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Espaço em branco entre 4 paredes / TATIANA GRINBERG

 
Assim como perturbamos o ambiente no qual estamos - o modificamos - os espaços também interferem
em nós. Eles se inscrevem, através da nossa experiência deles, na nossa memória corporal/mental.
Interessa nesse projeto a interface entre corpos/arquitetura, relações de espaço e percepção - o roçar da superfície rígida e
geométrica com o orgânico. O rostinho colado à parede. O que pode ser visto e o que fica por trás. Ver com o tato, usar a
propriocepção.
 
À meia luz aguarda-nos junto à porta uma construção que, praticamente bloqueia a nossa entrada,
expulsando-nos do cômodo. São mock-ups de paredes, tapumes, painéis em MDF que cercam o centro do
cômodo criando dentro deste um novo ambiente (este branco e iluminado), o qual podemos observar ao
espreitarmos através dos orifícios na superfície dos painéis, ao circularmos pelo estreito corredor à sua
volta, tocando o seu interior com dedos e mãos, colocando a orelha junto aos buracos.
 
Ao mesmo tempo em que as paredes/painéis tornam este espaço central inacessível, seus orifícios nos
convidam a penetrá-lo. E os mesmos painéis nos empurram contra as verdadeiras paredes do cubo branco.
Habitamos um lugar ambíguo, nos posicionamos nem dentro nem fora, dentro-fora, dentro e fora da obra,
entre, em trânsito no corredor circular. As paredes/painéis ora nos protegem ora oferecem o acesso
fragmentado, aos pedaços, as partes de corpos, nossos corpos que trocam de posição ora observando, ora
sendo observados.

Pele como marca de espaçamento / VIVIANE MATESCO

Uma massa corpórea com uma imensa fresta domina nosso olhar. Presa ao teto por seus próprios fios, a
superfície de quase 6 metros descola-se da arquitetura e vira-se como uma pele, também sugerida pela
tonalidade e textura do tapete. Quando a vemos no verso afirma uma carnalidade próxima a de uma
mucosa e a parte fendida, correspondente ao recorte da fresta, pende qual um falo a evocar um encaixe
positivo e negativo, macho e fêmea. Podemos pensar no Objet-Dart e na Feullle de Vigne Femelle ambos
de Duchamp e ainda na frase de Galeno de Pérgamo "Vire a vagina para o lado de fora ou vire para dentro
e dobre o pênis; você encontrará a mesma estrutura em ambos, sob todos os aspectos". A afirmação atesta
a crença grega em um único sexo, um continuum corporal com dois pólos que supunha a reversibilidade
dos órgãos na genitália masculina e feminina[1]. Acoplar partes do corpo como desenhos dobrados
relaciona-se à impressão, a processos de gravura como a construção de matrizes, de moldes, de repetição e
sobreposição, todos importantes na trajetória e maneira de pensar de Tatiana Grinberg. No entanto, a
impressão não tem um sentido de um esquema fixado, é muito mais o movimento de impressão, a
impregnação que marca a superfície como um processo a supor uma espacialidade ambígua onde não se
tem um limite definido entre dentro e fora. As marcas, a procura de um espaço ou objeto que signifique a
memória de vivências é a questão central da artista.  Em trabalhos anteriores moldou mãos em silicone ou
ainda o ato de tapar os ouvidos, um espaço "entre", um espaço em processo um molde de uma experiência
corporal.  A idéia do molde e da impressão refere-se tanto à proximidade, quanto à ausência. São índices
que permitem enxergar algo presente, mas cujo significado é expresso por uma falta tal qual as pistas nos
romances policiais e os sintomas na psicanálise.
 

A fronteira entre o molde e o que é moldado, entre o positivo e negativo, é a pele. É superfície que permite
a visibilidade de algo que está além da visão. A pele varia, discreta, contínua, mal costurada, eriçada,
atapetada, historiada, tatuada, nos diz Michel Serres[2]. Somos revestidos dessa cera mole onde se reflete
um pouco o universo, onde o tempo traça sua passagem, banco de nossas impressões. O mundo é impresso
sobre esta roupa de cera que nos oferece um habitat íntimo. Ela se abre para os sentidos e se fecha para o
sentido interno, mas continua um pouco aberta, como um intervalo que se deixa impregnar de vivências.

Um segundo trabalho também realizado no mesmo material e tonalidade apresenta cavidades no formato
de partes do corpo, como dedos e mãos, que convidam o espectador à experimentação e ao
reconhecimento sensorial dessas mesmas partes moldadas em acrílico. Aqui há um deslocamento, uma
suspensão dos sentidos que naturalmente se dão misturados, o que nos permitir usar uma faculdade que
evoca outra. O tapete sugere caricia, torna presente um sujeito ativo que toca. O jogo de texturas das
superfícies do carpete e do acrílico solicita a relação entre os sentidos ótico e táctil.  O sentido espacial
aqui é mediado pelo corpo: como o invisível de topologia povoa e ilumina o visível da experiência, na
riqueza da sensação táctil parece que toco um abstrato novo[3]. Construído através da relação entre
percepção, objetos e ambiente, esse fluxo cria situações de reconhecimento e estranhamento que ora
potencializam ou anestesiam os sentidos[4]. Isso revela a preocupação dos trabalhos de Tatiana Grinberg
em requisitar a propriocepção, um sentido interno que você tem do próprio corpo. Os proprioceptores
relacionam-se não a uma única sensação, mas um conjunto delas, como sensação de movimento, de força
muscular, de contração e ainda aquelas relacionadas à imagem do corpo. É esse sentimento difuso
resultante de sensações internas que envolvem vários sentidos que permite o modelo e imagem que você
tem si.

Múltiplos e espalhados, os sentidos nunca atingem a unicidade nem a identidade.  Os cinco sentidos se
entrelaçam, se amarram, sobre e sob a tela que formam.  Referindo-se a constante invocação da carne nos
textos sobre a pintura Didi-Huberman[5] analisa o sentido do termo "Incarnat" que designaria o dentro, o
informe do interior do corpo, ao mesmo tempo em que a superfície, uma pele. Esta tem tanto um sentido
de limite, de separação como também de um intervalo que manifesta o sujeito através de seu colorido.
Nosso invólucro estremece, exprime, respira, escuta, ama, recebe, recusa, eriça-se, ruboriza. Os órgãos
irrigam toda a pele de desejo, de escuta, de vista ou de odor.  Ela generaliza a carícia amorosa em emoção,
divulga sutilmente o desejo, dilui a escuta ou o olhar[6]. O "Incarnat" seria esse ato de passagem, a
oscilação entre superfície e profundidade, uma trança temporalizada entre o branco e o sangue. Lugar de
diálogo com as coisas e com os outros, nossa pele é esse entre, define uma marca e é marcada pelo
mundo: vemos pela superfície, mas essa fronteira significa espaçamento e revela um olhar mais  profundo.

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