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A TV na Amazônia: uma história pelas margens1

Edileuson Almeida (edileusonalmeida@yahoo.com.br)


Professor (UFRR), doutorando em Comunicação e Linguagens (UTP) e bolsista (CAPES)

A televisão instalada na Amazônia brasileira na década de 19602, expande-se na


região, a partir da década de 1970, sob o auspício do Governo Militar num momento
em que se intensificavam as “ações governamentais” com o intuito de “integração e de
ocupação geográfica”. O slogan “integrar para não entregar”, apresentado sob a forma
de política de desenvolvimento regional para garantir a expansão econômica (cujo
carro-chefe era a agroindustrial), visava sobre tudo a criação de “áreas de segurança”,
reconhecendo, assim, a região como um problema de Segurança Nacional. Como parte
do plano, também constava a televisão, ainda promissora no sistema comunicacional,
numa região na qual os rios eram as principais vias de deslocamento e em cujas
margens circulavam as informações e nas quais se reatroalimentavam os receptores e
as fontes3.
Numa perspectiva histórico-reflexiva, é possível reconstruir a presença da
televisão com o suporte dos “vestígios” de quem viu e de quem produziu a TV na
região, para compreender as ações praticadas na expansão da televisão na Amazônia
brasileira, na década de 1970? E ainda, é possível selecionar, com o recurso de
perguntas, e interpretar, com o apoio de provas, essas experiências humanas? O que
há para explicar os pensamentos e as ações praticadas na expansão da televisão na
Amazônia brasileira, em tempos de “integrar para não entregar”?

1 Este texto trata sobre uma pesquisa de doutoramento em Comunicação e Linguagem (em andamento na UTP),
cujo título é o mesmo aqui adotado. O objetivo deste texto é apresentar preliminarmente a proposta de estudo em
andamento, considerando que o mesmo foi produzido ao “final” da primeira revisão bibliográfica realizada ao longo
de 2011, em trânsito de Status pupilaris.
2 A TV Marajoara, dos Diários Associados, instalada em Belém (Pará), em 30 de setembro de 1961, foi a primeira
emissora de televisão da Amazônia brasileira; era sintonizada no canal 2 e exibia os programas locais e da Rede
Tupi. No Amazonas a TV chegou em 1967, em Roraima, em 1972, no Acre, Rondônia e Amapá, em 1974. Os estados
citados geograficamente estão localizados integralmente na Amazônia brasileira (Fonte: Almeida, 2003).
3 Interessante estudo sobre a comunicação através dos rios que “são as estradas líquidas da Amazônia” pode ser
encontrado in: BARBOSA, Walmir de Albuquerque. O regatão e suas relações de comunicação na Amazônia. São
Paulo: Dissertação de Mestrado em Ciências da Comunicação, Universidade de são Paulo, 1980.
Todovia, apresentada a problemática, ir adiante dependeria do que coligir das
duas primeiras indagações, cujas respostas transitam entre um sim ou um não. É bem
verdade que em ambas tratamos de questões metodológicas: “vestígios” de quem viu
e de quem produziu a TV na região, e o recurso de perguntas, com o apoio de provas,
sobre as ações humanas praticadas no passado. Nos dois casos, sim é a resposta mais
provável. É possível reconstruir a história da TV na Amazônia pelos “vestígios” e pelas
provas coligidas pelas perguntas sobre a res gestae.
Numa pesquisa histórica sobre os meios de comunicação, Marialva Barbosa
considera “cinco grandes eixos de análise” entre os quais optamos pela perspectiva da
“dimensão interna e externa do processo comunicacional”, a que “considera a
dimensão processual da história e a comunicação como sistema, no qual ganha relevo
o conteúdo, o produtor das mensagens e a forma como o público entende os sinais
emitidos pelos meios” (2007, p. 3). Quando aqui também optamos pela “dimensão
processual da história” - diferentemente, do que pensavam os positivistas, por
exemplo, que tratavam a história como constituída por eventos isolados -, seguimos a
proposta de Oakeshott, de que a história é um mundo em que “as suas várias partes se
relacionam, criticam-se uma às outras, tornam-se mutuamente intelígiveis”
(Oakeshott, cf. Collingwood, s/d, 241). E quanto à “comunicação como sistema”,
seguimos o entendimento de Barbosa (op. cit., 2007), que ao ponderar que há
múltiplas formas de fazer, de considerar e de visualizar a relação história e
comunicação, destaca que uma “história do sistema de comunicação” é possível “pelas
margens”.
Collingwood realiza a história como "recordação do pensamento" de um
personagem histórico. Para Heller, cuja obra aqui citada Collingwood é de
“considerável importância”, “toda recordação do que passou é uma interpretação:
reconstruímos nosso passado” (Heller, 93, p.53). Passado entendido como
acontecimentos particulares no espaço e no tempo como res gestae: ações humanas
praticadas no passado.
A história é uma espécie de investigação ou inquérito, pertence às ciências: as
formas de pensamento, através das quais fazemos perguntas e tentamos respostas
sobre as ações humanas históricas - nos termos de Collingwood, hábitos sociais que
elas criam por meio do seu pensamento, como uma estrutura em que estes apetites se
realizam, segundo modos sancionados pelas convenções e pela moral.
São ações constituídas da unidade do exterior e do interior de um
acontecimento, e em cujo processo investigativo se opera uma distinção: exterior
(pode ser descrito em termos de corpos e dos seus movimentos) e interior (só pode
ser descrito em termos de pensamento). Então deve-se começar pela descoberta
exterior dos acontecimentos e acabar por meter-se no interior da ação, para discernir
o pensamento do seu agente.
A formulação de perguntas é fator dominante, a partir de uma lógica de
interrogatório - técnica usada por Bacon e Descartes, é um método socrático descrito
por Platão como a possibilidade do “diálogo da alma com ela mesma” -, para lançar
questões sobre a memória cotidiana dos referidos sujeitos, em busca das
especificidades e das conexões discursivas para reconstruir a história da TV na
Amazônia, considerando os discursos que enunciam seus primórdios e os indícios de
sua “presença”, ambos também moldados tanto por fatores internos quanto por
influências externas, já aí incluídos os “agentes políticos e econômicos” (Freire Filho,
2008, p. 135).
Considerando o que Collingwood coloca sobre os riscos de “coligir provas”
antes de começar a pensar, a resposta à uma pergunta definida é quem pode
constituir prova “potencial” (tudo no mundo é prova potencial de alguma coisa) ou
“real” (todas as afirmações existentes a tal respeito). A história dispensa a prova
potencial. É pela interpretação das provas (existentes num determinado sitio e em
dado momento) que pode-se obter as respostas para as perguntas que se faz acerca
de acontecimentos passados.
Portanto, se expor a afirmação pré-fabricada ou autônoma (ambas abordadas
como prova) e ao testemunho (reforçado pelas provas necessárias), como
conhecimento histórico para reconstruir o passado, exige ter diante de si certos
documentos ou vestígios, só assim é de provável êxito descobrir o que foi este passado
que deixou atrás de si estes “vestígios”.
Para os gregos a história “diz respeito às ações humanas”, cuja duração é a de
um tempo retílineo de uma vida individual, período em que se “pode albergar feitos e
acontecimentos que pela sua singularidade, merecem ser conservados” (Arendt, 2000,
14).
Num conceito mais moderno, Collingwood também trata a história relacionada
as “ações humanas praticadas no passado”, é uma espécie de investigação ou
inquérito para a reconstrução da experiência passada. “A experiência não é conciência
imediata, a simples corrente de sensações e sentimentos, é também - e sempre -
pensamento, juízo e asserção da realidade” (Oakeshott, cf. Collingwood, op. cit., 239).
Para Agnes Heller (1993) também o “passado histórico” consiste no “velho”, pois
“trata-se de uma estrutura sócio-cultural que já transcendemos” (1993, 60).
No entendimento de Marialva Barbosa “o passado está irremediavelmente
perdido nele mesmo”, o que nos resta fazer “nada mais é do que produzir
interpretações” (2008a, 215). Portanto, para reconstruir a história no presente, usa-se
os “rastros que o passado deixou como marca”, que chegam ao presente na forma de
documentos - o procedimento histórico, ou método, “consiste essencialmente na
interpretação das provas”, observa Collingwood (op. cit., 22) - e “coloca-se também
em cena a questão memorável” ( Barbosa, 2008b, 94) - a busca da memória, observa
Le Goff em seus escritos, é “um elemento essencial do que se costuma chamar
identidade, individual ou coletiva” -, considerada por Le Goff (1990) como uma das
atividades fundamentais da evolução das sociedades na segunda metade do século XX
(1990, p. 475-476).
Paul Ricoeur (2001) lembra que a História é capaz de atingir o sujeito quando
provoca modificações à memória, considerada uma abertura fundamental para a
primeira relação com o passado. “(...) A história só nos atinge através das modificações
que impõe a memória, pois a memória constitui a primeiríssima relação com o
passado. (...) a estrutura que assegura a transição da memória à história é o
testemunho. Através do testemunho, as coisas vistas se transferem para o plano das
coisas ditas” (In: Morin, 2001, 374-375).
Le Goff relata no seu livro História e Memória (1990) que desde o seu
nascimento nas sociedades ocidentais a ciência histórica se define em relação a uma
realidade sobre a qual se "indaga", se "testemunha". Para tanto, desde a Antiguidade
vem “reunindo documentos escritos e fazendo deles testemunhos”, porém ainda “(..)
hoje os documentos chegam a abranger a palavra, o gesto. Constituem-se arquivos
orais (...)” (1990, p. 9-10).
O autor considera a coexistência do par oral/escrito, na sociedade,
fundamental para a história: “se tem como etapa decisiva a escrita, não é anulada por
ela, pois não há sociedades sem história”. (idem, p. 53). Afinal, como bem observa
Barbosa, “o conhecimento não é objeto de disputas, mas de partilhas mútuas” (2008a,
p. 215).
Goody (Apud Le Goff, op. cit.), por exemplo, acredita que em todas as
sociedades, os indivíduos detêm informações e são as fontes de vestígios significativos
que chegam até o presente e que podem ser objetos de uma interpretação que dará
um valor ao passado.
A reconstrução histórica dos fatos, pela análise crítica das “provas e
memórias”, diretamente relacionados à história da televisão na Amazônia, ainda é
uma questão em aberto. Apesar de alguns estudos e obras publicadas sobre o assunto,
o relato seguem uma “versão oficial” dos acontecimentos. Muito ainda precisa ser
resgatado para que possamos conhecer a “realidade” que envolve a temática.
A reconstrução dessa trajetória depende da riqueza de documentos
engavetados e, principalmente, dos depoimentos dos atores que estiveram, e estão
ainda hoje, envolvidos com a história da televisão na Amazônia.

Referências
ALMANAQUE Brasil Socioambiental. São Paulo, ISA, 2008.
BARBOSA, Marialva. História cultural da imprensa – Brasil (1900-2000). In: MORAIS,
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_______________. Meios de comunicação e usos de passado: temporalidade, rastros e
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Janeiro, Mauad X: Globo Universidade, 2008b.
BURKE, Peter. A comunicação na história. In: RIBEIRO, Ana Paula Goulart;
HERSCHMANN, Micael (orgs.). Comunicação e História: interfaces e abordagens. Rio de
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Presença, s/d.
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In: RIBEIRO, Ana Paula Goulart; HERSCHMANN, Micael (orgs.). Comunicação e História:
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HELLER, Agnes. Uma teoria da história. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1993
LE GOFF, Jacques [tradução Bernardo Leitão et al.]. História e memória. Campinas, SP,
Editora da UNICAMP, 1990, Coleção Repertórios.
RICOUER, Paul. O passado tinha um futuro. In: MORIN, Edgar [tradução e notas, Flávia
Nascimento). A religação dos saberes: o desafio do século XXI / Idealizadas e dirigidas
por Edgar Morin. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2005.

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