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HISTÓRIA POLÍTICA, 2019​ - Prof. Dr. Luiz Bernardo Pericás.

Trabalho final individual: ​Resenha​.


LONDON, Jack. ​A Estrada.​ [trad. Luiz Bernardo Pericás]. - São Paulo: Boitempo, 2008. -
versão em PDF disp. em ​http://lelivros.love​.
Vitor Guatelli Portella
nºUSP: 10764908 - vespertino

A ESTRADA, UMA OBRA PLURAL

A Estrada​, de Jack London, se trata de um livro memorialístico e autobiográfico


publicado pela primeira vez entre 1907 e 1908 em formato seriado para a revista
Cosmopolitan.​ Compilados e organizados pelo próprio autor, foi posteriormente publicado em
formato completo pela revista ​Macmillan​, de Nova York. Os textos não seguem uma ordem
cronológica interna, sendo possível lê-los de maneira independente, sem grandes perdas. Ou
seja, ao invés de pensarmos em uma única história, ​A Estrada,​ na verdade, nos conta diversas
histórias que têm como pano de fundo em comum os Estados Unidos de 1894, assolado por
uma crise econômica aguda em que diversas empresas estavam falindo e as taxas de
desemprego, disparando.
Nessa época, Jack London, aos 18 anos, foi por 7 meses um ​hobo1, um vagabundo2
itinerante que se utilizava ilegalmente de trens para cruzar o país em busca de trabalho ou
para conseguir sobreviver por meio da mendicância e pequenos furtos. London é apenas um
dos milhares de vagabundos que viajaram pelos Estados Unidos e Canadá desta forma. Suas
histórias vão além de sua vida: narra em detalhes a realidade dessas diversas pessoas que
viviam na miséria e se aventuravam perigosamente pelo país.
Os ​hoboes3 tornaram-se figuras emblemáticas da cultura norte americana no final do
século XIX. Portanto, ao narrar sua experiência como um desses, cruzando os Estados Unidos
até o Canadá por trilhos e estradas, se envolvendo nas mais diversas situações, London nos
provêm uma documentação extraordinária de época que mostra como eram a vida dessas

1
A origem do termo ainda é incerta, ver PERICÁS, Luiz B. “Jack London na Estrada” in: LONDON,
Jack. ​A Estrada.​ - São Paulo: Boitempo, 2008, p. 11.
2
“É bom lembrar que, quanto em português o termo ‘vagabundo’ é bastante pejorativo e não
apresenta muitos variantes, em inglês possui diversos significados” (​idem​ anterior).
3
Plural de ​hobo​.
1
pessoas, como elas se deslocavam, como se relacionavam, o que faziam, etc. Resumindo,
como era viver, em detalhes, nos Estados Unidos da década de 1890 sendo um vagabundo.
Em suas nove histórias, Jack London nos relata diversos casos em que testemunha as
verdadeiras faces da sociedade capitalista norte americana. Seja pela injustiça da Justiça, pela
segregação socioeconômica ou pelos valores individualistas e meritocráticos que permeiam as
diversas relações sociais, a realidade que Jack enfrenta cotidianamente é dura e desumana.
Expressão máxima disso está nos relatos de sua estadia, por 30 dias, na Penitenciária do
Condado de Erie, na Pensilvânia, em decorrência de uma ação viciada e autoritária da justiça
local (​Grampeado​). A realidade na prisão era violenta e repressiva, onde apenas os mais
afortunados, envolvidos no sistema interno, venciam. De certo modo, como o próprio autor
deixa claro, funcionava como um modelo da sociedade capitalista (​A Penitenciária)​ .
Contudo, mesmo com todas essas dificuldades que enfrenta, nunca perdeu sua própria
noção de justiça social. Pelo contrário, ele a desenvolve, sempre demonstrando seu completo
repúdio pelos abusos que ele e outros sofrem diariamente. Se não age diante da injustiça, não
é por medo da lei que as reproduz, e sim porque tem consciência de que as leis são
materializadas em pessoas mais fortes. Ou seja, London vive constantemente sob um ideário
de justiça social reprimido pelo sistema vigente.
Em meio à escória, London percebe que os únicos que poderia contar de verdade eram os
mais desafortunados. Isso fica evidente na primeira história (​Confissão​), quando afirma que
conseguir comida dos ricos é mais difícil do que conseguir dos pobres, pois havia uma ajuda
mútua entre os vagabundos. É, portanto, na pobreza dos ​hoboes ​que London descobre a
humanidade na sociedade, perdida e abandonada entre a pobreza.
Suas aventuras também contribuíram para sua precoce formação política, tendo sido
apresentado ao ​Socialismo ​em uma de suas viagens. Mesmo de forma puramente acidental, as
experiências que London enfrenta e suas reflexões contribuem diretamente para a sua
conscientização política. Se queria apenas se aventurar, acaba por empenhar-se em causas
sociais quando acompanha o Exército de Kelly - uma massa de 2 mil homens que se dirigiam
para Washington protestando e reivindicando melhores condições de vida e trabalho (​Dois
Mil Vagabundos)​ . Ao ler sua obra, podemos captar esses questionamentos em cada uma
dessas nove histórias, seja no cotidiano, seja em situações de descarada injustiça ou de vida ou
morte.

2
JACK LONDON, UMA VIDA

Jack London nasceu no dia 12 de janeiro de 1876, em São Francisco, Califórnia. Filho de
Flora Wellman e de William Henry Chaney, London teve mais contato com seu padrasto,
John London, que casou com sua mãe oito meses depois de seu nascimento. Assim, adquiriu
seu sobrenome. Nascido na pobreza, o pequeno Jack, criado em Oakland, logo cedo teve que
largar os estudos por falta de dinheiro para as mensalidade. Contudo, mantendo um gosto
assíduo pela leitura fantástica, frequentava sempre a biblioteca pública da cidade.
Trabalhando sob condições precárias em diversos empregos, decidiu deixar tudo para trás
quando tinha apenas 16 anos em busca de aventuras e novas experiências de vida. A partir
desse momento, passou a realizar diversas atividades no mar, principalmente na embarcação
Sophie Sutherland, passando meses próximo ao Japão. Foi nesta época que conheceu sua
companheira de vida, a bebida alcoólica, que o acompanharia até os seus últimos dias.
Retornando aos Estados Unidos, tentou a carreira como escritor. Se num primeiro momento
obteve êxito, logo em seguida as dificuldades em emplacar novamente o fizeram interromper
o sonho, mas apenas brevemente. O sonho de ser escritor estava posto.
De vagabundo à escritor, o que levou Jack London à ​Estrada,​ aos 18 anos, foi a sua
juventude e a sua vontade de viver. Grande fonte de inspiração para suas histórias, o mundo
que o cercava era rico. O dia a dia na mendicância, na pobreza e na aventura sobre as linhas
trem o fizeram um contador de histórias. Histórias que, de acordo com o próprio, contava em
troca de comida e abrigo: “foi uma troca justa”4. Mais do que isso, se tornou um sobrevivente
da sociedade norte americana em crise, violenta e individualista, mas que acabava
encontrando nos mais simples e humildes uma gentileza rara, em falta.
Lia muito, principalmente títulos recém lançados e baratos devido à defeitos de
fabricação. Comprava-os por que não tinha dinheiro e, se tinha, devia reservá-lo para
conseguir se alimentar. Durante sua vida, escreveu diversas outras obras, como ​O Chamado
Selvagem ​(1903), ​O Tacão de Ferro (1907) e ​Caninos Brancos (1910). London teria ficado
famoso em meio ao público infantil, fazendo de ​A Estrada​ (1907-8) uma exceção.
Jack London morreu em 1916, na Califórnia, aos 40 anos, em decorrência de
complicações renais e do excesso de morfina que utilizava para combater as dores crônicas.

4
LONDON, Jack. “Instantâneos”. In: ​A Estrada​. - São Paulo: Boitempo, 2008, p. 70.
3
Jack London na juventude.

O LIVRO, ASPECTOS DA EDIÇÃO

Dividido em nove capítulos, a edição da Boitempo, inserida na Coleção Clássicos da


Boitempo (publicada pela primeira vez em 2008 e relançada em 2016), traz para o leitor uma
excelente apresentação da vida e obra de Jack London. Com o ilustre trabalho de tradução,
edição e notas realizado por Luiz Bernardo Pericás, o texto é fácil e claro. As quase 180
páginas são facilmente consumidas com gosto e apreciação, de forma que a leitura se torna
fluida e agradável. As notas ajudam na compreensão dos termos e gírias utilizadas em inglês
pelo autor, fornecendo ao leitor uma tradução mais precisa e mais próxima do texto original, e
também no entendimento dos fatos para além do que é apresentado pelo autor - através de
informações documentais ou de contextualização historiográfica.
Além desses aspectos, a edição da Boitempo também traz uma breve, e excelente,
introdução a respeito da vida e obra de Jack London, escrita também por Luiz Bernardo
Pericás. Nesta, antes de adentrarmos na obra de London, conhecemos um pouco mais sobre os
detalhes de sua vida antes de se tornar um ​hobo;​ somos introduzidos ao contexto dos Estados
Unidos da década de 1890; e somos informados sobre o processo de confecção e publicação
da obra, assim como sua recepção na época e sua importância hoje. Como complemento, ao
final da edição pode-se encontrar uma linha do tempo da vida de London. Todas essas
informações complementam a experiência de se consumir a obra de Jack London, deixando-a
mais marcante e aumentando sua capacidade de imersão e identificação.

4
Em suma, a edição da Boitempo (2008 e 2016) é um trabalho profissional de qualidade,
permitindo uma maior longevidade e importância da obra dentro do campo da literatura
moderna. Ler ​A Estrada de Jack London requer uma passagem obrigatória por essa edição
essencial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerado por muitos intelectuais e literários como um clássico moderno, ​A Estrada de


Jack London certamente nos descreve o mundo de marginalidade e injustiças dos Estados
Unidos do final do século XIX. Contudo, London mesmo já afirmou que amenizou diversos
fatos e eventos que descreve, muito pelo fato de seu receio em relação à recepção do livro
pelo público. Uma decisão difícil, mas corajosa. A realidade era chocante e brutal demais para
o público leigo e, sabendo de sua fama com o público infantil, optou por torná-lo mais
acessível, omitindo e reduzindo sua intensidade.
Mesmo podendo ter mostrado mais, não podemos negar que se trata de uma obra rica e
extremamente atual, em que seu valor se encontra na honestidade do autor, no esforço
gigantesco de registrar as viagens e na denúncia social constante na obra. Como documento
histórico, tem valor monumental para compreendermos o funcionamento da sociedade norte
americana do final do século XIX e os efeitos da crise da década de 1890, assim como se deu
o processo de recebimento do marxismo nos Estados Unidos.
Em suma, seja para fins de pesquisa, de curiosidade, de inspiração ou até mesmo para
lazer, ​A Estrada ​é, certamente, um livro essencial para conhecermos o mundo e as pessoas
que viveram as condições precárias dos Estados Unidos do final do século XIX. É, mais do
que isso, um gigantesco exercício de alteridade. Pensemos como London: para conhecermos o
mundo, é preciso nos aventurarmos. ​A Estrada​ é essa aventura que precisamos.

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