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DOI: http://10.18315/argumentum.v11i1.

24015

ARTIGO

A ideologia da Guerra às Drogas no Brasil


The War on Drugs ideology in Brazil

Pedro Henrique Antunes da COSTA*


Kíssila Teixeira MENDES*

Resumo: O presente artigo tem como objeto a Guerra às Drogas (GD) no Brasil contemporâneo, almejando
analisar as ideologias que lhe constituem, bem como seu caráter ideológico. Trata-se de um exercício teórico
e analítico, resgatando produções sobre o tema num viés crítico e se baseando em pressupostos, conceitos e
autores da tradição marxista. Constatamos que, ao se utilizar de ideologias, a GD é também ideológica, o
que nos faz acreditar que visa combater um mal (as drogas), escondendo objetivos socioculturais, políticos e
econômicos. Não se trata de mera ignorância ou projeto falido, que não deu certo frente ao seu suposto
objetivo (eliminar determinadas substâncias e seu uso). Pelo contrário, é um projeto eficaz naquilo que se
propõe – a manutenção da desigualdade, o controle e o extermínio de parte da população –, assim como
uma racionalidade bem engendrada e que se nutre de outras, oriundas da própria dinâmica social, como o
antagonismo de classe e o racismo estruturais.
Palavras-chave: Guerra às Drogas; Ideologia; Pobreza; Racismo; Violência estatal.

Abstract: The present article takes as its object the War on Drugs (WD) in contemporary Brazil, aiming to
analyze the ideologies that constitute it, as well as its ideological character. It is a theoretical and analytical
exercise, rescuing productions on the subject in a critical perspective, based on assumptions, concepts and
authors of the Marxist tradition. We conclude that when using ideologies, WD is also ideological, making us
believe that it aims to combat an evil (drugs), hiding socio-cultural, political and economic objectives. It is
not mere ignorance or a failed project, which did not work out against its supposed purpose (to eliminate
certain substances and their use). On the contrary, it is an effective project in what it proposes - the
maintenance of inequality, the control and extermination of part of the population - as well as a well-
conceived rationality that nourishes itself with others, derived from the social dynamics itself, as the
structural antagonism of class and racism.
Keywords: War on Drugs; Ideology; Poverty; Racism; State violence.

Submetido em: 31/3/2019. Revisado em: 7/7/2019. Aceito em: 17/7/2019.


Psicólogo. Doutor em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Professor do Departamento
de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília. (UnB, Brasília (DF), Brasil). Campus Darcy Ribeiro,
Instituto Central de Ciências Sul, Asa Norte, Brasília/DF, 70910-900. E-mail:
<phantunes.costa@gmail.com>. ORC ID: https://orcid.org/0000-0003-2404-8888

Psicóloga e Cientista Social. Mestre e Doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de
Fora. (UFJF, Juiz de Fora, Brasil). Campus Universitário, Instituto de Ciências Humanas, Rua José
Lourenço Kelmer, s/n - São Pedro, Juiz de Fora/MG, 36036-900. E-mail: <kissilamm@hotmail.com>.
ORC ID: https://orcid.org/0000-0002-7817-599X

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Introdução

O presente artigo tem como objeto de análise a Guerra às Drogas (GD) no Brasil
contemporâneo, com ênfase nas ideologias que a constituem. Assim, a argumentação se
centra em demonstrar como, ao se municiar de ideologias sobre as drogas e a realidade, a
GD passa a ser, em si, ideológica, contribuindo para dificultar a capacidade de
compreender e abordar a problemática e suas interfaces com a questão social (QS)1. Por
não ser irracional ou um acaso, ela serve a determinados fins que, em última instância,
corroboram a manutenção e a intensificação de antagonismos sociais e raciais. Para
elucidar os argumentos sobre tais afirmações, realizaremos um exercício teórico e
analítico, resgatando produções sobre o tema num viés crítico, nos permitindo esmiuçá-
lo.

A GD é uma das formas de materialização do paradigma proibicionista, onde o Estado


concebe as drogas como um problema em si, e seu uso como danoso, definindo quais
destas substâncias devem ser ilícitas – expurgadas nos âmbitos da produção,
comercialização e consumo – e lícitas, toleradas em determinado nível, e, em alguns casos,
propagadas. Sabemos que suas motivações são variadas: moralistas, econômico-mercantis
e (geo)políticas (FIORE, 2012). É como o Estado encara as drogas e a relação que se
estabelece com elas, onde a concepção que se tem sobre as mesmas e o seu consumo
passam a ser constituídas e constitutivas de particularidades e movimento históricos,
respondendo às condições postas por essa realidade. Não à toa, surge na passagem dos
séculos XIX e XX, em um cenário de piora da pauperização na Europa. Nesse panorama, o
Estado se refuncionalizou e se redimensionou, procurando sustentar a dinâmica de
acumulação e aumentar as taxas de lucro, mas também abarcando as demandas e as
necessidades da classe trabalhadora. A GD, por sua vez, passou a ser uma das formas de o
Estado assumir a gestão da QS no que tange às drogas e aos seus atravessamentos, frente
às pressões da classe trabalhadora e às demandas do mercado e da burguesia, com
necessidades de expansão econômica e geopolítica (GONÇALVES; ALBUQUERQUE,
2016).

Apesar do suposto fracasso nas primeiras tentativas de se implementar esse modelo,


especificamente na produção e na proibição do consumo de determinadas substâncias,
como o ópio na China e na Índia pela Inglaterra e o álcool nos Estados Unidos da América
(EUA), a GD torna-se global a partir das décadas de 1960 e 1970, capitaneada pelos EUA e
pela Organização das Nações Unidas (ONU). Não por acaso, tal momento é marcado pelo

1 Inicialmente voltada para o fenômeno de acentuação do pauperismo na Europa, por volta de 1830, a
“questão social” é utilizada na compreensão do conjunto de desigualdades sociais que impactam a classe
trabalhadora e que são imanentes ao capitalismo, pois advêm de seu caráter antagônico, especificamente,
da contradição capital-trabalho. Tem como manifestações: a pobreza, a fome, o desemprego estrutural,
entre outros (NETTO, 2001).
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início de uma crise estrutural do capitalismo, com quedas bruscas na acumulação


(HARVEY, 1998), o que nos leva a considerar as íntimas conexões desta política com a
reestruturação produtiva do capital e do projeto neoliberal, como saídas para este cenário.
Sobre tal debate, Matsumoto, Frias e Almeida (2018) apontam os efeitos dessa crise para a
agudização do extermínio e encarceramento de determinados sujeitos, pobres e negros,
considerados pelo Estado como excedentes ou causas das ditas mazelas sociais. A isso,
soma-se um gerenciamento da pobreza e demais expressões da QS geradas no próprio seio
da sociedade capitalista, por um viés de controle, criminalização e eliminação da parcela
da população mais afetada por ela. Logo, ao invés de mirar a pobreza, mira-se nos pobres,
entendendo que o controle e a supressão destes significariam o combate e a minimização
da primeira, com o Estado reatualizando um darwinismo social de tonalidades classistas e
racistas.

A adoção e a intensificação do paradigma proibicionista hegemônico e de seu modelo de


GD ocorrem devido à finalidade que cumprem de assegurar interesses mercantis e
econômicos, além dos desígnios políticos segregatórios e coloniais/imperialistas, que se
relacionam às dimensões econômica, política e geopolítica. Altamente lucrativa, ela
fortalece o tráfico internacional, se imbricando ao capital financeiro, ao estar associada a
esquemas de lavagem de dinheiro, fomentando todo um mercado bélico-armamentista.
Além disso, foi e segue sendo utilizada para a expansão e o fortalecimento de desígnios
imperialistas e coloniais europeus e estadunidenses. Especialmente na América Latina,
temos as drogas como uma das justificativas para a dominação e o controle governamental
estadunidense – com os países latino-americanos vistos como produtores destas
substâncias –, bem como de sua gente, alvos preferenciais do encarceramento em massa e
criminalização social e racial da pobreza.

Tais fatores preponderam mesmo com as incongruências da GD, como o seu


embasamento em concepções irrealistas de uma sociedade sem drogas (e que coloca a si
mesma um objetivo inatingível) e suas consequências sociais deletérias, que não estão
presentes na prática de usar as substâncias. Entretanto, conforme as próprias reflexões já
sinalizam, as dimensões econômica e (geo)política em si não explicam esse modelo,
devido à sua materialidade explícita de violência, criminalização e venalidade. A exemplo
disso, no Brasil, da sanção da Lei nº 11.343/2006 até o ano de 2016, o número de presos por
tráfico de drogas aumentou, aproximadamente, de 31 mil para 203 mil, ou seja, houve um
crescimento de mais de 600% (BRASIL, 2016). Em torno de 28% da população carcerária
brasileira está relacionada ao tráfico, imbricada em processos de criminalização racial e da
pobreza. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), em 2017, 5.159
casos de homicídio foram registrados em decorrência de intervenções policiais (uma
média de 14 por dia), representando um crescimento de 21%, sendo que muitas delas
referentes à GD (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2018). Ainda em 2017,
75,5% das vítimas de homicídios foram negros(as), sendo que para cada indivíduo não
negro assassinado, 2,7 negros foram mortos, novamente, com ínfimas relações com a GD
(FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA; INSTITUTO DE PESQUISA
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ECONÔMICA E APLICADA, 2019). Os dados sobre essa violência se avolumam e


poderíamos apresentar outros, mas acreditamos já ter demonstrado sua essência e
propósitos.

Assim, nos questionamos: como a GD, apesar de si mesma, isto é, de suas contradições e
venalidade, se mantém? Isso nos leva a pensar na importância da ideologia para a
sustentação desta guerra, circunscrita a uma totalidade social, e como ela não pode ser
compreendida de maneira autônoma ou apartada das dimensões econômica e política na
realidade brasileira contemporânea. A partir do exposto, objetivamos no presente artigo
sinalizar algumas pistas que nos levem a um maior esclarecimento acerca dos seguintes
questionamentos: Qual o papel das ideologias na manutenção e no recrudescimento da
GD na atual conjuntura? Como a sua dimensão ideológica contribui para a normalização e
a normatização de uma lógica de controle e extermínio de determinados sujeitos e grupos
sociais, mistificando seu caráter venal?

Algumas reflexões sobre ideologia

Antes de responder aos questionamentos supracitados, é necessário clarificar o que é


ideologia, ou melhor, como trataremos a ideologia, dada a sua polissemia nas ciências
humanas e suas polêmicas. A intenção, portanto, não é fornecer um panorama exaustivo
ou aprofundado sobre tal conceito, mas explicitar as chaves interpretativas e as bases
teórico-conceituais utilizadas para compreender os objetos aos quais nos propusemos e a
realidade. A despeito da pluralidade de significados, ideologia será tratada a partir de
alguns pressupostos e de autores da tradição marxista – mesmo que nela, não se tenha
consenso. Assim, entendemos ideologia numa base materialista histórica dialética, nos
opondo a perspectivas idealistas. Não sendo somente um conjunto de ideias abstratas,
muito menos um simples produto do imaginário social, tal fundamentação se ancora nas
próprias estruturas que conformam a vida social, nas relações vivenciadas e nas práticas
sociais. Recorrendo a Löwy (2010), esse mero conglomerado de ideias seria a nossa visão
social de mundo, ou seja, “[...] conjuntos estruturados de valores, representações, ideias e
orientações cognitivas [...]” (LÖWY, 2010, p. 13), unificados “[...] por um ponto de vista
social, de classes sociais determinadas [...]” (LÖWY, 2010, p. 13). Para o autor, essas visões
sociais de mundo podem ser tanto utópicas – apontando para uma realidade não existente
e contribuindo para a superação da ordem – quanto ideológicas – legitimando e mantendo
a ordem social.

Também não trataremos de ideologia em qualquer formação social, mas na sociedade


capitalista, que, apesar de seus fluxos e refluxos e das particularidades locais e históricas,
produz um antagonismo de classes, se sustentando sob as mais variadas formas e sendo o
Estado meio de garanti-las. Seguindo esses parâmetros, a ideologia emerge no próprio
processo histórico decorrente da divisão social do trabalho e da propriedade privada,
fomentando uma cisão e um estranhamento do ser humano de sua atividade, de si mesmo
e da própria genericidade humana (MARX; ENGELS, 2007; KONDER, 2002). Assim, será
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uma obscurescência acerca da realidade, a partir das relações que estabelecemos com nós
mesmos e essa realidade, e que, por sua vez, se materializa na forma como agimos e nos
organizamos em sociedade, escamoteando a dominação inerente a essa ordem social
(MARX; ENGELS, 2007). Entretanto, seguindo a ressalva de Konder (2002): “[...] o
processo da ideologia é maior do que a falsa consciência, [...] ele não se reduz à falsa
consciência, já que incorpora necessariamente em seu movimento conhecimentos
verdadeiros[...]” (KONDER, 2002, p. 49).

Isso leva a pensar que as ideologias que predominam são os conjuntos de ideias da classe
dominante. Por essas afirmações, explicitam-se três (03) pontos: (a) não existe somente
uma ideologia dominante, como se fosse algo consensual (LÖWY, 2010); (b) as ideologias
não são necessariamente falsas ou irracionais, mas podem carregar substratos da realidade
e verdade, o que nos faz analisá-las não somente pelo formalismo lógico dos argumentos
ou por sua dimensão cognitiva, mas também atreladas ao movimento histórico (passado,
presente e futuro), às motivações que carregam consigo, quem as profere e as formas que
são explicitadas, às suas funcionalidades, dentre outros elementos vinculados ao contexto
sócio histórico (EAGLETON, 1997); e (c) essa conformação ideológica não se dá por uma
simplória imposição ou coerção, simples ignorância ou más intenções, mas, sim, porque
são expressões das relações sociais de produção que fazem desta classe a dominante:

As ideias dominantes não são nada mais do que a expressão ideal (ideológica) das
relações materiais dominantes apreendidas como ideias; portanto, são a expressão
das relações que fazem de uma classe a classe dominante, são as ideias de sua
dominação (MARX; ENGELS, 1845/2007, p. 47).

Consequentemente, nos distinguiremos de correntes que a compreendem por um prisma


de neutralidade. Imputamos a ela o exercício de contribuir à manutenção dessa ordem
social, por meio de uma série de mecanismos: generalização do particular, ocultação,
justificação e naturalização da realidade etc. (IASI, 2013; MARX; ENGELS, 2007). Ainda,
como sustentado por Almeida (2018) e pelos próprios Marx e Engels (2007), a ideologia
não pode ser pensada de maneira dissociada do Estado, afinal este é a forma política do
capitalismo e desempenha o papel essencial de manutenção da ordem – e não uma
entidade abstrata e apartada da sociedade civil, como se fosse seu condutor e produtor.
Para que isso ocorra, inclusive, é necessário que este internalize ou, mesmo, naturalize
suas contradições internas e a sociabilidade a qual expressa. Este movimento, por sua
feita, pode ser efetuado tanto fisicamente, através de coerção e coação explícitas, quanto
de maneira mais sutil – e não menos perversa – pela ideologia, de modo não só a justificar,
como a naturalizar suas desigualdades e o caráter exploratório e opressivo.

No que tange à forma como concebemos e nos relacionamos com as drogas, mais
especificamente, e como as incorporamos em nosso cotidiano ou buscamos nos livrar
delas, a GD explicita esse caráter coercitivo – vide dados de encarceramento e
criminalização em massa –, mas também surge e se mantém ao expressar “valores sociais

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dominantes” (RYBKA; NASCIMENTO; GUZZO, 2018, p. 101), tais como: patologização e


medicalização, moralismos, preconceitos e estigmatização. Estes servem como
sustentação para essa lógica criminalizante e de extermínio de determinados sujeitos e
grupos sociais. Em suma, uma conjunção entre a moral burguesa conservadora, com a
saúde de racionalidade e cientificidade biomédica, coercitiva e higienista e a segurança
pública repressora.

No entanto, para não cair numa perspectiva a-histórica e fatalista, devemos entender as
ideologias como produtos sociais, fruto da história humana, que é a materialização da
própria ação do homem, e de seu caráter contraditório, tal como a própria realidade.
Segundo Löwy (2010), “[...] elas têm que ser analisadas em sua historicidade, no seu
desenvolvimento histórico, na sua transformação histórica” (LÖWY, 2010, p. 15). Tendo
isso em vista, se debruçar sobre as ideologias que conformam a GD é importante não só
no sentido de desmistificá-las, e a própria GD, mas também contribuir para a produção de
outras formas – utópicas – de compreensão da problemática e da realidade que lhe
conforma.

O papel da ideologia na Guerra às Drogas

Com o intuito de responder às perguntas que norteiam o trabalho, um começo de


explicação passa, impreterivelmente, pelo entendimento histórico de que a GD é, na
verdade, um conjunto de engendramentos inerentes à formação social capitalista, que se
pauta justamente na/pela naturalização e reificação da exploração e da dominação do
homem sobre o homem. Ou seja, se trata da continuação de um modo de se organizar,
relacionar e viver, onde muitos valem menos que poucos e, por isso, são constituídos por
condições de existência exploratórias e opressoras, em prol dessa minoria dominante
econômica, política e ideologicamente. No caso do Brasil, temos o agravante dessa
sociabilidade antagônica se forjar por processos de invasão e rapinagem, colonização e
escravidão, caracterizando uma condição de dependência e subalternidade frente ao
centro do capitalismo mundial, conformando o que Darcy Ribeiro (2006) chamou de
moinhos de gastar gente. Valendo-nos da terminologia de Darcy, a GD é mais uma das pás
e dos pilões que macetam e moem as gentes que, historicamente, são seus alvos
prediletos, em função de suas constituições de classe, raça/etnia, gênero, idade,
territorialidade, entre outras.

Dada a insuficiência das formas tradicionais de exploração e opressão das maiorias


populares para sanar as necessidades econômico políticas e socioculturais de nossa
sociedade, o próprio sistema se reconfigura, refinando-as de acordo com o momento
histórico, de modo a lidar com os incômodos advindos de suas contradições e se
sustentar. Como principal exemplo, temos a reestruturação produtiva nos anos 1970, em
decorrência da crise estrutural do capitalismo, com a acumulação flexível suplantando o
modelo rígido fordista. Inicialmente na esfera produtiva, esta trouxe inúmeras

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consequências para a esfera reprodutiva – o que Harvey (1998) denominará de condição


ou ambiência pós-moderna –, com ambas se determinando reflexivamente.

Essas mutações e sofisticações são apontadas por Fanon (1980), ao falar sobre a
complexidade que adquirem as formas de dominação raciais em consonância aos fluxos e
refluxos do capitalismo:
A complexidade dos meios de produção, a evolução das relações econômicas, que,
quer se queira quer não, arrasta consigo a das ideologias, desequilibram o sistema.
O racismo vulgar na sua forma biológica corresponde ao período de exploração
brutal dos braços e das pernas do homem. A perfeição dos meios de produção
provoca fatalmente a camuflagem das técnicas de exploração do homem, logo das
formas do racismo. (FANON, 1980, p. 39).

A GD pode ser entendida como atravessada pelo e parte desse processo de sofisticação
material e ideológica das formas de dominação, exploração e opressão, mesmo tendo
como base um princípio que, na particularidade brasileira, é basilar na nossa formação
social desde a invasão e colonização: a violência contra parcelas populacionais
subalternas. Um projeto que se desenvolve, aliado ao neoliberalismo e ao Estado Penal2
que, segundo Flauzina (2006), “[...] se sofistica, sem se modificar substancialmente [...]”,
“[...] herdeiro do estatuto escravocrata [...]” (FLAUZINA, 2006, p. 42). Por conseguinte,
quando dizemos sofisticação, não significa que os processos de exploração e dominação
foram abrandados. Traçando um paralelo, podemos observar como a flexibilização dos
modos de produção não implicou na diminuição da exploração e alienação pelo trabalho,
mas sim no fortalecimento de determinadas condições de expropriação e servidão da
classe trabalhadora, com a precarização dos vínculos trabalhistas, terceirizações, aumento
da informalidade e destituição de direitos, travestidos sob a ideologia da meritocracia e,
mais recentemente, do empreendedorismo (ALMEIDA, 2018).

Conforme os próprios na Introdução, podemos dizer que a GD tem contribuído para a


intensificação desse cenário de dominação e opressão. Assim, tal sofisticação se dá,
justamente, por se sustentar e se recrudescer, apesar de suas consequências e de suas
contradições. Ademais, existe uma complexificação de seus mecanismos e avanços frente à
corrente e ao chicote (que não deixaram de existir), ou ao encarceramento estrito e puro,
mistificando seus propósitos ao se aliar a outros mecanismos ideológicos: (a) relacionados
às compreensões já mencionadas sobre as drogas; e (b) acerca de nossa formação social,
como a meritocracia, o mito da democracia racial, o suposto jeitinho brasileiro, a máxima
de que bandido bom é bandido morto (mas nem todos), entre outros – sendo incorporados,
inclusive, por sujeitos que são alvos primários da GD. Um exemplo bastante elucidativo da
complexificação e sofisticação de tal processo são as Unidades de Polícia Pacificadoras
(UPPs) nas favelas do Rio de Janeiro, que, de acordo com Marielle Franco (2018),
substituem as incursões policiais, que, até então, era o modus operandi de atuação
repressiva do Estado nesses territórios. Ou seja, estas incursões dão lugar à ocupação do

2 Para maior entendimento sobre Estado Penal, ler Wacquant (2003).


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território pela polícia, mas sem alterar significativamente a política de segurança e a lógica
do alargamento do Estado penal e do extermínio para pobres, pretos(as) e favelados(as).

Não obstante, ao abordarmos a GD e a sua dimensão ideológica, devemos considerar suas


múltiplas mediações e expressões concretas e simbólicas, que instrumentalizam as drogas
como argumento para fomentar estratégias de estigmatização, racismo, criminalização
(principalmente da pobreza) e encarceramento em massa. Portanto, uma guerra que não
se volta às substâncias, e sim às pessoas, o que não se dá de forma indistinta: recai sobre
os acionistas do nada, isto é, sobre as porções mais débeis do fluxo de drogas ilícitas, ou
mesmo sobre aqueles que sequer participam de tal dinâmica, mas são associados a ela, de
modo que se tornam vidas matáveis, por sua condição de indignos da vida (D’ELIA FILHO,
2015). Em suma, com esta política, são atingidos os grupos e sujeitos mais subalternizados
da classe trabalhadora, como a população jovem, periférica, pobre e negra.

De acordo com Bucher e Oliveira (1994), o discurso antidroga satisfaz uma necessidade
das classes dominantes de “[...] precisar de um inimigo – se não externo, então interno à
sociedade [...]” (BUCHER; OLIVEIRA, 1994, p. 145). Na atual conjuntura de intensificação
da crise do capitalismo – cujas respostas, por meio da reestruturação produtiva e projeto
neoliberal, aguçam a desigualdade social –, essa lógica de diferenciação e estipulação de
inimigos se intensifica, como forma de imputar aos sujeitos culpa por suas condições de
vida e problemas estruturais da sociedade e país. Essa lógica, por sua vez, é vista na
xenofobia contra imigrantes refugiados, na intolerância às minorias na luta por direitos,
na compreensão e trato acerca da pobreza e pobres, dentre outros. Sobre a GD, em
específico, se, em algum momento, o inimigo foi a droga, no atual contexto, cada vez mais
são determinados sujeitos – portanto, não todos – e grupos sociais relacionados a elas:
traficantes e usuários.

Neste sentido, os territórios habitados por esses sujeitos se tornam igualmente inimigos,
sendo vistos de maneira dissociada à cidade ou mesmo antagonicamente a ela (FRANCO,
2018). Podemos fazer um paralelo com o que apontamos anteriormente, sobre a GD ser
utilizada para o imperialismo estadunidense na América Latina. Assim como são tratadas
em alguns países latino-americanos (Colômbia e México, por exemplo), a favela – um
território externo, uma não-cidade – é vista como a produtora das drogas e o cerne da
criminalidade que assolam a cidade, cujos moradores, em especial parcelas da classe média
e alta, serão as supostas vítimas desse inimigo vizinho. Por conseguinte, a ocupação do
Estado na favela – restringida ao seu braço repressivo militarizado e de guerra – passa a ser
permitida e desejada.

Além disso, o próprio rótulo de traficante implica em um aval para que aqueles assim
identificados sejam mortos – o que se conecta a outro estigma, o de favelado, se tornando
indissociáveis e servindo como argumentos para a invasão de determinados territórios
pelo Estado e por seu braço repressivo, garantindo o genocídio dessa população. Ainda,
cabe ressaltar como essa categoria e seu simbolismo são oriundos da ilicitude da
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produção, comercialização e consumo de determinadas substâncias, e não do consumo


em si, nos impedindo ou dificultando que enxerguemos o que estes sujeitos, de fato, são:
trabalhadores, sendo muitos em situação de pobreza e precariedade.

Entende-se, com isso, que parte desses sujeitos, enquanto classe trabalhadora
pauperizada, é atravessada por uma contradição, relacionada à funcionalidade exercida
pelo sistema. Por um lado, constituem o exército industrial de reserva (EIR) e parte da
superpopulação relativa3 na forma estagnada, sendo produto necessário e alavanca da
acumulação capitalista (MARX, 2013). Portanto, não estão excluídos do modo de produção
e da ordem social capitalista. Para Ferraz (2010), a ilicitude de certas atividades produtivas,
como o tráfico, constitui uma “[...] forma eficiente de acumulação do capital [...]”
(FERRAZ, 2010, p. 158), necessária para o rebaixamento salarial e, em nosso caso de
capitalismo dependente, para a maior exploração da força de trabalho.

Por outro lado, por que tais sujeitos são alvos da violência e eliminação estatal, mesmo
com essa funcionalidade? Ora, porque a dimensão econômica não existe per si e
determina o resto mecanicamente. Devido a condições de pobreza e miséria no Brasil, que
lhes são constituintes, e às construções ideológicas – não são trabalhadores e, portanto,
não são cidadãos ou sujeitos de direitos, mesmo nos moldes liberais –, sua eliminação
passa a ser uma expressão do sistema e funcional a ele, também pelas mazelas sociais e
não apenas por controle e encarceramento. Isso se reitera em nossa constituição
colonizada, racista e na condição dependente do país, com seus moinhos de gastar gente,
além do alargamento do Estado penal que é, dialeticamente, e na mesma medida,
expressão e circunstância da política neoliberal de desmonte das políticas de bem-estar
social. Em outras palavras, queremos dizer que, mirando em tais sujeitos e os eliminando,
aliado às questões econômicas (ao serem tratados como mercadorias), o Estado age
política e ideologicamente para dificultar que percebamos e questionemos sua natureza
de intenso antagonismo social e as estruturas responsáveis por essas mazelas. Isto é, ele
sacrifica parte de sua população, obviamente que a mais subalternizada, em prol de sua
sobrevivência/manutenção.

Temos um cenário onde o sistema gera um excedente populacional, cuja funcionalidade


de sua eliminação – ideológica, política e econômica – pode superar aquela que exercem
para reprodução do modo de produção capitalista brasileiro. Fazendo um paralelo com a
literatura, Carolina Maria de Jesus, em Quarto de Despejo (1963), utiliza o termo rebotalho,
ao falar de si mesma e do(a) favelado(a). Concordando com Rocha (2015), a sustentação
ideológica da GD no Brasil passa também pela produção da imagem do traficante como
3 Em consonância com Ferraz (2010) e Rocha (2015), entendemos que os trabalhadores que compõem a
base do tráfico, perpassados pela pobreza e precarização, fazem parte da superpopulação relativa
estagnada. Para Marx (1867/2013), existem três formas de superpopulação relativa: (a) flutuante, sendo
repelidos e atraídos aos postos de trabalho constantemente, (b) latente, englobando os trabalhadores
rurais compelidos a saírem do campo e se tornarem trabalhadores urbanos e (c) estagnada, que consiste
nos trabalhadores em ocupações irregulares, cujas condições de vida estão “[...] abaixo do nível médio
normal da classe trabalhadora [...]” (MARX, 2013, p. 873).
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bandido negro, pobre, jovem e favelado (a ponto de um ser o outro) e a pecha de cidadão
do mal. Em suma, fração de uma classe perigosa, que necessita não só de controle, mas de
combate e eliminação. Recorrendo novamente à Marielle Franco (2018), a GD, com sua
prática de controle e extermínio contra sujeitos e territórios subalternizados, se propaga
ideologicamente, inclusive como um meio para a paz, de modo a ser aceita pela opinião
pública. O próprio termo pacificadora, das UPPs, denota o que aqui discorremos. Temos,
então, outra contradição, numa relação em que os fins justificam os meios: guerra e morte
para alguns, para se alcançar a paz e a segurança para outros.

Conforme denotam Rocha (2015) e Matsumoto, Farias e Almeida (2018), a GD é uma


política que tem como finalidade materializar e naturalizar um antagonismo de classes e
racismo predatórios para os de baixo – o que não se dá apenas através da naturalização de
estruturas sociais antagônicas de classe, raça, dentre outras, mas pelas suas
intensificações, juntamente com sua essência de barbárie. Um conflito que, portanto, não
é guerra, mas, basicamente, extermínio estatal destes sujeitos e grupos sociais. Com as
mutações recentes de nossa sociedade, tanto na esfera produtiva quanto reprodutiva,
anteriormente mencionadas (HARVEY, 1998), e com a intensificação da crise estrutural do
capitalismo e a ofensiva do capital e projeto neoliberal, o EIR e a superpopulação relativa
do país se avolumam, o que nos leva a pensar no recrudescimento das formas de controle,
punição e eliminação dessas gentes – seja pela GD ou por outros mecanismos levados a
cabo ou justificados pelo Estado, como o sistema penal, as carências propositais das
políticas sociais (como saúde e a educação) e os presentes retrocessos.

Ademais, tendo em vista as inúmeras contradições de nossa sociabilidade, podemos


pensar que a ilicitude de determinadas substâncias, tanto no processo de produção, como
pela existência de grupos ou facções ligados ao tráfico de drogas, também traz vantagens
para o Estado e/ou apresenta ínfimas ligações com este e seus atores. Neste esteio, Fraga e
Iulianelli (2011), ao analisarem a cadeia produtiva da maconha no sertão nordestino
brasileiro, demonstram que o cultivo desta planta serve como alternativa de renda e fonte
de subsistência a agricultores impactados negativamente pelas mudanças climáticas,
ausência de políticas agrárias para pequenos produtores e pobreza. Contudo, devido à
ilicitude de suas ocupações, são permeados por relações precárias de trabalho e se põem
em interface com o narcotráfico e seus perigos. Em outros casos, na mesma medida
perpassados pela insuficiência ou ausência do Estado, no que diz respeito às políticas
sociais, grupos ligados ao tráfico ocupam tal papel, indo do fomento à economia local, até
o atendimento de necessidades básicas nas comunidades (alimentação, moradia, lazer
etc.), além de contribuírem para uma desresponsabilização estatal ainda maior (HIRATA;
GRILO, 2017). Ademais, existem inúmeros imbricamentos e arranjos de poder entre
agentes da ilicitude (supostamente os traficantes) e os da legalidade (em tese, os do
Estado). Até mesmo as disputas entre grupos ou facções pelo mercado ilícito de
substâncias pode ser funcional, pois dispensa o próprio Estado de fazer o trabalho sujo,
bélico e de extermínio.

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Sendo assim, por que suprimimos essas múltiplas mediações e o caráter dialético das
drogas, as compreendendo por meio de visões maniqueístas e unilaterais? Indo além, por
que aceitamos e não nos insurgimos contra essa lógica? Ora, pois não estamos ilesos à
ideologia na mistificação da realidade, dos reais propósitos e dos desdobramentos
relacionados à GD, contribuindo para a naturalização de suas contradições, assim como
da própria ordem que a forja e necessita dela para se manter. Segundo Eagleton (1997),
compreender a ideologia é examinar as “[...] formas pelas quais as pessoas podem chegar a
investir em sua própria infelicidade [...]” (EAGLETON, 1997, p. 13). Iasi (2013), tentando
entender os porquês de a maioria se submeter à ordem que a mantêm na condição de
dominação, diz:

Eles [os trabalhadores] pensam o mundo e a si mesmos a partir dos elementos que
constituem a consciência da burguesia, portanto, não nos espanta que a primeira
expressão prática dessa forma de consciência seja o amoldamento dos
trabalhadores à sociedade da qual eles fazem parte e não sua negação (IASI, 2013,
p. 72).

Oriunda dessa ordem social, a GD é incorporada pela consciência de boa parte da


população, inclusive por quem é seu principal alvo. As ideias que lhe constituem, ela
própria e os seus propósitos, passam a ser assumidos como universais, adquirindo status
de verdade ou natural, em detrimento de serem vistos como construções sociais e
históricas, e das suas incongruências e venalidade. Ao assumir tal posicionamento, não
desconsideramos que a GD possa incorporar elementos verdadeiros – tal como o fato da
relação com as drogas poder acarretar em problemas, assim como as inúmeras formas que
nos relacionamos com as coisas –, não tratando aqueles que a introjetam como meros
ignorantes e desprovidos de razão (EAGLETON, 1997). Em certo nível, vem a satisfazer
alguns desejos ou preencher necessidades subjetivas, e mesmo concretas, conforme
sinalizamos anteriormente, o que nos leva a analisar criticamente a produção destes
desejos e necessidades e sob qual ordem. Por isso, convivemos bem com a condenação de
negros(as) em navios negreiros, mas comemoramos a imagem recorrente de um(a)
negro(a) pobre no camburão de um carro de polícia num programa de TV sensacionalista.
Igualmente, boa parte de nós repudia a escravidão e as senzalas, mas aceita sem
problemas o fato de dois terços da população carcerária brasileira ser negra. Ainda,
bradamos contra drogas, viciados e traficantes (geralmente quando são pobres e negros),
enquanto usamos drogas – lícitas e ilícitas.

Sendo as ideologias produções históricas, contraditórias e circunscritas a uma totalidade


(LÖWY, 2010), as reflexões do presente trabalho servem para contribuir com a
desmistificação da GD, bem como de elementos da ordem social que lhe produz,
entendendo-os como construções sociais. Ela não é a única forma de tratamento do tema,
muito menos é um fim em si, como mecanismo pronto, estático e, portanto, impossível de
ser suplantado. Por conseguinte, o antiproibicionismo e o fim da GD são utopias que
passam pela legalização dessas substâncias. Contudo, tomando-a como produto e
conformante de nossa sociabilidade, devemos nos voltar justamente para esse
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metabolismo social que a forja e é dependente dela nas atuais configurações. Logo, a
legalização enquanto avanço também não é um fim em si, mas um meio, demonstrando as
contradições de nossa sociabilidade e visando transformá-la para a produção de novas
formas de se relacionar com as drogas.

Por fim, tratar das ideologias utilizadas na GD e de seu caráter ideológico é explicitar e
criticar o moralismo que a constitui, mas também compreender suas vinculações com as
determinações econômicas e políticas, circunscrevendo-as na totalidade social. Dessa
forma, tons alarmistas e sensacionalistas, puritanismo, moralismo, dentre outros,
geralmente vinculados a discursos religiosos e/ou salvacionistas que contrariam a própria
indissociabilidade ser humano-drogas, são importantes mecanismos e atributos para o
surgimento e a manutenção da GD e de toda a lógica de combate às drogas (BUCHER;
OLIVEIRA, 1994; FIORE, 2012), mas não são fins em si mesmos e não se autoproduzem.

Por isso, não é possível dissociar a GD, na atualidade, das mudanças econômicas, da
política neoliberal e do Estado penal, bem como das suas raízes na formação social
capitalista – considerando as particularidades do Brasil e seus engendramentos com a
colonização e racismo estrutural. Nesse sentido, questionamos as análises que
responsabilizam a corrupção ou uma mera ineficácia de gestão estatal – tendo no mercado
o ideal de ser – pelas mazelas sociais e a máxima neoliberal de um Estado mínimo, onde a
minimização se refere aos direitos e às políticas sociais, mas que se maximiza no âmbito
penal e lógicas punitivista, criminalizante e de extermínio na gestão da QS.

Considerações Finais

A partir do exercício analítico realizado, constatamos que, ao se utilizar de ideologias, a


GD é igualmente ideológica, nos fazendo acreditar que visa combater um mal (as drogas),
e escamoteando objetivos socioculturais, políticos e econômicos. Não se trata, portanto,
de mera ignorância ou de um projeto falido frente ao seu suposto objetivo – eliminar
determinadas substâncias e o seu uso. Também, não é por falta de pesquisas comprovando
seu caráter venal e demonstrando suas consequências deletérias, ou devido à carência de
bom senso de políticos e atores estatais, que ela se mantém. Pelo contrário, se trata de um
projeto eficaz naquilo que se propõe – desnudadas suas funções e determinações –, assim
como uma racionalidade bem engendrada e que se nutre de outras, oriundas da própria
dinâmica social, como o antagonismo de classe e racismo estruturais.

Não é por causa da GD que nos tornamos um país socialmente desigual e racista. Mas ela
contribui – não sozinha – para que tais condições não só se perpetuem como se
intensifiquem. Em consonância, temos um sistema que se utiliza de tais substâncias
ideologicamente, como (mais) uma de suas muletas de sustentação; e que faz isso
propositalmente – mesmo em seus elementos de verdade – como cortinas de fumaça, para
que os problemas societários estruturais sejam reificados e aprofundados.

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Por coerência, as tentativas de supressão da GD devem se sustentar na necessidade de


legalização das drogas, mas tomando como pressuposto a finitude de outras guerras que,
apesar das diferentes nomenclaturas e roupagens ideológicas, carregam consigo uma
mesma finalidade: a manutenção de uma ordem desigual às custas de parte significativa
da população. Isso nos faz questionar a própria ordem que produz tais conflitos, ao
mesmo tempo em que se conforma e se sustenta por meio deles. E, com base nessas
reflexões, chegamos ao entendimento de que um antiproibicionismo que desvele essa
sociabilidade injusta, contribuindo para sua transformação, deve ser, consequentemente,
anticapitalista, antirracista e antipatriarcal.
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Pedro Henrique Antunes da COSTA Participou de todo o processo de construção e
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Kíssila Teixeira MENDES Participou de todo o processo de construção e desenvolvimento na


pesquisa e elaboração do artigo
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