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Biblioteca "HISTÓRIA.

EXPLORAÇÕES E DESCOBERTAS" - 32

1. História dos Povos da

Mare Ferro
Língua Inglesa (4 vols.) Winston ChurchiU
2. A Revolução Russa Alan Moorehead
3. Memória de Montgomery Mal. Montgomery
4. Jornal do Mundo Vários autores
5. História das Orgias Burgo Partridge
6. Os Sonâmbulos Arthur Koestler
7. A Revolução Francesa Geor^s Lefebvre
8. As Grandes Guerras da História H. Udell Hart
9. Nova Mitologia Clássica
10. História dos Gregos
11. História de Roma
Mário Meunier
Indro Montanelli
Indro Montanelli
A Manipulação da
12. Heman Cortez Salvador de Madariaga
13. •Pequena História da Ciência W.C. Dampier
14. De Adão a ONU René Sédillot
15. Rendição Secreta Allen DuUes
16. A Angústia dos Judeus E.H. Flannery
17. Idade Média.- Treva ou Luz?

18. Itália; Os Dias Decisivos


Indro Montanelli e
Roberto Gervaso
Indro Montanelli
no Ensino e nos
e Roberto Gervaso
19. Itália; Os Séculos de Ouro

20. Hitler e a Rússia


Indro Montanelli
e Roberto Gervaso
Tiumbull Higgins
Meios de Comunicação
21. Síntese Histórica do Livro J. Barboza Mello
22. Ruínas Célebres Herman e Georg Schreiber
23. Impérios Soterrados Herman e Georg Schreiber
24. Romance da Arqueologia P.E. Cleator
25. Benjamin Franklin — Autobiografia Benjamin Franklin
26. A Declaração da Independência Carl L . Becker
27. Hitler: Autodestruição
de Uma Personalidade H.D. Rôhrs
28. Israel: Do Sonho à Realidade Chaim Weizmann
29. A Conspiração Mundial dos Tradução de
Judeus: Mito ou Realidade? Norman Cohn WLADIMIR ARAUJO
30. A Longa Marcha Simone de Beauvoir
31. De Leste a Oeste Arnold Toynbee

l BRASA
INSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE DIFUSÃO CULTURAL S.A.
SAOÍ-AULO
meiras práticas cavalheirescas — como o testemunhariam as
Nibelungen — e de muitos costumes e estruturas institucionais que
deram nascimento, depois da fragmentação do Império, a Estados
que existem até hoje: os magiares, os georgianos etc.
Na outra extremidade desta História, quando ruiu o maior Esta-
do multinacional que se conhece, o Império Otomano — e que foi
sem dúvida também o mais tolerante — a visão desse passado ilu-
mina o futuro dos povos turcos.
Decerto, o pan-turanismo se extraviou depois das vãs tentativas
de Enver-Paxá de reconstituir a unidade do mundo turco, da Ana-
tólia a Kazan e às estepes e montanhas da Ásia Central, russa ou
chinesa.
Todavia, no manual de história editado em Istambul em 1976,
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observa-se a sobrevivência do mito: está no mapa do povoamento
turco em 1936, no qual cada ponto representa 100 000 turcos e DO CRISTO REI À PÁTRIA E AO ESTADO:
onde uma cor contínua assinala as fronteiras de um Estado A HISTÓRIA VISTA DA EUROPA
imaginário em que "os turcos constituem a maioria da popu-
lação." Ele se estende da Anatólia à Ásia Central (soviética) e
ao Sin-Kiang, tendo ao meio, cravada como uma cunha, uma Já encontramos numerosas vezes, e reencontraremos ainda, a Histó-
minúscula mancha branca: o atual território da Armênia... ria vista da Europa, mas no que diz respeito ao seu relacionamento
com o resto do mundo. Quanto a outros aspectos — seu conteúdo,
seu funcionamento — podemos, no contexto deste livro, abordar
apenas um ou outro. E, a começar por suas fontes, para verificar
que a História dos historiadores não é a única História.
Em Histoire et culture historique dans 1'Occident medieval, Ber-
nard Guenée observa que, ao lado do seu fundq comum instituído
por Cassiodoro e que marcou durante mil anos a cultura histórica
do Ocidente (ele engloba Flávio Josefo, Eusébio etc), está a His-
tória dos outros, escrita não em latim mas na língua vulgar, em
prosa ou versos, como a história da Inglaterra segundo Brutus, que
Robert Manning, em 1338, adaptaria a versos ingleses "não para
os sábios rhas para os humildes".
O elo com Roma duraria pelo menos até o século XV: até aí,
com efeito, a História era a Antiguidade, além do passado da Igre-
ja, a História Sagrada. Mesmo entre os burocratas do Rei, não ha-
via um só livro de história, exceto esses, notadamente na França.
Foi somente no século XV "que a História de seu próprio país tor-
nou-se uma paixão comum a todos os franceses instruídos", e que
ela começou, como também em outros lugM-es, a exercer as fun-
ções muitas vezes mantidas até hoje: glorificação da pátria e legiti-
mação do Estado.
Mas os textos escritos não são as únicas fontes da História. Na
Espanha, por exemplo, as festas desempenham papel essencial co-
mo memória da sociedade; na Inglaterra, é o espetáculo teatral.
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graças principalmente a Shakespeare. Ontem e hoje, a ims^em e o Sim, meu Rei vem conquistar a Espanha
cinema participam bastante, notadamente na Alemanha nazista, na e mostrar ao Cristão que, por sua conduta arrogante,
formação da consciência histórica, isto é, aquela que o regime quer vai receber o mais severo castigo...
inculcar ao? jovens. Na França, interferem muitas fontes, mas o As crianças da Espanha, todos os anos, podem ouvir essa discus-
problema é outro, c o de saber quem vence: a tentação ou o medo são, não na escola, mas na praça de sua cidade. Em Molvizar, perto
da História? de Motril, desde tempos imemoriais os defensores da Cristandade
reproduzem discursos e gestas do passado. Essa representação não
NA ESPANHA, A FESTA TESTEMUNHA DA HtSTÔRIA é uma comemoração à francesa, durante a qual, perante um Presi-
dente da República impassível ou um subprefeito, pequenos gru-
Saindo do Islã, fiquemos na Espanha, ainda toda impregnada de pos desfilam no dia 14 de julho. Em Molvizar, cobertos com elmos
civilização moura e muçulmana. Em Molvizar, acima de Motril, de e vestidos com antigas pelicas, os moradores da cidade repetem o
onde, durante vários séculos, sentinelas vigiavam a chegada da fro- que os seus antepassados disseram e fizeram, lembrando-se ainda
ta mourisca, ocupemos o lugar deles e, por nossa vez, fiquemos à até dos termos do desafio dos mouros, da própria derrota, depois a
escuta... revanche e a vitória definitiva. Cada cidade reproduz esses momen-
tos de Moros y Christianos com as variantes que lhe são próprias.
A sentinela: A cena é representada durante os longos dias de verão e nos lugares
Alto! Quem vem lá? em que, das alturas da cordilheira bética, as sentinelas anunciavam
O embaixador mouro: aos espanhóis a chegada da armada turca ou moura. De Castela a
Um moaro que deseja agora, Jaca, de Boicarente a Cáceres, contam-se cerca de cinquenta cida-
porque espera com impaciência, des que ainda representam Moros y Christianos muitos séculos de-
anunciar uma embaixada ao teu chefe, pois desses acontecimentos.
se ele já não fugiu para longe do castelo... Mais do que em qualquer outro lugar, a História, assim, encarna-
O Rei cristão: -se na vida das cidades espanholas. Ela é motivo de festa. Sobre as
Que entre sem demora duas mil e quinhentas a três mil festas que constam do calendário
e fique na porta. espanhol, a religião figura de longe no primeiro lugar, mas o traba-
Lá ele poderá me falar lho e a vida diária do povo vêm logo a seguir, com a História. Entre
sebre os chefes da sua embaixada... estas, Moros y Christianos, que marcaram a carne da Nação, estão
O embaixador mouro: em primeiro lugar. Mas outros grandes momentos da história da
Que Alá te guarde, valente Rei de Molvizar, Espanha também são reproduzidos, mais ou menos desfigurados
de Castela e de Ar^ão, pelo tempo: desde a Festa Celibérica em San Pedro Maurique, por
defensor de Jesus e de Sua Lei... exemplo, até a cerimónia que, em 1852, pôs fim ao tributo que a
Dize-me logo quem protege este castelo Galícia pagava a Castela. Entre os extremos, são reproduzidas a
e que dá origem à minha cólera. festa dos soldados romanos em Cogollos Vega, a batalha de Clavijo,
A menos que queira morrer, a vitória do Cid, a coroação dos Reis Católicos, o descobrimento
seria bom que ele fugisse. da América, a vitória de Lepanto, a guerra de "independência" que
Senão, para meu desespero, expulsou Napoleão etc.
vocês todos serão atingidos pelo terror.
Juro por Alá que tremerão
Essa história nem é uma elaboração erudita nem é controlada: é
até mesmo as areias do mar...
simplesmente a memória popular mais ou menos transfigurada.
Porque eu quero castigar os ultrajes
Não é reconstruída, como a dos livros didáticos. É espontânea.
infligidos à grande Turquia Entre o inventário dessas festas e o dos temas ensinados na esco-
por Isabel e Fernando, la primária, há evidente correlação. Na Enciclopédia, primer gmdo,
que expulsaram meus parentes de seu próprio território. de Antonio Alvarez Perez, 1965, 168? edição, a religião figura

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raMihém amplamente em primeiro lugar, ocupando as 44 primeiras em 1931, transformou-se numa República. E verdade que, identi-
páginas do texto, enquanto toda a história da Espanha tem direito ficada com a de Castela, elas não consideram sempre essa história
a apenas 37. Assim mesmo, nos capítulos que compõem esta últi- como a sua, principalmente se forem catalãs, bascas ou galegas.
ma, o triunfo do Cristo Rei ocupa as melhores páginas, entre as o CINEMA NA ERA DOS NAZISTAS
quais as referentes à invasão árabe e, depois, à reconquista. Tudo o
que diz respeito à vocação evangelizadora da Igreja também é valo- A função exercida pela festa na Espanha, e pelo teatro e o ro-
rizado: desde Santiso (de Compostela) até Teresa de Ávila e os mance na Inglaterra, é preenchida pela ópera e pelo cinema na Ale-
missionários da América: "depois das conquistas de Cortês e Pizar- manha.
ro, eles realizaram uma obra que não é das menores; com paciência Nas lembranças da infância , o conhecimento do passado alemão
e espírito de sacrifício sem paralelo na História, nossos irmãos en- certamente deve muito a Schiller quanto à guerra dos Trinta Anos,
sinaram os índios a ler, a escrever, a rezar." ou a Fichte, que dá a ideia de um povo alemão de certa forma pre-
Nesse texto, destinado a crianças de sete a oito anos, toda a his- destinado desde a origem (Ur-Volk), mas a difusão de uma visão
tória da Espanha se resume a um longo combate pela libertação do grandiosa da Idade Média e das origens germânicas é bem obra do
país. Ao inimigo, muitas vezes vencedor, "a Espanha ensinou o he- espetáculo organizado por Richard Wagner, que enraizou o mito
roísmo (...), como o ocorrido durante o assédio de Sagunta, por do Reno na consciência alemã, fazendo com que os participantes
Aníbal, durante o qual todos morreram antes de ceder (...). Pela comungassem com ele.
primeira vez, através da boca dos moradores de Sagunta, a Espanha Na época hitlerista, com o espetáculo wagneriano modernizado,
disse ao mundo que não pode ser escravo um povo que sabe mor- o Triunfo da Vontade e Olímpia perpetuaram esse desejo de comu-
rer." Em Numância, mais uma vez a Espanha sucumbe ante os ro- nhão que os alemães, jamais unificados, gostam de experimentar.
manos, e Viriato morre antes de se render... Aconteceu assim mui- Desta vez, ele esteve a serviço do Homem Providencial.
tas vezes na História, até os tempos heróicos dos defensores de Sa- De forma mais geral, é claro que o regime nazista dedicou parti-
ragoça que resistiram a Napoleão. cular atenção ao espetáculo, ao cinema, notadamente no que diz
Essa história da Espanha termina por outra guerra de liberación: respeito à educação da juventude. Desde abril de 1934, as Juventu-
"se Uama guerra de liberación la qué inicio Franco el 18 de Julio des Hitleristas de Colónia começaram a pressão para a utilização do
de 1936 para librar a Espana de sus enemigos y hacerla Una, Gran- cinema na educação (Jugendfilmstunde), programa logo adotado
de y Libre." Nessa história, apenas o Caudillo "foi invicto": ele em todas as Juventudes Hitleristas. Logo depois, o dr. Rust, minis-
pôs fim "às perseguições contra a Igreja, aos assassínios e às greves tro da Educação, organizava nas escolas alemãs a projeção de fil-
diárias que ameaçavam fazer o país cair nas mãos dos comunistas." mes devidamente escolhidos. A partir de 1936, 70.000 escolas dis-
punham de um projetor de 16 mm e mais de quinhentos filmes es-
Esse resumo não é uma caricatura; em sua simplificação gros-
tavam em elaboração, 227 para o primário e secundário, e 330 pa-
seira, ele também não é característico da forma pela qual se conta
ra as universidades; havia 10.000 cópias desses filmes. É fácil ava-
a História num regime autoritário. As democracias também não se
liar a medida exata desse esforço: na "era do audiovisual", hoje em
acanham nem um pouco de separar do passado aquilo que as em-
dia, na França, um filme como Mourir à Madrid, de F. Rossif, ou
baraça. E os regimes socialistas também não, como veremos...
Í936, Le Grand Tournant, de H. Turenne, tiveram apenas umas
Na relação das perguntas que não convém fazer, a Espanha ofe- poucas cópias destinadas ao ensino. E em nossos dias, certamente
rece às crianças, desde logo, uma primeira colheita: o México e o ainda não há 70.000 projetorcs de 16 mm, isto é, 800 por Departa-
Peru foram conquistados, mas onde está dito que foram perdidos? mento, nas escolas primárias e secundárias.
Não se fala mais nada do Império Espanhol? De Cuba a Manilha e
a Guiné, ele nunca teria existido? Também nem uma palavra sobre "A fim de que as nossas ideias penetrem nas escolas, observava o dr. Rust,
a destruição dos índios ou sobre o tráfico de escravos. Há silêncios nada melhor do que o cinema. (...) Ele deve oferecer aos alunos o entendi-
mesmo quanto à própria Espanha: as crianças espanholas ignorarão mento dos problemas de hoje, o conhecimento do passado grandioso da Ale-
o que aconteceu aos mouros e aos judeus, expulsos ou convertidos manha e a compreensão do III Reich. O Estado Nacional-Socialista escolheu
à força... E não ficarão sabendo também, ao menos através da his- conscientemente, e de maneira definitiva, fazer do filme o instrumento de
tória institucionalizada, que, pela vontade dos cidadãos, a Espanha, transmissão de sua ideologia."

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Nessas condições, certamente é um abuso considerar que a visáo Observar os livros didáticos da época nazista não é menos neces-
nacional-socialista da História não tivesse penetrado verdadeiramen- sário, confrontando-os com as obras dos tempos anteriores e poste-
te no ensino, quando se alega, de forma aparentemente convincente, riores porque, se é verdade que os nazistas se formaram na escola
que os primeiros livros didáticos de inspiração nazista só aparece- de Weimar e os dirigentes alemães de hoje na escola nazista, não há
ram em 1937, que a série só ficou pronta em 1941, e portanto ne- grande ruptura entre o conteúdo da História ensinada antes, duran-
nhum jovem alemão teve conhecimento da totalidade dessas obras... te e depois de Hitler, uma ruptura tão abrupta quanto se poderia
Como se o saber histórico passasse unicamente pelos livros didáti- imaginar. Simplesmente, quanto ao período de 1933 a 1945, cer-
cos; como se os comportamentos e as reações politicas estivessem tos aspectos são apresentados de forma caricatural; certas asserções
apenas na dependência do saber. visivelmente contrárias à verdade e inteiramente específicas são
Além do mais, existe a contraprova do papel do cinema na Ale- feitas com mais cinismo ou boa consciência do que em outros tem-
manha. Depois da derrota do Nazismo, e não podendo guardar o pos — ou sob outros regimes.
luto doFúhrera.doTAdo, a Alemanha atropelou totalmente o ensino Rainer Riemenschneider mostrou-o muito bem: os manuais
da História contemporânea. Simplesmente, não se tocou no assun- escolares da época hitlerista inspiravam-se diretamente no Mein
to nos programas. O tabu era absoluto. Quanto aos mais jovens, Kampf, o mesmo acontecendo com os filmes históricos daquela
como o demonstrou uma pesquisa, diziam: "Hitler? Não sei quem época. Dietrich Klagges, o autor desses manuais, julgava que o
é." A proibição atingiu mesmo a época anterior, incluindo o estu- Mein Kampf é uma obra comparável à de Copérnico, porque ofere-
do das origens da Primeira Guerra Mundial. Isso ficou claro com a ce a chave para uma interpretação clara e evidente da História.
explosão de cólera que se seguiu às análises de Fritz Fischer, que Segundo Adolf Hitler, "Os eixos da visão da História devem em
mostrou, com provas nas mãos, que em 1914 a Alemanha tinha primeiro lugar ser "claros", enquanto no ensino atual, lamentável
extraordinários objetivos expansionistas, o que, implicitamente, em 99% dos casos, de ordinário só se retêm alguns poucos fatos,
significava que a conquista hitlerista não foi um "acidente da His- datas, nomes (...) O essencial não é absolutamente ensinado (...)
tória" ou o triunfo de um megalomaníaco, mas a realização de um Ora, é preciso enfatizar as grandes linhas da evolução." A história
projeto com o qual concordava uma grande parte da sociedade ale- universal "deve gravitar em torno da noção de raça; a história grega
mã. Assim, ficou bem colocado também o problema geral da res- e romana é indispensável, mas com a condição de inserir-se no con-
ponsabilidade do povo alemão, que a recusa do luto pelo Nazismo texto da comunidade racial dos arianos; a história deles é um com-
tinha por função agastar. Ora, nos anos sessenta, um dos fermentos bate permanente em favor da pureza da raça, sempre colocada em
da revolta dos jovens contra seus pais foi, na Alemanha, a discus- perigo pela conjuração malfazeja das raças inferiores que tentam
são do comportamento deles durante a guerra e sua capacidade de infiltrar-se no corpo de um povo sadio."
não quererem reconhecer responsabilidades pelo extermínio dos O autor do Mein Kampf declara principalmente que:
judeus. Foi o filme de E. Leiser, Mein Kampf (Minha Luta) que
desempenhou o papel subversivo no seio das famílias, revelando "Falta à nossa educação a arte de fazer ressaltar, na evolução histórica do
aos jovens alemães, que começavam a se emancipar nas salas escu- nosso povo, alguns nomes (...) Ê preciso concentrar a atenção sobre alguns
ras, os horrores cometidos pela Gestapo e até pelo exército, tanto heróis eminentes e, sabendo passar por cima de uma apresentação objetiva, ter
no gueto de Varsóvia como nos campos de extermínio. A partir por finalidade inflamar o orgulho nacional." "Um inventor não deve ser exal-
daí, outros filmes procuraram analisar o fenómeno da adoção cole- tado porque é um inventor, mas através de sua comunidade nacional (Volks-
tiva ao Nazismo: Cenas de Caça na Baviera, de Peter Fleishmann, genosse) (...) É preciso saber escolher os nossos maiores heróis para apresentá-
Eu te amo, eu te mato, de V. Branler etc. Dez anos mais tarde, foi los à juventude de forma tão penetrante que eles se transformem nos pilares
necessária a exibição de Holocausto para que, em toda sua profun- de um sentimento nacional inquebrantável (...) Ao sair da escola, o adolescen-
didade, a sociedade alemã abordasse abertamente os problemas te não deve ser um pusilânime, pacifista, democrata ou coisas do género, mas
da época nazista. um alemão por inteiro." (...) "Não há dúvida de que o mundo caminha em di-
reção de uma convulsão total. Será para a salvação da humanidade ariana ou
A escola nada tinha com isso, ou, pelo menos, tinha .muito para benefício do judeu eterno?" (...) Não quero que se aprenda História e
pouco... sim que ela ensine."

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Inovação pedagógica, para os mais jovens a História era analisa- — A Einkreisungs-Politík, política de "assédio", da qual a Ale-
da voltando-se no carso do tempo, de maneira que Adolf Hitler é manha é vítima desde que existe, constituiu o terceiro eixo do
o primeiro herói, é a ele que a História conduz. Depois vem Leo ensino ministrado aos alemães. Sem dúvida, a crença nessa ameaça
Schlageter, "resistente" sob a ocupação francesa da Renânia e fu- preexistiu ao Nazismo, que somente exasperou a cólera alemã até
zilado pelos franceses em 1923, "herói nacional vítima do Diktat o paroxismo. Já antes de 1914, os jovens aprendiam que o territó-
de Versalhes." A seguir, Bismarck "que, ao morrer, esperava que rio nacional é um cemitério de eslavos, de cuja ressurreição o povo
alguém completasse sua obra"; em seguida, Frederico I I , Lutero, alemão desde sempre tem a ideia fixa. Outrora conquistadora e co-
Carlos Magno etc. até Arminius, o exato equivalente de Vercinge- lonizadora, a Nação germânica passou a considerar-se daí por dian-
torix na Gália e de Viriato na Espanha, o qual, "nas sombras das te a guardiã da civilização em face da multidão vinda do Leste.
florestas germânicas combateu o poderoso exército romano. Armi- Não é sem inquietação que via os eslavos ocidentais crescerem e se
nius queria que os germanos se unissem mas eles permaneceram di- multiplicarem. Ela apagou todos os traços da passagem deles por
vididos. As cizânias custaram caro ao povo alemão, que almejava territórios que lhes pertenceram no passado, como a Pomerânia.
um unificador... Finalmente, um dia ele chegou..." Como os franceses, a princípio os alemães acreditavam que o peri-
A exaltação da raça e do povo alemão levava à subversão da vul- go estava no Leste e tomou corpo a ideia de uvmDrangnach Osten
gata histórica ao menos dentro de três áreas: (pressão em direção ao leste) para garantir a perenidade da presen-
ça germânica em toda a Europa Central. Mas eis que as crianças
— Os problemas de religião e do papel de Lutero, pois a Refor- alemãs aprendem que apareceu um segundo inimigo, no Oeste.
ma não é considerada propriamente um problema religioso mas "a Goethe escreveu em suas Memórias que, em sua juventude, a pior
primeira revolução alemã dirigida contra a opressão do estrangeiro, catástrofe foi a ocupação, quando os franceses se instalaram em
de Roma (...) Levante essencialmente nacionalista e político, a re- Coblença. "Hoje (texto escrito por volta de 1910) o mercantilismo
novação da fé teve por objetivo fazer nascer um homeni novo, o ci- inglês e o ódio francês unem-se às ambições dos russos contra o
dadão alemão." Lutero quis ver nascer uma nova Igreja, a Igreja pobre Império Alemão." "A pátria está cercada... mas Deus sem-
alemã, nacional (a que Hitler gostaria de instituir), mas isso só se- pre abateu os inimigos da Alemanha... Deus golpeou Napoleão em
ria possível se a Alemanha se libertasse do Papa. Além disso, na- 1813 " e o centenário desse acontecimento foi celebrado com fausto
quela época, a imagem do Reich embaçava-se e diminuía cada vez às vésperas da Grande Guerra. "É por isso que nós, alemães, só te-
mais desde a queda dos Hohenstaufen; o Reich era um país dividi- memos a Deus." Sadio e v^oroso, o povo alemão nada tem a te-
do, desprezado, uma presa para o estrangeiro (...) O Papa aprovei- mer dos seus vizinhos a oeste. Todos os anos, de 1872 a 1914, ce-
tava-se dessa divisão: Lutero, um plebeu (como Hitler) tornou-se o lebrou a Sedan-Feier (Festa de Sedan), que lhe relembrava a derro-
porta-voz da primeira revolução alemã. ta do povo vizinho, daí em diante diminuído e que ele considerava
— A Revolução Francesa é, por assim dizer, expulsa da História. frívolo. A guerra "que poderia eclodir não era desejada pela Ale-
Com efeito, os poucos parágrafos que lhe são dedicados colocam- manha e o Kaiser tudo fez para evitá-la." Eduardo VII organizou a
na na dependência da Revolução Americana, insistindo-se na "forte asfixia da Alemanha, invejoso da sua prosperidade e crescimento
influência exercida por esta na França", e reduzindo os aconteci- irresistíveis. O Hassgesang (Canto de Ódio) de Ernest Lissauer
mentos de 1789 à enumeração dos movimentos dé revolta ou agi- comprova o despeito sentido pelos alemães em relação à Inglaterra,
tação que redundaram "no reconhecimento do direito das gentes que se recusava a compartilhar a dominação mundial.
como base da Constituição." O aspecto universal dos princípios
de 89, o eco que provocaram, inclusive além do Reno, e outros Logo depois da Primeira Guerra Mundial, após o "Diktat" de
problemas afins, não são abordados porque a revolução na Ale- Versalhes, cólera e frustração aumentaram: discursos, livros didáti-
manha, como já vimos, data de Lutero, é muito anterior e por- cos e filmes não paravam de estigmatizar os inimigos permanentes
tanto... A Revolução Francesa não seria modelo para nada, dife- do povo alemão aos quais se acrescentava, nas obras dos nazistas, o
rentemente da Revolução Americana que libertou os cidadãos ódio aos comunistas, aos franceses e aos judeus. Até a guerra, en-
da opressão estrangeira... Assim, ignorando os debates teóri- tretanto, somente eram vilipendiados os inimigos internos; por
cos que a Revolução Francesa provocou, "o jovem alemão não se exemplo, na série Gestem und Heute (Ontem e Hoje), na qual a
arrisca a transformar-se num democrata ou coisa parecida..." subversão do Estado e dos costumes na época de Weimar é analisa-

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da em planos alternados com as realizações "sadias e grandiosas" — Falsificação por inversão.
do I I I Reich. Para estimular as energias da juventude e prepará-la Em O Judeu Súss, Siiss, ao tomar-se poderoso e ministro do du-
para um novo conflito, são proibidos os filmes pacifistas {Nada de que, violenta Dorotéa, filha do conselheiro Sturm;em conseqiiên-
Novo na Frente Ocidental, por exemplo), enquanto, para apagar o cia, ela se suicida. Ora, na realidade, violentada foi a filha do pró-
efeito produzido pelo Westfront (Frente Ocidental), de Pabst, a prio Siiss, e pelo duque, seguindo-se daí o suicídio da moça...
UFA produziu Stosstrupp 1917 (Tropa de Choque, 1917) e Ein • Nesse mesmo filme, a contratação de um corpo de mercenários foi
Mann will nach Deutschland a fim de exaltar o heroísmo alemão 1 feita não por proposta de Siiss mas por iniciativa do duque que,
entre 1914-1918 e condenar o egoísmo dos que permaneceram na ^ ainda no filme, atribui a maquinação aos judeus.
retaguarda,
|| — Identificação com o que é escondido.
À falta de filmes anti-soviéticos, pouco numerosos, como
Fruchling (1934) e K.G.B., cujas produções se interromperam na 'I Escondidos, no caso, são os crimes cometidos pelo regime, os
época do Pacto, os cinemas foram invadidos, a partir de 1939, por s campos da morte, a guerra "total". Em IJher alies in der Welt
uma fantástica onda de filmes anti-semitas e antiingleses. As exibi- (Acima de todos no mundo), é apresentada a vida em Paris no dia
ções frequentemente eram gratuitas para os militares jovens e, na da declaração da guerra, 2 de setembro de 1939: os alemães são
retaguarda, para suas famílias. caçados pela polícia, que os prende no estádio de Colombes em
companhia de judeus presos nas mesmas condições. Em Ohm Krii-
Nesses filmes, a mais pura expressão da visão da História e da ger (O Tio Kriiger), em que a natureza plebeia dos bóeres permite
ideologia do I I I Reich, pois Goebbels em pessoa acompanhava as j que sejam identificados com os nazistas, enquanto o luxo e a luxú-
produções, foram postos à disposição dos produtores meios colos- j• ria dos ingleses fazem deles "os judeus do mundo ariano", é atri-
sais, a fim de que essas "superproduções" obscurecessem tudo o buída a Lord Kitchener a invenção da guerra total — isso no mo-
que Hollywood ou os soviéticos tivessem feito até então, para que mento em que os alemães acabavam de destruir Coventry —; debi-
nada faltasse ao "entusiasmo das massas". Para realizar Kolberg, tando-se também aos ingleses a invenção dos campos de concen-
por exemplo, que relata a resistência heróica dessa cidade ao cerco tração.
de Napoleão em 1813, Veit Harlan teve à sua disposição seis mil Nesse último exemplo, a ideia escondida interfere tanto na ver-
cavalos e 187 000 soldados. dade quanto na ficção. De fato, durante a guerra dos bóeres os
ingleses criaram os primeiros campos de concentração, os quais,
|. porém, nessa ocasião, não tinham nem a função nem o funciona-
A VITÓRIA DA IMPOSTURA í mento dos campos nazistas. A população civil era internada em
[ condições espantosas, o tifo e a febre tifóide dizimavam-na cruel-
A subversão da verdade histórica revela-se sob muitos dos seus !^ mente, mas, diferentemente dos campos nazistas, não estava nem
aspectos costumeiros, como a mentira por omissão (por exemplo, •< organizada nem prevista nenhuma "solução final" para os deten-
em Kolberg não é contado que os ingleses deram ajuda aos sitia- tos, que seriam normalmente libertados assim que terminasse a
dos), ou a simples invenção (a introdução dos pagamentos alfan- $ guerra. O que foi feito. A intervenção da ideia escondida aparece
degários em certas cidades, tão impopulares, é apresentada em O em Ohm Kriiger também quando é apresentada a separação de
Judeu S'ús5 como "uma ideia que só poderia ter vindo dos judeus", mães e filhos, coisa que os nazistas fizeram, mas não os ingleses.
quando se sabe que essa prática já existia em muitos países da
Europa no século XVIII) etc.
NA FRANÇA: TENTAÇÃO OU MEDO DA HISTÓRIA?
Mas há práticas de mentiras históricas específicas dos nazistas,
formas de subversão irredutíveis a outras propagandas. Isso é mais
digno de nota porquanto tais filmes históricos vêm sempre prece- O mensageiro: Saúde a todos vós, nobres senhores!
didos de um aviso indicando que são "baseados em fatos históri- Sou portador de más novas da França,
cos", além de ter sido dado o título de Professor a um dos conse- de assassínios, de perdas e derrotas (...)
lheiros históricos desses filmes, Wolfgang Liebeneiner.

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Bedfort: Excitam-me essas novas; sou regente
grin et pitié, o efeito é o mesmo. A guerra civil bate à porta. Com-
da França. Tragam minha cota de armas;
jreende-se que a isso a televisão prefira a adaptação de romances
lutarei pela França. Despojemo-nos
listóricos: "não convém deixar renascer as paixões", explicava um
destas vestes de luto vergonhosas.
texto do ministério da censura a propósito dc Madame Jeanne...
Em vez de olhos, feridas nos franceses
Evidentemente, ela também divulga documentários de arquivos e
abrirei, para que eles chorar possam
La caméra explore le temps... mas poucas obras suscetíveis de
suas desgraças ora interrompidas*
"fazerem onda"... Ora, observa-se que o cinema, presumivelmente
Outros textos de Shakespeare retomam em substância esse tre- mais independente (mas de quem? ), não é mais audacioso. Anali-
cho de Henrique VI. Assim, não é necessário que, na Inglaterra, sando os filmes para o cinema produzidos na Finança depois que a
a História seja francófoba. Há muitos séculos Shakespeare está no televisão passou a representar um papel nacional, isso é, mais ou
lugar dela e, novo Homero, sua palavra constitui para todos os menos a partir de 1958, Jean-Pierre Jeancolas observa que o cine-
ingleses o tesouro mais compartilhado entre eles (ver a nota do fim ma "tomou apenas um tímido conhecimento da História." Porque,
deste capítulo). se há um Lacombe Lucien e um Staviski, se, igualmente, existem
A França não dispõe de um Shakespeare e, não obstante, seu Allio e Tavernier, qual é o seu público? Na França, a história-pro-
teatro clássico já manifestava o medo ou a tentação da História. Na blema tem menos público do que a história-sonho, a história-eva-
verdade, ele evoca os romanos ou os espanhóis e qualquer um po- são, a História, quadro de uma história.
de encontrar nele, atrás das intrigas, a imagem dos problemas da De onde vem, então, esse sucesso contemporâneo da História,
época. Mas não diretamente como em Shakespeare, o que o faz comprovado pela fantástica difusão de revistas c histórias em qua-
perder, hoje, uma parte da função desempenhada por Henri- drinhos e, inversamente, esse medo de uma História analítica e
que V ou Henrique VI (e não, digamos, por Júlio César). De ma- crítica?
neira que, graças a essas peças e também graças a Walter Scott, a
visão restrospectiva do passado inglês enraíza-se na memória in- Em La Grande Guerre, em 1969, cu escrevi: "A França, obser-
glesa. varia um historiador mal-humorado, não tem tanto o génio das ar-
Na falta de Shakespeare (ou de Wagner, no que diz respeito à mas e sim o da guerra civil. Exceto em 1914, ela jamais conheceu
Alemanha), os franceses dispõem de uma herança romanesca. Seu a experiência de uma longa e verdadeira guerra patriótica. Lance-se
Walter Scott é Alexandre Dumas, cujos êmulos se reconhecem um olhar sobre sua história, próxima ou remota, c fica evidente
desde Victor Hugo do Chevalier de Pardaillan até Angélique ou que todos os conflitos travados pela nação mais orgulhosa de suas
os Rois Maudits. Com a expansão colonial, o herói exótico com- glórias militares estavam, pouco mais pouco menos, mesclados de
pleta o quadro, graças a Jiilio Verne ou Paul d'Ivoi. Outro canal é a guerra civil: o que é claro para 1939-1945 o c também para a
história em quadrinhos que, há muito tempo, toma a História mais Revolução e o Império, ou ainda para a época de Joana d'Arc e
como um quadro do que como um tema. Do contemporâneo pas- dos Bourguignons, para Henrique IV, a Liga e a época de Ríche-
sa sub-repticiamente a um passado mais distante;da família Fe- lieu. Mesmo em 1870 havia lun partido que secreta ou abertamen-
nouillard a Tintiri e, hoje, a Astérix, a maior tiragem entre as pu-. te desejava a derrou daqueles que dirigiam o país. Em 1914-1918,
blicações francesas, com mais de trinta milhões de exemplares já não: a França não teve o "partido do estrangeiro". O que escrevi
vendidos. Na verdade, embora faça algumas incursões a tempos da História da França, poderia escrever da história na França. Ela
pós-gauleses, Astérix permanece o herói de uma época pouco dis- é um dos lugares privilegiados da guerra civil cujas origens formam
putada... O medo da História, na França, dessa forma aparece de muitas estratificações. O exemplo de Joana d'Are permite identifi-
novo, seja qual for a forma de narrativa escolhida. car mais algumas... '
A prova disso aparece quando irrompe uma obra poderosa. Aí A primeira estratificação, com as saias rachaduras, data do pró-
há um furacão na França: do Bonaparte, de Abel Gance, a Cha- prio século de Joana, que ainda .era Jeanne Darc. Ela coloca em
cena, e em oposição, três famílias: os servidores do Rei, os raciona-
* Para este trecho ck Henrique VI, ato I, cena I, usamos a tradução de Carlos Alberto listas e os crentes... uma polemica que nasceu naquela ocasião c vai
Nunes, in Shakespeare, volume XVlII, Edições Melhoramentos, s/d (N. do T.). durar até quando?

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o historiador americano George Huppert notou que, para falar sa forma, só fica responsável o inimigo de sempre (que depois se
de Joana d'Are, na França, os historiadores dos séculos XV e XVI tornou protestante), os ingleses.
recusavam utilizar os documentos disponíveis e, especialmente, os O que incomoda os leigos são as "vozes" de Domrémy. Nas ilus-
arquivos do processo de Joana. Ou melhor, os historiadores ofi- trações, suprimem-se São Miguel ou Santa Catarina. Dizem que ela
ciais ignoraram a Donzela... Nos Annales de Gilles (1553), Joana teve "vozes interiores." Os mais decididos falam em "alucinações."
d'Are tem um papel muito pequeno, num drama cujo protagonista A serviço da República, apóstolo da vingança contra a Alema-
ficou sendo o próprio Rei. Gilles não alude ao processo por here- nha e desejando unificar todas as opiniões, e os católicos, Ernest
sia e bruxaria, nem fala de milagres. Isto porque o triunfo do Rei Lavisse procura uma fórmula de conciliação: "Joana escutava al-
não poderia ser acompanhado da ajuda de uma bruxa ou de uma guém dizendo-lhe que fosse boa e prudente (...) Ein achava que ou-
santa. Para o monarca e seus legistas, para os seus historiadores, via vozes vindas do céu. Tais vozes falavam-lhe das desgraças da
tratava-se de encontrar um fundamento nacional — e não eclesiás- França." O processo foi obra do "mau bispo Cauchon". (Na edi-
tico — para a sua legitimidade. Um pouco mais tarde, Gaguin ção de 1904, contemporânea da Entente cordiale, era preciso tra-
menciona a crueldade dos ingleses e as virtudes de Joana: caso tar bem os ingleses). Encaminhando-se para a fogueira, "Joana diz
contrário, Carlos deveria o seu trono às forças do Mal. Ele permitiu ao cruel bispo de Beauvais: Bispo, eu morro pelo senhor". Mas,
que Joana o ajudasse em sua luta. O serviço do Rei exige a laiciza- para os católicos, a honra está salva porque Lavisse faz intervir
ção da heroína e que, assim, seu papel fique diminuído. um monge; no momento em que Joana sobe no monte de lenha,
A dificuldade está, evidentemente, em que não se vê bem como um frade aparece diante dela. 'Que eu a veja enquanto morro",
uma simples filha de camponeses pôde obter o comando de muitos diz Joana. E dando o último suspiro, exclama: "Jesus!". Ernest
exércitos. De Haillan oferece a primeira explicação racionalista, Lavisse, como Mezerey, também era bem informado porque não
dizendo que o milagre dessa moça foi "enganosamente dado como restou nenhum depoimento sobre a morte de Joana d'Are. De fa-
autêntico, referendado, maquinado por avisados homens de guerra to, ela morreu na fogueira, mas todo o resto é imaginação.
(...) Tão grande é a força da religião e da superstição." Em resumo, Exatamente em 1904, o caso Thalamas comprovava a vivaci-
eles compreenderam o partido que o Rei poderia tirar da chegada dade das reações suscitadas toda vez que é posta em causa a versão
de Joana, fizeram disso um "milagre" e, durante um certo tempo, piedosa.
o milagre funcionou... Professor de História, Thalamas deu Joana d'Arc como tema de
Segundo Huppert, a versão piedosa nasceu com os Annales de uma composição. Um aluno escreveu: "Ela é uma glória religiosa,
Belleforest, um pouco mais tarde. Aí, Joana é inocente e sem ma- não uma Deusa pagã do patriotismo (...) No Rei, ela só via o lugar-
lícia. Deus escolheu essa humilde pastora para que ela fosse instru- tenente do Cristo. Veio para levar de novo a França para Cristo."
mento de sua vontade, porque, esclareceu depois o historiador Me- O professor não deixou passar essa interpretação, e eis as observa-
zerey, muito bem informado. Deus queria salvar o Delfim. Joana é ções que ele afirmou ter feito: "Não é preciso introduzir o m i l ^ e
assim, o instrumento da Providência e continua de milagre em mi- na História. Como historiador, não tenho de acreditar em DeUs,
lagre. Foi presa porque ultrapassou sua missão: deveria "ter vol- que não é uma personalidade histórica. Joana não veio conquistar
tado para casa assim que a missão foi cumprida e uma vez coroado a França para Cristo. Ela era uma pessoa muito natural, uma
o Rei. Ora, ela se obstinou. E Deus, que é muito cioso de ser valente camponesa. Teve alucinações auditivas, que declarou serem
obedecido pontualmente, não estava obrigado a continuar os mi- vozes de origem celeste." Como o aluno não mencionara o proces-
lagres em favor dela." so, o professor completou a lacuna dizendo que "hoje esse proces-
Passados alguns séculos, caída a monarquia, para a República so seria iníquo".
Joana não era uma fonte de embaraços. E assim permaneceram "No Liceu Condorcet, onde Thalamas leciona, escreveu a Revue
as duas visões, a dos crentes e a dos leigos. de 1'enseignernent primaire, certamente há famílias reacionárias,
Daí em diante, o que incomoda os católicos é Ruão, o processo, clericais, de um fanatismo exacerbado, prevenidas contra o mestre.
a condenação pelo bispo Cauchon, o carrasco de Santa Joana. Al- O aluno np 8, principal testemunha de acusação, declarou que o
guns suprimem Cauchon das ilustrações, nota Amalvi; ou então professor dissera: "Não acredito no Deus de vocês e menos ainda
afirmam que a Igreja subtraiu Joana da jurisdição eclesiástica. Des- nos seus ministros"; entretanto, esse mesmo aluno afirmara uns

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dias antes: "o professor disse que, como historiador, não precisa tiva coordenada por Philippe Goutard; ou ainda a Revolução Fran-
acreditsu" em Deus". (...) cesa, cujas interpretações e cujos mitos até os dias de hoje foram
inventariados com talento por Alice Gerard. Isso para não falar dos
M. Chaumié, o diretor da escola, censurou Thaiamas: "faltou-Ihe
problemas suscitados toda vez que se evoca a expansão colonial,
tato, noção de medida;" Os professores emudeceram. No Conselho Vichy etc.
Municipal de Paris, Chassaigne-Goyon intervém: "A manifestação
do magistério em favor de M. Thalamas é, na realidade, dirigida Mas é ilusório acreditar que um passado ainda mais distante não
contra Joana d'Arc, porque ela é a encarnação do patriotismo (...) possa provocar altercações e polémicas. O das origens francesas,
Já é tempo de reagir e de levar esses funcionários desviados a uma por exemplo, pois, "do século XVIII ao XIX passou-se da concep-
sadia apreciação dos fatos (...) Amanhã, eles dirão que a bandeira ção segundo a qual os nobres francos encarnavam a liberdade das
não passa de um trapo, a caserna uma coisa imunda, a pátria uma florestas germânicas contra a monarquia cristã despótica, à teoria
utopia." que coloca os gauleses como representantes das liberdades demo-
cráticas."
M. Faillet, socialista e anticlerical, também condenou Thalamas:
"Ele atingiu a glória da pátria, o que é um crime. Tanto pior para Além disso, nos dias de hoje surgiu uma nova "frente". É claro
os chicanistas que ridicularizam a missão divina dessa sublime e ilu- que os abusos da centralização praticada há mais de um século, os
minada. Mas, senhores reacionários, não lhes cabe falar de Joana privilégios sistematicamente concedidos a determinadas regiões, a
d'Are. Os senhores já se esqueceram de que foi através dos seus bis- decadência de outras nitidamente sacrificadas à ideologia do de-
pos que a Igreja se apoderou dela, julgou-a e atirou-a às chamas. senvolvimento suscitaram a reação das identidades regionais, que
Reivindicando Joana, da qual se esqueceram durante cinco séculos, conduz à elaboração de uma contra-história. Seu principio contes-
os senhores cometem um sacrilégio. Ela é filha da França, enquan- ta a identificação, de natureza jacobina, do progresso, entendido
to a pátria dos senhores é Roma, é a Igreja, é o Vaticano." como sentido da História, com o aumento dos poderes do Estado.
Depois de Robert Lafont, pioneiro nesse terreno, C. Gendre e F.
Como M. Thalamas fora censurado, "nenhum mestre, de agora Javelier analisaram as omissões de uma História que se considerava
em diante, sente-se protegido nem seguro quanto ao futuro. Fica- objetiva: ignora-se que o "casamento da Bretanha" foi o resultado
mos todos à mercê da denúncia do primeiro aluno preguiçoso que de uma relação de forças; ignora-se que, depois de ter sido com-
aparecer, do primeiro delator, inteligente ou estúpido." O que se prada, a Córsega precisou ser submetida; assim como se passa em
disse sobre o caso Thalamas pode ser repetido a propósito de to- silêncio sobre a maneira pela qual o Condado de Tolosa foi incor-
dos os personagens disputados entre crentes t náo-crentes, Clóvis porado ao domínio real, e também a forma pela qual se "limitou"
ou Blandina, Fénelon educador ou revolucionário... Pode ser repe- a Catalunha livre, em 1793, à sua porção... de além-Pirineus...
tido em relação aos heróis cristãos, que os leigos não reconhecem, Uma prática "jacobina" cuja imitação se encontra, em nome da
e em relação aos leigos, que os cristãos não reconhecem. O mesmo marcha para o socialismo, desta vez e cento e cinquenta anos
acontece também em relação a outras querelas, entre protestantes e mais tarde, às margens da Rússia Soviética... (Ver o capítulo sobre
católicos, entre reformadores e tradicionalistas, entre revolucioná- a Armênia.)
rios e contra-revolucionários, entre militaristas e pacifistas, entre
socialistas e republicanos etc. Sem falar do século XX, dos fascistas, Assim, foram descobertas pouco a pouco muitas versões da His-
tória, mais ou menos diferentes da tradicional, e que representam
comunistas e de novas facções, que deram origem à colaboração, a
as diferentes memórias dos franceses, reunidos — ou divididos —
Pétain e à Resistência, e, depois, à guerra da Argélia. em torno desse panteão escolar que Amalvi analisou magnifica-
O exemplo de Joana d'Arc permite aproximação com a época mente.
contemporânea porque, durante os anos 30, através da ação das Não é o caos. Mas a multiplicidade de opiniões, expressão da
Ligas, Joana veio semear o joio entre os franceses. Pétain adotou- vida democrática, parecia de um lado negar por definição a natu-
a em Vichy, mas a Resistência também a adotou... reza do saber, seu cientismo; de outro, aparecia como um perigo
Se é assim com Joana, que dizer de exemplos mais candentes e para o Estado, que deu um basta. Como Bayard, o professor de
mais recentes? A começar pela Reforma e o conjunto de polémi- História fustigava à direita e à esquerda, para instituir uma espécie
cas por ela provocadas e soberbamente analisadas pela obra cole- de "verdade histórica", conforme ao menos com os "fatos". Mas a

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escolha desses fatos também não é ideológica? Compreende-se que haviam assumido outrora com o cinema. O professor não se lor
foi na França que triunfou a Escola de Annales, cujo objetivo é a nava, por isso, menos do que tinha sido antes, mesmo contra von
análise clínica do passado histórico. tade, isto é, um intermediário, mas foi obrigado a substituir a MUI
A história tradicional, à maneira de Lavisse, era vulnerável: aos própria lição por um comentário sobre a lição dos outros, transfor-
africanos, ela ensinava "nossos antepassados, os gauleses"; aos mando-se, assim, perante os alunos, numa espécie de professor...
jovens franceses de 1958, ao evocar a Segunda Guerra. Mundial, auxiliar...
"esquecia-se" de falar da colaboração, de Vichy, de Pétain (citado Aos golpes assestados pelos meios de comunicação de massa,
por Pierre Nora). acrescentaram-se os desferidos pelos editores. Estes, sensíveis à crise
do ensino ilustrada pelos acontecimentos de maio de 1968, passaram
O poder do Estado, diz-se na França, não gosta da História e de
a produzir obras de um novo tipo, nas quais o documento e a estatís-
suas acusações; quando de "direita", ele também não gosta da
tica, e o estudo por temas também, assumiram o lugar das narrativas
Filosofia. Alegando o progresso das Ciências Humanas, ele acres-
históricas alegadamente fora de moda, desacreditadas, e que se
centou aos programas uma nova forma de história, a das civiliza-
tornaram exangues. E mais: as editoras querem (um pouco como
ções. Aquilo que, para os historiadores, era um progresso em rela-
a estrada de ferro, na França, tenta fazer concorrência ao avião)
ção à história meramente fatual, ao saber adquirido, transformou-se
concorrer com a televisão, e então enchem os livros com ilustra-
depressa, nas mãos do Ministério, no primeiro passo para o desman-
ções, grandes e coloridas, fazendo deles um "e^etáculo", uma
telamento de todo o edifício. Sob o pretexto de que a História for-
verdadeira encenação. Assim como um programa de televisão deve
mava cabeças mais cheias do que bem feitas — as datas... — substi-
ter 52 minutos, ou 13, ou 26, os capítulos desses livros devem con-
tuiu-se, mais ou menos, o estudo dos períodos pelo estudo dos temas.
tar o mesmo número de páginas, cada página com o mesmo núme-
Também aqui o álibi do progresso das ciências do homem serviu
ro de quadros e fotos etc. Da história maciça passou-se à história
para "desideologizar" a História, para instituí-la "como ciência".
em migalhas, e as rações ficaram tão diminutas quanto as da Nou-
Mas ainda aqui esse aparente progresso era atingido às expensas do
velle Cuisine, de confecção difícil e linguagem incompreensível. O
saber adquirido, isto é, da memória da Nação, da sua consciência.
lay-out ficou mais importante do que o texto, o livro tornou-se
Ora, essa consciência também é objeto da História, mesmo que objeto. E a História também.
repouse sobre fatos contestados ou contestáveis, como vimos com o Assim, com tais livros entre as mãos, sofrendo a concorrência da
exemplo de Joana d'Arc. Mas não se cuida mais disso, agora em televisão, a História, cada vez mais vigiada por instruções, pelos
nome da dificuldade dos programas. Além do mais, quando se trata inspetores, pelo Ministério e pelas associações, acabou sendo assas-
de sacrificar o Sul, as estradas de ferro "secundárias" ou a História, sinada. E o sistema organizou exatamente o caos. Os alunos "não
o governo não se faz de rogado: no curso primário suprimiu sem sabem mais História..." Em compensação, multiplicaram-se, como
cerimónia o ensino da História, substituindo-o por atividades ditas cogumelos no outono, revistas, publicações e histórks em quadri-
de motivação, em que a História não passa de matéria facultativa. nhos que retomam a História "como no tempo do papai", com as
Paralelamente, o ensino da História recebia o desafio dos meios cores do momento.
de comunicação de massa. O interesse manifestou-se na televisão Na verdade, está em marcha um poderoso movimento de insur-
que, salvo notáveis exceções, propõe uma visão da História que se reição, do qual a Associação dos Professores de História soube ser
chamou de asséptica e sem problemas. Longe de analisar as origens a animadora. Recomendando sem reservas a utilização do cinema
do nosso tempo e os seus problemas (pelo menos na França...) no ensino, a revalorização dos estudos contemporâneos, o restabe-
essa História conduz ao sonho. É uma espécie de objeto exótico, lecimento da História como matéria obr^atória no ensino primá-
necessário, à noite, ao repouso dos cidadãos cansados. E começou rio, a elaboração racional dos programas, ela soube reagrupar em
a produzir os seus efeitos, como saber paralelo, porque tem recur- torno de si todas as famílias de historiadores e, assim, ganhar as
sos para agradar que não se comparam aos meios de que dispõe um primeiras batalhas. É verdade que, nesse meio tempo, a História
professor. Assim, com a concorrência dessa escola paralela, o ma- ganhou novos meios.
gistério, a princípio, não tomou precauções: adotou, em relação à Isso porque aprendeu bastante. O balanço e as experiências des-
televisão, a atitude altiva e condescendente que os mais velhos ses últimos vinte anos não são necessariamente negativos, é preciso

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reconhecer. Em primeiro lugar porque a reflexão sobre a História e Mttdonna com o coelho, a paisagem torna-se cada vez mais importante (Pas-
seus métodos, e sobretudo sobre sua função e funcionamento, pro- cal). Procura-se representar o espaço (Stéphanie), por exemplo através da pre-
grediram muito, seja graças a Foucault ou à Escola dos Annales, a sença de um espelho TÍO% Anolfini de Van Eyck (Amélie) ou construindo-se
Paul Veyne, ou ainda graças à defesa ou à contestação da História uma perspectiva (Le Chancelier Rolin). Nota-se também a abundância de
dita marxista. E depois porque o furacão que passou sobre o ensi- retratos (Valérie): retratos de burgueses ou de camponeses, de Breughel
no da História só deixou escombros. (Nicolas), mas principalmente retratos de gentis-homens ou de princesas:
Querendo informar-me diretamente, em Saint-Germain-en-Laye, Rafael, Piero delia Francesca.
minha cidade, a respeito dos resultados das atividades ditas "de O artista também gostava de se representar com muita auto-estima (Emma-
motivação", assisti a algumas aulas de História do curso primário. nuel), como no auto-retrato de Durer. Às vezes, uma cena religiosa transfor-
Vou contar qual foi a minha grata surpresa. mava-se num simples pretexto iAs Bodas de Caná, de Veronese).
Ampere é uma escola como as demais. Não houve escolha nem Os escultores, como na Antiguidade (Olivier), intcressavam-se pela repre-
recomendação mas apenas uma simples comodidade: minha filha sentação do corpo humano (Sophic). Na arquitetura, apareceram os castelos
Isabelle estudara lá. Cheguei de improviso e, muito bem recebido de recreio (Anne-France), como Chambord e Chenonceaux. Os antigos ele-
pelo diretor e pelos professores, a partir do dia seguinte presenciei mentos dos castelos-fortalezas passaram a ter apenas papel decorativo.
a muitas aulas. No Renascimento, desenvolveu-se o espírito científico (Marina), com as
Na classe de segunda série (9 a 10 anos), com a professora Alice máquinas de Leonardo da Vinci. Galileu anunciou que, ao contrário do
Josse, foi reconstituída a história da França através da história de ensinamento da Igreja, a Terra gira em tomo do Sol."
Saint-Germain. Cada pedra, cada portal, cada paisagem da cidade Fiquei maravilhado. Mas é claro que também me perguntei:
adquiria um sentido. E as transformações da cidade, assim recupe- Saint-Germain e os torneios, o Renascimento e os seus castelos, que
radas pelos alunos, um a um, eram depois inseridas numa perspec- significa isso? Tentação ou medo da História? Porque esse tipo de
tiva global. Quando cheguei às aulas de Marguerite Trublin sobre a História, eu imagino, dificilmente é exercido tomando por tema a
Idade Média, falava-se dos torneios. A partir de um selo de Enguer- Revolução ou o Fascismo, a Comuna de Paris ou a Colaboração.
rand de Marigny (1310), foram reconstituídos outros aspectos da Mantenho a esperança, entretanto, de que se chegue a isso, susci-
vida nobiliária. O estudo de uma miniatura sobre os torneios pro- tando entre esses cidadãos e cidadãs uma compreensão do mundo
porcionou a oportunidade de um exercício digno de Roland Bar- que terão por seu próprio esforço, despertar que vale mais do que
thes: volteava-se em tomo da palavra "torneio" e das diferentes qualquer conhecimento imposto, seja através de um livro, de um
redações da História. O que nos ensina o confronto entre as nar- curso ou de um filme.
rativas, os contos, as imagens?
Na hora, eu nem conseguia acreditar na aula de Nicole Darmon
(primeira série, 8-9 anos). Como nos casos anteriores, nada de li-
ções ex cathedra, nada de "motivações". O que aqueles meninos e
Nota. Na Inglaterra, a História é menos francófoba do que é anglófoba na França. Em
meninas aprenderam a ver, sozinhos e em grupo, em duas horas sua Leçon d'Historie, Pierre Daninos observava que os ingleses celebram Joana d'Arc
bem contadas, dispondo, por todo material, de uma dúzia de re- "como a mulher mais corajosa de todos os tempos (...) uma grande heroína da História,
produções do Renascimento, é o que desejo testemunhar transcre- uma santa (...) O Piers-Plowman, breWírio das crianças inglesas, conclui: é com veijtonha
vendo o respectivo balanço, texto coletivo escrito por eles. Estive que os in^eses de hoje recordam-se dos seus antepassados." O único ponto sobre o qual
presente durante a elaboração desse texto e o reproduzo aqui exa- eles insistem, e que os franceses não mencionam, é a surra que ela levou em maio de
1418; familiarizada com as vozes, ela procurou lun nobre dos arredores (o Sire de Vau-
tamente como foi feito, tendo corrigido apenas alguns erros de couleurs?) mas "ele pediu às pessoas que a levaram à sua presença que lhe dessem umas
ortografia. chicotadas e a reconduzissem de volta à casa do pai." Essas observações de Daninos são
confíimadas por outros textos, como a História da Inglaterra escrita por Rudyard Kipling
Pergunta: Por que os séculos XV e XVI são chamados de Renascimento?
» C.R.L. Fletcher, que evoca "essa filha de Deus (...) que os ingleses prenderam e fize-
"Examinando os nossos documentos, verificamos que se na Idade Média o nu» queimar C O T U O feiticeira mas ainda está viva no coração de todos os bons franceses
homem se interessava essenciabnente por sua salvação (Héloise ), a partir do (e de todos os bons ingleses)".
século XIV passou a intercssar-se pelo iiniverso (Jean-Marc) e por si mesmo Os textos sobre a Revolução Francesa revelam toda a severidade em relação à França:
(Cécile). T)Ksâe Fra Angélico e sua Descida da Cruz (1435), até Ticiano e sua "é a velha história da França que quer dominar o mundo e isso começou a s ^ (...) De-

140 141
certo, as reclamações contra o Rei eram legítimas e o Ancien Regime desabou de uma
vez (...). Mas em nome de imaginários direitos naturais, foi pregado um novo Evangelho:
todos os governos eram tirânicos, a religião era uma vergonha; abaixo os outros e "viva
nós"; "nós" eta a plebe sedenta de sangue, de Paris e dts outras cidades."
Em compensação, a imagem de N^ioleão é mais tolerante. Concluindo seu estudo sis-
temático sobre as obras inglesas da era vitoriana, Suzanne Baudemont escreve: "Indulgên-
cia para um destino rom&ntico, admiração pelo génio militar, reconhecimento ao homem
que resubeleceu a ordem e a religião, estamos longe, salvo no manual pacifista de PoUard,
do "ogte corso" que esperávamos encontrar com mais frequência."
Na França, a anj^ofobia nasce, desde a primeira infância, da acumulação de conflitos
com um vizinho que nenhum adversário conseguiu colocar de joelhos. Além disso, o in-
0és triunfou sobre os heróis do panteão nacional (Joana d'Arc, Napoleão, o coronel Mar-
chand etc.) Ele "expulsou a França da fndia e do Canadá", e assim sempre aparece na His-
tória como um "vencedor" — o que nem sempre é o caso da França. O inglís está sempre
na dianteira com uma arma: o arqueiro vence o cavaleiro em Crécy, a marinha derrota o
8
exército de terra no século XVIII, o dinheiro triunfa sobre as forças armadas nos séculos
XVIIl e XIX, isso sem fdar da prodigiosa vantagem assumida durante esse período no IMAGENS E VARIANTES DA HISTÓRIA
domínio da técnica e da indústria. Às vésperas do século XX, Júlio Veme exprimiu bem
essa admiração invejosa do francis que, boje, ri às escondidas da alegada "decadência"
NA URSS
do rival.

"Os historiadores são pessoas perigosas; são capazes de desarrumar |


. tudo. Devem ser dirigidos". Esta observação de Nikita Kruchev.
i^-^l —'"na"época da desestalinização, em 1956 — situa admiravel-
mente bem a posição da História na URSS. Em sua hora mais feliz,
ficou sob vigilância. A diferença em relação a outros regimes au-
toritários não reside somente no fato de que a instância que dirige
é o Partido e não o Estado, e sim no fato de o regime pretender
encarnar o próprio movimento da História, instituindo-se em seu
intérprete privilegiado. Os dirigentes, assim, não saberiam admitir
que os historiadores podem proceder a uma outra análise. Se ten-
tarem, o Partido lança-lhcs o anátema...
^ Esta situação não tem relação com os ensinamentos de Marx.
í Este, com efeito, quis dar à História o status de ciência. "As-|
^'«m como Darwin descobriu as leis da evolução da natureza, Marxf
itescobriu as leis da evolução da sociedade", escreve Engels. O
•conceito de luta de classes, aliás, foi tomado do conceito de sele*
fão natural.
A análise de Marx conduz à identificação e ao reconhecimento \
ào modo de produção como unidade determinante do processo de i
desenvolvimento histórico. O modo de produção determina a cons- '
"5 tituição das classes sociais e a luta de classes é o "motor" da His-
I tória, da transformação dos seus modos e formas de produção. "As
relações entre os homens nada devem às suas vontades (...) por-,
f q u e as relações de produção correspondem a um estágio definido
l de desenvolvimento de sua força de produção (...) e é o modo dé

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