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Para quê?
2. Oficinas: ações antropofágicas da cor
Ao iniciar cada oficina, os alunos poderão, observando as obras ou suas reproduções, com o auxílio
do professor, realizar um exercício de percepção imaginativa, compartilhando impressões e
reconhecendo as diferenças e semelhanças entre suas leituras individuais.
A partir dessas leituras, cabe ao professor promover o entendimento dos diversos processos
criativos dos artistas escolhidos, explorando, na leitura da obra, o encontro entre cor, corpo e mundo.
As oficinas procuram instigar os estudantes a assumir o papel de criadores de situações poéticas
pela cor e a construir ambientes provocadores da ativação dos sentidos.
2.1. Oficina desvio para o amarelo: Van Gogh (1853-1890), "O banco de pedra no jardim do
asilo" (1889)
Após a experiência inicial de observação e discussão dos alunos, retomar o jogo da percepção
propondo para eles um exercício de imaginação produtiva. O professor pode pedir que descrevam
esta pequena imagem apontando detalhes que Van Gogh incluiu em sua composição e o que não
entrou. Chamar a atenção dos alunos para as partes da árvore e do céu que estão cortadas para
fora da moldura. Estimular a visualização da situação na qual o artista se posicionou diante daquele
banco e da árvore.
Vários "desvios" ou várias possibilidades abrem-se à discussão: onde estão as pessoas nesta
imagem? Onde está o espectador? Esta imagem do banco feita no século XIX adapta-se ao mundo
de hoje? O que sentimos diante da imagem de um banco vazio?
Que qualidades da pintura demonstram, independentemente da cor, uma marca (conjunto de
gestos - pinceladas) transbordante do engajamento interior de Van Gogh com a paisagem exterior?
Comentar esta construção gestual da pintura de Van Gogh3 pela pincelada ordenada em relação a
outras pinturas de paisagem que os alunos conheçam. Por exemplo: que diferença ela tem das
pinturas impressionistas?
Esta obra de Van Gogh caracteriza-se por um transbordamento da cor em relação às cores da
natureza. Especial atenção deve ser dada aos ritmos das pinceladas, às direções e estruturas
resultantes. São justamente nesses atributos de sua pintura que se assentam os primeiros
movimentos de superação da percepção impressionista do mundo e abertura de horizontes para um
conceito de "arte-ação", que foi tomado pela próxima geração de artistas como raiz do
Expressionismo, desdobrando-se em vários movimentos artísticos no decorrer do século XX, como o
Expressionismo alemão, o grupo Cobra e o Expressionismo abstrato4. Nesta "arte-ação" de Van
Gogh com a cor - construindo mundos -, encerra-se um patamar da História da Arte.
Como desdobramento, o professor pode inclusive propor que seus alunos desenhem diferentes
bancos de praça de suas vizinhanças, com o mesmo tamanho de folha. Todos os espaços da folha
devem estar preenchidos por linhas, traços e texturas gráficas. O "desvio para o amarelo" será
representado pela utilização de escala monocromática de amarelo, laranja e ocre, com toques preto-
e-branco, cores predominantes da obra de Van Gogh. Ainda como sugestão de materiais, pode-se
lançar mão de folhas de lixa fina - tamanho padrão - e lápis de cera.
Esse exercício já é em si uma ação antropofágica: a intenção é promover uma vivência de todas
as dificuldades do pintor em selecionar e construir uma imagem, passar para a tela (o papel), por
meio do desenho, um objeto do mundo ("glocalização") - o banco. Comparar e compartilhar as (sub)
versões individuais. Cada banco tem uma história para contar!
Debate: o artista constrói mundos? Em que sentido cada obra de arte é uma ação antropofágica
do mundo e ao mesmo tempo um mundo em si? Em outras palavras, cada obra de arte é um mundo
em si e, ao mesmo tempo, um desvio do mundo real?sciència ëtica.
3. Van Gogh
Com Van Gogh (1853-1890), pode-se apontar o desvio entre santidade e
comunhão e loucura e isolamento que encarna todo o drama de um ser sensível
e criador perante uma sociedade industrial e pragmática. Van Gogh, em sua
trajetória, tenta se comunicar com - ser parte de - a humanidade; não adaptado à
condição de missionário/pastor, rejeitado, busca encontrar o mundo e a vida pela
arte. A história do drama de Van Gogh já foi muito explorada em filmes e livros.
Mas o que está em jogo aqui é sua "re-ação" antropofágica ao mundo pela arte -
principalmente pela pintura cor/ação.
Uma pintura carregada de pinceladas, estruturadas ritmicamente em fluxos, os
planos, os espaços e as coisas dentro dessa moldura. Ali, sobre a tela, Van
Gogh deixa marcado um lugar, não mais uma tela, um lugar vital exteriorizado da
mais profunda essência espiritual do artista. Nesse asilo, uma imagem do mundo
desencarnou/emigrou, desviou-se do mundo para a tela do artista - o mundo
simbólico da arte.
4. Expressionismo abstrato
O Expressionismo abstrato (cerca de 1940 a 1960) tem sua origem em dois
movimentos paralelos do inìcio do sëculo: o Fauvismo e os expressionistas
alemâes do grupo Die Brucke (a ponte). Por tržs de sua expressâo gestual,
inscreve-se uma busca de revelaçâo e registro dos mais profundos nìveis da
consciència humana. Van Gogh representa um elemento referencial deixando
em suas pinturas o legado expressivo do "ritmo profundo da existència traduzido
em gesto".
2.2. Oficina desvio para o vermelho: Cildo Meireles (Rio de Janeiro, 1948), instalação "Desvio
para o vermelho"
Cildo construiu e expôs esta instalação no MAM do Rio de Janeiro, em 1984, e no MAC da USP,
em 1986. Agora, quatorze anos mais tarde, ela está sendo reapresentada nesta Bienal. Que novos
sentidos ela assume? Que outros sentidos ligados ao contexto de seu momento histórico-cultural
original ficam menos evidentes? Com essas questões, Lisette Lagnado inicia seu texto, inserido no
catálogo da XXIV Bienal, referente à reapresentação deste trabalho.
Esta obra tem dupla potência de ação comunicativa. Sem dúvida ela representa uma ação
estética e crítica, isto é, constitui um campo magnético de contaminação e transbordamento dos
sentidos pelo vermelho. A leitura desta obra ocorre pela interação, pela imersão corpórea. Por outro
lado, ela é portadora de um rico sistema de metáforas, referente à realidade política e cultural
brasileira durante a ditadura militar. Que sentido metafórico poderia ter a expressão "infiltração do
vermelho no mundo" para um militar dos anos 70?
O que significa o fato de as coisas não serem arte em si, mas funcionarem como arte a partir de
uma ação estetizante do artista? Essa ação poderia ser discutida com os alunos partindo-se da idéia
de deslocar coisas do mundo (do dia-a-dia) para o mundo institucional da arte, como o museu ou a
Bienal, para que funcionem como arte. Isto é, as coisas passam a contar histórias de uma época, a
ser elementos simbólicos dentro de um conjunto de coisas (sistema de coisas intencionalmente
comunicantes). Essa questão pode motivar um debate na turma que remonta às apropriações de
Duchamp e do Neo-realismo: o que significa um mero objeto funcionar como arte?
Vale chamar a atenção para a simultaneidade de mensagens e leituras da situação ou do ambiente
comunicativo concebido por Cildo Meireles: ao mesmo tempo em que o espectador/visitante da obra
é absorvido por uma experiência de interação sensível, corpo a corpo com o ambiente, é desafiado a
decodificar os enigmas e as pistas deixados por um artista tomado por um "desejo revolucionário"
(Lisette Lagnado). O que significa entrar num desvio para o vermelho5?
Sugestão de atividade para ativação dos sentidos: hiper-sensibilização ao vermelho, com a
formação de ambientes constituídos de uma coletânea de objetos dessa cor.
Produzir filtros de papel celofane ou acetatos de diferentes cores para olhar o mundo e as coisas.
Fazer experimentos ao ar livre.
Realizar uma oficina de apropriação, coleta, classificação e bricolage. Convocar toda a turma para
coletar diferentes objetos velhos cuja cor original (de fábrica) seja vermelha. Procurar um espaço no
qual seja possível cobrir o chão com um borrachado vermelho, construindo uma sala laboratório -
"Desvio para o vermelho" - em forma de "U". Essa coletânea pode ser lançada em forma de gincana.
Cada
objeto traz uma história.
Comunicar aos alunos que o próprio Cildo Meireles anunciou no jornal, como fez em 1984, sua lista
de objetos vermelhos, oferecendo, em troca, seus próprios trabalhos de arte. Aqui vão alguns dos
objetos da lista de Cildo: seis vasos compridos para flores vermelhos; um vaso baixo redondo
vermelho; 25 livros de capa
vermelha; um chapéu vermelho; um telefone vermelho; uma máquina de escrever vermelha; um
porta-lápis vermelho, lápis e canetas vermelhos; um abajur de mesa (tipo escritório) vermelho; um
xale vermelho; um guarda-chuva vermelho; duas peças de roupa vermelha... A turma pode continuar
sua lista. Todos os objetos podem ser de diferentes tonalidades de vermelho.
Faça uma avaliação dessa experiência com os alunos. Como ela foi vista e entendida?
6. Manzoni
Piero Manzoni realiza seu primeiro "Achromo" em 1956. Ainda que sempre
ligado a tela, seus brancos - acromos - sâo obtidos pela aplicaçâo de diferentes
materiais/objetos sobre o suporte: algodâo, fibra de vidro. O artista produz
efeitos de ritmo com movimentos esponténeos ou constri sobre a tela estruturas,
como uma sërie de rolos brancos de algodâo obtendo um resultado de extrema
limpeza e ordem. Seus trabalhos estâo ligados ao Neo-realismo, resultam da
apropriaçâo de objetos e da interferència com eles na tela, onde nâo assumem
nenhuma conotaçâo narrativa ou simblica. De acordo com Pierre Restany, o
"Novo Realismo" movimento surgido na França nos anos 60, pode ser vinculado
diretamente aos princìpios de açâo artìstica lançados pelo Dadaìsmo: as
apropriaç§es, "readymades" e "assemblages" a partir dos objetos produzidos
pelo mundo industrial buscam uma conciliaçâo do mundo da arte com o mundo
industrial. "A apropriaçâo do mundo real ë a chave do maravilhoso
contemporéneo."
2.4. Oficina desvio da cor para o objeto, para o espaço e para o corpo: Hëlio Oiticica 7 (Rio de
Janeiro,1937 - 1980), "Blides", "Bilaterais" e "Parangolës 8"
Um capìtulo especial das antropofagias da cor no sëculo XX deve ser dedicado a esse artista.
Cada momento de sua obra inovadora representa uma açâo antropofžgica de libertaçâo da pintura
de sua prpria crise, a "clausura" do suporte e da tradiçâo e a conquista do espaço/tempo. Nessa
seqÆència de v–os, sua pintura ë sempre uma açâo de libertaçâo ("exercìcio de liberdade", Mario
Pedrosa): com os "Relevos espaciais", os "Bilaterais", ela conquista o espaço/gravidade e liberta-se
do reténgulo e da parede; nos "Penetržveis", conquista a arquitetura, e o espectador passa a ser
participante; na "Tropicžlia e Ïden", rompe as fronteiras de isolamento do mundo
institucional/internacional da arte e torna-se vida e cultura brasileira. Toda sua arte ë um convite Ç
conscientizaçâo do sabor com saber.
Oficinas de blides
Como estes trabalhos estarâo expostos na Bienal, essa oficina visa sensibilizar com
experimentos as aç§es inovadoras deste artista.
Blides (transobjeto)
O que sâo blides?
Hëlio Oiticica cria a cor-objetos-cor, chamando esses experimentos de blides ou transobjetos. A
cor enfim se torna objeto em corpo, em estado matërico concentrado em recipientes de seduçâo da
cor. A cor concreta que quer um corpo, que quer ser sabida por seu sabor. Nessa oficina de b lides,
os alunos serâo desafiados a ser construtores de caixas-surpresa da cor. Esses "transobjetos" sâo
feitos para ser tocados: gavetas, garrafas mžgicas, caixas de madeira, bacias ou contèineres,
combinados de diferentes materiais, sacos plžsticos, tecidos de uma mesma cor com terras,
pigmentos em p etc. Cada blide ë dedicado a uma exclusiva cor: monocromžtico. O que se intenta
ë criar uma caixa-corpo em que a cor possa ser tocada, experimentada como sabor/saber. Grandes
recipientes de vidro podem tambëm ser usados: por sua transparència, o conteödo interno, a cor,
torna-se objeto do olhar/tocar.
8. Os "Parangolés"
Sâo feitos de um combinado de diferentes tecidos monocromžticos de cores
vivas: plžsticos, telas transparentes etc. Os resultados sâo como mantos ou
estandartes, inspirados na fita de M•bius. A experiència "Parangolë", desde
sua confecçâo, escolha dos tecidos e cores e finalmente seu ritual de vestir e
dançar, invoca uma revisâo de toda a Histria da Arte ocidental, desde a
Renascença. Recuperando o ritual, arte da transfiguraçâo, o
espectador/participante. A cor quer se vestir de corpo. O corpo precisa da cor
para a transfiguraçâo ritualìstica de ser arte em açâo - dança.
Sugest§es de continuidade
Hélio Oiticica Van Gogh
"Nildo da "Banco de pedra no jardim do
Mangueira" asilo"
P4 Capa I 1889 - óleo sobre tela - 39 x
Parangolé 46 cm
1964 Coleção do Museu de Arte de
São Paulo
Assis Chateuabriand
Foto: Roberto Neves
Glossžrio Bibliografia
Arte conceitual: deslocamento do foco de ARGAN, Giulio Carlo. "Arte moderna". Sâo
interesse do artista da obra de objeto fìsico Paulo: Companhia das Letras, 1992.
para o prprio conceito de arte, estudando a OITICICA, Hëlio. "Catžlogo da exposiçâo
natureza da linguagem artìstica a partir de retrospectiva". Projeto Hëlio Oiticica.
sua funçâo no circuito artìstico. READ, Herbert. "Histria da pintura moderna".
"Assemblage": trabalho tridimensional Rio de Janeiro: Zahar, 1980.
freqÆentemente feito com objetos e RESTANY, Pierre. "Os novos realistas". Sâo
materiais achados, coletados e reunidos em Paulo: Perspectiva, 1979. (Debates: Arte, n.
uma önica peça, colados formando uma 137.)
escultura sem interferència de entalhe. SMITH, Huston. "The illustrated world's religion".
"Readymade": Marcel Duchamp (Blainville,
França, 1887 - 1968), com o gesto de Sâo Francisco: Harper
criaçâo dos "Readymade", apropriaçâo de
objetos "jž fabricados" deslocados para o
contexto institucional da arte, defende o
primado do ato conceitual, criando as bases
da arte conceitual.