturais são “ilusão matemática” resolve o problema da relação entre sujeito e objeto
como pura projeção, ou seja, unilateralmente pelo sujeito do valor. Lembremos,
porém, Keller (1985): mesmo em Bacon, a natureza só pode ser comandada quando ela
é obedecida – quando suas “leis” ou “padrões” (não temos especial interesse na
nomenclatura) são reconhecidos em interação prático-sensível com ela. Não se
aumenta a produtividade de uma fábrica, com métodos reproduzíveis em outras
fábricas de mesmo tipo em diferentes contextos, com projeção de ilusões. Se assim o
fosse, a acumulação de capital seria impossível. É porque as ciências naturais
produzem conhecimento em interação com um não-idêntico (a natureza, a “resistência
da matéria”) irredutível ao sujeito, nunca completamente subsumível à abstração do
valor, que esse conhecimento é útil e excede a sua aplicação imediata, sendo
potencialmente aplicável para além da valorização do valor. Esse conhecimento é
certamente imerso em contradições; mas renegá-lo como “pura ilusão” para depois
sair à caça de “artefatos da História” dissociados do sujeito que os produziu na verdade
reproduz a separação entre sujeito e objeto, como destacado por Ulrich em seu diálogo
com Ortlieb: a geladeira não pode ser separada dos métodos usados em sua fabricação
(reificada).

No trabalho com modelos matemáticos em processos produtivos, esses modelos


são elaborados com base em princípios básicos das ciências naturais. Entretanto, eles
precisam ter os parâmetros ajustados e ser validados para que representem
satisfatoriamente o processo modelado particular. Um modelo matemático aplicado à
produção de mercadorias, portanto, é um universal concreto. Um modelo matemático
abstrato (sem os parâmetros ajustados ao processo particular) produz resultados que
desviam significativamente do objeto modelado e é inútil para maximização de lucros
na produção de mercadorias. Um engenheiro químico, por exemplo, não pode
aumentar as constantes cinéticas de reação do modelo de um reator ao seu bel-prazer,

173
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

mas tem que “ouvir a natureza”, ainda que em condições despóticas (o projeto
baconiano “hermafrodita”, como caracterizado por Keller). Em outras palavras,
modelos matemáticos da natureza (ao menos os aplicados na produção) não podem
ser reduzidos a uma abstração no sentido de Sohn-Rethel, como afirma Ortlieb (1998),
visto que internalizam em seus parâmetros a “resistência da matéria”. Mesmo sob
condições de dominação, a natureza não é muda: apenas um sujeito pode ser reduzido
a objeto. Há elementos dessa formulação quando Postone elabora sobre “o sonho
implícito pela forma capital é de total ausência de limites, uma fantasia de liberdade
como a total libertação da matéria e da natureza”; quando Kurz reconhece que
“converter a própria natureza num estado a-histórico, de plena compatibilidade com a
abstracção do valor, nivelando qualquer diferença entre a natureza e a sociedade
capitalista” é “um projecto necessariamente votado ao fracasso”; quando Ortlieb é
obrigado a reconhecer, enfim, que o seu refrigerador não é pura ilusão.19 Porém, a
natureza não é conceituada como sujeito, ficando a questão como uma ponta solta das
formulações. Esses momentos mal-resolvidos são resíduos da abstração violenta
(gewaltsame absktraktion), do conceito que não captura momentos do objeto.20

Apesar de todos os autores até aqui citados terem plena consciência da crise
ecológica, nenhum, exceto Adorno e Marcuse, parece ter superado uma concepção da
natureza como “coisa morta”, que é na realidade uma concepção da modernidade
capitalista. Kurz (2003a) intuiu que

de um modo geral, o esquema de desenvolvimento da metafísica


histórica do Iluminismo se desenrola em paralelo à mundividência
mecanicista e causal da física sua contemporânea. O entendimento
da natureza e o entendimento da sociedade sempre se encontram
relacionados e, nesta medida, a ontologia negativa da crítica do
valor e da dissociação não pode deixar de lançar uma luz diferente
sobre a natureza física e biológica. Na mesma medida em que a
crítica social se aproxima das ciências da natureza da física
quântica, talvez no futuro também o enigma da natureza física
possa ser, ao menos, mais bem entendido.
Mas segundo o mesmo Kurz (2014),

19 Como engenheiro químico e cientista ambiental, fiz pesquisa na área de modelos matemáticos de
reatores. Ver, por exemplo, Secchi et al (2001); reparar que os modelos são contrapostos à realidade
empírica no processo de validação e ajuste. É aqui que a natureza é “ouvida”.
20 Sobre “abstração violenta” ou forçada, ver Sayer (1983, 121). O clássico exemplo é Ricardo tentando

identificar a taxa de lucro imediatamente na taxa de mais-valia, como expõe Marx (2011b, 378).

174
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Pressupor um “sujeito” realmente abstracto, puramente exterior a


todos os objectos naturais e sociais, isso já constitui uma marca
essencial da constituição capitalista histórica e das suas “formas
objectivas de pensamento”. A suposta impossibilidade de conhecer
as “coisas em si” é devida única e exclusivamente à forma social do
suporte do conhecimento, ou seja, do sujeito do valor
androcentricamente universalista, como funcionário do capital ou
do “sujeito automático”. Este “sujeito” desumanizado e coisificado,
um conceito específico da modernidade androcentricamente
universalista, capitalista, produtora de mercadorias, tem todo o
mundo como seu objecto de valorização abstracta, cuja qualidade
própria tem de ser indiferente e “em si” nula; incluindo, aliás, o
próprio corpo, os próprios sentimentos e necessidades.

O problema aqui está em supor que este “sujeito realmente abstrato”,


“puramente exterior a todos os objetos naturais” existe efetivamente, para além da
ideologia e da contradição, recaindo-se assim em abstrações violentas (Sayer 1983,
121). Assim, a “coisa em si” é acessível ao conceito já na forma social capitalista,
justamente porque este sujeito não é exterior aos objetos naturais: ele interage com
eles em atividade prático-sensível, com as suas “qualidades próprias” que resistem, na
produção mesma de mercadorias, ainda que com a mediação do capital fixo. É aí que
se constituem as abstrações de pensamento do general intellect que, para além de
“artefatos” particulares, são potencialmente emancipatórias.

Aqui podemos recorrer, finalmente, a Adorno e Marcuse. Para Adorno,

A técnica que, segundo um esquema recentemente tirado da moral


sexual burguesa, teria violentado a natureza, seria igualmente
capaz, sob relações de produção modificadas, de a socorrer e, nesta
pobre terra, a ajudar a tornar-se no que talvez aspire a ser (Adorno
2008/1970, 61, 84).

Marcuse, ao questionar se “é verdade que o reconhecimento da natureza como


sujeito é uma metafísica teleológica incompatível com a objetividade científica”,
destaca que não se trata de uma volição consciente da natureza, mas da sua libertação
pela humanidade. A ideia da libertação da natureza

não estipula uma intencionalidade do universo (...), mas estipula


sim que a natureza é suscetível a tal empreendimento, e que há
forças na natureza que foram distorcidas e suprimidas – forças

175
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

que poderiam apoiar e aprimorar a libertação humana (Marcuse


1972, 66).21

Caso não baste a evidente vida orgânica de plantas e animais, ou mesmo a


“inércia” como forma de “força interna”, cientistas naturais modernos já conceituam, à
sua maneira, a matéria mesma como sujeito, pelo menos desde 1919, com Bogdanov e
sua “atividade organizacional da natureza” (1980, 4).22 Conceituando a “criatividade
da natureza” (Prigogine 1996) ou a “física evolucionária (Tiezzi 2006) a partir da
termodinâmica, eles mostram que a natureza, mesmo a inorgânica, não é “morta”.
Pesquisas de ponta conceituam a “auto-organização via dissipação” e a “matéria ativa”,
que levam mesmo a uma teoria física da origem da vida (England 2015; Kachman,
Owen e England 2017; Nature 2019; exposições populares: Wolchover 2014; 2017;
Popkin 2016). É essa atividade da matéria que subjaz, por exemplo, na formação de
veios minerais e solos fórteis que, apropriados nas fronteiras de mercadorias, são
momento essencial na acumulação de capital como capital circulante (Cunha 2019c;
2020). Aqui há um momento teórico da ruptura ontológica na relação entre sujeito e
objeto da modernidade capitalista. As pesquisas de ponta na ciência natural dão razão
a Adorno e Marcuse: há “forças internas” na natureza. Reconhecer a natureza como
sujeito, ainda que por ora sujeitado, evita, enfim, a separação de sujeito e objeto
contida na proposição dos “artefatos da história” (Kurz); o sujeito da ciência
capitalista, em interação (despótica, masculina, colonialista) com o sujeito (tornado
objeto, e portante resistente) natureza, produz abstrações de pensamento (o general
intellect) que excedem o despotismo da valorização do valor, gerando tensões de
cisalhamento (Postone). Assim também se abandona a tábua rasa do sujeito, que,
ainda assim, era capaz de produzir artefatos úteis, e portanto não era tão raso. E não é
necessário evocar o homem do neolítico como ponto vista.

21Kurz (1987a) critica a subjetivação da natureza em Adorno e Horkheimer nestes termos: “a natureza
cega [subjektlose Natur] é reinterpretada como uma ‘vítima’ da auto-alienação humana ontológica, ou
seja, como um sujeito que sofre [leidenden Subjekt], objetivado pela lógica da ‘dominação’ humana.”
Aqui tomamos a forma da dominação da natureza como historicamente determinada na sociedade da
mercadoria, objetivada pela valorização do valor.
22 “A natureza resiste elementar e cegamente com a força terrível do seu obscuro, caótico, mas

inumerável e infinito exército de elementos. Para conquistá-la, a humanidade deve organizar-se como
um exército poderoso.” (Bogdanov 1980, 1).

176
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Em resumo, sustento que o sujeito da mercadoria é capaz de produzir


conhecimento sobre a natureza que transcende a sociedade da mercadoria. O
problema proposto é uma aporia solúvel, já que, em sua interação com a natureza que
“resiste” (é sujeito), o sujeito da mercadoria é obrigado a apreender as suas
determinações, produzindo abstrações de pensamento que são gerais e não apenas
específicas à forma social capitalista. Caso a aporia fosse insolúvel, resultaria uma
posição agnóstica em relação à primeira natureza para além das relações fetichistas
capitalistas que se reduziria à posição de Neil Smith (2008) discutida anteriormente,
ou seja, em matéria de mudança climática não se pode ir além da empiria. Como já
sabia David Hume, não se pode fundamentar projeções sobre o futuro no empirismo, a
menos que seja uma questão de fé. As aporias da história insolúveis se referem à
segunda natureza (às objetivações sociais). A primeira natureza (a história natural)
não está sujeita a tais aporias insolúveis: elas são solúveis, pois as abstrações de
pensamento do general intellect, ao lidar com a “resistência da matéria” (o sujeito não
é realmente abstrato, não é realmente externo aos objetos naturais), fornecem as
condições de possibilidade para que as ciências naturais tornem-se autocríticas, ainda
que de maneira contraditória (como mostram os relatórios do IPCC discutidos na
próxima seção) no interior mesmo da forma capitalista. Nas ilustrações históricas, as
abstrações de pensamento da termodinâmica derivadas do estudo das máquinas a
vapor são aplicadas à teoria da mudança climática antrópica; o conjunto das
abstrações de pensamento da ciência natural constitui um “general intellect
planetário”, que permite mesmo a conceituação da crise ecológica global que denuncia
o capitalismo como destrutivo dos fundamentos planetários da vida. Ou seja, a
conceituação da natureza transcende o mero utilitarismo do valor de uso no interior
mesmo destas relações fetichistas.23

23 Evidentemente, essas abstrações podem ser utilizadas para os mais diversos fins. Sabe-se que a teoria
da evolução biológica flertou com o racismo e o darwinismo social, e Kropotkin teve de intervir para
mostrar que competição não é tudo. A termodinâmica, como registra Tanja Paulitz, foi utilizada contra
a emancipação feminina na Alemanha, sob o argumento de que a atividade intelectual seria uma
“concorrência energética” com a atividade reprodutiva. Daí, porém, a dizer que “a termodinâmica foi
dotada de uma metafísica que pressupunha um sujeito do conhecimento com base no gênero”, há um
salto mortal perigoso da sociologia para epistemologia. A menos que se queira recusar as geladeiras
(um “artefato” trivial projetado à base da termodinâmica) como metafísicas ou patriarcais. Ver Meyer
(2018a).

177
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

O ponto de vista da emancipação, portanto, não é o do homem pré-capitalista


ou o do “sofrimento” abstrato, e tampouco o das “forças produtivas” ou “valor de uso”
ontologizados, mas o da tensão de cisalhamento imanente que acumula o não-idêntico
ao longo da “trajetória da produção”. O reconhecimento da natureza como sujeito
torna possível que o potencial crítico-emancipatório das ciências naturais acumulado
no “general intellect planetário” seja reconhecido sem recorrer à hipostasiação do
sujeito ou do objeto “para fora” das relações fetichistas capitalistas. A seguir
discorremos sobre as possibilidades emancipatórias imanentes desse “general intellect
planetário”.

**

Emancipação epistemológica

I call this number, call this number


For a data date, data date
I don't know what to do, what to do
I need a rendezvous, rendezvous

(Kraftwerk)

Voltemos ao problema do general intellect planetário. Os relatórios do IPCC


registram o seu caráter contraditório. Por um lado, eles são uma síntese monumental
do conhecimento humano sobre o sistema planetário, coletado em interação com a
natureza em unidades privadas de produção e instituições estatais, que revelam os
padrões da natureza que resistem e excedem a subsunção real ao capital. Por outro, ele
aplica conceitos como “serviços ecossistêmicos” (IPCC 2014a, 319) e “taxa de desconto”
de impactos (IPCC 2014b, 228-232) que são profundamente imanentes à
mercantilização da natureza. A noção de “serviços ecossistêmicos” se baseia na
economia neoclássica, enquanto a “taxa de desconto” de lucros presentes e impactos
futuros naturaliza a taxa de juros, a forma mais fetichizada do capital (Costanza et al
1997; Cunha 2015a). Ao aplicar esses conceitos apologéticos do capital, o IPCC reforça
o caráter estruturalmente contemplativo do conhecimento que ele sintetiza: tudo é
permitido, desde que esteja no interior das coordenadas da sociedade da mercadoria, o

178
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

que garante o business as usual.24

Os modelos matemáticos das ciências naturais são alavancas para que possamos
“mudar de futuro” ao antecipar a catástrofe (Dupuy 2004), rompendo com a camisa de
força do valor que os mantém como instrumentos de contemplação. Enquanto
movimentos anti-sistêmicos estão claramente débeis, a ficção científica pode nos
oferecer alguma inspiração sobre como a ciência pode ser reconfigurada e utilizada
para além da valorização do valor. Na verdade, de acordo com Fredric Jameson (2005),
a esperança utópica encontrou nela um refúgio. Bogdanov (1984), em seu Red Star de
1908, imaginou uma sociedade marciana na qual um sistema estatístico distribui o
“trabalho” social necessário entre todos, de acordo com as aptidões e preferências de
cada indivíduo. O sistema estatístico tornaria possível que todo indivíduo pudesse ser
alocado a uma atividade de seu interesse, assim como, inversamente, que toda
atividade necessária pudesse ser alocada a algum interessado (Bogdanov 1984, 62-68).
Obviamente, isso requer a comunização da terra e dos meios de produção, de maneira
que não haveria requisição de tempo de trabalho em abstrato. Isso seria de certa forma
a realização do tipo de comunismo visualizado por Marx e Engels n’A ideologia alemã,
onde o indivíduo poderia caçar, pescar ou criticar, sem a compulsão de fixar-se em
qualquer destas atividades como uma “profissão”.25 Ou, ainda, a realização do mote da
Crítica do programa de Gotha: “de cada um de acordo com as suas habilidades, a cada
um de acordo com as suas necessidades” (Marx sd). Mas o que é o sistema estatístico
imaginado por Bogdanov senão o big data, não aplicado no mercado financeiro, mas

24Modelos matemáticos sempre podem “funcionar” apenas de maneira instrumental, enquanto deixam
de lado variáveis e processos fundamentais por razões mais ou menos conscientes (ideológicas). Por
exemplo, o modelo de um processo químico pode representar com elevada acurácia os seus processos
internos e sua eficiência enquanto deixa de lado a modelagem das emissões poluidoras, ainda que isso
seja tecnicamente possível, já que esta é uma “externalidade” da maximização dos lucros. A regulação
ambiental, por sua vez, pode exigir (em tese) a modelagem da poluição. Ver também os modelos
epidemiológicos discutidos por Wallace et al nesta edição, que modelam apenas a externalidade (a
pandemia), reificada dos circuitos do capital. Os modelos matemáticos do sistema climático também
modelam apenas externalidade, mas por estarem sob constante escrutínio da comunidade científica
transnacional institucionalizada no IPCC, com acesso praticamente irrestrito ao general intellect
(dados de monitoramento, reconstruções climáticas, desenvolvimentos teóricos, etc.) e terem por
objeto a totalidade do sistema climático,incorporam grande capacidade de autocrítica social.
25 “na sociedade comunista, onde cada um não tem um campo de atividade exclusivo, mas pode

aperfeiçoar-se em todos os ramos que lhe agradam, a sociedade regula a produção geral e me confere,
assim, a possibilidade de hoje fazer isto, amanhã aquilo, de caçar pela manhã, pescar à tarde, à noite
dedicar-me à criação de gado, criticar após o jantar, exatamente de acordo com a minha vontade, sem
que eu jamais me torne caçador, pescador, pastor ou crítico.” (Marx e Engels 2007, 38).

179
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

prefigurado com fins emancipatórios? O que seria possível com a capacidade


computacional do século XXI?

Em Bogdanov, que escreveu no início do século XX, ainda estamos imersos na


ontologia do “trabalho”. Hoje, a questão urgente é ir além dela. Outro autor que pode
ser inspirador é Kim Stanley Robinson, em seu livro 2312 (2012). Robinson imagina
um sistema de produção e alocação de recursos em uma rede de cooperação mútua, no
qual, após a “mediação política dos desejos” (definição consciente das necessidades),
todo cálculo “econômico” (produção e distribuição conforme aquelas necessidades)
seria executado por um supercomputador, uma espécie “modelo cibernético soviético”
ou cooperativa Mondragon matematizada (Robinson 2012, 125). A “política”, então, se
apropriaria daquilo que é agora dominado pela indústria cultural, e as questões
técnicas derivadas seriam resolvidas computacionalmente, de maneira otimizada, da
produção de energia à reciclagem, da forma de distribuição à extração de matérias-
primas, com base nas propriedades sensíveis. O cenário de Robinson é o Sistema Solar
inteiro, mas podemos imaginá-lo à escala planetária. De fato, dada a comunização da
terra e dos meios de produção, é perfeitamente imaginável que os dados de
monitoramento e os modelos matemáticos do sistema planetário poderiam integrados
com modelos deprodução e alocação de recursos, internalizando a estabilidade do
sistema planetário e ecossistemas locais nos modelos de produção e distribuição (ou
seja, eliminando a “externalização”), ao invés de permanecer como conhecimento
contemplativo. Pode-se imaginar que o sistema emitiria alertas quando as
“necessidades”, mesmo com os melhores métodos de otimização computacional,
resultam materialmente insustentáveis, retroagindo a informação à “mediação dos
desejos”. A “mediação política dos desejos” e o “modelo cibernético soviético”
desempenhariam o papel hoje deixado aos algoritmos automáticos do mercado
financeiro, a expressão mais pura do “sujeito automático” (Marx).

Na trilogia marciana de Robinson (Red Mars, Green Mars, Blue Mars), escrita
na década de 1990, o planeta vermelho é colonizado e terraformado por uma
comunidade de cientistas, em meio a revoluções sociais que se livram do capitalismo
terráqueo, que buscava converter Marte em uma fronteira de mercadorias através da

180
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

construção de um “elevador espacial” para a transferência interplanetária de minérios.


Nesse caso, as condições sócio-ecológicas do planeta foram conscientemente escolhidas
em processos democráticos que refletiam os desejos dos novos habitantes, que incluía
facções que defendiam a beleza intrínseca da paisagem original marciana. Nesse
cenário, a ciência se tornou imediatamente política e a política se tornou
imediatamente científica: a composição da atmosfera, a introdução de novas espécies
animais e vegetais, tudo era discutido conscientemente e com o uso intensivo de
modelos matemáticos. Como posto por um personagem importante, “nós
terraformamos o planeta; mas o planeta nos areoforma”, onde “areoformação” deriva
do deus Ares, que representa Marte (Robinson 1993, 253): as abstrações violentas
“natureza” e “sociedade” tendem a ser superadas. Marte, nesse caso, pode servir como
um espelho da Terra ou Verfremdungseffekt – de fato, o planeta Marte original da
Trilogia, estéril e desértico, se parece muito com a Terra arrasada, com necessidade de
urgente intervenção.

A ficção científica pode ser inspiradora em um contexto no qual as críticas de


esquerda do conceito de Antropoceno são, no geral, pouco dialéticas, o que parece
derivar ao menos em parte da crítica unilateral das ciências naturais. Sem dúvida, a
humanidade não existe na imanência da modernidade capitalista, com as suas fraturas,
antagonismos e alienação; a crítica é correta. Porém, não se deve esquecer que o
projeto comunista trata justamente da realização desse ainda-não: se o capital aliena o
ser-espécie, nos termos do jovem Marx, o comunismo permitiria a sua realização
(Marx 2004, 79-90). E isso é apenas possível porque a humanidade já existe em forma
pervertida, na forma da troca mercantil universalizada: relações de valor abrangem o
mundo inteiro, mas na forma de relações alienadas, relações sociais entre coisas (Marx
2011b, cap. 1).26 Isso seria a apropriação da humanidade alienada, incluindo o
“ambiente” na comunidade universal (natureza como sujeito), de maneira que a
humanidade possa realmente estar “no controle”, mas com critérios muito diferentes
daqueles da valorização do valor, produzindo “naturezas históricas” muito diversas.
Essa transformação qualitativa é melhor caracterizada como “supervisão liberadora”

26 Sobre a continuidade entre a alienação no jovem Marx e a teoria do valor e do fetichismo da


mercadoria n’O capital, ver Colletti (1992).

181
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

do que “controle”, uma “ordem” como aquela imaginada por Baudelaire, que permite
que o repouso suplante a industriosidade e o planeta se torne um Lebenswelt ou
“universo estético” que realiza a arte (ver Marcuse 1975, 149; Adorno 1993 , 137-8;
Marcuse 1969, 31; Debord 2009; Cassegard 2016).

Já na juventude, Marx delineou a superação do cisma entre naturalismo e


humanismo como um momento da emancipação: “este comunismo é, enquanto
naturalismo consumado = humanismo, e enquanto humanismo consumado =
naturalismo” (Marx 2004, 105). Isso incluiria uma revolução epistemológica: “Tanto a
ciência natural subsumirá mais tarde precisamente a ciência do homem quanto a
ciência do homem subsumirá sob si a ciência natural: será uma ciência.” (Marx 2004,
112). Mais tarde, em seus escritos metodológicos maduros nos quais discute a relação
entre categorias lógicas e desenvolvimento histórico, Marx afirma que

A sociedade burguesa é a mais desenvolvida e


diversificadaorganização histórica da produção. Por essa razão, as
categorias que expressam suas relações e a compreensãode sua
estrutura permitem simultaneamente compreendera organização e
as relações de produção de todas as formasde sociedade
desaparecidas, com cujos escombros eelementos edificou-se, parte
dos quais ainda carrega consigo como resíduos não superados, parte
[que] nela sedesenvolvem de meros indícios em significações
plenasetc. A anatomia do ser humano é uma chave para a
anatomiado macaco. (Marx 2011a, 58)

Aqui tanto a evolução biológica quanto a geologia histórica (da qual ele tomou o
conceito de “formação”) são tomadas como meios para explicar o atraso entre o
desenvolvimento histórico e sua conceituação.27 Ele então elabora:

Como em geral em toda ciência histórica e social, no curso das


categorias econômicas é preciso ter presente que o sujeito, aqui a
moderna sociedade burguesa, é dado tanto na realidade como na
cabeça, e que, por conseguinte, as categorias expressam formas de
ser, determinações de existência, com frequência somente aspectos
singulares, dessa sociedade determinada, desse sujeito, e que, por
isso, a sociedade, também do ponto de vista científico, de modo
algum só começa ali onde o discurso é sobre ela enquanto tal. (Marx
2011a, 59).

27 Sobre o uso da geologia por Marx, ver Hundt (2004).

182
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Dessa maneira, Marx deriva que há uma “defasagem” entre o estabelecimento


histórico de uma formação social e a sua conceituação, assim como deriva que essas
categorias são historicamente específicas, e não categorias de um método universal
(ver também Postone 2014, 164-169). A homologia com as ciências naturais (biologia e
geologia), se aponta para o seu esforço metodológico para elidir a separação entre as
ciências humanas e naturais, é ainda um meio para lidar com a alienação, post-festum,
como a separação entre produto e produção consciente. O Antropoceno como
promessa realizada, porém, seria a plena realização da “ciência única” aludida pelo
jovem Marx. O Antropoceno como realização da humanidade em unidade e
reconciliação com a natureza implica que a alienação é superada, porque a
humanidade se torna consciente e imediatamente atuante sobre a formação social, que
é inseparável da ação sobre a formação natural, e essa atuação é imediatamente
unificada como sócio-natural na escala planetária. A natureza não é subsumida sob um
princípio único organizador, mas é conscientemente supervisionada, também para que
possa florescer. Em outras palavras, a “defasagem conceitual”, em suas versões social e
natural, é superada: a humanidade produz conscientemente a si mesma e ao seu
ambiente planetário, inseparavelmente. O método dialético da crítica da economia
política, que é historicamente fundado no caráter contraditório da mercadoria, devém
ele próprio obsoleto, um método agora útil apenas para revelar o passado soterrado e
distante, como a geologia histórica e a biologia evolucionista.
Esse é o núcleo emancipatório do Antropoceno, que, se parecesse
definitivamente esmagado pelo peso do Capitaloceno produtor de crises e catástrofes,
precisa ser politicamente articulado. Estamos em uma bifurcação, na qual a
apropriação e reconfiguração do general intellect planetárioé um requisito, entre
muitos, para uma sociedade livre; a crítica e rejeição unilateral das ciências naturais
matemáticas nos deixam mais próximos de resultados históricos catastróficos. Em um
momento de pandemia, aquecimento global e crise de reprodução do capital, a
imaginação utópica pode parecer pueril. De fato, podemos até mesmo já estar em um
pós-capitalismo regressivo, faltando-nos apenas os conceitos para percebê-lo (Cunha
2019b). Mas é neste momento de bifurcação histórica que é preciso articular esta
imaginação, intensificar as tensões de cisalhamento, antes que seja (se já não é)
demasiado tarde. Computer love ou barbárie.
183
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Referências

Adams, Frank D. 1938. The Birth and Development of the Geological Sciences. New York:
Dover.
Adorno, Theodor W. 1993/1951. Minima Moralia. Trad. Luiz Bicca. São Paulo: Ática.
Adorno, Theodor W. 2008/1970. Teoria estética. Trad. A. Morão. Lisboa: Edições 70.
Adorno, Theodor W. e Max Horkheimer. 1985/1944. Dialética do Esclarecimento: fragmentos
filosóficos. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar.
Almeida, Claudio Aparecido et al. 2016. “High spatial resolution land use and land cover
mapping of the Brazilian Legal Amazon in 2008 using Landsat-5/TM and MODIS data.”
Acta Amazonica 46 (3): 291-302.
Bequette, B. Wayne. 2019. “Process control practice and education: past, present, and future.”
Computers and Chemical Engineering 128: 538-556.
Bogadnov, A. 1980/1921. Essays in Tektology. Trad. G. Gorelik. Seaside: Intersystems
Publications.
Bogdanov, A. 1984/1908. Red Star: the first Bolshevik utopia. Translated by C. Rougle.
Bloomington: Indiana University Press.
Brockway, Lucile. 1979. Science and Colonial Expansion. New York: Academic Press.
Campagne, Armel. 2017. Le capitalocène: aux racines historiques du dérèglements climatique.
Paris: Divergences. Disponível em: https://www.editionsdivergences.com/le-
capitalocene-darmel-campagne-pdf/
Cassegard, Carl. 2016. The Anthropocene as Utopian Promise? Disponível em:
https://carlcassegard.blogspot.com/2016/09/the-anthropocene-as-utopian-promise.html
Castree, Noel. 2000. “Marxism and the Production of Nature.” Capital & Class 24 (72): 5-
36.
Chuang. 2020. “Contágio social: coronavírus e a luta de classes microbiológica na China.”
Disponível em: https://veneta.com.br/produto/contagio-social-pdf/
Colletti, Lucio. 1992. Introduction. Trans. T. Nairn. Pp. 7-56 in Early writings, K. Marx.
London: Penguin.
Costanza, Robert et al. 1997. “The value of the world’s ecosystem services and natural capital.”
Nature 387: 253-260.
Crutzen, Paul. 2002. “The Geology of Mankind.” Nature 415: 23.
Cunha, Daniel. 2015a. “O Antropoceno como fetichismo.” Continentes 6: 83-102.
Cunha, Daniel. 2015b. “The Geology of the Ruling Class?” The Anthropocene Review 2 (3):
262-266.
Cunha, Daniel. 2015c. “Misérias do primitivismo.” Sinal de Menos 11(1): 238-246.

184
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Cunha, Daniel. 2018. “The Rise of the Hungry Automatons: The Industrial Revolution and
Commodity Frontiers.” Area Paper, PhD in Sociology, Binghamton University.
Cunha, Daniel. 2019a. “Bolsonarismo e capitalismo de fronteira.” Sinal de Menos 13: 183-200.
Cunha, Daniel. 2019b. “Pós-capitalismo regressivo e ‘inércia conceitual’.” Sinal de Menos 13:
250-254.
Cunha, Daniel. 2019c. “The Frontier of Hell: Sulfur, Sicily, and The Rise of The British
Chemical Industry, 1750-1840.” Critical Historical Studies 6(2): 279-302.
Cunha, Daniel. 2020. “Coppering the Industrial Revolution: History, Materiality and Culture in
the Making of an Ecological Regime.” Journal of World-Systems Research 26(1): 40-69.
Debord, Guy. 2009/1971. “O planeta enfermo.” Trad. Daniel Cunha. Sinal de Menos 2: 152-159.
Drayton, Richard. 2000. Nature’s Government: Science, Imperial Britain, and the
“Improvement” of the World. New Haven: Yale University Press.
Dupuy, Jean-Pierre. 2004. Pour un catastrophisme éclairé: quand l’impossible est certain.
Paris: Seuil.
England, Jeremy L. 2015. “Dissipative adaptation in driven self-assembly.” Nature
Nanotechnology 10: 919-923.
Escobar, Herton. 2019. “Brazilian institute head fired after clashing with nation’s president
over deforestation data.” August 4.
https://www.sciencemag.org/news/2019/08/brazilian-institute-head-fired-after-
clashing-nation-s-president-over-deforestation
Harding, Sandra. 1986. The Science Question in Feminism. Ithaca: Cornell University Press.
Hundt, Martin. 2014. “Wie und zu welchem Ende studierte Marx Geologie?” Sitzungsberichte
der Leibniz-Sozietät der Wissenschaften zu Berlin 121: 117-133.
IPCC. 2013. Climate Change 2013: The Physical Science Basis. Cambridge: Cambridge
University Press.
IPCC. 2014a. Climate Change 2014: Impacts, Adaptation, and Vulnerability. Cambridge:
Cambridge University Press.
IPCC. 2014b. Climate Change 2014: Mitigation of Climate Change. Cambridge: Cambridge
University Press.
Jameson, Fredric. 2005. Archaeologies of the Future: The Desire Called Utopia and Other
Science Fictions. New York: Verso.
Jappe, Anselm. 2001. “Gene, Werte, Bauernaufstände.” Disponível em:
http://www.krisis.org/wp-content/data/gene-werte-bauernaufstaende.pdf. Original:
Krisis 24.
Jappe, Anselm. 2003. “Uma questão de ponto de vista.” Trad. Lumir Nahodil. Disponível em:
http://grupokrisis2003.blogspot.com/2009/06/uma-questao-de-ponto-de-vista.html.
Original: Krisis 26.
Jappe, Anselm. 2006. As aventuras da mercadoria: para uma nova crítica do valor. Trad.
José Miranda Justo. Lisboa: Antígona.

185
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Kachman, Tal; Jeremy A. Owen e Jeremy L. England. 2017. “Self-Organized Resonance during
Search of a Diverse Chemical Space.” Physical Review Letters 119
Keller, Evelyn Fox. 1985. Reflections on Gender and Science. New Have: Yale University Press.
Kuhn, Thomas S. 1962 The Structure of Scientific Revolutions. Chicago: The University of
Chicago Press.
Kurz, Robert. 1987a. “Die Herrschaft der Toten Dinge: kritische Anmerkungen zur neueren
Produtktifkraft-kritik und Entgesellschaftungs-ideologie. Teil 1” Disponível em:
https://www.exitonline.org/textanz1.php?tabelle=autoren&index=31&posnr=81&backtext
1=text1.php Original: Marxistische Kritik 2.
Kurz, Robert. 1987b. “Die Herrschaft der Toten Dinge: kritische Anmerkungen zur neueren
Produtktifkraft-kritik und Entgesellschaftungs-ideologie. Teil 2” Dispoinível em:
https://www.exitonline.org/textanz1.php?tabelle=autoren&index=31&posnr=82&backtex
t1=text1.php Original: Marxistische Kritik 3.
Kurz, Robert. 2002. “Razão Sangrenta: 20 teses contra o chamado Iluminismo e os ‘valores
ocidentais’.” Trad. Lumir Nahodil. Disponível em: http://www.obeco-
online.org/rkurz103.htm. Original: Krisis 25.
Kurz, Robert. 2003a. “Ontologia negativa: os obscurantistas do Iluminismo e a metafísica
histórica da modernidade.” Trad. Lumir Nahodil. Disponível em: http://www.obeco-
online.org/rkurz115.htm. Original: Krisis 26.
Kurz, Robert. 2003b. “Tabula Rasa: até onde é desejável, obrigatório ou lícito que vá a crítica
ao Iluminismo?” Trad. Lumir Nahodil. Disponível em:
http://obeco.planetaclix.pt/rkurz153.htm. Original: Krisis 27.
Kurz, Robert. 2006. “A história como aporia: teses preliminares para a discussão em torno da
historicidade das relações de fetiche. (1ª Série)”. Trad. Boaventura Antunes e Virgínia
Freitas. Disponível em: http://www.obeco-online.org/rkurz242.htm
Kurz, Robert. 2014. “A luta pela verdade: notas sobre o mandamento pós-moderno de
relativismo na teoria crítica da sociedade. Um fragmento”. Trad. Boaventura Antunes.
Disponível em: http://www.obeco-online.org/rkurz411.htm. Original: exit! 12.
Kurz, Rorbert. 2019/1986. A crise do valor de troca. Trad. André V. Gomez e Marcos Barreira.
Rio de Janeiro: Consequência.
Laudan, Rachel. 1994. From Mineralogy to Geology: the foundations of a science, 1650-1830.
Chicago: The University of Chicago Press.
Lohoff, Ernst. 1987. “Technik als Fetisch-Begriff.” Disponível em:
http://www.krisis.org/1987/technik-als-fetisch-begriff/. Original: Marxistische Kritik 3.
Lohoff, Ernst. 2002. “Frankenstein kann es nicht richten: Einige Anmerkungen zu Anselm
Jappes ‘Gene, Werte, Bauernaufstände’.” Disponível em:
https://www.nadir.org/nadir/aktuell/2002/05/13/10080.html. Original: Krisis 25.
Malm, A. e A. Hornborg. 2014. “The geology of mankind? A critique of the Anthropocene
narrative.” The Anthropocene Review 1 (1): 62-69.
Malm, A. 2016. Fossil Capital: The Rise of Steam Power and the Roots of Global Warming.
New York: Verso.

186
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Marcuse, Herbert. 1969. An Essay on Liberation. Boston: Beacon Press.


Marcuse, Herbert. 1972. Counter-revolution and Revolt. Boston: Beacon Press.
Marcuse, Herbert. 1975/1955. Eros e civilização: uma interpretação filosófica do pensamento
de Freud. Rio de Janeiro: Zahar.
Marques, Pedro Neves. 2016. “How Many Natures Can Nature Nurture? The Human,
Multinaturalism and Variation.” Disponível em:
https://forhumanliberation.blogspot.com/2020/05/3365-how-many-natures-can-
nature.html
Marx, Karl. 2004. Manuscritos econômico-filosóficos. Trad. Jesus Ranieri. São Paulo
Boitempo.
Marx, Karl. 2011a. Grundrisse. Manuscritos econômicos de 1857-1858. Esboço da Crítica da
Economia Política. Trad. Mario Duayer e Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo.
Marx, Karl. 2011b. O capital: crítica da economia política. Livro I. Trad. Rubens Enderle. São
Paulo: Boitempo.
Marx, Karl. s. d. Crítica do Programa de Gotha. Trad. José Barata-Moura. Disponível em:
https://www.marxists.org/portugues/marx/1875/gotha/index.htm
Marx, Karl. e Friedrich Engels. 2007. A ideologia alemã. Trad. R. Enderle, N. Schneider e L. C.
Martorano. São Paulo: Boitempo.
Merchant, Carolyn. 1980. The Death of Nature: Women, Ecology and the Scientific
Revolution. San Francisco: Harper & Row.
Merchant, Carolyn. 2010/1989. Ecological Revolutions: Nature, Gender, & Science in New
England. 2nd ed., Chapel Hill: The University of North Carolina Press.
Meyer, Thomas. 2018a. “O Homem e a Máquina – Reflexões sobre o Androcentrismo nas
Ciências Técnicas.” Trad. Boaventura Antunes. Disponível em: http://www.obeco-
online.org/thomas_meyer14.htm. Original: Exit 15.
Meyer, Thomas. 2018b. “Big Data e o novo mundo inteligente como estádio supremo do
positivismo.” Trad. Boaventura Antunes. Disponível em: http://www.obeco-
online.org/thomas_meyer4.htm. Original: Exit 15.
Moore, Jason W. 2000. “Sugar and the expansion of the early-modern world-economy:
commodity frontiers, ecological transformations and industrialization.” Review XXIII (3):
409-433.
Moore, Jason W. 2015. Capitalism in the Web of Life: ecology and the accumulation of
capital. New York: Verso.
Moore, Jason W. 2017. “The Capitalocene, part I: on the nature and origin of our ecological
crisis.” The Journal of Peasant Studies 44 (3): 594-630.
Müller, Ingo. 2007. A History of Thermodynamics: The Doctrine of Energy and Entropy.
Berlin: Springer.
Nature.com. 2019. Active Matter (Collection). Disponível em:
https://www.nature.com/collections/hvczfmjfzl

187
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Ortlieb, Claus Peter. 1998. “Objetividade inconsciente: aspectos da crítica das ciências
matemáticas da natureza”. Trad. Boavaentura Antunes. Disponível em:
http://www.obeco-online.org/cpo_pt.htm. Original em Krisis 21/22.
Ortlieb, Claus Peter. 2018. “Ilusão Matemática.” Trad. Boaventura Antues. Disponível em:
http://www.obeco-online.org/claus_ortlieb19.pdf.
Ortlieb, Claus Peter e Jörg Ulrich. 2007. “Die metaphysischen Abgründe der modernen
Naturwissenschaft: Ein Dialog.” Disponível em: https://www.math.uni-
hamburg.de/home/ortlieb/Exit04CPOJUNatWiss.pdf. em Original em Exit 4.
Podolinsky, Sergei. 2008/1883. “Human Labor and Unity of Force.” Trad. Peter Thomas.
Historical Materialism 16: 163-183.
Popkin, Gabriel. 2016. “The physics of life.” Nature 529: 16-18. Disponível em:
https://www.nature.com/news/the-physics-of-life-1.19105
Postone, Moishe. 2014/1993. Tempo, trabalho e dominação social: uma reinterpretação da
teoria crítica de Marx. Trad. Amilton Reis e Paulo C. Castanheira. São Paulo: Boitempo.
Postone, Moishe. 2019/2017. “A crise atual e o anacronismo do valor: uma leitura marxiana.”
Trad. Manoel D. Bastos. Sinal de Menos13: 32-50.
Prigogine, Ilya. 1996. “The laws of chaos.” Review 19(1): 1-9.
Ramtin, Ramim. 1991. Capitalism and Automation: Revolution in Technology and Capitalist
Breakdown. London: Pluto Press.
Robinson, Kim Stanley. 1993. Red Mars. New York: Bantam.
Robinson, Kim Stanley. 2012. 2312. New York: Orbit.
Rockstrom, Johan et. al. 2009. “A safe operating space for humanity.” Nature 461: 472-475.
Rowe, John. 1953. Cornwall in the Age of the Industrial Revolution. Liverpool: Liverpool
University Press.
Royer, Jean-Marc. 2020. “Critique de l’article l’Anthropocène comme fétichisme’ de Daniel
Cunha.” Disponível em: http://www.autrefutur.net/Critique-de-l-article-l-Anthropocene-
comme-fetichisme-de-Daniel-Cunha
Sayer, Derek. 1983. Marx’s Method: Ideology, Science, and Critique in Capital. Sussex:
Harverter Press.
Schellnhuber, H.-J. e J. Kropp. 1998. “Geocybernetics: controlling a complex dynamical system
under uncertainty.” Naturwissenschaften 85: 411-425.
Secchi, Argimiro; Jorge O. Trierweiler; Luis A. S. Casali; Daniel D. Cunha e Gustavo A.
Neumann. 2001. “FCC dynamic modelling: first principles or system identification?”
Artigo apresentado no V Simpósio Brasileiro de Automação Inteligente, Canela, 2001.
Disponível em: https://fei.edu.br/sbai/SBAI2001/vsbai/artigos/1157.pdf
Scholz, Roswitha. 2018. “O fim da pós-modernidade e a ascensão de ‘novos’ pseudo-realismos:
objecções da crítica da dissociação e do valor ao novo realismo, ao realismo especulativo e
ao aceleracionismo.” Trad. Boaventura Antunes. Disponível em: http://www.obeco-
online.org/roswitha_scholz31.htm. Original: Exit 15.

188
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Smith, Neil. 2008. Uneven Development: Nature, Capital, and the Production of Space.
Athens: The University of Georgia Press.
Steffen, W. et al. 2015. “Planetary boundaries: guiding human development on a changing
planet.” Science 347 (6223): 736.
Tiezzi, Enzo. 2006. Steps Towards an Evolutionary Physics. Boston: WIT Press.
Vernadsky, Vladimir I. 1998. The Biosphere. Translated by D. B. Langmuir. New York:
Copernicus.
Wolchover, Natalie. 2014. “A New Physics Theory of Life.” Quanta Magazine. Disponível em:
https://www.quantamagazine.org/a-new-thermodynamics-theory-of-the-origin-of-life-
20140122/. Em português: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/armazem-
literario/_ed783_uma_nova_teoria_fisica_da_vida/
Wolchover, Natalie. 2017. “First Support for a Physics Theory of Life.” Quanta Magazine.
Disponível em: https://www.quantamagazine.org/first-support-for-a-physics-theory-of-
life-20170726/

189
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

EM ESTADO DE FAZENDA
Lima Barreto e o desmanche da ilusão nacional

Cláudio R. Duarte

“Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!


Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,
ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.
O Brasil não nos quer! Está farto de nós!
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?”

(Drummond, “Hino nacional”, Brejo das almas, 1934).

O Brasil em “estado de fazenda”

Numa passagem de seu diário de fins de 1904, Lima Barreto (1881-1922)


comenta o estado de sítio e a repressão à Revolta da Vacina:

“Este caderno esteve prudentemente escondido trinta dias. Não fui


ameaçado, mas temo sobremodo os governos do Brasil.
Trinta dias depois, o sítio é a mesma coisa. Toda a violência do governo
se demonstra na ilha das Cobras. Inocentes vagabundos são aí
recolhidos, surrados e mandados para o Acre.
Um progresso! Até aqui se fazia isso sem precisar de estado de sítio; o
Brasil já estava habituado a essa história. Durante quatrocentos anos
não se fez outra coisa pelo Brasil. Creio que se modificará o nome: estado
de sítio passará a ser estado de fazenda.
De sítio para fazenda há sempre um aumento, pelo menos do número de
escravos.”1

1 BARRETO, Afonso Henriques de Lima. Diário íntimo. (Org. Francisco de Assis Barbosa, com
colaboração de Antonio Houaiss e Manuel Cavalcanti Proença). São Paulo: Brasiliense, 1956, p. 49,
grifo nosso.

190
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

A revolta foi ampla, a repressão violenta. Lima aproveita para refletir sobre o
“progresso” do país, suas formas de governo, a identidade nacional de fundo que toma
figura em eventos desse tipo. Indo direto ao ponto, creio que isso se resolve, caso
seguirmos uma certa linha de tensões deixada por sua obra, nessa expressão
despretensiosa e irônica mas muito perspicaz do autor: um “estado de fazenda”.

Marc Ferrez. Escravizados na colheita de café, c. 1882. Vale do Paraíba, RJ / Acervo IMS.2

Um contexto, duas subtrações

“(...) todas as crenças se confundem neste


fim de século sem elas.”

(Machado de Assis, A Semana,19/03/1893).

Aqui a metáfora do estado de sítio como “estado da fazenda” tem de ser tomada
quase como em Kafka, “ao pé da letra”3, e para não dizer que já se trata de um mundo
kafkiano, digamos pré-kafkiano: mundo obcecado pela forma de reiteração do poder
numa sociedade ex-escravista. Ao que nos parece Lima Barreto não foge ao círculo de

2 Fonte desta foto de Marc Ferrez (e outros materiais) em:


http://brasilianafotografica.bn.br/?tag=escravidao (acesso em 19/05/20).
3 ANDERS, Günter. Kafka: pró e contra [1951]. São Paulo: Perspectiva, 1993, p. 46-7.

191
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

concretização dessa metáfora territorial, que podemos tomar como essência de seu
procedimento estético e o que há de mais crítico e atual em sua obra. É como uma cor
fundamental que se apresenta em vários matizes. Assim, essa identidade
social/nacional negativa, de fazenda escravista, que solda a ideia de nação à forma
violenta do Estado, a uma construção fictícia do Estado e para o Estado, não é o
produto de uma soma – antes ao contrário, de duas subtrações. É a partir disso que as
carapaças ideológicas são como que retiradas e essa metáfora territorial passa a se
materializar. A primeira subtração evidente é a do nacionalismo, a segunda a do
cosmopolitismo, ambos necessitando um enquadramento pelo contexto, o de cada
momento, o de cada obra, para se obter sua determinação específica.

O país vivia então a passagem do Império à República, marcada por enormes


instabilidades políticas, sociais e financeiras que davam uma sensação generalizada de
fluidez e falta de referenciais fixos. Aqui vai se consolidando também a transição do
campo à cidade, a República do “café com leite”, o país dependente e atrasado, de
industrialização ainda incipiente, que arrastava uma multidão social ferida por uma
abolição que “libertou os brancos do fardo da escravidão, abandonando os ex-escravos
à sua própria sorte”.4 Atravessando dois governos militares autoritários até o osso e
muito próximos à ideologia cientificista da época, a República reproduzia no campo o
coronelismo dos potentados rurais, em geral religiosos e obscurantistas. O elo
territorial-militar entre o rural/local e o urbano/central fica claro em passagens que
surpreendem esse núcleo de violência hiper-real na sociedade brasileira. Como diz um
refugiado dessa guerra na cidade:

“Mata-se à toa por dá cá aquela palha. As paixões, mesquinhas paixões


políticas, exaltam os ânimos de tal modo, que uma facção não teme
eliminar o adversário e por meio do assassinato, às vezes revestindo da
forma mais cruel. O predomínio, a chefia da política local é o único fim
visado nesses homicídios (...). Não é aqui, nem ali; é em todo o Brasil,
mesmo às portas do Rio de Janeiro. É um horror! Além desses
assassinatos, praticados por capangas – que nome horrível! – há os
praticados pelos policiais e semelhantes nas pessoas dos adversários dos
governos locais, adversários ou tidos como adversários (...) Basta um
bosquejo, para chegar uma escolta, varejar fazendas, talar plantações,
arrebanhar gado, encarcerar ou surrar gente que, pelo seu trabalho,
devia merecer respeito. Penso (...) que a fortuna dessa gente que está na

4 COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. 5ªed. São Paulo: Ed. Unesp, 2010, p. 58.

192
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Câmara, no Senado, nos Ministérios, até na presidência da República se


alicerça no crime, no assassinato.”5

Note-se aí a contiguidade sintática entre o gado e o homem para expressar uma


semelhança (o tratamento violento). Como se o homem fosse gado e vice-versa e já
pouco se distinguisse aqui o arrebanhado, o surrado ou o encarcerado, enquanto o
“respeito” pelo trabalhador se esvai como ilusão. Uma metáfora metonimizada quase se
concretiza para exprimir a história: por tais meios violentos esse poder ampliava a
concentração fundiária, expropriando terras, subjugando o trabalho de lavradores ou
posseiros aviltados, ou explorando assalariados sob regimes de intensa espoliação e
coerção direta alcançando não raro condições de semi-escravidão, que prefiguraram a
linha contínua desenhada pelo capital (multi)nacional ao longo do século, ainda hoje
combinando padrão high-tech e trabalho informal miserável.6

Uma atualidade alarmante

A problemática do sujeito remediado mas paralisado numa sociedade


competitiva mediada pelo favor, o poder de proprietários, burocratas e influências
locais, a problemática do(a) trabalhador(a) sem eira nem beira, do posseiro, do
marginalizado, do ser exposto ao capital vivendo às margens e em fuga dessa
socialização traumática, enfim, torna-se o centro da análise, até hoje sem remédio.
Uma “atualidade alarmante”, segundo o depoimento de João Antonio, que durante a
ditadura procurou retomar as veias por onde escorria o sangue de sua própria prosa e o
debate contemporâneo se alargava: “De Afonso Henriques de Lima Barreto está tudo
aí, vivo, pulando, nas ruas, se mexendo, incrivelmente sem solução, cinquenta e quatro
anos depois de sua morte”. (...) “Sua obra até hoje é uma porrada, seca e rente, na

5 BARRETO, “O único assassinato de Cazuza” in:__. Contos completos. (Organização e Introdução Lilia
M. Schwarcz). São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 533-34, grifo nosso.
6 MARTINS, José de Souza. Expropriação e violência. 2ªed. São Paulo: Hucitec, 1982; OLIVEIRA,

Francisco de. Brasil: uma biografia não autorizada. São Paulo: Boitempo, 2018; cf. também com o
ensaio de Fábio PITTA, nesta edição de Sinal de Menos. Na literatura latino-americana, Horacio
Quiroga tratou desse tema abordando o grupo de trabalhadores mensú, submetidos à semiescravidão
nas madeireiras na região da tríplice fronteira, dentre outros lavradores prestes à proletarização, como
apontei num artigo anterior: DUARTE, Cláudio R. “Ex-homens na fronteira literária latino-
americana”. Sinal de menos, nº 13, 2019.

193
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

nossa apatia, malemolência, calhordice, omissão, indiferença, farisaísmo, relapsia e


macaqueação dos modelos estrangeiros.”7 Os temas eram mordentes, não só pioneiros
e fundamentais, aparecendo em profusão numa lista criada pelo escritor paulista:

“a necessidade de se levantar uma verdadeira História da Escravidão


Negra no Brasil; os entalados estados de sítio brasileiros; a falta de
grandeza, de solenidade e de misticismo (tão da nossa paisagem
brasileira) da nossa arquitetura urbana; os nossos gurus e sabichões, a
quem dava o nome de joões das regras; os nossos grandes impostores e
picaretas que em sua obra chegaram a Secretários de Estado e até
Ministros; o absurdo da nossa cultura a francesa, a nossa chinoiserie que
se basta com um fraseado importado e golpes de estilo; a nossa
exploração cínica e demagógica dos mais fracos, que lá vivem naquilo
que ele chamou de ‘refúgio dos infelizes’, o eterno subúrbio carioca; a
nossa gula, o nosso amor desbragado e a gana pelo dinheiro, e só pelo
dinheiro, que ele nos pilhou em A Nova Califórnia; os quixotes da terra
como Policarpo Quaresma, que terminaram fuzilados ou mofando nas
cadeias; a nossa furiosa especulação imobiliária, apressada e
atamancada, destruindo oceanos, verdes, morros, tudo; o nosso pó de
vaidade que se basta com títulos, fardões e medalhadas; os pobres e
ingênuos artistas populares, usados, manipulados e que acabam
chupando o dedo e sozinhos, como o poeta Leonardo Flores e o
modinheiro Ricardo Coração dos Outros; os eternos sonhos
mirabolantes dos nossos faraônicos e corruptos homens públicos, como
o Ministro Financeiro da Bruzundanga, o Doutor Felixmino Ben
Karpitoso, que até do comércio da feitiçaria se valeu para mais depressa
encher os bolsos…”8

Crônicas da violência

“Aos cinquenta e três anos, não tinha mais um parente próximo junto de si.
Vivia, por assim dizer, só, tendo somente a seu lado um casal de pretos velhos, aos
quais ele sustentava e dava, ainda por cima, algum dinheiro mensalmente” 9 – assim
vinha sendo caracterizada, no conto anteriormente citado, a vida do protagonista
Cazuza, que resolve “retirar-se da liça”10 – “desesperançado”, “mas não desesperado”,
refugiando-se numa casa num “subúrbio afastado”, qual o “Náutilus” de Júlio Verne,
deixando para trás a vida de “funcionalismo”, “burocracismo” e “literatura” que tentara

7 ANTÔNIO, João. Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1977, p. 13-4.
8 Idem, ibidem, p. 15.
9 BARRETO, “O único assassinato do Cazuza”, op. cit., p. 533.
10 Idem, ibidem, p. 532.

194
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

por anos sem receber nenhum reconhecimento numa sociedade regulada pelo favor e o
mandonismo. Nesse “refúgio de infelizes” que é o subúrbio para Lima – uma terceira
espécie de subtração como veremos –, o personagem comenta que se “livrou” dessas
práticas do “interior”. Como aqui todo significante mesmo metafórico tende a ter um
peso literal, Cazuza foge à violência desse campo geral confessando que também ele
matara quando criança. Suspense... “o meu pé descalço apanhou um pinto e eu o
esmaguei” no quintal da antiga casa (...) “Foi esse o único assassinato que cometi.”11
Por identificação mimética obscura e talvez algo inconsciente, que deita raízes
profundas em toda a obra de Lima, é ao frágil animal esmagado que o narrador insinua
a identidade geral de homens, coisas e animais, numa relação simbiótica que se
mostra inicialmente entre Cazuza e a velha casa, o médico com quem conversa e os
velhos pretos abandonados nos confins da cidade. A oralidade do “causo” brasileiro
como forma desse conto aqui também não é sem menos, sinalizando essa estrutura
relacional que combina a forma da prosa individualista mais moderna (que estoura no
romance burguês) e as ilusões também elas individualistas do universo dos arranjos
pessoais e da viração, que vêm do escravismo colonial. 12 Por isso mesmo sem solução,
diferentemente do molde romântico, que veio de Macedo e Alencar, algo diferente de
Almeida, cuja estrutura mais funda já abrigava um universo sombrio de rixas,
vinganças e compensações imaginárias, que fundiam e distinguiam dominantes e
dominados, e que se manifestava como luta generalizada, no limite dando sinal de uma
“guerra civil do trabalho” intestina entre a polícia e os despossuídos, mas também
entre homens livres pobres e escravos.13 Por aqui, se vê a clareza de Lima Barreto ao
trazer tais relações de favor, submissão e luta, até entre os próprios despossuídos, ao
primeiro plano. E por isso também deve bastar: o conto termina aí nessa ironia trivial,
sem graça – o verdadeiro enredo está no segundo plano dessas relações de identidade
entre homens, animais e coisas mais ou menos cristalizados kafkianamente em suas
funções –, sem esboçar mais qualquer tensão, nem clímax ou desfecho surpreendente.
Por aqui já se vê como a prosa barretiana tem muito do ar de uma crônica da violência,

11 Idem, ibidem, p. 536.


12 SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. (Forma literária e processo social nos inícios do
romance brasileiro). São Paulo: Ed. 34/Duas Cidades, 2000, p. 58-64.
13 OTSUKA, Edu Teruki. Era no Tempo do Rei. Atualidade das Memórias de um Sargento de Milícias.

Cotia: Ateliê, 2016, p. 89, e todo o Cap. 3.

195
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

que suspende o sentido com uma portada, preferindo desmascarar um real que em si
parece ter algo de incrível e inaceitável, violentamente fantástico – pois como dito no
conto: quem tem “fortuna” no país se “alicerça no crime, no assassinato”! –, deixando a
indagação pelo que sobra fazer nesta condição de vida mutilada, ou qual miragem de
autonomia ainda resta num vínculo de favor e dominação direta combinado à forma-
mercadoria, nesse estado de fazenda geral:

“Vêm as relações, os pedidos e você se alista. A estreiteza do meio impõe


isso, esse obséquio a um camarada, favor que parece insignificante. As
coisas vão bem; mas, num belo dia, esse camarada, por isso ou por
aquilo, rompe com o seu antigo chefe. Você, por lealdade, o segue; e eis
você arriscado a levar uma estocada em uma das virilhas ou a ser
assassinado a pauladas como um cão danado”.14

Aqui entra novamente a identificação metafórica do homem ao animal morto. Um tipo


de identificação que é mais forte do que aparenta e não sai do horizonte15, mas cuja tela
de fundo é o escravismo – “(...) firmemente como se fizesse a coisa mais natural do
mundo: –Meta, seu Mello, esse negro no tronco, mas antes assentem cinquenta
chibatadas, das boas”16 –, reunindo muitas vezes assim “a tinta crua do real” com um

14 Como assinala Bosi, “nos romances de Lima Barreto há, sem dúvida, muito de crônica: ambientes,
cenas quotidianas, tipos de café, de jornal, da vida burocrática, às vezes mencionados ou mal
esboçados, naquela linguagem fluente e desambiciosa que se sói atribuir ao gênero. O tributo que o
romancista pagou ao jornalista (aliás, ao bom jornalista) foi considerável: mas a prosa de ficção em
língua portuguesa, em maré de academicismo, só veio a lucrar com essa descida de tom, que permitiu
à realidade entrar sem máscara no texto literário.” (BOSI, Alfredo. História concisa da literatura
brasileira. São Paulo: Cultrix, 1990, p. 360). Assim, compreenderemos melhor esse juízo crítico de
Antonio Candido que captou metade do que parece estar em jogo nesta prosa: “Lima Barreto é um
autor vivo e penetrante, uma inteligência voltada com lucidez para o desmascaramento da sociedade e
a análise das próprias emoções, por meio de uma linguagem cheia de calor. Mas é um narrador menos
bem realizado, sacudido entre altos e baixos, frequentemente incapaz de transformar o sentimento e a
ideia em algo propriamente criativo. A análise dos escritos pessoais contribui para esclarecer isto,
mostrando inclusive de que maneira o interesse dos seus romances pode estar em material às vezes
pouco elaborado ficcionalmente, mas cabível enquanto testemunho, reflexão, impressão de cunho
individual ou intuito social — como se o fato e a elaboração não fossem de todo distintos para quem a
literatura era uma espécie de paixão e dever; e até uma forma de existência pela qual sacrificou outras”
(CANDIDO, Antonio. “Os olhos, a barca e o espelho” in:__. Educação pela noite e outros ensaios. São
Paulo: Ática, 1989, p. 38-39).
15 Do modo mais plangente num conto menor de um trabalhador português, Manel Capineiro, cuja vida

“se faz no capinzal” junto a seus dois bois amados – “ele e os bois vivem em verdadeira comunhão”, até
que ambos são atropelados por um trem: “-Ai! mô gado! Antes fora eu!...” (BARRETO, “Manel
Capineiro” in: __. Contos completos, op. cit., p. 479).
16 BARRETO, “No tronco” in: __. Contos completos, op. cit., p. 596.

196
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

“debrum de absurdo”.17 O que traz à mente títulos como Histórias e sonhos, sua única
coletânea de contos publicada em vida. Um nome significativo se se pensar a dialética
entre os dois termos, pois como Lima reflete parafraseando Dostoiévski, “a realidade é
mais fantástica do que tudo o que a nossa inteligência pode fantasiar.”18

Ora, esse processo brutal contrastava com o das potências industriais europeias
em expansão, i.e., com países de história nacional muito mais homogênea e
cristalizada, que nos serviam como espelho e miragem. Assim, uma reação a esse
descompasso nascia à época, segundo Sevcenko: o mito compensatório da
superioridade do “país novo” como um “gigante adormecido” que se associava a uma
ideologia liberal modernizadora, às vezes mais cosmopolita, às vezes mais nacionalista.
Ou seja, duas reações para a mesma questão – a da formação. A “atitude reformista e
salvacionista” dos intelectuais engajados como Lima e Euclides da Cunha constituiria,
segundo o historiador, uma espécie de terceira via pautada por um tipo de
“nacionalismo intelectual” interessado em conhecer o próprio Brasil, a identidade de
seu povo, suas riquezas e potencialidades, aplicar as técnicas modernas à produção, à
ciência e à imprensa, visando desenvolver uma república burguesa moderna. Sem
dúvida, o impulso pode ser o mesmo, mas se tratava de um programa de reformas que
a própria plutocracia da Primeira República tudo faria para deslocar e enterrar:
construir um Estado moderno e uma nação moderna baseada no trabalho assalariado e
na livre empresa, numa democracia pluriétnica e solidária, na escolarização e na saúde
de massas, no utilitarismo do conhecimento e na eficiência produtiva etc. 19 Resta saber
como na estrutura formal dessa prosa manifesta-se o desmanche de tais ilusões
necessárias – “ou o recolhimento interior e a negação da própria lógica da luta” – como
bem viu o historiador, de modo pioneiro.20

17 Como é dito num fragmento de conto inacabado: BARRETO, “Os pedaços” in: __. Contos completos,
op. cit., p. 592.
18 Citado por SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão. (Tensões sociais e criação cultural na

Primeira República). São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 161.


19 SEVCENKO, ibidem, p. 84-5; 214-25.
20 Idem, ibidem, p. 219.

197
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Congresso Pan-Planetário: a “fraternidade” de todos – menos dos “gatos”

Para Sevcenko, o nosso escritor participaria dessa “missão” de afirmação


nacional, típica dos estratos médios. Todavia, para o observador atento, as
contradições eram flagrantes: Lima Barreto viu constituir-se um regime republicano
que era uma espécie de “oligarquia absoluta”21 (como adiantara Machado de Assis
visando a elite escravista formada durante a Monarquia), um Estado policialesco acima
de um povo oprimido que não é propriamente uma “nação” mas uma sociedade
“liberal” de meros “indivíduos” com fortes valores iliberais, vivendo sob relações
sociais ainda fortemente patriarcais, clientelistas e de dependência social grupal, como
viemos apontando na análise de um conto paradigmático; uma ideologia nacionalista
esgrimida por uma classe dirigente racista com ódio e vergonha do próprio povo, como
no Policarpo Quaresma ou Clara dos Anjos; um mercado “livre” feito de subordinação
direta, informalidade, viração e exclusão, especialmente da mulher pobre, negra e
suburbana, como aparece em vários contos22; uma democracia esvaziada fundada na
lógica discricionária, de distribuição de cargos e privilégios; em suma, uma esfera
pública medusada pela lógica privatista do grande capital e de uma certa burocracia
corrompida por tais vínculos.

Histórias e sonhos foi publicado após a grande guerra, em 1920. Não será um
nome formidavelmente ambíguo e revelador? Em “Congresso Pan-Planetário”, acha-se
um conto alegórico sobre o imperialismo estadunidense em forma de conferência de
paz. Júpiter (Estados Unidos) é o dominador no Congresso, propondo, ao fim, a
“fraternidade de todos os animais do Universo: homens e gatos, burros e jupiterianos,
marcianos e raposos.” Mas Júpiter tem a fama de odiar, discriminar e matar “gatos”
(negros) a “pauladas, a fogo, a fouce”, de restabelecer a escravatura quando assim
puder (Texas/México em 1837), impondo seu comércio e sua “atividade sem limites”23

21 É o que declara em alemão uma personagem de uma crônica publicada poucos dias antes da Abolição
da escravidão, provavelmente para despistar uma possível censura: “Es dürfte leicht zu erweisen sein,
dass Brasilien weniger eine konstitutionelle Monarchie als eine absolute Oligarchie ist.“ (MACHADO
DE ASSIS, J. M. “Bons dias!, 11 de maio de 1888” in: __. Obra completa. Rio de Janeiro: José Aguilar,
1959, Vol. III, p. 519).
22 Conferir esses que estão entre seus melhores contos: “A cartomante”, “Clara dos Anjos”, “A mulher do

Anacleto”, “O filho da Gabriela”, “Cló”, “Babá” (in:__. Contos completos, op. cit.).
23 A descrição do trabalho em abstrato é aqui digna de nota: “Demais, Júpiter estava em tal estado de

adiantamento que precisava mostrar-se ao sistema todo. Produzia por ano 200 000$000 de toneladas

198
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

goela abaixo dos outros planetas/países (“e isto com alguma violência, que me eximo
de contar. De passagem, digo-lhes que ele ocupou um pedaço de Mercúrio.”).24

Para além dos grandes planetas/Estados-nação, o que sobra assim? A resposta


alegórica é negativa: “os gatos de todos os planetas, contudo, vieram a gozar dos
benefícios das instituições jupiterianas, isto é, foram expulsos da comunhão dos
patrícios.”25 E o sorriso enregelado de Sírius fecha o conto de maneira mortal: “Sob os
bons auspícios de Júpiter, foi assim que se fez a fraternidade animal em todo o sistema
planetário. Sírius nunca mais cessou de sorrir.”26 Algo d’isso foi o que miramos no
conto de Cazuza, esse outro “gato”/animal esmagado e (auto)excluído: a subtração de
tais mitos fundacionais de sagração da Natureza, da História e do Governante da
Nação27, que terminam por fundir história e sonho, realidade e mentira ao erigir
ilusões compensatórias para uma divisão social radical. Podemos então passar para
questões mais específicas de forma.

Traço grosso, traço poético, traço aporético

Isso que dá, assim, em personagens tão peculiares quanto esquisitas, tão reais
quanto estranhas e mais estranhas quanto mais sofridas e destinadas à vaidade, à
ilusão de liberdade, ao isolamento e à autonegação. Os casos memoráveis são muitos,
dentre eles: o famoso major Policarpo Quaresma (cf. adiante), ou aquele Gabriel
impossível do conto “Dentes negros, cabelos azuis”, cujo modo biface é uma costura de
“sensibilidade” e “tentação delirante”, um “acúmulo de desastres” 28, no qual se formula
“a lógica da hostilidade” que cerca os não-brancos nesta sociedade racista, pessoas

de aperfeiçoadas farpas de bambus (específico contra as dores de dentes); e os seus filósofos e


escritores, graças às modernas máquinas elétricas de escrever, abarrotavam os armazéns das estradas
de ferro com bilhões de toneladas de papel impresso. Houve um que, narrando todas as suas conversas
e atos do ano, dia por dia, hora por hora, minuto por minuto, segundo por segundo, escreveu uma obra
de 68.922 volumes, com 20.677.711 páginas, das quais 3.000.000 alvas e limpas — as melhores! —
significavam as horas de seu sono sem sonhos.” (Idem, “Congresso Pan-Planetário” in:__. Contos
completos, op. cit., p. 162).
24 Idem, ibidem, p. 164.
25 Idem, ibidem, p. 165, grifo meu.
26 Idem, ibidem, p. 165.
27 CHAUÍ, Marilena. “Brasil: mito fundador e sociedade autoritária” in:__. Manifestações ideológicas do

autoritarismo brasileiro. São Paulo/Belo Horizonte: Ed. Fund. Perseu Abramo/Autêntica, 2013.
28 BARRETO, A. H. de Lima. “Dentes negros e cabelos azuis” in:__. Contos completos, op. cit., p. 322.

199
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

inferiorizadas que se desdobram no Real numa outra figura monstruosa ou animal


(“símio”29) pressentida, para quem restam os “planos de fugas para lugares
longínquos” imaginários30, mas também a percepção crítica e completamente lúcida de
quem recusa tanto o “crime” como o “trabalho” e o “combate” açulado pelos imbecis da
direita ou pela “mó da sabedoria mandarinata que ameaça triturar-me” e lhe reserva
idêntica “derrota [que] é fatal”31, que vem dos espeques da esquerda, e o põem afinal
numa vida de “acrobata” da “prudência e da humildade”, no regime louco da “carícia
do ilimitado, do vago e do imenso”32; seja ainda um tipo feminino mais comum como
Clara dos Anjos, reveladora social incomum da dominação patriarcal, de um “estado de
inferioridade permanente, sem poder aspirar à coisa mais simples.” 33 O “traço grosso”
que realça “não raro, até a caricatura, os flagrantes da vida real”, pode ter, inclusive,
como diz Sérgio Buarque, “na prosa mais prosaica e chã, um papel comparável ao de
certas imagens e metáforas da poesia, nisto que, destruindo a rigidez do veículo verbal,
consegue guardar intacto o poder expressivo e comunicativo.”34 Por isso nos parece
simplesmente contraditório dizer que em Lima sobressai uma “incontinência” do dado
biográfico, como veículo de uma frustração ou vingança pessoal. Nesse caso ele se
restringiria então “quase sem exceção” às “convenções da novela realista”, mas
supostamente represando a “enfatuação irônica”, limitando aí o “traço negativo” que
condenaria “sem apelo todo o mundo suburbano”35. Obviamente o escritor é simpático
às classes populares, aos espoliados e deserdados da cultura, mas, por outro lado, um
dos traços mais dolorosos de sua criação não seria esse largo uso do “índice bovárico”
em todas as suas personagens, medindo “o afastamento entre o indivíduo real e o
imaginário, entre o que é e o que ele acredita ser?”36 Mediado pela busca de uma
linguagem literária particular, esta se alarga e sobressai frente aos modelos
conservadores e empolados de sua época (simbolistas, Bilac, Afrânio Peixoto, Coelho

29 Idem, ibidem. p. 326.


30 Idem, ibidem, p. 323.
31 Idem, ibidem, p. 327.
32 Idem, ibidem, p. 327.
33 Idem, “Clara dos Anjos” in:__. Contos completos, op. cit., p. 255.
34 HOLANDA, Sérgio Buarque de. “Em torno de Lima Barreto” in:__. Cobra de vidro. São Paulo:

Perspectiva, 1978, p. 142-3.


35 Idem, ibidem, p. 142 e 138-9, respectivamente.
36 Idem, Diário íntimo, op. cit., p. 93-4; cf. SEVCENKO, op. cit., p. 177-8.

200
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Neto37) quanto mais é desbastada de paramentos e passagens supérfluas - sem perder a


potência verbal, como vimos agora mesmo nessa breve menção de Gabriel e Clara dos
Anjos –, numa economia de estilo que procura a objetividade, a concisão e a crítica
social, sem ilusões de saída fácil de situações criadas, aliás impressionantemente
múltiplas. Sem remédio, nos melhores contos curtos elas terminam por isso mesmo
com o corte seco, como uma porta na cara.

Ponto de vista do marginal, ponto de vista do louco, ponto de vista da


morte

Vejamos uma outra portada dessa espécie, que não por acaso leva à morte. “De
manhã”, lemos em “A nova Califórnia” depois da profanação de túmulos e do
extermínio recíproco dos habitantes de Tubiacanga em sua procura fetichista por
ossos, “o cemitério tinha mais mortos do que aqueles que recebera em trinta anos de
existência. Uma única pessoa lá não estivera, não matara nem profanara sepulturas:
fora o bêbedo Belmiro.”38 É este olhar de banda, olhar marginal, olhar de um bêbedo
estropiado qualquer que sobra para contar essa história39, mais ou menos indiferente
“sob o dossel eterno das estrelas”, que parece informar, em vários desses escritos, a
versão barretiana do ponto de vista da morte como “estrutura recorrente da cultura
brasileira.”40 A diferença específica a ser introduzida, aqui, é que o abandono, a ruína e

37 Para a crítica a Coelho Neto e aos simbolistas “nefelibatas”, ver do autor: “Literatura e política”(em A
Laterna 18/01/1918) e “A crítica de ontem” (Revista Contemporânea, 10/05/1919) in: BARRETO,
Afonso H. de Lima. Impressões de leitura e outros textos críticos (Org. e Introd. Beatriz Resende). São
Paulo: Companhia das Letras, 2017; ver: RESENDE, Beatriz. “Lima Barreto: a opção pela marginália”
in: SCHWARZ, R. (org.). Os pobres na literatura brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 73-78.
38 BARRETO, A. H. de Lima. “A nova Califórnia” in:__. Contos completos, op. cit., p. 70.
39 Um final que obviamente remete ao divórcio entre sonho e realidade do aventureiro nos “saloons” e às

“ghost-towns” deixadas após o rápido esgotamento da febre do ouro na Califórnia (FOHLEN, Claude.
O faroeste. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, cap. II).
40 PASTA JR., José Antônio. “O ponto de vista da morte. Uma estrutura recorrente da cultura brasileira”.

Revista da Cinemateca Brasileira, nº 1, 2012. Disponível em: http://cinemateca.org.br/wp-


content/uploads/2016/08/Revista_Cinemateca_Brasileira_1.pdf. (Acesso em: 10/05/2020). Em
certo sentido, esse “dossel eterno de estrelas” é indício do mesmo ponto de vista “indiferente” de do
narrador machadiano de Quincas Borba, tal como revelado no seu último capítulo: um narrador
onisciente de terceira pessoa, supostamente objetivo e situado em Sírius (tal como já o vimos em
“Congresso Pan-Planetário”), que tira o disfarce quando passa à intrusão típica de um narrador de
primeira pessoa, e que apresenta, em suas sugestões maldosas e agressões gratuitas, principalmente
contidas na focalização cáustica de Rubião, suas verdadeiras marcas de classe; um narrador tão

201
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

a morte não são de fato indiferentes, pois constituem a perspectiva de quem foi para a
margem41 e para o buraco, reconhece suas raízes familiares tiradas do eito e das
senzalas neste “estado de fazenda” generalizado, e se converte francamente na
perspectiva imanente do alienado (suposto) entre os alienados, do “rebotalho”
internado e administrado pelo Estado policial, do “diabo” excluído da comunidade e de
um virtual “exterminado”42, que às vezes parece habitar “o cemitério dos vivos.”43

Nova Califórnia, Nova Potosí, velhos campos de extermínio

É por isso que nesse conto fundamental de Lima há quem planta a semente da
morte na cidade, o forasteiro Raimundo Famel, com seu plano impossível da alquimia
de ossos em ouro, há os que trabalham com a cura dos corpos (o farmacêutico Bastos)
ou do discurso retórico (o Capitão Pelino) e há também quem governa o município (o
coletor Carvalhais, o coronel Bentes, rico fazendeiro e presidente da câmara) e põe,
junto ao farmacêutico desta “nova Califórnia”, a ideia do saque de sepulturas em
prática após o sumiço de Famel. O ponto de vista de Famel, segundo o narrador
onisciente, é similar ao de um governante racista que comanda uma fazenda de
escravos, feita de crianças comparáveis ao gado bem tratado antes do abate:44

volúvel, cruel e falaz quanto Brás Cubas, Bento Santiago ou o conselheiro Ayres. Algo disso sobressai
sem dúvida no narrador onisciente de “A nova Califórnia”.
41 Num outro conto interessante – “O moleque” (in: __. Contos completos, op. cit., p. 150-1), menino

negro que sofre a injúria racista e quer a descontar com o uso de uma máscara de “diabo” carnavalesco
- temos a demarcação desse lugar negativo historicamente resistente: “o não lugar do demônio social
que blasfema sob o olhar atarantado dos grã-finos” (Antonio Arnoni Prado, “Prefácio” de RESENDE,
Beatriz. Lima Barreto e o Rio de Janeiro em fragmentos. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2016).
42 Para utilizar um termo de Quincas Borba (MACHADO DE ASSIS, J. M. “Quincas Borba”. Obra

completa, op. cit., vol. I, cap. XVIII, p. 569).


43 “Não me incomodo com o Hospício, mas o que me aborrece é essa intromissão da polícia em minha

vida. De mim para mim, tenho certeza que não sou louco; mas devido ao álcool, misturado com toda
espécie de apreensões que as dificuldades de minha vida material há seis anos me assoberbam, de
quando em quando dou sinais de loucura: deliro” (“Diário do hospício”, 04/01/1920). (BARRETO, A.
H. de Lima. Diário do hospício e O cemitério dos vivos. Organização e notas: Augusto Massi e Murilo
Marcondes de Moura. São Paulo: Companhia das Letras, 2017). Para uma análise interessante ver
HIDALGO, Luciana. “Lima Barreto e a literatura da urgência: a escrita do extremo no domínio da
loucura”. Tese de Doutorado em Letras. Rio de Janeiro: UERJ, 2007.
44 Num outro conto essa analogia também é feita: “Esses Feitais eram célebres pelo sadio tratamento de

gado de engorda que davam aos seus escravos e também pela sua teimosia escravagista” (BARRETO,
A. H. de Lima. “O caçador doméstico” in: __. Contos completos, op. cit., p. 312, grifo nosso).

202
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

“Na verdade era de ver-se, sob a doçura suave da tarde, a bondade de


Messias com que ele afagava aquelas crianças pretas, tão lisas de pele e
tão triste de modos, mergulhadas no seu cativeiro moral, e também as
brancas, de pele baça, gretada e áspera, vivendo amparadas na
necessária caquexia dos trópicos.
Por vezes, vinha-lhe vontade de pensar qual a razão de ter Bernardin de
Saint-Pierre gasto toda a sua ternura com Paulo e Virgínia e esquecer-se
dos escravos que os cercavam...” 45

O que Flamel deseja não tem a ver com a paixão romântica e a república idílica da obra
de Saint-Pierre (Paul et Virginie, 1787), mas é mais que os mortos do cemitério, o
direito autoral da obra macabra (“a prioridade da minha invenção”), a propriedade
exclusiva de um saber imaginário delirante, que leva ao final a cidade à autodestruição.
Pois a pequena cidade aqui se une diante do pensamento fetichista: “Se fosse possível
fazer, se daqueles míseros despojos fúnebres se pudesse fazer alguns contos de réis,
como não seria bom para todos eles!”. A unidade nacional romântica ironicamente
construída é então esta de uma luta fratricida pelos ossos. E o método barretiano de
narrar é o traço grosso anteriormente apontado, que infla e ironiza, subtraindo toda
esperança:

“Às necessidades de cada um, aqueles ossos que eram ouro viriam
atender, satisfazer e felicitá-los; e aqueles dois ou três milhares de
pessoas, homens, crianças, mulheres, moços, e velhos, como se fossem
uma só pessoa, correram à casa do farmacêutico.
A desinteligência não tardou a surgir; os mortos eram poucos e não
bastavam para satisfazer a fome dos vivos. Houve facadas, tiros,
cachações. Pelino esfaqueou o turco por causa de um fêmur e mesmo
entre as famílias questões surgiram. Unicamente, o carteiro e o filho não
brigaram. Andaram juntos e de acordo e houve uma vez que o pequeno,
uma esperta criança de onze anos, até aconselhou ao pai: ‘Papai vamos
aonde está mamãe; ela era tão gorda…’.”46

O destino de todos nesse conto é essa figuração alegórica quase profética da


extrema violência deste longo século dos extremos, por certo divisada por Lima nas
experiências americanas da Califórnia e de Potosí (nomeada na última linha do texto):

45 Idem, “A nova Califórnia”, op. cit., p. 64.


46 Idem, ibidem, p. 70.

203
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

o forno do doutor Flamel, o trabalho de entrematar-se, a morte sem sepultura num


cemitério de vivos neocolonial. Um misto de garimpo e campo de extermínio – a
unidade nacional finalmente alcançada na autodestruição.

Duas subtrações, um resto

Aqui entra então o papel corrosivo do humor e da ironia na obra de Lima


Barreto. Ambos nos inclinam a rir e a abstrair o que há de aparente, nesse impulso que
sua escrita tem de aumentar para diminuir, sempre a caricaturar para corroer e
derrubar, repartindo o olhar entre a distorção e a naturalidade dos tipos sociais
construídos positivamente por este gesto subversivo em busca da essência do processo
social em seus vários níveis, temas e personagens.47

Sua prosa participa deste contexto espiritual menos por um engajamento


concreto – que sempre lhe foi recusado48 – do que por uma estratégia literária de
construção de um imaginário que, por subtração, trabalha precisamente sobre a esteira
dinâmica de suas contradições. Como dito, a primeira subtração evidente é a do
nacionalismo frente a esse Estado oligárquico, militarizado e antidemocrático que se
constrói às costas de uma nação fantasma, tal como se vê exemplarmente em Triste fim
de Policarpo Quaresma (1911/1915); a segunda subtração é a do cosmopolitismo
liberal e de fachada, reforçado na chamada “Belle Époque” dos trópicos, numa
sociedade submetida ao reino das abstrações sociais modernas, incluindo as do
mercado e da ciência positivista, dobrando-se ao ditado dos impérios do capitalismo
financeiro emergente, muitas vezes consumido como mero ornamento e máscara
fungível. A título de breve mapeamento para o leitor iniciante, é o que se vê na vida
falsa das elites no Policarpo Quaresma, Numa e Ninfa (1915) e Vida e morte de M. J.
Gonzaga de Sá (1919), bem como em contos do nosso bovarismo tropical como “O
homem que sabia javanês”, “Miss Edith e seu tio”, “Um e outro”, “Agaricus auditae” ou
“Lourenço, o Magnífico”. A obra se equilibra sobre esse fio e se decide então pelo que

47 Conferir o resumo da galeria de personagens e de temas fundamentais do autor comentado por


SEVCENKO, op. cit., p. 162-163.
48 “A capacidade mental dos negros é discutida a priori e a dos brancos, a posteriori.” (BARRETO,

Afonso H. de Lima. “Opiniões do Gomensoro” in:__. Contos completos, op. cit., p. 602.).

204
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

resta: não exatamente “salvar” o positivo no nacional, ou o que estaria no caminho


certo, mas o que resta como negação desta ordem social após esse duplo esforço de
negação determinada. Seu honesto combate por uma “literatura militante” buscava
conscientemente apenas “uma língua inteligível a todos” a fim de “difundir as nossas
grandes e altas emoções em face do mundo e do sofrimento dos homens, para soldar,
ligar a humanidade em uma maior, em que caiba todas.”49 Aí se compreende sua
desconfiança em relação ao modelo burguês de sujeito-objeto, que triunfa em toda
afirmação nacional ingênua, principalmente quando se tinha diante dos olhos os
resultados capitalistas do imperialismo em África, Ásia e América, o clima pré-fascista
na Europa e a política racial-supremacista nos Estados Unidos.

Pátria fantasma

Tirando o que vem enxertado do estrangeiro – buscando o “nacional por


subtração”– encontramos assim primeiramente o caso paradigmático de Policarpo
Quaresma, que em seu percurso quixotesco, de fervor nacionalista e desejos de
“reformas radicais”, topa com a ideia fixa abstrusa de criar “um sistema de cerimônias
e festas” e “de desenvolver o culto das tradições”, culminando na petição para decretar
“o tupi-guarani como língua oficial e nacional do povo brasileiro” 50. Língua que ele
mesmo “quase falava”.51 Tais são, ironicamente, os “impulsos imperiosos de agir, de
obrar, de concretizar suas ideias”.52 Aqui, as grandes esperanças se processam pelo
caminho primitivista, emparedando-se num mito fundacional de veia romântica,
totalmente passível de ser recuperado pela ideologia e o poder de classe.53 Essa
“invenção de tradições” sempre teve o seu aspecto teatral e ritual, algo que mesmo no

49 Idem, “Amplius!” in:__. Contos completos, op. cit., p. 58-9.


50 BARRETO, Afonso H. de Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Ática, 1993, p. 30, 34,
52; o exemplo cômico é lembrado por Roberto Schwarz em ensaio útil para se pensar nossa identidade
negativa. (SCHWARZ, Roberto. “Nacional por subtração” in:__. Que horas são?. Ensaios. São Paulo:
Companhia das Letras, 1987, p.33).
51 BARRETO, Triste fim de Policarpo Quaresma, op. cit., p. 30.
52 Idem, ibidem.
53 “Numa atmosfera ‘global’, de mitologia unificada e planetária, o combate por uma cultura ‘genuína’ faz

papel de velharia. Fica patente o seu caráter ilusório, além de provinciano e complementar de formas
arcaicas de opressão” (SCHWARZ, “Nacional por subtração”, op. cit., p. 34).

205
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

centro soou como “farsa”54, somente naturalizada ideologicamente pelo Estado ao


longo do curso histórico. Aqui, em pátria de escravocratas sem “nexo moral” suficiente
para criar sequer uma sociedade de livre mercado, ela abre um escândalo 55 – embora
não corte a necessidade da reflexão crítica sobre como transformar essa sociedade
nacional estruturalmente cindida no instante de seu ocaso.56 Logo Policarpo se dá
conta do vazio da aspiração, lidando com a árdua realidade do trabalho sem meios
técnicos adequados, embora sem ainda reduzir o inchaço ideológico que confunde o
reino das ideias com imagens e imagens com a prática; pelo caminho da obsessão,
ideias desmedidas suplantam a prática social, ao modo de compensações imaginárias –
aquilo que Khel encontrará como uma constante no chamado “bovarismo brasileiro”,
que teria seu elemento antibovarista difuso em certa cultura popular urbana (samba,
rap, mangue-beat, o valor da preguiça, a recusa da moral do trabalho, a veia da poesia
da malandragem etc.).57 É o que a inteligência de Quaresma começa a descobrir mais à
frente, após o descortinado de sua ação no campo –

“E que tinha ele feito de sua vida? Nada. (...) A pátria que quisera ter era
um mito; era um fantasma criado por ele no silêncio de seu gabinete.
Nem a física, nem a moral, nem a intelectual, nem a política que julgava
existir, havia.”58

– mas ao final tarde demais, quando vê o que acontece efetivamente com o significante
“Pátria” durante a Revolta da Armada e a grande repressão florianista: caos, arbítrio,

54 Cf. HOBSBAWM, Eric e RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1997. Para o processo brasileiro: CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas. (O imaginário
da República no Brasil). São Paulo: Companhia das Letras, 1990; CHAUÍ, op. cit.
55 Caio Prado Jr. aponta “a falta de nexo moral que define a vida brasileira em princípios do século

passado, a pobreza de seus vínculos sociais. Tomo aquela expressão ‘nexo moral’, no seu sentido amplo
de conjunto de forças de aglutinação, complexo de relações humanas que mantêm ligados e unidos os
indivíduos de uma sociedade e os fundem num todo coeso e compacto. A sociedade colonial se definirá
antes pela desagregração, pelas forças dispersivas; mas elas são em nosso caso as da inércia e esta
inércia, embora infecunda, explica suficientemente a relativa estabilidade da estrutura colonial: para
contrariá-la e manter a precária integridade do conjunto, bastarem os tênues laços materiais
primários, econômicos e sexuais, ainda não destacados de seu plano original e mais inferior que se
estabelecem como resultado imediato da aproximação de indivíduos, raças grupos díspares, e não vão
além deste contato elementar. É fundada nisto, e somente nisto, que a sociedade brasileira se manteve,
e a obra da colonização pôde progredir.” (PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo.
(Colônia). São Paulo: Brasiliense/Publifolha, 2000, p. 357).
56 ARANTES, Paulo E. “Nação e reflexão” in:__. Zero à esquerda. São Paulo: Conrad, 2004; SCHWARZ,

“Nacional por subtração”, op. cit.


57 KEHL, Maria Rita. Bovarismo brasileiro: ensaios. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 27; 11-98.
58 BARRETO, Triste fim de Policarpo Quaresma, op. cit., p. 175.

206
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

desordem, prisões e crimes impunes, enfim: o poder militar que o aprisiona e o executa
friamente. Primeira subtração consequente, sete véus de ilusão nacional fora, resta o...
estado de sítio.

Mundo pós-machadiano, mundo pré-kafkiano

Cruzando o fantasma autoritário do nacionalismo brasileiro de ponta a ponta, a


personagem excêntrica representará aqui por fim certa lucidez. “No século XX, o
objeto de riso não é a multidão conformista mas sim o excêntrico que ainda se aventura
a pensar autonomamente”.59 Nessa inversão de perspectiva – o nacionalismo contra a
“nação” (o substituto para a classe dos despossuídos, submetidos e explorados pelo
capital), a visão interna da ordem que implanta o caos –, a coisa começa a ficar
realmente séria. Daí então, nos melhores momentos, o escritor caminha de modo
quase kafkiano em direção à experiência social desse tempo aporético em que o
universo burocrático de poder impessoal e poder arbitrário se fundem. O pedaço do
mundo dominado por políticos, empresários, bacharéis ou diplomatas de aspecto
cordial e civilizado, todos golpistas, pseudo-intelectuais caprichosos, arrivistas,
especuladores e sugadores profissionais – o mundo que já era o de Machado de Assis
agora cercado por um mar aberto de pobreza e exclusão mais ou menos imobilizado em
seu isolamento e impregnado pela realidade de um espaço segregador – parece muito
antecipar as ditaduras e guerras do século por vir. Algo disso surge com vigor também
no final do Policarpo Quaresma:

“(...) ele estava ali naquela masmorra, engaiolado, trancafiado, isolado


dos seus semelhantes como uma fera, como um criminoso, sepultado na
treva, sofrendo umidade, misturado com os seus detritos, quase sem
comer… Como acabarei? Como acabarei? E a pergunta lhe vinha, no
meio da revoada de pensamentos que aquela angústia provocava pensar.
Não havia base para qualquer hipótese. Era de conduta tão irregular e
incerta o Governo que tudo ele podia esperar: a liberdade ou a morte,
mais esta que aquela.
O tempo estava de morte, de carnificina; todos tinham sede de matar,
para afirmar mais a vitória e senti-la bem na consciência coisa sua,
própria, e altamente honrosa.”60

59 HORKHEIMER, Max. Eclipse of Reason. London/New York: Continuum Books, 2004, p. 80.
60 BARRETO, Triste fim de Policarpo Quaresma, op. cit., p. 174.

207
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

E mais adiante a explicitação do poder excepcional em termos morais e


emocionais, como pede a forma realista do relato:

“Não havia mais piedade, não havia mais simpatia, nem respeito pela
vida humana; o que era necessário era dar o exemplo de um massacre à
turca, porém clandestino, para que jamais o poder constituído fosse
atacado ou mesmo discutido. Era a filosofia social da época, com forças
de religião, com os seus fanáticos, com os seus sacerdotes e pregadores, e
ela agia com a maldade de uma crença forte, sobre a qual fizéssemos
repousar a felicidade de muitos.”61

O demônio do espaço, o demônio da separação

O mortal predomínio do espaço sobre o tempo nestas obras, um tempo de vidas


fragmentadas e minadas por um “ácido desagregador” 62, com suas sucessões de
ambientações caóticas, rascunhadas e ignoradas pelo poder abstrato, nem bem
ordenadas logo desordenadas e evanescentes como uma feira oriental. Osman Lins foi
o primeiro a notar as implicações do tema coligado do “insulamento” e da
“incomunicabilidade” nos romances de Lima Barreto, que invade formalmente o foco
narrativo (tendente a certa dispersão), a ação (inoperância das personagens e
fracionamento da ação, mesmo nos motins e na revolta) e o entrecho (diluição da
continuidade e da tensão, acúmulo de dados sem adensamento, sem crise e conflito
dramático exponencial), sem que se possa falar ainda em romance psicológico ou
moderno, mas apenas no “demônio da separação”.63 O que fica por conceituar nisto
que foi observado argutamente por Lins é a determinação social da forma dessa
paralisia. Não estávamos longe da resposta quando assinalamos o ritmo de “crônica da
violência” e a “metáfora territorial” quase literalizada do estado de sítio ampliado em
fazenda escravista. O que se experimenta difusamente na série dos Contos argelinos –
uma administração violentamente pacífica do espaço à maneira do poder usurpado e
usurpador dos sultões do mundo árabe (numa visão orientalista do narrador sobre suas
teocracias?), a começar pela série em que “Abu-al-Dhudut gozava placidamente o trono

61 Idem, ibidem, p. 177.


62 LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976, p. 54.
63 “O princípio subjacente de que, na medida do possível, nada, nesse universo sutilmente premonitório,

deve unir-se, harmoniza em Lima Barreto as unidades mínimas do relato - que não decorrem das que
as antecedem e não provocam (ou provocam frouxamente) as que lhes sucedem. Aí reina, solerte, o
demônio da separação” (Idem, ibidem, p. 56-57).

208
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

do país de Al-Patak, que ele tinha usurpado da maneira mais inconcebível” 64 – tornou-
se uma maneira precisa de traçar um paralelo e dar o recado silencioso das
circunstâncias históricas moldadas pela “liberdade ocidental” do valor de troca,
manobrada por seus governos: “Outra coisa que notou foi que os subúrbios tinham
casas de pedra e cal. O presidente imaginava que neles só houvesse choupanas,
palhoças e barracões. Isso alegrou-o muito porque podia aumentar os impostos.”65
Aqui entram pela pena do escritor aquela arquitetura e urbanismo erguidos na capital
federal após a operação do “bota-abaixo” e a política da “Regeneração” durante a belle
époque, que visou, como se sabe, um modelo hierárquico e segregacionista de cidade,
dando a impressão de “terra estrangeira” nos trópicos cercada das “imundícies” dos
subúrbios e bairros populares. Invertendo o ângulo, Lima aponta como isso serve ao
isolamento e ao controle socioterritorial das populações tidas como bárbaras e
rebeldes, prestes a se tornarem casos de polícia, e como o mundo da lei, da alta política,
dos funcionários e da plutocracia é o lado avesso, aqui também, da “estupidez,
degradação e imundície” potemkianas aludidas por Benjamin em Kafka.66

Há algo que prenuncia aí, para além da crítica do “hermismo” e da campanha


civilista da época, o ritmo social sufocante da modernização autoritária brasileira, de
baixa estatura e visualização, mas sempre lá, pulsante, que nos parece estourar de novo
após o golpe parlamentar de 2016 e a resistível ascensão do bolsonarismo. À luz disso,
essas páginas aparentemente descosidas tornam-se páginas impressionantes:

“Dos principados vassalos, que constituíam o reino de Al-Patak, não foi


só Al-Bandeirah que não quis reconhecer Abu-al-Dhudut como sultão. O
khanato de Hbaya também, por intermédio do seu príncipe reinante,
sempre protestou contra a usurpação. Ao contrário do primeiro, esse
principado era trabalhado por grandes dissensões internas. Havia mais
de cinco ou seis pretendentes ao seu trono e não existia entre os seus
habitantes nenhuma harmonia de vistas. A população, com o seu gênio
vivaz, com a sua queda para a eloquência, com a sua ligeireza de espírito,
muito concorria para essas divisões e ela é de gênio muito oposto à de
Al-Bandeirah, cuja gente é tardia, taciturna e cheia de um ingênuo
orgulho de que são os primeiros de Al-Patak. Explorado habilmente,

64 BARRETO, “S. A. I. Jan-Ghothe”/“Contos argelinos” in:__. Contos completos, op. cit., p. 355.
65 Idem, “Medidas de Sua Excelência”/“Contos argelinos” in: __. Contos completos, op. cit., p. 391.
66 Para essas semelhanças extemporâneas que estamos sugerindo: BENJAMIN, Walter. “Franz Kafka. A

propósito do décimo aniversário de sua morte” in: __. Obras escolhidas, vol.1. São Paulo: Brasiliense,
1985, p. 139 e 141. Noutra chave, poderíamos ver em Lima Barreto um dos precursores das narrativas
sobre ditadores latino-americanos (Astúrias, Carpentier, Garcia Márquez, Roa Bastos).

209
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

pelos governantes, esse último sentimento da população daquela


província, foi-lhes sempre fácil obter dela uma quase unanimidade.
Faziam uma ponte, uma torre, um bueiro e logo mandavam proclamar
que era o primeiro de Al-Patak. O povo do khanato, que é ingênuo, como
um alemão, acreditava na coisa, ficava muito contente e escolhia para as
altas funções os membros de três ou quatro famílias, que o
exploravam.”67

Ocorre que a resistência ao golpe na província de Al-Bandeirah “não pôde ser


eficaz e foi quase nula sem resultados”68, como relata um conto anterior
(propositalmente fora da ordem progressista do relato moderno), que já prenunciava
que nada se cria de novo nesse reino espacializado da simultaneidade lendária: “o povo
dessa província [Al-Bandeirah, que certamente remete ao verde-amarelismo dos
nacionalistas] pôs-se como uma só pessoa ao lado dos oligarcas que o governavam com
muita habilidade e tal era esta que ninguém podia supor que o que eles defendiam
eram os interesses particulares de donos de bancos, de chefes de casas comerciais, de
proprietários de minas e fábricas, de ricos cultivadores de tâmaras”; e assim as famílias
que governam a província rebelde de Al-Bandeirah apenas levaram uma multidão à
“agitação, à enxovia e à morte” antes de poder “arranjar as coisas de modo mais
cômodo, tanto mais que o sultão continuava no seu propósito de intervenção.” 69 Um
governo de facções familiares à revelia de qualquer processo social na base – sob o
arranjo e a camuflagem ideológica de uma unidade local e nacional, aliás militarizada.
A unidade nacional será ali sempre esse arranjo de peças num tabuleiro. E aqui não
faltará nem a compra do apoio da Justiça, ou melhor, do juiz “Pen-ben-forte”
candidato à mais alta corte (“Conselho de Estado”), envolvendo negociatas, barganhas,
possível revelação de escândalos de corrupção da família, e uma indicação para o
Conselho/STF do reino: “não é preciso contar mais; basta dizer que o antigo juiz entrou
e foi reconhecido como membro do Conselho.”70 Aqui também tudo se passa como se

67 BARRETO, “A solidariedade de Al-Bandeirah”/“Contos argelinos” in:__. Contos completos, op. cit., p.


355.
68 Idem, ibidem, p. 368.
69 Idem, “A firmeza de Al-Bandeirah”/“Contos argelinos” in:__. Contos completos, op. cit., p. 364, grifos

nossos.
70 Idem, “O reconhecimento/”Contos argelinos”in:__. Contos completos, op. cit., p. 369-70.

210
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

estivéssemos num “teatro do mundo”, em que “o homem está desde o início no


palco”.71

A Bruzundanga como coleção de Fazendas Modelo

“E tem mais: a indisciplina reinava, imperava o mal.


Campeava as libertinagens. Elogiava-se a loucura. As
hierarquias eram revertidas, a higiene, o recato. Um
quadro nada modelar. Portanto já era tempo de impor
a ordem à comunidade vacum.”
(Chico Buarque, Fazenda Modelo, 1974).

Tal é o sistema cujo verdadeiro nome já conhecemos: estado de fazenda. Assim,


para quem vai à obra procurar qualquer naturalismo ou realismo obediente à superfície
do jogo social, em que a vida é ruim mas ainda vive, deve ser um choque encontrar
idealistas quebrarem a cara e serem simplesmente executados pelo poder apenas por
defenderem seu inocente ideal (Policarpo Quaresma), trabalhadores pobres não
evoluírem no emprego porque simplesmente não há emprego algum senão imaginar
estratégias de subir pelas escadarias fantásticas do serviço público – aqui a figura
animal é a de um homem pobre conhecedor das superfícies da terra (tornando-se um
suposto “professor de javanês”72), mas que é a cria direta do verdadeiro “parasita”, o
“Barão de Jacuecanga” –, uma quimera nada irreal para alguns em uma sociedade
embebida numa cultura de golpes e trapaças sistemáticos. É o que organiza um livro
inteiro de sátiras de Lima Barreto: a república da “Bruzundanga”, cujo leit motiv não é
só político ou moral, mas econômico: “é que a vida econômica da Bruzundanga é toda
artificial e falsa nas suas bases, vivendo o país de expedientes.” 73 Aqui, “tudo concorre
para compor um imenso mosaico, rude e turbulento, que despoja a belle époque de
seus atavios de opulência e frivolidade”.74 Mais uma vez o país aparece sob o ponto de
vista da morte, apoiando-se sobre a base material da divisão do trabalho e da
especulação monetária-fetichista, cujo grande feito, após a narração quase-invisível de

71
BENJAMIN, “Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte”, op. cit., p. 150.
72 BARRETO, “O homem que sabia javanês” in: __. Contos completos, op. cit., p. 72.
73 Idem, Os bruzundangas; incluindo Outras histórias dos bruzundangas. São Paulo: Ática, 1985, p. 43.
74 SEVCENKO, Literatura como Missão, op. cit., p. 162.

211
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Machado de Assis em Esaú e Jacob75, é ter se tornado algo claro nesse momento
histórico:

“No entanto, a terra vive na pobreza; os latifúndios abandonados e


indivisos; a população rural, que é a base de todas as nações, oprimida
por chefões políticos, inúteis, incapazes de dirigir a cousa mais fácil
desta vida.
Vive sugada, esfomeada, maltrapliha, macilenta, amarela, para que, na
sua capital, algumas centenas de parvos, com títulos altissonantes disso
ou daquilo, gozem vencimentos, subsídios, duplicados e triplicados,
afora rendimentos que vêm de outra origem, empregando um grande
palavreado de quem vai fazer milagres.”76

Um império de “Mandachuvas” que se sucedem na presidência aristocrática


dessa nação totalmente segregada no espaço77, e que numa versão alegórica mais
primitiva, aparecia dissecado como um “fausto governamental de opereta” depositado
sobre “um sarcófago de mármore, ouro e pedrarias, em cujo seio, porém, o cadáver mal
embalsamado do povo apodrecia e fermentava.”78

Tratar-se-á então, às vezes, de dizer às claras que se trata de um regime de


terror. Aqui, a forma explodida e sem sentimentalismo de um Brás Cubas ganha um
continuador. É o que surge na série por assim dizer “brasileira” dos Contos argelinos.
Assim, num outro “causo” que começa com o discurso-denúncia de um deputado no
parlamento de que um tal Pinheiro Machado “está habituado a governar alimárias e
pensa que o somos também” termina com o rival acusador, com quem se arranjará ao
final, observando da janela “como os populares levavam pancada dos capangas, da
polícia, a mais não poder.”79 Chegando até aqui, a fabulação irônica arrebenta o nível,
desvelando a brutalidade cínica do estado de fazenda, como num tal Senador Bastos
que “gostava muito dessas coisas de cavalos e sempre que podia fazia comparações e

75 Ver DUARTE, Cláudio R. “Nada em cima de invisível: Esaú e Jacob, de Machado de Assis. (As
aventuras do dinheiro na transição do Império à República)”. Tese de doutorado. São Paulo: DTLLC-
FFLCH/USP, 2018.
76 BARRETO, Os bruzundangas, op. cit., p. 45.
77 Idem, ibidem, Cap. XIII, “A sociedade”, p. 74-76.
78 Idem, “O falso dom Henrique V (Episódio da história da Bruzundanga)” in: __. Contos completos, op.

cit., p. 468.
79 Idem, “Uma anedota” in:__. Contos completos, op. cit., p. 393-4.

212
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

metáforas com os fatos que lhes dizem respeito” – o que então pode ser tomado, como
dizia Günter Anders, ao “pé-da-letra”:

“— Como devemos entender esses princípios republicanos?


Bastos tossiu, acendeu o cigarro de palha mais uma vez e explicou:
— Primeiro: devemos entendê-los como sendo eu chefe absoluto do país,
tal e qual o czar das Rússias; segundo: considerando que somos no Brasil
um único povo, um estado tem o direito de reter cereais de que não
precisa, para esfomear os outros; terceiro: para favorecer a liberdade,
temos a obrigação de decretar um estado de sítio permanente; quarto (e
este é o mais importante dos itens): as eleições ou a escolha dos
representantes da nação não devem ser feitas pelo povo, mas por uma
camarilha que vela como muezins na catedral gótica da República. Podia
dizer mais; creio, porém, que isto basta.”80

É o bastante para Bastos. Mas não para a ferocidade de um outro aristocrata


herdeiro de um “casarão grande”, com uma biblioteca inteira repleta de livros e
relíquias do tempo de seu velho pai tenente-coronel, “conselheiro Fernandes
Carregal”, e que simplesmente carrega os livros para o quintal e ateia fogo em tudo,
apenas porque teve de encarar as mudanças e frustrações do tempo histórico, as
impossibilidades de conduzir o filho nos áridos estudos de química, e que lhe pede
dinheiro para ir ao que então entrava na moda juvenil, o football.81 O mais espantoso
nesses tipos ferozes brasileiros é como do alto de sua condição social, pautada pelo ócio
de classe, eles pregam a ética do trabalho – aqui, na mais perfeita autodestruição como
pessoa humana.

Dois filhos tentando escapar do encanto pecu(ni)ário

“Como ainda não existe suserano sem vassalagem,


Juvenal também dirigiu a palavra às classes menos
favorecidas, as quais um dia haveriam de lucrar, em
proporção indireta, com o desenvolvimento integral e
racional da Fazenda Modelo. (…) E a situação em que
essas reses se encontravam era fruto de seus erros

80 Idem, “A chegada” in:__. Contos completos, op. cit., p. 374.


81 Idem, “A biblioteca” in:__. Contos completos, op. cit., p. 218-25. Algo parecido se dá noutra história
típica desse universo de rivalidade e vingança de um país de herança escravista (Idem, “O jornalista”
in: __. Contos completos, op. cit., p. 527-31).

213
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

atávicos acumulados através dos séculos:


imprevidência, ignorância, inoperância, inobservância,
inanição, aplausos. As classes menos qualificadas
deveriam pois aguardar nos descampados para evitar a
contaminação e a degeneração das demais raças.”

(Chico Buarque, Fazenda Modelo, 1974).

Há quase cem anos do falecimento do nosso autor, permanece o diagnóstico da


alienação desse Brasil em Bruzundanga – e com sua idêntica “missão” mítica: “criar a
vida e a fecundidade para os outros, pois nunca os que nela nasceram, os que nela
viveram, os que a amaram e sugaram-lhe o leite, tiveram sossego sobre o seu solo!”82
Escapar a essa história natural aparece como missão quase impossível – coisa de
excêntricos e alienados que acabam mal como o major Policarpo Quaresma, o Gabriel
“dentes negros e cabelos azuis”, ou os alquimistas saqueadores de túmulos da Nova
Califórnia, aprendizes fetichistas do charlatão Flamel. Aliás, nesta passagem, um texto
como “O feiticeiro e o deputado” tematiza um dos únicos sujeitos que foi capaz de se
isolar do rolo compressor do sistema, para viver “taciturno e sem relações quase”,
sobrevivendo do que colhe num pequeno sítio num município periférico afastado
qualquer; et pour cause os moradores o apelidam “feiticeiro”.83 Noutras palavras, algo
aparentemente impossível, pois trata-se de escapar ao que Adorno denominou o
“encanto”:
“Exatamente como antes, os homens, os sujeitos particulares, se
encontram sob um encanto. Esse encanto é a figura subjetiva do espírito
do mundo, uma figura que intensifica internamente o primado desse
espírito sobre o processo exterior da vida. Eles se transformam naquilo
contra o que eles não podem nada e que os nega. Eles não precisam mais
nem mesmo torná-lo palatável para si mesmos como a instância superior
que ele, em face deles, na hierarquia dos graus da universalidade,
efetivamente é. Por si mesmos, por assim dizer a priori, eles se
comportam de acordo com o inevitável”.84

Num dos contos de Lima Barreto mais complexos – “Cló” –, que é impossível
resumir sem perder as nuances e a excelência de sua escrita literária, tão mal lida e
interpretada ao cabo desses cem anos, o velho professor decadente Maximiliano, sua

82 Idem, Os bruzundangas, op. cit., p. 16.


83 Idem, “O feiticeiro e o deputado” in:__. Contos completos, op. cit., p. 218-25.
84 ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p. 285.

214
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

esposa, seu filho e sua filha Clódia descobrem, numa noite do carnaval carioca, esse
“encanto” material que coage mas também seduz as suas vítimas ao autossacrifício no
altar do valor de troca. Nessa atmosfera de “gozo e luxúria”, duplicada pela visão do
professor bêbado que já passou da conta das cervejas acumuladas na mesa,
Maximiliano encontra o amigo rico deputado, “bacharel vulgar e obscuro”, com “rosto
de ídolo peruano”.85 O velho doutor Maximiliano se imagina superior a ele e a todos.
Mas em seu “olhar calmo”, em sua memória derretida pela fixação em resultados do
jogo do bicho, “não havia mais espanto, nem reprovação, nem esperança” 86. É o olhar
do puro sujeito mercantil à procura de dinheiro e gozo. O velho doutor “não cansou de
observar, um por um, aqueles homens e aquelas mulheres, homens e mulheres cheios
de vícios e aleijões morais; e ficou um instante a pensar se a nossa vida total, geral,
seria possível sem os vícios que a estimulavam, embora a degradem também”. 87 Esse
olhar lascivo se estende à própria filha Clódia, “a Cló, em família”, que o narrador, em
estilo indireto livre, ou seja, fundido à consciência da personagem, descreve como
tendo “um temperamento e feitio de espírito” dionisíaco “de uma grande hetaira”.88
Fingindo a moral familiar e a autoridade do pai – traço de rigor para um velho lente e
professor de piano, que aliás, por causa disso, despreza as “bizarras e bárbaras
cantorias” da música negra no carnaval, tanto como a “maleabilidade e a ductilidade”89
não só do deputado, mas de todo o povo negro e pobre dos subúrbios – o fato é que
Maximiliano é quem, maleável e fino no trato, humilha-se e convida o deputado André
para visitar a filha e sua família naquela noite de carnaval. Dá-se então uma série de
inversões, tipicamente burguesas, de sujeito e objeto. Detalhe crucial: Clódia irá a um
baile de luxo na “casa dos Silvas”: “Cló vai de preta mina”.90 O deputado não recusa o
convite, sentindo o ar reverencial e a insistência da oferta do professor. Decerto
Maximiliano enxerga criticamente algo atrás do véu desse encanto: “refletiu, talvez
com profundeza, mas certo com muita amargura, sobre a má organização da nossa
sociedade”.91 Contudo, ele dá meia-volta, projetando-se e fazendo-se um duplo na

85 BARRETO, Afonso H. de Lima. “Cló” in:__. Contos completos, op. cit., p. 168.
86 Idem, ibidem, p. 167.
87 Idem, ibidem, p. 167.
88 Ibidem, p. 168.
89 Ibidem, p. 169.
90 Ibidem, p. 170.
91 Ibidem, p. 168, grifo nosso.

215
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

filha, tentando vendê-la como amante ao deputado casado: “Mas não foi adiante e
procurou decifrar o problema da sua multiplicação em Cló, tão maravilhosa e tão
rara.”92

Quanto à forma da narração, resta a ambivalência desse ponto de vista ao


mesmo tempo heterodiegético/onisciente, dito objetivo, e o ponto de vista “etílico”
imanente à consciência do bêbado prestes a cair na marginalização e na degradação
moral, perspectiva quase homodiegética (ou mesmo autodiegética), certamente imersa
na lógica de inversões carnavalescas, encharcada de patriarcalismo e de dissociações93
entre o que vale (a esfera dos homens de valor e poder) e o que nada vale (a esfera das
mulheres, da dependência ou dos pobres bárbaros lá fora, a não ser que renda algum
dinheiro ou relação de poder). A atmosfera do dia é descrita como sendo, aliás, de
“trocas e influências – trocas de ideias e sentimentos, de influências e paixões, de
gostos e inclinações”.94 Sua bela filha bovarista, contudo, frequenta a Rua do Ouvidor,
cultua hábitos e fantasias caros como roupas, joias e banhos de leite. O dinheiro
encanta e o doutor André aproveita a situação para “sorver toda a exalação acre da
moça”, que também parece tentar seduzi-lo, em vestes de “escrava desprezada”,
dançando e cantando a “Canção da Preta Mina”:

“Pimenta-de-cheiro, jiló, quibombô;


Eu vendo barato, mi compra ioiô!
Ao acabar, era com prazer especial, cheia de dengues nos olhos e na voz,
com um longo gozo íntimo que ela, sacudindo as ancas e pondo as mãos
dobradas pelas costas na cintura, curvava-se para o doutor André e dizia
vagamente:
Mi compra ioiô!
E repetia com mais volúpia, ainda uma vez:
Mi compra ioiô!”95

92 Ibidem, p. 168.
93 SCHOLZ, Roswitha. “O valor é o homem: teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os
sexos”. Trad: J.M. Macedo. Novos estudos CEBRAP, nº. 45. São Paulo, 1996; Cf. para uma boa síntese,
também, o texto de Jéssica L. Menegatti, nesta edição de Sinal de Menos.
94 BARRETO, “Cló” in:__. Contos completos, op. cit., p. 173.
95 Idem, ibidem, p. 176.

216
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

A moça encarna literalmente uma mercadoria. Ao leitor, o encanto dessa falsa


integração revela-se então como cisão estrutural implicada por tais relações sociais e
culturais mercantilizadas:

professor/homem venal;
moral familiar/prostituição moral e corporal;
homem superior decadente/deputado fraco e obscuro, mas rico;
música branca/música negra etc.
– bem como do próprio Eu:

sujeito crítico-reflexivo/objeto dúctil e à disposição do outro;

fantasia de branca luxuosa/preta mina desprezada;

pessoa livre/escrava de ioiô

Por uma nesga de luz nessa sala divisamos a História. Os versos da canção
funcionam como a memória de uma situação histórica degradante: a casa-grande que
invade a senzala para arrebatar sexualmente a escrava, aqui convertido num mero
jogo de sedução carnavalesca, que para o leitor desmente esse delírio bovarista a dois
ou em família.96

Por fim, algo dessa mesma contradição posta mas não resolvida mostra-se no
conto “O filho de Gabriela”.97 Trata-se do filho de uma empregada doméstica
(Gabriela), doente e menosprezado no início da infância e do texto (inclusive, sem um
nome até idade avançada), mas que no final é adotado pela rica casa de sua antiga
patroa (dona Laura), quando sua mãe falece. Gabriela era “atrevida”, insubmissa à
vontade da patroa, e assim demite-se para viver de casa em casa à procura de emprego.
O garoto é batizado Horácio, vai à escola, enfrenta a disciplina da casa, mas, se tem o
humor instável e algo espivetado da mãe, por certo respira o ar dos austeros modos
comerciais e jurídicos do velho conselheiro.

96 “Quanto mais a sociedade se inclina para a totalidade que se reproduz no encanto dos sujeitos, tanto
mais profunda se torna também a sua tendência para a dissociação. Essa tendência tanto ameaça a
vida da espécie, quanto desmente o encanto do todo, a falsa identidade entre sujeito e objeto”
(ADORNO, Dialética negativa, op. cit., p. 287).
97 BARRETO, Afonso H. de Lima. “O filho da Gabriela” in:__. Contos completos, op. cit., p. 98-108.

217
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

É aqui que Gabriela se desdobra como o Outro inconsciente de Horácio, que se


torna aí uma personagem complexa e dividida, formando-se como um espelho
fragmentado da mãe pobre e rebelde e desse pai postiço, rico e totalmente indiferente à
adoção. Ora, aqui entra o sentido da interpretação que buscamos construir ao longo
deste ensaio: essa divisão do sujeito não é meramente psicológica, mas guarda a
memória inconsciente da escravidão e do que viemos até aqui denominando “estado de
fazenda”. Durante uma festa de São João, o rapaz sente-se animado por dois impulsos
contraditórios, que tempos antes o ameaçavam tanto à “dissolução”, “indefinição” e
mesmo “aniquilamento” do Eu como o conduziam à “vontade de distinção e reforço da
individualidade”.98 No dia da festa, seu espírito sacoleja entre as figuras da noite, da
música e da dança, do mistério e da superstição (um “frêmito de augúrio e feitiçaria”).
Mas, nos dias que se seguem, a vontade de abandono e anulação é contraposta pelo
empuxo ao saber dos livros, um “desejo ardente lhe vinha de saturar-se de saber, de
absorver todo o conjunto das ciências e das artes”.99

O conto encontra seu desfecho voltando-se reflexivamente ao próprio título.


Numa ocasião fortuita, aliás banal, Horácio recusa servir ao padrinho, como se fosse
tido como empregado do Conselheiro, repetindo assim o gesto insubordinado e
afrontoso da mãe. A madrinha adivinha aí uma lista de necessidades e de privações que
recusara ver até ali: “o sofrimento de viver à parte, a transplantação violenta, a falta de
simpatia, o princípio de ruptura que existia em sua alma, e que o fazia passar aos
extremos das sensações e dos atos”.100 O final – descrito como um “archote fumegante
pelo rosto” de Horácio, ou um “delírio febril” após um surto na escola – apresenta o
choque de vetores em sua cabeça já antevisto.

Não se trata de uma “libertação” ou do encontro de uma identidade positiva,


mas antes do encontro de si na dilaceração de uma condição histórica negativa.
Condição social que redetermina a consciência pela emergência de uma subjetividade
inconsciente. Um fim memorável em que a personagem desintegra-se e se recompõe
pelo sonho de encontro com os seus outros historicamente alienados, costurado por

98 Idem, ibidem, p. 105.


99 Idem, ibidem, p. 106.
100 Idem, ibidem, p 107.

218
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

memórias e desejos de um tempo afrobrasileiro, um tempo cativo nesse território


sitiado (da microcélula de sua própria casa ao país inteiro dos bruzundangas, afinal), e
que só a emoção dessa autodescoberta permitiria ler sem trair:

“O rapaz, deitado, com os olhos semicerrados, parecia não ouvir; voltava-


se de um lado para outro; passava a mão pelo rosto, arquejava e debatia-
se. Um instante pareceu sossegar; ergueu-se sobre o travesseiro e chegou
a mão aos olhos, no gesto de quem quer avistar alguma coisa ao longe. A
estranheza do gesto assustou a madrinha.
— Horácio!... Horácio!...
— Estou dividido... Não sai sangue...
— Horácio, Horácio, meu filho!
— Faz sol... Que sol!... Queima... Árvores enormes... Elefantes...
— Horácio, que é isso? Olha; é tua madrinha!
— Homens negros... fogueiras... Um se estorce... Chi! Que coisa!... O meu
pedaço dança...
— Horácio! Genoveva, traga água de flor... Depressa, um médico... Vá
chamar, Genoveva!
— Já não é o mesmo... é outro... lugar, mudou... uma casinha branca...
carros de bois... nozes... figos... lenços...
— Acalma-te, meu filho!
— Ué! Chi! Os dois brigam…”101

(São Paulo, Janeiro/Maio de 2020).

101 Ibidem, p. 108.

219
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

BACURAU
Para além do nevoeiro... no meio da barbárie1

Frederico Rodrigues Bonifácio2


Maria Clara Salim Cerqueira3

Eu vou fazer uma canção pra ela


Uma canção singela, brasileira
Para lançar depois do carnaval
Eu vou fazer um iê-iê-iê romântico
Um anticomputador sentimental
Eu vou fazer uma canção de amor
Para gravar num disco voador

Minha paixão há de brilhar na noite
No céu de uma cidade do interior
(Caetano Veloso)

O momento de aguda crise em que se encontra o Brasil, associado ainda ao


flagrante avanço do conservadorismo e de práticas eminentemente fascistas, parece
nos colocar diante de um desafio tão amplo quanto de difícil transposição. A miríade de
frentes pelas quais avançam a dissolução de qualquer promessa emancipatória parece,
senão vedar, ao menos obscurecer significativamente a práxis e a resistência política,
pois ao mesmo tempo em que se amplia a devastação da Amazônia, aumentam o
genocídio da população negra e indígena, os casos de feminicídio, os casos de tortura
em nome da justiça com as próprias mãos...4 Paralelamente, desmontam-se as próprias
estruturas internas ao Estado que, ao menos formalmente, teriam por função coibir tal
barbárie; precariza-se e mesmo inviabiliza-se o desenvolvimento da pesquisa no país,
por meio de cortes de orçamento e ataques diretos às universidades públicas... O rol de
catástrofes políticas poderia se estender por páginas.

1
CONTÉM SPOILERS!
2 Doutorando em Geografia pela Universidade Federal de Minas Gerais.
3 Doutoranda em Geografia pela Universidade Federal de Minas Gerais.
4 Cf. “Jovem negro é torturado por seguranças de supermercado após tentativa de furto de chocolate”

(2019).

220
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Vários autores têm se empenhado na busca por um diagnóstico deste momento


histórico nada auspicioso. Seja compreendendo-o como uma era de expectativas
decrescentes – ou, melhor dizendo, um momento de redução do horizonte de
expectativas –, como é o caso de Paulo Arantes5, ou, partindo de uma visada
propriamente estética, situando-nos dentro de um nevoeiro, como na elaboração de
Guilherme Wisnik6. Distintos sob vários aspectos, esses diagnósticos convergem em
um ponto nodal que, parece-nos, é bem captado pela alegoria de nevoeiro. O momento
histórico que se apresenta diante de nós é tudo menos translúcido. Se alguns podem
compreender com maior ou menor clareza como chegamos até ele, dificilmente alguém
pode apontar com o mínimo de certeza para onde estamos indo, ou quais as saídas no
meio dessa tempestade.

Nesse momento de extrema opacidade em relação ao tempo presente, o filme


Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, parece ter vindo a calhar.
Com lançamento em 15 de maio de 2019 em Cannes e em 29 de agosto do mesmo ano
no Brasil, o filme se tornou tão logo sucesso de público e crítica por representar um
cenário que em muito parece se aproximar do contexto objetivamente distópico ao qual
somos constrangidos. A produção, vencedora do Prêmio do Júri em Cannes, eleito o
Melhor Filme no Festival de Munique, Melhor Filme e Melhor Direção no Festival de
Lima, além de indicado ao Palma de Ouro em Cannes, narra uma intensa distopia
política e social situada no fictício lugarejo de Bacurau, nos confins do sertão
pernambucano.

Após a morte de dona Carmelita aos 94 anos e a chegada de sua neta Teresa, o
lugarejo vê-se atormentado por uma série de fatos perturbadores: discos
voadores/drones sobrevoam o céu do povoado, um caminhão pipa responsável pelo
abastecimento do local é cravejado de balas, a localidade desaparece dos mapas on-
line, o sinal de telefonia celular é interrompido, uma série de assassinatos brutais
começa a ocorrer – logo saberíamos que pela ação de estrangeiros que parecem
praticar uma espécie de jogo de caça que tem por alvo a população local –, a energia
elétrica é cortada e o cerco parece se fechar cada vez mais. A música que introduz a

5 Cf. Arantes (2014).


6 Cf. Wisnik (2018).

221
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

primeira cena do longa, utilizada também aqui como epígrafe, nos indica os elementos
tratados na obra, os quais explicitaremos ao longo do texto: em meio à brasilidade não
muito bem definida e singela, temos as tecnologias e os estrangeirismos, através dos
quais ou apesar deles “a paixão há de brilhar na noite de uma cidade do interior”,
palavras cantadas por Gal Costa, que na música segue: “como um objeto não
identificado”7, o que parece reafirmar a sensação de nevoeiro.

Embora o longa tenha sido produzido ainda no primeiro semestre de 2018 e


idealizado há aproximadamente 10 anos, portanto antes da eleição de Jair Bolsonaro –
bem como de outras figuras como o governador do Rio de Janeiro Wilson Witzel e do
próprio Congresso atual – o filme transparece como uma alegoria política dos tempos
bolsonaristas. Talvez porque o ovo da serpente – para nos remetermos a outra obra do
cinema8 – já estivesse suficientemente amadurecido naquele momento. Uma
comunidade situada no Brasil profundo sob atroz ataque estrangeiro e, não apenas
ignorada, mas, vilipendiada pela figura máxima do poder político local – que se limita
a despejar livros velhos pelas ruas da cidade e a doar medicamentos vencidos – parece,
em larga medida, representar o próprio Brasil entregue politicamente ao fascismo e ao
autoritarismo, e sob ataque cada vez mais contundente de grandes corporações
transnacionais. O casal de motoqueiros brasileiros vindos do Rio de Janeiro – ou do
Sul, como eles se identificam aos de fora –, por sua vez, parece ser um retrato tanto
caricato quanto fiel às classes médias brasileiras alinhadas ideologicamente com o
fascismo e de personalidade marcadamente autoritária.9

7 VELOSO, Caetano. “Não identificado”. Intérprete: Gal Costa. In: Gal Costa. 1LP. Rio de Janeiro:
Universal Music International Ltda., 1969.
8 O OVO DA SERPENTE. Direção: Ingmar Bergman. Alemanha/EUA, 1977.
9 O termo “personalidade autoritária” aqui empregado remete-se às formulações de Theodor Adorno e

dos membros do Instituto de Pesquisa Social sobre o perfil do cidadão médio estadunidense na década
de 1950. De fronte de um conservadorismo que se acentuava nos Estados Unidos no período, Adorno
se viu na necessidade de compreender este fenômeno e contribuir para evitar que essa tendência ao
fascismo descambasse para uma tragédia tal e qual a que vivenciara na Alemanha. Sua extensa
investigação sobre os costumes, hábitos e crenças da população estadunidense nesse período resultou
no extenso A personalidade autoritária, cujos fundamentos são bem expostos por Max Horkheimer
no Prefácio da obra: “Este livro trata sobre a discriminação social. No entanto, seu proposto não é
acrescentar simplesmente alguns poucos descobrimentos empíricos, mas um já amplo corpo de
conhecimento. O tema central da obra é um conceito relativamente novo: o surgimento de uma espécie
‘antropológica’ que chamaremos o tipo de homem autoritário. Diferentemente do intolerante de velho
cunho, este parece combinar ideias e atitudes típicas de uma sociedade altamente industrializada com
crenças irracionais ou antirracionais. É ao mesmo tempo esclarecido e supersticioso, orgulhoso de seu

222
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

No entanto, grande parte do sucesso de Bacurau, sobretudo com o grande


público, podemos dizer não advir propriamente de fazer uma leitura acurada do
contemporâneo, mas precisamente o oposto: respirar diacronicamente com a cabeça
para fora do mergulho no tempo presente. Lembremo-nos do que Giorgio Agamben
definiu como contemporâneo: “Contemporâneo é aquele que mantém fixo olhar no seu
tempo, para perceber não as suas luzes, mas a escuridão. Todos os tempos são, para
quem os experimenta na sua contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo é,
exatamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever
mergulhando a pena nas trevas do presente”.10 O que Bacurau parece fazer é
precisamente o oposto. Embora parta de uma realidade identificada com o presente,
parece perceber – ou criar – as luzes, e não a escuridão. O sucesso massivo do longa se
comunica, antes de mais, com a capacidade de resistência do povo de Bacurau que
parece colocar uma luz no fim do túnel, encontrar um caminho para sair de dentro do
nevoeiro. O que para muitos é o grande mérito político do filme, para nós poderia ser
compreendido, nos termos de Adorno (1984), como uma espécie de reconciliação
extorquida assentada nas precárias formas do sujeito, da identidade e da história como
redenção invés de aporia; o que acaba uma vez mais por repôr a barbárie como forma e
condição da formação social brasileira.

As interpretações correntes a respeito do filme – que decerto já é um marco para


o cinema brasileiro – são diversas: há quem diga que a obra representa a vanguarda da
luta anti-imperialista11; a representação da distopia12; da criação e invenção de uma
comunidade compartilhada13; da formação de uma cultura nacional através do
cinema14; dentre outras leituras.

individualismo e constantemente temeroso de parecê-lo demais, zeloso de sua independência e


inclinado a submeter-se cegamente ao poder e à autoridade. A estrutura de caráter que compreende
essas tendências contraditórias já tem atraído a atenção de filósofos e pensadores políticos
contemporâneos” (HORKHEIMER, 1965, p.19, tradução nossa).
10 AGAMBEN, Giorgio. Nudez. Belo Horizonte: Autêntica, 2014, p.25.
11 FAVARIN, Adriano. “Bacurau: o Nordeste na vanguarda da luta anti-imperialista”, 2019.
12 MORISAWA, Mariana. “‘Bacurau’ e um Brasil distópico”, 2019.
13 FERREIRA, Pedro Henrique. “Ninguém solta a mão de ninguém”, 2019.
14 MUSSE, Ricardo. “Sobre Bacurau”. 2019.

223
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Breve nota sobre a intenção do artista

É importante ressaltar ao leitor que não temos aqui a pretensão de nos


arvorarmos na missão de críticos de cinema, nos atendo, por exemplo, a aspectos
imanentemente fílmicos ou estéticos. Também não se trata de uma análise da obra de
Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles (nos atendo, por exemplo, à incursão mais
explícita ao cinema de gênero), ou mesmo de compreender quais eram as intenções dos
artistas nesta ou naquela parte da narrativa, ou mesmo em seu conjunto. Se a intenção
fosse essa, melhor seria interpelar os próprios diretores acerca de sua obra. Esse modo
de proceder pode transparecer para alguns como uma espécie de desvio que nos
desresponsabilizaria de fazer jus à realidade, ficando comodamente autorizados à livre
compreensão da obra. No entanto, esse modo de proceder é mais uma escolha
metodológica que uma saída pela tangente. Primeiramente, porque não se trata aqui de
uma resenha crítica de Bacurau, mas de tomar a obra como momento de compreensão
do movimento do real. Em segundo lugar, porque o que aqui se busca, na linguagem
adorniana, aproxima-se mais de uma crítica imanente que propriamente de uma
decomposição dos elementos da obra, que recorreria a certo argumento de autoridade
para tentar afirmar que os autores pretendiam isso ou aquilo. Ter-se em vista, por
assim dizer, a “intenção do artista” acaba por obnubilar o teor de verdade da obra. Em
outros termos, o artista não é demiurgo de sua própria obra. Precisamente nesse
escopo, para Adorno a potência estética de uma obra vincula-se inextricavelmente à
capacidade que o artista tem de deixar a obra falar por si mesma. A abnegação de
transpor para o material a subjetividade tacanha que quer fazer da obra a própria
expressão do artista é o que possibilita à obra uma expressividade, uma eloquência que
lhe seja própria, e não apenas a mera comunicação. Em termos adornianos, “cortando
os laços com o sujeito, a linguagem fala em lugar de sujeito que, por si próprio, não é
mais capaz de falar”.15 O sacrifício do artista enquanto sujeito legislador demiúrgico
enceta a compreensão de que a forma não se resume à sua intenção legisladora. O teor
de verdade da obra se revela assim não pela sua decomposição analítica que muito
mais a fetichiza que de fato a compreende, mas pela ultrapassagem da não-verdade.

15 ADORNO, Theodor. “Parataxis: zur späten Lyrik Hölderlins”. In:__. Noten zur Literatur. Gesammelte
Schriften vol. 11, Frankfurt: Suhrkamp, 1978, p.450, tradução nossa.

224
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Por isso, para Adorno, a interpretação de uma obra de arte deve ater-se à crueza e
literalidade do texto – donde, aliás, advém sua eloquência. Apenas a granulosidade da
tessitura narrativa pode revelar seu teor de verdade.

Não obstante, uma vez reconhecida em sua objetividade e não mais presa à
intenção do artista, a obra que fala por si mesma comunica-se a seu público, e é,
portanto, recepcionada. E é preciso ter em conta que toda recepção que torna ou não
uma obra um cânone “se resolve como estrutura histórica, o que a converte em
cambiante, movediça e sujeita aos princípios reguladores da atividade cognitiva e do
sujeito ideológico, individual ou coletivo, que o postula”.16 Em outros termos, Bacurau,
tal como toda obra – fílmica ou não – pode ser compreendida não apenas pela intenção
do artista, mas também por sua recepção, e esta última não pode ser compreendida a
despeito do movimento da própria história. Como diria Silviano Santiago ao comentar
a crítica literária de Antonio Candido, “a primeira atitude de quem laça um animal
selvagem no campo aberto e o adestra no curral da fazenda é a de procurar e descobrir,
ou de inventar, um novo ambiente de vida que venha a lhe satisfazer as necessidades
vitais e lhe ser agradável aos sentidos, ambiente em que o animal chegue a se
locomover com antiga desenvoltura e graça, quase como se não tivesse sido retirado
pelo amansador do habitat originário”17. Um filme com a eloquência de Bacurau tem
demandado precisamente esse amansar que, dialeticamente, o coloca de maneira
apaziguada neste ou naquele campo. Campos que por vezes menos expressam a
intenção do artista que apascentam um tipo específico de recepção, canonizando a obra
segundo seus termos.

É, pois, sobre a recepção de Bacurau como uma alegoria política capaz de


revelar a força e a capacidade do povo brasileiro – representado por uma comunidade
de seu sertão – de resistir e re-existir, que nos ateremos aqui.

Redenção histórica e reconciliação pela identidade: Bacurau como sertão

Um dos pontos fortes de Bacurau é certamente a redenção histórica que ele


parece fornecer. Uma espécie de “escovar a história a contrapelo” do ponto de vista

16 POZUELO, José Maria. Teoria del canon y literatura española. Madrid: Ed. Catedra, 2000, p.236,
tradução nossa.
17 SANTIAGO, Silviano. Genealogia da ferocidade. Recife: Cepe, 2017, 35.

225
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

prático. Aquela “imobilização messiânica dos acontecimentos”, transfigurada em “uma


oportunidade revolucionária de lutar por um passado oprimido”18 a que se refere
Walter Benjamin em suas Teses Sobre o conceito de história. Essa redenção histórica,
no entanto, parece ser possível unicamente por uma reconciliação via identidade. O
lugar de destaque assumido pelo museu da cidade na narrativa é índice dessa
identificação. Os moradores de Bacurau não raro se remetem a ele e se reúnem em
torno dele; quando os motoqueiros vindos de fora passam pelo lugarejo, o único lugar
que lhes é recomendado a visita é justamente o museu, e a recusa destes – com certo
desdém – causa mal-estar. Mais do que isso, diante do genocídio já em curso na cidade,
é no museu que o povo de Bacurau encontra a forma de sua resistência, não apenas na
documentação e na memória acerca do cangaço, mas nas armas – que ainda funcionam
perfeitamente. É também na figura de Lunga – espécie de cangaceiro do século XXI –
que o povo de Bacurau aposta fichas, a ponto de ele e seu bando serem tirados do
isolamento – no qual permaneciam foragidos – na iminência do massacre.

Esse resgate da própria história como forma de resistência ao extermínio pôde


ser percebido por muitos como uma demonstração da força do povo brasileiro, e uma
forma de esperança em meio ao denso nevoeiro que parece vedar qualquer ação
política de maior radicalidade. No entanto, a aposta nessa suposta força essencial do
povo brasileiro, especificamente do povo sertanejo – e não nos parece ocasional que
Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles tenham escolhido o isolamento sertanejo
de Bacurau como cenário para sua distopia19 – está longe de ser novidade.
Curiosamente essa aposta é inaugurada justamente por um autor positivista ainda no
início do século XX: Euclides da Cunha em seu clássico Os sertões, de 1902. De
maneira distinta, é bem verdade, ela está presente também em João Guimarães Rosa e
em Glauber Rocha.

Em todas essas narrativas, a ação humana assume larga centralidade, retratando


o povo sertanejo como forte, repleto de paixões, marcado por “enervações

18 BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de História” In: __. Magia e técnica: arte e política: ensaios
sobre a literatura e o conceito de cultura. São Paulo: Brasiliense: 1985a, p.231.
19 Lembremo-nos que as principais obras de Kleber Mendonça Filho tiveram como cenário uma grande

cidade, mais precisamente Recife. É o caso dos clássicos Recife Frio, O som ao redor e Aquarius.

226
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

periclitantes”20, por uma força de luta e resistência descomunal; ao mesmo passo que
tal ação humana é sempre mediada pelo nível do fantástico: seja um morro que fala e
seus profetas neurastênicos, seja pela figura messiânica que guia os fiéis do sertão até o
mar, seja pelo psicotrópico que repõe a força e a coragem ante à barbárie...

O que se pode notar é que nas leituras acerca do sertão, que marcam a formação
social brasileira, o propriamente humano imiscui-se com o inumano, com o metafísico.
Em Guimarães Rosa, mesmo que conclua que Diabo não há, Riobaldo precisa de longa
travessia para pôr à prova tal ideia. Em Os sertões, mesmo com a visada menos aberta
ao fantástico – pela própria formação positivista do autor – Euclides da Cunha não
hesita em afirmar que Antônio Conselheiro “veio impelido por uma potência superior,
bater de encontro a uma civilização”21, e apenas nessa medida pôde ir “para a História
como poderia ter ido para o hospício.”22

O caráter polêmico, irresoluto e, em certo aspecto, desconhecido do sertão –


radicalmente concreto e radicalmente fantástico – permite acoplar ao caráter utópico
um caráter messiânico e redentor, o qual não apenas Antônio Conselheiro sintetiza
bem, mas a própria narrativa de Euclides da Cunha ajuda a consubstanciar. O sertão de
Euclides da Cunha é farto de adjetivações, de propriedades. A principal dessas
propriedades é, no entanto, não poder ser circunscrito em adjetivação alguma.
“Deixavam-no de permeio, inabordável, ignoto”23, afirma ele logo no início da
narrativa. O caráter ignoto do sertão não se apresenta em Euclides como um sistema
fechado, impenetrável, ao contrário, como um aberto, um a ser penetrado. O caráter
desconhecido não é encerrado em sua obscuridade, mas mergulhado no impulso
positivista e propriamente devotado ao pensamento esclarecido de dar ao mundo um
conceito para poder repousar sobre ele. A curiosa definição do autor de que o sertão
seria uma categoria geográfica que Hegel não citou parece atestar justamente isso. À
maneira hegeliana, a negatividade não é mais que um momento necessário para a
realização positiva do conceito. Daí que, mesmo sendo antes de tudo, ignoto, o sertão

20 CUNHA, Euclides da. Os sertões. São Paulo: Positivo, 2004, p.64.


21 Idem, ibid., p. 113, grifo nosso.
22 Ibidem, Ibid.
23 Ibidem, p.17.

227
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

se abre para ser conhecido, categorizado. Sua paisagem “sinistra e desolada,


subtraindo-se a uma travessia torturante”24, revela,

“no enterroado do chão, no desmantelo dos cerros quase desnudos, no


contorcido dos leitos secos dos ribeirões efêmeros, no constrito das
gargantas e no quase convulsivo de uma flora decídua embaralhada em
esgalhos — é de algum modo o martírio da terra, brutalmente golpeada
pelos elementos variáveis, distribuídos por todas as modalidades
climáticas. De um lado a extrema secura dos ares, no estio, facilitado
pela irradiação noturna a perda instantânea do calor absorvido pelas
rochas expostas às soalheiras, impõe-lhes a alternativa de alturas e
quedas termométricas repentinas: e daí um jogar de dilatações e
contrações que as disjunge, abrindo-as segundo os planos de menor
resistência. De outro, as chuvas que fecham, de improviso, os ciclos
adurentes das secas, precipitam estas reações demoradas.”25

Aproximando-se já de Canudos, Euclides retrata um terreno tão instável que se


assemelha a “pisar escombros de terremotos”.26 As descrições do tipo se multiplicam...
Uma terra colapsada, devastada, que só permitiria aos fortes a possibilidade da
sobrevivência. Quase de modo determinista, o sertanejo haveria de ser
necessariamente forte para suportar os martírios da terra, que, a “todo transe, fizera-se
uma seleção natural de valentes”.27

Se o caráter ignoto da terra não impossibilita, ao contrário, fornece potência à


sua meticulosa descrição que faz dela mundo outro, com O Povo do sertão não é
distinto. Não parece, para Euclides da Cunha, se tratar de povos em sua multiplicidade,
mas de um povo unívoco, característico, marcado por seu martírio. E se rico em suas
expressões culturais, em suas lutas, não porque diverso, mas por “moral de uma
civilização”, onde o “desequilíbrio é inevitável”28, trata-se de uma espécie de “economia
moral da vida” assentada em uma suposta diversidade. Os homens do sertão seriam
marcados por “inteligências marasmáticas, adormidas sob o explodir das paixões;
enervações periclitantes, em que pese à acuidade dos sentidos, e mal reparadas ou

24 Ibidem, p.18.
25 Ibidem, p.20
26 Ibidem, p.25.
27 Ibidem, p.340.
28 Ibidem, p.85.

228
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

refeitas pelo sangue empobrecido nas hematoses incompletas”. 29 Situação donde “a


seleção natural, em tal meio, opera-se à custa de compromissos graves com as funções
centrais do cérebro, numa progressão inversa prejudicialíssima entre o
desenvolvimento intelectual e o físico, firmando inexoravelmente a vitória das
expansões instintivas e visando o ideal de uma adaptação que tem, como
consequências únicas, a máxima energia orgânica, a mínima fortaleza moral”. 30 Povo
frágil, portanto? Ao oposto. Precisamente porque submetido ao martírio secular da
terra “o sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos
mestiços neurastênicos do litoral”.31 Povo que “alimenta, a todo o transe, esperanças de
uma resistência impossível”.32 Precisamente por isso, produtor de “messias insanos”33
tal como Antônio Conselheiro.

Esse conjunto de determinações físicas e humanas pareciam imputar à maneira


hegeliana uma missão histórica ao povo sertanejo. Mais uma vez a menção a Hegel
feita por Euclides da Cunha parece não ser gratuita nem coincidente. Para o filósofo
alemão,

“para se libertar desta perdição de si mesmo, e do seu universo, e do


infinito sofrimento que lhe é consequente - sofrimento de que o povo
israelita foi o suporte -, o espírito, fechado em si mesmo no extremo da
sua negatividade absoluta, apreende, numa perturbação que é em si e
para si, a positividade infinita da sua vida interior, o princípio da
unidade da natureza divina e humana, e na consciência de si e na
subjetividade aparece a reconciliação como verdade objetiva e liberdade.
O princípio nórdico dos povos germânicos é que tem a missão de tal
realizar.” 34
E, nessa medida, o povo germânico tinha para Hegel uma missão histórica, a de
instituir um Estado para si, pois,

“nele, por uma evolução orgânica, adquire a consciência de si a realidade


em ato do seu saber e da sua vontade substancial, como na religião
encontra o sentimento e a representação daquela verdade que é sua, sua
essência ideal, e na ciência obtém o conhecimento livremente concebido

29 Ibidem, p.64.
30 Ibidem, p.65.
31 Ibidem, p.88.
32 Ibidem, p.101.
33 Ibidem, p.106.
34 HEGEL, Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p.316.

229
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

dessa verdade como idêntica em suas três manifestações


complementares: o Estado, a natureza e o mundo ideal.”35

Para Euclides da Cunha, o povo sertanejo constituiria o “cerne da nossa


nacionalidade nascente, criando uma situação de equilíbrio entre o desvario das
pesquisas mineiras e as utopias românticas do apostolado”36, configurando-se como
uma espécie de “rudes patrícios retardatários”37 de nossa história. Nos termos da
filosofia da história, a história já estaria contida na verdade, e realizar-se-ia conforme
seu conceito. Daí que Antônio Conselheiro pôde ser compreendido como uma espécie
de “museu de tudo”, que compreendia melhor a vida por meio daquilo que não pode
ser compreendido – uma espécie de dispositivo no motor da história, a potência do
negativo. Um indivíduo capaz de operar com a “integração de caracteres diferenciais,
vagos e indefinidos, mal percebidos quando dispersos pela multidão – e não como
simples caso patológico, porque a sua figura de pequeno grande homem se explica
precisamente pela circunstância rara de sintetizar, de uma maneira empolgante e
sugestiva, todos os erros, todas as crendices e superstições, que são o lastro do nosso
temperamento”.38

Nesse aspecto, o sertão e seu povo, seriam já um em-si, que por meio de seu
próprio martírio poderiam realizar certa missão histórica – a realização de uma pátria
eminentemente brasileira. No entanto, a imagem de rara violência dialética, do sorriso
de uma criança com a boca explodida por granada no desenlace da batalha de Canudos,
revelaria o caráter contraditório dessa missão.

“Uma megera assustadora, bruxa rebarbativa e magra — a velha mais


hedionda talvez destes sertões — a única que alevantava a cabeça
espalhando sobre os espectadores, como faúlhas, olhares ameaçadores; e
nervosa e agitante, ágil apesar da idade, tendo sobre as espáduas de todo
despidas, emaranhados, os cabelos brancos e cheios de terra — rompia,
em andar sacudido, pelos grupos miserandos, atraindo a atenção geral.
Tinha nos braços finos uma menina, neta, bisneta, tataraneta talvez. E
essa criança horrorizava. A sua face esquerda fora arrancada, havia
tempos, por um estilhaço de granada; de sorte que os ossos dos
maxilares se destacavam alvíssimos, entre os bordos vermelhos da ferida
já cicatrizada. A face direita sorria. E era apavorante aquele riso

35 Ibidem, p.317.
36 CUNHA, Os sertões, op. cit., p.165.
37 Ibidem, p.272.
38 Ibidem, p.448.

230
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

incompleto e dolorosíssimo aformoseando uma face e extinguindo-se


repentinamente na outra, no vácuo de um gilvaz.”39
O em-si parece aprisionado em um ainda-não. E esse vir-a-ser parece
condenado a atravessar o labirinto do progresso e da modernização. Se “no meio desse
extravagar adoidado, rompendo dentre o messianismo religioso, o messianismo da
raça levando-o à insurreição contra a forma republicana”40, o sertão de Euclides é
promissor, está indo ao encontro do progresso, e é preciso que o progresso se instale
por lá. Se já é, em si mesmo, e por seu caráter sui generis, uma força de potência,
refúgio de uma força e uma esperança típicas, por outro, tais potências permaneceriam
como latências, pela espera de uma realização, seu amadurecimento, sua
modernização. A travessia pela terra desolada, em transe, martirizada, por um lado
parece negar o instituído, fornecer-se instituinte, por outro, parece demandar a
chegada do Estado, ou pela força chegar até ele. Se para conhecer o passado, como nos
diria Caio Prado Jr., não é necessário ir ao museu, mas ao interior, aos rincões, o futuro
parece aterrissar no passado; mas o que chega com ele não é o progresso, mas barbárie.
Imagem que o sorriso de boca explodida não poderia expor com maior veemência.
Canudos como trauma da república. O sertão ignoto, uma vez nomeado, vira ele
mesmo – e o que ele vira não é outra coisa senão uma fronteira: a da utopia do
progresso e da redenção de uma república anti-republicana. Desconhecido também é
adjetivo. Lugar nenhum, se dito, já é lugar, topos.

Conscientemente ou não, Bacurau recorre aos mesmos arquétipos do sertão já


apregoados à sua terra, ao seu homem e à sua luta, ao menos desde 1902. A
identificação quase imediata do espectador com os moradores de Bacurau repõe uma
vez mais a interpretação da existência de um verdadeiro Brasil, que não seria aquele
dos “mestiços neurastênicos do litoral” – aliás, que no filme são executados pelos
estrangeiros sem qualquer consideração ou poder de reação, e retratados como
traidores submissos –, mas aquele forte, de emoções periclitantes do sertão, do Brasil
profundo. A mesma tensão entre o em-si e o ainda-não, que Euclides pareceu captar, é
realçada em Bacurau. Se o povo do povoado é forte por si mesmo, capaz de resistir à
opressão dos governantes locais e dos homicidas estrangeiros, e dispõe de tecnologias

39 Ibidem, p. 438.
40 Ibidem, p.130.

231
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

de última geração, ao mesmo tempo é marcado pelas mesmas relações coronelistas que
se poderia verificar no século XIX, como bem expressa a figura do prefeito Tony Jr. (o
Jr. no nome, aliás, salienta bem que ele não deve ser filho de qualquer um) com sua
política populista e seus desmandos – como na cena que leva à força uma prostituta da
comunidade.

Essa redenção histórica calcada em certa identidade do sertanejo – que desde


Euclides costuma ser compreendida como a identidade verdadeira do próprio
brasileiro, em contraposição ao litoral colonialista – acaba, no entanto, transfigurando-
se em seu contrário. Notadamente, não por recorrer à história para resistir no presente
e, quiçá, transformar o futuro, mas pelo status que assume a própria história na
narrativa: uma espécie de monumento não elaborado. Expliquemo-nos.

Do milagre da dialética à dissolução do futuro: a experiência do tempo


histórico em Bacurau

O retorno ao passado, no sentido de uma redenção histórica, como nos já


mencionados termos de Walter Benjamin, não se realiza por um mero reencontro com
a história contada, ou mesmo vivida, um encontro com a mera realidade dada ou
herdada na forma de ruínas. Se essa história pode consubstanciar a superação de seus
pressupostos autoritários, é enquanto negação. Reconstituir um passado de modo a
desvelar o que é ocultado pela história “contada pelos vencedores” é “escovar a história
a contrapelo”. As sociedades que cultuam seus monumentos, sejam eles materiais ou
simbólicos, sem desvelar o que eles ocultam para além da mera representação estética,
condenam-se a carregar seus patrimônios como quem guia um cortejo fúnebre.

“A natureza dessa tristeza se tornará mais clara se nos perguntarmos


com quem o investigador historicista estabelece uma relação de empatia.
A resposta é inequívoca: com o vencedor. Ora, os que num momento
dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes. A
empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores.
Isso diz tudo para o materialista histórico. Todos os que até hoje
venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje
espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são
carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que
chamamos bens culturais. O materialista histórico os contempla com
distanciamento. Pois todos os bens culturais que ele vê têm uma origem

232
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

sobre a qual ele não pode refletir sem horror. Devem sua existência não
somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corvéia
anônima dos seus contemporâneos. Nunca houve um monumento da
cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim
como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo
de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o
materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a
história a contrapelo.”41
O patrimônio em sua forma museificada parece expressar essas ruínas como
monumentos da barbárie. O que no caso do cangaço assume posição sui generis, pois a
memória objetual preservada em seu museu – e representada em Bacurau – já parece
ser a história dos vencidos e não a dos vencedores. Particularidade que é própria à
formação social brasileira e que também pode ser lida em Euclides da Cunha,
Guimarães Rosa e Glauber Rocha. A compreensão de Grande Sertão: Veredas ou
mesmo de Deus e o diabo na terra do sol esbarram necessariamente na figura dos
grandes coronéis e proprietários de terras e nas utopias negativas que estes acabam –
involuntariamente – por mobilizar. “Ao contrário do estanceiro, o fazendeiro dos
sertões vive no litoral, longe dos dilatados domínios que nunca viu, às vezes. Herdaram
velho vício histórico. Como os opulentos sesmeiros da colônia, usufruem,
parasitariamente, as rendas das suas terras, sem divisas fixas. Os vaqueiros são-lhes
servos submissos”42, nos retratava Euclides da Cunha. O poder tirano dessas figuras
parasitárias serviu de espécie de gatilho para a formação de bandos de cangaço como se
vê tanto em Rosa quanto em Rocha. Na outra face da mesma moeda estariam os
modernizadores que gostariam de romper com o atraso seja dos parasitas seja dos
cangaceiros, mas para tanto carecem jogar o mesmo jogo da violência. Superar a
violência pela violência. Superar o atraso pelo atraso. Figuras representadas por Zé
Bebelo, em Grande Sertão, e por Antônio das Mortes, em Deus e o diabo, que
expressariam o que Paulo Arantes compreendeu por “milagres da dialética, usar
métodos bárbaros na luta contra a barbárie”.43 Configuração na qual todas as utopias
(e distopias) que envolvem o sertão – sejam elas modernizadoras ou não – passam
mais das vezes pela redenção pelo sangue.

41 BENJAMIN, “Sobre o conceito de História”, op. cit., p.225.


42 CUNHA, Os sertões, op. cit., p. 94.
43 ARANTES, Paulo. “Utopia e revolução” in: __. Zero à esquerda. São Paulo: Conrad, 2004, p.148.

233
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Esses “milagres da dialética” tão fartos e caros na formação social brasileira


acabam por fazer parecer que a redenção histórica pela barbárie é a identidade mesma
do brasileiro, e é a ela quem carecemos recorrer para sairmos do nevoeiro. Mas se a
barbárie é a identidade de si mesma, a história parece se resolver positivamente como
se bastasse restituir o passado para dissolver a aporia do presente. Adorno bem sabia
dessa armadilha ao se perguntar sobre o que significa elaborar o passado. A
preocupação adorniana situada historicamente após a queda de Hitler é explícita:
como não negar o horror do holocausto como se ele nunca tivesse existido sem fazer de
sua memória qualquer tipo de exaltação? Era preciso, pois, romper a situação na qual
as condições objetivas da barbárie persistem e “continuamos sem saber se o faz apenas
como fantasma daquilo que foi tão monstruoso a ponto de não sucumbir à própria
morte, ou se a disposição pelo indizível continua presente nos homens bem como nas
condições que os cercam.”44 Daí a conhecida afirmação adorniana de que “a exigência
que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação” 45, e, para ele a
elaboração do passado só seria possível quando lembrar a forca na casa do carrasco
não provocasse mais ressentimento. Em outros termos, quando a barbárie não fosse
nem objeto de monumento nem de constrangimento; e aos fatos históricos fossem
concedidos o lugar que lhes é de direto: o de fatos históricos, e não de redenção no
tempo presente. Ou seja, a história se distinguiria “do fetiche histórico pela sua
negatividade. Ao não revelar emancipação alguma na poesia do passado, do contrário a
própria história se tornaria um invólucro vazio, a história permanece negativa e torna-
se radical ao fornecer as bases para a crítica radical do presente.”46

A história transfigurada em identidade e essencializada enquanto forma e


conteúdo da resistência de um povo é precisamente a negação da possibilidade de
elaboração do passado; pois dissolve os antagonismos que toma como momento,
oferecendo uma espécie de reconciliação com a paz perpétua. E “aquilo que reluz como
se estivesse acima dos antagonismos equivale ao enredamento universal. O universal
cuida para que o particular submetido a ele não seja melhor do que ele mesmo. Esse é o

44ADORNO, Theodor. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p.29.
45Ibidem, p.118.
46 BONIFÁCIO, Frederico Rodrigues. Deus e o diabo na terra do sol: crise, conservadorismo e

necessidade do mal no Brasil contemporâneo. Dissertação de Mestrado em Geografia. Belo Horizonte:


UFMG, 2018, p.246.

234
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

cerne de toda identidade produzida até hoje”.47 Se como nos diria Adorno, “a
antecipação filosófica da reconciliação é um atentado contra a reconciliação real” 48, a
reconciliação extorquida do povo com sua própria história, a fim de minimamente
sobreviver ao presente, não apenas é frágil, como reafirma um passadismo, onde a
história é menos um vasto campo de elaboração que um reificado campo de situações
já experimentadas.

O fato de as armas que determinam a vitória do povo de Bacurau contra a


barbárie estrangeira estarem em um museu é emblemático. Essa reificação histórica
não é, todavia, um simples demérito a ser imputado aos diretores, mas, por assim
dizer, uma experiência do tempo histórico da dissolução do futuro. Em última
instância, essa nova semântica da experiência temporal acaba por aproximar-se
daquilo que Reinhart Koselleck49 pôde compreender por uma dissociação entre espaço
de experiência e horizonte de expectativa, e Paulo Arantes compreendeu bem como
uma redução do horizonte de expectativas, que cada vez mais parece fundir-se à
imediaticidade do real, ou mesmo deslocar-se em direção ao passado. Gabriel
Tupinambá50, na esteira de Koselleck e Arantes, coloca-nos esquematicamente o lugar
ocupado pela experiência histórica ocidental ao menos desde o século XIX. Neste
século marcado por revoluções, sobretudo na Europa, a experiência histórica pouco
parece importar. O que está em voga é o futuro mesmo, a ruptura com a penumbra dos
tempos passados, que pouco ou nada podem nos dizer, além do fato de terem de ser
urgentemente superados. Percepção lapidarmente expressa por Hegel:

“Em geral se aconselha a governantes, estadistas e povos a aprenderem a


partir das experiências da história. Mas o que a experiência e a história
ensinam é que os povos e governos até agora jamais aprenderam a partir
da história, muito menos agiram segundo as suas lições. Cada época tem
suas próprias condições e está em uma situação individual; as decisões
devem e podem ser tomadas apenas na própria época, de acordo com
ela.”51

47 ADORNO, Theodor. Dialética negativa. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p.259.


48 ADORNO, Theodor. Três estudos sobre Hegel. São Paulo: Ed. Unesp, 2013, p.43.
49 Cf. Koselleck (1999; 2006)
50 Cf. Tupinambá (2018).
51 HEGEL, Wilhelm Friedrich. A razão na história. São Paulo: Centauro, 2001, p.49.

235
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

O século XX, marcado pelas guerras mais que por qualquer revolução já tendeu
a conferir maior relevância à história e sua elaboração, como mesmo as formulações de
Benjamin e Adorno aqui resgatadas demonstram. O século XXI, ao menos no primeiro
quinto, parece substancialmente distinto dos dois anteriores. Se a revolução ou a
guerra apresentavam algum horizonte de conciliação, ainda que através de uma
barbárie temporária, o século atual parece fornecer um dissolver sem conciliação. Se
diagnósticos como os levados a cabo por Robert Kurz estiverem corretos – e o atual
estado de coisas parece atestar que sim – o século XXI seria não o século das
revoluções ou das guerras, mas dos colapsos: ambientais, dos regimes democráticos,
das promessas emancipatórias, e todos eles se comunicando ao colapso da forma-valor
como cerne da mediação social no mundo moderno. Se o que entrava em crise e/ou era
dissolvido pelas revoluções e guerras eram, por assim dizer, particularidades
constituintes do moderno, o que agora parece entrar em estado terminal é a própria
universalidade da forma social moderna calcada na valorização do valor. Esse dissolver
sem promessa de conciliação, sem promessa de futuro, marca a semântica do tempo
contemporâneo. Se o futuro parece inexistente, ou ao menos um eterno arrastar e
aprofundar das condições distópicas do presente, as utopias e promessas políticas
parecem todas voltadas para o passado.

A polarização política que marcou decisivamente as últimas eleições


presidenciais exemplifica de maneira lapidar essa dissolução do futuro. Se a aposta de
um lado estava voltada para o passado ditatorial, e calcada nos valores de deus, da
família e da propriedade privada, do outro, a aposta era não menos anacrônica: voltar a
um passado dourado e recente de vasto crescimento econômico e geração de emprego,
onde fosse possível “ser feliz de novo”. A maioria dos demais programas, por mais que
se intitulassem como Novo, ou ao menos dotados de alguma novidade, não
representavam mais que a tentativa de um retorno à já caduca cartilha neoliberal que
marcou os anos de 1990.

Se tal experiência do tempo histórico reverbera de modo tão decisivo na política


institucional é porque efetivamente é ela quem tem consubstanciado o horizonte de
expectativas do tempo presente. Essa é, sem dúvida, uma das razões pelas quais
Bacurau atraiu tanta atenção do público, que, como diria Siegfried Kracauer “não

236
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

possui varinha mágica, mas apenas desejos”.52 Objetivamente, o tempo presente é


obscuro e parece não permitir qualquer saída “para frente”. Não apenas o horizonte de
expectativas é reduzido, como a sensação de estarmos subsumidos em meio a um
nevoeiro – que não permite saber de onde exatamente vem o perigo e ainda menos
como escapar dele – é crescente. Bacurau fornece uma espécie de afago, pois
aparentemente consegue ir além do nevoeiro. Isolados, fora do mapa, sem água, sem
sinal de celular, sem luz, sem conhecer exatamente os inimigos – em suma, no meio de
um nevoeiro – o povo de Bacurau, por conseguir resgatar sua história e por agirem
propriamente como uma comunidade, conseguem ir além do nevoeiro – embora, como
veremos, esse ir além não leve também a lugar muito distinto. A força de Bacurau, em
larga medida, pode ser explicada pela vontade de vingança reprimida em cada
espectador ante ao acirramento do massacre cotidiano ao qual somos submetidos. A
reação do público – largamente divulgada – quando o primeiro dos moradores de
Bacurau consegue matar um dos estrangeiros explodindo sua cabeça com um
bacamarte – em uma cena digna dos filmes de bang bang italianos –, ilustra bem esse
sentimento não muito distinto daquele que Walter Benjamin captara ainda no início do
século XX:

“Representar à luz dos refletores e ao mesmo tempo atender às


exigências do microfone é uma prova extremamente rigorosa. Ser
aprovado nela significa para o ator conservar sua dignidade humana
diante do aparelho. O interesse desse desempenho é imenso. Porque é
diante de um aparelho que a esmagadora maioria dos citadinos precisa
alienar-se de sua humanidade, nos balcões e nas fábricas, durante o dia
de trabalho. À noite, as mesmas massas citaram os cinemas para
assistirem à vingança que o intérprete executa em nome delas, na
medida em que o ator não somente afirma diante do aparelho sua
humanidade (ou o que aparece como tal aos olhos dos espectadores),
como coloca esse aparelho a serviço do seu próprio triunfo.”53

O êxito da resistência do povo de Bacurau suborna o ego do espectador,


permitindo-lhe o gozo da vingança contra a opressão crescente, ao mesmo tempo em
que parece se tornar índice de possibilidade acerca de uma resistência real. O triunfo

52 KRACAUER, Siegfried. O ornamento da massa. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p.107.
53 BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”.In: __. Magia e técnica:
arte e política: ensaios sobre a literatura e o conceito de cultura. São Paulo: Brasiliense: 1985b, p.179.

237
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

de Bacurau sobre seus algozes no final do filme reverte-se em triunfo identitário de um


verdadeiro Brasil contra a ofensiva autoritária que se aprofunda no país. “É nossa
vingança contra um mundo onde não há mocinhos, muito poucos triunfos, e,
aparentemente, nenhum final”54, onde não parece existir “qualquer luz no final do
túnel ou que, se acaso existir, só pode ser um trem vindo na nossa direção”.55Bacurau
acaba por exercer uma função de catarse, o que é possível pelo fato de seus
personagens serem marcadamente humanos e contraditórios. Pacote, ou Acácio,
personagem de Bruno Negaum, ilustra bem isso. Ao mesmo tempo em que é alguém de
confiança em sua comunidade, uma espécie de liderança, é, fora dela, um criminoso de
alta periculosidade – e seus crimes, inclusive, são assistidos em praça pública como
forma de entretenimento. Domingas, personagem de Sônia Braga, é outro exemplo do
caráter demasiado humano dos personagens do filme. Ao mesmo tempo em que é uma
respeitada médica do povoado causa vários constrangimentos quando está
embriagada. Teresa, personagem de Bárbara Colen, também é retratada como uma
pessoa real, com seus desejos e afetos, e não como uma espécie de monólito, como
seria o caso se o luto pela morte de dona Carmelita perdurasse como central ao longo
do filme. Mesmo os estrangeiros exterminadores também são vivos e contraditórios,
como explicita o fato de um deles se indignar ao saber que executaram uma criança, e
pouco depois relatar já ter por vezes pensado em assassinar a esposa... Assim, embora
explore bem o senso de comunidade, o filme trabalha o caráter individual de cada
personagem, favorecendo a identificação do público com este ou aquele. O sucesso
principalmente dos personagens Lunga e Pacote sinalizam isso: “Onde o indivíduo
aparece, a tragédia é inevitável. Esta última enterra a existência burguesa
profundamente na metafísica e exerce, assim, uma forte atração sobre o público
mesmo em sua forma distorcida, ou, exatamente, em razão dessa forma”.56 A narrativa,
todavia, não se demora sobre a contradição e a negatividade que os personagens
pressupõem, mas recai sobre uma positividade tacanha, como que numa luta do bem
contra o mal que não faria feio frente às produções mais óbvias de Hollywood. O que

54 BONIFÁCIO, Frederico Rodrigues. Trabalho e fantasmagoria fetichista: ensaios sobre a objetivação


do espaço. Monografia de Graduação em Geografia, UFMG, 2015, p.88-9.
55 CANETTIERI, Thiago. “Para uma crítica dos afetos da crítica: angústia, desamparo e mal-estar”. Sinal

de Menos nº13, 2019, p.235.


56KRACAUER, O ornamento da massa, op. cit., p.112.

238
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

narrativas com esse desenvolvimento acaba por propiciar é a venda da “mera imagem
do exercício de fuga da totalidade social. Trata-se efetivamente de uma catarse, ou seja,
da anulação do poder subjetivo de resistência perante a opressão social”. 57 A catarse
conforma-se, por fim, com a sensação de cada espectador de ter compreendido a
complexidade da obra e sua profícua alegoria com a distopia real do Brasil
contemporâneo.

As narrativas distópicas, aliás, como bem salientam Silva e Correia (2018)


voltaram nos últimos anos a mobilizar o imaginário social e a indústria cultural. O
período do pós-guerra e da Guerra Fria foi profícua – principalmente na literatura – na
produção de narrativas do gênero, como 1984, Fahrenheit 451 e Revolução dos Bichos
(no caso brasileiro, em grande medida impulsionado pelos tempos sombrios da
ditadura, tivemos o excelente Não Verás País Nenhum, de Ignácio de Loyola Brandão).
Após o fim da Guerra Fria, a profusão de narrativas do gênero obviamente não
desapareceu, mas se tornou rarefeita, até retornar com grande ênfase nos últimos anos
em produções como Jogos Vorazes, Divergente, V de Vingança, Matrix e Mad Max,
além da continuação do clássico Blade Runner de 1982; em jogos como Resident Evil,
Half-life, Final Fantasy e Injustice; e séries como The Walking Dead, The 100 e Black
Mirror. “Esse tipo de entretenimento revela a antítese da utopia ou uma utopia
negativa, em grande parte destes filmes há um líder ou comunidade totalitarista contra
uma maioria oprimida pelo sistema político, realidade cada vez mais próxima da
sociedade atual, sendo basicamente uma luta para revoluções, comandada por
revolucionários.”58

A profusão de produções do tipo desde o final da década de 1990 parece


expressar dois movimentos contraditórios e concomitantes: a reafirmação da forma
sujeito e a percepção histórica da barbárie. Retomando os termos já citados de Giorgio
Agamben, “todos os tempos são, para quem os experimenta na sua
contemporaneidade, obscuros”, de modo que não seria exagerado dizer que a própria

57 FREITAS, Verlaine. “Matrix: a administração da catarse na cultura de massa a partir de Adorno.”


In: __. et al. (orgs.) Kátharsis. Reflexos de um conceito estético. Belo Horizonte: Com arte, 2002,
p.278.
58 SILVA, José Danilo e CORREIA, Marília Dantas. “Distopia e ideologia: A incorporação do pessimismo

face a destrutibilidade do (des)controle metabólico do capital.”In: Anais XIX ENG, João Pessoa, 2018.

239
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

realidade em ato é uma distopia. O que garante ao gênero um caráter distinto é


precisamente a centralidade de um indivíduo – ou conjunto de indivíduos – que
experimenta de maneira singular a obscuridade do real. A necessidade de
sobrevivência coloca esse indivíduo na condição de sujeito em uma espécie de odisseia
contra a objetividade destrutiva. Em termos adornianos, tal movimento nada mais
seria que a própria autoconservação, fruto do medo preservado no ego desde nossa
proto-história. A sensação, de nenhum modo injustificada, de que o mundo está em
ruínas, impõe ao mesmo tempo a projeção dessa sensação na forma de representação e
a busca desesperada por se agarrar em algo em meio ao mundo em dissolução. Esse
algo acaba por ser a única coisa que ilusoriamente ainda parece nos pertencer: a
capacidade de agir como sujeito dos próprios anseios. “O preservar-se vivo quando a
vida é dominada, determinada e danificada por uma abstração real que se sobrepõe e
ao mesmo passo veda a liberdade, apenas pode consistir em preservar a abstração que
o sujeito em sua astúcia sacrifical se identifica para sobreviver.”59

Bacurau fornece exatamente a preservação desse casulo sob a forma sujeito.


Não apenas porque é ação de sujeitos – e não das instituições, por exemplo – que
determina a vitória do povo de Bacurau, mas porque o próprio inimigo é personificado,
como se bastasse exterminar alguns deles, enterrar outros vivos, e expulsar o poder
instituído, agora ridicularizado, no lombo de uma mula. Daí a sensação de muitos de
que Bacurau fornece um sopro de esperança apontando que é possível resistir. A
própria ideia de resistência, contudo, apenas coaduna, e não sem razão, com a
experiência histórica do colapso. Os séculos marcados pelas revoluções e pelas guerras
pareciam pressupor algo mais que resistir, nomeadamente, mudar o mundo. No século
dos colapsos e das expectativas decrescentes, a resistência como forma de manter-se
vivo parece o único horizonte possível. Assim, involuntariamente, Bacurau acaba por
produzir outra alegoria: ao, pela força dos sujeitos contra outros sujeitos, apontar uma
saída, o filme vai além do nevoeiro para cair definitivamente dentro da barbárie.

59 BONIFÁCIO, Deus e o diabo na terra do sol: crise, conservadorismo e necessidade do mal no Brasil
contemporâneo, op. cit., p.240.

240
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Depois do nevoeiro... a barbárie

Em meio à situação política hodierna no Brasil, com o aprofundamento e


explicitação da violência tomada como política de Estado e arraigada na sociedade
civil, a comunidade sertaneja retratada em Bacurau, compreendida por muitos como
essência do Brasil, pode parecer bastante adequada e até acalentadora. A possibilidade
de se colocar enquanto sujeito não passivo da ordem posta representa o desejo contido
no âmago de quem vivencia a barbárie e se sente acossado por ela. A identificação
imediata com um possível sujeito histórico revolucionário aparece como lampejo de
esperança, em um momento que parecem estar todos contra todos e a emergência do
“ninguém solta a mão de ninguém” se impõe.60 Entretanto, as relações postas entre os
personagens de Bacurau podem representar muito mais a barbárie em curso que
apontar para a sua superação.

Anteriormente à estreia de Bacurau, em uma instalação artística denominada A


Feira (2014) que faz parte da coleção permanente do acervo do Museu Cais do Sertão
em Recife/PE, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles já apresentam elementos de
representação do sertão pernambucano. Com cenas fragmentadas de uma feira –
aparentemente de uma cidade do interior –, as imagens mostram a comercialização de
frutas e armas de fogo. A violência aparece como intrínseca aos feirantes e aos
compradores, homens e mulheres de idades variadas que escolhem seus alimentos e
suas armas com naturalidade nas primeiras cenas. Em seguida, são representadas
pessoas em quadrantes individuais, algumas armadas e outras não. Ao longo de alguns
minutos de tensão em que nada acontece, repentinamente inicia-se um tiroteio, e todos
os personagens envolvem-se nele, mesmo aqueles que não estavam armados. É
precisamente essa violência, tomada como condição do sertanejo, que é colocada em
Bacurau quando os moradores se reúnem para enfrentar os estrangeiros que os
caçavam.

Os moradores da comunidade de Bacurau sentem-se ameaçados, mas não é


possível identificar, pelo ponto de vista deles, quais as motivações das mortes que
ocorrem continuamente. Porém, acostumados a serem deliberadamente postos de lado

60 FERREIRA, Pedro Henrique. “Ninguém solta a mão de ninguém”, 2019.

241
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

pelas instâncias do Estado, representadas na figura do prefeito Tony Jr., e violentados


quando tentam resistir, como demonstram as fotografias de cangaceiros expostas no
museu; para não serem dizimados, precisam dizimar eles mesmos quem atenta contra
sua existência. O recurso à violência aparece como o grand finale do longa, e o mesmo
pode ser identificado nas mais recentes notícias sobre violência no Brasil 61, em que
cada qual luta por si com os recursos disponíveis, e a violência parece ser o único
restante.

A violência não aparece apenas como característica de uma comunidade


periférica na periferia do mundo, que se difere de uma parcela da sociedade que atingiu
um suposto grau maior de civilização e desenvolvimento. Os sertanejos condensam o
sentimento da dialética posto por Paulo Arantes62, que explicitam a experiência
brasileira entre o arcaico e o moderno, que não pode ser reduzida aos processos
positivos de superação e síntese. Essa dualidade entre polos, que parecem mais
combinados do que opostos, não deve ser colocada como uma relação de causa e efeito,
e sim de necessidade recíproca. Em Bacurau, os estrangeiros e os moradores do
povoado estão inseridos justamente nessa relação dialética, e ambos fadados à
violência como condição para sobreviver – em tempos onde, objetivamente, a máscara
da cordialidade revela-se obsoleta – ainda que uns a mobilizem para se divertir e
outros para continuar existindo.

A constituição da sociedade brasileira se põe ali como um problema a ser ainda


elaborado, o vir-a-ser que se espelha no centro do mundo. A incompletude do
desenvolvimento econômico e social ainda é um argumento colocado sobre o sertão.
Mesmo que completo em sua incompletude, ele ainda tem uma missão a cumprir, custe
o que custar. Na verdade, os moradores do povoado reagem com violência aos atos
violentos dos estrangeiros pois, se não fosse assim, seriam aniquilados. E isso
demonstra explicitamente a situação de grande parte dos povos do campo brasileiro.
“Na periferia do capitalismo a barbárie e a violência endêmica sempre foram parte do

61 Cf. “Garota de 13 anos atira em homem que entrou em fazenda em MT”, (2019)
62 ARANTES, Paulo. Sentimento da dialética. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

242
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

conceito de formação social”63, e, de fato, os índices de violência no Brasil – a periferia


do capitalismo periférico – são bastante altos.64

Com a dissolução da forma social fundada no trabalho, as formas clássicas de


opressão também mudam de forma. Parcelas cada vez maiores da população mundial
tornam-se descartáveis, e sua não inserção direta no universo das mercadorias, bem
como a brutalidade que daí deriva, não se comunicam mais a um exército de reserva,
mas ao fato de que objetiva e definitivamente essas pessoas se tornaram não
reproduzíveis em termos capitalistas, sendo relegadas ad eternum ao aterro sanitário
social. Resta apenas o extermínio como forma per excellence da política. Marildo
Menegat coloca que “massacrar e humilhar estes que não podem mais valorizar o valor
tornou-se um cimento social que, como aparência social necessária, precisa renovar
sua unidade a toda hora”, o que ocorre “porque as catástrofes se repetem com
assombrosa regularidade, ou porque os grupos submetidos a execração vão se
modificando e ampliando a cada momento.”65 Entendemos, então, que a
transformação desse cimento social aprofunda a condição do capitalismo como
barbárie, que em tal momento histórico vê-se em condições mesmo de abandonar
definitivamente qualquer promessa ou aparência de civilização. Vemos isso
representado em Bacurau, com o isolamento da comunidade que não pode mais ser
incluída – nem mesmo de maneira periférica – no tautológico processo de valorização
do valor, podendo, assim, desaparecer do mapa sem fazer falta. Não apenas porque os
estrangeiros queiram se aproveitar daquele povo pelo prazer da dominação, mas
porque a relação social na qual eles se encontram permite que um grupo determinado
possa caçar outro, sem grandes implicações morais, ou mesmo legais. O mesmo pode
ser dito a respeito das formas de resistência da comunidade: o acesso às armas que
representam o passado histórico e a organização por meio da invisibilidade é possível

63 MENEGAT, Marildo. Estudo sobre a dialética civilização x barbárie na tradição crítica brasileira.
Relatório final de atividades do pós-doutorado. São Paulo: FFLCH, USP. 2011, p. 39.
64 Como podemos ver nos dados levantados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT, 2018), a violência dos

conflitos no campo que se referem à terra, à água, conflitos trabalhistas e outros, que em uma década
aumentaram consideravelmente o número de pessoas envolvidas: de 628.099 em 2009 para 960.342
em 2018. A crescente violência também pode ser observada no espaço urbano, com as investidas na
“pacificação” das favelas do Rio de Janeiro através da implantação das Unidades de Polícia
Pacificadora (UPPs), que em uma década (de 2006 a 2016) foi possível perceber que “os números de
violência do Rio retornam a patamares anteriores à implantação das UPPs” (2016).
65 Ibidem, 2011. p. 30.

243
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

nesse arranjo social, e não deve ser confundida com a capacidade de resistência dos
determinados grupos.

Se a condição de barbárie não é uma contraposição em relação à civilização, é


possível perceber que há um aparente caos – ou nevoeiro – instaurado nas relações
sociais. E “no caos todos agem, mesmo sem saber por que agem”. Determinados grupos
sociais, caso permaneçam estáticos, estão fadados a desaparecer. Então, “a
fragmentação das forças sociais em meio ao horror acaba se coagulando entre duas
opções: ou se acelera a violência com mais violência, ou se defende a ordem do Estado
– que inclui a submissão à sua ordem soberana.”66

É pertinente apontar também a posição dos motoqueiros do sudeste, que vão a


Bacurau fazer um reconhecimento e levar informações para o grupo de estrangeiros.
Ao se colocar como seus semelhantes – e serem por isso ridicularizados –, o casal da
região Sul do Brasil expõe que a suposta camada dominante da sociedade brasileira
não é respeitada pela classe burguesa global. Como em Florestan Fernandes 67, vemos
um grupo social que representa uma parcela dominante no território brasileiro, mas
que nas relações globais nada é. Porém nem nos cenários mais macabros imaginados
pelo pensador brasileiro seria possível uma morte tão assombrosa e sem remorsos
destes representantes da classe dominante brasileira. Apesar de pouco significante
para a economia global, eles não seriam descartáveis. Seriam, inclusive, prestativos a
ponto de identificar outros brasileiros a serem aniquilados. Mas sua missão é
realmente muito breve, e nenhuma informação sobre a morte destes é colocada no
desenrolar do longa.

Vemos que a violência não se põe apenas em relação aos pobres e condenados
sertanejos de Pernambuco. “O horror, que antes confortava a classe média branca que
somente seria usado contra os de baixo, tornou-se há tempo o regime geral”68. Esse
regime geral, por vezes colocado como regime de exceção, torna-se nesse momento a
condição para qualquer grupo social. A violência se expande quase que como um modo

66 MENEGAT, Marildo. A crítica do capitalismo em tempos de catástrofe: o giro dos ponteiros do


relógio no pulso de um morto. Rio de Janeiro: Consequência, p.174.
67 Cf. FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica.

São Paulo: Globo, 2005.


68 MENEGAT, A crítica do capitalismo em tempos de catástrofe, op. cit., p.166.

244
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

de vida imanente à população brasileira. O que antes quase atingia um estado de


estabilidade, se desestabiliza em meio à dissolução da forma social. A violência que
nunca cessou de existir, mas permanecia cindida no espaço, agora se totaliza.69 Como
compreender esse novo estado das coisas? Menegat70 coloca que

“o conhecimento da sociedade não é mais possível por suas formas


estabilizadas, mas, ao contrário, unicamente por sua instabilidade – é
nela que reside sua verdade. Antes se tratava de conhecer uma forma
ideal em cujos princípios e centro era possível distinguir as forças
determinantes que iriam agir sobre outras sociedades de
desenvolvimento desigual, mas combinado; agora se trata do modo
como estas leis sociais naturalizadas vão perdendo a imanência e
fazendo com que um “sistema de dependência reificada universal” de
produção das necessidades vai desmoronando no tempo e no espaço em
que se realizou, deixando atrás de si um rastro de ruínas e violências que
começou na periferia e há muito chegou ao centro, prometendo não
parar até suas energias destrutivas (ou a natureza) se esgotarem”.

Ou seja, a instabilidade é a forma social. Ao longo desta jornada de transformações, é a


violência e o caos que permanecem, não por serem “naturais”, mas por estarem
atingidos os limites internos da forma social hodierna.

Bacurau representa precisamente essa negatividade da forma social ante seus


limites lógicos e históricos. Não consegue – e certamente nem o pretendeu –, no
entanto, proceder negativamente em relação à negação que reconhece. Ou seja, não
chegou ao ponto de “converter tal negatividade cega em algo realmente negativo e
superador”.71 Prosaicamente, a própria narrativa do filme aponta para o seu caráter de
eterno presente. Logo em seus primeiros minutos nos é indicado que o que virá a
seguir ocorre cinco anos depois, sem que nunca tenha sido dito em que momento
estávamos antes disso. Cinco anos após qualquer tempo é também qualquer tempo.
Esse eterno presente no qual a narrativa se desenrola permite que o filme apresente
um vigoroso diagnóstico do tempo presente, contribuindo para tornar o nevoeiro do

69 “O simples fato – quase um sintoma psicanalítico – de o comandante da Rota precisar dizer que a
abordagem nos Jardins deve diferenciar-se da abordagem nas periferias aponta que estranhamente a
violência concreta – em vestes estatais – já chegou aos Jardins”. BONIFÁCIO, Deus e o diabo na terra
do sol: crise, conservadorismo e necessidade do mal no Brasil contemporâneo, op. cit., p.242-3.
70 MENEGAT, Estudo sobre a dialética civilização x barbárie na tradição crítica brasileira, op. cit.,

p.29.
71 SINAL DE MENOS. Editorial. Sinal de Menos n.1. São Paulo, 2009, p.2.

245
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

contemporâneo menos espesso, sem que com isso consiga avançar criticamente sobre a
imagem dialética que ele mesmo produz. Não parece ocasional que uma produção
progressista do último quartel da segunda década do século XXI se aproxime tanto da
obra maior de um autor positivista dos primórdios do século XX. Se a substância da
barbárie de Bacurau e de Canudos é historicamente muito distinta, sua aparência
permite a ilusão de uma atemporalidade do sertão. A tal ponto que as mesmas armas –
literais ou metafóricas – possam ser usadas em combate. E o pássaro de Minerva
continua a levantar vôo apenas quando as sombras da noite começam a cair. 72 Nada
mais prosaico que um pássaro de hábitos noturnos dê nome à comunidade e ao filme,
que nos é apresentado, logo em sua primeira cena, com uma mandíbula de tubarão no
meio de uma estrada do sertão pernambucano – o sertão [ainda] vai virar mar?

A nova guerra total e de ordenamento mundial que o filme expressa não é


qualquer saída positiva, senão que a constatação de que o extermínio se põe agora
como a forma mesma da relação social ante sua completa desintegração. Situação na
qual “o milagre da dialética” não é mais que “a destruição servindo de antídoto à
destruição”.73 O que acaba ficando obscurecido por interpretações que tomam a
história e o tempo não como chronos (o tempo como sucessão e mudança), mas como o
aión (o tempo da permanência dos princípios essenciais que se renovam sem cessar).
Em tal chave interpretativa, “o salto para o futuro, passando por cima das condições do
presente aterrissa” necessariamente “no passado”.74

Referências

A FEIRA. Instalação artística [Museu Cais do Sertão, Recife/PE]. Direção: Kleber Mendonça
Filho. Brasil, 2014.
ADORNO, Theodor. Dialética negativa. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
ADORNO, Theodor. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
ADORNO, Theodor. “Mensagens numa garrafa”. In: Um mapa da ideologia/ Theodor W.
Adorno... [Et. al]; organização Slavoj Žižek. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.

72 Cf. HEGEL, Princípios da filosofia do direito, op. cit., p.XXIX.


73 MENEGAT, A crítica do capitalismo em tempos de catástrofe,op. cit.,p.171.
74 ADORNO, Theodor. “Mensagens numa garrafa”. In: Um mapa da ideologia/ Theodor W. Adorno...

[Et. al]; organização Slavoj Žižek. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, p.48.

246
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

ADORNO, Theodor. “Parataxis: zur späten Lyrik Hölderlins”. In:__. Gesammelte Schriften
vol. 11, Suhrkamp, 1978.
ADORNO, Theodor. Três estudos sobre Hegel. São Paulo: Editora Unesp, 2013
ADORNO, Theodor. “Une réconciliation extorquée”. In:__. Notes sur la Littérature. Paris:
Flammarion, 1984.
AGAMBEN, Giorgio. Nudez. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
ARANTES, Paulo. O novo tempo do mundo e outros estudos sobre a era da emergência. São
Paulo: Boitempo, 2014.
ARANTES, Paulo. Sentimento da dialética. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
ARANTES, Paulo. “Utopia e revolução”. In: __. Zero à esquerda. São Paulo: Conrad, 2004.
BACURAU. Direção: Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Roteiro: Kleber Mendonça
Filho e Juliano Dornelles. Brasil/França, 2019.
BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”.In: ___. Magia e
técnica: arte e política: ensaios sobre a literatura e o conceito de cultura. São Paulo:
Brasiliense: 1985b
BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de História”. In: ___. Magia e técnica: arte e política:
ensaios sobre a literatura e o conceito de cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985a.
BONIFÁCIO, Frederico Rodrigues. Deus e o diabo na terra do sol: crise, conservadorismo e
necessidade do mal no Brasil contemporâneo. Dissertação de Mestrado em Geografia, UFMG,
2018.
BONIFÁCIO, Frederico Rodrigues. Trabalho e fantasmagoria fetichista: ensaios sobre a
objetivação do espaço. Monografia de Graduação em Geografia, UFMG, 2015.
CANETTIERI, Thiago. “Para uma crítica dos afetos da crítica: angústia, desamparo e mal-
estar”. Sinal de Menos n.13, 2019.
CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia, Vol.2, São Paulo: Companhia das Letras,
2010.
CPT (Comissão Pastoral da Terra ). Conflitos no Campo no Brasil 2018. CEDOC Dom Tomás
Balduino – CPT. Goiânia: CPT Nacional, 2018. . Disponível em
<https://www.cptnacional.org.br/component/jdownloads/send/41-conflitos-no-campo-
brasil-publicacao/14154-conflitos-no-campo-brasil-2018?Itemid=0>. Acesso em 26 dez. 2019.
CUNHA, Euclides da. Os sertões. São Paulo: Positivo, 2004.
FAVARIN, Adriano. “Bacurau: o Nordeste na vanguarda da luta anti-imperialista”. Esquerda
Diário. 16 set. 2019. Disponível em <http://www.esquerdadiario.com.br/Bacurau-o-Nordeste-
na-vanguarda-da-luta-anti-
imperialista?fbclid=IwAR3i8OMFLRUk2IZB1f19Ffe3OHB8w1ll7oSmo2R92vq8KVEx8RuXn6r
RQZE> Acesso em 21 dez. 2019.
FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação
sociológica. São Paulo: Globo, 2005.

247
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

FERREIRA, Pedro Henrique. “Ninguém solta a mão de ninguém”. 9 set. 2019. Revista
Cinética. Disponível em <http://revistacinetica.com.br/nova/bacurau-pedro/>. Acesso em 21
dez. 2019.
FREITAS, Verlaine. “Matrix: a administração da catarse na cultura de massa a partir de
Adorno”. In: ____ et al.(orgs.) Kátharsis. Reflexos de um conceito estético. Belo Horizonte:
Com arte, 2002
HEGEL, Wilhelm Friedrich. A razão na história. São Paulo: Centauro, 2001.
HEGEL, Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
HORKHEIMER, Max. Prefácio. In: ADORNO, Theodor [Et. al]. La personalidad autoritaria.
Buenos Aires: Editorial Proyección, 1965.
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise. Rio de Janeiro: EDUERJ/Contraponto, 1999.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio
de Janeiro: Contraponto, 2006.
KRACAUER, Siegfried. O ornamento da massa. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
MENEGAT, Marildo. A crítica do capitalismo em tempos de catástrofe: o giro dos ponteiros
do relógio no pulso de um morto. Rio de Janeiro: Consequência, 2019.
MENEGAT, Marildo. Estudo sobre a dialética civilização x barbárie na tradição crítica
brasileira. Relatório final de atividades do pós-doutorado. São Paulo: FFLCH, USP. 2011.
MORISAWA, Mariana. “‘Bacurau’ e um Brasil distópico”. 3 jul. 2019. Revista Continente.
Disponível em <https://www.revistacontinente.com.br/edicoes/223/-bacurau--e-um-brasil-
distopico>. Acesso em 21 dez. 2019.
MUSSE, Ricardo. “Sobre Bacurau”. A terra é redonda. 06 out. 2019. Disponível em
<https://aterraeredonda.com.br/sobre-bacurau/?fbclid=IwAR2N5ck3XubOMhi_kq6J-
TTcV_GRqJTmLpmFaU3hcMGiKr_xdsPVSV7poYo>. Acesso em 21 dez. 2019.
O OVO DA SERPENTE. Direção: Ingmar Bergman. Alemanha/EUA, 1977.
POZUELO, José Maria. Teoria del canon y literatura española. Madrid: Ed. Catedra, 2000.
SANTIAGO, Silviano. Genealogia da ferocidade. Recife: Cepe, 2017.
SILVA, José Danilo e CORREIA, Marília Dantas. Distopia e ideologia: A incorporação do
pessimismo face a destrutibilidade do (des)controle metabólico do capital. In: Anais XIX ENG,
João Pessoa, 2018.
SINAL DE MENOS. Editorial. Revista Sinal de Menos n.1. São Paulo, 2009.
TUPINAMBÁ, Gabriel. “Economia política do futuro, ou: a política no tempo das cartas que
não chegam ao seu destino”. Palestra. Escola de Arquitetura, Urbanismo e Design da
Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte: UFMG, 2018.
VELOSO, Caetano. “Não identificado”. Intérprete: Gal Costa. In: Gal Costa. 1LP. Rio de
Janeiro: Universal Music Internation Ltda., 1969.
WISNIK, Guilherme. Dentro do nevoeiro. São Paulo: Ubu, 2018.
Notícias

248
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

GAROTA de 13 anos atira em homem que entrou em fazenda em MT. Folha de São Paulo, 04
out. 2019. São Paulo/SP. Disponível
em<https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/10/garota-de-13-anos-atira-em-homem-
que-entrou-em-fazenda-em-mt.shtml>. Acesso em 21 dez. 2019.
JOVEM negro é torturado por seguranças de supermercado após tentativa de furto de
chocolate. Estado de Minas, 03 set. 2019. Belo Horizonte/MG. Disponível
em<https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2019/09/03/interna_nacional,1082169/jo
vem-negro-e-torturado-por-segurancas-de-supermercado-apos-tentativa.shtml>. Acesso em
21 dez. 2019.
NÚMEROS de violência do Rio retornam a patamares anteriores à implantação das UPPs. O
Globo, 30 abr. 2017. Rio de Janeiro/RJ. Disponível em
<https://oglobo.globo.com/rio/numeros-da-violencia-do-rio-retornam-patamares-anteriores-
implantacao-das-upps-21274006>. Acesso em 26 dez. 2019.

249
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

OBJETO NÃO IDENTIFICADO


Bacurau: cenas de um mundo pós-colapsado1

Cláudio R. Duarte, Thiago Canettieri e Raphael F. Alvarenga

1- Notícias de um futuro pós-catastrófico?

Inquietante em Bacurau (2019) é o debate a ser extraído de um experimento de


comunidade involuntária e autogerida num futuro próximo pós-catastrófico.
Inquietante porque o filme incomoda a boa gente cidadã ao lidar com uma
negatividade radical, que, como convém, é dupla, dá rebote e tensiona o espírito. O
suficiente para o filme sofrer increpações de alegoria barata e falta de nexo, quando a
trama é construída perfeitamente rente ao chão de uma situação histórica precisa e
sobre a falta-de-nexo que se tornou esse mundo oco e em fim de linha. Abandonado em
meio à seca do sertão nordestino, numa situação tendente à guerra civil e ao
extermínio recíproco dos habitantes locais em disputa pela água escassa, o povoado de
Bacurau resiste na verdade a um provável colapso político e social do país inteiro,
agora cindido em Brasil do Sul e Brasil do Norte, tal como se depreende das tomadas
iniciais do filme. Em dez minutos impressionantes, no árduo trajeto ziguezagueante do
caminhão-pipa pela região, obtem-se um mapa da situação local e da nova miséria no
país, da qual se deduz por tabela o estado social de uma degradação planetária.

Mais ainda, o que espanta é que, em meio à barbárie completamente instalada


após a invasão de Bacurau pela tropa de gringos assassinos, os clichês da ação e da
violência do gênero faroestepassem a segundo plano, despertando uma espécie de
imaginação estética e sociológica improváveis, que ultrapassa o esquematismo formal
incorporado reflexivamente pela obra, colocando em discussão crítica tanto a forma

1 Os autores gostariam de agradecer a Daniel Cunha, Fred Lyra e Cecília Pires pela leitura e a discussão
deste texto.

250
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

importada quanto a ideia dos laços fundamentais que perfazem a civilização nesse
novo contexto distópico inteiramente imaginado: a diferença que aglutina e que dá
resposta à intolerância fascista e sua violência abstrata. Aliado à belíssima fotografia e
ao controle do ritmo e do foco narrativo, eis o que fará desse filme de Kleber Mendonça
e Juliano Dornelles também uma obra politicamente resistente neste tempo de cultura
global anestesiada face à afirmação de identidades locais, regionais e nacionais e ao
colapso social real, que já despontam no horizonte.

Fazia tempo, salvo engano desde Cronicamente inviável (2000), Cidade de


Deus (2002) ou Tropa de Elite (2007), que um filme no Brasil não suscitava tão amplo
debate. Os críticos reagiram de maneira ambígua, alguns com medo do elogio acrítico a
um filme por assim dizer visceral, prazenteiro e catártico nas cenas finais,
aparentemente maniqueísta e quase didático nalguns pontos; outros querendo buscar
mais suas citações e seu conteúdo político do que a força de sua configuração artística.
Como se a obra fosse uma colcha de retalhos de imagens e referências interpretáveis a
esmo. Isso para não citar aqueles que procuraram rebaixá-lo a itens isolados, ou a
fórmulas que, como indicado, o próprio filme incorpora e reflete como questão,
buscando resolver alguns impasses da formação do cinema nacional recente. Sem
dúvida, o longa proporciona a catarse, principalmente estimulada pelo público mais
jovem aficionado em filmes de ação violenta, e que no ato de consumo nos cinemas
pareceu às vezes estar diante de uma fita hollywoodiana qualquer. Em diferentes
lugares, as comemorações com a resistência do vilarejo pareceram muitas vezes
inversamente proporcionais à compreensão de seu sentido. Pois é de se perguntar se a
forma do filme se esgota em seus efeitos e em sua recepção, forma aliás marcada pela
quebra proposital do ritmo, de expectativas e clichês do gênero.

Neste ensaio, pretendemos elaborar uma crítica imanente do filme, capaz de


compreendê-lo em seus próprios termos para, a partir daí, interrogar sobre seu valor
estético-político. E, de pronto, seria possível dizer que Bacurau está sendo aplaudido
pelos motivos errados, o que pode significar que também haja alguns problemas
quanto à forma, que nem por isso sai demolida por críticas feitas de modo ligeiro e
simplificado.

251
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

2- De comunidade sitiada a campo de extermínio: estrutura e movimento


de Bacurau

A tomada que abre o filme dá o tom do seu movimento fundamental: o que se vê


não é apenas o globo, mas a América do Sul, dividida em treva e luz. Um satélite cruza
a objetiva como que fornecendo o ponto de vista dividido inicial – que será noutra
parte o traço da vida capturada nas malhas da tecnologia, da vigilância e do controle –,
ao som psicodélico de “Não identificado” – a canção de Caetano cantada por Gal com a
qual se encerrava outro filme, Brasil ano 2000, de Walter Lima Jr., que há exatos 50
anos punha em cena uma viagem por um Brasil devastado após uma fictícia terceira
guerra mundial –, parecendo indicar logo de cara o desejo de reatar com questões da
vanguarda contracultural brasileira dos anos 60 (Cinema Novo, Tropicalismo) 2. Mas
agora numa conjuntura diversa, que redistribui o olhar (e a memória) para o que resta
da aspiração do “país em construção”, já desenganada em 1969 pelo filme e os rumos
da Ditadura após o AI-5, e para o que surge aí nesse movimento da objetiva que vai
mirando o sertão nordestino ensolarado. Intencionalmente ou não, a escuridão e o céu
tempestuoso estão no Oeste ou no Norte, enquanto o lado Oriental convida à pergunta
pela aurora e o alvorecer de um novo dia – será um novo tempo? O clima futurista de
George Lucas também está presente. Seja como for, tal divisão é reforçada pelo plano
de dioptria cindida, uma técnica que é usada repetidas vezes no decorrer do filme e que
possibilita captar uma dualidade focal (primeiro plano e plano de fundo em foco ao
mesmo tempo numa mesma cena). Esse jogo de claridade e obscuridade reaparece
igualmente em outros momentos da trama, como por exemplo na cena em que as
crianças brincam nos confins da cidade, testando os limites da coragem e do medo ao
avançarem com uma lanterna, uma a uma, cada vez mais rumo ao breu limítrofe. A
perspectiva ali varia, oscila, da santa paz das casinhas iluminadas pelo poste de luz,
perto de onde estão as crianças com os olhos arregalados para o vasto mundo tomado
pela noite espessa, e a visão que vem de dentro, que logo se revela ser a de um
forasteiro à espreita, um olhar de morte que mira as casas iluminadas à distância.

2 Para uma boa leitura do filme de Walter Lima Jr., ver: XAVIER, Ismail. “Brasil ano 2000: o mal
congênito da província” in:__. Alegorias do subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo, cinema
marginal. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 198-228.

252
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Voltando à abertura, a voz da Gal Costa anuncia uma “canção de amor” (a esse
Brasil profundo e esquecido, riscado do mapa? à cultura popular nordestina, em riscos
de extinção como tudo o mais?), uma “canção singela, brasileira”, uma “paixão [que]
há de brilhar na noite, no céu de uma cidade do interior, como objeto não
identificado”– dado o contexto atual soa quase como uma evocação de uma utopia
perdida em tempos pós-apocalípticos. De chofre, a descida vertiginosa à dura realidade
terrestre, em que somos conduzidos, como no filme de Lima Jr., por um caminhão pela
estrada adentro.

O que extrair desse início? Do ponto no espaço sideral à sequência do caminhão-


pipa, em cujo trajeto se desvenda o quadro histórico da região sertaneja no “Oeste de
Pernambuco” “daqui a alguns anos”, temos o contraste de pontos de vista que modela
o filme todo e o corta em duas grandes metades. Do mais exterior, pela câmera
ranheta que oscila perseguindo a rabeira e a frente do carro, como querendo enquadrá-
lo à força, penetramos na cabine, chegando ao rosto de Teresa, que descansa da viagem
trepidante. O caminhoneiro duro no volante, ansioso, atropelando caixões e desviando
de mortos à beira da estrada, só abre o sorriso e se tranquiliza quando chega na trilha
para Bacurau (na placa lemos: “Bacurau - 17 km - Se for, vá na paz”).

Assim, o primeiro ato apresentará as personagens e a vida “pacífica” em


Bacurau; o segundo irá desdobrá-los por uma esteira de morte e resistência. Os núcleos
de tensão ficarão no início mais ou menos na sombra, como verdadeiras pontas soltas,
isto é, como pressupostos que sugerem um quadro histórico nacional revirado,
aguardando desdobramento. Essas pontas aparecem como enigmas, como sinais de
uma catástrofe em curso: em primeiro lugar, com lances ágeis e ainda no percurso,
Erivaldo e Teresa param e comentam a guerra civil pela água na região (o rio e o
reservatório foram tomados/bloqueados por um grupo privado armado, que aliás dão
tiros para afugentá-los), o que dá contornos fundamentais ao problema da escassez
material em geral do município de “Serra Verde” em que se localiza o povoado (o carro
cheio de caixões tombado e o motoqueiro morto na estrada sugerem então,
retrospectivamente, essa guerra e os artigos mais requisitados pelo mercado
remanescente). Além disso, principalmente, há o anúncio da divisão territorial do país

253
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

em dois, tal como mostrada na telinha do caminhão-pipa e refletida mais tarde no


encontro com os cidadãos do “Brasil do Sul”. Aliás algo mais que uma divisão, uma
extrusão: a região Nordeste, ao que parece, é ali algo como uma terra nullius, sendo o
resto (incluindo a Amazônia e o Centro-Oeste) denominado Brasil do Sul. Tivessem os
críticos prestado maior atenção nesse quadro, as acusações de “falta de tensão interna”
na região e na comunidade seriam muito menores. Ora, aqui estamos diante da
revelação de uma comunidade... sitiada. Nas palavras de Erivaldo, o caminhoneiro:
uma “danação da porra”.

É este contexto dramático que se reflete nalguma medida no enterro de Dona


Carmelita, na função da reunião de moradores e da memória coletiva em Bacurau, na
procura da manutenção de sua coesão interna enquanto comunidade, a partir da qual
se adivinha o problema da substituição da professora de 94 anos como liderança moral
– uma questão de vida e morte para a sobrevivência do grupo. Então o roteiro passa ao
cotidiano aparentemente tranquilo tendo sempre a tensão social e o prenúncio do pior
como seu pano de fundo. O convívio dos moradores não é uma festa, mas cheio de
pequenos atritos decorrentes dessa luta diária pela sobrevivência, como se vê no auê
criado pela doutora Domingas (Sônia Braga) no dia do enterro, na escola improvisada
(mas não rebaixada) de Plínio e Arlete, no atendimento precário (ainda que
humanizado) no posto de saúde feito pela doutora, ou na dura vida de prostituição
num caminhão-trailer como que integrado “naturalmente” à paisagem do lugar. A falta
de atividade, emprego, renda, remédios, segurança são a lei do local quando
percebemos não apenas o aspecto ruinoso de tudo na região (escolas, ônibus escolar,
carro de polícia, casas etc.) em comparação às fotos do passado, e nos deparamos
enfim com a pobreza do pequeno comércio informal, aliás submetido à inspeção
municipal e à possibilidade do “rapa” a qualquer momento (embora paradoxalmente
não haja notícia de polícia no filme)… Sem poder romper de todo com a economia de
mercado, percebe-se a manutenção de fazendeiros abastados e bem equipados
convivendo nesse quadro de marginalização e abandono que ainda assim, mesmo
pobre, tem um meio técnico disponível (energia, telecomunicações, carros,
eletrodomésticos, celulares, máquinas simples etc.), dando sinal da conexão do sertão
com o mundo da alta produtividade capitalista. No limite, Bacurau surgirá como o

254
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

refúgio de criminosos dessa sociedade colapsada, como Pacote e como Lunga e seu
bando, cuja integração na comunidade não é simples ponto de graça. Os latrocínios de
Pacote (apelidado o “Rei do Teco”) nas grandes cidades circulam de maneira irônica
num top ten assistido diariamente pelos moradores, o que ele mesmo reprova. No
fundo sente-se que é apenas tolerado por Plínio, apesar de bem acolhido pelas filhas do
professor. Lunga por sua vez tem a cabeça posta a prêmio pela justiça do Brasil do Sul e
vive apartado de Bacurau, sendo mal visto por Damião, embora tenha tentado tomar
de assalto a represa privatizada, guardada por jagunços armados, episódio em que
saíram três mortes. Numa das cenas impagáveis do filme, a visita do prefeito
oportunista buscando a reeleição tem como resposta a recusa do vilarejo em legitimá-lo
como seu representante, enquanto a chegada de dois forasteiros sulistas de motocicleta
aguça o senso de curiosidade cheia de medo e desconfiança por trás de diálogos tensos,
que parecem hospitaleiros e cordiais mas que sugerem conflitos de classe, status,
“raça” e agora também de raiz regional. Onde então a carência de tensão interna no
filme? A instabilidade, a infração, o conflito e a guerra social estão na verdade
implícitos até o momento do sumiço repentino de Bacurau do mapa tal como
preparado pelo casal de forasteiros. Estes últimos servem como ponte com o mundo
externo, supostamente em ordem. Em termos estéticos, como veremos, a obra não
deixará de abordar a clássica “dialética da malandragem” (segundo Antonio Candido 3),
a alternância entre os polos da ordem e da desordem, e, ainda que as acomodações
internas ao povoado não eliminem os contrastes e as tensões, chama-as na hora H à
aliança e à resolução; do outro lado, a ordem supostamente superior do modelo
estrangeiro – o qual, lembrava Candido a propósito da América puritana, como
desrecalque ou compensação volta-se para fora com uma fúria truculenta sem limites –
exibe-se ele também, ao final, como desordem e autodestruição.

Em todo esse primeiro ato, a visão é basicamente horizontal e mergulhada no


mundo lento e empobrecido em que a vida se reproduz, construindo-se metodicamente
através da vagarosa inspeção do plano panorâmico até o primeiro e o primeiríssimo
plano, num jogo rico de posições e movimentos de câmera. No caminhar de Teresa e

3 CANDIDO, Antonio. “Dialética da malandragem” in: __. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas
Cidades, 1993.

255
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

das demais personagens pelo espaço vai se formando uma perspectiva interna à
comunidade, embrenhando-se em suas relações práticas, fechando-se na proximidade
dos objetos cotidianos arruinados e nos corpos visivelmente sofridos, mormente em
suas expressões faciais e vocais, escorando-se na boa atuação do elenco de atores
conhecidos que se misturam até a quase diluição entre os figurantes amadores
(provenientes dos locais de filmagem). Aqui a montagem recebe a impressão da forte
cor local, sua imagem e seu ritmo. É o que conflui nas belas cenas do funeral de dona
Carmelita. Esta passagem do fora ao dentro, do extraterrestre ao mundo terreno,
terminando literalmente numa procissão para o enterro, corresponde à necessidade de
uma gradativa desaceleração e estabilização do primeiro ato. Pressupondo certo nível
de sobrevivência da produção local, aqui é o dinamismo da sociedade do trabalho que é
posto em sala de espera, irritando quem ansiava por velocidade, tiroteios e
individualização de condutas de um filme de ação em moldes americanos. Sinônimo de
modernidade, a velocidade não passa muito além de um modo de gerir a sociedade - ou
de sobreviver a ela, como vimos na direção do caminhão por Erivaldo, em todo caso
quase sempre ligado à aceleração dos processos de acumulação de capital, aceleração
que se tornou segunda natureza, estruturando todas as esferas da vida social, das
formas do pensamento e da experiência. Não por acaso, muitas técnicas do cinema
foram inventadas em linha cruzada com tecnologias de guerra (tomadas aéreas, voos
rasantes, cortes abruptos) e o imaginário bélico4, o que evidentemente se reflete no
segundo ato de Bacurau. Nesse ritmo desacelerado prenuncia-se o movimento
simbólico fundamental do filme: a superação do individual num coletivo em
transformação, que se revelará plenamente no ato final. Não por nada, o funeral da
matriarca negra, com o povoado todo cantando (de forma meio improvisada) “Bichos
da noite”, de Sérgio Ricardo, é uma das cenas mais tocantes que vimos no cinema em
muito tempo, dando a dimensão dos referenciais e dos sentidos que o filme propõe. A
lentidão do primeiro ato é estratégica para criar um bom exame do pequeno grupo
local, com direito ao escrutínio de seus fatores de coesão e conflito autenticamente
brasileiros e nordestinos, sempre surpreendendo com a nota específica através da
análise dos detalhes, contrapondo-se explicitamente ao que alguns viram como simples

4 VIRILIO, Paul. Guerra e cinema. São Paulo: Boitempo, 2005.

256
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

remissão “alegórica” abstrata a obras canônicas da cultura (trans)nacional e a ideias


surradas: o sertão como terra seca, inóspita e de fervor religioso, de cultura tradicional
homogênea, iletrada e desconectada do mundo, além de curral eleitoral inconteste de
coronéis ou dependente da ação isolada do herói-bandido Lampião viril, cruel, sub-
socializado e mitificado.

***

Em linha contrastante, costurando as pontas soltas em horizonte escuro e


macabro, a segunda metade do filme expõe toda a violência esboçada e como que
“armazenada” no quadro social e territorial lentamente construído anteriormente: a
chegada das motos barulhentas com os forasteiros do sul, seu atrito com os moradores
locais – com destaque para a cena, brilhante, em que o cantador Carranca caçoa dos
motoqueiros sudestinos, que saem rebaixados diante da superior inteligência do
nordestino –, os tiros no caminhão-pipa, o rastro de sangue e morte que se revela
numa fazenda vizinha e que em seguida ceifa a vida de dois moradores de Bacurau
assassinados pelos dois forasteiros. Esse rastilho dá sua primeira viravolta inesperada
com a eliminação sangrenta dos dois sulistas pelo bando de gringos do norte – outro
momento alto do filme este, diga-se, em que os próprios gringos desdenham dos dois
babacas nacionais que se acham diferentes do povo humilde, imaginando-se iguais aos
estrangeiros pelo critério “racional” da cor, renda e região em que moram, não fosse o
detalhe de tudo estar ao sul do Equador. Ao contrário do que entenderam muitos
críticos, a dupla de forasteiros não é nem de longe mera caricatura dos brasileiros
“ocupantes” (como diria Paulo Emílio), mas comment c’est: usando as lentes alienadas
do “progresso”, desprezam a cultura local (estão se lixando para o museu e o violeiro) e
são preconceituosos até o ponto da afetação da “tolerância” pelos moradores do
vilarejo (o que fica claro na interação com a sua gente, e na sequência quando trocam
um olhar cúmplice, como que debochando da empregada que não fala inglês), e
embora aos olhos estrangeiros sejam claramente inferiores e ridículos ainda assim se
acham o escol da sociedade. O jogo de perspectivas que dá forma à obra se esclarece
pelo ângulo em que aqueles atos criminosos são filmados: a partir da câmera do drone,
no primeiro caso, sinalizando a alienação dos forasteiros do sudeste aos outros do
hemisfério norte, e a câmera posta na altura da mesa circulando de face a face, com

257
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

close na reação de cada um, nos tiros à queima-roupa que recebem ao sentarem-se à
mesa desses chacais traiçoeiros, que recebem as ordens de um Outro invisível através
dos fones de ouvido. Aqui, então, a velocidade ganha primazia.

Aos poucos, de situação em situação, mediado pela lente e a voz robótica do


drone em forma de disco voador, vem à tona a missão macabra desse bando invasor: o
extermínio dos habitantes de Bacurau através de uma espécie de “gameficação”
assassina da ideologia branco-supremacista, típica de grupos estadunidenses ou da
extrema direita europeia atual. A comunidade sitiada põe-se agora literalmente em
situação análoga a um estado de sítio e logo transforma-se em puro campo de
extermínio. Nem por isso o ritmo se acelera resvalando no padrão dos filmes de ação
sangrenta, o que parece ter um caráter de método, que incomoda os mais afoitos. Após
a calorosa recepção de Lunga e seu grupo, misto de párias sociais e revolucionários
guevaristas, pelo povoado, o filme pulsa segundo o ritmo de cortes encadeados, criando
o clima contínuo de ação e suspense, até que o ataque vai fazendo os seus cadáveres. O
desdobramento da tensão interna atinge o próprio grupo invasor, cindido em grupos
menores, enquanto Bacurau prepara sua defesa e desfecha o contra-ataque vitorioso.
Aqui, o ângulo alterna-se entre o alto e o baixo, por exemplo, a mira do fuzil de Michael
(Udo Kier) e os buracos e demais esconderijos dos resistentes, qual imitasse a visão de
uma águia em caça de suas presas, os pássaros de hábito noturno metaforizados pelo
título da obra; visão inicialmente materializada pelo drone em forma de disco voador,
mas contrabalançada através da dualidade focal que permite abrir o campo, reforçar a
ideia de simultaneidade e contrapor os pontos de vista em conflito.

Essa espécie de dialética da visão torna-se assim metódica, complexamente


estruturada e desdobrada, como apontamos desde as primeiras cenas. Esse então, em
nossa leitura, o princípio estruturante da obra: a dupla perspectiva de local e
mundial, integrado e excluído (sitiado e em autoexclusão), nacional cindido e
estrangeirice embasbacada, resistência multifocal e ponto de vista da morte (Pasta
Jr.). A cisão social sistêmica entre integrados e espoliados, num futuro pós-
apocalíptico, se converte numa forma clivada (e oscilante, sujeita a inversões) de olhar
das próprias personagens: abstrato, hierárquico, mortífero, oco e fantasmagórico,
desconectado da própria vida versus um olhar para o que é próximo, fechado e oculto,

258
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

de quem sofre e vive no buraco do mundo – um jogo de perspectivas que amiúde atinge
a mínima célula formal (a câmera na grua, o travelling de um campo a outro, a dioptria
cindida e a obtenção da dualidade focal etc.) bem como a estrutura geral da obra, o que
se complexifica quando nos perguntamos pelo que determina esse jogo e quais são suas
reviravoltas, que têm fundo histórico.

O conteúdo heterotópico, mas conflituoso e já violento pressuposto na primeira


metade, é desenvolvido como plena violência e distopia do vale-tudo e do estado de
exceção, na segunda; do esboço de vida pobre, lenta e isolada, mas concreta e em certa
medida aberta à pluralidade, passa-se ao thriller de ação, interrompido por cortes que
dão respiro reflexivo ao espectador, até o ataque e a contraofensiva, esculpida à força
da abstração das individualidades, simultânea à emergência de um outro tipo de
sujeito, dessa vez coletivo.

O que se segue é um exame de cenas e momentos particulares como tentativa de


ampliar a leitura estética da obra; ao final, buscamos interrogar a posição de Bacurau
na linha da formação e seu diálogo crítico com a matéria brasileira recente.

3- Descobrindo as cenas, desdobrando a catástrofe

Forasteiros entre si

Bacurau é, antes de mais nada, uma construção narrativa visceral. Como


aventado acima, não se trata exatamente de uma simples alegoria – a remissão de todo
concreto a uma ideia abstrata, arbitrária e externa ao processo de significação –, mas
de um processo em que se mesclam a metáfora continuada do pássaro-título, a alusão e
a citação, o pastiche e a reflexão irônica a partir das forças em luta. As significações
são mais ou menos diretas e suas alusões são sempre de cunho histórico, subjacentes
às camadas socialmente acumuladas e ao contexto futurista criado pelo roteiro. Mas
tampouco ainda, excetuando por enquanto os elementos de ficção extremada que
envolvem a empresa de matança, o filme é sobre “um futuro”. Nada mais é do que uma
hipérbole do presente, onde já assistimos a supremacistas brancos estadunidenses

259
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

torturarem e matarem imigrantes ou saírem louvando a memória do General Lee em


Charlottsville5; ou à extrema-direita alemã xenófoba armar-se cada vez mais6; ou à
extrema-direita inglesa patrulhar a costa da Bretanha, literalmente, caçando
imigrantes7; ou à extrema-direita búlgara que também vem se armando para a caça de
imigrantes8; ou ainda, à extrema-direita norte-americana planejando espalhar o
coronavírus entre seus inimigos para acelerar e aproveitar o colapso social 9; invadindo
o parlamento em Michigan10, enquanto Trump mandara matar um general iraniano no
Iraque através de um drone. Ataques amoques e mass shoottings, atos terroristas,
guerra do tráfico, violência estatal, ação das milícias e esquadrões da morte nas
periferias no contexto de um capitalismo predatório completariam esse quadro quase à
perfeição se isso não fosse ainda melhor determinado pelo próprio filme, quando
imagina um colapso futuro, que já não permite entrever uma ordem substancial
prevalecente. A carcomida ideologia do trabalho, do valor e da dissociação do homem
branco, macho-patriarcal ocidental, em condições de esgotamento da valorização do
valor e da economia inclusiva, é o centro atual desse presente/futuro e o que ressurge
com força quando o sistema vai para o buraco11. Não por acaso, em Bacurau tudo isso
termina num grande buraco. O retorno da extrema-direita, dos novos fascismos e a
perda do constrangimento com que circulam difundindo o mal radical é indicativo da
5 DIAS, Cristiano. “Supremacistas dos EUA torturam e matam imigrantes no deserto”. O Estado de São
Paulo, 21 nov. 2010. Disponível em:
https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,supremacistas-dos-eua-torturam-e-matam-
imigrantes-no-deserto-imp-,643095 (Acesso em 30/04/20); SENRA, Ricardo. “‘Sou nazista, sim’: O
protesto da extrema-direita dos EUA contra negros, imigrantes, gays e judeus”. BBC Brasil, 12 Ago.
2017. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-40910927 (Acesso em
30/04/20).
6 “Extrema direita da Alemanha se arma cada vez mais”. Deutsche Welle, 28/09/2019. Disponível em:

https://www.dw.com/pt-br/extrema-direita-da-alemanha-se-arma-cada-vez-mais/a-50625224
(Acesso em 30/04/20).
7 MAHMOOD, Basit. “Far right Britain First patrolling beaches to ‘catch migrants’”. Metro, 19 Sep.

2019. Disponível em: https://metro.co.uk/2019/09/19/far-right-britain-first-patrolling-beaches-


catch-migrants-10775258/ (Acesso em 30/04/20).
8 “Comerciante vira celebridade na Bulgária por ‘caçar’ imigrantes na fronteira”. G1, 03/04/2016.

Disponível em: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2016/04/comerciante-vira-celebridade-na-


bulgaria-por-cacar-imigrantes-na-fronteira.html (Acesso em 30/04/20).
9 WILSON, J. “US far right seeks ways to exploit coronavirus and cause social collapse” The Guardian,

05/04/2020. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2020/apr/05/us-far-right-seeks-


ways-to-exploit-coronavirus-and-cause-social-collapse (Acesso em 30/04/20).
10 RIBEIRO, Janaina. “Contra quarentena, manifestantes armados invadem parlamento de Michigan”.

Exame, 30 Abr. 2020. Disponível em: https://exame.abril.com.br/mundo/contra-quarentena-


manifestantes-armados-invadem-parlamento-de-michigan/ (Acesso em 30/04/20).
11 KURZ, Robert. Os últimos combates. Petrópolis: Vozes,1997; Idem, Com todo vapor ao colapso. Juiz

de Fora/Rio de Janeiro: Ed. UFJF/Pazulin, 2004.

260
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

onda do futuro12 que já nos afoga. É isso que o filme pressente, colocando em dúvida a
linha progressista ascendente do passado, que vai dar nisso que está aí e ora se
apresenta nos meios de massa, bem como os rumos supostamente promissores do One
World globalizado.

“– Por que vocês estão fazendo isso?” – interrogam três vezes, perplexos mas
sobriamente lógicos, os moradores. Conseguir captar essa ideologia e essa barbarização
ascendentes – em sua versão mais oca e irracional e no entanto coerente em seu
método, provavelmente de maneira independente da cultura cinematográfica e dos
filmes mais atuais13 – precisamente em seu embate com a realidade histórica, que
resiste à mera eliminação, é o que faz a obra ser instigante. Mas olhar para tal processo
exige valorizar o esforço de dupla negação, que o filme imprime em suas células
narrativas.

***

Comecemos então pelo fim, pelo buraco, pelo oco despropósito da matança e o
fim de linha do grupo invasor, o mais mal apurado pela crítica até aqui. É um tanto
evidente que os diretores se valem de recursos narrativos de abstração, purificação de
traços, dicotomização e esquematização caricata de personagens. É o que se vê
sobretudo na caracterização do bando invasor. Todavia, isso não é necessariamente um
defeito do filme, que contrabalança essa negação com a apreensão positiva de um
conteúdo real. Na verdade, esse uso parece estar em função do conteúdo e da lógica de
perspectivas da montagem: Bacurau incorpora o tema da invasão (alienígena até, com
o drone em formato de disco voador), a fotografia semiárida com cores quentes
(sobretudo na primeira metade) e frias (ao estilo dos filmes americanos), o tema da
caçada humana (recorrente na filmografia hollywoodiana, que inclui O alvo, estrelado
pelo valentão Van Damme) a fim de compor, no conjunto de tais elementos, uma
complicação e uma corrosão interna do esquema lógico da divisão entre mocinhos e
bandidos, recorrente na indústria da cultura. O filme tem o mérito de se autorizar a

12 LUTTWACK, Edward. “Por que o fascismo é a onda do futuro”. Novos estudos, n.40, 1994, p.145-151.
13 Ao contrário do que pensam os críticos apressados, além da referência aos processos neofascistas
atuais, o tema da violência, do ressentimento e da vingança, num contexto de conflitos rurais e
urbanos, de expropriação e êxodo foi intensamente trabalhado por Kleber Mendonça em O som ao
redor (2013). Ele independe, portanto, da referência a filmes estrangeiros da vez.

261
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

fazer, em seus próprios termos, uma interpretação crítica dos países do norte global
através de uma operação que talvez agradasse a um filósofo como Žižek: uma operação
de superidentificação com esse Outro14.

Num diálogo essencial entre Michael e os membros do grupo invasor, o molde


caricatural é conscientemente refletido como tal, rendendo uma tensão interna que
provoca uma primeira cisão no grupo. Assim, vemos uma discussão moral entre Josh
(trabalhador do setor de recursos humanos numa rede de supermercados) e Terry
(agente penitenciário), o qual não se conforma com a crueldade de Josh ao matar um
garoto indefeso em Bacurau. Josh argumenta de maneira hipócrita, beirando o
cinismo, alegando que estava muito escuro, o menino parecia ter dezesseis anos e estar
armado. Terry xinga-o de “maníaco de merda”, dizendo que era um apenas um garoto
com uma lanterna e “não um criminoso!”. Michael se intromete de modo irônico,
buscando apontar que não deve haver diferença entre Josh, o “bad cop”, e Terry, o
“good cop”, já que ambos e todos estão ali superidentificados e engajados, afinal, na
empresa extrema de uma chacina coletiva gratuita. Mas dá a entender também que
ambos devem lidar com a exploração e a violência diariamente em suas vidas,
administrando, maltratando, quando não arrebentando, a vida de negros e latinos, a
força de trabalho típica e/ou o exército industrial de reserva manobrado pelo sistema
econômico e carcerário norte-americano. Aqui vão entrando as complicações do
esquema que parecia preto e branco. Ora, Michael é alemão, um cidadão naturalizado
nos Estados Unidos há mais de quarenta anos. Nessa discussão nervosa, que se passa
no alojamento bunkerizado do grupo, ele recebe então a afronta de Terry – que o
chama de “nazista” –, a qual é respondida sem muito pestanejar com um tiro no peito
do agente penitenciário aparado por um colete de balas. Sentindo-se capturado num
“clichê estúpido” (“alemão = nazista”), sofrendo o peso da superidentificação com a
escória nazi, respondendo que é “mais americano” que Terry e reagindo desse modo
violento, Michael dá relevo máximo a todas as identificações operadas e postas em
questão pelo filme, que todos suportam enquanto trabalhadores abstratos e não só
como tais “gamers” assassinos de criminosos e vagabundos do sertão. No limite, isso

14 ŽIŽEK, Slavoj. Looking Awry: An Introduction to Jacques Lacan through Popular Culture.
Cambridge: MIT Press, 1991.

262
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

inclui nós, como voyeurs do massacre ficcional e cotidiano, superidentificados com a


violência como forma do processo social e forma de fazer cinema. Em mais um giro
negativo, no desfecho, Michael diz: “Este mundo está de cabeça para baixo (“This
world is upside-down”), dando a entender que o “good” e o “bad cop” estão invertendo
os papéis, embora sejam iguais em tudo num mundo que perdeu todo referencial, não
só moral e racional, mas também hierárquico, pois já não há mais qualquer significado
de ordem senão o arbítrio e o impulso de conservação, que alguns elevam ao nível da
autoafirmação selvagem nesse círculo de ficção, sociopatia e violência irrestritas. A fala
– que parece aludir ao título de um famoso estudo sobre movimentos milenaristas no
seio da Revolução Inglesa – prenuncia ademais de certa forma o que virá: o revide dos
de baixo, tomados por “índios” incivilizados e tecnologicamente primitivos, e a derrota
dos “caubóis” americanos, que deveriam ganhar sempre (daí algumas alusões a filmes
clássicos sobre a Guerra do Vietnã, como Platoon e Apocalypse Now).

De volta à cena que descrevíamos, a reflexão de Michael o tira dos eixos,


contudo, porque ele mesmo se sente atacado em sua posição de líder, no fundo
rebaixado ao nível do estrangeiro, do imigrante, do não-americano, do inferior, vale
dizer, da suprema escória política do século por um “clichê” ridículo, que não obstante,
mal ou bem, revela-se como uma fantasia adequada para todos os protofascistas
racistas assassinos ali presentes, que provavelmente, aliás, não escapariam à galeria de
Roberto Bolaño em La literatura nazi en América (1996), caso tivessem eles algum
dote literário. Mas Michael não sentiria tal negação desde antes? Note-se como em sua
cena de entrada ele parece ser o único que se preocupa em olhar para o aspecto
sensível do espaço e a passagem do tempo (as paredes e portas em ruína), os detalhes
da operação, a possibilidade de a estratégia falhar, ao passo que os outros pensam
enquadrados pela tela de uma fantasia totalmente ensandecida, vale dizer, por
coordenadas tipicamente capitalistas-empresariais de um espaço abstrato misturado à
ficção do wargame. Em contraste, tudo parece envelhecido e em ruína em sua mente e
ele parece sofrer não apenas a discriminação mas essa contradição entre a
autoconservação e a pulsão de matar. Sua intromissão no diálogo moral de Josh e
Terry capta as incoerências lógicas de uma empresa exterminista totalmente calculada
e sem sentido, que não deve poupar ninguém (a morte do garoto, aliás, foi pontuada

263
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

pelos diretores invisíveis do game). Ele torna-se a pura desintegração em si e por isso
parece indeciso ao final. Desgarrando-se do grupo, o líder conduz esse roteiro fantasma
ao paroxismo, atirando a esmo, assassinando o cão, os trabalhadores do caminhão de
caixões e ao término, quando sente o barco naufragar, os próprios companheiros.
Como um Coronel Kurtz das Américas, aqui vale também o lema: “Exterminate all the
brutes!” Nesse sentido, sua tentativa de suicídio leva essa lógica alucinada ao
paroxismo da desintegração como consumação de uma identidade lógica perfeita: se o
objetivo é exterminar tudo o que é “inferior” não deve sobrar ninguém, nem ele
mesmo.

Ao final, lembre-se que o encontro com a imagem mística de D. Carmelita


parece desviá-lo do suicídio. A mesma negação ocorre no contato com a doutora
Domingas. Aqui parece haver um encontro com uma razão de outra ordem, em que ele
se depara com o sentido perverso da matança: “–Por que vocês estão fazendo isso?” –
quando “isso” parece ser literalmente o nome inexplicável do inconsciente do grupo,
cindindo o Eu entre o trabalho e o crime, o valor moral e o niilismo, a lei e o gozo
perverso. Improvável mudança da rota do horror, entretanto. É fato (talvez meio real,
meio fantástico) que mesmo desarmada Domingas consegue enfrentá-lo, questioná-lo,
sem deixar de servi-lo com a mesa posta sob o fundo de “música americana”, sem
nenhum medo, reverência ou indignidade. Ela assume assim o lugar de Carmelita.
Domingas mostra o brio e a audácia de líder, combinando razão e emoção, pulsão de
vida e agressividade liberadas nesse encontro – que Michael responde com desprezo e
violência contida, mostrando a faca e virando a mesa, talvez porque tenha percebido
que ele mesmo não teria tais qualidades, nem ele nem ninguém de seu grupo. Diante
desse vazio da fantasia colonial-supremacista, Michael percebe também que Bacurau
iria resistir ao saber do sangue tirado de Kate (uma das invasoras), confirmando o
desaparecimento dos primeiros combatentes neutralizados por Damião e a esposa. Na
sequência, ele toma o lugar mais alto no lugarejo e a câmera cola-se em sua mira:
reduzido a um mero ponto, o ponto zero do olhar assassino, o lugar paradigmático de
domínio do sujeito moderno como soldado do capital15, ele passa a mirar em tudo o

15 KURZ, Robert. “A origem destrutiva do capitalismo” in:__. Os últimos combates, op. cit., p. 239-45.

264
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

que se move da forma mais selvagem e arbitrária, até aniquilar os parceiros e os


próprios planos.

Assim, foi preciso buscar onde há cisões internas para mostrar que o clichê do
puro mal encarnado contém contradições, que se resolvem pelo reforço suicida da
identidade exterminista. O que parece uma incoerência formal da obra à primeira vista
ganha o bom fundamento da comparação e do contraste entre dois tipos de
socialização moderna reais, no fundo estranhos à pasteurização dos filmes do gênero, e
que só em leituras superficiais prevalecem, reforçando o puro maniqueísmo.

Não será o mais típico do filme (que alguns classificaram como um faroeste
sertanejo) situações estranhas que desautomatizam a percepção, como nesse caso em
que o líder invasor vai ajustar as contas com uma médica, mulher lésbica, inofensiva,
sem sair nenhum tiro? Cena em que ocorre uma “conversa” que desmonta não apenas a
ideologia da democracia e da liberdade moderna, por suposto destruída desde antes
pela mera afirmação do mal radical pela tropa, mas a ideia mesma de “diálogo” entre
seres totalmente estranhos e coisificados – que no entanto interagem, pondo em cena
algo muito próximo ao fetichismo da mercadoria na sua versão mais arcaica: o ato de
“troca” original entre o colonizador europeu militarizado e o indígena colonizado,
ambos suprimíveis pela maquinaria anônima do Capital. Note-se que, de outra
perspectiva, a cena toda é irônica e praticamenteinverossímil: Domingas recebe o líder
campeão das atrocidades para uma conversa “amigável”, uma espécie de diálogo

265
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

consensual “habermasiano”, adiantando-se à crítica pequeno-burguesa que iria


lamentar a resistência armada do povoado como uma “violência bárbara”
desnecessária. Mas por fim, é claro, nenhuma troca se dá, só a agressão que confirma o
mundo (e a mesa) revirado(s) após recebida a notícia dos dois jogadores norte-
americanos postos fora do combate.

Dessa maneira, parece mais apropriado ler essa composição em que sucede o
contraste das figuras dos dois líderes como uma crítica das teorias e padrões
importados, que “colonizam” a própria obra enquanto forma mental, social e cultural
invasora, sem deixar-se reduzir a ela. Aqui, se se quiser, o lugar da crítica ao
imperialismo, de resto filtrado, negado e ausente de sua problemática central. Assim,
sua narrativa incorpora tais fórmulas e modelos para negá-los e revertê-los no seu
contrário, apontando que tudo tornou-se também uma forma abstrata em grande
escala, que é parte do despropósito do espetáculo capitalista mundial. O fato de que os
próprios moradores de Bacurau estão siderados por cenas de violência de programas
televisivos e não saem dos celulares no final, provavelmente para postar os resultados
do massacre em redes sociais, esboça uma crítica dessa sociedade da imagem
autonomizada, que engolfa a todos. Nessa linha, o “neofascismo” ou o “imperialismo”
do grupo invasor, construído dessa maneira esquemática e algo caricatural, tem a
forma dessa sociedade do espetáculo em decomposição16. Note-se então que ele está
desconectado de qualquer menção a um projeto ultranacionalista de expansão
territorial de um Estado complexo e estruturado, reduzindo-se a uma identidade
formal vazia e subordinada de mero sujeito do trabalho e do dinheiro – este o
significado de que o bando “oficialmente” não está no Brasil, obviamente

16 “O espetáculo é o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem” (DEBORD, Guy. A
sociedade do espetáculo/Comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto,
1997, p.25, § 34). Na obra original (1967), Debord dividia a lógica do espetáculo em “difuso” e
“concentrado”; mais tarde, em seus Comentários (1988), passa a falar de um “espetáculo integrado”
(ibid., p. 172-3), cujas propriedades seriam a integralização do “devir-falsificação do mundo” pela
“razão mercantil”: “a incessante renovação tecnológica, a fusão econômico-estatal, o segredo
generalizado, a mentira sem contestação e o presente perpétuo” (ibid., p. 173-175). O que aparece em
Bacurau é uma espécie de giro a mais nesse torniquete, até fazer o espetáculo integrado se
desintegrar: a identidade entre vida e imagem falsificada é praticamente total, mas a mentira e a falta
de lógica se apresentam como tais, como o puro oco do fetichismo, dando vez ao reaparecimento de
algum lastro de comunidade e memória histórica.

266
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

inserido/ocultado em suas atividades “normais” nos Estados Unidos17. No fundo dessa


ideologia supremacista transparece uma “mentalidade de ticket” liberal-fascista que
escolhe seus novos objetos intercambiáveis entre pobres e invisíveis num fim de
mundo qualquer, tidos como marginais, criminosos e improdutivos18. Algo muitíssimo
torpe e caprichoso por certo, mas é preciso lembrar – aqui o lado visionário e
inquietante do filme – que essa coisa não-identificada à sociedade do trabalho
ocidental torna-se alvo da violência abstrata numa espécie de “parque temático” que
nada tem de inverossímil, pois consiste em uma cópia fiel da virtualização do real
operada pelo novo “exército de gamers” dos países avançados, treinados por meio de
jogos e simuladores para a guerra real, incluindo-se aí, como mostram Graham e
Chamayou, os drones armados pelo novo urbanismo militar19.

É isso que há de formalismo e fantasmagoria reais em Bacurau: sua utopia


negativa desrealiza o real pela fantasia, faz convergir imagem coisificada e vida
histórica, através da simulação efetiva de um wargame. Daí o efeito de choque após a
revelação da missão monstruosa do grupo invasor, que, tudo levava a crer até ali, seria
executada sem entraves contra um povoado indefeso e aparentemente sem história. E
como desenvolvido, o esquema é destroçado por dentro quando elevado à enésima
potência de sua identidade, pois o real heterogêneo o recusa, como visto, já na mente
do próprio invasor, tal como a natureza resiste ao artifício, ambos sintetizados

17 Uma parte da crítica aplica o conceito de “imperialismo” de modo indeterminado. Não basta haver
uma tropa invasora num wargame terrorista para refundar a estratégia neocolonialista num contexto
de colapso civilizatório mundial tal como visado pelo filme. Nessas condições, um “imperialismo de
segurança e exclusão” tende a funcionar contra imigrantes, refugiados e “supérfluos” em geral, bem
como forma de garantir a confiança no dinheiro e no crédito mundial, ordenando as condições de
valorização transnacional do capital altamente ficcionalizado nas ilhas de rentabilidade do centro e da
periferia, enquanto uma “economia de saque” se difunde pelo resto sob o comando de oligarquias e
bandos armados (KURZ, Robert. Poder mundial e dinheiro mundial. Crônicas do capitalismo em
declínio. Rio de Janeiro: Consequência, 2015, p. 44 e 66). O mesmo valeria para o conceito de
“fascismo” solto de determinações históricas mais precisas. O vazio do neofascismo atual, que floresce
na crise da sociedade do trabalho, na implosão do laço social e dos projetos nacionais para grandes
maiorias, se combina com o anticomunismo difuso, o conservadorismo religioso e autoritário
tradicional, o patriotismo de fachada e o individualismo neoliberal.
18 HORKHEIMER, Max & ADORNO, Theodor W. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos.

Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p.186-194; KURZ, Robert. “A síndrome neofascista da Fortaleza Europa”
in: __. Com todo vapor ao colapso, op. cit.
19 GRAHAM, Stephen. Cidades sitiadas. (O novo urbanismo militar). São Paulo: Boitempo, 2016, Cap. 6:

“Arquipélago de parque temático”; CHAMAYOU, Grégoire. Teoria do drone. São Paulo: Cosac Naify,
2015.

267
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

simbolicamente na luta entre o drone e o bacurau, o pássaro aguerrido de hábitos


noturnos que dá nome ao povoado.

Desse modo, a caracterização “superficial” das personagens, o flerte com os


enredos da cinematografia americana, purificados até a sua projeção onírica e
fantasmagórica, são partes de uma mimese da forma social nova filtrada e esvaziada,
ali em gestação. Noutros termos, a missão atroz e a caricaturização do invasor são na
verdade a captação inteligente de uma lei de abstração real rigorosamente intensificada
na atualidade pelo neofascismo e o ultra-neoliberalismo ascendentes20. Nela
combinam-se moral do trabalho, nacionalismo branco-supremacista, identidade
narcisista, ódio sádico racial e classista, ressentimento, intolerância à frustração e
consumo de violência gratuita. Em outra reveladora cena, Terry confidencia a sua
motivação para estar ali: estava sofrendo com o término de um relacionamento,
planejava assassinar a sua ex-esposa ou promover um mass shooting. Salvo por Deus,
que sempre está acima de todos os fascistas em todos os tempos, a saída pela matança
em Bacurau aparece-lhe agora como uma maneira de canalizar os afetos violentos
eliminando um outro que ocupa a posição não maior do que um animal, uma forma
literal do que Agamben designou “vida nua”21. Em suma, ele deseja a visão
apocalíptica de um campo de extermínio “esportivo” na periferia latino-americana.
Aqui, poderíamos notar também a urgência que Pasolini insistiu na forma do novo
fascismo como um desdobramento do homem-consumidor individualista massificado.
Como insiste o autor, esse neofascismo de consumo tinha como principal trunfo o fato
de que se baseava na sedutora “imposição do hedonismo e da joie de vivre”22. Não seria
essa a posição que tais invasores assumem? Não como um traço idiossincrático,
contudo: o filme parece indicar que aquele torneio de caça que praticam como diversão
e gozo, como uma maneira de “desestressar”, é o outro lado da contabilidade e da
simulação,via capital fictício, da sociedade do trabalho integrado – aliás em empregos

20 Nesse sentido, pode-se lembrar do que diz Adorno a respeito: “A obra de arte deve absorver até
mesmo seu inimigo mais mortal, a intercambialidade; ao invés de furtar-se na concreção, deve
apresentar o contexto total de abstração através de sua própria concreção e assim resistir a ele.”
(ADORNO, Theodor W. Ästhetische Theorie. In:__. Gesammelte Schriften, Band 7. Frankfurt am
Main: Surhkamp, 1972, p. 203).
21 Cf. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer I: O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Ed. UFMG,

2014.
22 PASOLINI, Pier Paolo. Scritti corsari. Milano: Garzanti, 2013.

268
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

de merda23. Na disputa por pontos no jogo da morte, é como se simulassem operações


day trade na bolsa, literalmente queimando seus concorrentes. O êxtase diante da
possibilidade de foder e matar quem se quiser é o mesmo que atiça o casal de invasores
a transar às margens da estrada após seu primeiro fuzilamento, repetindo o que se
pode fazer também em videogames comerciais de sucesso, que já se tornaram, como
aponta Graham, um modo de “polinização” cruzada com meios militares efetivos, que
vêm treinando e recrutando seus soldados desde a infância. Noutros termos, há muito
essa fantasia atroz vem se tornando realidade através da produção de uma “cultura de
guerra permanente” por meio do entretenimento, criando o imaginário de um outro
vago, racializado, ameaçador, sub-humano e evidentemente mau24.

A sorte dos fodidos

Se a caracterização “onírica” e “superficial” das personagens é parte da forma


social nova da sociedade do trabalho e do espetáculo, ambos desintegrados, ela muda
de figura quando é investida na representação da sociedade brasileira, uma que
historicamente nunca se individuou por completo segundo os moldes ocidentais. O que
surge é uma comunidade involuntária mas ao final coesa de desgraçados e fodidos,
refugiados da admirável nova-velha catástrofe nacional, e não mais uma sociedade
desmanchada em sujeitos da concorrência burguesa e da luta de morte generalizada. O
relance sugestivo final da televisão noticiando as “execuções públicas” no Vale do
Anhangabaú em São Paulo (Brasil do Sul) apontam a queda geral da nação burguesa
em uma provável ditadura, na anomia e na destruição dos direitos liberais do
indivíduo. Entretanto, o ponto de vista hierárquico, racista e ultraindividualista da

23 “A revolução microeletrônica e a nova mídia fortaleceram uma tendência social que apaga as
fronteiras entre a existência e a aparência, entre a realidade e a simulação. (...) O homem fez de si
mesmo algo supérfluo e agora não passa de um produto simulado pela mídia. (...) Os yuppies, eles
próprios um produto da mídia, começaram a simular os critérios capitalistas de eficiência e sucesso,
em vez de cumpri-los efetivamente. Quanto maiores os investimentos em tecnologia avançada e
quanto maior a racionalização da produção e dos serviços, tanto menor é o rendimento do sistema. (...)
A essência da economia especulativa é obter um aumento fictício do valor sem respaldo em nenhum
trabalho produtivo, contando apenas com a negociação de títulos de propriedade. (...) As grandes
empresas auferem lucros monumentais não mais pelo sucesso no mercado real, mas pelas manobras
de seu setor financeiro no mercado especulativo do capital fictício. (...) O capitalismo simula a si
próprio (...) a notável ‘cultura da simulação’ nos permite supor que a realidade capitalista tornou-se
irreal. Talvez o indício mais forte do fim dessa realidade da aparência seja o fato de certos homens não
se levarem mais a sério e nem mesmo saberem se realmente ainda existem.” (KURZ, “A realidade
irreal” in:__. Os últimos combates, op. cit., p.127-134).
24GRAHAM, Cidades sitiadas, op. cit., p. 279 e ss.

269
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

canalha moral gringa não é extrínseco ao país. Ao contrário, a forma em que esses não-
indivíduos foram mirados e cancelados pelo drone e o esquadrão da morte é homóloga,
senão idêntica, à que funda a posição e a visão do prefeito e dos dois forasteiros do Sul.

A aparição de Tony Jr. como figura política caricata, quase poderíamos dizer de
uma personagem caricata de Lima Barreto ou do realismo fantástico, não impede de
revelar como as coisas realmente funcionam por aqui: como abstração e alienação
radical entre representantes e representados, segundo a forma degradada de um
espetáculo que se mostra enquanto tal. O carro de som no último, o jingle ridículo, a
pose “racional”, as promessas de campanha: um caminhão de clichês e demagogia
respondidos com a ausência e o desprezo pela comunidade. O vilarejo é tratado como
massa de manobra eleitoral, força de trabalho barata e corruptível, corpos prostituídos
e submetidos à coerção física e ao sequestro, à precariedade e à insegurança, um passo
antes de serem riscados do mapa e tornados puro lixo descartável – um fado
prenunciado pelos caixões ofertados, os livros despejados do caminhão (com direito a
filmagem!), os restos de comida vencida e os remédios que sobram para doação pelo
prefeito cara de pau. Numa transição irônica a la Star Wars (“linear wipe”), uma
paralela direta deste olhar é traçada com a visão “alienígena” do drone, que persegue
Damião em sua moto de volta para casa, assustando mais os espectadores no cinema
do que a personagem mesma, que cedo percebe estar o povoado diante de um aparelho
estranho à região. O suspense do sentido da ação, nesse início, é um dos pontos fortes
manejados pelo roteiro. É com ele também que sentimos lentamente a atmosfera nova
de uma sociedade em gestação que, diante da contradição brutal entre progresso
técnico-científico e destruição dos laços sociais comuns, iria perdendo amarras
ideológicas da superstição e da submissão natural ao existente.

Os dois brancos sulistas somados ao cortejo exterminista compartilham esse


mesmo olhar alienígena – mas nascido aqui da gema, de nosso lugar de ex-colônia. São
outros dentes da engrenagem dos “moinhos de gastar gente” nacional analisado por
Darcy Ribeiro25, com aquela mentalidade liberal-escravocrata que se envergonha do

25 “Nada é mais continuado, tampouco é tão permanente, ao longo desses cinco séculos, do que essa
classe dirigente exógena e infiel a seu povo. No afã de gastar gentes e matas, bichos e coisas para
lucrar, acabam com as florestas mais portentosas da terra. Desmontam morrarias incomensuráveis, na
busca de minerais. Erodem e arrasam terras sem conta. Gastam gente, aos milhões.// Tudo, nos

270
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

país de negros, indígenas, pardos e mestiços em que habita, como bons herdeiros de
“puros” bandeirantes ou gringos imaginários, acostumados a tratar a vida como trata o
espaço: correndo a caçar ouro e esmeraldas, índios e negros escravizados e fugidos,
mais tarde recebendo o apoio oficial das políticas de imigração e embranquecimento
populacional, e agora servindo à Gringolândia neofascista importada. Ali tratava-se da
missão de matar e passar o rodo. A indústria de caixões ganharia o dia. O prefeito
imbecil figuraria no acordo, levando dinheiro por isso, talvez para gerir o que sobrasse
após a razia, talvez apenas recebendo a tropa como “visita turística”, nesse caso
também sem saber da carnificina que ali ocorreria e que provavelmente também o
atingiria no final.

Na primeira ocasião de tensão e dissenso, entretanto, os sulistas passam para a


lista dos intrusos matáveis. A escolha da situação, do figurino e dos giros da câmera
aqui é perfeita. Numa sequência filmada em primeiro plano durante a reunião na casa-
grande, feita da altura da mesa, toda “convidativa” e toda atuada pelos gringos com o
sorriso irônico ao canto de boca, o que aliás eleva-a a uma das cenas violentíssimas
entre as mais violentas do cinema nacional dos últimos tempos, os dois brasileiros
sentem à queima-roupa as consequências da superidentificação com a opressão racista
exercida contra os outros. Prenunciam o que Michael sofrerá mais adiante. E de novo
os estereótipos são refletidos como tais. São observados por Terry através do binóculo,
que marca
assim a
distância e o
jogo de caça e
caçador ali em
vigor.

séculos, transformou-se incessantemente. Só ela, a classe dirigente, permaneceu igual a si mesma,


exercendo sua interminável hegemonia. Senhorios velhos se sucedem em senhorios novos, super-
homogêneos e solidários entre si, numa férrea união superarmada e a tudo predisposta para manter o
povo gemendo e produzindo. Não o que querem e precisam, mas o que lhes mandam produzir, na
forma que impõem, indiferentes a seu destino.” (RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e
sentido do Brasil. São Paulo: Companhia de Bolso, 2011, p. 62 e 95).

271
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

No figurino do casal recém-alçado ao mesmo patamar de assassinos do bando


ianque, como que pretendendo entrar para o jogo, a dualidade estampada de “moto-
crossfiteiros” alienados e meros serviçais chapa branca, na verdade prestes a
desaparecerem na sequência das imagens igualados aos serviçais pobres, negros e
mestiços da fazenda atacada na noite anterior pelos fascistas originais.

Ambos então são tirados ironicamente como “caubóis”, em seguida como “mexicanos
brancos”, embora o homem poderia ser tido como um “italiano” e a mulher talvez
passasse como de “origem polonesa”, mas ela tem o lábio e o nariz diferentes segundo
Terry, que entregam a sua race mixing, ou o “pé na senzala” como ainda se diria de
maneira racista no Brasil. Mero bullying, pois ambos não passam afinal de “latinos” –
e idiotas pretensiosos. Eles então se justificam como de origem europeia, vindos da
parte mais rica do país. Tremem a voz, se angustiam e baixam o olhar arrogante de
“sujeitos” com que entraram em cena. Obrigados a encarar seu ato criminoso contra os
locais, gravado do alto pelo drone e o capacete do motoqueiro, eles fogem à vista do
horror tornado espetáculo. Segundo o roteiro, eles encontraram e indicaram Bacurau
para os gringos. Mas parecem despertar: “Por que vocês estão fazendo isso?”, pergunta
a moça – a mesma questão de Damião e de Domingas, mais adiante –, momentos antes
de entrarem para a “body count” fascista. A gringa babysitter é clara: “roubaram” as
nossas mortes, tomaram a nossa posição. Michael completa o delírio acusando-os de
“assassinos” do próprio povo, aquilo que de fato eles se converteram. Sua função social
no Brasil do Sul (o homem morto é revelado como “assessor de desembargador
272
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

federal”) é alimento para se pensar as inversões reais de ordem e desordem que


estruturam o país de ponta a ponta em sua história, mas que se apresenta aqui como o
verdadeiro cerne do sistema capitalista totalizado nesse encontro mundial de
celerados. Aqui novamente, então, o jogo de ângulos e perspectivas duais, mas também
dialéticas, que dá forma à obra.

Na cena em que os primeiros americanos desgraçados são mortos esse esquema


se deixa verificar como clara inversão. A câmera observa Damião dentro da estufa, na
horizontal, no plano chamado “americano” (meio corpo): parece um pássaro negro
despreocupado, lento, nu, conversando e cuidando das plantas, em seu esconderijo;
percebendo os invasores, finge nada ver enquanto vai para dentro de casa preparar o
bacamarte.

Em seguida, o foco vai para os invasores que observam o quadro de baixo para
cima escondidos entre as pedras. Dá-se o ataque e eles põem fogo no telhado de palha
(imagem típica de um filme de guerra sobre o Vietnã como Platoon), que é respondido
com o fogo do bacamarte de Damião. Se o combinado entre os gringos era um tiro para
cada usando armas vintage, eles de fato recebem o combinado, ironicamente, direto na
cabeça. A câmera então mergulha do alto – mas sem a aparelhagem do drone – para
filmar o desespero da invasora Kate, que resta viva e apela descarregando uma arma
moderna. Ela é abatida e ocorre a mesma inversão de ângulo quando Damião e esposa
olham de cima para os olhos de Kate ferida de morte no chão: “Você quer viver ou
morrer?”; é então obrigada a traduzir as falas dos sertanejos (via telefone celular) para

273
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

implorar alguma ajuda. Aqui, fulgura o destino deste individualismo mórbido: ser
abandonada pelo seu grupo de sociopatas, depender do auxílio de dois odiosos
sertanejos velhos e nus, sangrar até morrer e terminar na posição de alien numa
enfermaria improvisada no “fim do mundo”. A ironia de tais inversões é incrível.

Em contraposição, será a vez de Lunga, Pacote e Teresa entrarem em cena,


escondidos na escola e no museu com membros da comunidade. Sem perder
totalmente a individualidade, eles passam a figurar na e como comunidade, que reage
em bloco como tal, enquanto os americanos são mais ou menos individualizados e
focados em duplas apartadas e fortemente armadas. A aceleração dos acontecimentos,
no entanto, é contrabalançada pela desaceleração, o recuo estratégico, o silêncio do
esconderijo e o contra-ataque que parte de uma raiz simbólica: da memória histórica
consolidada no museu. São dois ritmos de vida, duas velocidades de filmagem que aqui
se chocam. De modo emblemático, têm-se aqui também um dos melhores achados da
composição: o sangue de Terry nas paredes do museu como novo documento da velha
barbárie do continente.

A luta final no povoado busca fugir também ao padrão do toma-lá-dá-cá


hollywoodiano. A coisa toda acaba muito abruptamente, frustrando a expectativa de
um showdown individualizado entre as principais personagens de um lado e doutro,
possivelmente com um duelo ferrenho e cheio de tensão entre Lunga e Michael, ou
entre Teresa e Julia, Pacote e Joshua. Sem que venha de todo a se desenvolver, a luta
não chega a suscitar efetivamente – ao contrário do que tem sido dito – as emoções
catárticas que o espectador espera extrair do grand finale costumeiro de um típico
filme de ação da cultura de massas (o que definitivamente Bacurau evita ser). O clima
de tensão sem resolução é outro, pois personagens outras foram construídas em sua
exposição. Mesmo na cena de Lunga no museu, em que passa a faca no inimigo, não há
luta propriamente dita: golpeia repetidas vezes um forasteiro invisível já quase morto.
Por fim, dão cabo coletivo do último homem, numa cena propositalmente cortada de
modo seco, sem exposição. De certo modo, então, as cenas de luta não são
propriamente sequências de luta, pelo menos não do tipo habitual, a cena
hollywoodiana clássica de combate, que é alongada ao extremo e de tirar o fôlego, e
com um enquadramento um tanto distinto: a câmera sempre atrás do atirador ou do

274
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

alvo, o protagonismo por vezes passando inclusive aos projéteis disparados. Por
contraste, a cena de troca de tiros em Bacurau, quando a revanche finalmente se dá, de
dentro da escola para a rua, dura poucos segundos.

Isso nos leva adiante, ou mais precisamente para trás, antes do ataque, lá onde a
obra põe os verdadeiros núcleos de tensão pressupostos e construídos no primeiro ato.
Uma das principais qualidades de Bacurau é tocar na ferida do apartheid e da guerra
racial e interétnica, ligados ao elemento classista, que molda a história da América e do
Brasil, o suposto país cordial26. Cabanos, Palmares, Canudos, Cangaço, matanças nos
centros urbanos do Norte e do Sul formam a linha histórica contínua do “estado de
guerra” sugerida pelo filme, e que se condensa nas personagens de Lunga e Pacote.

“Lunga” (cujo verdadeiro nome é Adaílton Santos do Nascimento) é uma espécie


de ponta solta – é o primeiro nome que ouvimos no plano-sequência de abertura, mas
logo vira fumaça – que amarra muita coisa da primeira metade do filme, embora só dê
as caras no início da segunda, aliás, inicialmente surgindo vaidoso olhando-se diante
de um espelho. Isolado, contudo, sem ação. Isso decorre diretamente do apartheid e do
estado de guerra ali reinantes. Há quatro meses foragido com seu bando e vivendo em
condições bastante adversas numa represa abandonada (“A gente tá aqui feito a bicha
do Che Guevara passando fome nesta merda”), o seu retorno a Bacurau traz uma
energia nova à comunidade, que dali adiante entrará em clima de preparação
psicológica e material para a luta.

Interessante aqui é a forma com que a câmera aborda o reencontro de Pacote


com Lunga e seu grupo, nas primeiras cenas em que este aparece, no início da segunda
metade do filme: a técnica usada é, aqui também, a dioptria cindida (os dois planos em
foco, simultaneamente), o ângulo é de baixo e vem de Pacote (que traz no carro os
companheiros mortos), enquanto Lunga o observa de cima da torre, qual fosse um
legionário vigilante da comunidade e de toda a região.

26 RIBEIRO, O povo brasileiro, op. cit., p. 152.

275
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Outro detalhe capital da cena: o encontro dos dois criminosos famigerados, a


reunião dos representantes do polo da desordem, inverte-se daí em diante na procura
de uma nova ordem comunitária para fazer frente à invasão estrangeira, a figura da
verdadeira desordem travestida de ordem, a ordem apodrecida da sociedade do
trabalho e do capitalismo em fim de linha. Em cena, ainda, duas personagens cujos
corpos claramente quebram os estereótipos do bandido e do marginal construídos pela
cultura: um aparente bom moço família de um lado (e que se aproxima de Teresa), um
indivíduo queer (não-heteronormativo) do outro, menos um arquétipo do jagunço ou
do cangaceiro bruto do que uma criatura ambígua, frágil-angelical e inflexível, vivendo
escondida na torre de vigia, com fome, sem poder de fogo real e sem se dobrar ao
serviço de coronéis locais. Na verdade, ambas personagens complexas, sob tensão
interior e exterior, e com um elemento enigmático, misto de fantasia e realidade
humana encarnada. Vê-se aqui como a obra se debate contra o lugar-comum. Tal como
a bela caatinga desnuda-se surpreendentemente verde sob a chuva e os inselbergs
ensolarados (reminiscência alusiva ao “sertão vai virar mar” de Glauber?), ambas as
personagens fazem despontar traços populares novos, avessos à pasteurização e
tendentes a escapar do próprio “inconsciente ótico27 consolidado pela cinematografia

27 Walter Benjamin teorizou o cinema como uma possibilidade de apresentar “um aspecto da realidade
livre de qualquer manipulação pelos aparelhos, precisamente graças ao procedimento de penetrar,

276
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

do sertão e do cangaço brasileira28. A figura extraordinária de Lunga aqui excede a de


todos. Após matar a fome no vilarejo, ele e seus companheiros enterram os mortos do
dia anterior, numa cena cheia de simbolismo literalizado contido neste ato: não
retornar para brilhar e empilhar corpos, mas vir para abrir covas, enterrar gente e
organizar a resistência. À noite, mais três mortes. Num primeiro momento, assim:
mais pás do que armas; e antes, esconderijos, estratégia. Mas algo da mesma
intensidade de imagem, condensação de todo um tempo histórico profundo da
experiência periférica, pode ser vista na cena da correria de Pacote em puro desespero
humano com os dois cadáveres baleados no banco de trás do carro – sob a música de
Geraldo Vandré feita para A hora e a vez de Augusto Matraga (1965), de Roberto
Santos, prenunciando assim uma espécie de ressurreição e revanche:

“Tanta vida pra viver


tanta vida a se acabar
Com tanto pra se fazer
com tanto pra se salvar,
Você que não me entendeu
não perde por esperar”.
Sequência expressiva que se une às cenas anteriores em que Pacote se mostrava
pensativo e apreensivo diante da notícia dos cavalos soltos à noite, do ataque ao
caminhão-pipa e da chegada dos dois forasteiros. Aqui a cadeia metonímica que
assinala a morte ligando os furos das balas, os cavalos e os dois carros que atravessam
a mesma paisagem de guerra, os cadáveres baleados, a perda da água e do sangue da
vida no chão que se encharca de morte, tal como do caixão de Carmelita saía água aos

com os aparelhos, no âmago da realidade” (BENJAMIN, Walter, “A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica” in:__. Obras escolhidas, vol. 1. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 187). Assim,
com as técnicas de figuração e montagem, a câmera nos abre, “pela primeira vez, a experiência do
inconsciente ótico, do mesmo modo que a psicanálise nos abre a experiência do inconsciente pulsional.
De resto, existem entre os dois inconscientes as relações mais estreitas. Pois os múltiplos aspectos que
o aparelho pode registrar da realidade situam-se em grande parte fora do espectro de uma percepção
sensível normal. (...) a percepção do público se apropria dos modos de percepção do psicótico ou do
sonhador” (ibid., p. 189).
28 Sobre a tópica do cangaceiro e do bandido social no cinema brasileiro, ver: BERNARDET, Jean-

Claude. Brasil em tempo de cinema. (Ensaio sobre o cinema brasileiro de 1958 a 1966). São Paulo:
Companhia das Letras, 2007, p. 59-61; XAVIER, Ismail. “O cinema brasileiro dos anos 90” in:
MENDES, Adailton (org.). Ismail Xavier - Encontros. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009, p. 134 e
ss.; Idem, “O dragão da maldade contra o santo guerreiro: mito e simulacro na crise do messianismo
in:__. Alegorias do subdesenvolvimento, op. cit., p. 264-312.

277
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

olhos psiquicamente alterados de Teresa. Sim, o matador Acácio grita e dialoga com os
mortos, como se pudesse ressuscitá-los, como se pudesse fazer voltar a ação no tempo,
como se tivesse o poder de reparar e anular toda uma vida coletiva malograda. A
mesma intensidade se dá na belíssima cena de Damião em seu rancho, talvez a mais
bela cena do longa, cultivando nu as suas plantas e psicotrópicos, em uma calmaria
reflexiva matuta, noutro diálogo “impossível” com a natureza (pássaros cantam ao
fundo), ele mesmo meio pássaro, meio gente, sob o cheiro de barro molhado, lenha
queimando e felicidade no sexo, antes da tempestade de chumbo da qual ele e esposa
saem por cima. Não à toa, é o que mais parece gerar repulsa ao invasor (“Por que ele
tem de ser tão velho? E pelado?”)

Voltando a Lunga e Pacote, note-se que eles reconfiguram a ideia cinemanovista


do “bandido social”. Assim, Lunga também encarna muitas das contradições daquele
universo: é bicha louca e cabra macho (uma donzela guerreira, a la Diadorim29, chega
em Bacurau sem camisa, com aplicativo no cabelo e coturno); letrado (“Cê escreve
muito bem, Lunga”, lhe diz Plínio, “não devia ter parado!”) e salteador, espécie de
Robin Hood sertanejo; atilado e vigilante (é uma das cabeças da organização da
resistência) mas também cruento (corta a cabeça dos invasores e sai de dentro do
museu coberto de sangue, numa cena que evoca aliás a personagem de Willard
emergindo do templo
cambojano após
matar o Coronel
Kurtz em Apocalypse
Now!)...

29Lembrando que também Diadorim/Deodorina “é uma experiência reversível que une fasto e nefasto,
lícito e ilícito, sendo ele próprio duplo na sua condição” (CANDIDO, Antonio. “O homem dos avessos”
in: __. Tese e antítese. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006, p. 115).

278
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Observe-se ainda como o nome de guerra Lunga é uma possível referência às


comunidades Kalunga, quilombolas que existem há mais de 250 anos, de ascendência
africana e indígena mista, constituídas em grande parte por descendentes de escravos
fugitivos. De resto, as referências ao trabalho dos sertanejos, a Lampião e à resistência,
na verdade índice da resistência da história social que não deixa apagar seus rastros
nas ruínas do presente, aparecem no museu e na escola do povoado, onde fica a
biblioteca. Não por acaso será destes dois pontos específicos que o contragolpe
comunitário partirá. O uso do psicotrópico natural funciona como um salto nessa
corrente profunda do tempo, em que a história passa na natureza e a natureza se
converte em história, quebrando o pacto realista.

A capoeira jogada por uma roda heterogênea de pessoas marca essa emergência
viva – cortada no entanto pelos sons sintéticos de “Night”, de John Carpenter. Aqui,
outra mostra do choque de forças, que atravessa a obra como forma. Na cena da
partilha das doações – outro exemplo notável por configurar um tipo de comunismo
(“a cada um segundo suas necessidades”) sem supressão de liberdades (quem quiser
usar o remédio, adverte Domingas, “que use, mas está avisado”) e no qual apela-se ao
uso da consciência individual em nome do bem comum –, um contraste é estabelecido
entre, de um lado, o “forte psicotrópico” ingerido ato contínuo pela gente de Bacurau e
o fármaco tarja-preta, consumido massivamente no Brasil atual. Enquanto aquele
expande os sentidos, promovendo o senso de comunidade, intensificando a libido e, no
momento decisivo, fornecendo a impavidez necessária à dureza do combate, o remédio
controlado, “um inibidor do humor disfarçado de analgésico forte”, anestesia todos
esses afetos. Esta dupla visão da droga é vislumbrada na obra de um Aldous Huxley, na
qual, embora figure sempre como fator de unificação essencial à comunidade, adquire
conotações distintas segundo a situação: no Admirável mundo novo (distopia), ela tem
função de conformar o indivíduo ao status quo, a fazer com que aquiesça com o destino
social do qual não pode escapar, ao passo que no último romance, A ilha (utopia), tem
que ver com o alargamento da percepção e desperta nos usuários os sentimentos mais
nobres. Num caso, ela é peça fundamental no processo de robotização da
personalidade, fomentando a adesão cega ao existente, no outro, ela agencia
justamente o contrário – é vetor humano de comunhão, desejo de ruptura e superação.

279
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Mais à frente, como dito, o revide fulminante é curto, eficaz, sem qualquer
deleite ou catarse especial, quebrando o pacto formal com os americanismos do
gênero. A única hybris fica por conta de Lunga que cumpre o script alegórico da
“vingança cangaceira”, com seu necessário momento sanguinolento e não-angelical,
sustentando a legitimidade do acerto de contas dos esbulhados postos fora-da-lei.
Pouca vibração também quanto ao destino funesto do prefeito, que se confronta com
Pacote e o resto: boca chacoalhada e tampada, olhos vendados por uma máscara de
monstro, nu e expulso como um bode expiatório. Mas algo mais surge desse ato em
nome de uma defesa coletiva. Pois tirada desse buraco mais fundo da história da
opressão colonial como estado de exceção permanente (um buraco que lembra aliás as
táticas da guerrilha vietcongue), tais personagens não terminariam justamente pondo
em xeque a reversibilidade brasileira da ordem e da desordem identificadas mais de
uma vez por Candido (e seguido por Roberto Schwarz e Paulo Arantes30)? Pois, como
viemos apontando ao longo deste ensaio, a ação toda tem um claro ponto de fuga que
inverte completamente o sinal da “ordem social” desenvolvida, virando do avesso os
polos da ordem e da desordem aparentes, imantados em torno do critério fetichista
naturalmente estabelecido pelo valor e o trabalho social abstrato. É essa inversão
impensável, aliás, que mais tem incomodado os críticos liberais ou marxistas-leninistas
tradicionais, que acusam o filme de aderir ao “mito do cangaço” ou de Lampião. O

30 Candido foi dos primeiros a notar as implicações estruturais internalizadas pelas grandes obras
nacionais, obras de um país gerido sob o ritmo pendular de norma e contravenção, o que ele
descobrira em Manuel Antônio de Almeida (Memórias de um sargento de milícias, analisada em
“Dialética da malandragem”, op. cit.), mas que em verdade já comparecia, por exemplo, no “mundo
muito misturado” da ficção de Guimarães Rosa, também ele imantado por “um princípio de
reversibilidade” de contrários, que deixava, por exemplo, “a geografia deslizar para o símbolo e o
mistério”, “o jagunço oscilar entre o cavaleiro-soldado e o bandido”, “a mulher e o homem”, numa
longa série de interversões do mesmo no outro, que se universaliza. E é esse mesmo “sentimento de
contrários” que retorna no clássico “Esquema de Machado de Assis”, seja na “reversibilidade entre a
razão e a loucura”, seja no “contraste entre a normalidade social dos fatos e a sua anormalidade
essencial” (CANDIDO, Antonio. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970).Por fim, é isso o que
numa chave materialista totalizada por nosso tempo parece remeter às formas do estado de exceção
generalizado do capitalismo brasileiro, cuja dinâmica local informa sobre o processo mundial,
principalmente após a virada de 1848, as práticas do neocolonialismo e a marcha batida que foi dar no
“apocalipse nazi”. Esses foram os pontos sugeridos pelas análises de Roberto SCHWARZ, tomando a
volubilidade e as imposturas de Brás Cubas como orientação e depoimento formal (Um mestre na
periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades, 1990) e Paulo ARANTES,
costurando as linhas dialéticas da “dualidade estrutural” da formação nacional (O sentimento da
dialética na experiência intelectual brasileira. (Dialética e dualidade segundo Antonio Candido e
Roberto Schwarz). São Paulo: Paz e Terra, 1992; Idem, O novo tempo do mundo e outros estudos
sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo, 2014).

280
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

filme assim se decidiria fechando-se em Lunga enquanto protagonista, foco moral ou


suposto mito de refundação da suposta “nação”. Mas como vimos, feita em pedaços,
enquanto a simples constatação da miscelânea de objetos acumulados no Museu
Histórico de Bacurau refuta essa visão ideológica e reificada: o que se observa
concretamente são móveis, santuários, enxadas e outros instrumentos de lavoura,
celas, máquinas de costura, telhas e peças de artesanato, armas e crânios do gado
morto, notícias e fotografias do povo sofrido, a história do cangaço e das secas
periódicas destrutivas no local – uma história inteira forjada pelo trabalho árduo de
gerações de famílias estropiadas submetidas ao poder do latifúndio. Lunga no entanto
não é cangaceiro, nem jagunço. Não está a serviço de coronéis, que há muito no Brasil
real também se transformaram noutra coisa, talvez nos proprietários-bandidos que
açambarcaram o rio local em conluio com o prefeito, e que todos ali têm como
inimigos. Ao contrário, portanto, Lunga é apenas mais um estropiado e marginalizado
desse longo processo de integração excludente, com a cabeça posta a prêmio pelo Brasil
do Sul.
Quando Terry entra no Museu, ele observa atentamente os documentos dessa
história de trabalho, miséria e espoliação. Furta uma peça (um pássaro de madeira) e
experimenta um par de óculos do homem local: maneira astuta de indicar uma
inversão do ponto de vista, que dá forma e estrutura o movimento do filme de ponta a
ponta. Ele muda de ritmo, o filme silencia, se desacelera. O mesmo sujeito que utilizou
o binóculo contra os forasteiros brasileiros agora se subordina à visão local dos
sujeitados!

281
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Quando é abatido por Lunga, ao final, a imagem dos decapitados do cangaço


surge dessa inversão de perspectiva. Se em Bacurau o cangaço passou, está inscrito no
Museu, então a invasão repõe uma história violenta que nunca cessou de se escrever. O
que se converte em novo símbolo desse real sangrento agora a ser inscrito em suas
próprias paredes (“exatamente do jeito que tá, infelizmente”).

A não individuação plena dos caracteres nesse final, ou como se vê no trajeto


didático de Teresa desde sua entrada em Bacurau até sua lenta dissolução nessa
comunidade relaxada dos rigores morais repressivos do trabalho e da religião, aqui
mostra sua substância produtiva e possibilidade emancipatória, que não apaga de todo
a noção de individualidade, mas a suspende em ideias práticas de comunidade –
quando se tem de lutar pela vida e a liberdade através da solidariedade. Nesse ponto
crucial, chocam-se as duas desmedidas da realidade existente: de um lado a
deformação fetichista da gangue assassina, de outro a associação ideal-real de homens
livres e sem senhores. Esse o ponto de virada ao avesso de Acácio/Pacote e
Adaílton/Lunga. Essa dialética resolve-se aqui então constituindo uma espécie de novo
sujeito coletivo, uma comunidade de resistência e de reprodução autogestionária, que
reenvia simbolicamente à história tracejada de resistência da nação invisível à
dominação do Capital31. Não um “sujeito revolucionário”, como alguns imaginaram,
mas a ideia de uma comunidade plural sitiada que se fixa ao território e recusa a
mobilidade abstrata do trabalho, constituindo-se por um átimo, através da câmara do
tempo ficcional, como cidade “autônoma” e “espaço diferencial”. Como toda cidade
histórica e forma urbana virtual: em torno de seus mortos, dos marcos simbólicos

31 Aqui um paralelo possível com uma obra-prima de Akira Kurosawa, Os sete samurais (1954). Num
país dilacerado pela guerra civil (no período conhecido como Sengoku) uma aldeia de camponeses
pobres pede ajuda a um grupo esfaimado de samurais sem mestre (ronin) para defender o vilarejo de
um bando de bandidos sanguinários que planeja atacá-los para roubar-lhes a colheita, deixando atrás
de si o costumeiro lastro de assassinatos, estupros e terra queimada. Renegados e abnegados –
engajando-se numa guerra difícil de ser vencida, que não lhes trará nem dinheiro nem glória –, os
samurais aos poucos constituem com os aldeões uma comunidade plebeia em luta contra a força
invasora daninha. Deduz-se que não há salvação sem solidariedade e a força do coletivo: “Ao proteger
os outros”, diz um dos samurais, o simpático Kambei Shimada, “você se salva a si mesmo. Se você só
pensa em si mesmo, você só vai se autodestruir.” A estratégia de luta também é reminiscente da usada
em Bacurau: “O inimigo”, diz ainda Kambei, “deve ser atraído para dentro. Para que possamos atacá-
lo. Se apenas nos defendermos, perdemos a guerra.” Para além do enredo, no plano da sintaxe
cinematográfica, as transições (wipes) de Bacurau são seguramente uma referência (homenagem) ao
mestre japonês, que consagrou a técnica.

282
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

espaciais de sua memória, das práticas insurgentes do uso contra a homogeneização


estatal-capitalista.32

É por isso também que a remissão alegórica não à figura mítica mas ao destino
histórico do bando de Lampião (que os mais ligeiros quiseram ainda associar, em tom
geral, com o cine violência de Tarantino) parece-nos um tanto ambivalente e fora da
pista correta quando se examina a ocupação do sítio, o Museu e o que é
verdadeiramente encenado principalmente neste epílogo: note-se que quem veio
vaidoso para massacrar e tem as cabeças cortadas é o bando ianque (que assume assim
o lugar dos míticos bandidos-assaltantes do sertão, ou, noutra referência críptica, o do
grande tubarão-branco de Jaws, nesse mar extinto no meio do sertão), enquanto
Lunga e Pacote mais ou menos se dissolvem integrados na defesa coletiva da vida por
uma comunidade em luto pelos seus mortos, recordados em forma de lista narrada ao
final – uma comunidade dos pássaros cinzentos aguerridos que podem então sair de
seus buracos e ganhar a luz. Um fim incomum, estranhamente lutoso e utópico.

32 LEFEBVRE, Henri. La production de l’espace. Paris: Anthopos, 1974, especialmente, “VI. Des
contradictions de l’espace a l’espace différentiel”; MUMFORD, Lewis. A cidade na história. (Suas
origens, transformações e perspectivas). São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 1-64.

283
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

A imagem é dialética: a alusão aqui é ao mais famoso quadro da série Retirantes


de Portinari, com a família migrante e os pássaros da morte sendo substituídos pelos
bacuraus no céu e a comunidade armada, defendendo sua posição e sua memória
histórica, obrigando Michael a entrar no buraco meio bunker nazista, meio cripta
faraônica. Fascistas não mudam, não se convertem (“Nós matamos mais gente do que
imaginam”, diz Michael), mas a comunidade de “supérfluos” e “improdutivos” sim,
passou pela morte e se reintegrou através dessa luta.

Um desfecho lógico memorável: a comunidade dos retirantes-sitiados do sertão


põe o prefeito Tony para correr (e provavelmente morrer) em seu retiro na caatinga
espinhenta, ao passo que o líder enterrado vivo do bando soberano grita de seu
mausoléu eterno a verdadeira moral da resistência: “This is only the beginning!”.

Pode recomeçar então o belíssimo tema da vingança de Matraga cantado por


Vandré:

“Vim aqui só pra dizer,


Ninguém há de me calar.
Se alguém tem que morrer
Que seja pra melhorar.”
[...]
“Você que não me entendeu
não perde por esperar”.

4- Estética e política: cenas de um novo tempo do mundo?

Este desfecho lógico redondo, desenhando a perfeita inversão das perspectivas


em conflito entre mundial e local, alto e baixo, ordem e desordem, sujeito e objeto etc.,
que tratorou o filme desde o início, pode enganar os incautos prestes ao esquecimento
do problema da reprodução da vida naquele canto obscuro no fim do mundo. O núcleo
de “romantismo revolucionário” desse fim, desde o início aninhado nas fortes
dicotomias e no esquematismo alegorizante da caracterização dos inimigos, não
deveria obliterar que o problema fundamental da reprodução social após o combate

284
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

tenderia a se agravar em tais circunstâncias; que a comunidade “regenerada”


continuará na miséria e na gestão da miséria caso permanecer isolada, senão destruída
– mais ainda quando o próprio prefeito avisa que o povoado “vai virar cinza!” (e não
mar!); que a resistência armada é apenas violência manifesta de uma contraviolência
defensiva fundamental, relacionada ao bando de assassinos, sob as coerções de uma
“história natural” catastrófica; enfim, que a grande questão lançada pela obra é a da
recomposição da comunidade autogerida no contexto da falência da sociedade
complexa, ainda moldada pelo poder capitalista hegemônico. O fato de que o enredo
não desenvolve estas linhas fortes de maneira completa pode ser um mérito, apenas
sugerindo esse rol de problemas, ou um defeito, se se pensar que ele deixou pouco
evidente em seu percurso a questão da produção e da reprodução social nessa situação
de calamidade, subordinando-se à expectativa do ataque e à forma importada do
western e do thriller de ação. Bacurau pressupõe logicamente essa substância social
mais complexa, mas que ganha pouca forma, ou antes, não ganharia o centro da
questão formal, nem desenvolveria todo seu potencial narrativo.

Assim, talvez, algumas coisas tenham ficado muito mais subentendidas do que
deveriam, mais do que o sentido da obra mesmo parece requerer: onde está por
exemplo a vida produtiva do povoado? Há conflitos de terra? Vimos que sim, na
disputa pela água – mas então por que Bacurau parece cristalizar na mente dos
espectadores a imagem de um invasor exclusivamente externo? Quem domina a
represa e qual a sua relação com o prefeito? Por outro lado, ainda, a nova divisão inter-
regional do trabalho e as relações entre os dois Brasis podem ser resumidas ao
preconceito, à animosidade ou à indiferença do encontro de dois grupos
representativos de cada lado? O Nordeste excluído da federação sugere, ao contrário,
um verdadeiro colapso iminente, a impossibilidade mesma da reprodução dessa parte
mais pobre do país. São questões importantes que remetem a reflexão das formas para
os materiais em bruto, às vezes pouco visados, subestimados ou menos trabalhados
pela obra.

Mas não haveria algo de abstrato e impreciso em tais considerações? Pois logo
vêm à mente as cenas de uma vida que se reproduz num contexto de negação da
sociedade do trabalho e suas coerções: na escola e sua biblioteca, no museu, na

285
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

enfermaria etc., em que veremos então que Plínio e a professora ensinam por meio da
cooperação e pedagogias ativas, os velhos livros parecem ordenados e abertos ao uso
coletivo, a coordenadora do museu demonstra viva consciência histórica ao incorporar
o rastro de sangue como novo testemunho, a doutora Domingas cuida dos necessitados
de maneira humanizada e gratuita, com o auxílio dos remédios e vacinas trazidos por
Teresa... não por acaso, também, as sequências mais fortes nos pareceram aquelas em
que há a presença intensa de personagens em atividade, confrontando as exigências da
vida e lidando com o choque do imprevisto: Damião cultivando suas plantas e
enfrentando a invasão, Pacote ao volante do jipe desesperado, Lunga e seu bando de
cachorros mortos e famintos, cavando buracos para enterrar as vítimas e os algozes,
Teresa não fugindo ao olhar dos corpos dos assaltantes no chão durante o cortejo final
que lembra os mortos do povoado em geral etc. Meio por acaso, outra ponta solta entre
tantas, ficamos sabendo que a comunidade – tal um novo quilombo – vem recebendo
cada dia mais “refugiados” da grande cidade como Teresa (que não deixa de estar
referenciada nas “migrações de retorno” que marcam o país desde os anos 1980), mas
não sabemos exatamente por quê, quem são, o que farão ali para sobreviver, assim
como não sabemos a verdadeira situação política e econômica do país cindido. Com o
que o povoado ganha ares de um projeto de comunidade autogerida utópica,
entrevendo-se e subentendendo-se, contudo, que é no campo das mediações sociais
práticas que algo ali se reproduz, e não a partir de meras ideias.

Nesse ponto, então, invertendo do conteúdo para a forma, poderíamos ver aí


alguma carência de ousadia formal? Notamos atrás como este contexto rico de
conteúdos e relações precisa ser deduzido pelo espectador, muitas coisas vindo à tona
somente depois de um remoer contínuo. Dessa perspectiva faltaria a clareza e a força
de determinação formal das grandes obras, embora a obscuridade ou o elo nebuloso
em si não sejam imperfeições, bem ao contrário quando tornam-se o contrapeso do
falso didatismo (travestindo um moralismo tacanho) ou da violência da representação
exaustiva, que poda a reflexão crítica e autônoma. Basta perceber como, por outro lado,
o próprio filme se assenta na ideia da alienação radical, do esquecimento e da anulação
de uma parte da sociedade e seu espaço, que sobrevive em certo sentido do seu
segredo, de sua ocultação e criatividade. A recusa em esclarecer todos os elos diz

286
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

respeito a essa ordem de coisas inconclusivas, transferindo nossa análise para o


conteúdo sedimentado em forma, que pouco tem a ver com a reprodução da “fachada
normal”.

Assim, seria um erro canhestro pensar Bacurau dentro de normas estéticas de


um pacto realista naturalizado, que também naturalizaria a violência como condição
política e chave da práxis política em geral. A missão atroz é absurda, a defesa
necessária e o excesso da reação compreensível, mas nada justifica tirar daqui um
modelo literal, como alertava a placa alusiva ao ano simbólico de uma revolução
(“Bacurau 17 km - Se for, vá em paz”), que todos conhecemos como processo árduo e
mesmo assim malogrado. Daqui se infere também o lance “mágico” do forte
psicotrópico33 que quebra a continuidade e suspende os fatos da superfície para um
plano histórico alternativo – sugerindo traços de construção de uma verdade para além
da representação realista clássica, o que evidentemente gerou os maiores filmes
contemporâneos (para ficar com a prata da casa, Glauber e o Cinema Novo), relegando
definitivamente o realismo documental e o reino do espelhismo para outros meios. Ao
quebrar a fachada através da ficção, a obra nos introduz na verdade do “Real”
traumático de uma formação social, naquilo que Dunker denominou “violência Real”, e
que se tornaria condição de uma “oniropolítica”: um regime de suspensão de
identidades, dualismos e sentidos dados, a “descoberta do estrangeiro em nós”,
convidando à reinserção de um “fragmento de reparação ou de suplemento dessa
experiência” traumática34. O retorno de Teresa para o funeral da avó Carmelita, tal
como o retorno de Pacote, Lunga e outros à vida comum no povoado têm esse valor
simbólico de reparação e passagem. Dito de modo abrupto: Bacurau é forte por
assinalar o oco do fetichismo mundial da mercadoria e seu espetáculo terminal, o véu

33 Assim ganha outro sentido a última fala de Plínio, dita em tom irônico e acusando o excesso do real
(“–A gente tá sob um poderoso psicotrópico… e você vai morrer”), em resposta à ameaça terrorista do
prefeito – ameaça cujo teor é uma outra enormidade: “–Isso aqui é um rabo de foguete que vocês estão
se metendo… Esse povo é gente importante. O problema da água a gente resolve? Resolve... agora, isso
aqui, isso aqui não vai ficar barato não, Lunga! … Eu mesmo vou morrer por causa disso… isso aqui em
menos de 24 horas vai virar cinza!”). Sem o efeito coletivo permanente do “poderoso psicotrópico”
parece que será impossível sobreviver à repressão anunciada...
34 DUNKER, Christian. “Oniropolítica: alegorias da violência no Brasil contemporâneo”, Blog da

Boitempo, 07/10/2019. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2019/10/07/oniropolitica-


alegorias-da-violencia-no-brasil-contemporaneo/ (Acesso em 30/04/20).

287
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

de um horror inominável – que qualquer representação dita “racional” ou “concreta”


faria o desserviço de domesticar, ao mesmo tempo em que traz à tona um inconsciente
ótico de sonhos, fantasias, a história dos desejos que nos habitam.

Dito isso, tornar-se-ia um defeito entretanto se o filme causasse identificação (e


se este for mesmo o caso), obscurecendo a própria forma criada e implementada. Nesse
caso, ele procura fazer a crítica do padrão americano por uma estratégia de mimese de
convenções levadas à exaustão (superidentificação), mas, mesmo que modulado pelo
pastiche crítico, a alusão, a citação e a ironia, tenderia a colar-se às vezes
excessivamente ao programa narrativo alheio, deixando relações sociais da
problemática brasileira quase inexploradas e um pouco de fora, como se a forma
tematizada pela cinematografia brasileira anterior tivesse dado conta do recado. Isso
não é um “defeito” que rebaixe a boa qualidade artística do filme, mas apontaria como
a obra introduz matérias explosivas que ela mesmo não aproveitaria formalmente de
maneira plena.

Ou sua ousadia formal estaria criada por essa estratégia de emulação específica
conduzida até a corrupção e a demolição de seus próprios critérios internos? Sem
dúvida, este é o ponto mais forte e cativante de Bacurau, quando se interpreta
formalmente suas cenas: por via do filme de gênero e suas imitações ele atrai um
público diversificado, diverte sem cair na corrente pop, prende o interesse e engendra
todo um novo diálogo público com grande potencial de se tornar crítico ao longo do
tempo; a superidentificação com o Real abre caminho, nesse caso, para uma espécie de
desidentificação geral, inclusive com os equacionamentos e as saídas propostas pela
esquerda e o marxismo tradicionais; e ainda, se estivermos corretos, inova reatando
laços com a linha de obras brasileiras que pensaram questões fundamentais da
formação periférica (a dialética de ordem e desordem, local e mundial, sujeito e objeto
etc.). Aqui, como também meramente indicamos como hipótese de estudo, num
registro negativo ao propor uma “saída” estética (que jamais pode ser confundida com
uma saída político-ideológica) que havia sido descartada pelos artistas depois do
recrudescimento da repressão da Ditadura ou colocada em dúvida após a frágil

288
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

reconstrução da democracia sob a hegemonia neoliberal35: uma via pós-individualista


neste cenário imaginado novo, a fantasia exata de um colapso da modernização em
curso na qual o expulso e o desintegrado, o que se tornou mais ou menos supérfluo e
inútil para os fins da acumulação, entraria em um novo arranjo na luta pela autonomia,
embora talvez ali mesmo condenado à repressão pelas forças da ordem excepcional
prevalecente, tal como ameaça o prefeito na sua última fala.

Desse ângulo de análise, portanto, o filme tende a comportar um outro sentido:


trata-se efetivamente da imaginação de cenas de um mundo pós-colapsado, de um
cenário fragmentado pleno de negações e de pontas soltas, inconclusivas, e não de
uma “representação fidedigna da vida cotidiana”, baseada em “tipos sociais”
conhecidos de uma sociedade orientada para um futuro teleologicamente superior.
Através deste cenário lógico de desintegração, na base da experimentação subjacente a
essa imaginação negativa, surge uma forma atípica de agir comunitário que promete
se desenvolver utopicamente entre os escombros da modernização em declínio – que é
a tendência dominante e que o filme não esconde.

A ideia silenciosa que brilha no horizonte, pressuposta e inquietante para


muitos, não é a emancipação por forças produtivas superdesenvolvidas garantidoras de
um reino da abundância sob o controle de uma camarilha de celerados que continua a
tarefa da dominação sob o ritmo de uma cega segunda natureza – mas a ideia
subversiva de como fazer novas relações sociais com um mundo técnico e natural já
disponível.

Notícias desse futuro de ficção científica: a ruína alegórica acumulada e


enterrada na cena final não valerá de nada se não servir para abrir caminho entre as
ruínas do presente. Este o nosso objeto não identificado.

35 Nesse sentido, o filme reata com algo da conjuntura do pré-1964, o elã do “bandido social” com traços
de vingador protorrevolucionário de obras como Deus e o diabo na terra do sol, lançado por Glauber
Rocha em 1964, desviando-se porém de seu horizonte cristão salvacionista num mesmo movimento
em que configura, por meios estéticos muito mais tradicionais, o “sertão como inferno” e a “nação
como miragem”, reengendrando a crítica do populismo da produção glauberiana posterior a 1964, e
que, por outro lado ainda, passa além das alegorias da derrota (às vezes travestidas de massa crítica) e
das tramas do individualismo de massas, do brutalismo da criminalidade e da violência urbanas, do
ressentimento e da vingança do homem isolado, muito ligadas à filmografia nacional mais recente
(Ver: XAVIER, Alegorias do subdesenvolvimento, op. cit., p.7-60; Idem, Ismail Xavier - Encontros,
op. cit., p. 153-173; Idem, O cinema brasileiro moderno. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001, p. 127 e
ss.).

289
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

VELHAS NOVIDADES ALEGÓRICAS


DO RECIFE

Frederico Lyra1

Se quiséssemos reduzir a cidade às suas instituições fundamentais diríamos que


o essencial nela são as igrejas (evangélicas ou católicas) e as farmácias2. Perde-se fácil a
conta devido ao excesso, mas é certo que o visitante encontrará pelo caminho uma
encruzilhada qualquer onde os seus quatro cantos são ocupados por farmácias. É
visível que boa parte das casas comumente derrubadas ao longo dos últimos anos agora
nem mais prédio se tornam, mas sim estacionamento; uma parte significativa desses
são estacionamentos de igrejas evangélicas – é possível que os estacionamentos
assumam em breve o posto de terceiro pilar fundamental das cidades. As
transformações de casas em estacionamento é espetáculo de pura destruição. Assistir à
demolição de várias casas antigas já era bastante triste, mas é pior quando as ruínas se
transformam em nada. Outro fato interessante foi ver as antigas igrejas católicas mais
cheias que antigamente, sobretudo as do centro da cidade (é verdade isso pode ter sido
só uma impressão). Nos dois casos, nas igrejas católicas e evangélicas, sempre havia
muitos idosos e, claro, muitos jovens. Por outro lado, a demanda de medicamentos era
tanta que uma farmácia estava testando um aplicativo de celular. Outra oferecia um
“kit de ano novo” contra a ressaca que misturava, entre outras coisas, engov, guaraná,
vitaminas e paracetamol. Tive também a sorte de assistir uma propaganda de engov na
televisão. A ressaca pelo jeito não vai acabar nunca, ela é o estado comum. A
embriaguês é a norma, ninguém mais consegue ficar sem medicação.

Se as igrejas e farmácias constituem o binômio institucional, o binômio


relacional que parece estruturar a vida social da cidade talvez seja: porteiro ↔

1 O que segue são comentários e divagações feitos a partir de notas tomadas durante viagem para a
cidade do Recife (Olinda e Paulista) entre dezembro de 2019 e janeiro de 2020. Isto é, notas de casa.
2 Ver : Côrtes, Mariana. O Diabo e a Fluoxetina. Pentecostalismo e psiquiatria na gestão da diferença.
Curitiba, Appris, 2017.

290
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

entregador. Controle de fluxo e movimento infinito. Não dá para imaginar a vida sem
alguém para entregar o que quer que seja, e sem alguém para liberar a entrada ou
interfonar para alguém vir buscar a encomenda. O encontro dos dois pólos é
certamente um dos mais comuns na cidade. Se é verdade que ninguém da classe média
e alta exerce nenhuma destes dois trabalhos, este binômio é cada vez mais o
fundamento da vida destes – não por acaso a entrega e a vigia continuaram a todo
vapor durante a pandemia do covid-19. Do outro lado, entre os mais desfavorecidos,
parece que todo mundo tem algum parente ou conhecido que exerce um dos dois pólos
como ocupação. Com o motorista de Uber é um pouco diferente, pois quem entra no
carro pode muito bem estar indo ou voltando do trabalho, mas ali dentro ele é cliente.
Não consigo lembrar como a vida na cidade era antes do Uber, e duvido que alguém
consiga. Parece que sempre existiu Uber. Os ônibus são desde sempre precários, agora
ficaram raros e muito caros. O preço da passagem simplesmente não bate com a renda
média da cidade. Para os dias de trabalho, sobretudo, temos agora novas ciclofaixas. O
seu uso contínuo para se deslocar para o trabalho já está aumentando. É através delas
que os trabalhadores do UberEats que se deslocam de bicicleta conseguem chegar a
tempo de fazerem as suas entregas. Mas, o calor atrapalha bastante. Há alguns anos a
prefeitura do Recife reserva um espaço da cidade, concentrado no centro e na zona
norte (mais nobre), para que os habitantes possam fazer um passeio ciclístico aos
domingos e feriados no horário de 7h às 16h. Uma possível rotina de um domingo
qualquer talvez se resuma a um passeio de bicicleta, ir à igreja e tomar um remédio
para conseguir dormir (talvez devêssemos incluir um almoço familiar também). É bem
possível que seja através do uso massivo das ciclofaixas pelos trabalhadores precários
que a cidade do Recife realize o seu sonho secular de reatar os laços com a sua cidade-
irmã Amsterdam.

Se a Cidade do Recife é desde sempre uma cidade dividida, essa divisão parece
estar se acentuando. Os morros parecem estar cada vez mais altos e a periferia cada vez
mais distante. A proximidade-distante do Centro Cultural Xambá é testemunha isso.
Há uma nova normalidade no ar, uma sensação, falsa ou não, de que tudo vai melhorar
ou de que tudo estaria se ajustando. Nem melancolia, nem otimismo; “segue o barco”.
É difícil dizer o quanto a nova norma é nova para aqueles que estão a tanto tempo na

291
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

correria da informalidade e no empreendedorismo. A condição de uberizado,


evidentemente, vem antes do Uber. Ao mesmo tempo, todo mundo sente que há algo
novo no ar, mas não sabe identificar onde estaria situada a novidade. As cidades
parecem estar vivendo uma normalidade semelhante àquela da primeira parte d’O Som
ao Redor. No entanto, como a tensão e o mal-estar característicos do filme não são
sentidos no primeiro plano, parece que o que se vive é o movimento inverso, isto é, em
vias de uma readaptação e não um movimento que se encaminha para uma explosão.
Por outro lado, como na urgência do tempo presente tudo muda muito rápido, essa
adaptação precária pode rapidamente se inverter sobre si mesma e explodir. O
recalque do mal-estar pode voltar a qualquer momento. Mas como não haverá a
maturação que há no filme, a explosão sonora não ecoará ao redor, ela será interna.

***

No dia que desci do avião a mídia noticiava uma briga familiar, que agora se
tornara pública. Não era uma briga qualquer, pois envolvia a Mãe, o Irmão e o Filho do
falecido ex-governador Eduardo Campos – deve-se incluir também no meio dessa
salada a Prima do ex-governador que faz parte da “oposição”. Parecia que eu acabara
de descer num Feudo, mas como não houve Idade Média no Brasil, era mesmo do bom
e velho (neo)Coronelismo que estávamos falando – sem esquecer que o atual
governador e o prefeito da cidade do Recife foram escolhidos a dedo por Eduardo
Campos quando ainda estava em vida (embora o seu espírito parece guiar as eleições
que vem). Nos primeiros dias após a eleição do Capitão ventilou-se que a Resistência
Institucional que faria corajosamente frente àquilo que estava tomando
democraticamente o poder de assalto viria, de uma forma ou de outra, do Nordeste. Os
Governadores dessa região chegaram a fazer uma espécie de turnê internacional para
angariar recursos e parcerias bilaterais para essa região. Este movimento de
desagregação institucional nacional ficou ainda mais visível com o acúmulo de crises
que se segue. O fato da região historicamente mais pobre do país estar se articulando
nos mais diversos níveis independentemente do governo central é sinal claro da
acelerada desagregação nacional em curso. Do ponto de vista pernambucano, no
entanto, fica difícil imaginar como uma resistência ao que está posto como o novo

292
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

modo fascista brasileiro de governar, possa ser organizada ressuscitando, ou melhor,


atualizando velhas formas arcaicas de governo oligárquico.

O governo do Estado e dos municípios litorâneos fazem de conta que no ano de


2019 não houve um derramamento de óleo catastrófico de proporções gigantescas nas
praias de Pernambuco. Segundo os laudos mais rigorosos vindo de especialistas no
assunto, as praias estariam inviabilizadas para banho e pesca por mais de duas
décadas. É difícil imaginar o tamanho do colapso social que viveriam milhares de
pessoas que, de um dia para o outro, não teriam mais acesso à sua fonte de
sobrevivência. Pensando bem, o colapso não atingiria apenas essas pessoas. Esse
colapso específico foi dividido, futuro à dentro, em várias parcelas de juros alto. Do
outro lado, algumas cidades de Pernambuco parecem estar caminhando para se
tornarem semelhantes ao vilarejo de Bacurau, isto é, serão, mais cedo ou mais tarde,
apagadas do mapa: sem banco, sem estradas, sem posto de saúde, sem nada. Difícil, no
entanto, imaginar uma espécie de auto-organização popular nesses territórios, como na
alegoria do filme. É mais fácil que o inverso ocorra, como a briga familiar mencionada
acima sugere.

No início do mês de setembro de 2019 a Força Nacional foi enviada em missão


especial para a cidade de Paulista – cidade de 330 mil habitantes situada no norte da
região metropolitana do Recife. Essa intervenção tinha como objetivo reforçar a
segurança pública do município. A chegada dos agentes da Força Nacional foi bastante
comemorada por moradores da cidade que, no entanto, desde o início da intervenção,
pareciam demonstrar uma maior preocupação com o futuro do que com o presente. O
que seria da cidade a partir do momento em que as forças se retirassem dali 3? Sob o
regime temporal da urgência, qualquer intervenção securitária tem como horizonte
temporal a eternidade. Como observou Paulo Arantes, a única missão possível é a de
organizar a desordem, e não mais a de resolver o que quer que seja, isto é, deve-se
“colocar ordem na casa”, no jargão antigo. A intervenção cria uma situação de
necessidade tal que no momento em que ela sai de cena a percepção geral é a de que o
que vai surgir, que é o que estava contido, vai ser necessariamente rebaixado. Se ela

3 Ver : https://jconline.ne10.uol.com.br/canal/mundo/brasil/noticia/2019/08/30/populacao-
comemora-chegada-da-forca-nacional-em-paulista-386898.php.

293
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

veio foi para o que o pior não aconteça, se ela sair o pior surgirá. Por isso o temor da
população não deixa de ter a sua justificativa, não é com a intervenção pacificadora que
eles devem se preocupar, mas com o que dela vai restar.Inicialmente prevista para
durar 120 dias, a Missão foi prorrogada por mais seis meses, não sem descartar a
possibilidade deste prazo ser novamente estendido ad eternum: “‘A principal obra
desse programa é esse segundo momento, que é tratar as pessoas. Pegar bolsões de
pobreza, trabalhar a inserção social e fazer espaços de convivência, quadras
poliesportivas. Por onde a Força Nacional está atuando, eles já convergem no
diagnóstico do que se precisa para essas comunidades’, afirmou o prefeito de Paulista,
Júnior Matuto”4.

É cada vez mais comum ouvir em conversas ou ler por aí a seguinte expressão:
“Pernambuco, o Meu País”. Há algumas variações dela que circulam como: “orgulho de
ser pernambucano”. Há uma espécie de nacionalismo pernambucano que data de
muito tempo e que tem uma maneira própria de situar a história do Estado em relação
ao resto do país que parece estar ganhando novamente força. Houve realmente um
Estado que em determinado momento foi de fato insurgente e que se levantou por ao
menos três vezes ao longo do século XIX contra a sua integração naquilo que estava
tomando forma e viria a ser conhecido como Brasil. Mas se antes era uma reação
concreta a um processo de formação, ela aparece agora ressuscitada como um
sentimento oco de reação, por enquanto imaginária, a um processo de deformação
acelerada em curso. A alegoria em Bacurau de um ataque do sul-sudeste ao nordeste
materializa de certa forma o sentimento na forma de representação artística. Cada vez
menos gente quer ser brasileiro. Que a emblemática cena do assassinato dos invasores
do sul-sudeste pelos invasores norte-americanos tenha sido motivo de ovação em
praticamente todas as seções de Barucau no Estado onde o diretor do filme nasceu,

4 Ver:https://folhape.com.br/noticias/noticias/grande-
recife/2020/01/13/NWS,127580,70,752,NOTICIAS,2190-AGENTES-FORCA-NACIONAL-VAO-
FICAR-MAIS-SEIS-MESES-PAULISTA.aspx.

294
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

pode ser um sinal que outras rupturas de maior porte possam estar se encaminhando
no Brasil5.

***

É muito triste que, em detrimento de velhas tradições, sejam o passinho e o


brega-funk que passem na frente e se tornem expressão massificada travestida de
dança e música popular. Como observou recentemente Antônio Nobrega, existem
diversas manifestações culturais espalhadas por todo o Estado, todas elas muito
sofisticadas do ponto de vista da dança e vinculadas a ricas músicas populares, como: o
maracatu de baque solto, o maracatu de baque virado, o frevo, o caboclinho, todas as
músicas indígenas, o cavalo marinho, a ciranda, o forró, o afoxé e todas as demais
danças ligadas aos terreiros, entre outros. Tirando o frevo, são todas de origem dos
descendentes de escravos ou dos povos indígenas, ou do encontro entre eles. Mesmo o
frevo, que embora seja também ligado à classe média, tem na dança origens da
capoeira.

Mais do que nunca, deve-se pensar a tradição de maneira não tradicionalista.


Quando fora da indústria cultural, é assim que todas essas manifestações culturais sem
origem determinada funcionam. As expressões agora dominantes são manifestação
pura de fim de linha de montagem. A Indústria Cultural no Brasil é certamente uma
das mais cruéis do mundo, pois sacrifica sem nenhuma piedade o resto de expressão
popular que ainda existe (em via acelerada de desaparição total), substituindo-as por
expressões que aparecem como autênticas, mas que não passam de produtos
compensatórios compatíveis com o colapso em curso e com a miséria material
dominante. Via de regra, estas expressões são ainda por cima apologéticas do estado
em que a maior parte dessa população se encontra. O passo a passo da dança do
empreendedorismo, da uberização, da informalidade está cada vez mais acelerado. São
ode e gestos do conformismo. A música que guia estes passos é aquela que soa bem aos
ouvidos da lógica capitalista vigente. Rebelião a partir dessa música e dança, se houver,
será apenas para garantir mais uma fatia deste bolo que já está acabando: seleção e

5 Para uma primeira tentativa de pensar estas questões: Lyra, Frederico. “Fraturas vindo à tona”.
Lavrapalavra, 20 outubro 2019. Disponível em: https://lavrapalavra.com/2019/10/29/fraturas-
vindo-a-tona/. (Acesso em 01 de abril 2020.)

295
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

eliminação. É essa a batida da música, é esse o pequeno movimento da dança. A


vantagem daquele antigo povo brasileiro, que talvez não tenha sido nada além de mito,
é que ele nunca precisou da elite dominante para inventar e imaginar que outro modo
de vida seria possível. Até um certo momento ele não queria se integrar nesta máquina
verde e amarela moderna e colonial de moer gente. A integração se dá na perversão
absoluta do que restava de popular que se encontra cada vez mais pervertido. Desde
pelo menos 1992, Chico Science e o Movimento Manguebeat já haviam feito o
diagnóstico – radical de classe média – das especificidades do Colapso da
Modernização pelas bandas pernambucanas. E a conclusão é que isso já havia acabado
e só sobrevivia agora como resistência pontual e como lembrança nostálgica que algo
de diferente teria um dia sido possível. Com os pequenos passos que o seu sermão
contínuo faz ecoar, as últimas novidades do momento só estão terminando de enterrar
esta memória em coro e movimento contínuo rumo ao Nada.

***

O filme Estou me Guardando para quando o Carnaval Chegar, de Marcelos


Gomes, mostra bem o que é um corpo totalmente subsumido ao trabalho interminável,
contínuo e repetido das “fábricas de fundo de quintal” da cidade de Toritama, agreste
pernambucano. As facções aqui não são de crime, são fábricas de jeans. Nesta cidade,
os jeans se acumulam como entulhos por todos os lados. Aqui, a fé no dinheiro e no
trabalho se expressa quase sem mediações. A ilusão da autonomia de ser o próprio
patrão é consonante com os diversos ruídos das máquinas e do ambiente. O brega, o
funk, o reggae e o rap mimetizam o trabalho contínuo da fabricação do jeans. Estas
músicas não oferecem dissonância alguma aos ouvidos dos trabalhadores, ao contrário,
completamente reificadas, elas ditam o ritmo ideal para o jean. O carnaval aparece
como a exceção para um ano inteiro dedicado ao trabalho. Não é a toa que a cidade
inteira se organiza para partir desesperada em bloco para o litoral pernambucano
durante as festividades. O medo de ficar para trás sozinho e abandonado na cidade
durante a época de carnaval obriga as pessoas a “curtir a vida adoidado”. Aquele que
não acompanha o resto da cidade na sua peregrinação carnavalesca corre o risco de ser

296
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

eliminado, sugere o filme6. Participar a todo custo do carnaval é parte incluída nos
rituais de sofrimento7 que sem vêem submetidos todos aqueles trabalhadores.Não é à
toa que na sua atualização do conceito de indústria cultural, Robert Kurz diga que a
pós-modernidade aparece, entre outras coisas, como um carnaval de fim de linha 8. “O
carnaval, como um período de tempo limitado e repetido todos os anos na mesma
época, onde se provoca a ruptura da ordem social e a inversão de valores e papéis,
caracterizada na expressão ‘o mundo pelo avesso’, tem raízes em tradições milenares
na Europa Ocidental. A ruptura da ordem social vai dar lugar a manifestações de fuga
das situações do cotidiano”9. Pouco importa quanto, paga-se qualquer preço para fugir,
mesmo que por alguns pouco dias de carnaval, da centralidade negativa do trabalho
(Paulo Arantes).

Em um verso do seu poema “Cemitério pernambucano (Toritama)”, João Cabral


de Melo Neto diz:

A morte nessa região


gera dos mesmos cadáveres
Já não os gera da caliça?
Terão alguma umidade?10

Em Recife e Olinda faz muito tempo que o carnaval não acaba na Quarta-Feira de
Cinzas. De um tempo para cá as prévias se iniciam em meados de setembro. Como
neste ano de 2020 o carnaval ocorreu no final de fevereiro, tivemos ao todo mais ou
menos seis meses de festa. É verdade, porém, que nos primeiros meses de prévias, o
carnaval só acontece nos finais de semana. Pouco a pouco é que ele vai invadindo os
outros dias. No primeiro domingo do ano de 2020, o único dia que pude comparecer, a

6 Para um comentário detalhado sobre o filme Estou me Guardando para quando o Carnaval Chegar,
ver: Cris R & Júlio C. “Estou me guardando para quando o carnaval chegar: faz parte dessa solidão”.
Data: 07 dezembro 2019. Data de acesso: 30 de março de 2020. Disponível em:
https://passapalavra.info/2019/12/129172/
7 Cf. Viana, Silvia. Rituais de sofrimento. São Paulo, Boitempo, 2013.
8 Kurz, Robert. “A indústria cultural no século XXI. Sobre a actualidade da concepção de Adorno e

Horkheimer”, 2012. Data de acesso: 02 de março 2020. Disponível em: http://www.obeco-


online.org/rkurz406.htm.
9 Benjamin, Roberto. “Cortejos”, in Carnaval. Cortejos e improvisos. Recife, Fundação de Cultura da

Cidade do Recife, 2002, p. 25-26.


10 Melo Neto, João Cabral. Morte e vida severina. Rio de Janeiro, Alfaguara, 2007, p. 69.

297
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

folia já estava para além de uma simples prévia. Neste ano de 2019 o tradicional bloco
Eu Acho é Pouco – criado em 1976 como um bloco que tinha a intenção de ser crítico à
ditadura vigente, pouco a pouco ele se tornou um dos blocos mais frequentados e
representativos da classe média e dos artistas locais – realizou uma festa prévia para
comemorar o fato de que faltavam apenas 200 dias para o carnaval. Outro fenômeno
dos últimos anos é uma espécie de invasão da classe média em alguns dos bairros mais
populares de Olinda na busca por um carnaval mais autêntico que estaria por aí,
perdido em algum lugar. É como se houvesse uma Revelação carnavalesca por
encontrar – mas é bem verdade que de fato ela talvez ainda exista, mesmo que só como
projeção ideológica. Por um lado, o carnaval de Olinda/Recife é o único do Brasil que
continua a ser realmente predominantemente popular. Não parece haver de fato
carnaval em outros locais. Por outro lado, a crescente mercantilização deste parece
aparece como tendência dominante. A cada ano que passa o último carnaval popular, é
cada vez menos popular. É o que um estudioso dos maracatus, Ivaldo Marciano, chama
de “espetacularização do carnaval”11, fenômeno que ocorre através da sua
“institucionalização”12. Não haveria razão para o carnaval escapar da tendência de
integração total pela lógica da desintegração que rege o sistema capitalista. Com mais
da metade do ano dedicada ao carnaval fica cada vez mais complicado de dizer qual é o
estado atual do mundo. Se ele já estaria ou não de ponta cabeças, ou se ele ainda
estaria em vias de totalizar esse movimento de inversão de seu estado. Giorgio
Agamben, entre outras coisas, identifica em festas populares periódicas, como o
carnaval, uma possível paródia do estado de exceção que estaria pulsando no coração
destas situações e zonas de anomia festivas13. É verdade que começando as prévias com
200 dias para o carnaval, ainda ficam faltando 165 dias para que se complete o
calendário anual. Ainda falta muito para o carnaval durar o ano inteiro. Ao mesmo

11 “Ao longo desses anos, o modelo de carnaval-espetáculo cresceu e ganhou força suficiente para que
atualmente possa ser pensado como uma festa espetacularizada, permeada por vários espetáculos. Ao
contrário do carnaval carioca, em que o desfile das escolas de samba possui força suficiente para
invisibilizar outros tipos de carnaval existentes no Rio de Janeiro, no Recife ocorrem disputas por
legitimidade e visibilidade entre diferentes tipos de espetáculos”. (Lima, Ivaldo Marciano de França.
Mas, o que é mesmo maracatu nação? Salvador, Eduneb, 2013, p. 104).
12 “O carnaval recifense sofreu uma paulatina institucionalização desde o momento em que foi

‘assumido’ pelo poder público municipal. Esta institucionalização culminou com transformações
diversas, algumas das quais combatidas ainda hoje pelos tradicionalistas, defensores do carnaval
participação”. (Idem, p. 112).
13 Agamben, Giorgio. « État d’exception ». in:__. Homo Sacer l’intégrale. Paris, Seuil, 2016, p. 237-239.

298
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

tempo esse intervalo de tempo pode ser rapidamente preenchido. Por definição, não é
possível determinar de antemão quando o carnaval vai acabar. Pode ser que desta vez
ele não acabe nunca – em 2020 só com o coronavírus teria sido possível pará-lo.
Pensando bem, na verdade não, ele só foi deslocado. Ele continuou no espetáculo
diário do Capitão. Já dizia um estudioso das revoltas populares francesas “se além dos
dias marcados, os gestos do Carnaval encontram um papel insurrecional, deve-se então
reconhecer aos seus atributos um valor emblemático, ou eles se identificaram à causa
da cidade ou da província e se tornaram símbolos patrióticos, ou ainda eles carregam
nas suas referências aos transbordamentos carnavalescos um tipo de convite implícito
à revolta”14. Carnaval é também reação do ressentimento, por isso não pode parar. Na
ideia mesmo de carnaval já está contida a ambivalência das duas direções que ele pode
tomar. O mundo de ponta cabeças ou é pura desintegração ou é utopia concreta. “Eu
acho é pouco, é bom demais”, diz o bloco. Parece claro para onde o carnaval está nos
levando.

14 Bercé, Yves-Marie. Fête et révolte. Des mentalités populaires du XVI au XVIII siècle. Paris, Hachette
littératures, 1976, p. 82.

299
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

CONSIDERAÇÕES SOBRE A
DISSOCIAÇÃO-VALOR NA
ATUALIDADE
Asselvajamento do patriarcado e abordagem das diferenças em
Roswitha Scholz

Jéssica Cristina Luz Menegatti1

Este artigo trata não apenas das linhas gerais que compõem a teoria da
dissociação-valor, da filósofa alemã Roswitha Scholz, mas também aborda brevemente
alguns aspectos relevantes de seu trabalho para compreendermos o que ela chama de
“asselvajamento do patriarcado”, uma definição que se torna nítida com a atual crise
do capitalismo contemporâneo e sua face política neofascista. Aqui também faço
algumas considerações sobre o enquadramento teórico de Scholz sobre a questão das
diferenças, o que abrirá a possibilidade de tecer uma crítica acerca do espaço assumido
pela interseccionalidade sob o ponto de vista da autora.

A cisão do valor

O motivo central que fez com que Roswitha Scholz se afastasse do grupo Krisis,
fundando com Robert Kurz a Exit!, se deveu à recusa entre seus membros em conceder
à sua “teoria da dissociação-valor”2 a centralidade fundamental – que ela via como
intransigível – na forma de conceber o modelo capitalista.

1 Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). E-mail:


jessicamenegatti@hotmail.com
2 SCHOLZ, Roswitha. O sexo do capitalismo: Teorias Feministas e Metamorfose Pós-Moderna do
Patriarcado. [Excertos]. 2000a. Tradução: Boaventura Antunes. Disponível em http://www.obeco-
online.org/roswitha_scholz6.htm. Acesso em janeiro de 2019.

300
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Se para os teóricos da Krisis a questão de gênero se concebia como um ponto


meramente secundário dentro da miríade de problemas resultantes do capitalismo, um
mero “sub-sistema”3 da forma valor, o que Scholz considera uma abordagem
“androcêntrica”4, para ela a assimetria de gênero é, ao contrário, a questão primordial,
central, sem a qual a sociedade capitalista seria inabordável.
Pensar a totalidade do capitalismo implicaria, portanto, levar em consideração a
crítica e a transposição não apenas de um sistema em que o que assume centralidade é
a autovalorização do valor, por meio da transformação de seu suporte, o trabalho
abstrato, em um fim em si mesmo, representável pela abstração do dinheiro, mas,
imprescindivelmente, perpassaria ter em vista que esta totalidade é cindida, o que leva
à necessidade de reconhecimento daquilo que representa o avesso necessário do valor:
a esfera da dissociação, um fenômeno de cunho sexual.
Pois para que o valor possa ser transformado em mais-valor em uma esfera dita
“pública”, do trabalho, do ambiente empresarial onde números se transformam em
mais números, costuma-se olvidar os aspectos opostos a este universo que se
constituiu, historicamente, como o “masculino” por excelência: há os filhos que devem
ser bem criados, casas que devem estar limpas, sentimentos e emoções a serem
geridos, o sexo e a sensualidade, o próprio conceito de amor. Expurga-se no “feminino”
aquilo que se entende incompatível com o “duro” universo do valor.
Estes aspectos tomam, portanto, parte no âmbito entendido como o da
dissociação, que se encontra em uma “relação dialética recíproca” 5 com o valor, uma
dualidade que é “essencial” e constitutiva da “relação social total”6 capitalista:

não há nenhuma "relação de derivação" lógica imanente entre o valor e a


dissociação. A dissociação é o valor e o valor é a dissociação. Cada um
está contido no outro, sem ser idêntico a ele. Trata-se de ambos os
momentos centrais essenciais da mesma relação social em si
contraditória e fragmentária, que devem ser compreendidos ao mesmo
alto nível de abstracção7.

3 Ibid.
4 Ibid.
5 Ibid.
6 Ibid.
7 Ibid.

301
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Valor e não valor são faces da mesma moeda que compõem a integralidade da
vida social no capitalismo, como expressões de caráter sexual, isto é, como dois
“universos” que têm como “nexo constitutivo”8 e como “próprio núcleo” a
masculinidade e a feminilidade, respectivamente. A realização do valor, que se
constitui como uma tarefa de homens, assume sua primazia social em simultaneidade à
consolidação da dominação masculina na sociedade capitalista.

“O valor é o homem”, não o homem como ser biológico, mas o homem


como depositário histórico da objetivação valorativa [wertförmigen
Versachlichung]. Foram quase exclusivamente os homens que se
comportaram como autores e executores da socialização pelo valor. Eles
puseram em movimento, embora sem o saber, mecanismos fetichistas
que começaram a levar vida própria, cada vez mais independente, por
trás de suas costas (e obviamente por trás das costas das mulheres).9

Em contrapartida, as mulheres puderam aparecer como o “antípoda obrigado a


lhe dar sustentação feminina, em posição oculta ou inferior”10, a elas coube, a
princípio, o “resto” inerente à esfera privada e da gestão de um “gozo sensível”11,
daquilo que é o “amorfo”12, irredutível à forma-dinheiro. Dessa forma, como sentencia
Scholz, “a constituição valorativa [wertförmigen Konstituiertheit] do fetiche já é
sexualmente assimétrica em sua própria base e assim permanecerá até cair por terra” 13.
É inevitável pensar, assim, que a oposição descrita por Simone de Beauvoir em
O Segundo Sexo entre o que aparece como natureza versuscultura, em que o feminino
e o masculino são, respectivamente, projetados – dualidade que acompanha o
desenvolvimento da história da civilização ocidental e que para ela caracteriza a recusa
masculina ao reconhecimento de “reciprocidade”14 à mulher – é uma contradição que
assume, com a universalização da forma-mercadoria no corpo social, uma

8 SCHOLZ, Roswitha. “O valor é o homem: teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os
sexos”. Tradução: José Marcos Macedo. Novos estudos CEBRAP, nº 45. São Paulo, 1996. Disponível
em: http://www.obeco-online.org/rst1.htm. Acesso em janeiro de 2019, p. 17.
9 Ibid., p. 33.
10 Ibid.
11 SCHOLZ, 2000.
12 “Poder-se-ia então dizer: se à mercadoria corresponde a forma abstracta, ao dissociado corresponde a

ausência de forma abstracta; no caso do dissociado, poder-se-ia falar paradoxalmente duma forma de
ausência de forma”. Ibid.
13 SCHOLZ, 1996, p. 33.
14 BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo: fatos e mitos. Volume 1. Tradução: Sérgio Milliet. 3ª edição.

Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2016, p. 13.

302
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

transmutação, de modo que a concepção sobre o gênero passa a ser instrumentalizada


de acordo com os signos daqueles que assumem os caracteres do valor e daqueles que,
inversamente, são identificados sumariamente ao seu oposto rebaixado.
Roswitha ressalva a importância de considerarmos esta dualidade não apenas
como o sinônimo de uma divisão sexual do trabalho, isto é, como o que ela chama de
dissociação no “plano material”, que o feminismo materialista, principalmente o dos
anos 70, buscou tematizar por meio das teorias dos sistemas duais, ainda ligadas a uma
visão marxista ortodoxa, atinente à valorização da categoria trabalho. Para Scholz, a
dissociação deve também ser compreendida como um fenômeno que se manifesta no
que ela denomina de “planos psicossocial e cultural-simbólico”15. Mais do que a
oposição entre trabalho abstrato e trabalho doméstico, são os próprios conceitos ideias
de masculinidade e feminilidade, como valores culturais e de adesão psíquica
individual, constituídos segundo a imagem e semelhança do valor ou do dissociado.
A crítica à família tradicional (o “teatro antigo”16 do “papá-mamã-eu”17, como
chamam Deleuze e Guattari na sua crítica à Freud) pode, sob a luz da teoria de Scholz,
aparecer como a denúncia dos clichês de uma sociedade fetichista que, compondo
como totalidade um “patriarcado produtor de mercadorias” 18, resume-se – seja nas
alcovas da sua fragmentação celular familiar, seja naquilo que separa como “vida
pública” – ao objetivo de realização de uma destrutiva autovalorização do valor, um
tautológico intento que se vê às voltas com a necessidade de, para assegurar sua
completude, projetar uma diferença tomada como inferior, a assimetria de gênero.

Patriarcado selvagem

Se a dissociação-valor se mostra, inicialmente, um momento de divisão social


que delimita o que é público e o que é privado, o fato de a mulher ganhar espaço no
âmbito do valor, pauta das próprias reivindicações do movimento feminista, não é
interpretado por Scholz como sinônimo da ideia falaciosa, aventada nos anos 90, de

15 SCHOLZ, 2000.
16 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia 1. Lisboa: Assírio e
Alvim, 1972, p. 28.
17 Ibid.
18 SCHOLZ, 2000.

303
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

que estaríamos diante da “festa do ‘fim do patriarcado’” 19. Ao contrário, ao tomar de


empréstimo a definição de Regina Becker-Shmidt, Roswitha qualifica a situação
feminina pós-moderna como um estado de “dupla socialização”, isto é, o ingresso na
esfera do trabalho abstrato não apenas não desobriga a mulher das tarefas domésticas,
como persistem ainda, em quaisquer espaços, os estigmas depreciativos inerentes aos
caracteres que no capitalismo devem permanecer dissociados:

há muito que se verifica a tendência para uma integração mais forte das
mulheres na sociedade “oficial” (pública e conotada como masculina no
patriarcado produtor de mercadorias). Contudo, mesmo na situação
modificada pós-moderna, agora como antes, elas continuam a ser
responsáveis pela lida da casa e pelas crianças, ao contrário dos homens;
agora como antes, continua a ser raro encontrá-las nas alavancas de
comando do poder na esfera pública; agora como antes, ganham em média
menos que os homens etc. (cf., por exemplo, Beck/Beck-Gernsheim,
1990). Houve, portanto, uma modificação da estrutura da dissociação-
valor, a “dupla socialização” ganhou uma nova qualidade. As mulheres
estão agora “duplamente socializadas”, e não apenas objectivamente,
como antes, mas agora mesmo na sua imagem modelo já não estão fixadas
apenas à vida de dona de casa e de mãe. Com isto também a situação
psíquica das mulheres se modifica (...) mas sem que a forma da
dissociação-valor tenha sido superada.20

A despeito das legítimas conquistas feministas e de quaisquer exacerbações


identitárias, muito caras a um certo feminismo liberal, de apego ao empoderamento
individual e de festejo das “identidades flexíveis”21, que no fim das contas compõem a
própria lógica neoliberal, Roswitha qualifica os tempos atuais de aprofundamento da
crise do capitalismo como marcados por um “asselvajamento do patriarcado” 22.
O patriarcado se asselvaja na medida da própria realização das contradições
imanentes do capitalismo, já advertidas por Karl Marx n’O Capital, um sistema
patentemente escorado no trabalho, mas que, simultaneamente, frente à otimização
das forças produtivas, expulsa progressivamente de sua lógica a necessidade de mão de
obra, suprimindo neste caminho o meio ambiente à custa da valorização do valor
descolada das necessidades sociais concretas e enfrentando a paulatina queda das

19 Ibid.
20 Ibid.
21 Ibid.
22 Ibid.

304
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

taxas de lucro: “a lógica de “salário, preço e lucro” (Marx), ou seja, a forma fetichista do
‘valor’, está a determinar objectiva e normativamente quase tudo, justamente na época
em que se torna em definitivo obsoleta”.23
Os acontecimentos do presente demonstram claramente como a crise em
processo insere como ordem do dia um cenário de recrudescimento da forma
neoliberal do capitalismo, de modo a garantir sua manutenção, ou, na pior das
hipóteses, a repartição de seus despojos entre uma classe dirigente de privilegiados. Se
nos anos 90 ainda era possível a sustentação de um modelo de neoliberalismo das
diversidades, o “seja você mesmo, inove!”, incentivado desde que o modus operandi
capitalista pudesse passar ao largo de críticas24, a rudeza da conjuntura atual
demonstra o cerco fechado pela necessidade de preservação da valorização imparável
do valor por intermédio de formas políticas nitidamente neofascistas, imbuídas da
máxima brutalidade na exploração da existência humana, num mix vulgar de
precarização e conservadorismo radicais.
Desde o modelo brasileiro, entreguista e aniquilador de direitos sociais, cujo
desastroso presidente é autor das bravatas “não te estupro porque você não merece” 25 e
"O Brasil é uma virgem que todo tarado de fora quer"26, passando pelo Chile, em que o
líder golpista é intitulado de “Macho Camacho”, até o nacionalismo americano de

23 Ibid.
24 “Adoramos pensar que as diferenças que nos dividem não são diferenças entre os que têm dinheiro e
os que não têm, mas, ao contrário, que são diferenças entre os que são negros e os que são brancos,
asiáticos ou latinos ou o que seja. Um mundo em que alguns de nós não têm dinheiro o suficiente é um
mundo em que as diferenças entre nós apresentam um problema: a necessidade de acabar com a
desigualdade ou de justificá-la. Um mundo em que alguns de nós são negros e alguns são brancos — ou
bi-racial ou nativo-americano ou transgênero — é um mundo em que as diferenças entre nós
apresentam uma solução: valorizar nossa diversidade. Então gostamos de falar a respeito de diferenças
que podemos valorizar, e não gostamos de falar sobre aquelas que não podemos. De fato, não
gostamos sequer de saber que elas existem”. MICHAELS, Walter Benn. The Trouble with Diversity:
How We Learned to Love Identity and Ignore Inequality. 10ª anniversary edition. New York:
Metropolitan Books, 2006, p.3 (trad. minha).
25 MARTINELLI, Andréa. 'Não te estupro porque você não merece', repete Bolsonaro a deputada Maria

do Rosário. Huffpost Brasil, 2014. Disponível em https://www.huffpostbrasil.com/2014/12/09/nao-


te-estupro-porque-voce-nao-merece-repete-bolsonaro-a-depu_a_21677985/. Acesso em maio de
2019.
26 REUTERS STAFF. Bolsonaro diz que "Brasil é uma virgem que todo tarado de fora quer" ao falar

sobre Amazônia. 2019. Disponível em: https://br.reuters.com/article/idBRKCN1U20NA-OBRTP.


Acesso em julho de 2019.

305
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Trump, com seu “Grab ’em by the pussy. You can do anything” 27, o novo fascismo não
esconde, ainda, o seu caráter eminentemente misógino, de reforço às categorias da
dissociação-valor, conforme descritas por Scholz.
A figura da mulher como “antípoda” materializa-se não somente no fato de
aumentarem a olhos vistos os contextos de violência contra a mulher, feminicídios
epidêmicos, atos de repressão política contra mulheres insurgentes (vide os estupros
ocorridos no Chile até o trágico episódio de linchamento público da prefeita boliviana
do partido de esquerda, Patricia Arce, que foi agredida, arrastada e teve seus cabelos
cortados), como também quando a crise revela que a adesão popular ao fascismo é
imbuída pela ânsia ao retorno à uma certa “virilidade perdida”.
Neste sentido, Scholz nos fornece um bom diagnóstico: se no contexto
capitalista o trabalho serve, tradicionalmente, como o “doador de identidade” à
masculinidade, a sua crise e incipiência progressiva, manifesta na “uberização” da força
de trabalho, demonstram que a categoria, ao contrário, não mais se presta a fornecer a
sustentação viril ao macho pós-moderno, que intui aí o seu “perigo de castração”28. O
que é “ser homem”, se não mais se pode ser um provedor?
Vê-se, assim, na crise mais “um abrandamento dos papéis tradicionais de género
em condições de empobrecimento”29, do que a ainda longínqua emancipação das
identidades de gênero: configurações familiares compostas exclusivamente por
diferentes gerações de mulheres sobrecarregadas pela responsabilidade do sustento
familiar contrastam com homens que “arrastam-se de emprego em emprego e de

27 THE NEW YORK TIMES. Transcript: Donald Trump’s Taped Comments About Women. 2016.
Disponível em https://www.nytimes.com/2016/10/08/us/donald-trump-tape-transcript.html. Acesso
em dezembro de 2019.
28 “De fato, a onda de racionalização iniciada nas duas últimas décadas através de novas tecnologias e da

globalização dos mercados não afeta apenas as mulheres com função remunerada (embora elas sejam
as mais atingidas), mas também um número crescente de homens. Como não se trata mais de um
mero desemprego "cíclico", mas sim estrutural, também nesse sentido uma nova qualidade é
alcançada. Ao mesmo passo, o absurdo e o poder de destruição do "trabalho" abstrato vêm a lume
tanto subjetiva quanto objetivamente (crise ecológica). O próprio desenvolvimento tecnológico e
estrutural torna cada dia mais obsoleto esse marco constitutivo da identidade masculina no
patriarcado do valor. Em todos os níveis, também os homens são forçados a refletir sobre sua
identidade tradicional, seja ela pessoal e subjetiva ou social. O "trabalho" abstrato não pode mais ser o
campo social pelo qual se orienta a identidade masculina. Os poucos movimentos masculinos já
existentes, de resto, põem em questão os pontos de referência de sua identidade”. SCHOLZ, 1996, p.
35.
29 SCHOLZ, Roswitha. O ódio às mulheres está novamente a aumentar. 2017. Tradução: Boaventura

Nunes. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz26.htm. Acesso em maio de


2019.

306
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

mulher em mulher”30, desresponsabilizados do que antigamente se via como o sumo


dever do pai de família, um processo de estranhamento que encontra sua paulatina
generalização global:

As actividades de reprodução das mulheres, necessárias tanto antes


como depois, dissociadas como “desde sempre”, tornam-se na
circunstância perfeitamente marginais, com os correspondentes “efeitos
colaterais” para o moderno modelo de civilização (...) É claro que aqui é
decisiva a dissociação-valor como categoria real historicamente
dinâmica, que produz tais consequências na pós-modernidade
globalizada. As vidas das mulheres do “Terceiro Mundo” e do “Primeiro
Mundo” estão a equiparar-se num prazo talvez não assim tão longo, pelo
menos no que diz respeito a grande parte das mulheres. Se a vida da
mulher burguesa foi durante muito tempo o modelo para as mulheres
faz-tudo [underdog] do Terceiro Mundo, agora, pelo contrário, a vida de
Terceiro Mundo destas torna-se a norma (real) para as mulheres do até
aqui “Centro”.31

Se a resistência à esquerda a esses processos de degradação apresenta um claro


viés feminista, a exemplo dos inúmeros levantes de mulheres de países que enfrentam
a crise política do atual capitalismo, a compreensão da cisão-valor, de Scholz, nos
previne de uma pretensa animação que conduza à exaltação da mulher, como ela
brinca em título de seu texto: “Maria, estenda o manto e converta-o em nossa defesa e
proteção”32. Ao contrário, a conclusão lógica da crítica da dissociação-valor é
justamente a ideia da necessária superação conjunta dos papéis tradicionais, uma
“ruptura ontológica”33 que perpasse todas as categorias de base do capitalismo: valor,
dinheiro, capital, trabalho, gênero...

Sobre as “outras” diferenças: uma crítica.

30 Ibid.
31SCHOLZ, 2000.
32 SCHOLZ, Roswhita. Estende o teu manto, maria!:Produção e reprodução na crise do capitalismo.

2010. Disponível em http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz13.htm. Acesso em junho março


de 2019.
33 KURZ, Robert. “A ruptura ontológica:Antes do início de uma outra história mundial. Um crítico na

periferia do capitalismo”. In: CEVASCO, Maria Elisa; OHATA, Milton (Org.). Reflexões sobre a obra
de Robert Schwarz. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 153.

307
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Parto aqui para uma breve reflexão sobre a abordagem das diferenças na teoria
de Roswitha Scholz. Negros, ciganos (sobre os quais Roswitha trata em seu trabalho
que os compara à figura do homo sacer, de Giorgio Agamben34), judeus, palestinos,
toda sorte de problemáticas de classe, étnicos, de diversidade de gênero: como figura a
interseccionalidade para a filósofa de Nuremberg, frente à centralidade assumida em
sua teoria pela dinâmica sexual em relação dialética com o valor? Como sustentar a
centralidade da questão de gênero, principalmente se considerarmos que no contexto
da contemporaneidade “asselvajada” não apenas mulheres, mas uma série de grupos
tidos como “minoritários” encontram o seu lugar de marginalização e violência?
Em termos gerais, Roswitha defende que, muito embora a teoria da dissociação-
valor descreva a ideia de uma “meta-estrutura”35 do capitalismo, em que dissociação e
valor contrapõe-se, compondo uma totalidade de cunho sexual, o próprio fato desta
elaboração teórica centralizar-se na ideia de reconhecimento da alteridade inferior do
dissociado feminino já faria com que ela trouxesse dentro de si o seu “autodesmentido
interno”36, ou seja, já abarcaria em seu corpo o espaço para o reconhecimento de todas
as características marcadas no capitalismo sob a forja da diferença.
Como forma de sustentar sua hipótese, Scholz formula a ideia de planos “macro,
meso e microscópico”:

O nível macro é constituído pela estrutura global crítica do valor-


dissociação. Quanto aos contextos meso, trata-se do entendimento da
existência de estruturas racistas e sexistas, assim como das disparidades
económicas, que estão separadas umas das outras e, no entanto, ligadas
umas às outras; elas têm de ser relacionadas com a estrutura macro sem
contudo se confundirem com ela nem a ela serem equiparadas. No plano
micro, por sua vez, importa ver e reconhecer os indivíduos inconfundíveis
como tais, mas não os deixando ficar como tais, antes demonstrando ao
mesmo tempo a sua estruturação; o que é uma necessidade, tanto no que
respeita ao plano meso de estruturas racistas, antissemitas e sexistas,
como no que se refere ao abrangente plano macro do valor-dissociação
complexamente pensado como princípio da forma social. Mesmo que, na
meta-definição teórico-conceptual, a problemática do valor-dissociação
como princípio da forma da "sociedade (mundial)" se encontre sem dúvida

34 SCHOLZ, Roswitha. Homo Sacer e os ciganos. 2017. Tradução de Boaventura Antunes, Lumir Nahodil
e Virgínia Freitas. Disponível em http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz7.htm. Acesso em dez
de 2019.
35 SCHOLZ, 2000.
36 SCHOLZ, Roswitha. O Tabu Da Abstracção No Feminismo. 2011. Disponível em http://www.obeco-

online.org/roswitha_scholz15.htm. Acesso em janeiro de 2018.

308
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

numa posição de preponderância face aos indivíduos, o que implica


posturas concorrentes destes indivíduos, que precisamente não
representam nada de primordialmente individual, a “participação própria”
dos portadores individuais das acções tem de ser sempre tida em
consideração.37

Em que pese o seu esforço teórico, parece inevitável a constatação de que a


questão de gênero ainda assume para Scholz a primazia na qualificação do que
representa a totalidade da expressão das relações do capitalismo.
Aqui poderíamos nos indagar se esse enquadramento “fechado” ainda é
possível. Não é válido entender, formulando apenas um exemplo, que a corrida
colonialista e o processo de racialização dos negros, fundamentais à consolidação do
capital, representaram, igualmente, expressões de um processo de dissociação do
valor? Não encontra o valor a sua concretude em um homem branco, cuja “dignidade”
e condição “humana” somente foi garantida pela recusa da concessão do mesmo status
ao indivíduo categorizado sob o signo da raça negra, indigno do valor, senão como mão
de obra escrava que o realiza?
Arrisco aqui que a “falha” teórica de Scholz em abarcar as demais diferenças
residiria na sua resistência em situar na própria produção de mercadorias o verdadeiro
locus onde se internaliza a dissociação-valor.
Porque ao invés de considerar aquilo que entende por cisão algo constitutivo já
da própria contradição imanente da mercadoria – que configura uma unidade dupla
em que o valor de uso é “negado”38, ao mesmo tempo em que figura como suporte do
valor de troca – Scholz prefere crer que esta duplicidade da forma-mercadoria
concerne inteiramente à esfera do valor, ao passo que a dissociação é um espaço
“exterior” a ela, integralmente feminino, que não poderia, de maneira alguma, ser
equiparado ao valor de uso. Ao contrário, apenas o consumo concreto das mercadorias
deveria ser associado à esfera da dissociação:

37 SCHOLZ, Roswitha. A nova crítica social e o problema das diferenças: Disparidades económicas,
racismo e individualização pós-moderna. Algumas teses sobre o valor-dissociação na era da
globalização. 2004. Tradução: Lumir Nahodil e Boaventura Antunes. Disponível em
http://obeco.planetaclix.pt/roswitha-scholz3.htm Acesso em janeiro de 2018.
38 “A negação da fisicalidade natural e material constitui a realidade positiva da fisicalidade abstrata

social dos processos de troca onde a rede da sociedade é tecida”. SOHN-RETHEL, Alfred. Intellectual
and Manual Labour: aCritique of Epistemology. London: Macmillan, 1978. p. 56-57, (trad. minha).

309
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Para a "crítica do valor fundamental" de que aqui se fala, segue-se daí


que a mercadoria só é "valor de uso" no processo de circulação, como
objecto do mercado, e nessa medida também o valor de uso não passa de
uma simples categoria do fetiche económico abstracto. Ele não designa a
utilidade concreta do uso sensível-material, mas apenas o "usar puro e
simples", como valor de uso de um valor de troca. Do ponto de vista da
dissociação-valor, o conceito de valor de uso é portanto, ele próprio, de
certo modo parte do universo androcêntrico abstracto das mercadorias.
Ora, à esfera que cai mesmo fora do contexto da forma económica
pertence o consumo, com as actividades que lhe estão ligadas, a
montante e a jusante; por isso, o acesso ao "dissociado" da forma do
valor deve ser procurado em primeiro lugar aqui. É apenas no consumo
que as mercadorias são usadas e desfrutadas de modo realmente
sensível-material. Com isso, o produto criado em forma de mercadoria
subtrai-se à forma da mercadoria, ao ser “degustado” no consumo.39

Roswitha praticamente cria novas categorias, desmembrando o conceito de


valor de uso: um “uso abstrato”, em relação direta com o valor, e um “uso concreto”,
sinônimo de consumo mundano, doméstico, este sim afeito à dissociação feminina,
uma diferenciação que o próprio Marx não realiza ao descrever a relação de
continuidade entre os âmbitos da produção e do consumo, em simbiose40.
Seria mesmo válida esta subdivisão? Não estaria a mulher, dissociada,
historicamente associada à realização do valor de uso, que concerne, nada mais nada
menos, ao “conteúdo sensível”41 e às particularidades inerentes ao consumo destes
bens? Scholz nega essa identificação ao entender que o uso está numa relação estrita
com e para um valor de troca, o que torna a forma-mercadoria integralmente maculada
pelo androcentrismo. Mas, se a dissociação, algo que nada teria a ver com esta forma, é
um âmbito estritamente reservado ao que é feminino, como sustentar que as demais

39 Ibid.
40 “A produção é imediatamente consumo, e o consumo é imediatamente produção; cada termo é
imediatamente o seu contrário. Mas, simultaneamente, há um movimento mediador entre ambos; a
produção é intermediária do consumo, cuja matéria cria; sem esta, aquele ficaria privado do seu
objeto; por sua vez, o consumo é intermediário da produção, pois proporciona aos seus produtos o
sujeito para o qual eles o são (produtos). O produto só atinge o seu finish final no consumo. Uma via
férrea onde não circulam trens, que não é usada, que não é consumida, pode dizer-se que é imaginária,
que não existe. Sem produção não há consumo; mas sem consumo, também não há produção, pois,
nesse caso, a produção seria inútil”. MARX, Karl. Introdução à Contribuição para a Crítica da
Economia Política. 1859. Disponível em
https://www.marxists.org/portugues/marx/1859/contcriteconpoli/introducao.htm. Acesso em
janeiro de 2018.
41 SCHOLZ, 2000.

310
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

diferenças, que a história do capitalismo produz, não seriam meramente subalternas


em sua teoria?
Talvez fosse um pouco mais acertado compreender o fenômeno da dissociação-
valor como uma estrutura, uma espécie de operacionalidade que caracteriza a própria
forma-mercadoria, que Marx procurou descrever como a “forma elementar”42, isto é, o
“germe”43 do capitalismo, o pequeno fragmento que já contém a possibilidade de
compreensão da totalidade do modelo.
Na sua divisão imanente entre valor de uso e valor de troca, ela fornece a
“matriz” do capitalismo, dando a sua forma e, nas palavras do esloveno Slavoj Žižek,

nos faculta gerar todas as outras formas da “inversão fetichista”: é como


se a dialética da forma-mercadoria nos apresentasse uma versão pura -
destilada, por assim dizer - de um mecanismo que nos oferece uma
chave para a compreensão teórica de fenômenos que, à primeira vista,
nada tem a ver com 0 campo da economia política (direito, religião etc).
Definitivamente, há mais em jogo na forma-mercadoria do que a forma-
mercadoria em si, e foi precisamente esse “algo mais” que exerceu um
poder de atração tão fascinante.44

Constituindo, aparentemente, uma forma “misteriosa”, estaria nela contida uma


cisão incontornável, que na sua condução das mais diversas manifestações do agir
social fornece dois signos dialeticamente opostos, que ora concedem a determinados
sujeitos a dignidade do valor de troca que deve se autovalorizar, ora projetam ignóbil
alteridade nos sujeitos equiparados ao valor de uso, que, tal qual esta categoria, são,
embora rechaçados, ao mesmo tempo mantidos, por fundamentais à sustentação da
relação total.
Esta ideia do capitalismo como um sistema cujo código opera um “trator” de
produção de diferenças parece ganhar corpo quando observamos os resultados do
“girar em falso” da sociedade da mercadoria. Sua progressiva incapacidade de
regulação do corpo social segundo suas próprias categorias de base nos remete à
formulação de Achille Mbembe de que a contemporaneidade se converte em um “devir-

42 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital.
Tradução Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 113.
43 Ibid., p. 204.
44 ŽIŽEK, Slavoj. “Como Marx inventou o sintoma?” In: ZIZEK, Slavoj (org.). Um mapa da Ideologia.

Rio de Janeiro: Contraponto, 1998, p. 301.

311
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

negro do mundo”45, o que, em outras palavras, poderia ser qualificado como a trágica
equiparação da coletividade a uma massa cada vez mais uniforme de dissociados.

Em suma...

Independentemente das críticas que a abordagem da teoria de Roswitha Scholz


possa suscitar, ela é fundamental no sentido de que sua centralidade na ideia da
assimetria, ainda que exclusivamente sob a forma de uma discussão de gênero, torna
possível o entendimento da noção de superação das diferenças sob o enfoque de uma
crítica marxista muito mais radical do que a abordagem tradicional, que permanece
orbitando em uma concepção positiva sobre a ideia de trabalho.
Na visão dos teóricos que aderem à crítica da dissociação-valor, o horizonte só
pode ser visto dentro de uma perspectiva inextricável de ruptura com as categorias que
assumem a aparência de naturalidade na sociedade capitalista. Romper com as
tradicionais desigualdades de gênero perpassa questionar a ontologia do trabalho, do
dinheiro e das formas jurídicas e políticas correlativas à forma da dissociação-valor. É
somente sob este ângulo que a interseccionalidade pode assumir seu lugar de luta
anticapitalista no nosso tempo.

45 “Ainda mais característica da fusão potencial entre o capitalismo e o animismo é a possibilidade,


muito clara, de transformação dos seres humanos em coisas animadas, dados numéricos e códigos.
Pela primeira vez na história humana, o substantivo negro deixa de remeter unicamente à condição
atribuída aos povos de origem africana durante a época do primeiro capitalismo (predações de toda a
espécie, destituição de qualquer possibilidade de autodeterminação e, acima de tudo, das duas
matrizes do possível, que são o futuro e o tempo). MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Trad:
Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 edições, 2018, p.20.

312
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

FANON VIA LACAN


Aportes teóricos para uma leitura contemporânea

Cian S. Barbosa Whately

Introdução

Este artigo tem como propósito abordar a atualidade da teoria fanoniana,


investigando a abordagem exposta em seu livro Pele negra, máscaras brancas (2008),
publicado originalmente em 1952, enquanto uma crítica ao essencialismo identitário e,
não menos importante, enquanto uma contribuição à crítica da ideologia em geral.
Essa contribuição, como pretende-se demonstrar, será evidenciada também quando
lida junto ao contexto do debate francês no século XX acerca do conceito de sujeito e,
em especial, a formulação lacaniana acerca deste, oriunda de seu retorno à Freud,
retomando-o pelo avesso através do estruturalismo linguístico e antropológico,
assumindo o significante enquanto modelo metodológico. Demonstraremos também
que, em Fanon, já podemos ver em sua sociogenia algo como uma abordagem da
ordem de um marxismo psicanalítico (que se difere do freudo-marxismo), articulando
também a filosofia hegeliana, onde se articulam elementos para uma crítica da
ideologia com fundamentos que se aproximam da problemática apresentada pela
escola eslovena contemporânea, tendo como referência de maior destaque o filósofo
Slavoj Žižek e a subversão que o mesmo opera com o conceito de ideologia, lido através
da teoria lacaniana, e diferenciado-se, por exemplo, da referência principal do
estruturalismo sobre o tema, a saber, Althusser.

Apesar das poucas citações diretas a Lacan em Pele negra, máscaras brancas
(cinco apenas), Fanon demonstra estar em um diálogo frutífero que por vezes se vale
de proposições acerca da teoria lacaniana da psicose (2008, p. 67), por outras difere

313
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

sua abordagem pelo conceito de estrutura em relação ao de constituição – como


trabalhado por Lacan em sua “crítica virulenta à noção de constituição” de 1932 (ib., p.
81). Também para debater a questão da neurose e do complexo de Édipo em relação à
organização familiar no continente europeu (ib., p. 127), e as diferenças estruturais
com o continente africano, diferenças demarcadas com ímpeto crítico à projeção de
etnólogos europeus, onde mobiliza inclusive Hegel “contra” Lacan (ib., p. 135).

Sabemos também que Fanon vem a falecer antes de Lacan apresentar sua teoria
dos discursos, um ponto de virada importante em sua obra. Poderíamos dizer que
Fanon veio a conhecer apenas o primeiro Lacan. Também por isso pretende-se
demonstrar as possibilidades de diálogo entre a sociogenia crítica que parte da
dialética entre colonizador/colonizado (a que Fanon apresenta em Pele negra,
Máscaras Brancas), a teoria dos discursos (que Lacan formaliza no livro XVII de seus
seminários, chamado O Avesso da Psicanálise) e, fundamentalmente, a utilização da
teoria dos discursos para a crítica da ideologia (como elaborada por Žižek em várias de
suas obras). Carregamos aqui a consciência de que tanto a psicanálise, como sabia
Fanon, quanto, em especial, a teoria de Lacan, muito tem a contribuir para a teoria
social marxista – como insiste Badiou, Žižek e tantos outros. Partiremos assim de uma
retomada geral do debate através do conceito de sujeito na filosofia francesa do século
XX, até chegarmos na definição lacaniana e sua formulação pelo modelo do
significante, apropriando-se e subvertendo este modelo da própria linguística de
Saussure. Avançaremos para a crítica da ideologia tal qual apresentada por Žižek e, por
fim, as possíveis relações destas com leituras contemporâneas de Fanon e suas
contribuições fundamentais à crítica da ideologia – seja a ideologia racialista, seja à
ideologia em um sentido geral.

A questão do sujeito na abordagem lacaniana

Para apresentarmos um mapeamento sucinto da questão, recorreremos ao


filósofo franco-argelino Alain Badiou, que nos apresenta, enquanto testemunha viva e
um dos herdeiros eméritos desse momento, as questões elaboradas pelos aventureiros
do pensamento desenvolvido na França do século XX. Para compreendermos
genealogicamente tal pensamento precisamos situar dois momentos no início do século

314
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

XX: as conferências de Bergson em Oxford, que ocorreram em 1911, publicadas em O


pensamento e o movente, e o livro Etapas da filosofia matemática, de Brunschvicg.
Badiou nos diz que, ao menos na aparência, tais pontos “fixam orientações
inteiramente opostas para o pensamento” e fundam duas correntes diferentes na
filosofia francesa (BADIOU; 2012/2015). Podemos compreender cada uma delas a
partir do seguinte:

Bergson propõe uma filosofia da interioridade vital, que subsume a tese


ontológica de uma identidade do ser e da mudança apoiada na biologia
moderna. [...] Brunschvicg propõe uma filosofia do conceito, ou mais
exatamente da intuição conceitual (oxímoro fecundo desde Descartes),
apoiada nas matemáticas, que descreve a constituição histórica dos
simbolismos nos quais as intuições conceituais fundamentais são, de
alguma forma, recolhidas. (BADIOU, Alain. A aventura da filosofia
francesa no século XX, 2015, p. 9-10)

Sendo assim, teremos essa dualidade demarcada na filosofia francesa do século XX.
Essa observação é fundamental para compreendermos as contribuições desse evento
filosófico, tanto para a teoria de modo geral (o legado do estruturalismo e do pós-
estruturalismo), quanto para o conceito de sujeito em específico. Essa elaboração parte
do diálogo de tais influências que retornam ao conceito de sujeito desde Descartes a
partir de uma compreensão das influências externas. O sujeito passa a ser abordado,
pelos autores desse movimento, a partir de múltiplas perspectivas.

Como nos ensina Badiou, a questão do sujeito se torna profundamente


renovada, sendo abordada pelas perspectivas do conceito e da vitalidade em um debate
em que Descartes é evocado como ponto de conflito. Para pensadores desse movimento
a questão do sujeito é importante pela necessidade de ser suplementada com o seguinte
problema: o que fazer com a herança cartesiana? Esse é um verdadeiro campo de
batalha nesse momento. Temos então uma problemática que é a da abordagem da
questão do sujeito enquanto interrogado por sua vida subjetiva, animal, orgânica, e
também por outro viés; enquanto criador de conceitos, pensador, capaz de abstração.

o sujeito como consciência intencional é uma noção crucial para Sartre e


para Merleau-Ponty. Althusser, ao contrário, define a história como um
processo sem sujeito e define o sujeito como uma categoria ideológica.
Derrida, na descendência de Heidegger, considera o sujeito como uma
categoria metafísica; Lacan cria um novo conceito de sujeito, cuja

315
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

constituição é a divisão original, a clivagem; para Lyotard, o sujeito é o


sujeito da enunciação, de tal modo que em última instância ele deve
responder por ela diante da Lei. Para Lardreau, o sujeito é isso acerca de
que, ou de quem, pode ocorrer o afeto da piedade; para mim, não há
sujeito senão de um processo de verdade etc. (Idem, Ibidem, p. 10).

Badiou nos lembra que Lacan chegou a lançar uma palavra de ordem para um
retorno a Descartes. Sartre trata, em um de seus famosos textos, da liberdade em
Descarte. É conhecida também a hostilidade de Deleuze contra o mesmo. Enfim, há
“uma batalha em torno da noção de sujeito, que frequentemente toma a forma de uma
controvérsia quanto a herança cartesiana” (BADIOU, 2015).

Também nos ensina Badiou que a filosofia francesa no século XX foi buscar na
Alemanha uma nova relação entre conceito e existência, onde encontramos um
verdadeiro debate sobre a herança do pensamento alemão, de Kant a Heidegger. Essa
busca se dá enquanto a primeira de duas operações intelectuais, de buscas
metodológicas. A segunda, não menos importante, é em relação à ciência. Os franceses
quiseram “arrancar a ciência do domínio estrito da filosofia do conhecimento”
(BADIOU, 2015, p. 12). Daí poderemos começar a compreender o estilo metodológico
na tradição do estruturalismo, e também a complexa e mal compreendida abordagem
de Lacan que será fundamental para compreendermos a questão do sujeito enquanto
descentrado; questão que será cara à formulação teórica da psicanálise e à filosofia que
se engajou com as questões que o inconsciente trouxe, em especial para a temática da
liberdade. Sobre isso, precisaremos então abordar o que define Lacan acerca da
questão do sujeito.

Em seu famoso retorno a Freud, Lacan retoma seu projeto pelo avesso,
articulando-se junto ao movimento de Saussure e Lévi-Strauss no estruturalismo
linguístico e antropológico. Também será influenciado por Hegel, via Kojève. Além
disso, irá, ao longo do desenvolvimento de seus seminários, incorporar ferramentas da
lógica matemática e da topologia para reelaborar a metodologia da formulação teórica
e, uma de suas principais preocupações, da transmissão da psicanálise. Podemos dizer
que a teoria lacaniana se funda por redefinir preceitos éticos e reformular a posição da
psicanálise em relação às ciências e à filosofia. Lacan aborda a psicanálise a partir de
uma ética. Seu objetivo também é o de combater mal-entendidos sobre o inconsciente

316
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

freudiano, formalizando com os meios de sua época (da linguística estrutural, da


antropologia, dos matemas, da topologia etc.), uma nova abordagem em psicanálise.
Como nos disse Badiou, o conceito lacaniano do sujeito é baseado na clivagem, na cisão
constitutiva. É dessa divisão que precisamos tratar.

Sendo assim, Lacan nos traz a concepção do estádio do espelho para


compreendermos basicamente como, na espécie humana, o infante já consegue
reconhecer sua imagem mesmo antes de superar um chimpanzé em termos de
inteligência instrumental. A partir dos 6 meses de idade o bebê já demonstra indícios
de simbolização com sua imagem refletida e, a partir disso, começa a relacionar-se com
essa imagem duplicada, estabelecendo uma concepção do próprio corpo enquanto
totalidade simbolicamente fechada. O estádio do espelho opera uma identificação, no
sentido analítico próprio estabelecido por Lacan: da transformação do sujeito quando
este assume uma imagem (LACAN, 1966/2010):

A assunção jubilatória de sua imagem especular, por esse ser ainda mergulhado
na impotência motora e na dependência da amamentação que é o filho do
homem no estágio de infans, parece-nos pois manifestar, numa situação
exemplar, a matriz simbólica em que o Euse precipita numa forma primordial,
antes de se objetivar na dialética da identificação com o outro e antes que a
linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito. (LACAN, J. “O
Estádio do Espelho como formador da função do eu” in: Um mapa da ideologia,
2010, p. 98).

O Eu (com maiúscula) designa aqui o sujeito do inconsciente, desenvolvido por


Lacan dos ensinamentos de Freud. Lacan denomina sua retomada, ou seu retorno
[retourner], a Freud enquanto uma retomada pelo avesso. Não é à toa. Lacan não
cessa de enfatizar sua crítica à noção freudiana de Eu [Ich] que fundamenta a sua
própria [Je]. Podemos encontrar essa crítica desde as primeiras páginas do seminário
II (1978, p. 20) até o seminário XXVII, onde Lacan dirá com todas as palavras que os
seus trêssão o real, o simbólico e o imaginário, diferindo-se assim da segunda tópica
freudiana, do Eu, Supereu e Isso. Não quer dizer que Lacan os descarte, obviamente.
Mas que sua leitura se dará situando-os em uma topologia (de objetos não orientáveis,
no caso a do nó chamado borromeu, algo do qual não trataremos no texto presente,
mas que se faz necessário e útil mencionar). Lacan elabora sobre o Eu que se constrói
em uma determinada matriz, a matriz do Outro, logo, do simbólico. Essa matriz

317
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

simbólica se dá pela relação especular e, portanto, invertida, onde o espaço do sujeito


se precipita a manifestar-se mesmo antes de ser propriamente articulado na
linguagem. Neste ensaio tudo já está aí, apesar de “simulado”: a dialética de
identificação com o pequeno outro (que é apenas ele mesmo refletido, mas já propicia
um efeito de troca que significa a totalidade do corpo) e a representação simbólica do
Eu [Je]:

Mas o ponto importante é que essa forma situa a instância do eu, desde
antes de sua determinação social, numa linha de ficção, para sempre
irredutível para o indivíduo isolado – ou melhor, que só se unirá
assintoticamente ao devir do sujeito, qualquer que seja o sucesso das
sínteses dialéticas pelas quais ele tenha que resolver, na condição de Eu,
sua discordância de sua própria realidade. (Idem, ibidem.)

Aqui podemos perceber uma das características do descentramento subjetivo


que Lacan caracteriza e conceitua, a não coincidência entre Je e moi. Em seu segundo
seminário já o vemos tratar da questão, situando-a desde Freud, na seguinte metáfora
tópica: “o sujeito está descentrado com relação ao indivíduo. É o que [Eu] é um outro
quer dizer.” (LACAN, 1978, p. 16) Para elaborarmos melhor esse ponto, lembremos o
que Lacan propõe em relação ao algoritmo saussuriano, a subversão em que Lacan
sustentará a primazia do significante sobre o significado. Será em seu Escritos, não à
toa, que Lacan definirá seu próprio algoritmo e formulará o princípio de sua virada
teórica pelo modelo do significante até a teorização dos quatro discursos. Reflete
também um dos traços do estruturalismo e sua abordagem: a formalização conceitual
onde o escrito ganha estatuto de fórmula, matema, estatuto que equivale ao registro do
Real, onde o Real é o escrito, diferido da palavra que se encontra na ordem do
Simbólico (como nos diz no seminário XVIII).

Em que pode ser útil a teoria lacaniana dos discursos para compreendermos a
ideologia e sua função, seu lugar, na estruturação da realidade? Para início de reflexão,
precisamos compreender que a teoria dos discursos desenvolvida por Lacan se apoia
tanto no estruturalismo linguístico e antropológico quanto nas subversões produzidas
pela sua intervenção, a partir do que Freud descobre sobre o inconsciente. Comecemos
pela apropriação e subversão do conceito de significante operado por Lacan.

318
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

É importante considerar, sobre a linguística estrutural, que ela estabelece


preceitos fundamentais para o estruturalismo ao tratar da linguagem e seus signos
como algo da ordem da diferença pura, aproximando-se assim da fundamentação
axiomática característica, por exemplo, da matemática. Sabemos que Saussure, em seu
Cours de Linguistique Générale, define o signo linguístico como união entre conceito e
imagem acústica, ou seja, entre significado e significante. A imagem acústica não se
refere ao som material, mas sua impressão psíquica. Além disso, Saussure determinará
tanto a arbitrariedade do signo, quanto o caráter linear do significante. Temos assim a
proposição saussuriana de Significado sobre o Significante:

Lacan, entretanto, subverterá o algoritmo saussuriano, removendo tanto as flechas


quanto o círculo em que se inscreve, e estabelecendo a primazia do significante sobre o
significado. Encontramos essa definição já em 1957, quando de seu texto A instância
da letra no inconsciente, ou a razão desde Freud, onde Lacan definirá que podemos
escrever sua proposição algorítmica como

sendo o algoritmo pura função do significante, revela também uma estrutura de


significante. Assim, determinará o significante em relação direta não mais ao
significado, mas a outro significante. Sobre a estrutura do significante, dirá Lacan que
está em que ele seja articulado, significando que suas unidades “são submetidas à
dupla condição de se reduzirem a elementos diferenciais últimos e de os comporem de
acordo com as leis de uma ordem fechada” (LACAN, 1978, p. 232). Sobre essa segunda
propriedade, Lacan enfatiza o termo cadeia significante para ilustrar-nos com a
imagem de “anéis formando um colar que se enlaça no anel de um outro colar feito de
anéis” e afirmar que “é na cadeia do significante que o sentido insiste; mas que

319
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

nenhum dos elementos da cadeia consiste na significação que ele é capaz no momento
mesmo” (LACAN, 1978, p. 232-233). Daí veremos sua justificativa acerca da primazia
do significante, e também sua crítica a Saussure que considera a linearidade “como
constituinte da cadeia do discurso, conformemente a sua emissão por uma única voz e
na horizontal” quando, na escrita da teoria psicanalítica apresentada por Lacan, “é
necessária, mas não suficiente”, devido sua dimensão retroativa. Lacan também
indicará as duas vertentes do campo efetivo que o significante constitui para se dar aí o
sentido: metonímia (quando dizemos que há no mar trinta velas, onde sabemos que a
palavra barco se esconde nessa relação) e metáfora (onde se troca uma palavra por
outra, como quando “amor é fogo que arde sem se ver”, e grande é o crédito dado por
Lacan tanto aos poetas quanto ao movimento surrealista, no que diz respeito nosso
conhecimento dos usos da metáfora). Lacan finalmente chegará à questão do sujeito
cartesiano, o cogito ergo sum, e à possível relação subversiva entre este e a finalidade
proposta pela descoberta de Freud: Wo Es war, soll Ich werden. Podemos resumir
brevemente a questão com a seguinte citação de Lacan:

O lugar que eu ocupo como sujeito de significante será, em relação


àquele que eu ocupo como sujeito do significado, concêntrico ou
excêntrico? Eis a questão. Não se trata de saber se eu falo de mim
conformemente ao que eu sou, mas se, quando eu o falo de mim, sou o
mesmo que aquele de quem eu falo. (LACAN, J. “A instância da letra no
inconsciente, ou a razão desde Freud” in:_. Escritos, 1978, p. 247)

Daí emerge o sujeito, “em virtude do significante que funciona como representando
esse sujeito junto a um outro significante” (LACAN, 1994, p. 11). Lacan, mais para
frente, desenvolverá sua teoria dos quatro discursos, dos quais não precisamos abordar
todos, senão o primeiro: o discurso do mestre. Começa por ele e não é à toa. O discurso
do mestre é aquele que, da posição de agente, endereça um significante mestre (S1) em
uma bateria de significantes ordenados (S2) que, por sua vez, se encontra no lugar do
Outro, no lugar (como nos diz Lacan) daquilo que se convencionou chamar de um
saber. O discurso do mestre não precisa ser sustentado necessariamente por uma
figura direta de um mestre, podendo operar simplesmente pela legitimidade que evoca,
seja pelo motivo que for. O significante mestre, por sua vez, opera uma função de
estofo, comanda um ordenamento discursivo. Sendo o inconsciente discurso do Outro,
nele opera também um ordenamento do significante mestre sobre sua estrutura. É

320
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

importante ressaltar que Lacan se refere ao S1 como puro imperativo: “O Eu


transcendental é aquele que qualquer pessoa que de uma certa maneira enunciou um
saber contém como verdade, é o S1, o Eu do mestre.” (LACAN, 1994, p. 59), o Eu
idêntico a si mesmo, Eu ideal. O significante-mestre garante assim uma fixação do
sentido, que poderia (e pode) sempre deslizar infinitamente sobre os significantes
referidos a outros significantes. Ele propicia tal demarcação não por ter algo essencial,
mas por um gesto vazio de referir-se a si mesmo. O “é assim porque eu disse” da
autoridade paterna é um exemplo dessa demarcação gestual performática, mas no
discurso político poderíamos pensar no significante mestre como o significante que
existe em diferentes discursos político-ideológicos, mas que opera de forma distinta na
lógica interna desses discursos: liberdade, por exemplo, é um significante mestre
comum a qualquer discurso político, mas seu sentido é completamente diferente no
discurso neoliberal (liberdade suprema das empresas, do mercado), no discurso nazista
(liberdade de suprimir uma identidade étnica em detrimento de outra, inclusive pelo
genocídio industrializado), ou no discurso marxista (liberdade de autodeterminação
contra a exploração estrutural, sistêmica).

Vemos então que esse discurso diz também algo da ordem da política, do poder
e do ordenamento (ou coesão) de um laço social, seja individual ou coletivo. Žižek
articulará o conceito de significante mestre junto à crítica da ideologia. Gunkel define o
conceito žižekiano de crítica da ideologia como aquilo que busca expor a dimensão
ideológica “implícita” que fundamenta um significante mestre:

não se contesta o antissemitismo exibindo a realidade empírica


verdadeira dos indivíduos judeus e demonstrando como eles nada se
parecem com o que foi (des)representado no discurso anti-semita. Ao
contrário, se contesta o antissemitismo mirando a construção
antissemita do “Judeu” [Jew] enquanto um significante-mestre.
(GUNKEL, D. The Žižek Dictionary, 2014, p. 193)

Aqui se faz necessário que passemos por Althusser e, consequentemente, a


crítica feita por Žižek à sua teoria da Ideologia. Lembremos então o que já
mencionamos brevemente, via Badiou, sobre a concepção de sujeito em Althusser. Para

321
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

ele, como vimos, o sujeito é uma categoria ideológica. O que isso quer dizer? Veremos a
seguir a dimensão em que Althusser se afasta de Lacan, a proposição žižekiana em
relação à ideologia e sua possibilidade de articulação com a crítica feita por Fanon em
Pele negra, máscaras brancas.

Ideologia: Althusser, Žižek, Fanon

Althusser desenvolve sua ideia partindo das formulações acerca dos AIEs
(Aparelhos Ideológicos de Estado, relacionando-os também aos Aparelhos Repressivos
do Estado, os AREs) e define a constituição subjetiva através da interpelação
ideológica: quando um policial interpela (convoca, adverte, demanda) um indivíduo,
este é interpelado enquanto sujeito por instâncias que cumprem uma função ideológica
de reprodução das relações de produção (ALTHUSSER, 1978/2010). É importante
demarcar que a relação entre AIEs e AREs não são de autoexclusão, de modo que
apesar de uns definirem-se mais pela característica repressiva e outros pela ideológica,
ambos são tanto um quanto outro (de tal modo que a polícia militar é um aparelho
repressor, mas internamente possui seus próprios aparelhos ideológicos, ao passo que
redes televisivas são aparelhos ideológicos que internamente possuem seus próprios
aparelhos repressores, por exemplo).

Althusser vai definir então suas teses acerca da ideologia, conceituando-a como
a-histórica no sentido específico que Freud dá para o inconsciente enquanto
atemporal, de tal modo que “a eternidade do inconsciente guarda alguma relação com a
eternidade da ideologia em geral” (ALTHUSSER, L. 1978/2010, p. 125). Em um
segundo momento, Althusser definirá também a ideologia enquanto uma
“representação” da relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de
existência e possuidora de uma existência material. Por fim, Althusser afirma que não
existe prática que não seja através e dentro de uma determinada ideologia, ao passo de
que não existe ideologia exceto pelo sujeito e para sujeitos. Daí teremos sua tese
central no texto Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado: a ideologia interpela o
indivíduos como sujeitos.

322
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Žižek retomará a formulação de Althusser, fazendo reformulações via Lacan e


Hegel: na sua teoria da ideologia, Žižek pontua a importância da Jouissance enquanto
fator político-ideológico, ao passo que situa a ideologia como uma dimensão
constituinte da própria produção da realidade. Žižek aponta, sobre Althusser, que “o
ponto fraco de sua teoria é que ele ou sua escola nunca conseguiram discernir o vínculo
entre os Aparelhos Ideológicos de Estado e a interpelação ideológica” (ŽIŽEK,
1992/2010).

A resposta a isso, como vimos, é que essa “máquina” externa dos


Aparelhos de Estado só exerce sua força na medida em que é vivenciada,
na economia inconsciente do sujeito, como uma injunção traumática e
sem sentido. Althusser fala apenas do processo de interpelação
ideológica mediante o qual a máquina simbólica da ideologia é
“internalizada”, na experiência ideológica do Sentido e da Verdade: mas
podemos aprender com Pascal que essa “internalização”, por uma
necessidade estrutural, nunca tem pleno sucesso, que há sempre um
resíduo, um resto, uma mancha de irracionalidade e absurdo
traumáticos que se agarra a ela, e que esse resto, longe de prejudicar a
plena submissão do sujeito à ordem ideológica, é a própria condição
dela: é precisamente esse excedente não integrado de trauma sem
sentido que confere à Lei sua autoridade incondicional; em outras
palavras, é ele que — na medida em que escapa ao sentido ideológico —
sustenta o que poderíamos chamar de jouis-sens ideológico, o gozo-no-
sentido (enjoy-meant) que é próprio da ideologia. (ŽIŽEK, S. “Como
Marx inventou o sintoma?” in: Žižek, 1992/2010, p. 321).

Chegamos então em uma de nossas hipóteses centrais, onde abordaremos a obra


de Fanon enquanto uma crítica da ideologia que já contém a dimensão do gozo-do-
sentido enquanto fator político. Para isso, façamos um preâmbulo sobre nossas
relações com a memória, a falta, a saudade e o (in)sucesso de nos reencontrarmos com
o objeto perdido.

Um ponto contundente que nos apresenta a psicanálise é sobre como


experimentamos a falta enquanto em uma fantasia retroativa, uma projeção que
significa o vazio de determinada experiência de perda. A questão aqui é que esse tipo
de experiência não é apenas casual, porém diz algo sobre como o sujeito se relaciona
com a perda e a falta não apenas no nível das relações interpessoais. Na dinâmica
abordada pela psicanálise entre o sujeito e o objeto (perdido) de desejo, que se articula

323
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

na fantasia, encontramos implicações políticas de fato. Fanon é um dos maiores


pensadores dessas fantasias retroativas que distribuem o campo da “geometria” do
poder nas relações coloniais racializadas. Sua análise parte da relação
colonizador/colonizado pela perspectiva racializada do branco e do negro, o francês e o
martinicano. No movimento de seu pensamento, Fanon fundamenta a tese de que tais
lugares se fundam pela posição colonial frente à diferença e vão estruturar tais
relações, desde suas condições de simbolização à organização material da vida,
passando evidentemente pelas expressões da cultura. Mas para compreendermos a
posição de Fanon, devemos entender sua compreensão de sujeito.

Em uma fantástica passagem no seu clássico Pele Negra, Máscaras Brancas,


Fanon nos diz que “há uma zona de não-ser, uma região extraordinariamente estéril e
árida, uma rampa essencialmente despojada, onde um autêntico ressurgimento pode
acontecer. A maioria dos negros não desfruta do benefício de realizar esta descida aos
verdadeiros Infernos.” (FANON, 2008, p. 26). Essa zona de não-ser, de negatividade
radical, é dimensão fundamental para o advento do sujeito: pode ser entendida como a
lacuna constitutiva do descentramento que torna possível o advento do sujeito. O que
Fanon sabia muito bem por sua orientação psicanalítica é que, justamente, a própria
concepção da identidade negra é condicionada e cerceada em sua condição colonial.
Doravante, o colonialismo não é simplesmente uma praga, natural e intrínseca ao
branco - o que seria tomar como pressuposto que exista algo que preceda a experiência,
algo da própria essência do branco, pressuposto que Fanon nega e combate em sentido
geral: sua obra explicita justamente que não há essência racial. Fanon sabia muito bem
também, pela sua orientação marxista, que o colonialismo surge da lógica do capital, e
todas as suas relações serão replicadas, deslocadas, reformuladas e, enquanto a
economia política que subjaz à lógica do colonialismo não for ela mesma implodida, o
colonialismo e o racismo retornarão tanto em dimensão geopolítica quanto no discurso
político-ideológico para cooptação do afeto do medo enquanto medo do Próximo
(nesses dois sentidos, respectivamente, podemos pensar na situação contemporânea do
Estado de Israel e as plataformas de partidos da extrema-direita estadunidenses e
europeias contra imigrantes).

324
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

O racismo, sabemos, é presente em nossa sociedade, sendo questão


fundamental para compreendermos da saúde à segurança pública, passando por
inúmeras esferas da vida. Dizer isso somente não é suficiente. Precisamos conceituar
como o racismo é definido enquanto fenômeno histórico, político e social para que a
questão não se perca em uma compreensão psicologizante. A concepção estrutural do
racismo implica compreendermos que este fenômeno é parte fundante de nossa
sociedade, e está na própria forma “normal” das relações políticas, econômicas,
jurídicas e familiares (ALMEIDA, 2018). Silvio Luiz de Almeida nos apresenta uma
leitura sobre a formação do Estado, enquanto instituição política principal do
contemporâneo, pela compreensão do racismo enquanto interligado à sua estrutura,
alimentando e sendo alimentado pela mesma. Também acrescenta que é “por meio do
Estado que a classificação de pessoas e a divisão dos indivíduos em classes e grupos se
torna possível” e que a “especificidade da dinâmica estrutural do racismo está ligada
às peculiaridades de cada formação social” (ALMEIDA, 2018, p. 84), sendo a
observação das respectivas experiências históricas fator crucial para a compreensão de
suas particularidades sociais, tanto que as características biológicas e culturais
relacionados são suportes materiais para a significação da ideia raça, enquanto
construída socialmente (ALMEIDA, 2018, p. 85).

A formação dos Estados nacionais com o advento do capitalismo se dá de tal


modo que é preciso uma alteração na organização da vida social em múltiplos âmbitos,
das dimensões estruturais às identidades, esse fator sendo fundamental para a
construção da nacionalidade enquanto narrativa acerca dos laços sociais de
determinado povo em determinado território e governado por um poder centralizado
(ALMEIDA, 2018, p.85). Se por um lado o significante nacional gera pertencimento
identitário, por outro cria regras de exclusão.

Mas como sabemos, a identidade não é algo fixo, essencial e imutável, não é
estanque e muito menos não relacional. A identidade é um processo simbólico que
estrutura o ego e, por sua limitação estrutural, é sempre implicada pela sua falta, já que
toda identidade necessita de uma constituição junto ao Outro (da alteridade radical, da
linguagem, etc.) e esse Outro é, por definição, faltoso, furado. Voltaremos a esse ponto

325
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

mais adiante, por hora basta dizermos que a identidade se dá a partir de um processo
de estruturação simbólica do imaginário, mas vai além da simples nomeação. De
acordo com Žižek, já em Hegel encontramos a percepção de que há algo de violento na
própria simbolização: quando nomeamos uma coisa, o próprio ato de nomeação reduz
tal coisa a um traço e implica sua inserção em uma rede de significações exterior à
própria coisa. Mas, não podemos esquecer, essa violência pode se dar também em uma
dimensão libertadora. Não seria a diferenciação entre trabalhador (ou a categoria força
de trabalho, como apresentada n’O Capital) e proletário um grande exemplo de
violência simbólica emancipadora? Žižek, enquanto bom hegeliano, percebe os deslizes
de Lacan ao analisar as categorias marxistas de exército industrial de reserva e
população excedente

A “população excedente” e o “exército industrial de reserva” não


designam precisamente uma posição subjetiva – são categorias sociais
empíricas. De uma maneira implícita, sutil (não muito diferente da
distinção implícita de Freud, desenterrada por Lacan, entre o ideal de
ego e o superego), Marx distingue sim entre o proletariado (uma posição
subjetiva) e a classe trabalhadora (uma categoria social objetiva).
(ŽIŽEK, Slavoj. “A Política de Alienação e Separação: de Hegel a Marx...
e de Volta”, 2017, p. 7)

O que devemos perceber aqui é a dimensão específica que a categoria proletariado


carrega enquanto uma passagem da identidade em si do trabalhador ao para si que é
perceber-se enquanto parte de uma universalidade determinada por uma negatividade
potencialmente emancipatória. Essa é justamente uma das fronteiras entre sociologia e
filosofia no pensamento marxista: ao tratarmos da classe trabalhadora enquanto
categoria social objetiva, empiricamente observável, podemos pensar na metodologia
científica sociológica de análises categoriais. Quando o termo proletariado aparece,
devemos (ou ao menos deveríamos) saber que a questão da qual tratamos agora é de
cunho filosófico e político, partimos para o horizonte crítico da emancipação e
assumimos uma postura subjetiva. Não à toa o advento do “fim da história” como
anunciado por Fukuyama significa, na verdade, o advento da pós-política. Mas,
devemos lembrar, um ato político propriamente dito se diferencia da administração
das questões sociais justamente por mudar a própria estrutura que determina como as
coisas funcionam (ŽIŽEK, 1999/2016, p. 220) e, nesse sentido, o movimento de

326
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

construção da identidade proletária pela classe trabalhadora é um ato político em si e


para si. Perceber-se proletário implica incluir-se em uma categoria universal e isso,
essa nomeação, muda a própria realidade, a própria forma como o sujeito interpreta e
age em sua vida.

É impossível aqui não mencionarmos os ensinamentos de Fanon. Ele nos traz a


importância da dimensão histórica e política na formação dessa “álgebra” dos espaços
simbólicos onde se constitui a subjetividade. Se “falar é existir absolutamente para o
outro” e “é estar em condições de empregar uma certa sintaxe, possuir a morfologia de
tal ou qual língua, mas é sobretudo assumir uma cultura, suportar o peso de uma
civilização” (FANON, 2008, p. 33), poderíamos reconhecer aqui a materialidade da fala
e a dimensão superegóica do simbólico, ambas enquanto consequências (da ética) da
psicanálise para o pensamento político? Žižek parece apostar que sim e segue o
movimento de Fanon, afirmando que “por conseguinte, em vez de procurar
desesperadamente por nossas raízes autênticas, a tarefa é perder nossas raízes de
maneira autêntica – essa perda é o nascimento da subjetividade emancipatória”
(ŽIŽEK, 2017, p. 9) ou, em termos mais específicos, o nascimento da subjetividade com
potenciais emancipatórios.

Mas o que significa essa maneira autêntica na qual precisamos ser destituídos
de nossas “raízes” para que essa subjetividade, que demanda e depende de ação
emancipatória, possa surgir? Podemos encontrar uma pista na passagem de Pele
Negra, Máscaras brancas, onde Fanon apresenta sua crítica ao culto da inteligência:

Quando um outro tenta obstinadamente me provar que os negros são tão


inteligentes quanto os brancos, digo: a inteligência também nunca
salvou ninguém, pois se é em nome da inteligência e da filosofia que se
proclama a igualdade dos homens, também é em seu nome que muitas
vezes se decide seu extermínio. (FANON, Pele negra, máscaras brancas,
2008, p. 43).

Nesse sentido, a obra fanoniana produz um movimento crítico violentamente


emancipatório contra a ideia de raça enquanto significante mestre da própria ideologia
racial (e em última análise, racista): defender uma “essência da raça”, seja referindo-se
ao significante “branco” ou “negro”, é recair na própria lógica colonial de demarcação
dos espaços, tal qual Fanon já nos evidenciava. Se “aquilo que se chama de alma negra
327
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

é frequentemente uma construção do branco” (FANON, 2008, p. 30), descobrimos que


a própria alma está implicada no desvio existencial produzido pela violência colonial.
Sendo assim, por Fanon compreender a subjetividade pela sua radicalidade, por
entender a política e o colonialismo pela sua operação ideológica de dominação, toda
sua obra é perpassada pelo efeito da compreensão prática do descentramento do
sujeito, sua não coincidência com a identidade e os significantes que o traçam. Longe
de ser um humanismo ingênuo que afirma sermos todos iguais bastando que
“abandonemos os rótulos”, sua postura é de radicalizar a nossa própria compreensão
de como se constrói a identidade do colonizado em relação ao colonizador, do preto em
relação ao branco etc. Fanon ainda busca ir além. Seu objetivo é emancipar o sujeito de
suas determinações históricas:

Não se deve tentar fixar o homem, pois o seu destino é ser solto. A
densidade da História não determina nenhum de meus atos. Eu sou meu
próprio fundamento. É superando o dado histórico, instrumental, que
introduzo o ciclo de minha liberdade. (FANON, Pele negra, máscaras
brancas, 2008, p. 190)

Ao se produzir a raça como tecnologia de poder para controle dos corpos — dos que são
livres ou escravos, humanos ou não humanos, nativos ou civilizados, etc. — desenvolve-
se uma condição ideológica que toma os corpos como suporte material desse universo
simbólico. Ora, não era justamente essa a pretensão do racismo científico, como nos
mostra a frenologia?! Antes, o próprio espaço simbólico que constitui a formação de
nossa consciência, subjetividade e identidade é onde se desenvolve a ideia de raça para
que esta torne-se uma abstração real, no sentido marxista que Douglas Rodrigues
Barros toma emprestado em seu livro Lugar de negro, lugar de branco? Esboço para
uma crítica da metafísica racial, e o utiliza no mesmo sentido — enquanto algo que
não possui fundamento substancial mas produz realidade, organiza a vida em seus
efeitos materiais.

Essa abstração real da raça—que ao mesmo tempo que fundamenta a


relação social funda sua forma categorial—é um processo no qual a
justificativa excludente se dá no plano sociossimbólico. Isso passa a
governar os destinos individuais guiando-os para uma submissão frente
àquilo que aparece como o “bom”. É essa estruturação da subjetividade
colonizada que interessa a Fanon. (BARROS, D. R. Lugar de negro,
lugar de branco?, 2019, p. 49)

328
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Douglas trará as armas da crítica fanoniana para nos lembrar que os dois
movimentos comuns são já inscritos na lógica simbólica da colonização: 1) a
superidentificação com o mundo colonial, seu estilo, linguagem, símbolos; a
caracterização do poder nos termos da branquitude, e 2) a negação que busca um
retorno a si, às origens, ao mundo perdido e a um mito originário que é,
necessariamente, inexistente. Ambas as posições são coniventes com a lógica colonial,
apesar de aparentemente distintas — até opostas. Se a primeira é mais fácil de
imaginarmos, a segunda hoje pode ser ouvida por qualquer neonazista europeu ou
supremacista branco norte-americano: a ideia de retorno é justamente o que eles
querem impor aos árabes, mexicanos, chineses, sírios, líbios… Qualquer pessoa não-
branca é “convidada” a regressar para sua “origem”— às vezes mesmo que essa pessoa
tenha nascido no território do respectivo país ao qual “não pertence”. De certa forma, a
violência terrorista do Estado de Israel contra o legítimo território palestino não se
fundamenta justamente nesse mito originário da terra sagrada? Um povo que foi
vítima de uma das mais traumáticas e rememoradas atrocidades racistas e genocidas
do séc. XX, que foram subjugados à perseguição e extermínio em escala industrial por
conta de um discurso paranoide orientado pela abstração real da ideia de raça, hoje
protagoniza uma das maiores atrocidades em curso no contemporâneo. Hoje para um
judeu afirmar-se antirracista, seguindo a máxima de que não basta não ser racista, ele
categoricamente precisa se afirmar anti-sionista, ou seja, contra o Estado de Israel, que
invade território palestino.

Isso nos traz a um imbróglio tão pertinente quanto espinhoso, fundamental para
abordarmos a política no contemporâneo: a questão das identidades se torna central
para a manutenção dos (des)governos neoliberais, de tal forma que a própria extrema-
direita protofascista estadunidense e europeia já se define enquanto identitária.
Enquanto isso, o debate da esquerda rendida aos limites neoliberais se dá na
reafirmação da identidade enquanto sua bandeira de luta. Não seria o momento de nos
questionarmos sobre a identidade enquanto categoria central para a política
emancipatória? Mas, melhor dizendo, não se trata de negligenciar ou abandonar a
categoria da identidade, até porque isso não faz o menor sentido. Porém, para aqueles
que pensam ser esse o horizonte do embate político e não o de superação dessa camisa

329
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

de força imposta objetivamente para nós, tanto pela violência da linguagem quanto
pelo preço de sangue da violência sistêmica, nosso questionamento já não é mais uma
questão de “se devemos”, mas de como faremos essa crítica à categoria da identidade
que vise uma superação qualitativa do sujeito frente às suas determinações simbólicas.

Uma dimensão fundamental é defendermos e retomarmos o legado de Fanon e


seus ensinamentos acerca da nossa relação com o gozo de nossas identidades e raízes
perdidas. Acerca disso, Fanon afirma um rigoroso olhar para o futuro, contra o retorno
às raízes que se revelam, em última instância, uma fantasia no pior sentido (ou no
menos emancipador possível).

Não quero, acima de tudo, ser mal compreendido. Estou convencido de


que há grande interesse em entrar em contato com uma literatura ou
uma arquitetura negras do século III a.C.. Ficaríamos muito felizes em
saber que existe uma correspondência entre tal filósofo preto e Platão.
Mas não vemos, absolutamente, em que este fato poderia mudar a
situação dos meninos de oito anos que trabalham nas plantações de cana
da Martinica ou de Guadalupe. (Idem, Ibidem.)

Para livrarmo-nos dessas fantasias, precisamos nos livrar também dos gozos do
sentido que ainda nos amarram ao pensamento identitário. É necessário aqui
atentarmos que a crítica da ideologia se revela não apenas como uma crítica da
economia política, mas uma crítica da economia libidinal. Para essa crítica, precisamos
nos aprofundar no materialismo simbólico que é constitutivo do sujeito. Sabemos do
diálogo e influência que o pensamento de Fanon teve em relação à filosofia francesa do
século XX, em especial com Sartre e Lacan, que aparece em algumas citações de Pele
negra, máscaras brancas, tanto enquanto referência como objeto de elaboração crítica
acerca da teoria psicanalítica, por exemplo, quando Fanon sugere uma problemática
sobre o estádio do espelho, como formulado por Lacan, quanto a função simbólica do
Outro em relação ao branco e ao negro, como quando diz “que é, tomando como
referência a essência do branco, que o antilhano é percebido pelo seu semelhante”
(FANON, F. Pele negra, máscaras brancas, 2008, p. 142). Aqui vemos surgir a
dimensão do Outro enquanto constitutivo da relação com o semelhante, um Outro
branco que se revela mediando a relação mesmo entre colonizados. Não é à toa que
quando lemos esta obra fica evidente que Fanon já premeditava uma recepção ríspida

330
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

de suas críticas e posicionamentos, vindas de todos os lados (fosse dos movimentos


negros, fosse de marxistas brancos europeus etc.). Fanon convoca a uma verdadeira
travessia da fantasia: para um lugar onde um “autêntico ressurgimento pode
acontecer”. Vale retomar essa passagem citada: “A maioria dos negros não desfruta do
benefício de realizar esta descida aos verdadeiros Infernos.” (FANON, 2008, p. 26)
Mas o que são esses verdadeiros Infernos? Fanon está ciente tanto da necessidade
quanto da violência implicada nesse corte, nessa simultaneidade entre emergir e
separar-se desse Outro imposto social e historicamente, intocado e protegido pela
pseudo-atividade autômata e acrítica que o permite seguir nos vampirizando.

Conclusão

Das conclusões que podemos tirar desse percurso, ressaltemos três: a primeira é
a importância de retornarmos a Fanon, com o mesmo rigor teórico que ele nos
presenteia. É importante que o leiamos à luz do que fora elaborado após sua produção,
da teoria contemporânea, junto também dos desdobramentos de autores com os quais
ele dialogava entusiasticamente. Sua obra ainda tem muitas possibilidades de
articulação a serem exploradas junto aos seus interlocutores, em específico o que
ressaltamos aqui (Lacan), e essa atualização e diálogo é obrigação a todos que
pretendem disseminar seu legado ainda profícuo. Em segundo lugar, vale dizer que ler
Fanon com Lacan ressalta uma dimensão política do segundo que normalmente não
percebemos, ou que alguns ignoram. Ou seja, Lacan é fundamental para a política
contemporânea caso o leiamos com as lentes forjadas e polidas por Fanon. Por último,
podemos reconhecer em Fanon uma crítica voraz ao apego ideológico ao passado
enquanto uma realidade mítica perdida e, como espera-se ter sido evidenciado,
fundamentalmente um apego paralisante, um apego que corresponde ao que hoje
podemos compreender como dimensão ideológica constitutiva da realidade: algo que
nos forma, mas não deve ser admitida, aceita, como horizonte eterno ou final. Fanon
nos ensina que aquilo ao qual nos apegamos enquanto passado originário, mítico, é,
via de regra, construção determinada pela dimensão imaginária e simbólica que nos
impossibilita qualquer saída emancipatória. É importante ressaltar que isso não

331
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

significa uma desvalorização da história, mas a necessidade de que, para nos


emanciparmos, é necessário superar suas determinações, ou seja, para finalizarmos em
seus termos: que conheçamos o passado para que nada dele nos determine, que
conheçamos o passado para podermos elencar o que dele nos emancipa e o que não nos
serve para sermos livres.

Referências

ALMEIDA, Sílvio Luís. 2018. “Estado e direito: a construção da raça”. in: Silva, M. L.; Farias,
M.; Ocariz, M.C.; Stiel Neto, A. (orgs). Violência e Sociedade: o racismo como
estruturante da sociedade e da subjetividade do povo brasileiro. São Paulo: Escuta.

ALTHUSSER, Louis. 2010. “Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado” in: Žižek, S. (org.)
Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto.

BADIOU, Alain. 2015. A aventura da filosofia francesa no século XX. São Paulo:
Autêntica.

BARROS, Douglas Rodrigues. 2019. Lugar de negro, lugar de branco? Esboço para
uma crítica da metafísica racial. São Paulo: Hedra.

FANON, Frantz. 2008. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA.

LACAN, Jacques. 2010. “O estádio do espelho como formador da função do eu”. in: Žižek, S.
(org.) Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto.

LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 2: O eu na teoria de Freud e na técnica da


psicanálise. 1985. Rio de Janeiro: Zahar.

LACAN, Jacques. 2005. O Seminário, Livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Zahar.

LACAN, Jacques. 1992. O Seminário, Livro 17: O Avesso da Psicanálise. Rio de Janeiro:
Zahar.

LACAN, Jacques. 2007. O Seminário, Livro 18: De um discurso que não seja do
semblante. Rio de Janeiro: Zahar.

332
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

LACAN, Jacques. 1978. Escritos. São Paulo: Perspectiva.

GUNKEL, D. 2014. in: The Žižek Dictionary. New York: Routledge.

SAUSSURE, F. 2013. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix.

ŽIŽEK, Slavoj. 2017. “A Política de Alienação e Separação: de Hegel a Marx... e de Volta”.


Crise e Crítica. volume I, número 1. (Disponível em: http://criseecritica.org/ Acesso em
04/04/2020).

ŽIŽEK, Slavoj. 2016. O Sujeito Incômodo: o Centro Ausente da Ontologia Política.


(1999). São Paulo: Boitempo.

ŽIŽEK, Slavoj. Violência. 2014. São Paulo: Boitempo.

ŽIŽEK, Slavoj. 2010. “Como Marx inventou o sintoma?”in: Žižek, S. (org.) Um mapa da
ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto.

333
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

PLANETA DE FAVELAS
15 anos depois

Guilherme Chalo e Maurilio Lima Botelho

Em 2004, um texto do geógrafo norte-americano Mike Davis, publicado na


revista New Left, obteve grande repercussão. Intitulado Planeta de favelas - a
evolução urbana e o proletariado informal, o artigo rapidamente foi alvo de
comentários nos meios acadêmicos, teve reflexo em matérias jornalísticas e suscitou
tanto debate que se desdobrou em livro. Dois anos depois seria publicada a obra
homônima, ainda com mais repercussão, rapidamente traduzida em várias línguas e
detalhando os principais temas do artigo.

Passados 15 anos, algumas das reflexões do artigo estão mais atuais do que
nunca. Embora tenha sido tachado como catastrofista e pessimista, a denúncia de uma
favelização generalizada no século XXI aparece hoje como mera constatação de uma
tendência em aprofundamento. Discutindo questões como a ampliação da urbanização
sem infraestrutura, a massa populacional recém-chegada nas cidades que não encontra
empregos, a miséria urbana crescente – inclusive nos centros do capitalismo –, o artigo
de Davis merece ser revisto mais pelo evidente acerto de suas indicações para o
presente e futuro urbano mundial do que por seus equívocos. Uma década e meia
depois, o planeta está ainda mais favelizado e torna-se importante revisitar os seus
principais argumentos à luz da tragédia urbana mundial agravada em toda parte.

O desafio das favelas

O artigo de Mike Davis foi inspirado pelo “relatório histórico e sombrio” do


Programa de Assentamentos Humanos das Nações Unidas (ONU-Habitat), The
Challenge of the Slums, publicado em 2003. Resultado de um conjunto de estudos de

334
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

caso levado a cabo pela ONU, de dados inéditos produzidos em países anteriormente
vedados à informação (principalmente do Leste Europeu e China) e de bases
atualizadas e disponíveis pelas novas redes de comunicação, o relatório trouxe um
quadro absolutamente aterrador do “estado das cidades do mundo”, focando no
problema global da favelização. Mesmo apontando falhas na interpretação, Mike Davis
ressaltou como uma das qualidades do levantamento o tratamento franco do problema
da pobreza urbana e da progressiva carência habitacional:

Slums é um documento valiosíssimo que dá destaque às descobertas


insistentes da pesquisa diante das autoridades institucionais das
Nações Unidas. Se os relatórios do Painel Intergovernamental sobre a
Mudança Climática constituem um consenso científico sem precedentes
sobre os perigos do aquecimento global, Slums parece ser um alerta
igualmente enfático sobre a catástrofe global da pobreza urbana (Davis,
2006a, p. 197).

O relatório da ONU apontava que, em 2001, 924 milhões de pessoas, ou 32% da


população mundial vivia em favelas (ONU, 2003, p. vii). 1 Embora em termos absolutos
a Ásia fosse o continente com o maior número de pessoas vivendo em favelas, a África
apresentava o percentual mais elevado de favelização, chegando em determinados
países, como Etiópia, a 99,4% do total de sua população (Davis, 2006a, p. 199). A
paisagem urbana mundial é atravessada por favelas resultantes de problemas
estruturais graves:

Pode haver mais de 250 mil favelas na Terra. Sozinhas, as cinco maiores
metrópoles do sul da Ásia (Karachi, Mumbai, Délhi, Kolkata e Daca)
somam cerca de 15 mil comunidades faveladas diferentes com um total
de mais de 20 milhões de habitantes. Uma população favelada ainda
maior cobre o litoral em urbanização da África ocidental, enquanto
outras conurbações imensas de pobreza espalham-se pela Anatólia e
pelas terras altas da Etiópia; abraçam a base dos Andes e do Himalaia;
explodem para longe dos núcleos de arranha-céus da Cidade do México,
de Jo-burg, Manila e São Paulo; e, claro, ladeiam as margens dos rios
Amazonas, Níger, Congo, Nilo, Tigre, Ganges, Irrawaddy e Mekong.
(Davis, 2006a, p. 199).

1 Para facilitar a leitura reduzindo os “ruídos” no texto, padronizamos as referências a todos os relatórios
da ONU com a sigla em português, mesmo quando o documento acessado está em inglês.

335
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Apesar da concentração do problema da favelização nos “países em


desenvolvimento”, os países desenvolvidos apresentavam 54 milhões de habitantes em
favelas, correspondendo a cerca de 6 % da população mundial. Segundo o relatório, em
trinta anos, seria provável enfrentarmos um total de 2 bilhões de pessoas vivendo em
favelas em todo o mundo (ONU, 2003, p. xxv).

Apesar da tragédia daquela projeção, os estudos mais recentes do programa de


habitação das Nações Unidas já não trazem mais as marcas críticas daquele histórico
relatório que serviu de inspiração a Mike Davis. Isso porque os documentos mais novos
da ONU tentam enfatizar os esforços realizados pelo próprio organismo nas últimas
décadas e, particularmente, as ações nos “países em desenvolvimento” que teriam
amenizado o problema da favelização. Assim, segundo o organismo internacional,

desde a Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos


em Vancouver, em 1976, e a de Istambul, em 1996, e a adoção dos
Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, em 2000, tem-se observado
melhorias na qualidade de vida de milhões de habitantes em áreas
urbanas, inclusive de moradores de favelas e assentamentos informais
(ONU, 2019, p. 3).

Não é fácil estimar os efeitos de políticas nacionais e locais, espalhadas pelo


mundo, sobre o fenômeno da favelização, mas quando verificamos que,
reiteradamente, os relatórios do ONU-Habitat elogiam as ações levadas a cabo por
diversas esferas governamentais no Brasil, é preciso então encarar com estranheza a
mudança da atitude “sombria” de 2003 para a esperançosa postura recente.

Em documento de 2006, por exemplo, a ONU ressalta o esforço do Brasil em


obter estabilização nas taxas de crescimento das favelas (2006, p. 41). Também em
vários momentos os “orçamentos participativos” foram citados como de significativa
relevância para focar a atuação municipal nos problemas sociais (ONU, 2016, p. 12).
Por fim, há uma questionável identificação do Brasil como um exemplo mundial de
fornecimento de moradia para famílias pobres:

Brasil, Etiópia, Índia, Malásia, Singapura e os países do Médio Oriente


e do Norte de África continuam a ser muito efetivos na oferta de
moradia, gerando grandes volumes de números de apartamentos para
famílias de baixa e média renda (ONU, 2016, p. 52).

336
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Embora muitas políticas focadas – principalmente voltadas à urbanização das


favelas -, tenham sido implementadas no Brasil nas últimas décadas, o agravamento
das condições sociais, a ampliação do desemprego, a expansão das favelas já existentes
e o surgimento de novas têm gerado um saldo negativo diante das tímidas iniciativas
de construção de infraestrutura ou de provisão de moradias.

Uma comparação é útil aqui. O Censo de 2010, com todas as limitações


metodológicas que possui,2 demonstrou que, desde 2000, o número de brasileiros
vivendo em favelas passou de 6,5 milhões para 11,4 milhões, um salto de 75%. Nesse
intervalo a população brasileira cresceu 12,3%, já a proporção de brasileiros em
habitações precárias saltou de 3,5% para 6% da população – o que é obviamente um
dado subestimado. Enquanto isso, num relatório divulgado no Fórum Urbano Mundial
realizado no Rio de Janeiro, a ONU (2010, p. 7) estimava que o Brasil havia retirado
10,38 milhões de pessoas de favelas entre 2000 e 2010.

Evidentemente, não existe nenhum indício de melhora significativa da situação


das favelas no Brasil e o programa “Minha Casa Minha Vida” não foi capaz de reduzir o
déficit habitacional brasileiro diante da continuidade do crescimento urbano e da piora
das condições nas periferias das grandes cidades.

Entretanto, os números e algumas das análises pontuais apresentadas pela ONU


ainda são assustadoras e o que parece é que a confiança numa melhoria no cenário
urbano mundial decorre mais de uma simulação de esperança do que de uma aceitação
dos contornos fortes da realidade. A ONU calcula que, em 2050, cerca de 3 bilhões de
pessoas residirão em favelas em todo o mundo. 881 milhões de pessoas viviam favelas
em 2014, ou seja, 30% da população mundial, enquanto em 2000 correspondiam a
39%. Apesar da mudança da série estatística, o resultado ainda é o de um incremento
absoluto da favelização mundial: um aumento de 27% diante de 1990, quando eram
689 milhões, e um crescimento de 11% comparado ao ano de 2000, quando 792
milhões de pessoas viviam em favelas no planeta (ONU, 2016, p. 48).3

2 Para uma crítica dos limites metodológicos das aferições do IBGE, ver Botelho (2016).
3 Esses números destoam daqueles apresentados em 2003, mas mesmo aqueles eram subestimados:
Mike Davis fez uso de diversas fontes, entre elas pesquisadores consultados pela própria ONU, e

337
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Mesmo com o otimismo diante da questionável provisão de moradias por parte


de alguns países pobres, o ONU-Habitat ressalta que, em todo o mundo, ocorreu um
declínio da habitação como uma prioridade política, resultado das transformações
econômicas, nos últimos 20 anos. O mercado residencial tornou-se um investimento
importante tanto nos países desenvolvidos quanto nos “emergentes” (ONU, 2016, p.
58). E uma das observações comuns agora, em todos os levantamentos sobre as
condições habitacionais mundiais – e que reforçam uma tendência já averiguada em
2003 –, é a piora da situação urbana em países desenvolvidos:

As zonas urbanas das regiões desenvolvidas não estão imunes às


disparidades urbanas entre as condições de vida dos seus cidadãos. A
Europa, por exemplo, conheceu um aumento do número de habitantes
urbanos que não podem pagar aluguel, com os custos da habitação
aumentando rapidamente nas grandes e mais prósperas cidades. Este é
especialmente o caso do Sul e do Leste Europeu, enquanto os países da
Europa Ocidental teriam mais de 6% dos seus habitantes urbanos
vivendo em condições extremamente precárias. As tendências em outras
regiões desenvolvidas (América do Norte, Austrália e Nova Zelândia)
sugerem que existem proporções significativas de pessoas que poderiam
ser classificadas como vivendo em bairros pobres (ONU, 2015, p. 4).

Favelas por todo o mundo

Este é um dos aspectos mais importantes debatidos principalmente no livro


Planeta Favela: a favelização já não é mais um problema do Terceiro Mundo. Embora,
sem dúvida, a esmagadora maioria da população residente em favelas esteja na
periferia do capitalismo, Mike Davis indicou que em países como os Estados Unidos já
existem pelo menos 5,8% da população urbana morando em favelas (quase 13 milhões
de pessoas). E o antigo Segundo Mundo foi progressivamente transformado num novo
Terceiro Mundo, com centenas de milhões de habitantes do ex-bloco socialista caindo
para a pobreza durante o breve período da “transição” (2006b, p. 168).

Isso é algo que se agravou desde então: o noticiário mundial regularmente


aponta para as condições precárias de habitação em bairros pobres das cidades
europeias e em algumas de suas metrópoles as favelas aparecem na paisagem – por

apontou para 921 milhões de favelados no mundo já em 2001 e para mais de um bilhão em 2005
(2006b, p. 34).

338
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

exemplo, 570 “bidonvilles” se espalham pelo território francês, algumas se erguendo


com papelão e madeira nas ruas de Paris.4 Em Londres, conjuntos habitacionais ou
antigos prédios de escritório se transformam progressivamente em cortiços, numa
degradação habitacional decorrente dos elevados custos de vida na capital europeia das
finanças: o incêndio da torre Grenfell, em 2017, tornou-se o símbolo das condições
residenciais agravadas.5 Na Espanha, as “chabolas” tornam-se cada vez mais comuns.6

É verdade que a favelização europeia envolve principalmente os imigrantes, mas


isso tem servido como desculpa para responsabilizar os recém-chegados em uma
Europa cada vez mais excludente e esconder que as condições habitacionais da
população “nacional” mais pobre estão em franco processo de regressão. Um estudo da
Oxfam, em 2015, apontou que 123 milhões de pessoas estavam em risco de pobreza na
União Europeia.7 Informação do próprio instituto de estatísticas europeu, Eurostat, dá
conta de 25 milhões de crianças ameaçadas pela pobreza – uma em cada quatro
crianças do bloco econômico.8

Esses casos se referem apenas às habitações cada vez mais precárias, pois o
quadro é ainda mais dramático quando se considera o problema dos sem-tetos ou o uso
das ruas como moradia. Já na sua obra, Mike Davis apontava para essa solução para a
falta de habitação em Los Angeles: pelo menos 100 mil pessoas viviam nas ruas na
“capital dos sem-tetos no Primeiro Mundo” (2006b, p. 46). Desde então o problema se
agravou, já que a crise do subprime expulsou milhões de pessoas de suas moradias: os
acampamentos para homeless se multiplicam, os parques de trailers já reúnem 20

4 Favelas em Paris, uma cicatriz na cidade-luz, El País, 27 nov. 2017. Disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2017/11/25/internacional/1511631226_017741.html. Acesso em jul.
2019.
5 Em junho de 2017 um incêndio se alastrou por um prédio de 24 andares em Londres, cerca de 80

pessoas teriam morrido na tragédia ocorrida exatamente num edifício de habitação social.
6 La capital tiene solo 568 chabolas repartidas en 10 núcleos distantes, El País, 21 nov. 2015. Disponível

em: https://elpais.com/ccaa/2015/11/21/madrid/1448125288_923664.html. Acesso em jul. 2019.


7 Um quarto da população da União Europeia vive em risco de pobreza, diz Oxfam, Agência Brasil, 09

set. 2015. Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2015-09/um-quarto-


da-populacao-da-uniao-europeia-vive-em-risco-de-pobreza-diz. Acesso em jul. 2019.
8 Pobreza na Europa tem afetado mais de 25 milhões de crianças, Exame, 16 nov. 2016. Disponível em:

https://exame.abril.com.br/economia/pobreza-na-europa-tem-afetado-mais-de-25-milhoes-de-
criancas/. Acesso em jul. 2019.

339
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

milhões de norte-americanos9 e estacionamentos destinados à moradia agora são


comuns, onde os proprietários dormem em seus veículos, muitas vezes com famílias
inteiras. Mesmo com a simulação de crescimento econômico nos Estados Unidos
graças ao crédito barato proporcionado pelas taxas de juros mais baixas da história,
somente a Califórnia, o estado mais rico do mundo, possui meio milhão de moradores
de rua.10

Como deixou claro Raquel Rolnik, uma das responsáveis por várias das
pesquisas e levantamentos realizados pelo ONU-Habitat, a financeirização do solo
urbano e das moradias provocou um duplo efeito sobre a crise habitacional: de um
lado, a concentração progressiva de renda e aumento da desigualdade social, de outro,
a dificuldade crescente de acesso à moradia pela complexificação financeira e elevação
dos custos imobiliários (2015, p. 14-15). Esse fenômeno agravou a situação residencial
no centro do capitalismo mundial, pois foi aí que a financeirização chegou ao extremo:
de 2006 até o final de 2016, ocorreram mais de 24 milhões de encerramentos
hipotecários (foreclosures) em território norte-americano. Deste total, 6 milhões e 700
mil chegaram ao fim do processo, com despejo das famílias.11

Mas é evidente que a favelização no centro da economia capitalista torna-se


pequena quando comparada à magnitude do problema na periferia mundial: na
América Latina, 24% de toda a população urbana vive em favelas; na Ásia, são 30% dos
moradores das cidades e na África 61,7% de todos os citadinos estão em favelas (ONU,
2015, p. 3). Mike Davis dedicou a maior parte de sua reflexão, tanto no artigo de 2004
quanto no livro de 2006, às condições cotidianas assustadoras de uma gigantesca
massa de favelados nos países mais pobres do mundo e, principalmente, a uma análise
das grandes favelas mundiais. Se um planeta cada vez mais urbano tem nas
megacidades a representação mais acabada dos problemas sociais e ambientais

9 A vida num trailer nos Estados Unidos, Le Monde Diplomatique, 4 fev. 2016. Disponível em:
https://diplomatique.org.br/a-vida-num-trailer-nos-estados-unidos/. Acesso em jul. 2019.
10 Nos Estados Unidos, sem-teto vivem em carros e dormem em estacionamentos, Estadão, 15 mar.

2019. Disponível em: https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,nos-estados-unidos-sem-


teto-vivem-em-carros-e-dormem-em-estacionamentos,70002755788. Acesso em jul. 2019.
11 Dados disponíveis em: http://www.statisticbrain.com/home-foreclosure-statistics/. Acesso em 03 out.

2017.

340
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

contemporâneas, são as megafavelas espalhadas pelo globo que sintetizam a tragédia


de um mundo desenraizado e com as tensões sociais levadas ao extremo:

As “megafavelas” surgem quando bairros pobres e comunidades


invasoras fundem-se em cinturões contínuos de moradias informais e
pobreza, em geral na periferia urbana. A Cidade do México, por exemplo,
tinha, em 1992, estimados 6,6 milhões de pessoas vivendo aglomeradas
em 348 quilômetros quadrados de moradias informais. Do mesmo modo,
a maioria dos pobres de Lima mora em três grandes conos periféricos
que se irradiam da cidade central; essas imensas concentrações espaciais
de pobreza urbana também são comuns na África e no Oriente Médio
(Davis, 2006b, p. 37).

Esse retrato caótico de um mundo cada vez mais urbano – e urbanizado pela
pobreza, já que em muitos países o crescimento das cidades ocorre por meio da
expansão das favelas – torna-se o caldo social e ambiental para a proliferação de novas
e velhas doenças se adicionarmos a decadência da estrutura de saúde pública e os
efeitos do aquecimento global (mais calor e umidade): “as megafavelas de hoje são
incubadoras singulares de novas e ressurgentes doenças”, como afirmou Mike Davis
(2006b, p. 153).

Embora não seja exclusividade das favelas, é notório o maior número de vítimas
das endemias tropicais nas comunidades brasileiras, onde a cíclica epidemia de dengue
agora se soma à zika e chikunguya. Assim como já ocorria com a tuberculose, com
taxas muito mais elevadas nas favelas cariocas, a dengue tem atingido de modo muito
mais intenso os mais pobres nas cidades:

Dados da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro apontam uma


possível resposta: a cada 100 mil habitantes do Complexo do Alemão,
1.922 foram infectados pela dengue nos meses de janeiro a abril de 2016,
enquanto que em todo o município do Rio de Janeiro, a proporção foi de
272 por 100 mil habitantes – sete vezes menor que no conjunto de
favelas cariocas. Em Manguinhos, o número foi de 147 casos por 100 mil
habitantes no período.
O adensamento populacional, as condições precárias de moradia, aoferta
irregular do abastecimento de água, política ineficaz de gestão de

341
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

resíduos sólidos e o tratamento de esgoto são alguns dos aspectos da


crise de saneamento e habitação nas periferias urbanas.12

Também o surto de ebola que atingiu a África Ocidental, e se propagou principalmente


nos anos de 2013 a 2015, “foi particularmente virulento nos bairros degradados das
principais zonas costeiras”:

West Point, em Monróvia, Libéria, é a maior e mais famosa favela da


África Ocidental: mais de 70.000 pessoas se aglomeravam numa
península, sem água corrente, saneamento ou coleta de lixo. O número
de mortes por ebola naquela favela provavelmente nunca será conhecido,
uma vez que os corpos foram simplesmente atirados para os dois rios
mais próximos (ONU, 2016, p. 23).

As descrições aterradoras de Davis (2006b, 142-146) sobre o drama sanitário em


favelas onde não existiam banheiros, obviamente, não ficou no passado. Em alguns
casos, onde houve intervenção governamental para tentar minimizar as condições
sanitárias, novos problemas surgiram e alguns deles trágicos. Em Mumbai, sete
pessoas morreram, em apenas três meses, entre 2016 e 2017, fazendo uso de banheiros
comunitários construídos com recursos sociais: em vários dos episódios, o chão cedeu e
as pessoas foram afogadas em fezes devido à fossa séptica sob o piso.13

Descarte direto nos mananciais, valas negras e esgoto correndo na porta das
moradias continuam sendo uma realidade presente em todo o Planeta Favela, mas os
efeitos ambientais disso não devem ser tomados como responsabilidade dos pobres: o
entusiasmo na expansão da rede de saneamento, manifestada em parte do mundo
periférico por meio das recentes parcerias público-privadas, foi tratada como
“decepcionante” pela ONU (2016, p. 15).

A dimensão estrutural de um problema sanitário que é parte da própria


regressão urbana mundial fica evidente quando se percebe a explosão de “doenças do
Terceiro Mundo” nos países centrais. Philip Alston, relator especial da ONU sobre

12 Habitação, saneamento básico e a proliferação de dengue, zika e chikungunya nas favelas, Regina
Castro. Disponível em: https://rededengue.fiocruz.br/noticias/524-habitacao-saneamento-basico-e-
a-proliferacao-de-dengue-zika-e-chikungunya-nas-favelas. Acesso em jul. 2019.
13 Death-trap toilets: the hidden dangers of Mumbai's poorest slums, The Guardian, 27 fev. 2017.

Disponível em: https://www.theguardian.com/global-development-professionals-network/2017


/feb/27/death-trap-toilets-mumbai-india-slums. Acesso em jul. 2019.

342
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

pobreza e direitos humanos, visitou os Estados Unidos e resumiu o problema de saúde


derivado da explosão da pobreza extrema em seu território:

doenças tropicais negligenciadas, incluindo o zika, são cada vez mais


comuns nos EUA. Estima-se que 12 milhões de americanos vivem com
uma infecção parasitária negligenciada. Um relatório de 2017 documenta
a prevalência de ancilostomíase no Condado de Lowndes, Alabama.14

Causas da favelização mundial

Mike Davis, utilizando as informações oficiais da ONU, mas indo muito além
dos limites da mera descrição ou constatação estatística, desenvolveu uma série de
reflexões tentando encontrar respostas para a explosão da regressão urbana mundial.
Concentrando o foco principalmente nas favelas do Terceiro Mundo, o geógrafo
apontou como motivos principais para a favelização sistemática: o “encolhimento do
setor público”, a “decadência da classe média”, a “ruína da indústria de substituição de
importações”, a “mecanização da agricultura”, a “importação de alimentos”, “guerra
civil” ou “seca” e a “competição do agronegócio em escala industrial” (2006a, p. 196).

Nesse quadro complexo, temos tanto indicações de problemas estruturais do


desenvolvimento (ou decadência) econômico de uma determinada nação quanto
situações muito conjunturais e decorrentes de problemas específicos (como a guerra
civil ou a seca – embora esta possa ser, em alguma medida, atribuída às “mudanças
climáticas” e, portanto, cada vez mais também estrutural).

No caso do Brasil, os traços gerais da explosão das favelas, a partir da segunda


metade do século XIX, também estão presentes nessa lista, pois aqui a favelização
resultou do intenso êxodo rural-urbano provocado por uma mecanização da
agricultura e destruição da pequena produção pela agricultura industrializada (a
constituição dos complexos agroindustriais), assim como, nas últimas décadas, pela
redução progressiva dos direitos e serviços sociais oferecidos pelo Estado e uma
redução da classe média. Mas o eixo central da favelização brasileira foi a expansão da

14 Extreme poverty in America: read the UN special monitor's report, The Guardian, 15 dez. 2017.
Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2017/dec/15/extreme-poverty-america-un-
special-monitor-report. Acesso em jul. 2019.

343
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

população urbana (via êxodo rural ou crescimento vegetativo) sem oferta de empregos
no mesmo ritmo – a industrialização retardatária brasileira já importou técnicas de
produção poupadoras de força de trabalho.

Isso nos remete a um elemento fundamental, presente em toda a reflexão de


Mike Davis ao longo de seu artigo e livro, mas que não foi tratado de modo teórico
sistemático pelo próprio autor: a formação de um excedente populacional crescente em
todo o mundo.

Aqui é preciso ter cuidado para não incorrer no malthusianismo (tão criticado
por Davis). A questão não é um problema populacional em si, mas o descompasso
existente entre as exigências e necessidades da economia de mercado e a multiplicação
da população mundial. Tal como Marx tinha previsto em sua crítica de Malthus, o
problema não é a dinâmica populacional como um dado imutável, mas as condições
sociais em que são determinadas a criação, ocupação ou dispensa de força de trabalho.
A favelização já era, no Terceiro Mundo, desde pelo menos as últimas décadas do
século XX, um resultado da inutilidade progressiva de parte da força de trabalho
mundial, derrotada em termos internacionais devido à concorrência internacional
aberta pelo processo de globalização. Embora tenha responsabilizado as políticas de
austeridade econômica neoliberais pela falta de empregos, há uma constatação óbvia
em Mike Davis das origens mais profundas para o excedente populacional mundial:

claro que as favelas se originam no campo global onde, como nos recorda
Deborah Bryceson, a competição desigual com a grande escala da
agroindústria vem “arrebentando as costuras” da sociedade rural
tradicional. Conforme as áreas rurais perdem sua “capacidade de
armazenamento”, as favelas tomam seu lugar, e a “involução” urbana
substitui a involução rural como ralo da mão-de-obra excedente, que só
consegue acompanhar a subsistência com façanhas cada vez mais
heróicas de auto-exploração e uma subdivisão competitiva ainda maior
dos nichos de sobrevivência já densamente povoados. A “Modernização”,
o “Desenvolvimento” e, agora, o “Mercado” irrestrito já tiveram seus
bons dias. A força de trabalho de um bilhão de pessoas foi expelida do
sistema mundial, e quem consegue imaginar algum cenário plausível, sob
os auspícios neoliberais, que a reintegre como trabalhadores produtivos
ou consumidores em massa? (2006a, p. 211-212).15

15 Como salientou Gerd Bedszent (2019), em sua resenha do livro de Davis, “as metrópoles urbanas da
periferia funcionam, portanto, cada vez mais como bacias de retenção de uma inutilizável e sortida
“população excedente de força de trabalho sem classificações, mal paga e sem garantias, no comércio e
serviços informais”.

344
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

O fato é que, alastrando-se também e de modo intenso pelo Primeiro Mundo na


última década, a favelização é resultante do excedente de força de trabalho que atinge
agora a população do centro do capitalismo. Davis já havia compreendido isso, mas
apontava apenas para o problema da favelização decorrente da imigração para os
países desenvolvidos, em que a população mobilizada não encontrava emprego em
função da tecnologia.16 O que se trata cada vez mais é de uma realidade presente no
centro da economia mundial em virtude da crise estrutural do capital, de um lado, e
decorrente da expansão significativa da automação, robótica e da inteligência artificial,
de outro.

Esse é o principal motivo da expansão progressiva do desemprego, da


precarização e da informalidade em todo mundo – aliás, com razão, Mike Davis
comenta que o “setor informal é um eufemismo do Primeiro Mundo para referir-se ao
desemprego massivo” (2019). No caso específico da habitação, a favelização é um outro
nome para a interdição ao acesso ou para a informalidade da moradia, que se tornou
abrangente.17

O presente das cidades

A reflexão de Mike Davis, realizada há 15 anos, traz as primeiras indicações das


catastróficas características de uma realidade que só se agravou. Entre as dimensões da
urbanização “dinamizada” pelas favelas, três fenômenos destacados pelo geógrafo
parecem ter saído de uma constatação conjuntural e se transformaram em fenômenos
estruturais da regressão urbana mundial.

16 “Hoje, pelo contrário, o excesso de mão-de-obra enfrenta barreiras sem precedentes – uma “grande
muralha” literal da imposição de uma fronteira de alta tecnologia – que bloqueiam a migração em
grande escala para os países ricos (Davis, 2006a, p. 212-213).
17 “... atualmente o setor informal fornece 60-70% de habitação urbana na Zâmbia, 70% em Lima, 80%

de novas habitações em Caracas e até 90% em Gana. Essa moradia geralmente tem pelo menos
algumas das características que o ONU-Habitat usa para definir favelas: condição física precária,
superlotação, falta de acesso a serviços, pouco acesso às funções na cidade e oportunidades de
emprego. Há também muitas, mas desconhecidas, pessoas que vivem "na rua" individualmente, em
grupos ou como famílias. Isso não se limita aos países com oferta de habitação pobre” (ONU, 2016, p.
51).

345
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

O primeiro se refere à “urbanização espalhada” (urban sprawl) que aparece


cada vez mais sob a forma de uma “favelização esparramada”. O slum no século XIX e
início do século XX se referia ao cortiço decrépito no centro urbano, agora o foco da
discussão sobre o problema habitacional está na periferia sem limites estabelecida pela
expansão da urbanização empobrecida e sem infraestrutura.

A maioria dos pobres urbanos não mora mais em bairros pobres no


centro da cidade. Desde 1970, o maior quinhão do crescimento
populacional urbano mundial foi absorvido pelas comunidades faveladas
da periferia das cidades do Terceiro Mundo. O crescimento horizontal há
muito deixou de ser um fenômeno distintamente norte-americano, se é
que já o foi. A “horizontalização” das cidades pobres costuma ser tão
espantosa quanto o seu crescimento populacional: Cartum, por exemplo,
em 1988, era 48 vezes maior em área construída do que em 1955. De
fato, hoje as zonas suburbanas de muitas cidades pobres são tão vastas
que fazem ver a necessidade de repensar a periferalidade. Em Lusaka,
por exemplo, as favelas mais remotas abrigam dois terços da população
pobre da cidade, o que levou um escritor a aventar que ‘esses complexos
são chamados de ‘periurbanos’, mas, na realidade, é a cidade
propriamente dita que é periférica’.
(...) Assim, nas cidades de crescimento desordenado do Terceiro Mundo,
‘periferia’ é um termo extremamente relativo e específico de um
momento: a orla urbana de hoje, vizinha de campos, florestas ou
desertos, pode amanhã tornar-se parte de um denso núcleo
metropolitano (Davis, 2006b, p. 46-47).

A complexidade dessa situação não pode ser desprezada: estão em questão aqui
a possibilidade de oferecer infraestrutura em vastas zonas miseráveis, o transporte
para aglomerados gigantescos e os impactos ambientais de uma mancha urbana
espalhada pela precariedade.

Um outro aspecto da favelização e da ampliação da informalidade no acesso à


moradia é a expansão de um submercado imobiliário que acompanha a carência
habitacional – no fundo da escala social, a lógica da mercadoria continua a funcionar,
mesmo que de modo totalmente irregular, criando tensões e exclusão. Essa é uma
realidade mundial agora, como já atestado em referência anterior da ONU, mas, como
visível na explosão dos mercados informais nas favelas cariocas, a provisão de moradia
na periferia do capitalismo depende sobretudo de métodos não-convencionais de
construção e oferta. Esse “setor informal” tornou-se referência e base para muitos

346
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

intelectuais falarem de uma “riqueza oculta” nas mãos dos pobres, como o economista
peruano Hernando de Soto (1987), que desenvolveu uma análise atribuindo ao
“empreendedorismo” dos pobres a capacidade de criação e acumulação que deveria ser
reconhecida pelo Estado.

Se, em 2004, Davis utilizava de Soto como o exemplo de um apologista de uma


ordem urbana miserável – tema que aprofundaria no livro –, colocando-o entre os
“gurus do moto perpétuo do capitalismo”, hoje poderíamos ver o modo como o
tratamento cínico e afirmativo das favelas se tornou moeda corrente e até mesmo
fundamento para políticas habitacionais – para o que, não se pode deixar de dizer, a
ONU tem parcela de responsabilidade, já que fez dos projetos de “urbanização de
favelas” brasileiros exemplos positivos de redução dos problemas sociais e mesmo
exemplo a ser seguida mundialmente. O cinismo chegou a ponto de um “sir”
ambientalista ter apontado nas favelas um modelo urbano para o futuro, com as quais
as cidades devem aprender “auto-organização comunitária”.18

Entretanto, longe do admirável mundo dos empreendedores individuais, o que o


setor informal em expansão tem produzido em todo o mundo é o fortalecimento de
grupos criminosos, máfias e milícias que exploram os submercados criados pela
favelização crescente. Mike Davis já havia apontado isso em seu estudo mais
abrangente, principalmente para atuação de quadrilhas e paramilitares na venda de
terrenos, na garantia de proteção ou mesmo na oferta de água e meios de transporte
(2006b, p. 50). Aquilo que parecia uma realidade distante de um país em guerra civil
se tornou comum, particularmente no Brasil, com a exploração miliciana da carência
habitacional e dos mercados periféricos absolutamente não-regulados. Loteamentos
irregulares, condomínios informais e até mesmo prédios são construídos por grupos
paramilitares nas grandes cidades brasileiras, sem falar na exploração do transporte
alternativo, da venda de gás ou de serviços clandestinos de televisão – a própria
urbanização é “desenvolvida” de modo mafioso.

18 'Favelas poderiam servir de modelo para cidades do futuro', BBC, 10 fev. 2015. Disponível em:
https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/02/150203_favelas_davidking_lab. Acesso em jul.
2019.

347
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

Por fim, um terceiro e atual aspecto da abordagem realizada por Mike Davis,
mais presente em seu artigo do que em seu livro, é o fenômeno da expansão das
religiões salvacionistas nos assentamentos miseráveis do Terceiro Mundo, com ênfase
particular no “islamismo populista” e no “cristianismo pentecostal” (2006a, p. 215).
Mesmo lançando algumas dúvidas finais, a visão do geógrafo ainda tinha um tom
carregado de otimismo, enxergando nessas manifestações religiosas de massa os
sucedâneos do socialismo e do anarquismo nos bairros pobres do século XIX,
principalmente ao atribuir às seitas a capacidade de organização e de manter a
identidade dos “trabalhadores informais”. Passado uma década e meia, a doutrina
wahaabista que arregimentou islâmicos para o terrorismo, nas periferias do Oriente
Médio e da Europa, e o neopentecostalismo que está na base do ressurgimento eleitoral
da nova direita, particularmente na América Latina, já não permitem mais qualquer
visão positiva, muito menos algo relacionado à “resistência” diante da marginalização
social.

O futuro urbano

A partir do panorama das favelas no mundo, é possível reforçar o argumento de


Mike Davis, anunciado 15 anos atrás, de que “só resta a favela como solução totalmente
franqueada ao problema de armazenar o excedente de humanidade no século XXI”
(2006b, p. 213).

Aqui estamos no centro do processo de favelização mundial: ele não é


decorrente da mera carência de infraestrutura decorrente de uma negligência do poder
público, da ausência de modernização econômica e social que alienou a “ordem”
urbana para os indivíduos, eximindo o Estado das suas responsabilidades, ou muito
menos da falta de capital capaz de produzir um círculo virtuoso de produção do espaço
urbano e provisão habitacional. A explosão da favelização mundial ocorreu exatamente
no final do mais extenso ciclo de expansão econômica mundial, intensificou-se na
periferia do capitalismo, primeiro, porque esta fracassou em sua tentativa de alçar ao
mesmo patamar produtivo das economias avançadas; depois, aprofundou-se nos países
perdedores do antigo bloco socialista, convertidos de modo apressado em economias

348
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

abertas e, por fim, atinge agora o centro do capitalismo. Nesse movimento mundial, da
periferia para o centro, a favelização revela a natureza excludente do capitalismo
avançado e a sua causa mais profunda: ela não é uma mera carência habitacional
decorrente de uma transição social – tal como os cortiços no século XIX –, mas a forma
urbana avançada da decomposição econômica que aparece sob a multiplicidade de
desemprego em massa, submercados, níveis sanitários regressivos e criminalidade
crescente. A favelização é resultante de uma economia capitalista que tornou parte da
população mundial supérflua e, portanto, já não pode mais oferecer um futuro a todos.
A visão pessimista de Mike Davis tornou-se o modo mais realista de projetar o futuro
urbano mundial:

(...) as cidades do futuro, em vez de feitas de vidro e aço, como fora


previsto por gerações anteriores de urbanistas, serão construídas em
grande parte de tijolo aparente, palha, plástico reciclado, blocos de
cimento e restos de madeira. Em vez da cidades de luz arrojando-se aos
céus, boa parte do mundo urbano do século XXI instala-se na miséria,
cercada de poluição, excrementos e deterioração. Na verdade, o bilhão
de habitantes que moram nas favelas pós-modernas poderão olhar com
inveja as ruínas das robustas casas de barro de Çatal Hüyük, na Anatólia,
construídas no alvorecer da vida urbana, há nove mil anos (2006b, p.
28-29).

Referências bibliográficas

BEDSZENT, Gerd. O planeta dos supérfluos. Disponível em: http://www.obeco-


online.org/gerd_bedszent2.htm

BOTELHO, Maurilio Lima. “Favelização Mundial. O colapso urbano da sociedade capitalista”.


Sinal de Menos, n. 11, v. 2, 2016, p. 248-270.

DAVIS, Mike. “Planetas de favelas – a evolução urbana e o proletariado informal”. In: Sader,
Emir (org.). Contragolpes – seleção de artigos da New Left Review. São Paulo: Boitempo,
2006a.

_________. Planeta Favela. São Paulo: Boitempo, 2006b.

_________. Vivendo na plataforma gelada - a dissolução da humanidade. Disponível em:


http://www.ocomuneiro.com/nr07_05_mikedavis.html. Acesso em jul. 2019.

349
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

ONU. The Challenge of the Slums: Global Report on Human Settlements. UN-Habitat.
Disponível em: https://www.un.org/ruleoflaw/files/Challenge%20of%20Slums.pdf. Acesso
em jul. 2019 (publicado em 2003).

_________. State of the World's Cities 2006/7. UN-HABITAT. Disponível em:


https://sustainabledevelopment.un.org/content/documents/11292101_alt.pdf. Acesso em
jul. 2019 (publicado em 2006).

_________. Estado das cidades do mundo 2010/2011. ONU-Habitat/IPEA. Disponível em:


http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/100408_cidadesdomundo
_portugues.pdf. Acesso em jul. 2019 (publicado em 2010).

_________. Issue Paper on Informal Settlements. UN-Habitat. Disponível em:


http://habitat3.org/wp-content/uploads/Habitat-III-Issue-Paper-22_Informal-
Settlements-2.0.pdf. Acesso em jul. 2019 (publicado em 2015).

_________. Urbanization and Development: emerging futures (World Cities Report).UN-


Habitat. Disponívelem: http://cdn.plataformaurbana.cl/wp-
content/uploads/2016/06/wcr-full-report-2016.pdf?utm_medium=website&utm_source=
archdaily.com.br. Acesso em jul. 2019 (publicado em 2016).

_________. Nova Agenda Urbana. ONU-Habitat. Disponível em: http://habitat3.org/wp-


content/uploads/NUA-Portuguese-Brazil.pdf?fbclid=IwAR2koIM7MtgBh6i57G4fxWe
WpbK52Jr7sXIrGdBbJF81bF2GSzY527FWdAY. Acesso em jul. 2019 (publicado em 2019).

ROLNIK, Raquel. Guerra dos Lugares: a colonização da terra e da moradia na era das
finanças. São Paulo: Boitempo, 2015.

SOTO, Hernando de. Economia subterrânea: uma análise da realidade peruana. Rio de
Janeiro, Globo, 1987.

350
[-] www.sinaldemenos.org Ano 11, n°14, vol. 1, 2020.

SINAL de MENOS

ISSN 1984-8730

Edição:
Contribuições:

Cláudio R. Duarte (São Paulo) A revista aceita contribuições e


comentários críticos, que serão
Daniel Cunha (Binghamton) avaliados quanto ao conteúdo, o
estilo e a adequação à linha
Felipe Drago (Porto Alegre) editorial. Os artigos devem ser
enviados para:
Joelton Nascimento (Cuiabá) dcunha77@outlook.com.
Raphael F. Alvarenga (Leuven)

Capa desta edição: Felipe Drago, a


partir de curvas de morte por
coronavírus.

Você também pode gostar