Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Somos todos
contemporâneos
Catarina Fernandes Martins
14/07/2013 - 00:00
Jorge Cabral, de 68, foi professor de Direito Penal. "Basta ser velho e andar na rua" para
se sentir a discriminação VÍtor Cid
0
A discriminação em relação à idade é a principal forma de discriminação sentida pelos
portugueses. E tem um nome: idadismo. "Dá a impressão de que se não fossem os
velhos o país estava bem"
Só há três ou quatro anos é que descobriu que era velho. Nessa altura ainda exercia
advocacia e era professor universitário. Enquanto esperava na fila do bar da
Universidade Lusófona, ouviu uma aluna perguntar a uma colega: "O velhote de Penal
já chegou?" O velhote de Penal era ele. Durante os 38 anos que ensinou Direito Penal
não se lembra de ouvir alguém perguntar pelo "jovem de Penal". "Terei perdido o
nome?", pensou. Jorge Cabral não se sente velho e não percebe por que é que se fala de
velhos e novos quando "somos todos contemporâneos".
Jorge Cabral nunca tinha ouvido o termo "idadismo", mas foi disso que falou. À
semelhança de conceitos como o racismo ou o sexismo, o idadismo refere-se às atitudes
e práticas de discriminação (geralmente negativa) dos indivíduos com base numa
característica - a idade. A discriminação pode afectar diferentes grupos etários. De
acordo com Sibila Marques, psicóloga social e autora do livro Discriminação na
Terceira Idade, em países como o Reino Unido, o idadismo é sobretudo contra as
pessoas mais jovens, enquanto em Portugal atinge as pessoas mais velhas. Alguns
autores preferem usar os termos "velhismo" ou "gerontismo" para classificar as atitudes
de discriminação em relação às pessoas mais velhas. Estas atitudes assumem três
formas: a tendência para olharmos para as pessoas idosas como parte de um grupo
homogéneo e indiferenciado; o preconceito, o desdém e a atitude paternalista face aos
mais velhos e, por fim, o abuso e os maus tratos.
Esta percepção dos mais velhos como um fardo tem várias dimensões. De uma maneira
geral, existe a convicção de que os trabalhadores mais velhos roubam lugares aos mais
novos. Em economia chama-se "lump of labour falacy" e sugere que há um número fixo
de postos de trabalho na economia e que, por isso, em tempos de desemprego elevado, a
única maneira de permitir que os jovens possam entrar no mercado de trabalho é
facilitar a saída dos trabalhadores mais velhos, explica Amílcar Moreira, investigador
no Instituto do Envelhecimento da Universidade de Lisboa. "A ideia é falsa. Não há um
numero fixo de empregos numa economia e expulsar os trabalhadores seniores do
mercado de trabalho não abre necessariamente caminho à entrada de trabalhadores
jovens no mercado de trabalho. De uma forma geral, os trabalhadores seniores possuem
qualificações e skills diferentes das dos trabalhadores mais jovens, e portanto estes não
concorrem entre si no mercado de trabalho", diz o investigador.
Outra ideia feita é que os cidadãos seniores poderão usar o seu peso eleitoral para tentar
condicionar a distribuição de despesa social em favor das políticas que os beneficiam
directamente - como as pensões ou o sistema de saúde - mesmo que à custa da
diminuição do investimento em políticas que beneficiam as grupos mais jovens - como
o subsídio de desemprego ou o rendimento social de inserção. No entanto, de acordo
com Amílcar Moreira, a evidência científica não confirma essa ideia e sugere duas
possíveis razões para que tal não aconteça. Por um lado, os reformados, como fazem
parte do grupo de indivíduos que depende do Estado-providência, poderão estar menos
inclinados a apoiar qualquer tipo de corte nos apoios sociais, explica o investigador. Por
outro, os cidadãos seniores - naquilo a que se chama "altruísmo dinástico" - poderão
estar inclinados a apoiar ajudas que, apesar de não os beneficiarem directamente,
beneficiam os seus filhos e netos.
Para além disso, há ainda a questão dos gastos com a população sénior. Em 2012, havia
1,5 pessoas activas por cada pensionista. No estudo do European Social Survey, referido
anteriormente, 53% dos portugueses consideravam que as pessoas com mais de 70 anos
contribuem pouco para a economia e 39% pensavam que os idosos constituem um peso
para os serviços de saúde.
Ao lado está Luís Amadeu Mendonça Neves, 80 anos, que acabou há pouco a aula de
ginástica no Jardim. Luís acha que há uma separação grande entre os jovens e os idosos
e tem pena. "Eu admiro a juventude. Tenho de estar ligado à juventude." Um dia um
homem disse-lhe assim: "Olha para esse velho!" Luís passa a mão pela T-shirt azul,
esticada na zona da barriga: "Acho que estava a dizer que eu era barrigudo." Há uns
tempos, viu dois jovens a discutir, um pouco enervados. Um dos rapazes olhou para ele
e declarou: "Os velhos deviam morrer todos." Luís desvaloriza tudo isto: "Quando vejo
jovens que não sabem estar, desvio-me porque senão já sei que como pela medida
grande."
Sibila Marques explica que muitas vezes estas situações não são vistas como um
problema porque desde cedo as crianças se habituam a ver os mais velhos de uma forma
inferior: "Aqueles que agora são idosos estão no lugar que eles próprios já estavam à
espera de ocupar." Esta resignação afecta a saúde objectiva da população sénior, alerta a
psicóloga social, e tem efeitos na ansiedade, na auto-estima, aumenta os níveis de stress
e até a velocidade com que se anda. De acordo com Sibila Marques, a mudança desta
mentalidade tem de ocorrer logo nas escolas, uma vez que há estudos que demonstram
que desde muito cedo interiorizamos ideias negativas associadas ao envelhecimento.
"Temos de ensinar a criança a olhar para a pessoa. Quando dizemos às crianças que hoje
é dia de irem visitar os velhinhos, isto fica marcado na cabeça delas. Começam a pensar
que há lugares onde se põem os velhinhos, como se fossem peças de museu", critica
Jorge Cabral.
De acordo com Sibila Marques, parte deste problema também está relacionado com o
facto de haver uma certa segregação social - as crianças estão na escola, os pais estão no
trabalho e os idosos estão nos lares. Para Maria João Valente Rosa, demógrafa e
directora da Pordata (uma base de dados organizada pela Fundação Francisco Manuel
dos Santos), numa sociedade inteligente, "todos se encontram sem andarem em faixas.
Não importa se és velho, novo, se és homem ou mulher".
Mas para que isto aconteça algo tem de mudar no discurso e nas atitudes dos
governantes. Amílcar Moreira acha que "Portugal é um caso claro de aged-based
politics", com alguns partidos a usar a idade como factor de diferenciação política. No
entanto, e apesar de o discurso político poder criar algumas clivagens, o investigador
pensa que há poucas probabilidades de haver um conflito intergeracional: "Não estamos
a observar os jovens a vir para a rua porque as famílias estão a servir de almofada." A
demógrafa Maria João Valente Rosa defende que o discurso político é "totalmente
idadista" e que isso ajuda a alimentar alguma crispação, que neste momento é resolvida
junto da família, mas que tende a aumentar porque com o tempo o número de activos
por pensionistas será menor e as redes familiares transformar-se-ão.
Jorge Cabral está convencido de que a posição do idoso na sociedade sofreu mais com
esta crise e com as políticas do Governo: "Esta exaltação da juventude e do
empreendedorismo... Dá a impressão de que se não fossem os velhos o país estava
bem."
Sibila Marques pensa que se fosse repetido hoje o inquérito do ESS, os valores do
idadismo estariam mais elevados.
O envelhecimento demográfico tem sido entendido como uma catástrofe, o que ajuda a
explicar a questão. No livro O Envelhecimento da Sociedade Portuguesa, Maria João
Valente Rosa defende que o verdadeiro problema não está no envelhecimento da
população, mas no envelhecimento da sociedade, ou seja, naquilo que as sociedades não
mudaram desde que começaram a envelhecer. A socióloga considera ser necessário
mudar a forma como pensamos o papel dos mais velhos e como encaramos o trabalho e
a formação ao longo da vida. "Temos de pensar: "Vou viver mais tempo, provavelmente
terei mais do que uma carreira e tenho de investir na formação ao longo da vida"."
Também os empregadores têm de se adequar e olhar para o indivíduo e não para a sua
data de nascimento: "Nos tempos modernos, precisamos de pessoas com capacidade,
independentemente da idade."
Para Maria João Valente Rosa, mudar o discurso é parar de falar de novos e velhos:
"Quero falar de pessoas."