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FOLHEAR, LER.
INTRODUÇÃO
No artigo Alfabetização Literária de Bebês: olhar, escutar, folhear, ler, descrevo e analiso
o processo de alfabetização literária de uma bebê35. Entendendo a infância como um dos estágios
da condição humana36, e concebendo-a como “categoria social do tipo geracional por meio da
qual se revelam as possibilidades e os constrangimentos da estrutura social” (SARMENTO,
2015), acredito que não há uma única possibilidade de infância e sim, projetos múltiplos que,
observados amiúde, revelam os adultos que seremos/somos. Através da observação de atitudes
espontâneas – com o livro, na mediação com a mãe e/ou outro e com a pesquisadora – e a partir
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da intervenção com acalantos e narrativas literárias, na pesquisa que dei início em 2015 e que
será concluída em 2018, pretendo descrever o processo de alfabetização literária de uma menina
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entre os dois meses e os três anos de vida. Com procedimentos deliberadamente organizados,
observo e registro parte das atitudes espontâneas – que Junqueira (2015) denomina “atos
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Crianças de 0 a 2 anos integram o universo infantil dos bebês e estes podem ser descritos como “sujeitos
que são produtos e produtores de cultura e que, na troca de experiências como os outros e com o meio,
constroem suas singularidades” de acordo com Galvão, 2016
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É na obra A condição humana (ARENDT, 1958) que ação e discurso são apresentados como formas
predominantes da revelação da essência do homem. Para a filósofa alemã, é pela ação que a essência do
homem se revela na esfera pública e é a ação que o torna capaz de inicia r novos processos, ilimitados e
potencialmente eternos. Para a definição da condição humana estão profundamente imbricados o ethos
(caráter), o logos (argumentação) e o phatos (emoção) propostos por Aristóteles em sua Retórica (2005)
embrionários de leitura” – e as habilidades desenvolvidas posteriormente às intervenções,
especialmente a escuta de acalantos e de narrativas literárias.
O tema de pesquisa que originou o artigo é alfabetização literária (ROSA, 2015).
Compreendida como um processo de apresentação do mundo da literatura (títulos, gêneros,
autores e a leitura) a futuros leitores, nela é preponderante a atitude de um mediador que, ao
selecionar “livros que fascinam (REYES, 2014)”, transmite mais do que ensina a arte da leitura
(PETIT, 2009). Por não ser “atributo genético”, o gostar de ler precisa ser produzido entre os seres
humanos (ANTUNES, 2013). Assim, para alfabetizar- se literariamente é necessário o desejo (um
sujeito que deseja ser leitor), um mediador (sujeito que conhece e ama o livro e a literatura além
de ter a habilidade de transmitir esse vínculo) e um objeto de desejo: o livro. É uma equação
complexa, peculiar, tramada em um pacto, segundo Paulino (2014), um pacto firmado entre
mediador, livro, leitor. Experenciado no texto literário não escrito que surge da relação entre texto,
seu autor, portanto e significado, atribuído pelo leitor, o pacto é um diálogo que necessita do
leitor. Este diálogo, a nova obra que brota da interação autor/leitor é a verdadeira literatura, a
obra, no sentido da manufatura literária. Ao mesmo tempo insondável e experimentação, a obra
não escrita revela o literário do pacto, de acordo com Bartolomeu Campos de Queirós (2013).
Graça Paulino (2014) afirma que a leitura literária pressupõe “uma prática cultural de
natureza artística, estabelecendo com o texto lido uma interação prazerosa” e é necessário um
“pacto entre leitor e texto” que inclui, necessariamente, “a dimensão imaginária”, pois é através
dela que “se inventam outros mundos, em que nascem seres diversos, com suas ações,
pensamentos, emoções” (p. 177).
METODOLOGIA
Alfabetizar-se literariamente requer vias de mão dupla: eu leio, tu ouves. Tu lês, eu ouço.
Eu leio, tu observas: minha voz, meus olhar, meus gestos, minhas emoções impressas nos tons e
silêncios, Desde a escolha criteriosa de um texto até os momentos em que devo emitir sons ou
calar, o papel do mediador – que transmite a arte da leitura – é preponderante na formação do
leitor.
Na pesquisa aqui referida – Alfabetização literária de bebês: olhar, escutar, folhear, ler – a
observação, descrição e entendimento de manifestações espontâneas e adquiridas no trato com o
artefato cultural, são fundamentais para a investigação. O reconhecimento e a descrição de “atos
embrionários de leitura”, evidenciados quando uma criança reclama e interfere se lhe tiram das
mãos um livro, por exemplo, e de atitudes de imitação, quando, já sentada sozinha, abre o livro,
folheia, balbucia, fecha, troca por outro e reinicia a leitura, entre outros são indícios de que um
bebê está sendo alfabetizado literariamente. Descrever essas manifestações para compreendê- las
é, também, adquirir capacidade de projetar as interferências. Assim, me torno capaz de propor
quando, de que modo e com que instrumentos devo iniciar um bebê no mundo da leitura.
Através de atos gestados por ela mesma – bater com as mãos no livro, pegar, por na boca,
amassar, virar, procurar uma superfície que caiba na boca, virar, soltar, entregar – quando ainda
não conhece o artefato cultural e seu uso a criança indica que precisa ser “apresentada” ao um
“manual de instruções”, uma vez que “crianças dessa faixa etária estão dando os primeiros passos
rumo à ordenação do mundo” e parte considerável das características do texto ficcional que
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produzem a abstração “tão necessária para que as crianças possam criar outros mundos em outros
tempos e espaços” ainda não está garantida nas obras disponíveis para esta faixa etária de acordo
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DELIMITAÇÃO DO TEMA
PROBLEMA
HIPÓTESE
No primeiro ano de vida a atividade principal da criança – aquela por meio da qual ela entra
em contato com o mundo que a rodeia, considerada a atividade guia ou dirigente (MUKHINA,
1995) – é a comunicação emocional com aqueles que dela cuidam, pais, educadores, pessoas
próximas. Mesmo ainda não sendo uma comunicação verbal, mediante o olhar, o movimento do
corpo, o bebê percebe o toque, a fala, a atenção carinhosa e a direção do olhar do adulto, que se
constituem como grandes incentivos à sua interação com o mundo. Criam-se, portanto, novas
exigências na criança, as quais as levam ao aprendizado e desenvolvimento: a necessidade de
comunicação, e de percepção – de ver, ouvir e pegar objetos (MELLO, 2012, p. 22). Assim, este
é também um momento adequado para oferecer, cotidianamente, a leitura literária.
A hipótese é de que se ofertarmos a leitura como um rito – mágico, íntegro de significados,
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pleno de interação com o bebê, a voz de quem lê e o objeto livro – terá sido iniciado o processo
de alfabetização literária. Sem isso, os bebês não atribuirão significação, por si mesmos, ao livro
e à leitura.
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OBJETIVO
COLETA DE DADOS
CATEGORIAS DE ANÁLISE
Minha intervenção teve início aos três meses de vida da Júlia, período em que a mãe da
menina retornou aos estudos na Universidade repleta de relatos sobre os interesses da bebê pela
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CONCLUSÃO
Júlia tentou usar o mesmo mecanismo para ler: trocar de página com o dedo. Aos cinco meses,
sentada, via e ouvia histórias com atenção. Aos seis, já segurava o livro entre as mãos e, quando
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desejou folheá-lo, conseguiu. Neste mesmo tempo, ouvia narrativas observando atentamente as
imagens e voltando-se, mais de uma vez, para a leitora, em busca da origem da voz que ouvia.
Com um ano e quatro meses, Júlia folheava com desenvoltura livros em suas mãos, no chão ou
sobre a mesa e, diante deles, balbucia enfaticamente, “lendo em voz alta”.
Como conclusão desse processo que está se desenvolvendo percebi que quando a criança
está sendo alfabetizada literariamente e indica perceber os ritos no trato com o livro possui
atitudes como a) estranhar, comparar, descartar, fechar, devolver; b) apontar o livro ou imagens
nele e procurar imagens ou livro que mais gosta; c) folhear, reclamar se ele fecha, comemorar ter
encontrado algo conhecido; d) mostrar que está rasgado; e) ouvir com atenção, responder a
perguntas olhando ou apontando, ajudar a folhear, balbuciar, exclamar, por a mão na cabeça e
“ler” em voz alta, com entonação.
Todas essas atitudes – ensinadas/adquiridas indicam que o pequeno da espécie precisa ser
inserido na cultura do escrito, no trato com os artefatos que a integram e com os sentidos dados
por nós, adultos, à leitura. Sem essa “apresentação” o livro fica relegado a mais um brinquedo
entre tantos outros disponíveis à criança, não sendo, necessariamente significado por ela.
REFERÊNCIAS