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Assim como perturbamos o ambiente no qual estamos - o modificamos - os espaços também interferem
em nós. Eles se inscrevem, através da nossa experiência deles, na nossa memória corporal/mental.
Interessa nesse projeto a interface entre corpos/arquitetura, relações de espaço e percepção - o roçar da superfície rígida e
geométrica com o orgânico. O rostinho colado à parede. O que pode ser visto e o que fica por trás. Ver com o tato, usar a
propriocepção.
À meia luz aguarda-nos junto à porta uma construção que, praticamente bloqueia a nossa entrada,
expulsando-nos do cômodo. São mock-ups de paredes, tapumes, painéis em MDF que cercam o centro do
cômodo criando dentro deste um novo ambiente (este branco e iluminado), o qual podemos observar ao
espreitarmos através dos orifícios na superfície dos painéis, ao circularmos pelo estreito corredor à sua
volta, tocando o seu interior com dedos e mãos, colocando a orelha junto aos buracos.
Ao mesmo tempo em que as paredes/painéis tornam este espaço central inacessível, seus orifícios nos
convidam a penetrá-lo. E os mesmos painéis nos empurram contra as verdadeiras paredes do cubo branco.
Habitamos um lugar ambíguo, nos posicionamos nem dentro nem fora, dentro-fora, dentro e fora da obra,
entre, em trânsito no corredor circular. As paredes/painéis ora nos protegem ora oferecem o acesso
fragmentado, aos pedaços, as partes de corpos, nossos corpos que trocam de posição ora observando, ora
sendo observados.
Uma massa corpórea com uma imensa fresta domina nosso olhar. Presa ao teto por seus próprios fios, a
superfície de quase 6 metros descola-se da arquitetura e vira-se como uma pele, também sugerida pela
tonalidade e textura do tapete. Quando a vemos no verso afirma uma carnalidade próxima a de uma
mucosa e a parte fendida, correspondente ao recorte da fresta, pende qual um falo a evocar um encaixe
positivo e negativo, macho e fêmea. Podemos pensar no Objet-Dart e na Feullle de Vigne Femelle ambos
de Duchamp e ainda na frase de Galeno de Pérgamo "Vire a vagina para o lado de fora ou vire para dentro
e dobre o pênis; você encontrará a mesma estrutura em ambos, sob todos os aspectos". A afirmação atesta
a crença grega em um único sexo, um continuum corporal com dois pólos que supunha a reversibilidade
dos órgãos na genitália masculina e feminina[1]. Acoplar partes do corpo como desenhos dobrados
relaciona-se à impressão, a processos de gravura como a construção de matrizes, de moldes, de repetição e
sobreposição, todos importantes na trajetória e maneira de pensar de Tatiana Grinberg. No entanto, a
impressão não tem um sentido de um esquema fixado, é muito mais o movimento de impressão, a
impregnação que marca a superfície como um processo a supor uma espacialidade ambígua onde não se
tem um limite definido entre dentro e fora. As marcas, a procura de um espaço ou objeto que signifique a
memória de vivências é a questão central da artista. Em trabalhos anteriores moldou mãos em silicone ou
ainda o ato de tapar os ouvidos, um espaço "entre", um espaço em processo um molde de uma experiência
corporal. A idéia do molde e da impressão refere-se tanto à proximidade, quanto à ausência. São índices
que permitem enxergar algo presente, mas cujo significado é expresso por uma falta tal qual as pistas nos
romances policiais e os sintomas na psicanálise.
A fronteira entre o molde e o que é moldado, entre o positivo e negativo, é a pele. É superfície que permite
a visibilidade de algo que está além da visão. A pele varia, discreta, contínua, mal costurada, eriçada,
atapetada, historiada, tatuada, nos diz Michel Serres[2]. Somos revestidos dessa cera mole onde se reflete
um pouco o universo, onde o tempo traça sua passagem, banco de nossas impressões. O mundo é impresso
sobre esta roupa de cera que nos oferece um habitat íntimo. Ela se abre para os sentidos e se fecha para o
sentido interno, mas continua um pouco aberta, como um intervalo que se deixa impregnar de vivências.
Um segundo trabalho também realizado no mesmo material e tonalidade apresenta cavidades no formato
de partes do corpo, como dedos e mãos, que convidam o espectador à experimentação e ao
reconhecimento sensorial dessas mesmas partes moldadas em acrílico. Aqui há um deslocamento, uma
suspensão dos sentidos que naturalmente se dão misturados, o que nos permitir usar uma faculdade que
evoca outra. O tapete sugere caricia, torna presente um sujeito ativo que toca. O jogo de texturas das
superfícies do carpete e do acrílico solicita a relação entre os sentidos ótico e táctil. O sentido espacial
aqui é mediado pelo corpo: como o invisível de topologia povoa e ilumina o visível da experiência, na
riqueza da sensação táctil parece que toco um abstrato novo[3]. Construído através da relação entre
percepção, objetos e ambiente, esse fluxo cria situações de reconhecimento e estranhamento que ora
potencializam ou anestesiam os sentidos[4]. Isso revela a preocupação dos trabalhos de Tatiana Grinberg
em requisitar a propriocepção, um sentido interno que você tem do próprio corpo. Os proprioceptores
relacionam-se não a uma única sensação, mas um conjunto delas, como sensação de movimento, de força
muscular, de contração e ainda aquelas relacionadas à imagem do corpo. É esse sentimento difuso
resultante de sensações internas que envolvem vários sentidos que permite o modelo e imagem que você
tem si.
Múltiplos e espalhados, os sentidos nunca atingem a unicidade nem a identidade. Os cinco sentidos se
entrelaçam, se amarram, sobre e sob a tela que formam. Referindo-se a constante invocação da carne nos
textos sobre a pintura Didi-Huberman[5] analisa o sentido do termo "Incarnat" que designaria o dentro, o
informe do interior do corpo, ao mesmo tempo em que a superfície, uma pele. Esta tem tanto um sentido
de limite, de separação como também de um intervalo que manifesta o sujeito através de seu colorido.
Nosso invólucro estremece, exprime, respira, escuta, ama, recebe, recusa, eriça-se, ruboriza. Os órgãos
irrigam toda a pele de desejo, de escuta, de vista ou de odor. Ela generaliza a carícia amorosa em emoção,
divulga sutilmente o desejo, dilui a escuta ou o olhar[6]. O "Incarnat" seria esse ato de passagem, a
oscilação entre superfície e profundidade, uma trança temporalizada entre o branco e o sangue. Lugar de
diálogo com as coisas e com os outros, nossa pele é esse entre, define uma marca e é marcada pelo
mundo: vemos pela superfície, mas essa fronteira significa espaçamento e revela um olhar mais profundo.