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*510111004*
Filosofia
10. Filosofia
ano

C. Produto
Faustino Vaz e Luís Veríssimo
Consultores científicos: Adriana Silva Graça (FLUL) e João Cardoso Rosas (UMinho)

Filosofia
Componentes do projeto:

Manual do aluno
Caderno de atividades
Livromédia

28,65 € IVA incluído


Conforme o novo
Acordo Or tográfico
da língua portuguesa

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Filosofia
0

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Organização do manual
Entrada de tema

Cada tema é introduzido


por duas páginas que
contêm uma imagem cuja
interpretação levanta
questões interessantes
relacionadas com
as unidades desse tema.

Entrada de unidade

No início de cada unidade


surge uma página com
um índice das subunidades,
os objetivos e os conceitos
fundamentais da unidade
e um breve texto introdutório.

Unidade

Após a entrada de unidade,


surge o estímulo, onde
é apresentado um texto que
capta os problemas filosóficos
que irão ser abordados no
contexto de situações
particulares.
O texto é seguido de um
guião de leitura filosófica
e de exercícios para o aluno
«fazer filosofia».

2 Organização do manual

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O texto informativo
desenvolve os temas e
problemas em estudo,
recorrendo a uma Imagens relevantes e
linguagem clara e rigorosa. comentadas, em estreita
relação com o texto.

Conceitos e definições
importantes em destaque.

Debates, para que o aluno


tome posição perante um
problema.

Após a apresentação dos


conteúdos de cada
unidade, existem duas
páginas que apresentam
de forma resumida
as ideias-chave da unidade
e um esquema-síntese
dos conteúdos.

Para que o aluno aprofunde


os seus conhecimentos,
sugere-se a leitura de
algumas obras, a
visualização de alguns
filmes e a consulta de
algumas páginas da
Internet.

Todas as unidades finalizam


com um teste formativo,
para que o aluno possa
verificar a sua
aprendizagem
e fazer a sua autoavalização.

Filosofia 3

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Índice
TEMA

I INICIAÇÃO À ATIVIDADE
FILOSÓFICA 6
TEMA

III A DIMENSÃO ÉTICO-POLÍTICA


DA AÇÃO HUMANA E DOS VALORES 98

1 Abordagem introdutória
4 A vida moral: noções introdutórias 100
Unidade Unidade
à filosofia e ao filosofar 8

1.1 O que é a filosofia? 11 4.1 Intenção ética e norma moral 103


1.1.1 Os problemas da filosofia 11 4.1.1 A vida moral e os seus problemas 103
1.1.2 As disciplinas da filosofia 13 4.1.2 A ética e as suas disciplinas 104
1.2 Como se faz filosofia? 15 4.1.3 A relação entre as disciplinas
1.2.1 Argumentar 16 da ética 107
1.2.2 Analisar 21 4.2 A dimensão pessoal e social da ética 108
1.2.3 Imaginar 25 4.2.1 A prioridade da perspetiva pessoal 109
1.2.4 Complementaridade das atividades 4.2.2 A prioridade da perspetiva impessoal 110
de argumentar, analisar e imaginar 27 4.2.3 A paridade entre as duas perspetivas 111
TESTE FORMATIVO 1 30 TESTE FORMATIVO 4 112

TEMA

II A AÇÃO HUMANA E OS VALORES 32


Unidade

5 A ética utilitarista
de John Stuart Mill 117

5.1 O princípio da maior felicidade 119


2 A ação humana — análise
Unidade
5.1.1 O que é a felicidade? 120
e compreensão do agir 34
5.1.2 O argumento de Mill a favor do princípio
da maior felicidade 121
2.1 A rede conceptual da ação 37 5.2 Motivos e consequências 124
2.1.1 O que é uma ação? 37 5.3 Uma avaliação crítica da ética de Mill 125
2.1.2 Deliberação 42 5.3.1 Algumas objeções à ética de Mill 125
2.1.3 Decisão racional 44 5.3.2 Méritos da ética de Mill 127
2.2 Determinismo e liberdade 45 TESTE FORMATIVO 5 130
2.2.1 Determinismo 46
2.2.2 Libertismo 53
2.2.3 Compatibilismo 56
TESTE FORMATIVO 2 62

6 A ética deontológica
Unidade
de Immanuel Kant 132

3 Os valores — análise e compreensão


Unidade
6.1 Deontologia absoluta e deontologia
da experiência valorativa 64 moderada 135
6.2 Agir por dever e agir em conformidade
3.1 Valores e valoração — a questão com o dever 136
dos critérios valorativos 67 6.3 A boa vontade 138
3.1.1 Factos e valores 67 6.4 Máximas e ações 139
3.1.2 A experiência valorativa 69 6.5 O imperativo categórico 140
3.1.3 Os valores segundo o relativismo moral 71 6.5.1 A fórmula da lei universal 140
3.1.4 Os valores segundo o realismo moral 77 6.5.2 A fórmula da humanidade 143
3.1.5 Os valores segundo o subjetivismo moral 82 6.5.3 A equivalência entre a fórmula
3.2 Valores e cultura — a diversidade da lei universal e a fórmula
e o diálogo de culturas 88 da humanidade 144
3.2.1 Uma comunidade moral ou muitas 6.6 O imperativo hipotético 146
comunidades morais? 88 6.7 Autonomia e heteronomia 148
3.2.2 O diálogo entre culturas e o argumento 6.8 Uma avaliação crítica da ética de Kant 150
relativista da tolerância 89 6.8.1 Fraquezas da ética de Kant 150
3.2.3 O diálogo entre culturas e o realismo moral 92 6.8.2 Méritos da ética de Kant 151
TESTE FORMATIVO 3 96 TESTE FORMATIVO 6 154

4 Índice

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7 Ética, direito e política 156
V A DIMENSÃO RELIGOSA
Unidade TEMA
DA AÇÃO HUMANA E DOS VALORES 234

7.1 Ética e direito 158

10
7.1.1 A desobediência civil 159 Unidade A religião e o sentido da existência 236
7.2 A teoria da justiça como equidade
de Rawls 160
7.2.1 Os princípios de justiça 161
10.1 O problema do sentido
7.2.2 Uma avaliação crítica
da existência 239
da teoria de Rawls 173
10.1.1 Finitude e sentido 239
7.3 Igualdades e diferenças 177
10.1.2 Sentido, finalidade e valor 240
TESTE FORMATIVO 7 180
10.1.3 A resposta religiosa (teísta)
para o problema do sentido
da existência 244
TESTE FORMATIVO 10 254

TEMA

IV A DIMENSÃO ESTÉTICA
DA AÇÃO HUMANA E DOS VALORES 182

11 Religião, razão e fé 256


Unidade

8 A experiência e o juízo estéticos 184


Unidade

11.1 O problema da existência


de Deus 259
8.1 O que é a estética? 187 11.1.1 Fideísmo 260
8.2 O que é um juízo estético? 188 11.1.2 Teologia natural 266
8.3 Qual é a natureza da experiência TESTE FORMATIVO 11 280
e dos juízos estéticos? 190
8.3.1 A experiência estética:
definição centrada no sujeito 191
8.3.2 O subjetivismo estético 195

VI
8.3.3 A experiência estética: TEMA PROBLEMAS DO MUNDO
definição centrada CONTEMPORÂNEO 282
no conteúdo 199
8.3.4 O objetivismo estético 202
TESTE FORMATIVO 8 206

1 Até onde é permissível


Problema
incrementar seres humanos? 284

• Tipos e estratégias de incremento 285


• Razões morais para incrementar 286

9 A criação artística e a obra de arte 208


Unidade
• Razões morais para não incrementar 288

9.1 O que é a arte? 211


9.1.1 A teoria mimética da arte
(ou teoria da arte
2 Que ética para o fim de vida
Problema
como imitação) 213 particularmente vulnerável? 292
9.1.2 A teoria representacionista
da arte 216 • Vidas especialmente vulneráveis 293
9.1.3 A teoria expressivista • O direito de morrer 293
da arte 218 • Razões a favor do direito de morrer 294
9.1.4 A teoria formalista • Razões contrárias ao direito de morrer 296
da arte 222
9.1.5 Arte, produção e consumo:
uma teoria institucional
da arte 226
TESTE FORMATIVO 9 232 GLOSSÁRIO 300
Filosofia 5

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TEMA

I INICIAÇÃO À ATIVIDADE
FILOSÓFICA

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Unidade

1 Abordagem introdutória
à filosofia e ao filosofar

1.1 O que é a filosofia?
1.1.1 Os problemas da filosofia
1.1.2 As disciplinas da filosofia

1.2 Como se faz filosofia?


1.2.1 Argumentar
1.2.2 Analisar
1.2.3 Imaginar
1.2.4 Complementaridade das atividades de argumentar, analisar e imaginar

Objetivos da unidade Conceitos fundamentais

No fim desta unidade, deverá ser capaz de responder Os conceitos seguintes, que são centrais nesta unidade,
às seguintes questões: são definidos no fim do livro:
Como surgem os problemas filosóficos? análise conceptual experiência mental
Quais são os problemas e as disciplinas fundamentais da argumento inconsistência
filosofia? cogência solidez
O que determina se uma teoria filosófica é melhor conceito validade
do que outra?
Como se faz filosofia?

Introdução

Gostaríamos que estudar filosofia fosse estimulante, que percebesse e sentisse a importância dos problemas filosóficos. Das respostas que
lhes dermos resultará uma noção do que somos e do que deveríamos ser; do lugar que ocupamos e do lugar que deveríamos ocupar no
universo; da sociedade que construímos e da sociedade que deveríamos construir. Isto significa que a filosofia ajuda a compreender
e também a avaliar o que somos, o nosso lugar no universo e a sociedade. Para que a filosofia cumpra esse papel, é indispensável que
todos usem as ferramentas que ela nos oferece. Nesta unidade introdutória, iremos mostrar como se desenvolve a atividade filosófica.
E fazêmo-lo porque gostaríamos, desde logo, que ficasse com uma noção clara da dimensão prática da filosofia. A partir daí será mais fácil
que participe com proveito na atividade de fazer filosofia.

8 Unidade 1

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Estímulo

A história que irá ler pretende testar:


• a sua compreensão de problemas filosóficos fundamentais;
• a sua capacidade de avaliar duas opiniões diferentes.

A máquina humana
A Marta passava grande parte do dia na escola. — Imagina que uma parte do teu cérebro fica doente
Chegava a casa apenas por volta das seis da tarde. e perdes a visão. Felizmente, uma nova técnica per-
Gostava de regressar a um lugar que era seu, mas ulti- mite que passes a ver outra vez: os médicos tiram do
mamente andava a sentir uma solidão que a deixava teu cérebro a parte doente e substituem-na por um
inquieta. Não tinha com quem conversar. Só duas chip muito pequenino, de silicone.
horas depois de chegar a casa podia ter a companhia
— E passo a ver outra vez? Assim, sem sentir qual-
dos seus pais.
quer diferença? — perguntou a Inês.
No autocarro, ainda podia conversar com a sua amiga
— Isso mesmo! Estarás como nova — respondeu a
Inês. Apesar do barulho do trânsito e das paragens
Marta. Em seguida, desenvolveu a ideia: — Uns anos
constantes, esse era um momento bom. Mas durava
mais tarde, uma outra parte do teu cérebro fica
apenas um bocadinho. Naquele dia, mal entrou no
doente. Deixas de te lembrar dos nomes das pessoas e
autocarro, a Marta contou à sua amiga que chegava a
das coisas. Felizmente, mais uma vez, a ciência está
casa e se sentia só. A meio da conversa, teve uma ideia
preparada para te resolver o problema. É retirada do
em que nunca tinha pensado.
teu cérebro a parte que deixou de funcionar e outro
— Inês, e se eu tivesse um computador com quem chip muito pequenino permite que te lembres nova-
pudesse conversar? — perguntou. mente dos nomes.
A Inês não estava a ver muito bem onde a Marta que- — Compreendo. E, mais uma vez, não sinto qualquer
ria chegar. E disse: diferença em relação ao que era antes, certo? —
perguntou a Inês, que começava a entender o argu-
— Conversar como? O computador tem sentimentos
mento da Marta.
como nós, é isso?
— Certo — disse a Marta.
— Sim, tem sentimentos. Por isso, compreende o que
sentimos e pode conversar connosco. — Já estou a ver — observou a Inês. E foi ela a
desenvolver o argumento: — Depois, outras partes
A Inês interrompeu:
do meu cérebro ficam doentes e vão sendo substituí-
— Estás a sonhar! Isso não é possível. das. Até que, finalmente, todo o meu cérebro foi
— Os computadores são capazes de fazer tantas coi- substituído. É isso?
sas! Não me digas que nunca haverá um computador
capaz de ter uma conversa! — retorquiu a Marta.
— Duvido. Mesmo que pudesse conversar, não enten-
deria realmente o que dizia. Era como se falasse sem
ter consciência do que dizia. Quando ouvisse certas
palavras, estaria simplesmente programado para dizer
outras — afirmou a Inês.
— Queres dizer que um computador nunca poderá Fig. 1 — Vaso grego (século vi a. C.), de Ergotimos e Cleitias.
ter uma mente como a nossa? — perguntou a Marta. Segundo a lenda, Teseu tinha um navio feito de pregos e
tábuas de madeira. À medida que iam ficando velhas, as várias
— Claro que não! — respondeu a Inês. partes do navio foram sendo substituídas. Com o passar do
tempo já não resta nenhuma das peças originais do navio.
A Marta ficou a pensar. Não parecia muito conven- Será que podemos dizer que se trata do mesmo navio?
cida. Até que teve uma ideia:

Abordagem introdutória à filosofia e ao filosofar 9

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— É isso mesmo! Não irias sentir qualquer diferença. — Estás errada, Marta! Não basta que uma máquina
Passarias a ter um cérebro artificial e deixarias de ter o fale e se comporte como os seres humanos para ter uma
teu cérebro orgânico original. mente como a nossa. Imagina este caso: eu vou aqui
ao teu lado, mas vou em silêncio, não digo nem faço
— Não sei… Isso poderia acontecer-me a mim, mas
nada; estou simplesmente a pensar que nado no mar.
não a uma máquina — afirmou a Inês.
Estou consciente dos meus pensamentos, não achas?
— O ponto é este, Inês: supõe que o teu cérebro dei-
— Sim, claro, mas não estou a ver onde queres chegar.
xava de funcionar. Recusarias a possibilidade de subs-
tituir todo o teu cérebro por um cérebro artificial? — O ponto é este: eu não preciso de fazer o que quer
que seja para ter consciência. Estou aqui quietinha e
— Claro que não! — respondeu a Inês.
já está. Tenho acesso imediato à minha consciência.
— E, se não sentes qualquer diferença, não podes Mas uma máquina é diferente: ela precisa de falar ou
dizer que a consciência humana desapareceu, pois de fazer qualquer coisa para tu dizeres que ela tem
não? — perguntou a Marta. uma mente como a nossa — concluiu a Inês.
— Pois, estou a ver... Queres dizer que, afinal, um — É inteligente o que disseste, mas a ciência pode, um
cérebro artificial pode ter uma mente como a nossa. dia, descobrir a característica do nosso cérebro que nos
Estou a pensar bem? — perguntou a Inês. faz estar imediatamente conscientes do que se passa na
— Estás. Era aí que eu queria chegar. É estranho: não nossa mente. Nessa altura, talvez possam vir a ser feitos
só uma máquina pode pensar e sentir, como nós cérebros artificiais semelhantes à nossa mente. E eu
podemos ser essa máquina. poderia chegar a casa e ter com quem conversar.

A Inês estava a gostar da conversa. Depois, observou: A Inês viu que daí a pouco teria de sair.

— Pois… Se calhar, um dia nada irá distinguir uma — Falaste em chegar a casa, e já estamos mesmo ao pé
mente como a nossa de um cérebro de um computador. da minha! Foi boa esta conversa. Espero que hoje te
sintas menos só quando entrares em casa. Até amanhã!
— É o que eu penso — concordou a Marta. —
Imagina uma máquina que fala e se comporta como Quando chegou a casa, a Marta tentou imaginar como
os seres humanos. Como podemos distingui-la seria ter um robô inteligente à espera dela. Uma das
de nós? Não estou a ver o que é que, nesse caso, nós coisas em que pensou foi na relação que deveria ter com
teríamos a mais do que ela. ele. Que direitos ele teria? Seria assassínio matá-lo?
Seria cruel causar-lhe dor? Em todo o caso, achou que
A Inês continuava com aquele ar distante de quem saberia resolver essas questões. Agradava-lhe a ideia
pensava no problema. Havia qualquer coisa que não de fazer amizade com uma máquina humana.
batia certo. De repente, percebeu o que era. E disse:
Inspirado na obra Problemas da Filosofia, de James Rachels,
e na obra Core Questions in Philosophy, de Elliott Sober.

Guião de leitura

1 Formule o problema que o texto levanta.

2 Descreva o argumento da substituição peça a peça.

3 Apresente as razões da Inês contra a ideia de que um cérebro artificial pode ser igual ao nosso.

4 Identifique algumas descobertas relevantes que a ciência terá de fazer para criar uma máquina humana.

5 Formule alguns problemas que poderiam ocorrer entre humanos e máquinas humanas.

Fazer filosofia

1 Debata com a turma o seguinte problema: Poderá uma máquina pensar?

2 Faça uma pesquisa sobre os avanços realizados até ao momento na área de investigação conhecida como inteligência artificial.

10 Unidade 1

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1.1 O que é a filosofia?
Vamos aprendendo um jogo à medida que o jogamos. Foi o que a Marta e
a Inês fizeram na tentativa de chegarem a uma resposta para o problema de
saber se as máquinas podem pensar. Seria uma perda de tempo conhecer
primeiro as regras do jogo e só depois jogá-lo segundo essas regras.
É improvável que, nesse caso, o jogo ocorresse, ou então ele seria uma
coisa muito monótona e desinteressante de se seguir. Um jogo é uma ativi-
dade, e não uma simples aplicação das regras que o definem.
Com a filosofia passa-se o mesmo. Defini-la sem a praticar seria também
pouco proveitoso. Por isso, o melhor será ver desde logo como começa a
atividade filosófica. Depois será mais fácil compreender que, dado o modo
como começa, ela terá de ser desenvolvida de uma certa maneira.
Em vez de uma definição geral, que seria sempre pouco informativa — e
«philosophia»
razoavelmente inútil — para quem não tem qualquer ideia da atividade
filosófica, queremos antes dar uma ideia do que é fazer filosofia. Os exem-
plos que iremos apresentar com essa finalidade terão uma importância cen-
tral. Esta opção ainda se justifica mais no caso da filosofia, uma vez que ela «philos» «sophia»
é sobretudo uma atividade, e não um corpo de conhecimentos.
Mais do que ter uma opinião filosófica, veremos que o valor, e também o amor sabedoria
prazer, da filosofia está em desenvolver de modo educado uma atividade Esquema 1 — Etimologia da palavra
— fazer filosofia. Diremos então, em primeiro lugar, como começa a filoso- «filosofia».
fia: que problemas a motivam e que disciplinas se formam a partir desses
problemas; em segundo lugar, diremos como é que ela se faz.

1.1.1   Os problemas da filosofia
Num certo momento da sua evolução, ninguém
sabe exatamente quando, a espécie humana
deu consigo a fazer certas perguntas. E cada um
de nós, a dada altura, surpreende-se também a
fazer as mesmas perguntas. Elas parecem ter
uma grande vitalidade. É, assim, muito natural
que as façamos. São tão naturais e familiares
que não precisamos de um treino especial para
as fazermos, nem conseguimos imaginar uma
existência humana sem elas.
Um filósofo descreveu o momento em que as
fazemos como um momento de espanto face ao
universo e ao nosso lugar nele. Mas é também
nesse momento que perdemos a inocência
que seria existir sem que essas perguntas nos
ocorressem. A partir daí não é possível fingir
que nada de importante se passou, e sobretudo
que não faz diferença procurar responder-lhes.
No gesto natural de fazer as perguntas ditadas
por esse momento de espanto, começamos
então a pensar filosoficamente. É por isso que,
num certo sentido, todos estamos já na filosofia. Fig. 2 — Um Filósofo em Meditação (1632), de Rembrandt.
Que perguntas são essas que nos fazem estar já Porque a filosofia é sobretudo uma atividade, perceberemos melhor o que
na filosofia? ela é a partir do que ela faz.

Abordagem introdutória à filosofia e ao filosofar 11

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Essas perguntas exprimem os problemas da filosofia. São muitos os proble-
mas em que se ramifica esse espanto de que falámos. Vejamos alguns que,
muito provavelmente, já colocou, e a experiência comum que está na sua
origem.

Problema Em que consiste? Experiência que nos leva a colocar este problema

A experiência de que a realização dos nossos projetos


Problema Problema de explicar como é possível a vida ter
particulares dá sentido à vida, mas que, à escala
do sentido da vida sentido.
impessoal do universo, esses projetos são irrelevantes.

A experiência de que só somos livres se determinarmos


Problema
Problema de explicar em que consiste a liberdade. o nosso destino, mas também que, para sermos livres,
da liberdade
basta que os outros não interfiram na nossa vida.

A experiência de que as pessoas menos favorecidas


Problema
Problema de explicar qual é a distribuição justa estão sujeitas a desigualdades sociais e naturais de
da justiça
da riqueza produzida pela sociedade. que não são responsáveis, mas também que cada um
distributiva
tem direito a fazer o que entender do que é seu.

A experiência de que há mal no mundo, seja natural


Problema de explicar como é possível haver mal num
ou em resultado de escolhas humanas, mas que um
Problema do mal mundo criado por um ser todo-poderoso,
ser com aquelas qualidades, se existir, impede a
omnisciente e sumamente bom.
existência do mal.

A experiência de que o universo contém apenas objetos


Problema Problema de explicar como é possível que um objeto
materiais com propriedades físicas, mas que os nossos
mente-corpo material tenha uma mente.
pensamentos não podem ter essas propriedades.

A experiência de que mudamos ao longo das nossas


Problema Problema de explicar como é possível uma pessoa
vidas, mas que estas mudanças acontecem à mesma
da identidade pessoal mudar e permanecer a mesma pessoa.
pessoa.

A experiência de que os juízos morais são relativos às


Problema Problema de explicar como é possível haver valores pessoas e às sociedades, mas que há ações certas ou
do relativismo moral morais absolutos. erradas sejam quais forem os juízos das pessoas e de
sociedades inteiras acerca delas.

A experiência de que o conhecimento requer certeza,


Problema Problema de explicar como é possível haver
mas que o conhecimento do mundo depende dos
do ceticismo conhecimento.
nossos sentidos, que são falíveis.

Quadro 1 — Problemas fundamentais da filosofia.

Muitos outros problemas filosóficos poderiam ser apresentados. Este con-


junto de problemas, no entanto, é uma amostra suficiente da dificuldade
que todos eles levantam.
Como acabámos de ver, o que acontece é que da nossa experiência comum
resultam crenças básicas que não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo
— crenças, portanto, que são inconsistentes —, mas que são igualmente
plausíveis. É justamente no momento em que temos uma consciência clara
e lúcida desta dificuldade que a filosofia começa. Esse é, afinal, o momento
do espanto face à natureza enigmática do mundo. Um momento sem
dúvida perturbador, dado que contrasta fortemente com o desejo de ter-
mos uma perspetiva coerente e abrangente do mundo e do nosso lugar
nele.

12 Unidade 1

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Se repararmos bem, estes problemas são ramificações de três problemas Como devemos
fundamentais. Os problemas da liberdade, da justiça distributiva e do sen- viver?
tido da vida, por exemplo, dizem respeito ao problema fundamental de
saber como devemos viver. Ora, saber como devemos viver implica saber o Problemas
O que existe?
que é valioso e bom. As respostas que damos aos problemas que envolvem fundamentais
o que é valioso e bom têm um enorme alcance prático na nossa vida pes-
soal, social e política. Elas ditam os valores que temos razões para adotar. O que é o
conhecimento?
Os problemas mente-corpo, da identidade pessoal e do relativismo moral
Esquema 2 — Três problemas fundamentais
são ramificações de outro problema fundamental — o de saber o que existe da filosofia.
realmente. A resposta a este tipo de problemas proporciona uma perspetiva
articulada da realidade. É verdade que não tem implicações práticas tão
diretas como a resposta aos problemas sobre como devemos viver. No
entanto, não deixa de ter importantes implicações práticas. Por exemplo,
da resposta ao problema do relativismo moral depende a relação que socie-
dades com valores diferentes devem ter entre si.
O problema do ceticismo, por sua vez, diz respeito ao problema fundamen-
tal de saber o que é possível conhecer. Este problema fundamental tem a
particularidade de se aplicar também aos outros dois problemas fundamen-
tais. Assim, além de adotarmos crenças sobre o que é valioso e real, temos
de saber como chegamos ao conhecimento que está na sua base. Temos de
saber, portanto, como justificamos a verdade dessas crenças.

1.1.2   As disciplinas da filosofia
Conhecidos os problemas fundamentais da filosofia, podemos agora saber
quais são as disciplinas filosóficas fundamentais que procuram responder-
-lhes e as suas subdisciplinas. A axiologia é a disciplina que enfrenta os
problemas sobre o que é valioso e bom. As suas subdisciplinas mais
importantes são a ética, que estuda os valores morais, e a estética, que
estuda os valores estéticos. A metafísica estuda os problemas
sobre o que é real. A filosofia da mente, a filosofia da linguagem
e a filosofia da religião, por exemplo, são disciplinas filosóficas
que investigam o que é real nos domínios de que se ocupam.
Entre outras coisas, pretendem, respetivamente, saber que
tipo de existência têm certos fenómenos mentais, o que
é a relação de referência ao mundo da linguagem ou se Deus
existe. A epistemologia trata do problema fundamental
do conhecimento. A sua subdisciplina mais conhecida
é a filosofia da ciência, que procura saber, por exemplo,
se o conhecimento científico é objetivo e como são
justificadas as teorias científicas. Mas precisamos de Fig. 3 — A Cidade das Gavetas (1936), escultura de Salvador Dalí.
saber também como conhecemos e justificamos os A filosofia subdivide o seu campo de estudo em disciplinas,
valores morais; a isso se dedica a epistemologia moral. para organizar a investigação.

Os problemas filosóficos têm uma importante particularidade. Por um


lado, surgem naturalmente da experiência comum; por outro, não podem
ser resolvidos através do recurso à experiência. Isto não significa que a
informação factual proporcionada pela experiência, e articulada nas várias
ciências, não é relevante. É óbvio que precisamos de saber como funciona
o cérebro para estarmos em condições de responder ao problema mente-
-corpo; é também óbvio que precisamos de saber como são geradas as
desigualdades sociais para responder ao problema da justiça distributiva.
Mas esta informação factual, ainda que relevante, não é decisiva.

Abordagem introdutória à filosofia e ao filosofar 13

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O que decide então se uma resposta filosófica a estes problemas é mais
plausível do que outra? O que nos leva a adotar uma resposta em vez de
outra é a argumentação racional que a sustenta. A resposta que merece a
nossa aprovação é aquela que tem a argumentação racional mais plausível
a seu favor. Ora, a argumentação racional procede por meio do raciocínio
cuidadoso e informado. É por isso que a lógica é também uma das disci-
plinas fundamentais da filosofia. Precisamos dela para estudar o raciocínio.
A discussão crítica dos problemas filosóficos tem na lógica uma ferramenta
privilegiada.

Disciplinas filosóficas Âmbito Exemplos de problemas

• Qual é a natureza dos valores?


Estuda os problemas fundamentais de saber o que • Como devemos viver?
Axiologia
é bom, o que tem valor e como devemos viver. • O que é uma ação moralmente correta?
• O que é o valor estético?

Estuda problemas relacionados com os aspetos mais • Que tipos de entidades há?
Metafísica gerais da estrutura da realidade. • Haverá verdades necessárias?
Procura investigar que tipos de entidades existem. • Será que temos livre-arbítrio?

Estuda problemas relacionados com o conhecimento


em geral. • O que é o conhecimento?
• Será o conhecimento possível?
Epistemologia Procura entender o que é o conhecimento, que tipos • Como sabemos seja o que for?
de conhecimento existem, se o conhecimento é • Qual é a origem do conhecimento?
possível, etc.

Estuda a argumentação válida. • Que tipos de argumentos existem?


• O que é a validade?
Lógica É usada como instrumento pela filosofia, para garantir • Será possível construir um modelo completo
a validade da argumentação. do raciocínio?

Quadro 2 — Disciplinas centrais da filosofia.

Atividades

1 As questões filosóficas podem ser metafísicas, epistemológicas, éticas ou lógicas, ou do campo da filosofia da ação, da filosofia
política, da filosofia da religião, da filosofia da ciência, da estética, entre outros. Por sua vez, as questões não filosóficas podem ser
consideradas científicas, factuais ou históricas, técnicas, económicas ou outras.
1.1 De acordo com o exemplo, faça o devido enquadramento de cada uma das questões que seguidamente se apresentam:
a) Serão as teorias científicas objetivamente verdadeiras? — filosófica/filosofia da ciência
b) As nossas ações estão causalmente determinadas pelos acontecimentos anteriores e pelas leis da natureza?
c) Como funciona o cérebro humano?
d) Como podem os estados diminuir o desemprego?
e) Legalmente, pode-se abortar em Portugal?
f) Será o aborto moralmente permissível?
1.2 Compare as questões e) e f ). O que há de comum entre elas? E o que há de diferente?

Debate

Esboce a sua filosofia a respeito de três problemas filosóficos do conjunto de problemas apresentado, dizendo, por exemplo, que posição
tomaria acerca do problema da justiça distributiva ou da liberdade.

14 Unidade 1

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1.2 Como se faz filosofia?
Fazer filosofia envolve geralmente três atividades distintas mas comple-
mentares:

Atividades centrais da prática filosófica:


i. argumentar;
ii. analisar;
iii. imaginar.

Cada uma destas atividades, por sua vez, recorre a ferramentas próprias
que se têm revelado proveitosas.
Não há um repertório previamente definido de ferramentas. Isto quer dizer
Fig. 4 — Filosofia (1511), de Rafael Sanzio.
que, na prática da filosofia, não há algo que se pareça com um método.
Esta alegoria da filosofia segura nas suas
É o que afirma o texto seguinte: mãos dois livros intitulados Natureza e Moral
e é ladeada pela inscrição causarum cognitio,
Texto 1 que significa «conhece as causas».
Parte importante do trabalho filosófico pode
Há quem se interrogue sobre se há na filosofia um método para ser estudado […]. ser descrita deste modo: conhecer as causas
Esquece a ideia de um método único, usado em todo o pensamento filosófico e só aí. (o «porquê?») das nossas crenças.
Os filósofos, no entanto, usam vários tipos de métodos: eles filosofam de várias maneiras.
A metodologia da comunidade filosófica é o seu repertório destes métodos. A palavra
«método» aqui não implica um algoritmo mecanicamente aplicável que garante um
resultado num tempo finito.
TimoThy Williamson, The Philosophy of Philosophy.
Ed. Blackwell, 2007, p. 3.

Não há o método filosófico, mas vários tipos de métodos. E, mais impor-


tante ainda, não há qualquer método de aplicação mecânica capaz de
garantir um certo resultado. Isto implica que, em filosofia, temos sempre
de fazer o nosso próprio juízo. Quanto a isso, o texto seguinte não deixa
dúvidas:

Texto 2

Ainda considerei usar no título a expressão «método filosófico», mas decidi em sentido
contrário na base de que isso parecia prometer, mais do que eu acredito ser possível,
uma espécie de receita para fazer filosofia.
Quando numa certa ocasião lhe pediram conselho, conta-se que o duque de Wellington
respondeu: «Sir, está metido em grandes apuros, e tem de se livrar deles o melhor que
puder.» O meu conselho dificilmente poderia ser mais útil. No ponto crucial, apenas
posso dizer: «Use o seu próprio juízo.»
TimoThy Williamson, The Philosophy of Philosophy.
Ed. Blackwell, 2007, prefácio.

Em todo o caso, na prática da filosofia é saliente o lugar central ocupado


por algumas ferramentas ou métodos, como diria o autor dos textos que
acabámos de ler.
Veremos então, em cada uma das atividades referidas, que ferramentas são
essas e como operam.
Abordagem introdutória à filosofia e ao filosofar 15

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1.2.1   Argumentar
Validade Os filósofos respondem aos problemas filosóficos com ideias e teorias. Mas
isso não basta. Eles têm também de apresentar razões para aceitarmos as
Solidez
teorias que defendem. É nisso que consiste um argumento.
Ferramentas
da atividade
de argumentar Cogência Um argumento pretende sustentar uma teoria.
É formado por:
Deteção
de falácias • premissas, que são as razões;
• conclusão, que é a teoria defendida.
Esquema 3 — Principais ferramentas
da atividade de argumentar.
Se um argumento for bom, podemos confiar na teoria, uma vez que temos
uma base racional para afirmar que é verdadeira. A partir desse momento,
cabe-nos testar os seus méritos. Cada nova teoria para a qual temos razões
para afirmar que é verdadeira proporciona assim um novo debate filosó-
fico.
Se ter bons argumentos é a maneira racional de chegar à verdade acerca
de um problema filosófico, precisamos de saber o que é um bom argu-
mento. Isso é decisivo para que, além de estarmos já na filosofia, saibamos
ainda participar educadamente na atividade de fazer filosofia.

Validade
Em primeiro lugar, um bom argumento tem de ser válido. Vejamos dois
exemplos de argumentos válidos:

Argumento 1
(1) Se a alma é imortal, pensar não depende da atividade do cérebro.
(2) Ora, a alma é imortal.
(3) Logo, pensar não depende da atividade do cérebro.

Argumento 2
(1) Se a alma é imortal, pensar não depende da atividade do cérebro.
(2) Pensar, no entanto, depende da atividade do cérebro.
(3) Logo, a alma não é imortal.

Por que razão argumentos rivais como os apresentados acima são ambos
válidos? O que acontece é que a conclusão de cada um se segue logica-
mente das premissas.

Um argumento válido é um argumento cuja conclusão se


segue das premissas.
Fig. 5 — Estampa publicitária vintage
da marca de frigoríficos Crosley.
Podemos dizer que os argumentos válidos Isto quer dizer que, se imaginarmos que as premissas dos argumentos são
preservam a verdade das premissas, tal como verdadeiras, a conclusão não pode ser falsa.
os bons frigoríficos preservam a qualidade
dos alimentos. Se pusermos comida Verificar se um argumento é válido é imaginar se ocorre a possibilidade de
estragada no frigorífico, não nos devemos ele ter premissas verdadeiras e conclusão falsa. Caso essa possibilidade não
surpreender se ela sair de lá estragada. ocorra, o argumento é válido.

16 Unidade 1

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Solidez
O contraste entre os argumentos 1 e 2 mostra que só um deles poderia ter
premissas verdadeiras e que o outro, nesse caso, teria de ficar pelo cami-
nho. Dada a informação disponível, o argumento1 tem uma premissa falsa
ou, pelo menos, muito duvidosa. Com o argumento 2, no entanto, tudo
parece estar bem. Como é verdade que pensar depende da atividade do
cérebro, se aceitarmos também a primeira premissa, temos de concluir que
é verdade que a alma não é imortal. Só este argumento, além de válido, é
também sólido. Este é um veredito muito importante. A segunda lição
acerca de argumentos bons é que eles têm de ser sólidos.

Um argumento sólido é um argumento válido com


premissas verdadeiras.

As noções de validade e solidez são duas ferramentas que a atividade


de argumentar não dispensa. Quando apresentamos um argumento, temos,
primeiro, de saber se a conclusão se segue logicamente das premissas —
essa é a exigência que nos faz a noção de validade, que diz respeito apenas
à estrutura do argumento. E depois, porque estamos igualmente sujeitos
à exigência de solidez, temos de saber se as premissas são verdadeiras.
Quem confunde as noções de validade e solidez não sabe evitar erros
comuns que comprometem a atividade de argumentar. Um deles é o erro
de rejeitar uma ideia verdadeira só porque ela faz parte de um argumento
inválido. Um outro é o erro de aceitar como verdadeira uma ideia só
porque ela faz parte de um argumento válido. Além de não devermos
confundir estas duas questões, não podemos esquecer que a verdade de
uma premissa ou de uma conclusão é independente de concordarmos com
ela. Estaremos assim precavidos contra o erro bastante comum e tentador
de acreditar que um argumento é sólido só porque concordamos com a sua
conclusão.

Cogência
Um outro pormenor é decisivo para avaliarmos até que ponto um argu-
mento pode ser promissor. O contraste entre dois novos argumentos
ajudará a tornar saliente esse pormenor. Os argumentos são os seguintes:

Argumento 3
(1) Se Deus é o dono da vida, então a pena de morte é errada.
(2) Deus é o dono da vida.
(3) Logo, a pena de morte é errada.

Argumento 4
(1) Se há pessoas que estão sujeitas a desigualdades pelas quais não são
responsáveis, então merecem ser compensadas através de ajudas
proporcionadas pelo Estado.
(2) Há pessoas que estão sujeitas a desigualdades pelas quais não são
responsáveis.
(3) Logo, essas pessoas merecem ser compensadas através de ajudas
proporcionadas pelo Estado.

Abordagem introdutória à filosofia e ao filosofar 17

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Os argumentos 3 e 4 são válidos. Além disso, são válidos pela mesma
razão, pois têm idêntica estrutura. Assim, estão construídos de tal modo
que a sua estrutura impede que a conclusão seja falsa se as premissas
forem verdadeiras. Tenhamos ainda a simpatia de admitir provisoriamente
a hipótese de ambos os argumentos serem sólidos. E agora vamos supor
que queremos convencer as pessoas a aceitar estes argumentos, que é de
facto o que queremos sempre que usamos argumentos. À partida, qual
deles parece ter mais capacidade de as convencer? Por outras palavras,
qual deles é mais persuasivo? Será mais persuasivo aquele que tiver pre-
missas mais plausíveis.
A plausibilidade das premissas é relativa às pessoas. Isso
quer então dizer que um argumento é mais plausível do
que outro se as suas premissas tiverem mais força para
as pessoas a quem se dirige. Dos dois argumentos,
o argumento 4 é aquele que é mais convincente. A força
das suas premissas é maior do que a força das premissas
do argumento 3, que são pouco plausíveis e até, na
verdade, menos plausíveis do que a conclusão. Assim,
é mais plausível a afirmação de que a pena de morte
é errada do que a afirmação de que Deus é o dono da
vida. Isto permite concluir que o argumento 3 não
é convincente. Diremos, por isso, que o argumento não
é cogente, ao contrário do segundo. Este tem a virtude
de apresentar premissas mais plausíveis do que
a conclusão e com uma força considerável. Aliás,
Fig. 6 — Pena de morte. a primeira premissa é uma das verdades morais mais
A afirmação de que a pena de morte é errada é mais plausível fortes e influentes que a argumentação racional levou a
do que a afirmação de que Deus é o dono da vida. descobrir. E a segunda é um facto bastante óbvio.

Um argumento cogente é um argumento sólido cujas


premissas são mais plausíveis do que a conclusão.

A noção de cogência é uma das ferramentas da atividade de argumentar,


que, para ser educada, terá de atender a três questões. Um argumento terá
de passar o teste de responder com sucesso às exigências de validade,
solidez e cogência que essas questões põem. Chegar a argumentos cogentes
é uma finalidade central da atividade de argumentar, mas não é a única.

Atividades

1 Das três noções estudadas — validade, solidez e cogência — identifique aquela que é sugerida por cada uma das seguintes
afirmações:
A — Tudo o que o argumento afirma é verdade.
B — O raciocínio está impecavelmente construído.
C — O mérito do argumento é ter organizado muito bem as ideias que pretendia transmitir.
D — Não se vê como é possível recusar as premissas do argumento.
E — É um facto que as coisas se passam como o argumento diz.
F — Qualquer pessoa sensata estará na disposição de aceitar o argumento.

2 Por que razão é importante que, além de válido, um argumento seja sólido?

3 Por que razão é importante que, além de sólido, um argumento seja cogente?

18 Unidade 1

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  Deteção de falácias
Ter domínio sobre a atividade de argumentar não se resume a ser capaz
de construir argumentos cogentes. Implica também que saibamos detetar
falácias.

Uma falácia é um argumento mau que tem defeitos pouco


visíveis para quem ainda não argumenta cuidadosamente.

Por este motivo, uma falácia pode escapar-nos e o argumento parecer-nos


bom. Temos de nos precaver para os erros lógicos escondidos nas falácias.
Consideremos então o seguinte argumento:

Argumento 5
(1) Se chove, então o piso está escorregadio.
(2) É um facto que o piso está escorregadio.
(3) Logo, chove.

Pode escapar-nos que é possível o piso estar escorregadio e não chover.


Pode escapar-nos, portanto, que é possível as premissas serem verdadeiras
e a conclusão ser falsa. O argumento é inválido. Isso deve-se ao modo
como está construído. A estrutura ou forma lógica que resulta dessa cons-
trução é inválida. Por isso, quaisquer afirmações estruturadas por essa
forma lógica, sejam verdadeiras ou não, acabarão sempre por formar uma
falácia.

Uma falácia formal corresponde a um erro na forma


ou estrutura do argumento.

Consideremos agora um outro argumento de conteúdo semelhante.

Argumento 6
(1) Se chove, então o piso está escorregadio.
(2) É um facto que não chove.
(3) Logo, o piso não está escorregadio.

O problema com este argumento ocorre também na sua forma. É possível


que não chova e o piso esteja escorregadio. Mais uma vez, a conclusão não
se segue das premissas. Isso quer dizer que as premissas podem ser verda-
deiras e a conclusão falsa. E terá de ser assim seja qual for o conteúdo do
argumento. Afirmações estruturadas por aquela forma lógica, sejam um
disparate ou verdades inatacáveis, formam uma falácia. Não teremos boas
razões para aceitar a conclusão. Mas não há apenas falácias formais. Há
erros diferentes nos argumentos. Vejamos alguns exemplos.

Argumento 7
(1) O bem deve ser promovido.
(2) O bem, além disso, consiste em ter qualidade de vida.
(3) Logo, a qualidade de vida deve ser promovida.

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A conclusão do argumento segue-se da premissa. Não parece possível as
premissas serem verdadeiras e a conclusão falsa. O que há então de errado
com o argumento? O problema é que as premissas, tomadas em conjunto,
apenas reiteram o que a conclusão afirma. É como se o raciocínio descre-
vesse um círculo. As premissas não fornecem, portanto, uma razão adicio-
nal para justificar a conclusão. O erro desta falácia ocorre no seu conteúdo,
e não na sua forma.

Uma falácia informal corresponde a um erro no conteúdo


do argumento.

Podemos dizer que este é um caso em que as premissas são inaceitáveis


como razões a favor da conclusão, pois não são mais fortes do que esta.
Mas podem parecer mais fortes a alguém que não domine a atividade de
argumentar. O mesmo acontece com o argumento seguinte:

Argumento 8
(1) Aqueles que são contra quotas de representação política
e institucional para as mulheres revelam sem querer
as suas motivações machistas.
(2) Logo, é errado ser contra quotas de representação para as mulheres.

Quem apresenta este argumento não procura tratar da questão de saber se


é errado haver quotas de representação para as mulheres. Em vez de o
fazer, lamentavelmente opta por denegrir a pessoa que é contra essas quo-
tas. Mas um argumento contra as quotas de representação para as mulheres
é independente de quem o defende. Se resiste ou cai perante as críticas,
isso dependerá apenas dos seus méritos próprios. Saber quem o propõe é
irrelevante para averiguar da sua solidez. É por isso que o erro de conteúdo
que comete está no facto de a sua premissa ser irrelevante. Porquê? Porque
Fig. 7 — O Pensador, de Auguste Rodin.
apela a aspetos de personalidade, no caso as motivações machistas, para
Pensar bem exige que estejamos sujeitos
a determinadas exigências.
criticar ideias.
Neste momento, já dispõe de algumas ferramentas essenciais da atividade
de fazer filosofia, mais precisamente da atividade de argumentar. São elas a
validade, a solidez, a cogência e a deteção de erros lógicos, formais ou
informais. Viu também como essas ferramentas operam. Esperamos que
agora tenha uma noção mais clara das exigências a que está sujeito quem
quer pensar bem.

Atividades

1 Explique o erro lógico de cada uma das falácias seguintes e identifique-o como formal ou informal.
A — Se Manuel Vasques anseia por dar o seu depoimento, então é inocente. Mas ele não anseia por esse momento. Logo,
não é inocente.
B — A ideia do Pedro é o resultado de muitos anos de experiência. Logo, tem de ser verdadeira.
C — Se o Banco de Portugal baixar as taxas de juro, então é fácil emprestar dinheiro. Verifica-se que é fácil emprestar dinheiro.
Logo, o Banco de Portugal baixou as taxas de juro.
D — Todos acham que a competição gera progresso. Logo, seria estranho que não fosse verdade que a competição gera
progresso.

20 Unidade 1

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1.2.2   Analisar
Analisar é também uma atividade que ajuda a filosofia a resolver problemas
Principal ferramenta
e a chegar à verdade. As atividades humanas que procuram a verdade impli- da atividade de analisar
cam um modo de pensar rigoroso. Isso exige que a filosofia saiba usar con-
ceitos de forma rigorosa. São duas as razões pelas quais esta exigência é ainda
mais importante no caso da filosofia. Em primeiro lugar, quando a filosofia Análise
conceptual
procura saber o que é a liberdade, por exemplo, ter à disposição um conceito
preciso de liberdade é decisivo. Desse modo, a argumentação racional para
resolver o problema da liberdade poderá desenvolver-se sem mal-entendidos Aplicação rigorosa
evitáveis. Em segundo lugar, chegar à verdade acerca do que é a liberdade de conceitos
equivale a saber com exatidão em que circunstâncias se aplica o conceito de Esquema 4 — Principal ferramenta
liberdade e em que circunstâncias ele não se pode aplicar. da atividade de analisar.
Ser rigoroso no uso dos conceitos envolve então a atividade de analisar,
mais precisamente a atividade de analisar conceitos, conhecida como aná-
lise conceptual. Veremos por que razão os filósofos sentem fortemente a
necessidade de recorrer a essa análise e como ela opera.

A necessidade de elucidar conceitos


Certas experiências comuns fazem surgir problemas filosóficos. Temos, por
exemplo, a experiência de que a realização dos nossos projetos particulares
dá sentido à vida, mas que, à escala impessoal do universo, esses projetos
são irrelevantes. Surge assim o problema do sentido da vida, que na ver-
dade é um conflito entre duas crenças básicas: a crença de que o conceito
de uma vida com sentido se aplica às nossas vidas e a crença de que não se
aplica. Parece que a nossa vida reúne as condições requeridas para ter sen-
tido e para não o ter. E o que dissemos acerca do problema do sentido da
vida poderia ser estendido ao problema mente-corpo, por exemplo. Tam-
bém aí o conceito de mente, que à partida se aplicaria pacificamente aos
seres humanos, entra em conflito com a crença de que somos organismos
apenas com propriedades físicas.
É este conflito entre crenças acerca de conceitos fundamentais que atra-
vessa toda a filosofia e faz surgir os seus inúmeros problemas. O que fazer
perante este conflito entre crenças acerca de conceitos fundamentais?
A resposta é que temos de elucidar os conceitos em questão de maneira
a identificar as condições em que eles se aplicariam e, por implicação,
as condições em que isso não seria possível. Só assim fará sentido um
debate rigoroso sobre os problemas filosóficos. Foi com essa finalidade
de elucidar conceitos que os filósofos criaram uma das ferramentas mais
usadas na atividade filosófica — a análise conceptual.

A análise conceptual
Em muitos casos, a análise conceptual é simples e não gera qualquer discus-
são. Tratando-se de conceitos fundamentais, como aqueles que os problemas
filosóficos implicam, tudo muda de figura. Vejamos, respetivamente, um
exemplo simples e um exemplo complexo de análise conceptual.

Análise conceptual simples — conceito de solteiro:


Alguém é solteiro apenas quando é humano, não é casado,
é homem, é adulto e não é, por exemplo, padre nem se
encontra em qualquer situação idêntica à de padre.

Abordagem introdutória à filosofia e ao filosofar 21

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Tal como o químico, que decompõe substâncias nos seus elementos mais
simples, o que fizemos foi decompor o conceito de solteiro nos conceitos
mais simples que o formam. É esta a operação envolvida na análise concep-
tual. O conceito de solteiro foi corretamente analisado. Se encontrarmos
alguém que reúna as condições apresentadas — ser humano, não ser casado,
ser do género masculino, ser adulto e não ser padre nem se encontrar em
situação semelhante à de padre —, essa pessoa é solteira. A análise do con-
ceito estabeleceu com precisão a sua fronteira, permitindo separar correta-
mente as pessoas solteiras daquelas que o não são.
Se tivéssemos cometido o erro de não incluir a condição de ser humano,
gorilas machos seriam identificados como solteiros. Teríamos, nesse caso,
alargado demasiado a aplicação do conceito. Se, pelo contrário, tivéssemos
cometido o erro inverso de incluir a condição de ter pele morena, teríamos
estreitado demasiado a aplicação do conceito, de tal modo que solteiros de
pele clara não seriam exemplos do conceito. Dado que o conceito de solteiro
não gera perplexidade, é fácil evitar estes erros. Mas esse não é o caso dos
conceitos investigados em filosofia.
Consideremos, por exemplo, o conceito de sociedade justa. Houve, e há,
análises diferentes do conceito de sociedade justa, que é, sem dúvida, um
conceito fundamental muito disputado. Consideremos uma dessas análises.

Análise conceptual complexa — conceito de sociedade justa (1):


Uma sociedade é justa apenas quando todas as pessoas têm
liberdades e oportunidades iguais.

Será esta análise satisfatória? Se for esse


o caso, a fronteira do conceito terá sido
estabelecida com precisão. Precisamos
então de testar o conceito de sociedade
justa produzido por esta análise. Imagine-
mos uma sociedade que assegura liberdades
e oportunidades iguais, mas não compensa
as pessoas que são vítimas de desigualdades
sociais e naturais. Essa sociedade, segundo
o conceito acabado de expor, seria justa. No
entanto, muitos discordariam. Para eles,
esta análise do conceito de sociedade justa
não é correta por alargar demasiado a sua
aplicação. Caso a aceitássemos, teríamos na
esfera do conceito de sociedade justa uma
sociedade que abandonasse as vítimas de
pobreza e deficiência à sua sorte.

Fig. 8 — Cartaz de uma campanha contra a pobreza. As pessoas que discordam teriam a obriga-
Numa sociedade justa, as vítimas de pobreza não deveriam ser abandonadas
ção de apresentar uma análise alternativa do
à sua sorte. conceito. Essa análise poderia ser a seguinte:

Análise conceptual complexa — conceito de sociedade justa (2):


Uma sociedade é justa apenas quando todas as pessoas têm
liberdades e oportunidades iguais e os menos favorecidos por
circunstâncias que não escolheram são devidamente compensados.

22 Unidade 1

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Este conceito já não permitiria identificar como justas sociedades que não
tivessem em conta os interesses das vítimas de pobreza e deficiência. É pro-
vável que viesse a colher uma simpatia maior do que o conceito inicial de
sociedade justa. Nesse caso, o conceito teria apresentado todas as condições
que uma sociedade justa deveria reunir. Isso poderia indicar, portanto, que a
fronteira desse conceito foi estabelecida com precisão.
Imaginemos, todavia, que esta modificação do conceito não é ainda satisfa-
tória para alguns. Em alternativa, seria então proposta a seguinte análise do
conceito de sociedade justa:

Análise conceptual complexa — conceito de sociedade justa (3):


Uma sociedade é justa apenas quando todas as pessoas têm
liberdades e oportunidades iguais, os menos favorecidos por
circunstâncias que não escolheram são devidamente compensados
e ninguém age de acordo com motivações egoístas.

Esta análise do conceito de sociedade justa parece ir longe de mais. A sua


aplicação talvez se tenha estreitado em demasia. Dada a enorme exigência
introduzida pela condição de ninguém agir de acordo com motivações egoístas,
é provável que este conceito de sociedade justa seja de muito difícil aplicação
a qualquer das sociedades conhecidas. No entanto, os nossos juízos ponderados
tomam como razoavelmente justas sociedades em que as pessoas, pelo
menos na sua vida pessoal, agem de modo egoísta.
Este exercício sobre o conceito de sociedade justa mostra que a análise con-
ceptual é uma ferramenta que procede por afinações sucessivas dos conceitos
até chegar a uma solução correta. Essas afinações procuram dar resposta às
críticas a certos conceitos que foram consideradas plausíveis. Isto significa
que a própria análise conceptual motiva debates intensos.
Além de ser uma tentativa de chegar à verdade acerca de conceitos funda-
mentais, a análise conceptual exprime uma saudável exigência de rigor
e precisão na atividade filosófica; saudável e também muito necessária, pois
os conceitos investigados pela filosofia, por serem fundamentais, precisam
de análises tão rigorosas quanto possível. Se nada disso for feito, as tentativas
de resposta aos problemas filosóficos encontram fatalmente pelo caminho
dificuldades geradas por mal-entendidos persistentes. Nesse caso, uns falam
de um conceito e outros de um conceito diferente, parecendo que falam do
mesmo. Pouco ou nenhum proveito haverá numa atividade filosófica que não
recorra à análise conceptual como uma das suas ferramentas privilegiadas.

A atividade filosófica e a atividade científica


Tanto a atividade filosófica como a científica procuram resolver problemas
e chegar à verdade. Estas semelhanças, no entanto, dizem pouco sobre a
natureza de cada uma das atividades em questão. A análise conceptual é
um bom pretexto para vermos a atividade filosófica em contraste com a
atividade científica. Esse contraste é útil, uma vez que proporciona uma
compreensão mais clara da atividade filosófica.

Já sabemos que a análise conceptual é uma ferramenta usada pela atividade


filosófica na tentativa de explicar como é possível um conceito aplicar-se,
identificando para esse efeito as condições corretas da sua aplicação. No
entanto, é muito diferente de explicar como é possível um facto ou um
acontecimento ocorrer, que é tarefa da ciência.
Abordagem introdutória à filosofia e ao filosofar 23

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Imaginemos que alguém quer saber o que faz dos cereais Wheaties o
pequeno-almoço dos campeões. Podemos dar dois tipos de resposta:
• Resposta causal: o que faz de Wheaties o pequeno-almoço dos campeões
são os minerais e as vitaminas saudáveis que os cereais contêm. Ou, em
alternativa: o que faz de Wheaties o pequeno-almoço dos campeões são
os seus hidratos de carbono, que fornecem a energia suplementar exigida
pela prática desportiva.
• Resposta conceptual: o que faz de Wheaties o pequeno-almoço dos campe-
ões é o facto de serem comidos por um número muito razoável de campeões.
A resposta causal fornece uma explicação de como é possível ocorrer o
facto de os cereais Wheaties serem o pequeno-almoço dos campeões.
A resposta conceptual explica como é possível aplicar-se o conceito de que
os cereais Wheaties são o pequeno-almoço dos campeões, identificando as
condições corretas da sua aplicação. A condição correta da sua aplicação
seria a de os cereais Wheaties serem comidos por um número muito razoável
de campeões. Podemos, então, afirmar o seguinte:

A atividade científica é uma tentativa de explicar as relações


causais entre factos ou acontecimentos.
A atividade filosófica, por sua vez, procura explicar as
relações entre conceitos.

Se regressarmos ao conceito de sociedade justa (2), veremos que a sua


explicação articula diversos conceitos — o conceito de liberdade, o de
igualdade de oportunidades e o de compensação dos menos favorecidos.
Esses conceitos têm o importante papel de mostrar em que condições o
conceito de sociedade justa se aplica. Segue-se que, permitindo
entender conceitos, a atividade filosófica tem o mérito de aju-
dar também a compreender a realidade a que se aplicam. Não
é por se dedicar à análise de conceitos que a atividade filosófica
é uma mera abstração que nada diz sobre o mundo. Para com-
preender a realidade, precisamos de conhecer causas e factos,
mas também de entender conceitos e relações entre conceitos.
Agora já sabe como opera a ferramenta mais importante da
atividade de analisar. A análise conceptual exige que a atividade
filosófica seja rigorosa nos conceitos que usa. Isso é decisivo,
dado que esses conceitos melhoram a nossa compreensão do
mundo. Se a análise dos conceitos fundamentais na atividade
filosófica não for precisa, não teremos à disposição os conceitos
corretos. A consequência é que, nesse caso, eles não nos ajudam
a compreender a realidade a que se aplicam. Por isso, fazer
filosofia é também nunca nos esquecermos de fazer perguntas
Fig. 9 — Clarividência (1936), de René Magritte. como estas: os conceitos usados são precisos? Será que incluem
Conseguimos uma melhor compreensão do mundo casos a mais, alargando demasiado a sua aplicação? Ou será que
aplicando conceitos de forma rigorosa. incluem casos a menos, estreitando demasiado a sua aplicação?

Atividades

1 A análise de conceitos é particularmente útil quando se faz filosofia. Esclareça esta afirmação.

2 Será que, por fornecer respostas conceptuais, a filosofia não informa acerca da realidade?

24 Unidade 1

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1.2.3  Imaginar
Imaginar é particularmente importante na atividade filosófica. É fácil perce-
Experiências
ber porquê: quando alguém faz filosofia, não tem a preocupação de explicar
Ferramentas mentais
quais são as causas dos factos, mas de explicar quais são os conceitos que
permitem compreender os diversos aspetos da realidade. Daí a necessidade da atividade
de imaginar Testes de
de saber se um conceito se aplica em todas as situações concebíveis em que
é suposto que isso aconteça. Temos então de imaginar como se porta o con- inconsistências
ceito em todas as situações concebíveis — nas reais e nas possíveis. Se ele se Esquema 5 — Principais ferramentas
sair bem nesse teste, temos razões para afirmar que é correto. Mas, caso não da atividade de imaginar.
se aplique numa dada situação em que isso deveria acontecer, é provável que
tenhamos de o abandonar.
À atividade de imaginar cabe assim o papel de testar os conceitos e teorias
que se propõem responder aos problemas filosóficos. E, como veremos, cabe
ainda averiguar se a defesa de conceitos e princípios é consistente.

  A experiência mental
A experiência mental é talvez a mais importante ferramenta da atividade
filosófica de imaginar. Trata-se de uma situação imaginária, mais ou menos
distante da realidade, concebida para testar se um conceito ou uma teoria são
corretos. Iremos agora mostrar como se desenvolve esse teste recorrendo a
dois exemplos de experiências mentais.
No primeiro exemplo, a que chamaremos máquina de experiências, será tes-
tado um conceito de bem. O segundo exemplo testa um conceito de ação
racional; é conhecido como dilema do prisioneiro.

Problema e conceito
Experiência mental Teste
que responde ao problema

O que é o bem? Experiência mental que apresenta a situação imaginária de alguém que
Máquina O bem consiste na felicidade, medida pode ligar-se a uma máquina capaz de fornecer todas as experiências
de experiências em termos de estados mentais mentais de prazer que desejar; a ligação à máquina é definitiva; a pessoa
de prazer e ausência de dor. acredita que vive de facto essas experiências de prazer.

Experiência mental que apresenta a situação imaginária em que duas


pessoas são apanhadas na cena do crime e depois interrogadas
separadamente pela polícia, que faz a cada uma a seguinte proposta:
• se nenhuma das duas confessar que cometeu o crime, as duas serão
O que é uma ação racional?
Dilema acusadas de um crime que implicará uma pena de prisão de um ano;
do prisioneiro A ação racional consiste em satisfazer
• se as duas confessarem o crime, implicando-se mutuamente, cada uma
o interesse próprio.
cumprirá uma pena de dez anos de prisão;
• se uma confessar o crime e a outra não, aquela que confessar poderá sair
em liberdade, ao passo que a implicada pela confissão cumprirá uma pena
de vinte anos.

Quadro 3 — Exemplos de experiências mentais.

O conceito de bem apresentado, se for correto, implica que a pessoa se ligará


à máquina. A experiência mental é um teste a essa implicação do conceito.
Caso a pessoa não se ligue à máquina, temos um exemplo contrário — um
contraexemplo — ao conceito de que o bem é um estado mental de prazer e
ausência de dor.
Abordagem introdutória à filosofia e ao filosofar 25

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Se o conceito de ação racional apresentado for correto, é provável que as
pessoas envolvidas, na defesa do seu interesse próprio, raciocinem deste
modo: se a outra pessoa confessar, apanharei vinte anos de prisão se não
confessar, ou dez anos se confessar; se a outra não confessar, apanharei um
ano de prisão se não confessar, ou não apanharei qualquer ano se confes-
sar; portanto, num caso e noutro estarei melhor se confessar. Mas, se ambas
raciocinarem deste modo, ambas confessarão, apanhando cada uma dez
anos de prisão, e ficando pior do que se nenhuma das duas confessasse,
situação em que teriam apenas um ano de pena de prisão. Caso as pessoas
não façam o raciocínio que acabámos de expor, optando por cooperar em
alternativa a satisfazer o interesse próprio, teremos um contraexemplo ao
conceito de ação racional referido.
Estes exemplos mostram que os raciocínios sugeridos pela imaginação são
testes interessantes aos conceitos e teorias dos filósofos. As experiências
mentais, ainda que muito distantes da realidade, são ferramentas que esti-
mulam progressos claros na atividade filosófica. Isso explica que os concei-
tos e teorias defendidos pela investigação filosófica mais recente sejam
geralmente superiores ao que até aí foi feito. Compreende-se sem custo que
assim seja: proporcionando novos dados, as experiências mentais alargam
a base em que assentam os conceitos mais recentes.

Testar inconsistências
A atividade filosófica de imaginar é igualmente útil quando se trata de tes-
tar a consistência das nossas crenças e princípios. Esse teste consiste em
averiguar se as nossas crenças podem ser verdadeiras ao mesmo tempo.
Por exemplo, se alguém acredita que os atos homossexuais são condenáveis
porque não são naturais, é útil imaginar outras crenças que essa pessoa,
para ser consistente, deveria adotar. Uma delas poderia ser a crença de que
cantar ópera, por essa razão, é também condenável. Se essa pessoa adotar
a crença referida acerca da homossexualidade, mas não a crença acerca de
cantar ópera, comete o erro de ser inconsistente, pois essas crenças não
podem ser verdadeiras ao mesmo tempo. Alguma coisa terá de ser feita no
conjunto das suas crenças. Parece que, pelo menos, uma das crenças terá
de ser revista.
Um outro caso de inconsistência poderia ser este. Alguém é pacifista por-
que tem como um dos seus princípios últimos o princípio da santidade da
vida. Segue-se desse princípio que tirar uma vida é errado, seja qual for o
caso. Em seguida, poderíamos imaginar que posição tem essa pessoa acerca
do aborto. Se ela defender, por exemplo, que o aborto é permissível até às
vinte semanas, algo de errado parece passar-se.
Não se vê como pode esta posição ser compatível com o seu pacifismo.
Estes dois casos de inconsistência mostram que é importante imaginar o
que se segue das nossas crenças e princípios. Se não o fizermos, poderemos
julgar que temos certos princípios quando, afinal, isso não é assim tão
claro.

Atividades

1 Como é que as teorias filosóficas podem ser testadas?

2 Imaginar o que se segue das nossas crenças é importante. Explique porquê.

26 Unidade 1

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1.2.4   Complementaridade das atividades 
de argumentar, analisar e imaginar
As atividades de argumentar, analisar e imaginar são centrais se queremos
Raciocinar
fazer filosofia. Argumentar contém a exigência de raciocinar bem; analisar Argumentar
bem.
contém a exigência de pensar de modo rigoroso; e imaginar, a exigência de
testar criativamente conceitos e teorias. Mas estas atividades são complemen-
tares. Assim, precisamos muitas vezes de analisar conceitos que fazem parte Pensar de modo
Analisar
rigoroso.
de argumentos. Por exemplo, se argumentamos a favor da ideia de que uma
sociedade justa deve dar uma atenção especial aos menos favorecidos, preci-
samos de analisar o conceito de pessoa menos favorecida. E se, por sua vez, Testar criativamente
Imaginar
da análise do conceito de sociedade justa resultou que uma das suas condi- conceitos e teorias.
ções de aplicação é compensar devidamente os menos favorecidos, podemos Esquema 6 — Atividades centrais
ter de argumentar a favor dessa condição. da filosofia.

A atividade de imaginar também ajuda com frequência as outras duas. Para


avaliar a solidez de um argumento, pode ser decisivo testar uma das suas
premissas. Por exemplo, se um argumento tem como premissa que o desejo
que está na base de todos os outros é alcançar estados mentais de prazer,
precisamos de imaginar uma experiência mental que teste a sua correção.
Poderia ser, por exemplo, a experiência mental a que chamamos máquina de
experiências. Mas a atividade de imaginar pode precisar também que um
bom argumento venha em seu auxílio. Assim, a experiência mental do dilema
do prisioneiro sugere que a ação racional é aquela que se apoia num princí-
pio de cooperação. Caso um argumento persuasivo conclua que, além disso,
a cooperação é eleita por um processo de escolha imparcial, o dilema do
prisioneiro é fortalecido.
Esperamos que tenha agora uma ideia do que é a filosofia a partir deste pri-
meiro contacto com as suas ferramentas de trabalho. Inspiradas em Sócrates,
o filósofo ateniense que viveu no século v a. C., essas ferramentas formam o
ideal socrático. A exigência deste ideal é que cada um use por si mesmo essas
ferramentas. Por esta razão:

Texto 3

[…] Elas estimulam os estudantes a pensar por si mesmos, em vez de se submeterem à


tradição e à autoridade […] A aptidão para argumentar deste modo socrático é, como
Sócrates declarou, valiosa para a democracia.
O ideal socrático, todavia, está sob pressão intensa num mundo decidido a maximizar o
crescimento económico. A muitas pessoas, a aptidão para pensar e argumentar por si
mesmo parece dispensável, se o que queremos são resultados comercializáveis de natu-
reza quantificável.
Martha NussbauM, Not for Profit — Why Democracy Needs the Humanities.
Ed. Princeton University Press, 2010, cap. iv. Fig. 10 — Busto de Sócrates, filósofo grego
que viveu no século v a. C.

Do uso das ferramentas que formam o ideal socrático pode depender a qua-
lidade da sua vida. Todos estamos já na filosofia. Conscientes disso ou não,
todos temos já uma perspetiva do que é real e valioso e de como obtivemos
conhecimento do que é real e valioso. Essas nossas perspetivas filosóficas
influenciam as decisões que tomamos. Ora, se não as avaliarmos, fazendo
filosofia com as ferramentas de que dispomos, não saberemos até que ponto
elas são viáveis. E também não saberemos, por consequência, se as nossas
decisões são as mais acertadas. Este manual, por essa razão, é um convite
permanente a que faça filosofia.
Abordagem introdutória à filosofia e ao filosofar 27

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Ideias-chave

Abordagem introdutória à filosofia e ao filosofar


• A filosofia é sobretudo uma atividade, e não um corpo de • Um argumento válido é um argumento em que, se as pre-
conhecimentos. missas forem verdadeiras, é impossível que a conclusão seja
• O valor da filosofia consiste em desenvolver de modo edu- falsa.
cado a atividade de fazer filosofia. • Um argumento sólido é um argumento válido com premis-
• Os problemas da filosofia são naturais e familiares, não exi- sas verdadeiras.
gindo um treino especial para serem formulados. • Um argumento cogente é um argumento sólido com pre-
• Os problemas filosóficos surgem do espanto perante a natu- missas mais plausíveis do que a conclusão.
reza enigmática do mundo. • É importante detetar falácias porque estas são argumentos
• A filosofia começa no gesto natural de fazer perguntas dita- maus que podem parecer-nos bons.
das por esse momento de espanto. • Há dois tipos de falácias — formais e informais. As primeiras
• Os problemas da filosofia são ramificações de três problemas são erros na forma ou estrutura dos argumentos, e as segun-
fundamentais, que são os seguintes: Como devemos viver? das são erros no seu conteúdo.
O que existe? O que é o conhecimento? • A análise conceptual é a ferramenta mais importante da ati-
• Os problemas filosóficos existem porque da nossa experiên- vidade de analisar.
cia comum surgem crenças básicas que não podem ser • A análise conceptual é muito importante em filosofia, dado
ambas verdadeiras, mas que são igualmente plausíveis. que chegar à verdade acerca de um problema filosófico
• Os problemas da filosofia têm uma importante particulari- implica ter um conceito correto do que se investiga.
dade: surgem naturalmente da experiência comum, mas não • A análise conceptual responde à exigência de pensar de
podem ser resolvidos pela experiência. modo rigoroso.
• A informação factual é relevante, mas não decisiva, para se • A análise conceptual é a tentativa de estabelecer as frontei-
responder aos problemas filosóficos. ras precisas de um conceito, não alargando nem estreitando
• A melhor resposta a um problema filosófico é aquela que demasiado a sua aplicação.
tem a argumentação racional mais plausível a seu favor. • A análise conceptual resulta da necessidade de elucidar con-
• A argumentação racional é um raciocínio cuidadoso e infor- ceitos, uma vez que, sobre eles, há crenças inconsistentes
mado. geradas pela nossa experiência comum.

• As disciplinas fundamentais da filosofia são a metafísica, a • A atividade filosófica fornece explicações conceptuais e a
lógica, a epistemologia e a axiologia. atividade científica fornece explicações causais.

• As atividades centrais da prática filosófica são as atividades • A atividade de imaginar é importante na prática filosófica
de argumentar, analisar e imaginar. porque permite testar as teorias filosóficas.

• A prática filosófica não se apoia num método, mas num • A experiência mental é uma ferramenta central da atividade
repertório de ferramentas que não está previamente defi- de imaginar, pois sujeita as teorias filosóficas ao teste de situa-
nido. ções imaginárias, para averiguar se são verdadeiras.

• Em filosofia, dado que não há resultados garantidos por • As teorias filosóficas mais recentes resultam de modificações
métodos de aplicação mecânica, cada um tem de fazer o seu para responder ao teste da experiência mental.
próprio juízo sobre o problema. • A atividade de imaginar é igualmente útil para testar a con-
• A atividade de argumentar educada responde à exigência de sistência das nossas crenças.
raciocinar bem. • As atividades filosóficas de argumentar, analisar e imaginar
• Os argumentos podem ser válidos, sólidos e cogentes. são complementares, contribuindo para um resultado final
superior ao que conseguiriam isoladamente.

Para aprofundar conhecimentos

Leituras:
Almeida, Aires (org.) — Dicionário Escolar de Filosofia. Lisboa: Plátano Editora, 2.ª edição, 2009.
Kolack, Daniel e Martin, Raymond — Sabedoria sem Respostas: Uma Introdução Concisa à Filosofia. Lisboa: Temas e Debates,
2004 [ed. original 2002].
Nagel, Thomas — Que Quer Dizer Tudo Isto?: Uma Iniciação à Filosofia. Lisboa: Gradiva, 1995 [ed. original 1987].
Rachels, James — Os Problemas da Filosofia. Lisboa: Gradiva, 2009 [ed. original 2005].
Warburton, Nigel — Elementos Básicos de Filosofia. Lisboa: Gradiva, 1998 [ed. original 1995].

28 Unidade 1

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Esquema-síntese

Abordagem introdutória à filosofia e ao filosofar

Filosofia

investiga
Como devemos viver?

Três problemas
O que existe?
fundamentais

através de O que é o conhecimento?

Três atividades
complementares

Argumentar Analisar Imaginar

Permitem chegar
à verdade acerca
dos problemas
fundamentais.

Filmes:
Matrix (1999), realizado pelos irmãos Wachowsky.
Waking Life (2001), realizado por Richard Linklater.

Páginas da Internet:
http://criticanarede.com/fil_especificidade.html (artigo «A Especificidade da Filosofia», de Desidério Murcho).
http://criticanarede.com/logefil.html (artigo «Lógica e Filosofia», de Desidério Murcho).

Abordagem introdutória à filosofia e ao filosofar 29

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TESTE FormATIVo 1

CLASSIFIquE AS AFIrmAÇÕES SEGuINTES Como VErDADEIrAS ou FALSAS.

  1.  A filosofia é sobretudo um corpo de conhecimentos, e não uma atividade.

  2.  Formular problemas filosóficos exige um treino especial.

  3.  A
  s perguntas filosóficas resultam de uma atitude de espanto face à natureza enigmática
do mundo.

  4.  O gesto de pensar filosoficamente é natural.

  5.  C
  omeçamos a pensar filosoficamente quando temos respostas para certos problemas.

  6.  É possível imaginar uma existência humana que não faz perguntas filosóficas.

  7.  No sentido em que põem naturalmente certos problemas, os seres humanos estão
já na filosofia.

  8.  O
  s problemas filosóficos fundamentais são três e dizem respeito ao modo como devemos
viver, ao que existe e ao conhecimento.

  9.  A
  s disciplinas filosóficas fundamentais são as seguintes: axiologia, metafísica
e epistemologia.

 10.  A
  lógica é uma disciplina filosófica fundamental.

 11.  F
  azer filosofia envolve apenas duas atividades: a atividade de argumentar e a atividade
de analisar.

 12.  F
  azer filosofia envolve geralmente as atividades de argumentar, imaginar e analisar.

 13.  A
  s atividades que fazem parte da prática filosófica desenvolvem-se de modo autónomo.

 14.  E
  xiste, em filosofia, um método.

 15.  N
  a atividade filosófica não existe um método, mas um repertório de ferramentas que não
está previamente definido.

 16.  N
  a atividade filosófica existe um método de aplicação mecânica que garante certos
resultados, dispensando-nos de fazer o nosso próprio juízo sobre os problemas.

 17.  A
  s teorias filosóficas apoiam-se na experimentação.

 18.  U
  m argumento é formado por premissas e por uma conclusão.

 19.  A
  s premissas de um argumento formam a teoria que ele defende.

 20.  A
  s premissas de um argumento são as razões que sustentam uma teoria filosófica.

 21.  A
  conclusão de um argumento exprime a teoria defendida.

 22.  A
  s noções de validade e de solidez são as ferramentas da atividade de argumentar.

 23.  A
  noção de cogência e a deteção de falácias fazem parte das ferramentas da atividade
de argumentar.

 24.  P
  ara ser uma defesa racional de uma teoria, um argumento terá de ser válido, sólido
e cogente.

 25.  U
  m argumento válido é um argumento que tem premissas verdadeiras.

 26.  U
  m argumento válido é um argumento em que a conclusão se segue das premissas.

 27.  S
  e um argumento não for válido, não pode ser sólido.

30 Unidade 1

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 28.  U
  m argumento sólido é um argumento válido com premissas verdadeiras ou falsas.

 29.  U
  m argumento sólido, dado que tem premissas verdadeiras, é sempre plausível.

 30.  U
  m argumento cogente é um argumento sólido com premissas mais plausíveis do que
a conclusão.

 31.  U
  m argumento cogente pode não ser persuasivo.

 32.  P
  ara determinar se um argumento é cogente ou não, é preciso avaliar a plausibilidade
das premissas.

 33.  A
  plausibilidade das premissas é independente das pessoas.

 34.  U
  ma falácia é um argumento visivelmente mau.

 35.  U
  ma falácia é um argumento mau que pode parecer-nos bom.

 36.  U
  ma falácia formal é um erro lógico na estrutura do argumento.

 37.  Uma falácia informal é um erro lógico que depende do modo como o argumento está
construído.

 38.  A
  análise conceptual responde à exigência de pensar de modo rigoroso.

 39.  Analisar um conceito é decompô-lo nos seus conceitos mais complexos.

 40.  A
  análise conceptual tem a finalidade de estabelecer de forma precisa as fronteiras
dos conceitos.

 41.  U
  m conceito correto é um conceito corretamente analisado.

 42.  A
  análise conceptual é especialmente importante em filosofia porque os conceitos
investigados em filosofia, por serem fundamentais, têm fronteiras difíceis de definir.

 43.  A
  atividade filosófica fornece respostas causais.

44.  A
  atividade científica fornece respostas causais.

 45.  D
  uas importantes ferramentas da atividade filosófica de imaginar são as experiências mentais
e os testes de inconsistência.

 46.  A
  s experiências mentais são situações reais.

 47.  A
  s experiências mentais são situações imaginárias que testam a aplicação de conceitos
e teorias apenas nos casos reais.

 48.  A
  s experiências mentais são situações imaginárias que testam a aplicação de conceitos
e teorias em todos os casos concebíveis.

 49.  T
  estar inconsistências consiste em imaginar se temos crenças que podem ser verdadeiras
ao mesmo tempo.

 50.  T
  estar inconsistências consiste em imaginar se temos crenças que não podem ser verdadeiras
ao mesmo tempo.

F; 34. F; 35. V; 36. V; 37. F; 38. V; 39. F; 40. V; 41. V; 42. V; 43. F; 44. V; 45. V; 46. F; 47. F; 48. V; 49. F; 50. V.
1. F; 2. F; 3. V; 4. V; 5. F; 6. F; 7. V; 8. V; 9. F; 10. V; 11. F; 12. V; 13. F; 14. F; 15. V; 16. F; 17. F; 18. V; 19. F; 20. V; 21. V; 22. F; 23. V; 24. V; 25. F; 26. V; 27. V; 28. F; 29. F; 30. V; 31. F; 32. V; 33.
SOLUÇÕES:

Abordagem introdutória à filosofia e ao filosofar 31

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TEMA

II A AÇÃO HUMANA E OS VALORES

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365178 032-063 U2.indd 33 13/03/13 15:55
Unidade

2 A ação humana:
análise e compreensão do agir
2.1 A rede conceptual da ação
2.1.1 O que é uma ação?
2.1.2 Deliberação
2.1.3 Decisão racional

2.2 Determinismo e liberdade


2.2.1 Determinismo
2.2.2 Libertismo
2.2.3 Compatibilismo

Objetivos da unidade Conceitos fundamentais

No fim desta unidade, deverá ser capaz de responder Os conceitos seguintes, que são centrais nesta unidade,
às seguintes questões: são definidos no fim do livro:
O que é uma ação? ação deliberação
Que tipos de causalidade existem? agente desejo
Em que consistem a deliberação e a decisão racional? causalidade determinismo
Em que consiste o problema do livre-arbítrio? causalidade do agente incompatibilismo
Que respostas ao problema do livre-arbítrio são (ou intencional) intenção
apresentadas? causalidade natural libertismo
Que argumentos sustentam essas respostas? compatibilismo livre-arbítrio
Que objeções enfrentam esses argumentos? decisão racional motivo

Introdução

O que é uma ação? Haverá uma diferença relevante entre as ações e outras coisas que fazemos ou que simplesmente acontecem? E, se
há, qual é? Ações são acontecimentos. Como devemos explicá-las? Será a maneira como explicamos os acontecimentos naturais ade-
quada à explicação das ações? Possivelmente não, se houver uma diferença relevante entre acontecimentos que são ações e aconteci-
mentos que não são ações. A filosofia da ação procura resolver este problema.
Argumentos e explicações são coisas diferentes. Argumentar a favor de uma ação é uma tentativa de a justificar. Explicá-la é simplesmente
uma tentativa de compreender porque ocorreu. Saber qual é a explicação adequada das ações é um problema de que se ocupa a filoso-
fia da ação. É dele que trataremos em primeiro lugar.
Em seguida, um outro problema merecerá a nossa atenção — o de saber se há ações livres e se somos, na verdade, livres. Na maior parte
do tempo, acreditamos que sim, mas acreditamos também que tudo tem uma causa. Ora, estas duas crenças parecem inconsistentes: não
parece possível que ambas sejam verdadeiras. Isto porque se tudo tem uma causa, também as ações que acreditamos serem livres têm
uma causa; e, nesse caso, essas ações não são livres; mas, por outro lado, se há ações livres, então não pode ser verdade que tudo tem uma
causa. Em que ficamos então?

34 Unidade 2

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Estímulo

A história que irá ler pretende testar:


• as intuições morais acerca da reabilitação e da retribuição na justiça;
• se a prioridade dada à reabilitação é mais plausível do que a prioridade dada à retribuição;
• se estas prioridades pressupõem ideias diferentes acerca da nossa capacidade de agir livremente.

Um criminoso com sentido de justiça


Seria a segunda e última tentativa. Era insuportável Mary respondeu em tom firme:
a ideia de ter mais um encontro com um ser humano
— Está enganado. Eu represento essa sociedade que
assim. Deep Billy era, de facto, um ser humano horrível.
ainda acredita em si. Queremos que se reabilite.
A quantidade de pessoas que torturou e assassinou
Outras pessoas foram capazes de ganhar de novo o
impressionava. Mary White sempre acreditou na bonda-
respeito da sociedade.
de de qualquer pessoa. Dizia que mesmo a pessoa mais
horrível é capaz de recuperar a dignidade. Mas Deep era Deep, mais uma vez, cortou:
o seu caso mais difícil. Bastou um primeiro encontro — A sociedade quer que eu me reabilite? Não me ve-
para perceber por que razão ninguém estava na disposi- nha com essa conversa. Mesmo que a sociedade queira
ção de o defender. Tinha poucas esperanças, isto apesar que eu me reabilite, eu não quero arrepender-me.
de ser uma religiosa que pertencia a uma ordem que se
distinguia por ajudar os piores criminosos, aqueles que — Esqueça o arrependimento. Não lhe pedimos isso.
habitualmente todos os advogados rejeitavam. Só lhe pedimos que queira reabilitar-se — disse Mary.
Mary atravessou um corredor que nunca mais acabava — Isso é realmente estranho. Porque haveria a socieda-
até chegar à zona de alta segurança da prisão. Disse ao de de querer que eu me reabilite? Pense bem: sempre
guarda prisional que, desta vez, queria falar com Deep fui inimigo da sociedade; e a sociedade sempre me res-
sem qualquer barreira a separá-los. O seu objetivo era pondeu na mesma moeda. Nada mais certo — declarou
convencê-lo a aceitar a sua ajuda. Queria contestar Deep.
em tribunal a sentença de pena de morte a que tinha
sido condenado. Deep chegou com ar duro e contra-
feito. Sentou-se e não disse palavra. Mary cumpri-
mentou-o e perguntou-lhe:
— Continua a não querer que eu conteste a pena
a que foi condenado?
— Não me diga que, mais uma vez, veio cá perder
o seu tempo! — disse Deep com sarcasmo.
— Não estou a perder o meu tempo. Acredito que
é capaz de se reabilitar. Preciso que também acredite
em mim. Um dia poderá ser um cidadão responsável
e feliz. É isso que a sociedade espera de si — respon-
deu Mary com confiança.
— A sociedade nada tem a esperar de mim; e eu nada
tenho a esperar dela. Vivemos sempre de costas volta-
das — afirmou Deep.
Fig. 1 — Crânios de criminosos.
— Mas agora a sociedade quer ajudá-lo.
Será que existem criminosos natos? Cesare Lombroso (1836-
— Agora, que matei alguns dos seus membros? Está -1909), um médico criminalista, acreditava que sim, tendo
a brincar comigo? A sociedade nada quer de mim realizado investigações para identificar sinais de delinquência
em crânios de criminosos que justificassem os seus atos.
e tem todas as razões para isso — cortou Deep.

A ação humana: análise e compreensão do agir 35

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Mary continuou: infelizmente para Mary, as suas palavras mantiveram-
-se duras:
— Pensa então que a pena de morte é um castigo
justo para o que fez? — Continua errada. Vê as coisas de uma maneira su-
perficial. As pessoas normais são aquelas que esco-
— Justíssimo — respondeu Deep.
lhem o que fazem. Comigo foi sempre assim. Escolhi
— E se a sociedade pensar que, apesar de tudo, ainda matar uma data de pessoas. Sou responsável por isso.
pode ser útil? — perguntou Mary. E agora quero que me tratem como alguém que é res-
— Mas eu não quero ser útil para ninguém. Isso seria ponsável pelo que fez. Por isso, condenar-me à morte
deixar que me tratassem como uma coisa que apenas é a única retribuição justa. Só assim morrerei com
existe para servir os interesses da sociedade. Quero dignidade.
que me tratem como uma pessoa. É por isso que a Deep era frio como metal. Mary tinha uma longa ex-
única maneira de me respeitarem é condenarem-me à periência de apoio a condenados à morte, mas Deep
morte. era realmente um caso único. Nunca vira um crimi-
Mary começava a ver inteligência em Deep. As suas noso da pior espécie defender tão bem a sua própria
ideias batiam certo. Tudo parecia estar arrumado na- condenação à morte.
quela cabeça. Mas esta era mais uma razão para não Mary espreitou pela janela da sala onde estavam. Ao
desistir de o convencer. Por isso insistiu: longe, via-se uma montanha. Teve vontade de sair da-
— Está errado em dizer que queremos tratá-lo como li. Pouco mais haveria para dizer. Ainda assim não
uma coisa. É justamente o contrário. É porque o ve- deixou de afirmar aquilo que pensava:
mos como alguém capaz de se reabilitar que o esta- — Sou completamente contra a pena de morte. Fique
mos a tratar com dignidade. Como uma verdadeira sabendo que não me fez mudar de ideias. Continuarei
pessoa. Não lhe parece? a apoiar pessoas na sua situação. Numa sociedade em
— Não. Está completamente errada. Eu não preciso que não há pena de morte, as pessoas estão menos
de me reabilitar. Não quero que me tratem como um dispostas a aceitar a violência. Pessoas como você es-
doente ou uma personalidade perturbada. Sou uma tariam menos dispostas a aceitar a violência que co-
pessoa normal. Percebeu bem? Uma pessoa normal. metem.
Tão simples quanto isso. — Será? — perguntou Deep, que logo de seguida
Mary arriscou: se levantou. Antes de virar costas, ainda disse: —
Discordamos um do outro; mas não pense que não
— As pessoas normais não cometem crimes horríveis. admiro o seu trabalho.
Ainda por cima sem se arrependerem. Deep sorriu-
-lhe. Pela primeira vez o seu rosto parecia suave. Mas, Mary sorriu. Deep parecia agora mais humano.

Guião de leitura

1 Formule o problema que Mary e Deep debatem.

2 Identifique as posições de cada um sobre o problema debatido.

3 Apresente a razão pela qual Deep defende a sua condenação à morte e a razão pela qual Mary defende a sua reabilitação.

4 Refira e justifique se é a posição de Mary ou a de Deep que apoia mais a ideia de que temos a capacidade de agir livremente.

Fazer filosofia

1 Debata com toda a turma o seguinte problema: Qual é a resposta mais justa ao crime e, em geral, às violações dos direitos
básicos das pessoas?

2 Se defende que a pena de morte é a retribuição justa para certos casos, justifique a sua posição e identifique esses casos.

36 Unidade 2

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2.1 A rede conceptual da ação

2.1.1  O que é uma ação?
Saber o que é uma ação é um problema conceptual. Podemos
observar pessoas a agir, mas a observação, por si só, não nos permite
distinguir as ações de outras coisas que podem parecer ações,
mas não o são. Para isso, precisamos de uma definição explícita
correta de ação.
Temos uma definição explícita correta de triângulo, por exemplo,
se somos capazes de dizer não só quais são as propriedades que
todos os triângulos têm, mas também quais são as propriedades
que só os triângulos têm; ou, simplificadamente, quais são as
condições necessárias e suficientes para algo ser um triângulo.
Analogamente, teremos uma definição explícita correta de ação se
formos capazes de dizer quais são as propriedades que todas
as ações têm e só as ações têm; isto é, as condições necessárias
e suficientes para algo ser uma ação. Fig. 2 — Acidente (Autorretrato) (1936),
de A. Ponce de León.
Imagine que a pessoa sentada a seu lado, no cinema, está a tossir
Ter um ataque de tosse é, tal como sofrer um acidente,
de maneira aparentemente irreprimível. A situação é desconfor- algo que nos acontece; por outro lado, simular um ataque
tável. Mas há uma diferença significativa entre a pessoa a quem de tosse ou provocar um acidente são coisas que fazemos.
sucede ter um ataque de tosse e a pessoa que simula ter um ataque
de tosse: no primeiro caso, algo simplesmente acontece, e não parece que
haja muito a fazer acerca disso; o segundo caso, porém, envolve claramente
algum propósito ou intenção. Não parece plausível que uma simulação
simplesmente aconteça. Imagine agora que sabe que a pessoa sentada a seu
lado quer tossir de maneira irreprimível. É provável que deseje saber por que
razão essa pessoa o faz. Haverá certamente uma razão para isso. Tossir de
maneira irreprimível simplesmente porque se quer, sem uma razão para o fazer,
seria uma expressão de irracionalidade.
Uma boa razão para distinguir as ações de outras coisas que não são ações,
embora possam parecê-lo, é a necessidade que temos de explicar por que
motivo fazemos certas coisas querendo fazê-las. Gostamos de acreditar
que somos racionais. Se somos racionais, então deveremos ter a possibili-
dade de agir por razões e de apresentar as razões que nos levam a agir, se
for o caso; se não formos capazes de fazer uma coisa ou outra, então a
crença na nossa racionalidade enfraquecerá consideravelmente. Além disso,
a crença na nossa racionalidade sustenta a crença de que somos livres:
dado que pensamos, deliberamos, ponderamos consequências, escolhemos
agir ou não agir em função de razões, etc., temos tendência a acreditar que
somos livres. Se escolhemos fazer algo livremente, então o que quer
que façamos não teria acontecido se não tivéssemos querido fazê-lo; logo,
dizemos, somos responsáveis por aquilo que fazemos querendo fazê-lo.
No entanto, nem sempre as coisas são assim tão simples: por vezes, parece-nos
que não poderíamos ter feito algo diferente do que fizemos, dadas as
circunstâncias. Quando refletimos sobre o que fazer, quando deliberamos,
pesando razões a favor e contra uma certa ação, parece-nos que a decisão
acerca do que fazer está sob o nosso controlo; que podemos agir de uma
maneira ou de outra, conforme quisermos, mas quando pensamos retros-
petivamente, quando regressamos mentalmente às nossas ações e aos con-
textos em que ocorreram, parece-nos, por vezes, que não poderíamos ter
agido de maneira diferente: fizemos o que tínhamos de fazer.

A ação humana: análise e compreensão do agir 37

365178 032-063 U2.indd 37 13/03/13 15:55


Não será possível, pois, que a crença na nossa liberdade seja ilusória? Não
poderá suceder que as nossas decisões, que nos parecem livres, não sejam
afinal livres, e sejam causadas por circunstâncias que não escolhemos e que
não controlamos? E, se assim for, ainda teremos razões para acreditar
que somos responsáveis pelas nossas ações? Se compreendermos o que são
ações e como as explicamos, poderemos tentar dar uma resposta a estas
questões.
Quando procuramos explicar as nossas ações, invocamos desejos, motivos,
crenças, intenções, etc. Conceitos como os de desejo, motivo, crença,
intenção e outros semelhantes ajudam-nos a explicar as ações. Por isso,
falamos, a propósito, de «rede conceptual da ação». No entanto, antes de
nos ocuparmos da explicação das ações, devemos procurar apresentar uma
definição explícita correta de ação.

Definição explícita correta de ação (primeira versão):


Uma ação é um acontecimento.

No entanto, nem todos os acontecimentos são ações. Uma trovoada, por


exemplo, é um acontecimento, mas não é uma ação, porque não envolve
um agente.
Uma condição necessária para um acontecimento ser uma ação é envolver
um agente: o agente é o sujeito da ação.

Definição explícita correta de ação (segunda versão):


Uma ação é um acontecimento que envolve um agente.

No entanto, nem todos os acontecimentos que envolvem um agente são


ações.
Há um conjunto de acontecimentos que permanentemente ocorrem no
nosso corpo: fenómenos físicos, químicos, biológicos, etc. Ora, dado que
nós somos agentes, esses acontecimentos envolvem um agente; mas não
são ações, porque nós não estamos a realizá-los intencionalmente. O cora-
ção bate, o ADN replica-se, os cabelos crescem, etc.; mas nada disso acon-
tece porque tenhamos a intenção que aconteça, embora possamos desejar
que aconteça: essas coisas acontecem independentemente da nossa inten-
ção.
Outra condição necessária para um acontecimento ser uma ação é, por-
tanto, ser intencional.

Definição explícita correta de ação (terceira versão):


Uma ação é um acontecimento intencionalmente realizado por
um agente.

A diferença significativa entre a bola que toca na mão e a mão que toca na
bola é a intencionalidade. A bola não é um agente; e, portanto, não pode
tocar na mão — nem fazer seja o que for — intencionalmente. Logo, a bola
que toca na mão é um acontecimento, mas não é uma ação. Mas a mão que
toca na bola pode ser uma ação, desde que seja intencionalmente realizada
por um agente.

38 Unidade 2

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Na intencionalidade estão envolvidos desejos e crenças.
Qualquer pessoa pode mover a mão para tocar a bola por-
que quer, e também porque acredita que mover a mão
é uma maneira eficaz de tocar a bola. Pode igualmente
querer que o seu coração bata, por exemplo, e acreditar
que é bom que o faça; mas os seus desejos e crenças nada
implicam para a sua atividade cardíaca. Logo, nem todos
os acontecimentos intencionais são ações.
Outra condição necessária para um acontecimento
ser uma ação é a causalidade: deve haver uma ligação
causal adequada entre a intenção do agente e o que
acontece. A pirueta executada por uma ginasta é uma
ação se o movimento foi causado intencionalmente;
se aconteceu por acaso ou foi causado pela força da Fig. 3 — Intenção (1938), de Paul Klee.
gravidade exclusivamente, não é uma ação, ainda que o A diferença significativa entre a bola que
movimento seja o mesmo. toca na mão e a mão que toca na bola
é a intencionalidade. A intencionalidade
é, também, uma condição necessária
Definição explícita correta de ação (quarta versão): para que um acontecimento possa ser
considerado uma ação.
Uma ação é um acontecimento intencionalmente causado por
um agente.

É esta a definição de ação apresentada no texto seguinte:

Texto 1

Uma ação intencional é aquela que uma pessoa pratica e pretende Mas estes não são acontecimentos que eu leve a cabo intencional-
praticar — como quando desço para o andar de baixo ou digo algo mente. Limitam-se a acontecer — posso nem sequer saber da sua
que pretendo dizer. Uma ação básica é aquela que a pessoa faz direta existência.) […]
e intencionalmente, sem levar a cabo nenhuma outra ação intencio-
Só posso produzir efeitos no mundo fora do meu corpo fazendo
nal. Ir de Oxford para Londres é uma ação não básica, porque a levo
algo de intencional com o meu corpo. […] Quando realizo uma ação
a cabo fazendo outras coisas — indo até à estação, entrando no
intencional qualquer, procuro com ela atingir um certo propósito
comboio, etc. —, mas apertar a minha mão ou mexer a minha perna
— normalmente um propósito para além da mera realização da pró-
ou mesmo dizer «isto» são ações básicas. Faço-as diretamente, sem
pria ação (como quando canto só por cantar).
levar a cabo outro ato intencional. (Com certeza que certos aconte-
cimentos têm de ocorrer no meu corpo — os meus sentidos têm de RichaRd SwinbuRne, Será Que Deus Existe? Lisboa:
transmitir impulsos — para que eu consiga realizar uma ação básica. Gradiva, 1998 [ed. original 1996], pp. 12-13.

A definição de ação a que chegámos recorre à noção de causalidade. Por


isso, precisamos agora de esclarecer essa noção.

A ideia de causalidade
Explicar uma ação é dizer por que razão aconteceu; e a razão por que uma
certa ação aconteceu é a intenção — os desejos e as crenças relevantes —
do agente. A maneira adequada de descrever uma ação é a que exprime
a ligação causal entre o acontecimento e a intenção do agente. Mas o que
queremos dizer exatamente com «ligação causal»?
Acreditamos habitualmente que qualquer acontecimento tem uma causa.
Acreditamos, por exemplo, que a queda dos corpos é causada pela gravi-
dade: a gravidade é a causa, a queda do corpo é o efeito. Sempre que
a causa atua, o efeito acontece. Pensamos, por isso, que há uma relação
de um certo tipo entre a gravidade e a queda dos corpos. A esse tipo de
relação chamamos «ligação causal».
A ação humana: análise e compreensão do agir 39

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Claro que não há, no Universo, um conjunto de acontecimentos que são
causas e outros que são efeitos: qualquer acontecimento é efeito de uma
causa e pode ser, por sua vez, a causa de outro. A gravidade, acreditamos
habitualmente, causa a queda do vaso; a queda do vaso causa a sua destrui-
ção; a destruição do vaso pode causar outro acontecimento qualquer, e
assim sucessivamente. Assim, os acontecimentos ligam-se, por vezes, em
cadeias causais mais ou menos longas.

Ação
Causalidade natural e causalidade do agente
Falamos de causalidade quando procuramos explicar uma ação; também
falamos de causalidade quando queremos explicar um acontecimento natu-
envolve
ral. Uma carícia e uma trovoada são causadas: a primeira por um agente; a
segunda por acontecimentos anteriores e pelas leis da natureza. Mas serão
Agente
causadas da mesma maneira? Ou estaremos, em casos diferentes, a usar a
mesma palavra para referir coisas diferentes? Deveremos distinguir a cau-
Intencionalidade
salidade natural da causalidade do agente, ou será a mesma coisa?

Causalidade O texto seguinte dá uma resposta a estas questões.


do agente
Esquema 1 — Condições necessárias para Texto 2
um acontecimento ser uma ação.
Temos conhecimento de dois tipos de explicações de acontecimentos, duas maneiras
diferentes de os objetos causarem acontecimentos. Há a causalidade inanimada e a cau-
salidade intencional. Quando a dinamite produz uma explosão particular, fá-lo porque
tem, como uma das suas propriedades, o poder e a possibilidade de exercer esse poder
sob certas condições — quando é inflamada à temperatura e pressão adequadas. A dina-
mite tem de dar origem a uma explosão sob essas condições; não tem opção e não há
nada de deliberado nisso. Mas suponha o leitor que a dinamite se inflamou porque um
terrorista lhe pegou fogo. O terrorista pegou fogo à dinamite porque tinha o poder de o
fazer, acreditava que fazê-lo iria causar uma explosão e tinha o propósito de causar uma
explosão. Escolheu incendiar a dinamite; poderia ter agido de outra maneira. Aqui temos
dois tipos de explicação. A primeira, em termos de poderes e possibilidades, é uma expli-
cação inanimada. A segunda, em termos de poderes, crenças e propósitos, é intencional
ou […] pessoal. Fenómenos diferentes explicam-se de maneiras diferentes: certos acon-
tecimentos são causados intencionalmente por pessoas […] e certos acontecimentos
são causados por coisas inanimadas.
RichaRd SwinbuRne, Será Que Deus Existe? Lisboa: Gradiva, 1998 [ed. original 1996], p. 30.

A explicação sugerida para as ações está de acordo com as nossas intuições.


Na verdade, acreditamos habitualmente que as ações são causadas por esta-
dos do cérebro. Erguemos a mão porque algo ocorreu no nosso cérebro:
a causa da nossa ação terá sido um certo estado do nosso cérebro. Parece,
portanto, que uma ação como erguer a mão pode ser razoavelmente expli-
cada em termos de estado do cérebro. Não poderão, sendo assim, todas as
ações ser razoavelmente explicadas da mesma maneira?
Mas imagine agora que o seu colega ergue a mão, durante a aula. Intrigado,
o leitor pergunta:
— Porque ergueste a mão?
E ele responde:
— Porque, algures no meu cérebro, uma cadeia de neurónios funcionou de
uma certa maneira.

40 Unidade 2

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A explicação oferecida não é adequada, ainda que por vezes seja defendida
como a explicação adequada das ações. Vejamos em que consiste e a que
objeção está sujeita.

Texto 3

Alguns pensadores afirmaram que as pessoas e os seus propósitos não fazem diferença
nenhuma: os acontecimentos cerebrais causam (e são causados por) outros aconteci-
mentos nervosos e produzem movimentos corporais sem que as pessoas e os seus pro-
pósitos façam qualquer diferença. Mas ninguém consegue pensar consistentemente
desta maneira. Ter o propósito […] de mexer a própria mão ou qualquer outra coisa
implica tentar mexer a mão. E nós sabemos muito bem que se deixássemos de ter pro-
pósitos e de tentar executá-los, nada aconteceria; deixaríamos de comer, de falar, de
escrever e de andar como agora acontece. O que tentamos alcançar desempenha um
papel determinante relativamente ao que acontece.
RichaRd SwinbuRne, Será Que Deus Existe? Lisboa: Gradiva, 1998 [ed. original 1996], p. 31.

Um mundo em que as intenções e propósitos não fizessem qualquer dife-


rença quando se trata de explicar as ações pareceria estranhamente distante
do nosso. Ter intenções e propósitos implica, pelo menos, a tentativa de
que alguma coisa aconteça. E, se as ações acontecem, essas tentativas foram
bem-sucedidas. É inconsistente aceitar que há ações e defender que para
elas acontecerem as intenções e propósitos são irrelevantes.
Claro que o gesto de erguer a mão pode ser involuntário: algo que uma
pessoa faz não querendo fazê-lo. Mas pode ser um acontecimento intencio-
nal: algo que uma pessoa faz querendo fazê-lo. Em ambos os casos, terá
sido produzido por um certo estado do cérebro. No primeiro caso, porém,
não parece apropriado falar de ação, isto porque a intencionalidade está
ausente; logo, no primeiro caso, não estão reunidas todas as condições
necessárias para haver uma ação. Só o segundo pode ser considerado um
caso genuíno de ação.
Se não tivéssemos intenções, não agiríamos; e se não agíssemos, não have-
ria ações para explicar. Parece, portanto, que explicar adequadamente uma
ação é apresentar a intenção que a terá causado. Se isto é verdade, então
aquilo que temos em mente quando pensamos na explicação de uma ação
é uma coisa diferente daquilo que temos em mente quando pensamos na
explicação de um acontecimento natural. Assim, apesar de acreditarmos
que tanto as ações como os acontecimentos naturais têm uma causa, parece
fazer sentido distinguir a causalidade natural da causalidade do agente.

Atividades

1 Todas as ações são acontecimentos, mas nem todos os acontecimentos são ações. Porquê?

2 Esclareça a ideia de intencionalidade.

3 Defina ação identificando as suas condições necessárias e suficientes.

4 Distinga a causalidade natural da causalidade do agente.

5 Que consequência teria explicar as ações recorrendo simplesmente a acontecimentos cerebrais?

A ação humana: análise e compreensão do agir 41

365178 032-063 U2.indd 41 13/03/13 15:55


Deliberação 2.1.2  Deliberação
Frequentemente, quando procuramos decidir o que fazer, deliberamos.
pondera Todos temos experiência deste tipo de situação: temos, de um lado, razões
para fazer A e, do outro, razões para não fazer A, ou para fazer B.
Razões técnicas Podemos ter razões de tipos diferentes para agir desta ou daquela maneira.
São essas razões que influenciam a escolha das ações. Mas nem sempre é
Razões prudenciais fácil escolher a ação apropriada. De facto, por vezes as razões são comple-
xas, de tipos diferentes e pesam a favor de ações contrárias. Não há um
Razões morais método para determinar qual delas tem mais peso nos diversos casos. Na
Esquema 2 — Deliberação.
falta de um método, temos então de pensar arduamente antes de agir. Ao
pensamento que considera e avalia razões práticas chamamos deliberação.
Quando resulta deste tipo de pensamento, uma ação é realizada delibera-
damente.
Geralmente, o processo de deliberação atende a três tipos de razões: técni-
cas, prudenciais e morais.

Razões técnicas
As razões acerca da maneira mais eficiente de fazer alguma coisa são razões
técnicas. Os nossos projetos e tarefas quotidianas levantam questões técnicas.
Quando cozinhamos, por exemplo, procuramos a melhor maneira de fritar
batatas ou grelhar carapaus; se praticamos futebol, procuramos a maneira
mais eficiente de jogar no meio campo. Temos, então, razões técnicas para
cozinhar e jogar futebol de certas maneiras. Estas razões são moralmente
neutras; logo, não é por termos uma razão técnica para cozinhar e jogar
futebol de certas maneiras que estas atividades particulares estão certas ou
erradas. Do mesmo modo, o assassino incapaz de ponderar acerca do bem
e do mal — o assassino amoral — não deixará de pesar razões técnicas para
os seus atos.

Razões prudenciais
O mesmo assassino também não deixará de pesar razões prudenciais, pois
é de admitir que considere se certos atos satisfazem o seu próprio interesse,
ou o seu bem-estar, a longo prazo. Um ato prudente é, então, aquele que
se prevê ter consequências futuras interessantes para o agente. Requer, por
isso, que este tenha a capacidade de projetar as consequências futuras dos
atos e de ser por elas motivado. Pessoas razoavelmente prudentes têm esta
capacidade mais educada do que pessoas pouco prudentes. Isto explica em
parte que umas procurem satisfazer desejos momentâneos a que outras se
opõem por razões de prudência. É o caso do estudante aplicado que
modera as suas saídas noturnas para obter vantagens cognitivas de longo
prazo.
As razões prudenciais são distintas das razões morais. Todavia, pesar cuida-
dosamente razões prudenciais conduz em muitos casos a um comportamento
Fig. 4 — Alegoria da Prudência (1565),
que é correto do ponto de vista moral. Isso implica que comportamentos
de Ticiano.
incorretos do ponto de vista moral geralmente sejam também imprudentes.
As razões prudenciais visam o nosso interesse
próprio, ou o nosso bem-estar, a longo prazo.
Há por isso quem veja no interesse próprio esclarecido um importante prin-
Um ato prudente é, então, aquele que se cípio moral. Dado que é esclarecido, este interesse próprio não é estreito e
prevê ter consequências futuras interessantes egoísta, consistindo antes na consideração dos interesses de todos os que são
para o agente. afetados pelas nossas escolhas. Esta é uma consideração tipicamente moral.
Logo, o interesse próprio esclarecido serve-se inteligentemente de razões
morais. E, de facto, não é prudente ser apenas prudente.

42 Unidade 2

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Razões morais
Há razões morais que contrariam ações eficientes e prudentes. Por razões
prudenciais, o estudante aplicado modera as suas saídas noturnas. Se ocor-
rerem circunstâncias em que, pela mesma razão prudencial, se abstém de
socorrer um amigo que se encontra doente e a precisar da sua ajuda, parece
razoável concluir que o seu comportamento é incorreto do ponto de vista
moral. Como tantos outros, este é um caso em que razões morais e razões
prudenciais recomendam ações diferentes e incompatíveis. As nossas intui-
ções morais comuns apoiam a alternativa de ajudar o amigo doente. Além
disso, as considerações morais são intuitivamente reconhecidas como priori-
tárias em relação ao interesse próprio esclarecido. É por isso que atos como
matar ou agredir, ainda que as suas vantagens de longo prazo sejam grandes,
estão à partida excluídos do processo de deliberação por razões morais.
Muitos casos, todavia, não são óbvios e não é claro que ação é moralmente
certa ou que ação é mais plausível do ponto de vista moral. A ponderação
cuidadosa desses casos enfrenta conflitos, que podem ser de dois tipos:
aqueles em que há disputa entre razões morais e razões prudenciais e aque-
les em que há disputa entre diferentes razões morais. Este último tipo de
conflito faz da deliberação um processo especialmente duro — tão duro
que talvez não seja possível eliminar os conflitos entre razões morais e
tomar uma decisão que inspire confiança. Vejamos um desses casos.

Caso 1

Um médico vê-se na necessidade de deliberar cuidadosamente para decidir qual dos


três doentes seguintes deve tratar. Os três são casos urgentes da mesma doença, que
tem neles sintomas e efeitos muito semelhantes. O tratamento a aplicar será igual-
mente bem-sucedido em cada um dos casos. A é um seu paciente de longa data;
B foi-lhe enviado por um colega; C é um estrangeiro que participa numa conferência
de matemáticos, na qual participam também A e B. O médico sabe que B tem tido
uma vida desafortunada e sofre de outros problemas sérios de saúde; que C tem um
outro problema de saúde menos sério e que A tem apenas este. E sabe ainda que C
promete ter uma carreira brilhante num ramo da matemática pura, se curado desta
doença, enquanto A é menos talentoso e B ainda menos.
O médico considera que há três tipos de razões morais aplicáveis neste caso: razões
de igualdade, de excelência e de direito. Cada uma destas razões ordena as alternati-
vas do seguinte modo:
• Igualdade: B, C, A • Excelência: C, A, B • Direito: A, B, C

O conflito entre razões morais é evidente. Como se desenvolve a partir


daqui o processo de deliberação? Até agora ordenámos as alternativas a
partir de cada razão moral tomada isoladamente. A partir daqui teríamos
de ordenar as alternativas ponderando qual a melhor relação entre estas
razões morais no caso em apreço. Trata-se de pesar e contrabalançar razões.
Nada disto é fácil e não há um método estabelecido que liberte cada um da
dificuldade de pensar pela própria cabeça, discernindo uma solução satis-
fatória. Pode não ser possível chegar a uma decisão que resolva, ou atenue,
o conflito entre razões morais. Isso não implica tomar uma decisão errada.
O que é errado, isso sim, é pressupor que os conflitos morais são sempre
elimináveis. Mas uma coisa é decidir por uma das razões em conflito sem
ponderação; outra é decidir por uma das razões em conflito depois de um
processo de deliberação cuidadoso. Nisso reside toda a diferença entre
um deliberador sofisticado e um moralista dogmático.
A ação humana: análise e compreensão do agir 43

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2.1.3  Decisão racional
Uma decisão é racional se resulta de um processo de deliberação cuida-
doso. De modo algum isso quer dizer que estamos seguros de que é
correta. Podemos ter dúvidas de que é a decisão tecnicamente correta, ou
de que é a decisão prudencialmente correta, ou de ambas as coisas.
Frequentemente, temos ainda mais dúvidas de que é a decisão moralmente
correta. Fugir às perplexidades naturais de quem enfrenta decisões difíceis
é que não seria racional. Mas não faltam situações mais afortunadas em que
estamos seguros da correção técnica, prudencial e moral da decisão tomada.
Talvez não fosse possível viver de outro modo. E também estamos seguros
de que, para ser racional, uma decisão terá de atender às razões técnicas,
prudenciais e morais do caso, não evitando as dificuldades consideráveis
que estas últimas levantam. É errado pretender que uma decisão é racional
apenas porque satisfaz inteligentemente o interesse próprio de longo prazo.
Decidir racionalmente envolve sabedoria moral.
O interesse próprio inteligente não é o único perigo que pode comprome-
ter a racionalidade das nossas decisões. Precisamos de estar atentos ao
perigo, sem dúvida mais subtil e difícil de evitar, que resulta da confusão
entre decisão racional e racionalização dos nossos interesses. O caso
seguinte mostra como uma simples racionalização pode mascarar-se de
decisão ponderada e racional.

Caso 2

O Pedro é o administrador de uma multinacional que, entre outros interesses, se dedica


ao negócio da madeira. Podemos dizer que é um empresário bem-sucedido. Mas o
Pedro gosta, acima de tudo, de se ver como alguém com preocupações éticas. Motiva-o
neste momento o projeto de explorar as potencialidades comerciais da madeira de
uma vasta zona de floresta. Sucede, no entanto, que é preciso desalojar os povos indí-
genas que sempre aí viveram e cujo modo de vida protege a biodiversidade da zona.
O Pedro foi informado de que os chefes indígenas aceitam subornos e que o trabalho
de crianças é tolerado. Por isso, dispõe-se a pagar subornos e a empregar crianças. São
várias as razões para fazer o que, aparentemente, a sua consciência proíbe. Assim,
o suborno e o trabalho infantil são práticas aceites nas culturas locais. Além disso, as
comunidades desalojadas terão uma compensação financeira, será criado um santuá-
rio natural perto da zona e o governo concedeu à empresa uma ordem legal de expro-
priação. De cada vez que o Pedro percorre mentalmente estas razões, a sua consciência
fica apaziguada.

Este caso revela que as razões que convencem o Pedro não passam, afinal,
de racionalizações. Elas são o pretexto fácil para dar uma aparência de
moralidade à simples satisfação do interesse próprio. Não formam, por-
tanto, uma justificação racional da sua decisão. Ora, uma decisão racional
não pode ceder a racionalizações disfarçadas de razões.

Atividades

1 Descreva um processo de deliberação em que apresente as razões de diferentes tipos que justificam uma dada decisão.

2 Apresente um caso em que as razões prudenciais suplantam as razões morais.

3 Descreva um caso de conflito entre razões morais que parece não poder ser resolvido.

44 Unidade 2

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2.2 Determinismo e liberdade
Será o livre-arbítrio compatível com o determinismo?
Acreditamos, na maior parte do tempo, que tudo o que acontece tem uma
causa. Esta é a posição determinista. Mas, na maior parte do tempo,
acreditamos também que somos livres; isto é, que temos livre-arbítrio.
Estas duas crenças — a crença de que tudo o que acontece tem uma causa
e a crença de que temos livre-arbítrio — parecem inconsistentes: se tudo o
que acontece tem uma causa, então também as ações que acreditamos
serem livres têm uma causa. Se é assim, como é possível que sejam ações
livres? A aparente inconsistência entre estas duas crenças coloca-nos em
dificuldades.
Sabemos, por exemplo, que John Wilkes Booth assassinou Lincoln. Acre-
ditamos que Booth poderia não o ter feito: fê-lo porque quis; se não tivesse
querido fazê-lo, não o teria feito. Ao ter assassinado Lincoln, Booth agiu,
portanto, livremente. Foi, porém, o dedo de Booth que premiu o gatilho da
arma que disparou a bala fatal. Ora, o gesto de premir o gatilho não acon-
teceu por acaso: algo o causou. Se procurarmos a causa do gesto de premir
o gatilho de uma arma, encontraremos um acontecimento anterior: uma
certa atividade muscular, por exemplo; essa atividade muscular foi, por sua
vez, causada por outro acontecimento qualquer, e assim sucessivamente
até um momento indeterminado no passado. Parece, portanto, que o gesto
de premir o gatilho da arma foi causado por uma cadeia de acontecimentos
que terá tido início muito antes de Booth ter nascido. Ainda poderemos
acreditar que Booth agiu livremente? Se Booth agiu livremente, então deve
ser responsabilizado pelo que fez: assassinou Lincoln, e assassinar Lincoln
é, sob todos os aspetos, uma ação condenável. Logo, Booth deve ser con-
denado.
Porém, se ter assassinado Lincoln é um acontecimento causado por uma
série de eventos que remonta a uma época em que Booth ainda não tinha
nascido, como é possível assumir que o fez livremente? Se é o caso, então
Booth não foi livre de ter assassinado Lincoln: não poderia ter agido de
maneira diferente. Logo, não faz sentido responsabilizá-lo pelo que fez.
Chegados a este ponto continuamos, todavia, a pensar que algo de profun-
damente errado aconteceu; e que alguém deve responder por isso. Será
Booth um assassino ou uma vítima de circunstâncias infelizes? O que fazer
com John Wilkes Booth?
Fig. 5 — Fotografia de Clarence Darrow,
Precisamos de saber se o livre-arbítrio é compatível com o determinismo Richard Loeb e Nathan Leopold.
para decidir o que fazer com John Wilkes Booth. Só teremos a esperança Em 1924, Clarence Darrow apelou à ideia de
de chegar a uma resposta satisfatória se debatermos três das teorias mais que «todo o ser humano é o produto de uma
influentes sobre o problema. São elas o determinismo, o libertismo e o hereditariedade infindável que o precede e
de um ambiente infinito que o rodeia» para
compatibilismo, que por vezes é também conhecido como determinismo livrar dois jovens assassinos, Loeb e Leopold,
moderado. Estas teorias podem ser caracterizadas do seguinte modo: da pena de morte.

Determinismo: Não controlamos as causas das nossas ações e não


temos livre-arbítrio.
Libertismo: Controlamos as causas das ações e temos livre-arbítrio.
Compatibilismo: Não controlamos as causas das ações, mas temos
livre-arbítrio.

A ação humana: análise e compreensão do agir 45

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2.2.1  Determinismo
O determinismo é a crença de que tudo tem uma causa. Esta crença é
muito forte: todos acreditamos, pelo menos na maior parte do tempo, que
é verdadeira. Mas será verdadeira?
Para decidirmos se a crença no determinismo é verdadeira, podemos
ensaiar uma certa estratégia: podemos tentar ver que consequências tem.
Se uma crença tem consequências falsas ou implausíveis, então é falsa ou
implausível.
Considere o caso que se segue.

Caso 3

Imagine que a Joana acabou de comprar um computador e se prepara para o usar.


Prime o botão de ligar e nada acontece. O computador não funciona. O que faria a
Joana? Possivelmente, começaria por verificar se tudo, na máquina, parece estar em
ordem. Concluída a verificação, voltaria a premir o botão de ligar. E nada: o computa-
dor não funciona. Uma vez que o aparelho é novo, regressa com ele à loja onde o
comprou.
— Não funciona — diz a Joana.
Solícito, o vendedor chama um técnico. Este examina o computador cuidadosamente.
Verifica exaustivamente o estado do aparelho, assegura-se de que tudo está nas devi-
das condições. Sem sucesso: o computador não funciona.
— Qual é o problema? — pergunta ela.
— Não há qualquer problema — responde o técnico.
Intrigada, a Joana decide fazer a pergunta de outra maneira:
— Mas qual é a causa da avaria?
Fig. 6 — A Roda da Fortuna (1875-1883), O técnico encolhe os ombros:
de Sir Edward Coley Burne-Jones.
— A avaria não tem causa. É daquelas coisas que acontecem. O computador não
Segundo o determinismo, tudo o que funciona, é tudo.
acontece é uma consequência dos
acontecimentos anteriores e das leis da
natureza. Assim sendo, dado que não
podemos controlar o passado nem as leis Dificilmente alguém aceitaria tal resposta. Decerto continuaríamos a acre-
da natureza, não controlamos as causas ditar que algo deve estar a causar a falha do aparelho. O técnico, pensaría-
das nossas ações e, consequentemente,
mos, é que não teria conseguido encontrar a causa da avaria — e, mais ou
não podemos ser responsabilizados por
nada do que fazemos. menos resignadamente, procuraríamos outro técnico. Isto porque acredita-
mos, como quase todas as pessoas, que as coisas que acontecem têm causas
e que, portanto, tudo o que acontece deve ter uma explicação causal.
Como todas as pessoas, na maior parte do tempo acreditamos que o deter-
minismo é verdadeiro. A crença de que o determinismo é verdadeiro é uma
crença partilhada por um grande número de pessoas. No entanto, apesar
de ser largamente partilhada, essa crença pode ser falsa. Algumas crenças
que hoje sabemos não serem verdadeiras, como a crença de que o Sol
se move em volta da Terra, foram partilhadas por um vastíssimo número
de pessoas.
O determinismo parece, todavia, uma ideia razoável. Acreditamos, geral-
mente, que todos os acontecimentos têm uma causa: são causados por
acontecimentos anteriores e pelas leis da natureza. Esta crença permitiu-
-nos alcançar uma compreensão do mundo muitíssimo eficaz. Por que
motivo nos coloca, então, em dificuldades?

46 Unidade 2

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Uma consequência paradoxal
Uma consequência do determinismo é a seguinte: se as nossas ações são
acontecimentos e se todos os acontecimentos são causados por acontecimen-
tos anteriores e pelas leis da natureza, então também as nossas ações são
causadas por acontecimentos anteriores e pelas leis da natureza. Por conse-
guinte, se qualquer acontecimento é causado por um acontecimento ante-
rior, e esse por outro acontecimento anterior, e assim sucessivamente até um
momento indeterminado no tempo, isso implica que não temos controlo
sobre coisas que aconteceram no passado. Logo, se o determinismo é verda-
deiro, as nossas ações são causadas por coisas que não controlamos. O que
quer que façamos é algo que não poderíamos ter escolhido fazer ou deixar de
fazer. Não temos, por isso, livre-arbítrio.
No entanto, a crença de que temos livre-arbítrio é pelo menos tão partilhada
como a crença de que o determinismo é verdadeiro. Apesar disso, pode ser
falsa. A maneira como compreendemos habitualmente a nossa natureza e a
natureza das nossas ações pressupõe a crença de que temos livre-arbítrio.
Temos, habitualmente, a crença de que, ao menos por vezes, fazemos algo
podendo fazer outra coisa qualquer; que muitas vezes agimos de uma
maneira tendo podido agir de maneira diferente. Parece, pois, que o determi-
nismo nos conduz a uma situação paradoxal: raciocinando validamente,
fomos conduzidos de crenças aparentemente verdadeiras, como a de que
tudo o que acontece tem uma causa, à conclusão aparentemente falsa de que
não temos livre-arbítrio.

Causas e escolhas
Imagine uma pessoa que sofre de uma doença hereditária. Será que ela é
responsável por tê-la? Decerto que não. A sua doença é causada por coisas
que a pessoa não pode controlar: nada fez para a ter e nada poderia ter feito
que a pudesse evitar. A cadeia de causas que levou ao aparecimento dessa
doença começou antes de a pessoa ter nascido. Logo, sofrer dessa doença não
é algo que a pessoa tivesse feito: é algo que lhe aconteceu. Sofrer de uma
doença hereditária não é, por conseguinte, uma ação. Parece, portanto, que
o exemplo da doença hereditária não é relevante para o problema do livre-
-arbítrio: se um acontecimento não é uma ação, é óbvio que não pode ser
uma ação livre.
Uma ação é, por exemplo, erguer a mão. Esta é o resultado de acontecimen-
tos anteriores; esses acontecimentos são, por sua vez, causados por outros, e
assim sucessivamente. A cadeia causal que resultou no gesto de erguer a mão
pode estender-se indefinidamente até um passado remoto: um tempo em
que a pessoa que ergue a mão ainda não tinha nascido. Esse gesto foi, por-
tanto, causado por coisas que a pessoa que o faz não controla.
Assim, se o determinismo é verdadeiro, faça uma pessoa o que fizer, parece
que não poderia ter feito outra coisa Ora, isto não é diferente do caso da
pessoa que sofre de uma doença hereditária: se tudo o que acontece é cau-
sado por acontecimentos anteriores e pelas leis da natureza, não podemos
deixar de fazer aquilo que fazemos. O que fazemos é, de facto, tão inevitável
como aquilo que nos acontece; tão inevitável, de facto, como um aguaceiro
ou qualquer outro acontecimento natural. Logo, nada do que fazemos foi
escolhido por nós; e, sendo assim, não somos responsáveis pelas coisas que
fazemos.

A ação humana: análise e compreensão do agir 47

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Claro que o facto de uma pessoa não ter escolha não deve ser interpretado
como não podendo querer fazer o que faz: uma pessoa pode não ter esco-
lha e querer fazer aquilo que, afinal, faz. Imagine uma pessoa que é levada,
enquanto dorme, para um certo quarto. A única saída desse quarto é por
uma porta. Essa porta está fechada à chave do lado exterior, mas a pessoa
que está no quarto não sabe isso. Quando acorda, dá conta de que está
num quarto e de que está bem aí. Pondera a possibilidade de sair, mas, em
vez disso, fica no quarto. Claro que essa pessoa não tem, de facto, escolha:
não pode sair do quarto. No entanto, a pessoa quis ficar. Logo, quer, de
facto, fazer o que faz. Esta experiência mental, conhecida como «a experiên-
cia do prisioneiro voluntário», é proposta por John Locke, um filósofo
inglês do século xvii:

Texto 4

Suponha-se que um homem é levado, durante o sono, para um quarto onde se encontra
uma pessoa que ele espera ver e com quem deseja falar; e que aí é fechado, sem que
possa sair: acorda, e fica contente por se encontrar em tão agradável companhia, com a
qual decide ficar; isto é, prefere ficar a sair. Pergunto: não é o seu ficar um ato voluntário?
Ninguém duvidaria disso. No entanto, estando fechado, é evidente que não é livre de não
ficar, não tem a liberdade de sair. Assim, a liberdade nada tem que ver com a vontade ou
a preferência; tem que ver, sim, com o facto de a pessoa ter ou não o poder de fazer algo,
de acordo com o que a mente escolhe ou decide. A nossa ideia de liberdade vai tão
longe quanto esse poder, e não mais. Isto porque onde quer que uma restrição venha
limitar esse poder, ou uma compulsão faça desaparecer a indiferença ou a capacidade de
agir ou de impedir a ação, aí a liberdade, e a nossa ideia dela, cessa.
John Locke, An Essay Concerning Human Understanding, Book ii, 1689, cap. 21, par. 10.

Causas e programas
Estamos naturalmente como que programados para fazer muitas coisas: res-
pirar, caminhar, dormir, etc. Não poderá suceder que estejamos programa-
dos para fazer todas as coisas que fazemos? Esta ideia pode parecer muito
estranha: computadores, por exemplo, podem ser programados, mas nós não
somos computadores.
É possível que a ideia só nos pareça estranha porque temos consciência de
que fazemos coisas, mas não do programa que nos determina. Esta parece ser
a posição de Espinosa, um filósofo holandês contemporâneo de Locke, que
é talvez o mais conhecido dos filósofos deterministas. Na sua Ética defende
que não somos livres: acreditamos ilusoriamente ser livres porque ignoramos
as causas das nossas ações. Tal como a pessoa que está fechada no quarto,
acreditamos ser livres porque desconhecemos os factos relevantes.

Texto 5

Os homens enganam-se quando se julgam livres, e esta opinião consiste apenas em que
eles têm consciência das suas ações e são ignorantes das causas pelas quais são determi-
nados. O que constitui, portanto, a ideia da sua liberdade é que eles não conhecem
nenhuma causa das suas ações. Com efeito, quando dizem que as ações humanas
dependem da vontade, dizem meras palavras, das quais não têm nenhuma ideia. Efetiva-
mente, todos ignoram o que seja a vontade e como é que ela move o corpo.
eSpinoSa, Ética, parte ii, proposição xxxv, escólio, 1677, p. 55.

48 Unidade 2

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A ação humana é tão determinada como a trajetória de um projétil. Imagine
agora que esse projétil tem consciência e pensa da seguinte maneira: «Agora
podia virar à direita; agora podia virar à esquerda ou parar; mas não farei
nada disso; prosseguirei, em vez disso, na minha trajetória.» A maior parte
das pessoas, defende Espinosa, está tão iludida acerca da natureza da ação
humana como estaria um projétil que pensasse deste modo. Porque temos
consciência das nossas ações, mas ignoramos as causas que as determinam,
a ideia de que temos livre-arbítrio não passa de uma ilusão.

O dilema do determinismo
O determinismo parece conduzir-nos a uma posição insustentável. Com
efeito, a crença no determinismo pode ser verdadeira e pode ser falsa; no
entanto, quer seja verdadeira quer seja falsa, parece ter como consequência
que não há ações livres e, consequentemente, que ninguém é responsável
pelo que faz.
Imagine que o seu colega do lado, durante a aula, ergue a mão. Se o determi-
nismo é verdadeiro, o gesto do seu colega tem uma causa: foi causado por
acontecimentos anteriores e pelas leis da natureza. Esses acontecimentos
foram, por sua vez, causados por acontecimentos anteriores e pelas leis da
natureza. O gesto de erguer a mão é, portanto, o resultado inevitável de uma
cadeia de acontecimentos que remonta a um tempo em que o seu colega
ainda não tinha nascido. Sendo assim, não é possível que ele tenha erguido a
mão livremente: não poderia ter feito algo diferente do que fez. E, consequente-
mente, não pode ser responsabilizado por tê-la erguido. É tão responsável por
ter feito o que fez como a pessoa que sofre de uma doença hereditária é res-
ponsável pela sua infeliz condição.
Suponha agora que o determinismo é falso. Se o determinismo é falso, então
o gesto de erguer a mão não tem causa: aconteceu por acaso. Se erguer a mão
foi algo que aconteceu por acaso, então o seu colega não escolheu fazê-lo:
simplesmente, deu pela sua mão erguendo-se. Consequentemente, não é res-
ponsável por ter feito o que fez.
Assim, quer o determinismo seja verdadeiro quer seja falso, não há ações
livres; e, se não há ações livres, ninguém é responsável pelas suas ações; logo,
ninguém é responsável pelas suas ações. Este argumento é conhecido como
o «dilema do determinismo». O dilema do determinismo pode ser formu-
lado esquematicamente da seguinte maneira:

Argumento 1
(1) Ou as nossas ações são determinadas ou acontecem por acaso.
(2) Se são determinadas, então não somos livres e não somos
responsáveis por elas.
(3) Se acontecem por acaso, então não somos livres e não somos
responsáveis por elas.
(4) Logo, não somos livres e não somos responsáveis pelas nossas ações. Fig. 7 — Cartaz do filme Waking Life (2001),
realizado por Richard Linklater.
Este argumento é dedutivamente válido: se as premissas forem verdadeiras, a
No capítulo 6 — Free Will and Physics — do
conclusão será verdadeira. No entanto, se as premissas forem verdadeiras, filme Waking Life, o dilema do determinismo
teremos chegado, novamente, a uma conclusão que contraria fortemente é-nos apresentado através de uma breve
algumas das nossas intuições fundamentais — nomeadamente a crença de animação.
que somos livres e responsáveis pelas nossas ações.

A ação humana: análise e compreensão do agir 49

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Indeterminismo
Algumas pessoas acreditam que o determinismo é falso. Acreditam que
vivemos num universo indeterminista. O indeterminismo é a crença de
que a relação de causalidade não é necessária, mas apenas provável; isto é,
dado um certo acontecimento, não é necessário que ocorra outro: há ape-
nas uma certa probabilidade de ocorrer o segundo, tendo ocorrido o pri-
meiro. Sendo assim, algumas pessoas acreditam que se o indeterminismo é
verdadeiro, há no universo lugar para a liberdade humana e que, desse
modo, estará salvaguardada a maneira como habitualmente compreende-
mos a nossa natureza e a natureza das nossas ações. As nossas ações podem
ser causadas por acontecimentos anteriores e pelas leis da natureza, mas
daí não se segue que agiremos necessariamente de uma certa maneira: é
apenas provável que tal ocorra. No entanto, isto é um equívoco.
Veja-se o texto seguinte:

Texto 6

A mecânica quântica é uma teoria sobre o comportamento de partí- Porque a aleatoriedade não é liberdade. Ensaiemos uma pequena
culas minúsculas. Esta teoria foi desenvolvida na primeira parte do experiência mental. Primeiro finjamos que a mecânica quântica está
século xx e é ainda aceite pelos físicos de hoje. A mecânica quântica incorreta e que a física é verdadeiramente determinista. A ameaça à
(ou pelo menos uma certa versão) é uma teoria radicalmente inde- liberdade humana que isto representa é aquilo de que temos falado
terminista. Não prevê com certeza o que irá ocorrer; apresenta até agora […]. A seguir, no cérebro de cada pessoa, acrescentemos
somente probabilidades de resultados. Independentemente da um pouco de lotaria, que muito de vez em quando, aleatoriamente,
quantidade de informação que se tenha acerca de uma partícula, faz a pessoa desviar-se numa direção e não noutra. Isto é semelhante
não se pode prever onde estará mais tarde. Tudo o que se pode dizer ao que a mecânica quântica afirma que realmente acontece: há um
é até que ponto é provável que a partícula se encontre em várias elemento de aleatoriedade na ocorrência dos acontecimentos. Será
localizações. E isto não é uma mera limitação do conhecimento que a ameaça à liberdade desaparece? Evidentemente que não. Se a
humano. A posição futura da partícula simplesmente não é determi- pessoa original, completamente determinada, não tinha livre-arbítrio
nada pelo passado, por mais que saibamos acerca dela. Só as proba- algum, então a nova pessoa, com o elemento de aleatoriedade, tão-
bilidades são determinadas. -pouco tem livre-arbítrio; a lotaria só introduz aleatoriedade, e não
liberdade ou responsabilidade. […] Quando muito, a aleatoriedade
Nas secções anteriores ignorei a mecânica quântica. Por exemplo,
compromete a liberdade.
supus que se uma causa ocorre, o seu efeito tem de ocorrer, apesar
de a mecânica quântica afirmar que as causas apenas tornam os seus Conee, Earl e SideR, Theodor, Enigmas da Existência:
efeitos prováveis. Por que razão ignorei a mecânica quântica? Uma Visita Guiada à Metafísica. Lisboa: Bizâncio, 2010, pp. 157-158.

O argumento do determinismo
Se o determinismo é verdadeiro, não há, no mundo, lugar para
a liberdade. Ora, a crença de que somos livres é, sob muitos
aspetos, uma crença essencial para a maior parte de nós:
parece que sem ela seremos incapazes de compreender o que
somos e como agimos. Deve haver uma diferença significativa
entre uma pessoa que caminha sob o efeito do álcool e uma
pessoa que simula caminhar sob o efeito do álcool. Se o deter-
minismo é verdadeiro, o comportamento das duas pessoas
é explicado da mesma maneira: quer o comportamento
de uma quer o da outra são causados por acontecimentos
anteriores e pelas leis da natureza. Parece, portanto, que o
Fig. 8 — Rain, Steam and Speed — The Great Western determinismo não nos permite dar conta da diferença entre a
Railway (1844), de J. M. W. Turner. pessoa que age sob certas causas e a pessoa que simula fazê-lo.
Num universo determinista, o estado do mundo num dado Assim, a crença no determinismo deve ser rigorosamente
momento fixa o estado do mundo em todos os momentos avaliada. Para isso, comecemos por representar o argumento
subsequentes, como se a história do universo fosse uma linha do determinismo de maneira a compreendê-lo claramente.
de comboio sem bifurcações, isto é, sem que possamos
controlar em que direção esta deve seguir.

50 Unidade 2

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O argumento do determinismo é um raciocínio que envolve dois passos.
Pode ser esquematicamente formulado do seguinte modo:

Argumento 2
(1) As nossas ações são causadas por acontecimentos anteriores e pelas
leis da natureza.
(2) Se as nossas ações são causadas por acontecimentos anteriores e pelas
leis da natureza, então não somos livres.
(3) Logo, não somos livres.

A esta conclusão podemos acrescentar uma nova premissa, que levará a


uma nova conclusão:

(4) Se não somos livres, não somos responsáveis pelas nossas ações.
(5) Logo, não somos responsáveis pelas nossas ações.

A premissa 1 exprime a crença no determinismo. A premissa 2 é indepen-


dente de 1. Se aceitarmos 2, não nos comprometeremos com a ideia de que
o determinismo é verdadeiro, mas apenas com a afirmação de que algo
sucederá se o determinismo for verdadeiro. 2 é uma afirmação condicional,
tal como «Se formos à praia, não iremos ao cinema.»: ao afirmar tal coisa, Juízo intuitivo
não estaremos a pretender que é verdade que vamos à praia nem que é
verdade que não vamos ao cinema; estaremos apenas a pretender que, Avalie este argumento de acordo com
hipoteticamente, algo sucederá se formos à praia. Logo, 1 pode ser verda- a sua primeira reação.
deira e 2 falsa. E pode igualmente suceder que 2 seja verdadeira e 1, falsa: A — Convincente.
pode ser falso que as nossas ações são determinadas por acontecimentos B — Atraente mas não convincente.
anteriores e pelas leis da natureza e ser verdade que, caso as coisas fossem
desse modo, não seríamos livres. Esta explicação é necessária para compre- C — Duvidoso.
endermos que, acerca destas duas premissas, diferentes posições são D — Implausível.
possíveis.

Uma avaliação do argumento do determinismo


Podemos aceitar todas as cinco afirmações do argumento apresentado na
secção anterior: é o que o determinista faz. Mas coisas diferentes podem
suceder. Vejamos as diferentes possibilidades.
Acerca das cinco afirmações apresentadas, a única que não parece razoável
rejeitar é a 4, que afirma que «Se não somos livres, então não somos
responsáveis pelas nossas ações.»; a negação de «Se não somos livres, então
não somos responsáveis pelas nossas ações.» é «Não somos livres, mas
somos responsáveis pelas nossas ações.». É implausível que alguém esteja
na disposição de defender tal coisa: seria semelhante a defender que uma
pessoa que sofre de uma doença hereditária é responsável pelo facto
de sofrer dessa doença, por exemplo. Mas podemos rejeitar as afirmações
3 e 5.
Claro que rejeitar uma afirmação não é o mesmo que refutá-la: refutar uma
afirmação é mostrar que é falsa; rejeitar uma afirmação é acreditar que
é falsa. Pode suceder que afirmações que acreditamos serem falsas sejam
verdadeiras; como pode suceder que afirmações que acreditamos serem
verdadeiras sejam falsas. Se, porém, rejeitarmos as afirmações 3 e 5, pode-
mos fazê-lo quer rejeitando a 1 e aceitando a 2, quer aceitando a 1 e rejei-
tando a 2: a única coisa que não podemos validamente fazer é aceitar a 1
e a 2 e rejeitar a 3.
A ação humana: análise e compreensão do agir 51

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O determinista, como dissemos, aceita as cinco afirmações; logo, aceita 1 e
2 — além de 4 —; logo, aceita também 3 e 5.
O libertista defende que a primeira premissa do argumento é falsa; é por isso
que irá concluir que há ações livres e que, nessa medida, somos livres. Mas
isto não quer dizer que não concorde num ponto com o determinista: tam-
bém para ele a condicional expressa pela segunda premissa seria verdadeira se
ocorresse. Isto significa que, tal como o determinista, o libertista é um incom-
patibilista, pois vê incompatibilidade entre o determinismo e o livre-arbítrio.
Segue-se do que foi dito que termos livre-arbítrio será a razão que levará
o libertista a concluir que somos também responsáveis pelas nossas ações.
Mas é possível uma outra posição face ao argumento do determinismo.
O que a distingue é a ideia de que o determinismo e o livre-arbítrio são,
afinal, compatíveis. Trata-se, por isso, de uma teoria compatibilista. Em vez
de recusar a primeira premissa, esta teoria nega a condicional expressa na
segunda premissa, defendendo que as ações não escapam ao determinismo,
mas que, ainda assim, são livres.
Estas posições podem ser claramente compreendidas recorrendo ao quadro 1:

O argumento do determinismo Libertista Compatibilista


(1) As nossas ações são determinadas por
acontecimentos anteriores e pelas leis da Rejeita Aceita
natureza.
(2) Se as nossas ações são determinadas por
acontecimentos anteriores e pelas leis da Aceita Rejeita
natureza, então não somos livres.
(3) Logo, não somos livres. Rejeita Rejeita
(4) Se não somos livres, não somos responsáveis
Avaliação crítica Aceita Aceita
pelas nossas ações.
(5) Logo, não somos responsáveis pelas nossas
Assinale agora a sua avaliação ponderada Rejeita Rejeita
ações.
do argumento do determinismo.
A — Convincente. Quadro 1 — Avaliação do argumento do determinismo.

B — Atraente mas não convincente.


Uma vez que tanto o determinista como o libertista e o compatibilista acei-
C — Duvidoso. tam 4, o primeiro passo do raciocínio é fundamental para as conclusões
D — Implausível. seguintes; e, assim, a discussão essencial far-se-á quer na defesa quer na
rejeição de 1 e 2.

Atividades

1 Formule o problema do livre-arbítrio.

2 Diga por que razão é importante o problema do livre-arbítrio.

3 Apresente a posição determinista.

4 O determinismo parece ter uma consequência paradoxal. Diga qual é.

Debate

Será o indeterminismo uma teoria melhor do que o determinismo? Porquê?

52 Unidade 2

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2.2.2  Libertismo
O libertista acredita que temos livre-arbítrio e que há ações livres; logo, que
o determinismo é falso. Claro que o libertista não tem de defender que todas
as nossas ações são livres, a fim de rejeitar a premissa 1. Na premissa 1
afirma-se que todas as nossas ações são determinadas por acontecimentos
anteriores e pelas leis da natureza. É, portanto, uma afirmação universal.
Ora, a negação de «Todas as nossas ações são determinadas por acontecimen-
tos anteriores e pelas leis da natureza.» não é «Nenhuma das nossas ações
é determinada por acontecimentos anteriores e pelas leis da natureza.».
Estas duas afirmações não podem ser ambas verdadeiras, mas podem ser
ambas falsas; logo, podem ter o mesmo valor de verdade e não podem ser a
negação uma da outra, uma vez que a negação inverte o valor de verdade de
uma afirmação.
Pense, por exemplo, na afirmação de que todas as portuguesas são morenas.
Esta afirmação é, como sabemos, falsa; isto porque, como sabemos, nem
todas as portuguesas são morenas — o que é o mesmo que dizer que
algumas portuguesas não são morenas. Assim, é falso que todas as portu-
guesas são morenas, mas é igualmente falso que nenhuma portuguesa
é morena. As afirmações «Todas as portuguesas são morenas.» e
«Nenhuma portuguesa é morena.» não podem, por conseguinte, ser a
negação uma da outra; isto porque podem ter ambas o mesmo valor de
verdade: podem ser ambas falsas. Analogamente, a negação de «Todas as
nossas ações são determinadas por acontecimentos anteriores e pelas
leis da natureza.» não é «Nenhuma das nossas ações é determinada por
acontecimentos anteriores e pelas leis da natureza.», mas sim «Algumas
das nossas ações não são determinadas por acontecimentos anteriores
e pelas leis da natureza».
O libertista defende, pois, que há ações livres. Mas o que é ao certo uma
ação livre? Segundo o determinista, como vimos, não podemos agir de
maneira diferente da maneira como agimos: as nossas ações são o efeito
de uma série de acontecimentos anteriores sobre os quais não temos con-
trolo. Assim, e segundo o determinista, sempre que fazemos algo, não
poderíamos deixar de fazê-lo; e sempre que não fazemos algo, não pode-
ríamos tê-lo feito. O libertista, pelo contrário, defende que, por vezes, faze-
mos certas coisas podendo não as ter feito; e que, por vezes, não fazemos
certas coisas podendo tê-las feito. Ou seja, o libertista defende que, por
vezes, agimos de uma maneira podendo ter agido de maneira diferente.
Se isto é verdade, então por vezes as nossas ações não são determinadas por
acontecimentos anteriores e pelas leis da natureza: por vezes, agir desta ou
daquela maneira depende de nós, agentes. Logo, por vezes há ações que
são livres.
Estará, deste modo, o libertista comprometido com a crença de que as
ações livres não têm causa? Esta ideia é altamente implausível; isto porque
nos comprometeria com a ideia de que as ações a que chamamos «livres»
ocorrem por acaso. Ora, se uma ação ocorre por acaso, não é livre, porque
não está no poder do agente realizá-la ou não. Assim, o libertista acredita
que as ações livres são o resultado do nosso querer: fazemos certas coisas
porque queremos fazê-las. Mas, a esse respeito, nada determina o que que-
remos ou não queremos fazer: temos o poder de deliberar e de agir de uma
maneira ou de outra em consequência da nossa deliberação.

A ação humana: análise e compreensão do agir 53

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O argumento a favor do libertismo:
a experiência da deliberação
A experiência da deliberação revela a capacidade de agir livremente.
Os dois casos seguintes de deliberação, dado o seu contraste, permitem
sublinhar com mais nitidez essa capacidade.
Caso 1: Escolha entre satisfazer o desejo avassalador de comer e o desejo
de permanecer vivo.
Caso 2: Escolha entre inventar uma falsa acusação contra uma pessoa ino-
cente e satisfazer o desejo de permanecer vivo.
No primeiro caso, a escolha seria permanecermos vivos, frustrando o desejo
avassalador de comer. Dos dois desejos, o de permanecermos vivos é o
mais forte. No segundo caso, porém, o desejo de permanecermos vivos e
o correspondente medo de morrer não suplantam necessariamente o
motivo que a ele se opõe. Agora não se trata apenas de deliberar pesando
dois desejos, para depois escolher aquele que é comparativamente mais
forte. Algo mais sério parece estar em jogo. No segundo caso, há razões
independentes da força dos nossos desejos, razões pelas quais podemos
Fig. 9 — A Escolha de Hércules (1637), agir mesmo contrariando a satisfação do nosso desejo mais forte. A nossa
de Nicolas Poussin. experiência de deliberação considera essas razões de um modo diferente
Alguns autores consideram que a experiência daquele em que são tidos em conta os nossos desejos.
subjetiva da deliberação revela a nossa
capacidade de agir livremente. Se o que Ainda que a nossa decisão seja a de agir segundo o desejo mais forte, o que
consideramos serem boas e más razões consideramos serem boas e más razões influencia a força comparativa dos
influencia a força comparativa dos nossos nossos desejos, em vez de simplesmente a refletir. Isso significa que temos
desejos, então temos a capacidade de agir de
modo diferente daquele que é determinado
a capacidade de agir de modo diferente daquele que é determinado pela
pela força comparativa dos nossos desejos. força comparativa dos nossos desejos. Trata-se, dizem os libertistas, da
capacidade de agir segundo princípios racionais sugeridos por razões inde-
pendentes dos desejos. Assim, as pessoas reconhecem que devem agir de
acordo com certos princípios racionais — reconhecem, na verdade, que
têm deveres morais. Ora, agir segundo esses deveres só é possível se as
pessoas tiverem livre-arbítrio. Daí que a moralidade só faça sentido se
admitirmos que as pessoas têm livre-arbítrio.
A capacidade de agir livremente, em que consiste o livre-arbítrio, reside na
vontade. Só esta é capaz de suplantar os desejos e todos os fatores externos
que ameaçam a sua capacidade de deliberar apenas de acordo com razões
moralmente válidas. Mas, mesmo quando cede perante fatores que
não controla, a vontade mantém a sua capacidade de agir livremente.
Como sublinha o texto a seguir apresentado, essa é a característica dos
seres racionais.

Texto 7

[…] A todo o ser racional que tem uma vontade temos de atribuir-lhe necessariamente
também a ideia de liberdade, sob a qual ele unicamente pode agir. Pois num tal ser pen-
samos nós uma razão que é prática, quer dizer, que possui causalidade em relação aos
seus objetos. […] Ela tem de considerar-se a si mesma como autora dos seus princípios,
independentemente de influências estranhas; por conseguinte, como razão prática ou
como vontade de um ser racional, tem de considerar-se a si mesma como livre; isto é, a
vontade desse ser só pode ser uma vontade própria sob a ideia de liberdade, e, portanto,
é preciso atribuir, em sentido prático, uma tal vontade a todos os seres racionais.
immanueL k ant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes.
Lisboa: Edições 70, 2009, p. 102.

54 Unidade 2

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A vontade dos seres racionais tem a capacidade de determinar a ação. Possui, Juízo intuitivo
diz o texto, causalidade em relação aos seus objetos. Claro que a vontade
pode encontrar muitos obstáculos às ações que quer realizar, como desejos, Avalie este argumento de acordo com
por exemplo. Pode, portanto, ver frustrados os seus esforços por fatores que a sua primeira reação.
não controla. Não é raro, aliás, que motivos baseados em boas razões cedam A — Convincente.
a motivos menos estimáveis nas nossas deliberações. Isso, no entanto, não
B — Atraente mas não convincente.
retira à vontade a sua capacidade de agir livremente, que permanece intacta,
mas retira ao agente a responsabilidade por circunstâncias que não controla. C — Duvidoso.
Isto parece compreensível, de resto. Se a sorte, seja boa ou má, acaba por D — Implausível.
influenciar o que acontece, não se realizou o que a vontade do agente quis.

Uma objeção ao argumento a favor do libertismo


O argumento apresentado sugere que só é plausível culpar ou elogiar alguém
pelas escolhas que não são influenciadas pela sorte — pelas escolhas que,
para o libertista, são genuinamente livres. Será que os nossos juízos morais
seguem um critério de responsabilidade tão exigente? Não parece. Há casos
em que é claro que a sorte intervém nos nossos juízos de culpabilidade. Por
exemplo, fazemos um juízo pior sobre um condutor imprudente e a sua ação
se ele atropela um transeunte; no entanto, a presença do transeunte no seu
trajeto não é algo que esteja sob o seu controlo. E também fazemos um juízo
pior sobre uma pessoa insensível e as suas ações se ela, realizando o seu
desejo, conseguir estabelecer-se numa sociedade semelhante à Alemanha
nazi; no entanto, uma vez mais, é óbvio que a existência de uma sociedade
assim escapa ao seu controlo.
Segue-se que entendemos a nossa responsabilidade de um modo diferente do
libertista. Assim, não somos responsáveis pelo que fazemos apenas quando o
nosso controlo das circunstâncias é absoluto. Temos, dizem os críticos, uma
razão forte para pensar deste modo. O livre-arbítrio, definido como a capaci-
dade de a vontade agir apenas segundo princípios racionais controlados pela
sua atividade de deliberação, simplesmente não existe. Na verdade, as nossas
decisões de agir de uma certa maneira são também o produto de circunstân-
cias que não controlamos. Nelas intervêm crenças e disposições que nos
acontece ter, e aspetos do nosso caráter que foram moldados por circunstân-
cias da nossa educação e do nosso meio que de modo algum controlamos.
Avaliação crítica
Assim como não controlamos a nossa herança genética, e esta pode ter igual-
mente relevância nas nossas decisões. Não é por isso, no entanto, que deixa- Assinale agora a sua avaliação ponderada
mos de ser responsáveis por elas. do argumento do libertismo.
Tudo indica, portanto, que o livre-arbítrio, definido de acordo com a teoria A — Convincente.
libertista, não passe de uma fantasia de controlo absoluto por parte da von- B — Atraente mas não convincente.
tade. Os nossos critérios habituais de responsabilidade mostram que a pers-
petiva de deliberação dos libertistas é duvidosa. Caso tenhamos livre-arbítrio, C — Duvidoso.
dificilmente ele será uma capacidade de controlo imune às influências dos D — Implausível.
desejos e de muitos outros fatores a que não podemos escapar.

Atividades

1 Apresente a posição libertista.

2 Diga em que consiste, de acordo com o libertista, uma ação livre.

3 Formule o argumento a favor do libertismo.

4 Exponha a objeção ao argumento a favor do libertismo.

A ação humana: análise e compreensão do agir 55

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2.2.3  Compatibilismo
O compatibilismo rejeita a crença que tanto o determinismo como o liber-
tismo aceitam: a crença de que, se o determinismo é verdadeiro, então não
há ações livres.
De acordo com o compatibilista, o determinismo é verdadeiro, mas isso
não é incompatível com o facto de que há ações livres. Se o compatibilismo
é verdadeiro, então não só teremos encontrado maneira de manter simul-
taneamente as duas crenças aparentemente inconsistentes que o senso
comum acolhe igualmente — que tudo o que acontece tem uma causa e,
ao mesmo tempo, que temos livre-arbítrio —, como ainda teremos conse-
guido algo mais: teremos conseguido explicar que o facto de podermos agir
de maneira alternativa à maneira como agimos não prova que o determi-
nismo é falso.

O argumento a favor do compatibilismo:


a ausência de coação
Quando procurámos definir ação, distinguindo as ações de outros aconte-
cimentos que não são ações, vimos que não há ação sem intencionalidade
e que, por conseguinte, não há ação sem causalidade. A intencionalidade
de uma ação consiste nas crenças e nos desejos relevantes do agente: são as
crenças e os desejos do agente que causam a ação. Ora, não controlamos
nem as nossas crenças nem os nossos desejos; antes damos por nós tendo
certas crenças e certos desejos.
Se alguém deseja saciar a sede e acredita que a maneira de saciar a sede é
beber, então essa pessoa beberá. O desejo de saciar a sede não é algo que se
escolha ter ou não ter: é algo que nos acontece. O mesmo se passa quanto
à crença de que a maneira de saciar a sede é beber: não está sob o controlo
de qualquer agente tê-la ou não a ter. Beber é, portanto, uma ação causada
por um certo desejo e por uma certa crença. Este exemplo pode ser gene-
ralizado. Qualquer ação é causada por desejos e crenças que não estão sob
o controlo do agente.

Fig. 10 — A Sede (1886), de William


Retomemos o exemplo do seu colega que, na aula, ergueu a mão. Ergueu a
Bouguereau. mão porque queria fazer uma pergunta. Erguer a mão foi uma ação causada
Os compatibilistas acreditam que, embora pelo desejo de fazer uma pergunta e pela crença de que a maneira de mani-
beber seja uma ação causada pelo desejo de festar esse desejo é erguer a mão. O seu colega poderia não ter erguido a
saciar a sede e pela crença de que a maneira mão se não tivesse o desejo de fazer uma pergunta, ou se não soubesse que
de saciar a sede é beber, é simultaneamente essa é a maneira de manifestar esse desejo, ou ambas as coisas. Mas ele
uma ação livre, desde que não seja forçada. tinha um motivo para erguer a mão: tinha um certo desejo e uma certa
Para eles, é a ausência de coação, e não a
ausência de causa, que faz com que uma
crença. Porém, o facto de alguém ter um motivo não é razão suficiente para
ação seja livre. agir: agir ou não agir, dada a presença de um motivo, é decisão do agente:
aceitar ou rejeitar o motivo que tem para agir só dele depende. Se isto é
verdade, então o seu colega controla a sua ação, apesar de não controlar os
seus motivos. Logo, o facto de o agente não escolher os seus motivos não
impede que haja ações livres: uma ação é livre se o agente quer realizá-la,
dados os motivos que lhe acontece ter.
Suponha que está a descer uma rua quando começa a chover torrencial-
mente. Dado que não levou nem guarda-chuva nem impermeável, e não
quer alagar a camisola que veste, o leitor decide entrar num café e aguardar
que a chuva abrande, antes de prosseguir. A sua ação — entrar no café —
foi livre? Foi, defende o compatibilista.

56 Unidade 2

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Tem o leitor controlo sobre o que a causou? O leitor, obviamente, não con-
trola a chuva nem o facto de ter começado a chover justamente no
momento em que se encontra naquele local; também não controla o facto
de haver ali um café, nem o ter o desejo de conservar a camisola que veste
razoavelmente seca, nem o facto de a chuva molhar as camisolas, etc. Toda-
via, entrar no café foi algo que fez livremente. Poderia igualmente ter
seguido o seu caminho. Tinha, de facto, uma alternativa. Entrou no café
livremente, porque nada nem ninguém o forçou a fazê-lo. Mas igualmente
nada ou ninguém o teria forçado a fazer outra coisa qualquer. O leitor tinha
uma alternativa; ninguém o forçou a escolher a alternativa que escolheu;
logo, agiu livremente.
É esta ideia de livre-arbítrio que o texto seguinte defende:

Texto 8

Do facto de o meu comportamento poder ser explicado, no sentido em que pode ser
subsumido por uma lei da natureza, não se segue que estou a agir sob coação.
Se isto for correto, dizer que eu podia ter agido de outra maneira é dizer, primeiro, que eu
teria agido de maneira diferente se assim o tivesse escolhido; segundo, que a minha ação
foi voluntária no sentido em que as ações, digamos, de um cleptomaníaco não o são; e,
em terceiro lugar, que ninguém me obrigou a escolher o que escolhi. E estas três condi-
ções podem muito bem ser respeitadas. E, quando o são, pode dizer-se que agi livre-
mente, mas isto não significa que agir como agi foi uma questão de acaso ou, por outras
Juízo intuitivo
palavras, que a minha ação não poderia ser explicada. E que as minhas ações possam ser
explicadas é tudo o que é exigido pelo postulado do determinismo. […]
Avalie este argumento de acordo com
O meu comportamento pode ser previsto, mas dizer que o meu comportamento pode a sua primeira reação.
ser previsto não é dizer que estou a agir sob coação. É realmente verdade que não posso
escapar ao meu destino, se isto significar apenas que farei o que farei. Mas isto é uma A — Convincente.
tautologia, tal como é uma tautologia dizer que o que vai acontecer vai acontecer. B — Atraente mas não convincente.
E tautologias como estas nada provam sobre o livre-arbítrio.
C — Duvidoso.
a. J. ayeR, «Liberdade e Necessidade», in ALmeida, Aires e MuRcho, Desidério, Temas
e Problemas da Filosofia. Lisboa: Plátano, 2006 [ed. original 1954], pp. 38-39. D — Implausível.

Uma ação é livre, defende o compatibilista, se não é forçada. É a ausência de


coação, e não a ausência de causa, que faz com que uma ação seja livre. Logo,
qualquer ação pode ser causada — como pretende o determinismo — e, ao
mesmo tempo, livre.

Uma objeção ao argumento a favor do


compatibilismo: o comportamento aditivo
Considere-se, por exemplo, poderia objetar o incompatibi-
lista, um alcoólico. Um alcoólico, quando bebe, está a fazer o
que quer: ninguém está a forçá-lo a beber; e ninguém está a
impedi-lo que o faça. Claro que o seu comportamento aditivo
tem uma causa, como pretende o compatibilista. Além disso,
se ninguém o obriga nem o impede de fazer o que quer, está,
se o compatibilista tem razão, a agir livremente. Mas isto
parece contrariar a ideia que temos de ação livre: o alcoólico
não poderia agir de outra maneira. Terá ele uma alternativa
genuína? Fig. 11 — Benefits Supervisor Sleeping (1995), de Lucien Freud.

Parece óbvio que não tem. Deve, por conseguinte, haver algo À primeira vista, o compatibilismo parece ter dificuldade em
explicar por que razão o ato de comer, beber, mentir ou roubar
de errado na maneira como o compatibilista entende a ação compulsivamente não é livre, apesar de ser causado pelas
livre. crenças e desejos do agente.
A ação humana: análise e compreensão do agir 57

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Uma resposta à objeção: tipos de desejos
Deveremos, poderia argumentar o compatibilista, fazer uma distinção entre
desejos de primeira ordem e desejos de segunda ordem: uma coisa é querer
comer um chocolate, outra é querer ter o desejo de comer um chocolate.
No primeiro caso, estaremos perante um desejo de primeira ordem; no
segundo, perante um desejo de segunda ordem: um desejo acerca de um
desejo.
Se quero ter os desejos que tenho, então nada obsta a que a minha ação seja
livre: estarei a fazer o que quero; se, porém, quero não ter os desejos que
tenho, então parece haver um conflito entre os meus desejos de primeira e
os de segunda ordem; e isso é muito semelhante ao que sucede no caso do
comportamento forçado do alcoólico. Neste último caso, parece, portanto,
que não poderemos falar de ação livre, mas daí não se segue que algumas
ações não sejam simultaneamente causadas e livres; é talvez o caso de ações
que desejamos realizar se, ao mesmo tempo, temos o desejo de desejar
realizá-las; e isso, poderia o compatibilista concluir, é tudo quanto precisa-
mos de demonstrar.

Haverá no universo lugar para a liberdade?


Se o determinismo é verdadeiro, como poderemos encontrar no universo
lugar para a liberdade?
Admitamos que é verdadeira a premissa de que todas as ações são causadas
por acontecimentos anteriores e pelas leis da natureza. Assim, o facto de o
seu colega ter erguido a mão, durante a aula, foi causado por acontecimen-
tos anteriores e pelas leis da natureza. Ora, dado que a cadeia
causal de acontecimentos que causou o erguer da mão do seu
colega remonta a um tempo indeterminado no passado — um
tempo em que ele ainda não tinha nascido —, não estava no
seu poder agir de maneira diferente. Como pode o seu colega
ser livre se não pode controlar o que aconteceu no passado?
A esta pergunta poderia o compatibilista responder que o
poder de controlar o passado é irrelevante, do ponto de vista
da liberdade: o que é relevante é aquilo que podemos fazer
neste momento, e não a maneira como chegámos a ter esse
poder. Claro que aquilo que podemos ou não podemos fazer,
neste momento, pode ser explicado por acontecimentos ante-
riores e pelas leis da natureza, mas uma coisa é explicar como
chegámos a ter certos poderes, outra é o que fazemos com os
poderes que atualmente temos.
Usain Bolt pode correr 100 metros em menos de 10 segundos.
Para ele ter, neste momento, esse poder, muitos acontecimentos
tiveram de ocorrer no passado. Esses acontecimentos explicam
o facto de Bolt poder, neste momento, correr 100 metros em
menos de 10 segundos. Mas suponha agora o leitor que é pos-
sível, por uma espécie de milagre da ciência, obter uma réplica
exata de Usain Bolt. Seria razoável supor que a réplica de Bolt
Fig. 12 — Usain Bolt, atleta jamaicano recordista mundial tem o poder de correr 100 metros em menos de 10 segundos.
nos 100 e nos 200 metros. Poderia esse facto ser explicado por acontecimentos que ocor-
O poder de correr os 100 metros em menos de 10 segundos reram no passado? Não, porque a réplica de Bolt não tem pas-
pode ser cabalmente explicado pelo passado. Mas o que sado. Logo, os acontecimentos passados são irrelevantes para
Bolt faz com esse poder, segundo o compatibilista, não é aquilo que a réplica de Bolt pode ou não fazer.
controlado pelo passado.

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O facto de termos certos desejos e certas crenças é explicado pelo nosso
passado, mas é igualmente explicado pelo nosso passado o facto de termos,
neste momento, o poder de decidir quais desses desejos e dessas crenças
vão prevalecer. É verdade que não está sob o nosso controlo a maneira
como chegámos a ser o que, neste momento, somos e a ter os poderes que,
neste momento, temos, mas um dos poderes que neste momento temos é
o de decidir o que vamos fazer a seguir, dados os desejos e as crenças que
temos — um poder que o passado explica, mas não controla. É nisto que,
segundo o compatibilista, pode consistir a nossa liberdade.
Mas há quem veja demasiada segurança nesta conclusão compatibilista.
Algum ceticismo talvez seja mais prudente. É o que afirmam aqueles que
veem no problema do livre-arbítrio um problema sem solução. Vejamos
uma maneira de expor essa ideia:

Texto 9

Acredito que, num certo sentido, o problema não tem solução porque algo na ideia de
ação é incompatível com as ações serem acontecimentos e os seres humanos coisas. No
entanto, à medida que as determinantes externas do que alguém fez são gradualmente
expostas nos seus efeitos sobre as consequências, caráter e a própria escolha, torna-se
gradualmente claro que as ações são acontecimentos e as pessoas coisas. Eventual-
mente, nada restará que possa ser atribuído à responsabilidade de um eu, e não nos
caberá senão uma parte de uma imensa sequência de acontecimentos, que pode ser
deplorada ou celebrada, mas não censurada ou elogiada.
thomaS nageL, Mortal Questions. Ed. Cambridge, 1991, p. 37.

Avaliação crítica
Algo nas ações não pode ser reduzido a um acontecimento. Pensamos assim
quando vemos as nossas ações a partir da nossa experiência de deliberação Assinale agora a sua avaliação ponderada
— quando as vemos a partir de dentro. Esta é uma perspetiva com que con- do argumento do compatibilismo.
vivemos intimamente. É aquela que nos oferece a ideia, talvez consoladora, A — Convincente.
de que temos livre-arbítrio. Mas, se começarmos a ver de fora as nossas ações B — Atraente mas não convincente.
e formos alargando essa perspetiva, a nossa capacidade de agir livremente
parece mergulhar indistintamente numa vastidão impessoal de causas e efei- C — Duvidoso.
tos. Para os mais céticos, fica assim sem resposta a questão de saber se há no D — Implausível.
universo lugar para a liberdade.

Atividades

1 Com que argumento é defendido o compatibilismo?

2 Que objeção enfrenta o argumento a favor do compatibilismo?

3 Apresente a distinção entre desejos de primeira ordem e desejos de segunda ordem. Dê exemplos.

4 Segundo o compatibilista, uma coisa é explicar como chegámos a ter certos poderes, outra é o que fazemos com os poderes
que atualmente temos. Esclareça esta ideia.

5 Explique a posição cética sobre o problema do livre-arbítrio.

Debate

Será o compatibilismo uma teoria melhor do que o incompatibilismo? Porquê?

A ação humana: análise e compreensão do agir 59

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Ideias-chave

A ação humana: análise e compreensão do agir


• Uma ação é um acontecimento intencionalmente causado • O libertista acredita que temos livre-arbítrio e que, por con-
por um agente. seguinte, o determinismo é falso.
• O agente é o sujeito da ação. • O determinismo e o libertismo partilham a característica de
• A intenção é o que faz acontecer a ação. serem ambas teorias incompatibilistas, defendendo que o
determinismo e o livre-arbítrio são incompatíveis.
• Falar da «rede conceptual da ação» é falar dos conceitos que
nos permitem definir e explicar as ações, distinguindo-as de • O compatibilista defende que o determinismo e o livre-arbítrio
outros acontecimentos que não são ações. são compatíveis — uma ação é determinada e, ao mesmo
tempo, livre.
• Explicar uma ação é dizer por que razão aconteceu. Desse
modo, descreve-se adequadamente uma ação quando se • Do ponto de vista do compatibilista, uma ação é livre se não
exprime a ligação causal entre o acontecimento e a intenção é forçada.
do agente. • O dilema do determinismo afirma que ou as nossas ações
• A fim de explicar qualquer acontecimento, recorremos à acontecem por acaso ou são determinadas.
ideia de causalidade: acreditamos que qualquer aconteci- • Segundo o dilema do determinismo, se as nossas ações
mento tem uma causa e, por sua vez, pode ser a causa de acontecem por acaso, não são livres, mas, se são determina-
outro acontecimento. das, também não são livres.
• A explicação das ações recorre à noção de causalidade do • Segundo o libertismo, há ações livres porque há ações que
agente, que se distingue da causalidade natural. são o resultado do nosso querer.
• A experiência da deliberação consiste em ponderar razões a • O argumento a favor do libertismo defende que a experiên-
favor e contra uma certa ação, e decidir tendo em conta a cia da deliberação revela a capacidade de agir livremente.
ponderação que fizemos. • O libertista afirma que a vontade dos seres racionais, na
• A deliberação pondera razões técnicas, prudenciais e morais. medida em que é capaz de suplantar os desejos e obstáculos
• Uma decisão racional resulta de uma deliberação cuidadosa. externos, tem a capacidade de determinar a ação.

• Uma decisão racional não deve ser confundida com uma • Uma objeção ao libertismo afirma que o livre-arbítrio, defi-
racionalização. nido como a capacidade de a vontade agir apenas segundo
princípios racionais, não existe.
• Quando a decisão é tomada por razões, falamos de «decisão
racional». • O argumento a favor do compatibilismo mostra que temos
livre-arbítrio porque escolhemos, sem sermos coagidos
• O problema do livre-arbítrio levanta-se porque temos simul- nesse sentido, uma das alternativas de ação disponíveis.
taneamente evidência quer de que o determinismo é ver-
dadeiro quer de que temos livre-arbítrio. Ora, estas duas • Uma objeção ao argumento a favor do compatibilismo
crenças parecem incompatíveis. recorre ao comportamento aditivo e afirma que esse com-
portamento não é livre, ainda que não seja coagido.
• O livre-arbítrio é a capacidade de agir livremente.
• O compatibilista responde à objeção baseada no comporta-
• Dizemos que uma ação é livre se o agente age de uma mento aditivo dizendo que não basta ter um desejo e não
maneira podendo ter agido de maneira diferente. ser forçado a realizá-lo para ser livre — é ainda preciso dese-
• O determinista defende que não temos livre-arbítrio, mas jar esse desejo (desejo de segunda ordem), coisa que geral-
apenas a ilusão de que o temos: o que nos leva a acreditar no mente não acontece no comportamento aditivo.
livre-arbítrio é a ignorância das causas que determinam as
nossas ações.

Para aprofundar conhecimentos

Leituras:
AlmeidA, Aires (org.) — Dicionário Escolar de Filosofia. Lisboa: Plátano Editora, 2009.
Conee, earl e Sider, Theodore — Enigmas da Existência: Uma Visita Guiada à Metafísica. Lisboa: Bizâncio, 2010 [ed. original 2003]
(especialmente o capítulo «Livre-Arbítrio e Determinismo»).
GeorGe, Alexander (org.) — Que Diria Sócrates? Lisboa: Gradiva, 2008 [ed. original 2007] (especialmente as páginas 235 e 236).
nAGel, Thomas — Que Quer Dizer Tudo Isto? Lisboa: Gradiva, 1995 [ed. original 1987] (especialmente o capítulo «Livre-Arbítrio»).

60 Unidade 2

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Esquema-síntese

A ação humana: análise e compreensão do agir

Agente

Ações envolvem
Intencionalidade
humanas

Causalidade do agente

Serão livres?

São determinadas pelos São livres quando são realizadas São livres quando são
acontecimentos anteriores e pelas sem coação. determinadas pela deliberação
leis da natureza. racional do agente.

Determinismo Compatibilismo Libertismo

Não temos livre-arbítrio. Temos livre-arbítrio. Temos livre-arbítrio.

Filmes:
Os Agentes do Destino (2011), realizado por George Nolfi.
Corre, Lola, Corre (1998), realizado por Tom Tykwer.

Páginas da Internet:
http://criticanarede.com/met_accao.html (artigo «Ação», de Jennifer Hornsby)
http://criticanarede.com/determinismo.html (artigo «Livre-Arbítrio e Determinismo», de Clifford Williams)

A ação humana: análise e compreensão do agir 61

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TEsTE FORmATIvO 2

CLAssIFIQUE As AFIRmAÇÕEs sEGUINTEs COmO vERDADEIRAs OU FALsAs

  1.  Todos os acontecimentos são ações.

  2.  Todas as ações são acontecimentos.

  3.  Todos os acontecimentos que envolvem agentes são ações.

  4.  Para que um acontecimento seja uma ação, tem de ser intencional.

  5.  Uma ação é um acontecimento intencionalmente causado por um agente.

  6.  Para explicar uma ação, basta recorrer à causalidade natural.

  7.  A explicação das ações exige o recurso a um tipo específico de causalidade


— a causalidade do agente.

  8.  Espirrar é uma ação.

  9.  Simular um espirro é uma ação.

 10.  Explicar adequadamente um acontecimento é apresentar as suas causas.

11. Explicar adequadamente uma ação é apresentar a intenção que a causou.

12. A partir da ideia de que todos os acontecimentos são causados por acontecimentos
anteriores e pelas leis da natureza, pode concluir-se validamente que todas as ações
também o são, visto que todas as ações são acontecimentos.

 13.  O determinismo é a crença de que nem tudo tem uma causa.

14.  Se o determinismo é verdadeiro, as nossas ações são o efeito de uma série


de acontecimentos anteriores sobre os quais não temos controlo.

 15.  Segundo Espinosa, acreditamos ilusoriamente que somos livres, porque ignoramos
as causas das nossas ações.

16. O dilema do determinismo conduz à conclusão de que somos responsáveis pelas nossas ações.

 17.  S
  egundo o dilema do determinismo, sejam as nossas ações determinadas ou aconteçam
por acaso, não somos responsáveis por elas.

 18.  O indeterminismo é a crença de que nada tem uma causa.

 19.  O indeterminismo é a crença de que nem tudo tem uma causa.

 20. Quem aceita que «se as nossas ações são causadas por acontecimentos anteriores e pelas leis
da natureza, não somos livres» pensa, necessariamente, que não existem ações livres.

 21.  Um libertista acredita que há ações livres e, por conseguinte, que o determinismo é falso.

 22.  Um libertista acredita que há ações livres, apesar de o determinismo ser verdadeiro.

 23. Tanto o determinista como o libertista acreditam que o livre-arbítrio não é compatível com
o determinismo.

 24. O libertismo é uma teoria compatibilista, pois sustenta que o livre-arbítrio é compatível com
o determinismo do universo físico.

 25. O libertismo defende que nada do que fazemos é determinado por acontecimentos
anteriores e pelas leis da natureza.

 26. O libertista sustenta que, por vezes, fazemos certas coisas podendo não as ter feito.

 27. A experiência da deliberação fornece-nos um argumento incontestável a favor do libertismo.

62 Unidade 2

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 28. O libertismo defende que a vontade tem capacidade causal sobre as ações.

 29. O argumento a favor do libertismo permite concluir que agir segundo deveres morais não
exige livre-arbítrio.

 30. A objeção ao argumento a favor do libertismo afirma que temos livre-arbítrio apenas quando
a nossa vontade exerce controlo absoluto sobre as circunstâncias.

 31. A objeção ao argumento a favor do libertismo defende que este erra ao pretender que só
temos livre-arbítrio quando as nossas ações não são influenciadas pela sorte.

 32. O compatibilismo rejeita a crença de que, se o determinismo é verdadeiro, então não há


ações livres.

 33. O compatibilismo defende que umas coisas estão determinadas e outras não.

 34. O compatibilismo defende que tudo está determinado.

 35. O compatibilismo defende que, uma vez que tudo está determinado, não somos livres.

 36. O compatibilismo defende que, uma vez que somos livres, nem tudo está determinado.

 37. O compatibilismo defende que somos livres, apesar de tudo estar determinado.

 38. Segundo o compatibilismo, uma razão para agir fornece uma explicação perfeitamente
razoável de uma dada ação.

 39. Ter livre-arbítrio é, segundo o compatibilismo, ter a capacidade de escolher os motivos da ação.

 40. Segundo o compatibilismo, o livre-arbítrio consiste na capacidade de escolher a ação que


queremos realizar.

 41. O compatibilismo afirma que uma ação é livre se não é determinada nem realizada sob coação.

42. O compatibilismo afirma que uma ação é livre desde que seja realizada sem coação, ainda
que seja determinada.

 43. Uma ação é livre se o agente quer realizá-la, dados os motivos que lhe acontece ter.

 44. Uma objeção ao compatibilismo afirma que esta teoria não é capaz de dar conta da diferença
entre um comportamento aditivo e um comportamento que considera livre.

 45. O compatibilismo está de acordo com a nossa intuição de ação livre.

 46. Dada a maneira como define livre-arbítrio, o compatibilismo terá de admitir que
o comportamento aditivo de um alcoólico é livre.

 47. Uma defesa da teoria compatibilista recorre à distinção entre desejos de primeira ordem
e desejos de segunda ordem.

 48. O desejo de comer um gelado é um desejo de segunda ordem e o desejo de desejar comer
um gelado é um desejo de primeira ordem.

 49. O compatibilismo apela a desejos de primeira ordem e desejos de segunda ordem para dar
conta da distinção entre um comportamento aditivo e um comportamento livre.

 50. Os desejos de primeira ordem são desejos acerca dos nossos desejos.

 51. A teoria compatibilista afirma que o comportamento aditivo é livre na medida em que revela
um conflito entre os desejos de primeira ordem e os desejos de segunda ordem.
F; 34. V; 35. F; 36. F; 37. V; 38. V; 39. F; 40. V; 41. F; 42. V; 43. V; 44. V; 45. F; 46. V; 47. V; 48. F; 49. V; 50. F; 51. F.
1. F; 2. V; 3. F; 4. V; 5. V; 6. F; 7. V; 8. F; 9. V; 10. V; 11. V; 12. V; 13. F; 14. V; 15. V; 16. F; 17. V; 18. F; 19. V; 20. F; 21. V; 22. F; 23. V; 24. F; 25. F; 26. V; 27. F; 28. V; 29. F; 30. F; 31. V; 32. V; 33.
SOLUÇÕES:

A ação humana: análise e compreensão do agir 63

365178 032-063 U2.indd 63 13/03/13 15:56


Unidade

3 Os valores: análise e compreensão


da experiência valorativa

3.1 Valores e valoração: a questão dos critérios valorativos
3.1.1 Factos e valores
3.1.2 A experiência valorativa
3.1.3 Os valores segundo o relativismo moral
3.1.4 Os valores segundo o realismo moral
3.1.5 Os valores segundo o subjetivismo moral

3.2 Valores e cultura: a diversidade e o diálogo de culturas


3.2.1 Uma comunidade moral ou muitas comunidades morais?
3.2.2 O diálogo entre culturas e o argumento relativista da tolerância
3.2.3 O diálogo entre culturas e o realismo moral

Objetivos da unidade Conceitos fundamentais

No fim desta unidade, deverá ser capaz de responder Os conceitos seguintes, que são centrais nesta unidade,
às seguintes questões: são definidos no fim do livro:
Que relação há entre juízos de facto e juízos de valor? juízo de facto
Quais são as dimensões da experiência valorativa? juízo de valor
O que são os valores segundo o relativismo moral, realismo moral
o realismo moral e o subjetivismo moral? relativismo moral
Que dificuldades enfrentam a teoria relativista, a teoria subjetivismo moral
realista e a teoria subjetivista?
Como é entendido o diálogo entre culturas diferentes
a partir de cada uma destas teorias acerca dos valores?

Introdução

Gostaríamos que muitas coisas fossem diferentes do que são. Gostaríamos que fossem melhores e mais perfeitas. E também nos incluímos
nesse desejo, porque talvez não sejam poucas as vezes em que deveríamos ter sido diferentes, para melhor, claro. Por que razão isto acon-
tece? Porque temos valores a partir dos quais julgamos praticamente tudo: objetos, ações e agentes. Os factos, felizmente, não nos bastam.
Isso significa duas coisas: que os nossos valores questionam os factos fornecidos pela experiência e que temos a aspiração de moldar o
mundo a partir dos nossos valores. Daí resulta que a vida humana é incompreensível sem valores. Isto é óbvio e não parece digno de uma
atenção especial. Mas, se pensarmos um pouco, veremos que há aqui um aspeto intrigante. Afinal, em que consistem os valores? Falar de
valores é falar de sentimentos, factos, ou simplesmente dos padrões culturais de cada sociedade?

64 Unidade 3

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Estímulo

A história que irá ler pretende testar:


• as suas crenças acerca do que são os valores;
• a posição que teria neste caso;
• se os valores são relativos ou não.

O banqueiro relativista
A Sara e o João tinham acabado de jantar. Quase mudar o mundo. Além de que não estás a ser tole-
deitada no sofá, a Sara pegou no livro que andava rante. Cada cultura tem os seus valores. Se não respei-
a ler. Era a história de um jogador da Bolsa que não tares esses valores, como é que queres que respeitem
conseguia controlar a sede de ganhar dinheiro. O João os da tua cultura?
também se aninhou no sofá e abriu um livro sobre
A Sara estava surpreendida com o raciocínio do João.
a cultura do Médio Oriente. A Sara espreitou a capa
Por isso comentou com alguma dureza:
do livro que João lia e ficou surpreendida.
— Estranho. Pareces disposto a tolerar tudo. Se a
— A ler um livro sobre o Médio Oriente? Nunca me
minha cultura tiver valores errados, não quero que os
pareceste muito interessado num assunto desses. Será
respeitem, mas antes que os mudem.
que estás a pensar em fazer negócios por essas para-
gens? O João contrariou a Sara:
— Por acaso até estou, acertaste — respondeu o João. — Valores errados? O que queres tu dizer com isso?
Os valores deles estão errados para a tua cultura, e os
— Vais expandir o banco para um país do Médio
teus estão errados para a cultura deles. É tudo relativo.
Oriente? — perguntou a Sara.
A Sara replicou:
— Tudo indica que sim. Há muitas oportunidades
de negócio em alguns países da zona. — Com que então é tudo relativo! Não sabia que te
tinhas tornado relativista. Tenho pena. Para mim, há
Em seguida, o João falou sobre o crescimento econó-
valores corretos e valores errados. Não é porque uma
mico desses países e a segurança que os seus governos
cultura aprova certos valores que eles passam a estar
ofereciam a quem quisesse instalar-se lá. Parecia entu-
corretos para essa cultura; nem para essa nem para
siasmado. Manejava números com facilidade e estava
nenhuma.
convencido de que o banco a que presidia
teria um enorme sucesso. A Sara impa-
cientou-se com tanto conhecimento eco-
nómico. O seu marido não parecia querer
saber de mais nada. E perguntou:
— Falas apenas de economia. Esqueces
que a cultura e as leis de alguns desses
países deixam muito a desejar.
— Referes-te a quê? — perguntou o João.
— Refiro-me aos direitos das mulheres,
por exemplo. Mas também poderia falar-
te de não haver democracia nem liber-
dade de opinião.
Prontamente, o João disse:
— Que tenho eu a ver com isso? Vou sim- Fig. 1 — Cruel Culture, de Malcolm Evans.
plesmente fazer o meu trabalho. Não quero

Os valores: análise e compreensão da experiência valorativa 65

365178 064-097 U3.indd 65 13/03/13 15:56


O João afirmou: — Pois eu acho que tu é que não tens os pés assentes
na realidade. Vê bem o que se passa à tua volta. Há
— Estás a ver mal as coisas. Sempre foste uma idea-
muitas verdades acerca dos valores; e muitas outras
lista. Põe os pés na realidade: nunca houve acordo
serão descobertas. Queres exemplos? Não é verdade
acerca dos valores. E não é agora que vai haver, acre-
que as mulheres devem ter a liberdade de viver como
dita nisso. Numa cultura é correto que as mulheres se
entenderem? Ou a liberdade de se vestirem da
comportem de uma determinada maneira; noutra é
maneira que acharem mais agradável? Ou de terem o
errado.
trabalho que pensam ser mais compensador? Isto não
A Sara cortou: são verdades?
— Como assim? Nunca houve acordo acerca do que — Infelizmente, não — respondeu o João. — São
achamos correto ou não? apenas os teus valores. Exprimem os teus sentimen-
O João disse: tos, e talvez os da tua cultura, e nada mais.

— Claro que não. Estás a fazer confusões. Uma coisa Um bocadinho irritada com as palavras secas do João,
é a ciência, outra bem diferente são os valores, ou a a Sara afirmou:
ética, ou a moral, como lhe quiseres chamar. Na ciên- — Estás enganado. Eu não tenho certos valores por
cia há acordo. Toda a gente aceita que a composição causa do que sinto, mas porque descobri boas razões
química da água é H2O. E sabes porquê? Porque essa para os defender. Diz-me uma coisa: será que estás a
é uma verdade acerca da água. pensar jantar com governantes desses países?
A Sara observou: — Claro que sim — disse o João. — Há algum mal
— Queres dizer que não há verdades acerca dos valo- nisso?
res, é isso? — Pode haver. É que, se estás a pensar levar-me, não
— É isso — respondeu o João. E continuou: — Por contes comigo. Eu, de corpo todo tapado e cabeça
muito que te custe. É isso que explica o desacordo coberta por um véu? Nem pensar! Não acho que
entre as pessoas, as culturas, os grupos, e sei lá mais o esteja certo pelo simples facto de me ser imposto.
quê. Lamento que não penses da mesma maneira.
Inspirado na obra Ethical Theory 1 — The Question of Objectivity,
de James Rachels, e na obra Relativism, de Maria Baghramian.

Guião de leitura

1 Formule o problema que é discutido.

2 Apresente os dois argumentos do João a favor da ideia de que os valores são relativos: o argumento da variação cultural
e o argumento do desacordo.

3 Identifique as objeções da Sara a cada um dos argumentos apresentados pelo João.

Fazer filosofia

1 Debata com toda a turma este caso, procurando defender cuidadosamente uma posição própria.

2 Classifique o grau de tolerância do João e da Sara.


A — Muito tolerante.
B — Razoavelmente tolerante.
C — Razoavelmente intolerante.
D — Muito intolerante.
2.1 Justifique a sua resposta perante a turma.

66 Unidade 3

365178 064-097 U3.indd 66 13/03/13 15:56


3.1 Valores e valoração: a questão
dos critérios valorativos
3.1.1   Factos e valores
No final da história que acabou de ler, a Sara recusa sujeitar-se a certas
regras de vestuário, simplesmente pelo facto de serem impostas.
Sem dúvida de que esse seu gesto merece a nossa simpatia. É um facto
conhecido que, em alguns países, as mulheres estão sujeitas a regras de
vestuário que limitam drasticamente a liberdade de se vestirem da maneira
que acham mais agradável. Sobre esse facto, Sara foi muito clara no juízo
que fez: é errada essa sujeição, essa limitação da liberdade. Este juízo é a
apreciação valorativa que faz desse facto. Diz-se, por isso, que é um juízo
de valor. Temos então um facto — a sujei-
ção das mulheres a regras de vestuário —
e um juízo de valor sobre esse facto —
é errada a sujeição das mulheres a regras
de vestuário.
O juízo de valor da Sara diz como as coisas
deveriam ser. As coisas, segundo esse juízo,
deveriam ser de um modo que não limitasse
a liberdade de as mulheres se vestirem como
acham mais agradável. Porque dizem como
as coisas deveriam ser, os juízos de valor são
normativos; os juízos de facto, uma vez que
dizem como as coisas são, têm uma natu-
reza diferente — são descritivos.
O caso da Sara mostra que a informação
descritiva, fornecida pelo juízo de facto, é
relevante para o seu juízo de valor. Isto é
geralmente aceite e indica que os factos têm
conteúdo normativo. Por isso, de uma alte-
ração dos factos resulta igualmente uma Fig. 2 — Mulheres usando burka, em Marrocos.
alteração dos juízos de valor. O esquema Em algumas sociedades, a sujeição das mulheres a esta regra de vestuário
seguinte exemplifica esse processo. é um facto. Mas é simplesmente um facto ou tem conteúdo normativo?

Juízos de facto Juízos de valor

O Tiago quebrou uma É errado que o Tiago tenha


promessa. quebrado uma promessa.

É correto que o Tiago tenha


O Tiago quebrou uma promessa
quebrado uma promessa para
para salvar uma vida.
salvar uma vida.

É errado que o Tiago tenha


O Tiago quebrou uma promessa
quebrado uma promessa para
para salvar uma vida, mas
salvar uma vida e que muitas
muitas mais se perderam.
mais se tenham perdido.
Esquema 1 — Juízos de facto e juízos de valor.

Os valores: análise e compreensão da experiência valorativa 67

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Como pôde verificar, precisamos de informação factual para estarmos em
condições de fazer juízos de valor. O senso comum tem uma maneira de
dizer isto quando afirma que, sem conhecimento de causa, devemos abs-
ter-nos de fazer juízos sobre as pessoas e os seus atos. O juízo de valor
é o resultado da passagem do nível dos factos — o nível descritivo — para
o nível dos valores — o nível normativo ou valorativo. O problema que
aqui se põe é o de compreender essa passagem. Haverá um padrão que nos
permita compreender a transição do nível descritivo para o nível norma-
tivo? Se sim, qual é esse padrão?
Os filósofos têm apresentado respostas diferentes para este problema.
Há respostas que sugerem padrões de transição bastante simples e outras
em que esses padrões são complexos, por vezes ao ponto de não serem
codificáveis num princípio. Vejamos alguns princípios que codificam esses
padrões.
i. Uma ação é correta quando maximiza a felicidade da maioria.
ii. U
ma ação é correta quando trata os seres humanos como fins em si
mesmos, e não apenas como meios.
iii. U
ma ação é correta quando, depois de ponderação, satisfaz os deveres
que temos melhor do que qualquer alternativa disponível.
iv. U
ma ação é correta quando um agente com todas as virtudes a reali-
zaria.
Estes princípios são maneiras alternativas de codificar a transição dos juí-
zos de facto para os juízos de valor. Eles permitem a apreciação dos factos
à luz de um critério de valor, resultando daí os juízos de valor. Por isso,
poderíamos chamar-lhes também critérios valorativos.
A ética de John Stuart Mill, que estudará mais à frente, é uma defesa do
primeiro princípio, e a ética de Immanuel Kant, que também irá estudar,
é uma defesa do segundo princípio.
De um modo geral, a ética é a disciplina filosófica que tem procurado esta-
belecer com segurança a melhor maneira de apreciar factos segundo um
critério de valor. Nenhum dos critérios valorativos apresentados até hoje
responde cabalmente ao desafio de compreender a transição dos factos
para os valores. É por essa razão que o debate motivado por esse desafio
tem sido intenso e muito rico.
Agora é altura de conhecer os aspetos centrais da experiência em que ocor-
rem os juízos de valor: a experiência valorativa.

Atividades

1 Considere os seguintes juízos de valor:


A — As mulheres devem ser as prestadoras primárias de alimento aos bebés.
B — O cacau deve ser comprado aos seus cultivadores acima do preço de mercado.
1.1 Apresente os juízos de facto que poderiam fornecer informação relevante para estes juízos de valor.

2 Imagine que uma empresa, para ser muito mais competitiva do que já era, passou a pagar salários mínimos a todos os seus tra-
balhadores. Qual dos princípios ou critérios valorativos apresentados faria resultar desse facto um juízo de valor negativo?

3 Qual é o papel dos critérios valorativos?

4 Que relação há entre a disciplina filosófica chamada ética e os critérios de valor?

68 Unidade 3

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3.1.2   A experiência valorativa
A vida humana é incompreensível sem a experiência do valor. Temos esta
experiência quando descobrimos coisas com valor na natureza: ficamos
encantados com a beleza discreta de um vale e experimentamos assombro
perante a imponência de uma montanha.
A experiência do valor ocorre também no contacto com obras de arte. Isso
explica que a melodia intensa de uma música nos deixe arrebatados e que
a graça dos movimentos de uma dança proporcione uma sensação de har-
monia. Os casos da experiência do valor deste tipo são estudados pela esté-
tica, uma disciplina filosófica que se ocupa do valor na arte e na natureza.
A ética, de que já ouviu falar, estuda outros casos da experiência do valor.
Assim, descobrimos valor em certas pessoas e ações, e seria bom que o
encontrássemos também em nós. Julgamos pessoas, dizendo que elas são
boas, justas, ou generosas; mas dizendo também, infelizmente, o contrário
disso — que são más, injustas e egoístas. Fazer avaliações deste tipo é pen-
sar em termos morais. Como provavelmente já terá concluído, esta experiên-
cia do valor, uma vez que diz respeito a pessoas e a tudo o que é digno de
consideração, é especialmente importante.

A experiência valorativa é a experiência do valor nas suas diversas


Fig. 3 — Um movimento de dança pode
formas, seja naquelas em que é estudada pela estética ou naquelas provocar uma experiência valorativa.
de que se ocupa a ética.

Por agora, iremos tratar da experiência do valor moral. Começaremos por


analisar essa experiência para que assim fiquem claros os seus aspetos mais
proeminentes. Vejamos então o que o texto seguinte afirma.

Texto 1

Há dois sentimentos contrastantes acerca da nossa vida moral que, Esta perspetiva da escolha moral colide com o segundo sentimento
de algum modo, todos partilhamos. Por um lado, é frequente sentir- que todos partilhamos — o de ser frequentemente difícil, quando
mos que a moralidade é uma área de decisão pessoal, um domínio perante a urgência de uma perplexidade moral, descobrir que res-
em que cada um de nós tem o direito de tomar a sua própria decisão posta é a correta. Se estou desorientado quanto ao que devo fazer,
acerca do que fazer. Ainda que as outras pessoas possam oferecer então é provável que sinta que o que importa não é que a resposta a
conselhos sobre o que devemos fazer e que princípios morais deve- que chego deva ser a minha, e pela qual estou preparado para arcar
mos adotar, elas não têm autoridade para nos dizerem como viver as com a responsabilidade última, mas que seja a resposta correta. Não
nossas vidas. Não há peritos em moral. […] penso na minha escolha como algo que determina a resposta correta;
o que quero, pelo contrário, é que a minha escolha seja determinada
É assim que podemos sentir que o que importa não é que a nossa
pela resposta correta. É porque temo que possa fazer uma escolha
decisão seja a correta — pois quem determina a decisão correta? —,
errada que encaro a decisão como tão difícil.
mas que cada um de nós tome a sua decisão. Cada um de nós, como
por vezes se diz, tem de determinar o que está certo para si. Cada um DaviD Mcnaughton, Moral Vision — An Introduction to Ethics.
de nós tem de decidir segundo que valores quer viver a sua vida e os Ed. Blackwell, 1988, pp. 3-4.
restantes devem respeitar a sinceridade dessas escolhas.

O que nos diz o texto? Por um lado, que a experiência valorativa é pessoal;
isso significa que os valores são escolhas pessoais, e que, nessa medida, são
relativos aos agentes. Mas, por outro lado, o texto diz-nos que, em con-
traste com esse aspeto da nossa experiência valorativa, sentimos que os
valores morais são independentes das nossas escolhas; por isso, uma esco-
lha é correta se for determinada pelo valor correto, e não porque é a nossa
escolha. Isto sugere que os valores morais são neutros em relação aos
agentes.

Os valores: análise e compreensão da experiência valorativa 69

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Esta análise permite concluir que a experiência valorativa tem uma dimen-
são subjetiva — aquela em que os valores são relativos aos agentes — e
uma dimensão objetiva — aquela em que os valores são neutros em relação
aos agentes. A dimensão subjetiva envolve a decisão pessoal e a motivação
dos agentes. Por sua vez, a dimensão objetiva envolve respostas morais
corretas e factos morais. Assim, a resposta moral correta é aquela que está
de acordo com os factos morais da circunstância. Estas dimensões são con-
trastantes, verificando-se uma tensão entre elas.

Decisão pessoal
Dimensão
subjetiva
Motivação do agente
Experiência
valorativa
Resposta moral correta
Dimensão
objetiva
Factos morais

Esquema 2 — Aspetos centrais da experiência valorativa.

Uma boa teoria acerca dos valores e juízos morais não pode ser contrária à
experiência valorativa dos agentes. Mas como esta contém elementos con-
trastantes, será possível que uma teoria os articule de maneira satisfatória?
Veremos agora como respondem a este desafio as teorias acerca dos valores
e juízos morais que fazem parte do seu plano de estudos.

Relativismo
Os valores são padrões culturais.
moral

Teorias Realismo
acerca dos Os valores são factos morais.
moral
valores

Subjetivismo Os valores são sentimentos comuns


moral à humanidade.

Esquema 3 — Teorias acerca dos valores.

Atividades

1 Das afirmações seguintes, identifique as que dizem respeito à dimensão subjetiva da experiência valorativa e as que dizem
respeito à dimensão objetiva. Justifique as suas escolhas.
A — Os valores refletem os compromissos mais caros das pessoas.
B — Os valores não dependem das minhas preferências.
C — A moralidade não muda ao sabor das circunstâncias.
D — A honestidade é um valor opcional.

2 Se agirmos de certas maneiras porque o ambiente social em que crescemos nos educou nesse sentido, temos uma experiência
valorativa ou não? Porquê?

3 Por que razão a nossa vida moral é atraída em direções opostas?

70 Unidade 3

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3.1.3   Os valores segundo o relativismo moral

Relativismo moral:
Os valores morais são relativos às sociedades, no sentido em que são
padrões culturais socialmente aprovados.
Um juízo moral correto é um juízo socialmente aprovado numa
cultura.

A tese do relativismo moral


O relativismo moral, que é também conhecido como relativismo cultural,
defende que o certo e o errado se definem por relação a uma cultura. Nada
é simplesmente certo ou errado do ponto de vista moral: é certo se é apro-
vado por uma cultura, e é errado se é desaprovado por ela. Isto significa
que a adoção de medidas de coação física na educação de crianças, por
exemplo, pode ser correta numa cultura e errada noutra.
Os valores morais consistem assim em padrões culturais. E como são mui-
tos e diferentes os padrões culturais, serão muitos e diferentes os valores
morais que regulam o comportamento das sociedades.
A fábula O Velho, o Burro e o Moço, de La Fontaine, exprime com graça a
tese do relativismo moral.

Texto 2

Partia um velho campónio «Rapaz», diz o bom do velho:


do seu monte ao povoado, «se de irmos a pé murmuram,
levava um neto que tinha, ambos no burro montemos
no seu burrinho montado. a ver se inda nos censuram». Fig. 4 — Crianças a trabalhar numa fábrica
de chá, na China.
Encontra uns homens que dizem: Montam, mas ouvem dum lado: O trabalho infantil ainda é aceite em
«Olha aquele, que tal é! «Apeiem-se, almas de breu! algumas culturas.
Montado o rapaz que é forte, Querem matar o burrinho?
E o velho, trôpego, a pé!» Aposto que não é seu!»

«Tapemos a boca ao mundo». Diz o velho: «Têm ralhado


O velho disse: «Rapaz, de tudo. Que mais nos resta?
desce do burro, que eu monto, Peguemos no burro às costas
e vem caminhando atrás.» Façamos ainda mais esta.»

Monta-se, mas dizer ouve: «Olhem dois loucos varridos!»


«Que patetice tão rata! ouvem com grande sussurro,
O tamanhão, de burrinho, «fazendo o mundo às avessas,
e o pobre pequeno, à pata!» tornados burros do burro!»

«Eu me apeio», diz, prudente, O mundo ralha de tudo,


O velho de boa-fé; tenha ou não tenha razão.
«Vá o burro sem carrego, Aqui lhes fica uma história
e vamos ambos a pé.» em prova dessa asserção.

Apeia-se e outros lhe dizem: La Fontaine, O Velho, o Burro e o Moço


«Toleirões, calcando lama! (tradução de Almada Negreiros).
De que lhes serve o burrinho?
Dormem com ele na cama?»

Os valores: análise e compreensão da experiência valorativa 71

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Todos os grupos humanos, afinal, têm razão, se o juízo moral que fazem é
socialmente aprovado. Esta seria a conclusão do observador relativista. Tal
diversidade é desconcertante para o velho e o moço, que parecem desistir
de saber quem tem razão. O mesmo se passa com as sociedades. Cada uma
apenas pode dizer das outras que os juízos que fazem não são os seus. Por
isso, defender o relativismo moral é estar impedido de dizer sobre uma
cultura diferente ou sobre algumas das suas práticas que são moralmente
erradas. Eis como apresenta a ideia básica do relativismo moral um dos
seus mais destacados defensores:

Texto 3

A minha tese é a de que a moralidade surge quando um grupo de Um cão pode ser grande em relação aos chihuahuas, mas não
pessoas alcança um acordo implícito ou chega a um entendimento grande em relação aos cães em geral. Do mesmo modo, argumenta-
tácito acerca das relações entre si. Parte do que quero dizer com isto rei que uma ação pode ser errada em relação a um acordo, mas não
é que os juízos morais […] fazem sentido apenas em relação, ou por em relação a outro. Tal como não faz sentido perguntar se um cão é
referência, a um ou outro acordo ou entendimento. […] grande, fora de qualquer relação com um acordo, argumentarei que
também não faz sentido perguntar se uma ação é errada fora de
O meu relativismo moral é uma tese sobriamente lógica […]. Tal
qualquer relação com um acordo.
como o juízo de que algo é grande faz sentido apenas em relação a
uma ou outra classe de comparação, irei argumentar que também o giLbert harMan, «Moral Relativism Defended», in Ethical Theory,
juízo de que é errado alguém fazer algo faz sentido apenas em rela- Russ Shafer-Landau (ed.). Ed. Blackwell, 2007, p. 41.
ção a um acordo ou entendimento.

Cada cultura consiste num acordo que codifica a relação entre as pessoas.
É com base nesse acordo que se aprova ou desaprova moralmente o que as
pessoas fazem.
Para que tudo fique mais claro, o mesmo autor dá em seguida um exemplo
incluído no acordo que regula a nossa vida moral. Trata-se de darmos
geralmente mais peso a não maltratar do que a ajudar os outros. É o que
acontece quando, sinceramente horrorizados, rejeitamos a hipótese de um
médico salvar a vida de cinco pacientes, tirando para isso a vida a um sexto
e distribuindo os órgãos saudáveis deste pelos outros, segundo as necessi-
dades de cada um.
A explicação para o valor de não maltratar ter mais peso do que o valor de
ajudar é a seguinte:

Texto 4

Este aspeto das nossas vidas morais pode parecer bastante enigmá- Seria de esperar um compromisso, e um princípio mais fraco, prova-
tico, especialmente se supomos que os sentimentos morais derivam velmente, seria aceite. Por outras palavras, ainda que todos pudes-
da simpatia e preocupação com os outros. Mas a hipótese de que a sem concordar com um princípio forte a respeito de evitar maltratar,
moralidade deriva de um acordo entre pessoas com poderes e recur- não seria verdade que todos apoiariam um princípio igualmente
sos diferentes fornece uma explicação plausível. Os ricos, os pobres, os forte de ajuda mútua. É provável que apenas um princípio mais fraco
fortes e os fracos beneficiariam todos se tentassem evitar maltratar-se deste tipo ganhasse aceitação geral. Por isso, a hipótese de que a
uns aos outros. Por isso, todos poderiam concordar com essa solução. moralidade deriva de um entendimento entre pessoas com diferen-
Mas os ricos e os fortes não beneficiariam com uma solução em que tes poderes e recursos pode explicar (e, de acordo com o que penso,
todos tentassem fazer o mais possível para ajudar aqueles que preci- de facto explica) que, na nossa moralidade, evitar maltratar seja con-
sam. Os pobres e os fracos ficariam com todos os benefícios desta siderado mais importante do que ajudar aqueles que precisam.
última solução. Uma vez que os ricos e os fortes poderiam prever que giLbert harMan, «Moral Relativism Defended», in Ethical Theory,
deles seria requerida a maior parte da ajuda e que pouco receberiam Russ Shafer-Landau (ed.). Ed. Blackwell, 2007, p. 46.
em troca, teriam relutância em concordar com um princípio forte de
ajuda mútua.

72 Unidade 3

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Além do acordo que estabelece o padrão moral de cada cultura, o texto
torna saliente outro aspeto: a negociação entre pessoas com interesses dife-
rentes que gera esse acordo. Uma negociação ocorre num certo contexto
histórico e social; está, por isso, sujeita a uma grande variedade de fatores.
Isto dá força à ideia de que o seu resultado — o acordo que estabelece
o padrão moral — não é conhecido à partida, o que é característico de
qualquer negociação digna desse nome. Logo, o acordo é contingente. Isto
significa que se chega a um certo acordo, mas que se podia chegar a outro.
Tudo depende dos fatores do contexto e da evolução, sempre imprevisível,
da negociação moral que decorre nas sociedades.
E se seguirmos com rigor este raciocínio, ele também se aplica ao próprio
relativismo moral, que é uma certa maneira de entender os valores, um
padrão teórico muito comum na nossa cultura. Por isso, faz sentido a inter-
rogação: que contexto histórico e social explica o relativismo moral? O que
o fez surgir? No momento oportuno, tentaremos responder a esta questão.
Conhecida a tese do relativismo moral, é natural que pergunte como se
chegou a essa ideia. Que argumentos, perguntará, sustentam o relativismo
moral? Os argumentos mais debatidos são dois: o argumento da variação
cultural e o argumento da tolerância. Veremos agora o argumento da varia-
ção cultural. Fará mais sentido introduzir o argumento da tolerância
quando, mais à frente, tratarmos do diálogo entre culturas.

O argumento da variação cultural


Os valores morais variam de uma cultura para outra. É o caso, entre tantos
outros, dos valores morais a respeito da pena de morte. Numa dada cul-
tura, a pena de morte é sempre errada; noutra, é correta em casos raros; e
noutra ainda é frequentemente correta. Há
pessoas sensatas, cuidadosas e amáveis
nestas culturas, e seria paternalista supor
que pessoas assim existem apenas na cul-
tura que vemos com mais simpatia. Logo,
a pena de morte é errada numa cultura,
raras vezes correta noutra, e frequentes
vezes correta noutra ainda. Os valores
morais a respeito da pena de morte são
então relativos às culturas. Desta conclu-
são, por sua vez, segue-se que não há valo-
res morais objetivos. Que quer isto dizer?
Muito simplesmente que não há valores
morais independentes do que em cada cul-
tura se pensa. E o que em cada cultura se
pensa, como há pouco vimos a respeito do
valor de ajudar, é o padrão moral estabele-
cido por acordo entre as partes de uma Fig. 5 — Ação sobre a pena de morte realizada na Reunião do Conselho
negociação. Internacional da Amnistia Internacional a 15 de agosto de 2007, no México.

Juízo intuitivo

Avalie o argumento da variação cultural de acordo com a sua primeira reação.


A — Convincente. C — Duvidoso.
B — Atraente mas não convincente. D — Implausível.

Os valores: análise e compreensão da experiência valorativa 73

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Uma avaliação crítica do argumento da variação cultural
O argumento enfrenta várias dificuldades, a primeira das quais é sublinhar
apenas as diferenças entre as culturas, quando há cada vez mais valores
comuns a muitas delas. Há cada vez mais valores comuns, por exemplo, na
consideração que se tem pelas mulheres, pelas crianças e pelos deficientes.
Há valores de respeito na relação entre pais e filhos, de lealdade no trabalho
e de cooperação social que poucos duvidam ser indispensáveis a sociedades
prósperas e humanas. Sublinhar apenas os casos de variação cultural, esque-
cendo o que há de comum às diversas culturas, é um preconceito muito
enraizado quando se fala de valores morais — um preconceito cientista.
Segundo esse preconceito, na ciência teríamos verdades seguras, e na ética
verdades seguras não seriam possíveis. Mas esta maneira de ver as coisas
pinta uma paisagem demasiado linear: na ciência, as verdades são encara-
das como falíveis e há também debate intenso; e, na ética, progressos como
a Declaração Universal dos Direitos Humanos e mudanças, transpostas para a
lei, no tratamento de pessoas consideradas vulneráveis (deficientes, crian-
ças, mulheres, por exemplo) restauram a confiança que o relativismo moral
parece abalar.
Compreende-se assim outra dificuldade que o argumento enfrenta. Na ver-
dade, a variação cultural não implica que os valores são relativos nem que
são objetivos. Quanto à natureza dos valores, nada se segue do facto
de haver variação cultural, que em si mesma é neutra. Isto significa que
pode haver variação cultural e os valores morais serem objetivos. Portanto,
o argumento da variação cultural não consegue sustentar conveniente-
mente que os valores são relativos. Falhando este argumento, o relativismo
moral é uma teoria menos segura. Mas pode ainda suceder que um mau
argumento procure apoiar uma boa teoria. Faz então todo o sentido per-
guntar se o relativismo moral, seja qual for o valor dos argumentos que
apresenta, é uma boa teoria. É o que a seguir veremos.

Avaliação crítica

Assinale agora a sua avaliação ponderada do argumento da variação cultural.


A — Convincente. C — Duvidoso.
B — Atraente mas não convincente. D — Implausível.

Atividades

1 Explique e exemplifique a tese do relativismo moral.

2 Como se estabelece, segundo o relativista, o padrão moral de uma cultura?

3 O argumento da variação cultural conclui que os valores são relativos.


Que razões apresenta a favor dessa conclusão?

4 O facto de haver cada vez mais valores comuns é uma objeção ao argumento da variação cultural?
Justifique a sua resposta.

74 Unidade 3

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   Uma avaliação crítica do relativismo moral
A primeira crítica lembra que há práticas erradas que tristemente gozaram
de aprovação social. Práticas que hoje consideraríamos horríveis foram
aprovadas nas culturas em que ocorreram. Os casos da escravatura, da
sujeição das mulheres e do abandono de crianças, por exemplo, não dei-
xam dúvidas a esse respeito. Dizer que estas práticas são erradas porque a
nossa cultura não as aprova é escasso. Pensamos antes que são simples-
mente erradas, sejam quais forem os valores aprovados numa cultura.
A aprovação social de uma prática não equivale a dizer que ela é boa e tem
valor.
A segunda crítica dá voz à razão para acreditarmos que há, felizmente,
progresso moral. O estatuto das mulheres ou dos negros é disso um exem-
plo. Há trezentos anos, a escravatura era geralmente aprovada na Europa e
na América. Hoje, uma prática dessas seria uma expressão acabada de bar-
bárie. Consideramos, portanto, que uma vida livre é melhor do que uma
vida escrava. E, se é melhor, constitui um progresso moral. Por que razão
dizemos que é melhor? Não será porque os nossos valores estão mais pró-
ximos do que está objetivamente certo? Se essa for a sua opinião, terá de
concluir que o relativismo moral não é uma teoria satisfatória.
Fig. 6 — Capa do livro O Silêncio das
Há ainda o teste decisivo que consiste em avaliar se as diferentes teorias Lágrimas, de Fauziya Kassindja.
acerca dos valores estão de acordo com a experiência valorativa. Como se Fauziya Kassindja fugiu da sua nação natal,
porta então o relativismo moral? Não temos razões para dizer que se sai bem. o Togo, para evitar ser submetida à excisão,
também conhecida como mutilação genital
Por um lado, não está de acordo com a dimensão subjetiva da experiência feminina. Será a correção moral de práticas
do valor. De facto, sendo entendidos pela teoria relativista como padrões como esta relativa a cada cultura? Não haverá
culturais, os valores não podem ser sentidos pelos agentes como os seus um padrão moral neutro a que possamos
valores: aqueles que genuinamente escolheram e com que se comprome- apelar para resolver este tipo de casos?
tem nas suas decisões pessoais. O papel dos valores na motivação dos agen-
tes para agir de uma certa maneira fica por explicar. Como podem motivar
os agentes valores que eles não sentem como seus?
O relativismo moral não está ainda de acordo com a dimensão objetiva da
experiência do valor. Como vimos, os agentes querem ter a resposta moral
correta, que é exigida pelos factos morais da circunstância. Todavia, o
relativismo moral faz depender a correção moral de uma resposta da sua
aprovação numa dada cultura. Isso implica que existe uma diversidade
desconcertante de respostas morais corretas. Esse desconcerto dos valores,
que o velho e o moço da fábula de La Fontaine sentiram (ver página 71),
é contrário a um aspeto central da experiência do valor: os valores, além
de nossos, são também objetivos, porque consistem nos factos morais das
circunstâncias.
O relativismo moral está sujeito a objeções muito fortes. É por isso intri-
gante a importância que ganhou no debate moral. Sentimos a necessidade
de uma explicação para esse facto. Daí a pergunta: o que explica o apareci-
mento e a importância do relativismo moral?

Avaliação crítica

Assinale a sua avaliação ponderada do relativismo moral.


A — Verdadeiro. C — Duvidoso.
B — Atraente mas não verdadeiro. D — Falso.

Os valores: análise e compreensão da experiência valorativa 75

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Uma explicação do relativismo moral
A colonização e o imperialismo cultural do
Ocidente formaram o contexto que explica
o aparecimento do relativismo moral. E este
é uma muito compreensível reação contrária
a tais práticas. A supressão de modos de vida
diferentes dos nossos é uma forma de intolerân-
cia para que não se vê justificação. Os exemplos
dessa intolerância são abundantes, desde a con-
versão forçada dos nativos ao cristianismo até
às tentativas de os fazer abandonar a poligamia
e as suas roupas pouco «modestas».
O erro do relativismo moral foi opor-se à ati-
tude extrema do imperialismo cultural do
Ocidente com a atitude igualmente extrema de
recusar qualquer distinção entre práticas
melhores e piores do ponto de vista moral,
como se os valores de sociedades diferentes
Fig. 7 — A Primeira Missa no Brasil (1860), de Victor Meirelles.
estivessem para além de qualquer crítica.
O relativismo moral surge como oposição a um movimento imperialista de
imposição de práticas e padrões culturais aos povos colonizados.

Relativismo moral
Pontos fortes Pontos fracos
• O relativismo moral é uma reação compreensível contra • Falha no teste decisivo: não está de acordo com a dimensão
a colonização e o imperialismo cultural do Ocidente. subjetiva, nem com a dimensão objetiva da experiência do valor.
• O relativismo moral desenvolve a nossa compreensão de que há • O argumento da variação cultural não consegue sustentar a tese
modos diferentes de ter vidas com sentido e integridade. do relativismo moral.
• O relativismo moral é uma teoria que terá de aceitar como
corretas práticas horríveis que sejam socialmente aprovadas.
• O relativismo moral é uma teoria que não consegue explicar
a noção de progresso moral.

Quadro 1 — Pontos fortes e pontos fracos do relativismo moral.

Atividades

1 A conclusão de que os valores são relativos segue-se do facto de haver variação cultural? Porquê?

2 Apresente três razões para considerar o relativismo moral uma má teoria.

3 Se afirmar que uma cultura em que a liberdade de religião é aprovada é melhor do que outra que proíbe certos cultos religiosos,
está a ser relativista ou não? Porquê?

4 Haverá razões históricas que expliquem a importância que o relativismo moral adquiriu na cultura ocidental? Se sim, quais?

Debate

Escolha cinco valores que não considere relativos. Apresente a toda a turma as razões que o levaram a escolher esses valores. Depois de
debater as razões apresentadas, a turma irá escolher os valores que mereceram um consenso maior.
Para cada um dos cinco valores escolhidos, apresente uma circunstância que seja uma exceção plausível a esses valores. Debata com toda a
turma a sua resposta.

76 Unidade 3

365178 064-097 U3.indd 76 13/03/13 15:56


3.1.4   Os valores segundo o realismo moral

Realismo moral:
Os valores morais são objetivos, no sentido em que são
independentes do que pensam e sentem as pessoas e as sociedades.
Um juízo moral correto é um juízo adequado aos factos morais de
cada circunstância.

A tese do realismo moral


Dizer que os valores morais são objetivos significa que o valor de tratar de
modo igual todos os seres humanos, por exemplo, seria correto mesmo que
as sociedades o desaprovassem e as pessoas tivessem sentimentos contrá-
rios ao tratamento igual de todos os seres humanos. O valor da igualdade
entre todos os seres humanos é objetivo, porque é um facto moral que
todos os seres humanos são iguais, do mesmo modo que é um facto moral
que a escravatura é injusta. Juízos que não são adequados a estes factos
morais estão errados. Não se trata de estarem errados relativamente a uma
certa sociedade, mas de estarem objetivamente errados.
Também o senso comum entende deste modo os valores morais. Alguns
filósofos veem nesse acordo com o senso comum uma razão a favor do
realismo moral. Todavia, estar de acordo com o senso comum não faz
do realismo moral uma teoria tradicionalista ou conservadora.
A História mostra o contrário com alguma frequência. Revoluções e impor-
tantes mudanças na sociedade começaram em pessoas convictas de que
certas práticas são objetivamente erradas do ponto de vista moral. Pessoas
assim parecem imbuídas de uma coragem que as eleva acima do medo e
das conveniências. É o caso de Martin Luther King, que liderou um boicote
ao sistema de transportes segregado em Montgomery, no Alabama. Em
28 de Agosto de 1963, após a Marcha sobre Washington, aí proferiu o
discurso «Eu Tenho Um Sonho»,
que 250 000 pessoas escutaram
atentamente. Nele defendia um
programa integracionista para os
Estados Unidos.
Convidamo-lo a ler alguns excer-
tos. Depois fará um exercício filo-
sófico sobre esse discurso. Para
que o compreenda melhor, apre-
sentamos apenas uma nota prévia:
o grande americano a que Martin
Luther King se refere é Abraham
Lincoln; no lugar em que o dis-
curso foi proferido encontra-se o
Memorial a Lincoln, que é um tri-
buto à ação de Lincoln como pre-
sidente dos Estados Unidos.
A Proclamação da Emancipação,
que promulgou em 1863, abolia a
escravatura.
Fig. 8 — Ativistas marchando pelos direitos civis dos negros.

Os valores: análise e compreensão da experiência valorativa 77

365178 064-097 U3.indd 77 13/03/13 15:56


Texto 5

Há cem anos, um grande americano, sob cuja sombra simbólica nos


encontramos, assinava a Proclamação da Emancipação. Esse impor-
tantíssimo decreto foi como um raio de esperança para milhões de
escravos negros que tinham sido cauterizados nas chamas de uma
humilhante injustiça. Veio como uma aurora feliz para pôr termo à
longa noite de cativeiro.
Mas, cem anos mais tarde, temos de enfrentar o facto trágico de que
o Negro ainda não é livre. Cem anos mais tarde, a vida do Negro é
ainda tristemente amputada pelas grilhetas da segregação e pelas
correntes da discriminação. Cem anos mais tarde, o Negro vive na
solidão de uma ilha de pobreza no meio de um vasto oceano de
prosperidade material. Cem anos mais tarde, o Negro ainda definha
nas margens da sociedade americana e descobre-se exilado na sua
própria terra. Por isso, viemos hoje aqui expor o drama desta horrível
condição.
Num certo sentido, viemos à capital do nosso país para cobrar um
cheque. Quando os arquitetos da nossa república escreveram as Fig. 9 — Graffiti de Martin Luther King, na Amadora, elaborado
magnificentes palavras da Constituição e da Declaração de Indepen- por Tazy e Odeith.
dência, estavam a assinar uma promissória de que cada cidadão Aqueles que acreditam que o Negro precisava apenas de desabafar
americano é herdeiro. Este documento era uma promessa de que e que a partir de agora ficará conformado, irão despertar sobressalta-
todos os homens veriam garantidos os direitos inalienáveis à vida, à dos se a nação regressar à sua rotina.
liberdade e à procura da felicidade.
Não haverá descanso nem tranquilidade na América até que o Negro
É óbvio que a América ainda não pagou tal promissória aos seus tenha garantido todos os seus direitos de cidadania. Os ventos da
cidadãos de cor. Em vez de honrar este compromisso sagrado, a revolta continuarão a abalar as fundações da nossa nação até que
América deu ao Negro um cheque sem cobertura: um cheque que amanheça o dia luminoso da justiça. […]
foi devolvido com a nota «saldo insuficiente». Mas nós recusamo-nos
a acreditar que o banco da justiça está falido. Recusamo-nos a acre- Digo-lhes, hoje, meus amigos, que apesar das dificuldades e frustra-
ditar que não existem fundos suficientes nos grandes cofres deste ções do momento, ainda tenho um sonho. É um sonho profunda-
país. Por isso viemos aqui cobrar este cheque — um cheque que nos mente enraizado no sonho americano.
dará as riquezas da liberdade e a segurança da justiça.
Tenho um sonho de que um dia esta nação se levantará e viverá o ver-
Também viemos a este lugar sagrado para lembrar a América da dadeiro significado do seu credo: «Consideramos estas verdades como
poderosa urgência do agora. Este não é o tempo de nos darmos ao evidentes em si mesmas; que todos os homens são criados iguais.»
luxo do adiamento, nem de tomar a droga calmante do gradualismo.
Tenho um sonho de que um dia, nas montanhas rubras da Georgia,
Agora é o tempo de tornar reais as promessas da democracia.
os filhos de antigos escravos e os filhos dos seus antigos donos serão
Agora é o tempo de sairmos do vale escuro e desolado da segre- capazes de sentar-se à mesa da fraternidade.
gação para o caminho iluminado da justiça racial. Agora é o tempo
de abrir as portas da oportunidade para todos os filhos de Deus. Tenho um sonho de que um dia até o estado do Mississípi, um
Agora é o tempo de erguer o nosso país das areias movediças da estado deserto, sufocado pela injustiça e opressão, será transfor-
injustiça racial para a rocha sólida da fraternidade. mado num oásis de liberdade e justiça.

Seria fatal para a nação ignorar a urgência do momento e subestimar Tenho um sonho de que os meus quatro pequenos rebentos viverão
a determinação do Negro. um dia numa nação onde não serão julgados pela cor da sua pele,
mas pelo seu caráter.
Este opressivo verão do legítimo descontentamento do Negro não
passará até que chegue o revigorante outono de liberdade e igual- Tenho um sonho, hoje.
dade. 1963 não é um fim, mas um começo. Discurso de Martin Luther King, proferido a 28 de agosto de 1963.

Martin Luther King defende apaixonadamente certos valores. Mas não os


Atividades
justifica à luz dos seus sentimentos, nem espera que passem a ser plausíveis
depois de uma aprovação social mais forte, que infelizmente tardava. Por isso
1 Que termos e expressões do texto
designam ou sugerem valores diz, a certa altura, que os valores por que luta — e diga-se que o fez de modo
morais? pacífico — são verdades evidentes em si mesmas. Que significado filosófico
tem esta afirmação? Tem sobretudo um, que é o seguinte: os valores que
2 Que passagem do texto sugere que
defende têm uma força própria, uma força independente do que pessoas e
os valores são independentes da
aprovação social ou dos sentimentos sociedades pensam ou sentem. Têm então de ser descobertos. Se bem que
pessoais? Justifique a sua resposta. Martin Luther King não diga como, não é forçado supor que só a reflexão
cuidadosa, que recorre a argumentação racional, esteja à altura dessa tarefa.

78 Unidade 3

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Fazendo uma analogia entre objetos reais e valores, o realismo moral arti-
cula assim as ideias que acabamos de referir:

Texto 6

Um objeto real não tem de ser percebido ou reconhecido para existir. Pode haver
circunstâncias em que ninguém observa um objeto particular, mas nós pensamos
nele como algo que existe com certas propriedades, esteja alguém a observá-lo ou não.
Ter uma alucinação ou uma imagem residual não é entendido como uma experiência
de algo real, precisamente porque pensamos que o conteúdo da experiência não
existe independentemente da experiência. […] Pensamos nas folhas de uma árvore
retendo a sua cor, esteja alguém a vê-la ou não; e uma árvore que cai numa ilha desabi-
tada produz um barulho. Do mesmo modo, argumenta o realista moral, o valor está
presente para nós como algo que está lá fora à espera de ser descoberto; a qualidade
moral da ação não depende do seu reconhecimento por alguém. Se acabamos por
perceber que uma ação foi errada, não pensamos que a sua imoralidade existe apenas
em virtude da nossa resposta.
DaviD McNaughton, Moral Vision — An Introduction to Ethics.
Ed. Blackwell, 1988, pp. 95-96.

Fig. 10 — Campo de concentração


de Auschwitz.
Segundo o realismo moral, é um facto moral
O texto permite distinguir os aspetos centrais do realismo moral. Um deles objetivo que o Holocausto é moralmente
é que os valores são factos morais das ações e circunstâncias à espera de condenável.
serem descobertos. O outro é que, havendo factos morais nas circunstân-
cias, a moralidade destas não depende de os agentes lhes responderem com
simpatia; do mesmo modo, a imoralidade das circunstâncias não depende
de os agentes terem em relação a elas uma atitude de desaprovação.
Claro que a resposta às circunstâncias faz parte da nossa experiência moral,
diz o realista. Todavia, isso não implica que as características morais das
circunstâncias dependam da experiência que temos delas. Daí que os valo-
res sejam objetivos.

Uma avaliação crítica do realismo moral


Já sabemos qual é o teste decisivo de uma teoria dos valores. Tal como
fizemos com o relativismo moral, iremos então averiguar se o realismo
moral está de acordo com a experiência valorativa. Vimos que, submetido
a esse teste, o relativismo moral não se saiu bem. Será que o realismo moral
se sairá melhor? Temos razões para acreditar que sim.
O realismo moral tem a vantagem de dar conta da dimensão objetiva da
nossa experiência dos valores. É útil relembrar que dessa dimensão fazem
parte dois aspetos: factos morais e respostas morais corretas.
Quando na nossa experiência valorativa fazemos um juízo de valor, enten-
demos que esse juízo é a resposta moral correta à circunstância; e entende-
mos ainda que, se essa é a resposta correta, então é porque é adequada aos
factos morais da circunstância. Por exemplo, o juízo de que o tratamento
desigual dos seres humanos é errado é a resposta correta a uma circunstân-
cia quando, por exemplo, é um facto que ocorrem formas de segregação
racial, como aquelas que Martin Luther King experimentou. Defendendo
que os valores são objetivos, o realismo moral tem a capacidade de fornecer
uma explicação para estes aspetos da experiência valorativa. A independên-
cia dos valores em relação ao que pessoas e sociedades pensam implica que
eles sejam factos morais proporcionados pelas circunstâncias.
Os valores: análise e compreensão da experiência valorativa 79

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Mas algo parece falhar no realismo moral. Se os
valores são factos morais independentes do que
as pessoas pensam ou sentem, como se explica
então a dimensão subjetiva da nossa experiên-
cia do valor?
Esta questão pode ser formulada de modo mais
preciso: se os valores são simplesmente factos,
podem motivar para agir de uma determinada
maneira? A resposta é negativa. Por exemplo,
é um facto que a Supernova 1987A se encontra
a 180 000 anos-luz da Terra, mas esse facto,
como é óbvio, não tem a capacidade de motivar
para uma certa ação. Nesse caso, as decisões
morais podem ser decisões pessoais, como
resulta da nossa experiência dos valores?
A resposta é igualmente negativa. No entanto,
esperamos dos valores que tenham a capaci-
dade de nos motivar. O valor de tratar de igual
modo todos os seres humanos, que um realista
veria como objetivo, motiva para práticas
Fig. 11 — Cartaz do filme Num Mundo Melhor (2010), realizado por Susanne Bier. de tratamento igual de todos os seres humanos.
Este filme mostra que as relações pessoais envolvem por vezes problemas Os valores e juízos morais têm, portanto, uma
morais sérios. Parece que, seja qual for o contexto em que ocorrem, os dimensão prática. Se alguém adota o valor refe-
problemas morais exigem respostas. rido, o seu envolvimento em práticas de segre-
gação racial, por exemplo, não pode deixar de
nos surpreender.
O realismo moral sublinha a importância da argumentação racional
no processo de descoberta dos valores corretos. Para ser bem-sucedido, esse
processo terá de ser calmo e distanciado. Mas essa «hora do distanciamento»
pode, na verdade, não ser possível nem desejável. Alguém apanhado na
confusão do trânsito em hora de ponta não procura sair dela distanciando-se.
Como é isso possível? O que acontece é que essa pessoa procura, no meio
da confusão, encontrar uma saída. Do mesmo modo, um poeta terá mais
êxito se exprimir a sua própria emoção, e não o que supostamente sabe da
emoção distanciando-se dela. É provável que o mesmo se passe quando
procuramos responder corretamente aos problemas morais. Isto quer dizer
que os valores talvez sejam preocupações que emergem do nosso envolvi-
mento ativo com o mundo; e, portanto, que não se exprimam em razões
formadas num processo de argumentação racional distanciada.
Temos já uma identidade, como nos diz o texto seguinte:

Texto 7

Tipicamente, reencontramo-nos com as nossas naturezas éticas, as nossas naturais e


aculturadas fontes de amor e aversão, orgulho e humildade, raiva, vergonha e culpa.
É uma fantasia romântica, existencial, imaginarmo-nos a criá-las através de escolhas livres
de contextos, puras e normativamente não contaminadas. Descobrimo-nos a nós mes-
mos (ao mesmo tempo que descobrimos os outros) mais do que nos inventamos a nós
mesmos (ou os outros).
SiMon BLackburn, Ruling Passions. Ed. Oxford, 1998, p. 257.

80 Unidade 3

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Segundo o texto, as nossas escolhas normativas, em que se incluem as
morais, têm a sua base na nossa identidade, mais propriamente nas nossas
disposições afetivas. Se isto for verdade, os valores são sentimentos, e os
juízos morais exprimem as preocupações que esses sentimentos suscitam.
Nesse caso, se alguém vira as costas a aliviar a fome, a sua falha não é de
racionalidade, mas sobretudo de sensibilidade, por não se encontrarem
nessa pessoa os sentimentos apropriados para responder ao problema da
fome.
Será esta alternativa interessante? Se, como ela indica, os valores forem
sentimentos, quais serão esses sentimentos?

Avaliação crítica

Assinale a sua avaliação ponderada do realismo moral.


A — Verdadeiro. C — Duvidoso.
B — Atraente mas não verdadeiro. D — Falso.

Realismo moral
Pontos fortes Pontos fracos
• Está de acordo com a dimensão objetiva da experiência do valor:
• Tem dificuldade em explicar a dimensão subjetiva da experiência
explica a existência de factos morais e de respostas morais
do valor.
corretas.
• Encara a argumentação racional como um processo distanciado
• Sublinha a importância da argumentação racional acerca
dos sentimentos e demais disposições afetivas dos agentes.
de problemas morais.

Quadro 2 — Pontos fortes e pontos fracos do realismo moral.

Atividades

1 Explique e exemplifique a tese do realismo moral.

2 Por que razão o senso comum moral está de acordo com a teoria realista?

3 A qualidade moral de uma ação depende da reação que suscita?


Justifique a sua resposta, incluindo um exemplo a seu favor.

4 A experiência valorativa é um teste às teorias dos valores.


Como se sai o realismo moral nesse teste? Justifique a sua resposta.

5 O realismo moral tem dificuldade em dar conta da dimensão subjetiva da experiência valorativa. Mas responde a essa dificuldade
dizendo que os valores têm um estatuto racional privilegiado. O que significa ter esse estatuto?

6 Que crítica podemos fazer à ideia realista de que os valores têm um estatuto racional privilegiado?

Debate

Escolha dois valores que considere racionais, mas que as pessoas geralmente não estejam motivadas para seguir.
Debata com toda a turma o que explica essa falta de motivação.

Os valores: análise e compreensão da experiência valorativa 81

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3.1.5   Os valores segundo o subjetivismo moral

Subjetivismo moral:
Os valores morais são subjetivos, no sentido em que são sentimentos
comuns à humanidade.
Um juízo moral correto é um juízo que exprime os sentimentos
apropriados às circunstâncias.

A tese do subjetivismo moral


Os valores fazem parte de uma sensibilidade humana comum. São senti-
mentos e disposições afetivas que respondem às circunstâncias, refletindo
aquilo a que poderíamos chamar o ponto de vista da humanidade. Dado
que são sentimentos, os valores são subjetivos, e dado que são sentimentos
comuns a todos os seres humanos, esses valores são próprios da humani-
dade. Por isso, não é por serem subjetivos que os juízos de valor exprimem
meras preferências pessoais. Dizer que os valores são subjetivos não equi-
vale a encarar a moralidade como uma questão de gosto.
O juízo de valor de que uma certa ação é cruel, ou de que uma certa con-
duta não é honesta, exprime um sentimento de aversão e uma atitude de
desaprovação por parte do seu autor. Mas não é por exprimir o sentimento
e atitude do seu autor que a correção ou o erro moral do juízo depende de
preferências pessoais. Essa avaliação dos juízos de valor não está sujeita a
variações individuais. O juízo é correto se exprime os sentimentos apro-
priados, e errado se não o faz. Sabemos se os sentimentos são apropriados
conhecendo as circunstâncias. Por exemplo, na circunstância em que testes
clínicos em deficientes mentais causam grande sofrimento e acarretam ris-
cos sérios para a saúde, um juízo de aprovação dessa prática não exprimiria
os sentimentos apropriados. Esse juízo de valor seria então errado.
A aprovação da crueldade, e de outras práticas que geralmente
merecem a nossa desaprovação, é um indício muito forte de uma
sensibilidade que não está de acordo com o ponto de vista da
humanidade — um indício, concordará, de uma sensibilidade per-
vertida. Tais práticas são tão obviamente erradas, dado indicarem
falhas preocupantes de sensibilidade, como afirmar que o plástico
é um metal. É por isso injustificado o receio de que o subjetivismo
moral enfraquece de modo significativo a importância e autoridade
dos valores morais. Esse seria o caso se os valores morais, por
serem meras preferências pessoais, estivessem sujeitos a variações
individuais. Mantém-se portanto seguro que muitas práticas são
erradas e muitas outras são corretas do ponto de vista moral.
Para que veja as implicações práticas do subjetivismo moral, iremos
pôr à sua consideração um caso em que a figura central é Jesus
Cristo. Não precisa de ter quaisquer convicções religiosas para
fazer uma apreciação das suas palavras. Do mesmo modo que
Martin Luther King pode exemplificar o realismo moral, Jesus
Cristo pode igualmente fazê-lo para o subjetivismo moral. O caso
é conhecido como a parábola do bom samaritano. Uma parábola
Fig. 12 — Bom Samaritano (1890), de Vincent van Gogh. procura transmitir uma verdade moral, mas não de modo direto
O caso do bom samaritano mostra que os valores são e doutrinário, como é frequente naqueles que se arvoram em mora-
sentimentos. listas. Recorre, para isso, a uma narração.
82 Unidade 3

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O caso é este. Jesus Cristo encontrava-se perante um doutor da lei, que o
punha à prova, testando o seu conhecimento em matéria de religião. Per-
guntado sobre o que teria de ser feito para se possuir a vida eterna, Jesus
Cristo respondera que seria indispensável amar o próximo como a si
mesmo. O doutor da lei, no entanto, insistiu:

Texto 8

Mas ele, querendo justificar a pergunta feita, disse a Jesus: «E quem é o meu próximo?»
Tomando a palavra, Jesus respondeu: «Certo homem descia de Jerusalém para Jericó e
caiu nas mãos dos salteadores que, depois de o despojarem e encherem de pancadas, o
abandonaram, deixando-o meio morto. Por coincidência, descia por aquele caminho um
sacerdote que, ao vê-lo, passou ao largo. Do mesmo modo, também um levita passou
por aquele lugar e, ao vê-lo, passou adiante.
Mas um samaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dele e, vendo-o, encheu-se de
compaixão. Aproximou-se, ligou-lhe as feridas, deitando nelas azeite e vinho, colocou-o
sobre a sua própria montada, levou-o para uma estalagem e cuidou dele. No dia seguinte,
tirando dois denários, deu-os ao estalajadeiro, dizendo: “Trata bem dele e, o que gastares
a mais, pagar-to-ei quando voltar.” Qual destes três te parece ter sido o próximo daquele
homem que caiu nas mãos dos salteadores?»
Respondeu: «O que usou de misericórdia para com ele.» Jesus retorquiu: «Vai e faz tu
também o mesmo.»
Nova Bíblia dos Capuchinhos,
pp. 1692-1693.

Este caso tem ainda mais um motivo de interesse moral apenas indireta- Atividades
mente sugerido pelo texto. Acontece que os samaritanos eram, na altura,
1 Será que este caso apoia o subjeti-
uma etnia desprezada pelos judeus, que evitavam ter relações com eles.
vismo moral?
Jesus Cristo, sendo judeu, distancia-se da sua cultura, realçando o con-
traste entre a bondade do samaritano e a indiferença do sacerdote judeu. 2 Podemos ver neste caso uma crítica
Ele é assim o próximo do samaritano, que, por sua vez, é o próximo do indireta a uma das teorias acerca dos
valores que já estudou. Qual é a teo-
estranho espancado e abandonado.
ria criticada? Justifique a sua res-
Ter valores consiste em ter certos sentimentos. Essa é a ideia central do posta.
subjetivismo moral, de que o bom samaritano é um exemplo claro. Esses
sentimentos distinguem-se por abraçar a humanidade e quebrar as barrei-
ras estreitas das culturas. Por essa razão, poderíamos dar-lhes a designação
geral de sentimento de humanidade. É o que faz o texto que a seguir apre-
sentamos.

Texto 9

A avareza, a ambição, a vaidade, e todas as paixões vulgarmente mas impropriamente


compreendidas sob a denominação de amor-próprio, são excluídas da nossa teoria
acerca da origem da moral, não porque são demasiado fracas, mas porque não têm a
direção adequada a esse propósito. A noção de moral implica algum sentimento comum
a toda a humanidade, o qual recomenda o mesmo objeto para aprovação geral, e faz
com que todos os homens, ou a maior parte deles, comunguem da mesma opinião ou
decisão a seu respeito. Implica também algum sentimento tão universal e abrangente
que se estende a toda a humanidade, de modo que as ações e a conduta, mesmo das
pessoas mais remotas, são objeto de aplauso ou censura. Estes dois requisitos pertencem
apenas ao sentimento de humanidade em que temos insistido.
DaviD HuMe, Enquiry Concerning the Principles of Morals.
Ed. Kindle, 2011, secção IX.

Os valores: análise e compreensão da experiência valorativa 83

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O que caracteriza então o sentimento de humanidade? Dois requisitos,
segundo o texto: o de ser comum a todos os homens, de tal modo que
todos aprovam ou desaprovam geralmente o mesmo objeto, que é o mesmo
que dizer a mesma conduta; e o de se aplicar a todos os homens, mesmo
aos mais distantes, por ninguém ficar de fora do âmbito da sua aplicação.
É no sentimento de humanidade que se baseia a nossa sensibilidade moral.
Ainda que esta seja comum, nem todos a adotam nas circunstâncias que o
exigiriam. Ela implica como que uma mudança de ponto de vista que nem
sempre é fácil, pois cada um terá de abandonar a sua situação particular.
Veja como o texto seguinte descreve essa mudança de ponto de vista que
acompanha o sentimento de humanidade.

Texto 10

Quando um homem denomina outro de seu inimigo, seu rival, seu homens, em algum grau, concordam. Enquanto o coração humano
antagonista, seu adversário, entende-se que fala a linguagem do for composto dos mesmos elementos que no presente, nunca será
amor-próprio e que exprime sentimentos, peculiares a ele mesmo, indiferente ao bem público, nem inteiramente insensível à tendência
que surgem da sua situação e circunstância particulares. Mas quando das qualidades e modos das pessoas. E ainda que este sentimento
atribui a qualquer homem o epíteto de vicioso, odioso ou depra- de humanidade possa não ser em geral tão fortemente apreciado
vado, fala uma outra linguagem, exprimindo sentimentos em rela- como a vaidade ou ambição, sendo comum a todos os homens,
ção aos quais espera o acordo de toda a audiência. Terá, por isso, de pode todavia ser o fundamento da moral ou de qualquer sistema
abandonar a sua situação privada e particular, e escolher um ponto geral de censura ou louvor. A ambição de um homem não é a ambi-
de vista comum a ele e aos outros; terá de propor algum princípio ção de outro, nem o mesmo acontecimento ou objeto dará satisfa-
universal da constituição humana e tocar uma nota para a qual toda ção a ambos; mas a humanidade de um homem é a humanidade de
a humanidade tem um acorde e uma sinfonia. Por conseguinte, se qualquer outro, e o mesmo objeto toca esta paixão em todas as cria-
ele pretende dizer que este homem possui qualidades cuja tendên- turas humanas.
cia é perniciosa para a sociedade, escolheu este ponto de vista DaviD huMe, Enquiry Concerning the Principles of Morals.
comum e tocou o princípio de humanidade, com que todos os Ed. Kindle, 2011, secção IX.

Os juízos morais acerca das pessoas e da sua conduta não assentam no


amor-próprio. Quer isto dizer que não exprimem sentimentos pessoais sus-
citados pela situação particular daqueles que os fazem. Na tentativa de
merecer a concordância dos outros, os juízos morais procuram exprimir
sentimentos que a humanidade será capaz de partilhar.
Ao contrário da ambição e da vaidade e de tudo o que forma o amor-pró-
prio, que é variável, a humanidade é igual em todos os homens. Consis-
tindo numa sensibilidade moral comum a todos os homens, a humanidade
que há em nós é visível na preocupação com o bem público. Mas o amor-
próprio é geralmente mais forte. Como se forma então, em cada um de nós,
o sentimento de humanidade? Como ganhamos a capacidade de adotar o
ponto de vista da humanidade, abandonando o amor-próprio?

O ponto de vista da humanidade


O que explica essa mudança na direção do ponto de vista da humanidade
é uma capacidade natural dos seres humanos: a capacidade de simpatia. Se
somos capazes de sentir o que os outros sentem, comungando dos seus
sentimentos, é porque temos a capacidade de simpatia.
Como facilmente admitirá, quando observamos alguém sentindo dor,
somos capazes de sentir também alguma espécie de dor. Do mesmo modo,
a companhia de uma pessoa triste pode entristecer-nos, e a de uma pessoa
alegre fazer-nos experimentar alegria. É a esta capacidade que devemos não
só a vida moral, mas igualmente os vínculos sociais.
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É um processo social que educa e proporciona o amadurecimento da nossa
capacidade natural de simpatia. É por meio dele que, gradualmente, come-
çamos a sentir preocupação com o bem público e a abraçar o ponto de vista
da humanidade, desvinculando as nossas escolhas dos sentimentos que
formam o amor-próprio. Ao ponto de vista da humanidade corresponde
então o sentimento moral. Este, que se distingue por considerar os senti-
mentos daqueles que são afetados por uma ação, é na verdade o sentimento
de benevolência que, como diz o texto, favorece o bem público.
Não faremos o juízo moral correto nem seremos virtuosos enquanto não
tivermos o sentimento relevante — o sentimento de benevolência — no
nosso coração. O ponto de vista da humanidade é, afinal, uma expressão
do vínculo de solidariedade que nos une aos outros seres humanos.
Em que consiste o processo social que educa a capacidade
de simpatia? Trata-se de um processo de internalização do
olhar dos outros, que se verifica sempre que os sentimentos
dos outros são considerados nos nossos juízos morais. Se
este processo não se verificar em alguém, é provável que
essa pessoa venha a ser um sociopata. Este é, na verdade, o
caso extremo de quem não é capaz de sentir o que os outros
sentem, nem de ter, por isso, os sentimentos dos outros em
consideração. O que caracteriza um sociopata é a sua natu-
reza amoral, dado que a capacidade de simpatia, pelas mais
variadas razões, não se desenvolveu nele. Em contraste, o
que caracteriza uma pessoa genuinamente altruísta é uma
capacidade de simpatia amadurecida.
Eis como é descrito esse processo de internalização do Fig. 13 — Voluntários distribuem comida a sem-abrigo,
olhar dos outros: em Lisboa.

Texto 8

Primeiro sentimos afeição por uma ou outra qualidade das pessoas com quem nos
cruzamos, possivelmente porque fomos educados para isso. Depois tomamos o ponto
de vista comum que opera a mudança da afeição para a estima, avaliando um traço de
caráter como admirável ou o seu reverso. Em terceiro lugar, podemos ganhar consciência
de que este é um traço que nós próprios exibimos ou não.
E, em quarto lugar, quando isso sucede sentimos autossatisfação e orgulho, ou vergonha
e mal-estar, dependendo da nossa avaliação inicial, e imaginando que essa é também
a avaliação que os outros fazem de nós. Esta é uma espécie de vibração interna da
simpatia com os sentimentos imaginados dos outros.
SiMon BLackburn, Ruling Passions. Ed. Oxford, 1998, p. 203.

Este é então um processo que forma a nossa consciência através do olhar


refletido dos outros. Ainda que seja um processo de atenção aos sentimen-
tos e disposições afetivas dos outros, há nele lugar para a argumentação
racional e a crítica, contrariamente ao que, à primeira vista, se poderia pen-
sar. Mas não se trata de argumentação racional que procura distanciar-se do
que as pessoas realmente sentem. Os sentimentos dos outros e o conheci-
mento factual das circunstâncias fornecem os elementos indispensáveis à
argumentação racional. Sem esta, na verdade, não se poderia ter os senti-
mentos apropriados às circunstâncias; ter valores, nesse caso, não passaria
de uma reação emocional; e, por consequência, não haveria lugar na vida
moral para o debate cuidadoso de razões, mas apenas para a manipulação,
mais ou menos inteligente, de emoções.
Os valores: análise e compreensão da experiência valorativa 85

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O juízo de que uma certa mentira é errada, ou de que uma certa prática,
por ser cruel, é condenável, não é simplesmente um episódio da nossa
história emocional. Os juízos morais exprimem sentimentos, e sem dúvida
que estes são a sua base última, segundo a teoria subjetivista. Mas não é por
isso que deixam de ser informados por argumentação racional.

Uma avaliação crítica do subjetivismo moral


A teoria subjetivista parece dar conta das duas dimensões da experiência
valorativa — a dimensão objetiva e a dimensão subjetiva. Imagine que
alguém faz a doação de toda a sua riqueza a uma organização que combate
a fome. Ou imagine que alguém mata uma vítima inocente sem que tivesse
de o fazer. Estes são factos objetivos das circunstâncias. É também com
base neles que, se for esse o caso, fazemos os juízos morais de que aquela
doação é meritória e de que aquele ato de matar é errado.
Mas, além disso, o subjetivista pensa que estes juízos só ocorrem porque
quem os faz tem os sentimentos apropriados às circunstâncias. É nestes
sentimentos, e na motivação correspondente que produzem nos agentes,
que reside a dimensão subjetiva da experiência valorativa. No entanto, por
se apoiarem em factos objetivos das circunstâncias, esses juízos parecem
estar igualmente em condições de dar conta da dimensão objetiva da expe-
riência valorativa. Assim, esses factos objetivos sugerem que há uma res-
posta moral correta naquelas circunstâncias. E, se há naquelas, pergunta o
subjetivista, porque não pensar que há também nas outras?
O subjetivismo moral parece estar a sair-se razoavelmente bem no teste da
experiência valorativa. Mas a teoria enfrenta dificuldades que podem com-
prometer esta avaliação. Considere duas dificuldades que nos parecem
especialmente pertinentes.
Como vimos, ter em conta os sentimentos dos outros, sentindo desse modo
a vibração interna da simpatia, é um processo social. Ora, os processos
sociais por vezes promovem os sentimentos errados do ponto de vista
moral, aprovando práticas condenáveis. Podem, por isso, gerar autossatis-
fação e orgulho, ou mal-estar e vergonha, pelas razões erradas. Por outro
lado, se estamos preocupados em receber estima e louvor dos outros, então
dificilmente teremos uma motivação genuinamente moral para agir —
e dificilmente, diga-se, seremos virtuosos. Os mecanismos de aprovação
social podem impedir a adoção do sentimento moral fundamental —
o sentimento de benevolência. O processo de internalização do olhar dos
outros, que à partida educaria a capacidade natural de simpatia, pode levar
à sujeição a padrões sociais errados do ponto de vista moral.
A crítica anterior depende de uma dificuldade mais séria do subjetivismo
moral. Imagine que, lentamente, a prática de fazer ensaios clínicos doloro-
sos em deficientes mentais ganha aprovação social. É provável que esta
mudança venha a exercer influência no processo social de educação da
capacidade de simpatia, uma influência contrária ao desenvolvimento dessa
capacidade e ao sentimento de benevolência que daí resulta. Isto implica
que ter os valores apropriados face a essa prática de ensaios clínicos não
depende das reações dos observadores. O juízo de que é moralmente cor-
reta, ainda que tenha aprovação social, não é plausível.

86 Unidade 3

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De resto, seria de esperar que a teoria subjetivista não escapasse a esta difi-
culdade. Por um lado, não se vê como pode o processo de internalização
do olhar dos outros deixar de ser social; mas, por outro, o sentimento
moral não pode ser confundido com processos de aprovação social. Como
isolar então o sentimento moral? Os subjetivistas sabem qual é o senti-
mento moral. Mas podem não saber com segurança quando ocorre e,
sobretudo, quando motiva. Nem sempre é fácil discernir o sentimento
moral nas nossas reações e escolhas.

Avaliação crítica

Assinale a sua avaliação ponderada do subjetivismo moral.


A — Verdadeiro. C — Duvidoso.
B — Atraente mas não verdadeiro. D — Falso.

Subjetivismo moral
Pontos fortes Pontos fracos

• Explica a dimensão objetiva e subjetiva da experiência valorativa. • O desenvolvimento da capacidade de simpatia pode sujeitar-se
• Explica os valores morais a partir de uma capacidade natural — a processos sociais errados do ponto de vista moral.
a capacidade de simpatia. • É difícil isolar o sentimento moral de maneira a distingui-lo
• Apresenta o sentimento de benevolência como o sentimento de fatores não morais que podem influenciar as reações de
moral fundamental. aprovação ou desaprovação e as escolhas dos agentes.
• Propõe o bem público como a finalidade das escolhas morais
motivadas pelo sentimento de benevolência.
• Apresenta o ponto de vista da humanidade como uma mudança
de perspetiva em relação ao amor-próprio ou interesse particular.

Quadro 3 — Pontos fortes e pontos fracos do subjetivismo moral.

Atividades

1 Explique e exemplifique a tese do subjetivismo moral.

2 O subjetivismo moral implica que os valores sejam preferências pessoais? Porquê?

3 Em que consiste o ponto de vista da humanidade?

4 Qual é o sentimento moral fundamental? O que procura ele realizar?

5 Em que capacidade natural assenta o subjetivismo moral? Como funciona essa capacidade?

6 Estará o subjetivismo moral em condições de dar conta das duas dimensões da experiência valorativa? Porquê?

7 O desenvolvimento da capacidade de simpatia é um processo social. Que dificuldade daí resulta para o subjetivismo moral?

8 É fácil saber que as pessoas estão realmente a ser motivadas pelo sentimento moral? Porquê?

Debate

Imaginemos que alguém ora é honesto e leal, ora quebra esses valores quando isso convém ao seu interesse próprio e não é notado. Essa
pessoa calcula o que faz com inteligência, de tal modo que é muito bem-sucedida e considerada pelos outros. Discuta com toda a turma se
este caso apoia ou contraria o subjetivismo moral.

Os valores: análise e compreensão da experiência valorativa 87

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3.2 Valores e cultura: a diversidade
e o diálogo de culturas
Pedimos-lhe que recorde o Banqueiro relativista, o
caso com que começámos a refletir sobre a natureza
dos valores. Perante a questão de saber se os valores
são relativos ou não, quando interrogado pela Sara, o
João mostrou-se, na prática, um relativista moral.
Cada cultura, afirmou, tem os seus valores, e o que é
certo e errado do ponto de vista moral é relativo a
cada cultura. A Sara, procurando rebater os argumentos
do João, defendeu a opinião contrária. Os valores,
para ela, são verdades objetivas e, por isso, indepen-
dentes de padrões culturais.
Estas posições acerca dos valores têm implicações
práticas. Uma delas, que nos irá agora ocupar, diz
respeito ao diálogo entre culturas. Assim, se os valores
Fig. 14 — Família poligâmica numa comunidade muçulmana chinesa. consistirem em padrões culturais, como se fará o diá-
As crenças religiosas dão lugar a critérios morais distintos. O islão, por logo entre culturas diversas? E no caso de o realismo
exemplo, é uma religião que permite a poligamia. Mas a moralidade moral ser verdadeiro, ou de o subjetivismo moral ser
é independente das tradições, incluindo as religiosas.
verdadeiro, como será esse diálogo?

3.2.1   Uma comunidade moral ou muitas 
comunidades morais?
É óbvio que há diversidade cultural. Mas se há apenas uma comunidade
moral ou se há muitas é assunto de debate. Isso tem implicações na forma
como é entendido e praticado o diálogo entre culturas.
Se a cada cultura corresponde uma comunidade moral, então há tantas
comunidades morais quantas as culturas. Esta é a ideia defendida pelo
relativismo moral. Mas é concebível que à diversidade cultural não corres-
ponda diversidade moral. Nesse caso, pode haver uma só comunidade
moral, ainda que a diversidade cultural seja grande, como de facto é. Com
diferenças nos pormenores, esta é a posição básica dos realistas e dos subje-
tivistas morais. Segue-se que o diálogo entre culturas é entendido e prati-
cado de maneiras muito diferentes consoante se é relativista, por um lado,
ou realista e subjetivista, por outro.

Há muitas comunidades morais:


Relativismo
moral A cada cultura corresponde uma
comunidade moral.

Há uma só comunidade moral:


Realismo
moral A diversidade cultural não implica
diversidade moral.

Esquema 4 — Diversidade cultural e diversidade moral.

88 Unidade 3

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3.2.2   O diálogo entre culturas e o argumento 
relativista da tolerância
É verdade que culturas diferentes têm valores diferentes. As crenças de
uma dada cultura acerca do que é certo e errado do ponto de vista moral
distinguem-na de todas as outras. É também verdade que as culturas não
podem viver isoladas umas das outras. Cada uma tem então de desenvolver
relações com culturas diferentes. Mas, para isso, têm de saber viver em
conjunto, coexistindo pacificamente num mundo caracterizado pela diver-
sidade cultural. É nesta coexistência pacífica que consiste a tolerância. Ora,
a tolerância assim entendida não seria possível se os valores das culturas
diferentes fossem vistos como errados. Logo, a tolerância implica o relati-
vismo moral. Esta é a teoria acerca dos valores mais apropriada a um
ambiente favorável ao respeito e tolerância entre culturas diferentes.

Juízo intuitivo

Assinale a sua primeira reação ao argumento da tolerância.


A — Convincente. C — Duvidoso.
B — Atraente mas não convincente. D — Implausível.

Uma avaliação crítica do argumento da tolerância


O argumento afirma que cada cultura é diferente de todas as outras, mas
que tem de desenvolver relações com elas, ou pelo menos, diremos nós,
com algumas delas. A tolerância entendida como coexistência pacífica,
prossegue o argumento, é a maneira correta de regular essas relações. Há
aqui um aspeto intrigante: Será plausível encarar cada cultura como uma
espécie de território com fronteiras nítidas, como pretende o relativismo
moral? Afinal, como podem as culturas desenvolver relações entre si
mantendo-se imunes a influências? O texto seguinte levanta estas reservas
e propõe uma maneira alternativa de ver as culturas e as suas relações.

Texto 12

É artificial tratar estas questões como se envolvessem sempre duas culturas claramente
autocontidas. Uma cultura completamente individualizável é, no melhor dos casos, uma
coisa rara. Culturas, subculturas, fragmentos de culturas encontram-se e permutam e
modificam práticas e atitudes. As práticas sociais nunca podem apresentar-se com um
certificado dizendo que pertencem a uma cultura genuinamente diferente, de maneira
que lhes foi garantida imunidade em relação a juízos e práticas estranhas.
BernarD WiLLiaMs, Ethics and the Limits of Philosophy. Ed Routledge, 2006. p. 159.

O texto sugere que há duas ideias falsas implícitas nas premissas do argu-
mento. São elas a ideia de que as culturas são homogéneas e a ideia de que
as fronteiras entre as culturas estão claramente delineadas. Se for verdade
que as culturas não estão protegidas umas das outras pela imunidade refe-
rida, então a ideia de tolerância como mera coexistência pacífica não parece
estar justificada. Segundo o texto que a seguir apresentamos, essa tolerân-
cia sem crítica é uma maneira apressada de lidar com as relações entre
culturas diferentes.

Os valores: análise e compreensão da experiência valorativa 89

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Texto 13

Em maior ou menor grau, todos sentimos hoje problemas quando tentamos compre-
ender culturas que nos são estranhas. Ouvimos constantemente falar de costumes que
nos surpreendem. Vemos mudanças ao longo da nossa vida que teriam impressionado
os nossos pais. Quero discutir aqui uma maneira muito apressada de lidar com esta
dificuldade, uma maneira drástica que muitas pessoas teoricamente favorecem nos
tempos que correm. Ela consiste simplesmente em negar que alguma vez poderemos
compreender suficientemente bem qualquer cultura, excetuando a nossa, para fazer-
mos juízos sobre ela. Os que a recomendam sustentam que o mundo está dividido, com
contornos nítidos, em sociedades separadas, unidades fechadas, cada uma com o seu
sistema de pensamento. Sentem que o respeito e a tolerância que um sistema deve a
outro os proíbe de alguma vez adotarem uma posição crítica em relação a qualquer
outra cultura. Os juízos morais, sugerem, são uma cunhagem de moeda válida apenas
no país de origem.
Mary MigDLey, «Trying Out One’s New Sword», in Ethical Theory,
Russ Shafer-Landau (ed.). Ed. Blackwell, 2007, p. 58.

Uma vez que estamos impedidos de compreender as outras culturas, dadas


Fig. 15 — Cartaz do filme Contra a Parede as suas diferenças, os nossos juízos morais não devem aplicar-se às suas
(2004), realizado por Fatih Akin. práticas. Também eles são apenas válidos na nossa cultura — seria abusivo
Este filme mostra que a sujeição a códigos julgar as outras culturas segundo as nossas crenças morais. O que pretende
morais que não foram genuinamente
então o relativista com a sua noção de tolerância como coexistência pacífica
escolhidos é uma fonte de sofrimento.
Aceitar que os valores são relativos às culturas e sem crítica? O texto seguinte fornece uma resposta a esta questão. Diz ele
pode gerar insensibilidade em relação acerca do relativismo:
a esse sofrimento.

Texto 14

A sua finalidade é considerar perspetivas ou crenças que aparentemente estão em con-


flito e tratá-las de tal modo que não há conflito entre elas: cada uma acaba por ser acei-
tável no seu lugar próprio.
BernarD WiLLiaMs, Ethics and the Limits of Philosophy. Ed. Routledge, 2006, p. 156.

Se todos os valores, afinal, são aceitáveis no seu lugar próprio, não nos
resta senão defender um princípio de tolerância universal para o diálogo
entre culturas diferentes. Na prática, essa tolerância acolheria indistinta-
mente todos os valores e crenças morais. A consciência de que os valores
não são objetivos, que muitos dizem ter, parece recomendar essa prática de
tolerância universal. Seremos nós capazes de a ter? E estará o relativista em
posição de defender esse princípio de tolerância universal?
Considere a seguinte resposta a estas duas questões:

Texto 15

Esta consciência [de que os valores não são objetivos] não pode simplesmente desativar
as suas reações éticas quando é confrontado com outro grupo, e não há razões para que
deva fazê-lo. Algumas pessoas julgaram que deveria, acreditando que uma perspetiva
apropriadamente relativista requer que esteja igualmente recetivo às crenças éticas seja
de quem for. Isto é confuso de um modo sério, uma vez que encara o relativismo como
algo que resulta numa moralidade não relativista de tolerância universal.
BernarD WiLLiaMs, Ethics and the Limits of Philosophy. Ed. Routledge, 2006, p. 159.

90 Unidade 3

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A resposta às duas questões, como poderá inferir do texto que acabou
de ler, é negativa. Em primeiro lugar, as nossas reações não podem deixar
de ser influenciadas pelos valores e pelas crenças morais que já temos.
Alguém que desaprova a pena de morte não está igualmente recetivo
à crença ética de que a pena de morte se justifica em certos casos, ou às
crenças éticas seja de quem for acerca do assunto, desde que aprovadas por
uma cultura.
O princípio de tolerância universal não produz automaticamente o efeito
de desativar as nossas reações éticas. Isso seria aceitar uma versão relati-
vista de pensamento mágico.
Em segundo lugar, o relativista é inconsistente quando defende o princípio
de tolerância universal. Que todos devem tolerar todas as crenças éticas
aprovadas pelas mais diversas culturas, incluindo aquelas que são mais
bizarras, é defender um princípio universal. Todavia, o relativista afirma
que os valores são padrões próprios de cada cultura particular. Como
poderá ele então justificar este valor universal de tolerância?
Segundo os próprios termos da sua teoria, não pode. As ideias de que os
valores são padrões próprios de uma cultura particular e de que há um
valor universal de tolerância não podem, como é óbvio, ser ambas verda-
deiras. Daí que sejam inconsistentes. O relativista está, pois, impedido de
as defender ao mesmo tempo. Essa é a confusão séria em que fica enredada
a sua teoria.

Avaliação crítica

Assinale agora a sua avaliação ponderada do argumento da tolerância.


A — Convincente. C — Duvidoso.
B — Atraente mas não convincente. D — Implausível.

Atividades

1 Será que a diversidade cultural implica diversidade moral? Porquê?

2 Qual é a conclusão do argumento relativista da tolerância?


2.1 Que razões apresenta em defesa dessa conclusão?

3 O relativismo moral propõe um princípio de tolerância universal para o diálogo entre culturas. O problema é que não seria
suposto que o fizesse. Porquê?

4 Apresente outras críticas ao argumento da tolerância.

Debate

Será que devemos tolerar a intolerância?

Os valores: análise e compreensão da experiência valorativa 91

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3.2.3   O diálogo entre culturas e o realismo moral
Estamos todos no mesmo barco. Esta é a imagem usada no texto que irá ler
mais abaixo para dizer que há apenas uma comunidade moral.
A diversidade cultural, que um realista sensatamente admitirá, não tem
implicações relevantes quanto à natureza dos valores. À diversidade cultural
não corresponde então diversidade moral; a padrões culturais diferentes
não correspondem valores diferentes. Como já vimos, o realismo moral
defende antes que os valores morais são independentes de padrões cultu-
rais, uma vez que são factos morais. Por exemplo, é um facto moral que
causar desnecessariamente dor é errado, ainda que em certas culturas se
verifiquem práticas que causam dor gratuita. É com base nos factos morais
que os padrões de uma cultura são avaliados. Se passarem nesse teste, estão
justificados. Infelizmente, esse é um teste em que demasiados padrões cul-
turais ainda não se saem bem.
Mas não pense que existe uma espécie de lista estabelecida de factos morais,
a que se recorreria para decidir, sem reflexão e mecanicamente, que padrões
culturais estão justificados. Não chega estar na posse de verdades morais,
mesmo que ninguém ouse disputá-las. A prática de avaliação conduzida
pela comunidade moral exige, além disso, argumentação cuidadosa.
É saliente a importância deste aspeto da prática moral no texto que agora o
convidamos a ler.

Texto 16

Uma vez que estamos todos no mesmo barco, supomos que o debate em que os agen-
tes cuidadosamente reúnem e avaliam as razões uns dos outros a favor e contra as suas
opiniões morais é a melhor maneira de descobrir quais são os factos morais. Se os parti-
cipantes estão de espírito aberto e pensam com clareza, supomos que dessa discussão
deverá resultar uma convergência numa opinião moral — uma convergência acerca da
verdade.
Podemos resumir esta primeira característica da prática moral da seguinte maneira: pen-
samos que as questões morais têm respostas corretas, que o que torna essas respostas
corretas são factos morais objetivos, que esses factos são determinados pelas circunstân-
cias, e que, argumentando, podemos descobrir que factos são esses. O termo «objetivo»
significa aqui simplesmente a possibilidade de uma convergência das perspetivas morais
do tipo acabado de referir.
MichaeL SMith, «Realism», in Ethical Theory, Russ Shafer-Landau (ed.).
Ed. Blackwell, 2007, p. 72.

Cada agente é membro da comunidade moral quando debate com todos os


outros opiniões e práticas morais, sejam as próprias ou as alheias. É desse
modo que cada um procura descobrir os factos morais relevantes, ponde-
rando razões por meio de argumentação cuidadosa.
São os factos morais que fornecem orientação para o diálogo entre culturas.
É como membro da comunidade moral, e não como membro de uma cul-
tura particular, que cada agente participa nesse diálogo. Estando de espírito
aberto, como afirma o texto, os agentes rejeitam uma perspetiva paroquial
sobre as práticas aprovadas pelas culturas a que pertencem. De resto, só de
espírito aberto se pode argumentar cuidadosamente. O cimento que une os
membros da comunidade moral é justamente o clima de abertura de espí-
rito em que se desenvolve a argumentação cuidadosa.

92 Unidade 3

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Qual é então, segundo o realista, a medida da tolerância no
diálogo entre culturas? Se os valores são factos morais que
fornecem orientação para o diálogo entre culturas, estas não
podem simplesmente coexistir de modo pacífico e sem
crítica. Nenhuma argumentação cuidadosa pode tolerar
o regresso da escravatura como prática aprovada por uma
cultura, ou o trabalho infantil, infelizmente ainda aceite em
algumas culturas. Isto implica que os factos morais definem
os limites da tolerância.
Mas não pensemos que a argumentação cuidadosa só poderá
existir com alguma espécie de preparação técnica prévia.
Todos são membros da comunidade moral: todos são dignos
de consideração moral e cada um, mais ou menos infor-
mado, é capaz de pensar por si acerca do que é moralmente
correto nas mais diversas circunstâncias. Segue-se que
a medida da tolerância é a liberdade de cada um pensar por
si. Uma cultura que não respeita esta exigência de tolerância
merece crítica, e não a complacência do relativismo moral.
O texto que a seguir propomos, e com que terminamos esta
Fig. 16 — Queima de livros não arianos por nazis, em 1933.
secção, mostra o quanto esta ideia de tolerância é impor-
Impedir que certos livros sejam lidos, queimando-os
tante. Apenas uma nota para o compreender melhor: o que ou simplesmente proibindo a sua leitura, é negar a liberdade
nele se diz acerca da verdade poderá estender-se, diria o de cada um pensar por si, que é uma característica comum
realista, às verdades morais objetivas. de sociedades intolerantes.

Texto 17

A verdade ganha mais com os erros daquele que, sem o estudo e a preparação necessá-
rios, pensa por si do que com as opiniões verdadeiras daqueles que só as têm porque se
impedem a si mesmos de pensar. Não que a liberdade de pensamento seja precisa ape-
nas, ou principalmente, para formar grandes pensadores. Pelo contrário, é tão precisa, e
ainda mais indispensável, para permitir aos seres humanos médios a estatura intelectual
de que são capazes. Já houve, e talvez volte a haver, grandes pensadores individuais
numa atmosfera geral de escravatura mental. Mas nunca houve, nem alguma vez haverá,
nessa atmosfera, um povo intelectualmente ativo.
John Stuart MiLL, Sobre a Liberdade. Lisboa: Edições 70, 2006 [ed. original 1859], p. 75.

Atividades

1 Segundo o realismo moral, como se desenvolve o diálogo entre culturas?

2 De acordo com o realismo moral, quando participamos no diálogo entre culturas, somos primariamente membros
da comunidade moral ou de uma cultura particular?
2.1 Justifique a resposta dada.

3 Que importância tem a liberdade de cada um pensar por si?

Debate

Será que a Declaração Universal dos Direitos Humanos expressa factos morais, ou reflete simplesmente os padrões morais
das sociedades que os subscreveram?

Os valores: análise e compreensão da experiência valorativa 93

365178 064-097 U3.indd 93 13/03/13 15:56


Ideias-chave

Os valores:
análise e compreensão da experiência valorativa
• Os juízos de facto dizem como as coisas são; por isso, são • O realismo moral afirma que os valores são objetivos; são,
descritivos. por isso, factos morais das circunstâncias.
• Os juízos de valor dizem como as coisas deveriam ser; são, • Segundo o realismo moral, um juízo moral correto é um
por isso, normativos. juízo adequado aos factos morais da circunstância.
• Os juízos de valor resultam de uma apreciação dos factos à • O realismo moral defende que os juízos morais corretos têm
luz de um critério valorativo. um estatuto racional, influenciando assim a motivação dos
• Os critérios valorativos são princípios que justificam a transi- agentes.
ção dos juízos de facto para os juízos de valor, isto é, dos • Os pontos fracos do realismo moral são os seguintes: tem
factos para os valores. dificuldade em explicar a dimensão subjetiva da experiên-
• A experiência valorativa tem uma dimensão subjetiva e cia valorativa e concebe a argumentação racional como
objetiva. um processo distanciado das disposições afetivas dos
agentes.
• A dimensão subjetiva da experiência valorativa envolve as
motivações e as decisões pessoais dos agentes. • Os pontos fortes do realismo moral são os seguintes: explica
a dimensão objetiva da experiência valorativa e sublinha a
• A dimensão objetiva da experiência valorativa envolve a cor- importância da argumentação racional no debate sobre pro-
reção da resposta moral dos agentes e factos morais. blemas morais.
• Saber o que são os valores é o problema a que procuram • O subjetivismo moral afirma que os valores são subjetivos;
responder o relativismo moral, o realismo moral e o subjeti- são, por isso, sentimentos comuns à humanidade.
vismo moral.
• Segundo o subjetivismo moral, um juízo moral correto é um
• O relativismo moral afirma que os valores são relativos às juízo que exprime os sentimentos apropriados às circunstân-
sociedades; são, por isso, padrões culturais socialmente cias.
aprovados.
• O subjetivismo moral defende que o sentimento moral fun-
• Segundo o relativismo, um juízo moral correto é um juízo damental é o sentimento de benevolência e que este é
socialmente aprovado numa cultura. explicado pela nossa capacidade natural de simpatia.
• O relativismo moral apoia-se nos argumentos da variação • Os pontos fracos do subjetivismo moral são os seguintes: a
cultural e da tolerância. educação do sentimento moral pode sujeitar-se a processos
• Os pontos fracos do relativismo moral são os seguintes: não sociais errados e é difícil isolá-lo de fatores não morais que
dá conta das duas dimensões da experiência valorativa, podem exercer influência sobre ele.
aceita como corretas práticas condenáveis, não explica a • Os pontos fortes do subjetivismo moral são os seguintes: dá
noção de progresso moral e o argumento da variação cultu- conta das duas dimensões da experiência valorativa, explica
ral em que se apoia é fraco. a moralidade a partir da capacidade natural de simpatia,
• Os pontos fortes do relativismo moral são os seguintes: é sublinha a importância do sentimento de benevolência e
uma reação compreensível à colonização e ao imperialismo do bem público, e o ponto de vista da humanidade repre-
cultural do Ocidente e desenvolve a nossa compreensão de senta uma mudança significativa em relação ao interesse
modos diferentes de ter vidas com sentido e integridade. próprio.

Para aprofundar conhecimentos

Leituras:
Mill, John Stuart — Sobre a Liberdade. Lisboa: Edições 70, 2006 [ed. original 1859] (especialmente os capítulos «Sobre a Liberdade
de Pensamento e Discussão» e «Sobre a Individualidade como Um dos Elementos do Bem-Estar»).
Nagel, Thomas — Que Quer Dizer Tudo Isto? Lisboa: Gradiva, 1995 [ed. original 1987] (especialmente o capítulo «Certo e Errado»).
Rachels, James — Elementos de Filosofia Moral. Lisboa: Gradiva, 2004 [ed. original 2003] (especialmente os capítulos «O Desafio
do Relativismo Cultural» e «O Subjetivismo em Ética»).
WaRbuRtoN, Nigel — Elementos Básicos de Filosofia. Lisboa: Gradiva, 1998 [ed. original 1995] (especialmente o capítulo «Bem e Mal»).

94 Unidade 3

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Esquema-síntese

Os valores:
análise e compreensão da experiência valorativa
+ critério valorativo
Juízos de facto Juízos de valor

Experiência valorativa

Dimensão subjetiva Dimensão objetiva

Teorias Procuram articular as duas dimensões


dos valores da experiência valorativa.

Relativismo Realismo Subjetivismo


moral moral moral

Os valores morais Os valores morais Os valores morais


são relativos. são objetivos. são subjetivos.

São padrões São factos das São sentimentos


culturais. circunstâncias. comuns à humanidade.

Filmes:
Contra a Parede (2004), realizado por Fatih Akin.
Num Mundo Melhor (2010), realizado por Susanne Bier.

Páginas da Internet:
http://criticanarede.com/eti_factovalor.html (artigo «A Distinção Facto/Valor», de Roger Crisp).
http://criticanarede.com/fil_relatcultural.html (artigo «Ética e Relativismo Cultural», de Harry Gensler).

Os valores: análise e compreensão da experiência valorativa 95

365178 064-097 U3.indd 95 13/03/13 15:56


TEsTE FOrmATIvO 3

CLAssIFIQUE As AFIrmAÇÕEs sEGUINTEs COmO vErDADEIrAs OU FALsAs.

  1.  O
  s juízos de facto são descritivos e os juízos de valor são normativos.

  2.  A informação descritiva dos juízos de facto é irrelevante para os juízos de valor.

  3.  Os factos têm conteúdo normativo.

  4.  As mudanças nos juízos de valor são independentes das mudanças nos juízos de facto.

  5. Os critérios valorativos são princípios que codificam a passagem do nível descritivo para
o nível normativo.

  6.  Os critérios valorativos não permitem avaliar os factos.

  7.  S
  e dissermos «Fiz uma doação a uma instituição que ajuda a combater a pobreza porque isso
é gratificante para mim.», estaremos a recorrer a um critério valorativo para justificar essa ação.

  8.  Os juízos de valor ocorrem no contexto da experiência valorativa.

  9.  A experiência valorativa tem apenas uma dimensão subjetiva.

 10.  Na experiência valorativa há uma tensão entre aspetos subjetivos e aspetos objetivos.

 11.  A experiência valorativa é pessoal.

 12.  A experiência valorativa não é neutra em relação aos agentes.

 13.  Q
  uando uma decisão está de acordo com os valores de quem a toma, há nessa experiência
valorativa uma dimensão objetiva.

 14.  U
  ma decisão determinada unicamente pelos valores corretos exprime a dimensão objetiva
da experiência valorativa.

 15.  O relativismo moral afirma que os valores são objetivos.

 16.  Um padrão cultural socialmente aprovado é, segundo o relativismo moral, um valor.

 17.  A afirmação «A coragem é uma coisa boa.» exprime a ideia de que a coragem tem valor
relativo.

 18.  A
  afirmação «A capacidade de arriscar é uma coisa boa para a nossa sociedade.» exprime
a ideia de que a capacidade de arriscar tem valor absoluto.

 19.  O
  relativismo moral defende que o que tem valor ou deixa de ter se estabelece por referência
a um acordo.

 20.  O
  argumento da variação cultural sustenta a ideia de que os valores são independentes
das culturas.

 21.  A variação cultural não implica que os valores são relativos, nem que são objetivos.

 22.  S
  e defendermos que a aprovação social de uma prática não equivale a afirmar que ela tem
valor, estaremos a fazer uma crítica ao relativismo moral.

 23.  Se admitirmos que há progresso moral, ficaremos comprometidos com o relativismo moral.

 24.  O relativismo moral dá conta das dimensões da experiência valorativa.

 25.  O relativismo moral é uma reação correta ao imperialismo cultural do Ocidente.

 26.  O realismo moral afirma que os valores são objetivos.

 27.  A
  sujeição das mulheres é errada, segundo o realismo moral, dado que é contrária aos nossos
sentimentos.

96 Unidade 3

365178 064-097 U3.indd 96 13/03/13 15:56


 28.  O
  realismo moral defende que os valores são objetivos porque dependem de aprovação social.

 29.  O
  realismo moral, à partida, dá conta da dimensão objetiva, mas não da dimensão subjetiva
da experiência valorativa.

 30.  S
  e dissermos, tal como o realista moral, que há juízos de valor com um estatuto racional
privilegiado, então os valores podem mudar os nossos desejos e ter a capacidade de motivar.

 31.  O
  realismo moral pensa que de uma razão com força não é possível extrair a força
de ter razão.

 32.  S
  e descobrir os valores corretos exige argumentação racional, a qual se define por respeitar,
tanto quanto possível, condições idealizadas de reflexão, então o realismo moral é uma boa
teoria.

 33.  S
  e defendermos que ter os valores corretos é sobretudo uma questão de sensibilidade,
então não poderemos aceitar o realismo moral.

 34.  O subjetivismo moral afirma que os valores são preferências pessoais.

 35.  É
  nos sentimentos morais comuns à humanidade, defende o subjetivismo moral, que se
encontram os valores.

 36.  O
  subjetivismo moral afirma que responder às circunstâncias com os sentimentos
apropriados é ter os valores corretos.

 37.  A capacidade de simpatia não tem um papel relevante na defesa do subjetivismo moral.

 38.  O processo de internalização do olhar dos outros não educa a capacidade de simpatia.

 39.  O
  processo de educação da capacidade de simpatia, por ser social, está exposto à aprovação
de práticas moralmente erradas, mas socialmente aceites.

 40.  O subjetivismo moral não tem dificuldade em isolar o sentimento moral.

41. Todas as teorias acerca dos valores concordam que há apenas uma comunidade moral.

42. Segundo o relativismo moral, a cada cultura particular corresponde uma comunidade moral.

43. O argumento relativista da tolerância afirma que a tolerância consiste na coexistência pacífica
de culturas diferentes.

44. A tolerância, segundo o relativista, implica julgar culturas diferentes da nossa.

45. A ideia relativista de que as culturas são homogéneas e têm fronteiras claras não está sujeita
a disputa.

 46. O relativista pode defender consistentemente um valor universal de tolerância.

 47. Segundo o realismo moral, a cada cultura particular corresponde uma comunidade moral.

 48. A tolerância, segundo o realismo moral, exige a liberdade de cada um pensar por si.

 49. Segundo o subjetivismo moral, a cada cultura particular corresponde apenas uma
comunidade moral.

 50. A tolerância, para o subjetivismo moral, implica a promoção do bem público através
de sentimentos moralmente apropriados.

V; 34. F; 35. V; 36. V; 37. F; 38. F; 39. V; 40. F; 41. F; 42. V; 43. V; 44. F; 45. F; 46. F; 47. F; 48. V; 49. F; 50. V.
1. V; 2. F; 3. F; 4. F; 5. V; 6. F; 7. V; 8. V; 9. F; 10. V; 11. V; 12. F; 13. F; 14. V; 15. F; 16. V; 17. F; 18. F; 19. V; 20. F; 21. V; 22. V; 23. F; 24. F; 25. F; 26. V; 27. F; 28. F; 29. V; 30. V; 31. F; 32. V; 33.
SOLUÇÕES:

Os valores: análise e compreensão da experiência valorativa 97

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TEMA

III A DIMENSÃO ÉTICO-POLÍTICA


DA AÇÃO HUMANA E DOS VALORES

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365178 098-115 U4.indd 99 13/03/13 15:57
Unidade

4 A vida moral:
noções introdutórias
4.1 Intenção ética e norma moral
4.1.1 A vida moral e os seus problemas
4.1.2 A ética e as suas disciplinas
4.1.3 A relação entre as disciplinas da ética

4.2 A dimensão pessoal e social da ética


4.2.1 A prioridade da perspetiva pessoal
4.2.2 A prioridade da perspetiva impessoal
4.2.3 A paridade entre as duas perspetivas

Objetivos da unidade Conceitos fundamentais

No fim desta unidade, deverá ser capaz de responder Os conceitos seguintes, que são centrais nesta unidade,
às seguintes questões: são definidos no fim do livro:
Que tipos de problemas morais existem? dever especial negativo
Que disciplinas da ética respondem aos diferentes tipos dever especial positivo
de problemas morais? dever geral negativo
O que define as duas teorias principais de ética normativa? dever geral positivo
Que relação há entre as diferentes disciplinas da ética? ética normativa
Que perspetivas parecem estar em conflito dentro de nós? metaética
Quais são os diferentes tipos de deveres morais que temos? teoria deontológica
Que respostas podemos dar ao conflito entre a perspetiva teoria teológica
pessoal e a perspetiva impessoal?

Introdução

A finalidade desta unidade é contribuir para a compreensão das unidades que se seguem — a sua finalidade é instrumental. O que ela faz
é fornecer ferramentas que ajudem a compreender as teorias morais das unidades seguintes e, por consequência, a nossa vida moral.
Num primeiro momento, serão apresentadas noções básicas sobre os diferentes tipos de problemas morais e os diferentes tipos de teorias
morais. Depois, serão dadas noções sobre os diferentes tipos de deveres morais e as diversas perspetivas de hierarquização desses deveres.
Estas, por sua vez, estão associadas à maneira como se responde à diferença entre a dimensão social e a dimensão pessoal da ética, que
em grande medida pode ser vista como equivalente à diferença entre a perspetiva pessoal e impessoal da ética.
Esta unidade introdutória desenha, por isso, uma espécie de geografia moral e ilumina alguns marcos centrais de um território. Organiza,
assim, a nossa compreensão. Saberemos depois melhor que terra pisamos e será menor a possibilidade de perdermos o nosso sentido de
orientação nesse território imenso que é a ética.

100 Unidade 4

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Estímulo

A história que irá ler pretende testar:


• dois pontos de vista básicos acerca da moralidade: o ponto de vista de que a moralidade
é um conjunto de deveres e o de que é um conjunto de virtudes;
• se as noções de dever e de virtude são noções morais fundamentais.

O que é ser bom?


A Maria, o Lourenço, o Miguel e a Francisca combina- FRANCISCA — E o que é um caráter bom? Talvez
ram um encontro num café. Escolheram um café sim- seja tão difícil saber isso como saber o que devo fazer.
pático ao pé da praia. Como o dia estava agradável,
MARIA — Acho que posso ajudar o Miguel. Ter um
sentaram-se na esplanada. Eram amigos e isso bastava
caráter bom é estar disposto a considerar os casos difí-
para estarem ali juntos. Mas desta vez tinham o obje-
ceis de uma certa maneira. É como estar sempre moti-
tivo preciso de discutir em conjunto a matéria de filo-
vado. A pessoa que tem um caráter bom não faz fretes
sofia, agora que se aproximava o momento em que
quando é justa ou honesta ou generosa, sei lá. Não é
teriam de apresentar o ensaio sobre o problema
como aquelas pessoas para quem cumprir o dever é uma
«O que devo fazer?».
obrigação, se não desagradável, pelo menos aborrecida.
MARIA — O problema filosófico «O que devo fazer?»
LOURENÇO — Diz lá então, Miguel, o que é isso de
parecia fácil. Achei que a resposta seria tão simples
considerar os casos difíceis de uma certa maneira.
como esta: o que devo fazer é aquilo que tenho boas
Que maneira é essa, afinal?
razões para fazer.
MIGUEL — Em vez de termos certos princípios, que
LOURENÇO — Mas depois viste que não era assim
indicam certos deveres, temos certas disposições,
tão simples. Comigo passou-se o mesmo. Eu achava
como a Maria quis dizer. São disposições especiais.
que todos temos certos deveres. Era mais ou menos
Há quem lhes chame virtudes.
assim: seja qual for a situação, há deveres que temos
de seguir; o problema é que há situações muito com- FRANCISCA — Hum…virtudes. Não me digas que
plicadas. vais falar daquelas pessoas muito boazinhas que nin-
guém leva a sério.
FRANCISCA — Pois, já estou a ver. À medida que as
situações se complicavam era difícil estar seguro do LOURENÇO — Francisca, não conheces a resposta do
dever que era apropriado seguir. Miguel e já estás a discordar? Não estás a ser boazinha!
MIGUEL — Também senti essas dificuldades. Sabem MIGUEL — A ideia é que se soubermos o que faz de
a que conclusão cheguei? alguém uma pessoa boa, essa será a base mais segura
para decidir que ações são corretas.
LOURENÇO — Diz lá.
MARIA — Diz lá então que virtudes fazem de alguém
MIGUEL — Que saber o que devo fazer não é tão
uma pessoa boa.
importante como se pensa. Mais importante é que
tipo de pessoa ser. MIGUEL — Há virtudes que sempre foram vistas
como guias seguros. A bondade, a honestidade e a
FRANCISCA — O que queres dizer com isso?
justiça são talvez as mais importantes.
Parece-me que estás a ser vago.
FRANCISCA — Para mim, há uma muito importante
MARIA — Já sei. O que queres dizer é que o mais
que não referiste — a independência.
importante é o nosso caráter. É isso?
MIGUEL — Sim, a independência é muito importante.
MIGUEL — É realmente isso. Como nunca saberemos
ao certo que deveres seguir em situações complicadas, LOURENÇO — Também concordo. Se não conside-
o mais seguro é termos um caráter bom. Se tivermos rarmos os casos difíceis pela nossa própria cabeça, até
um carácter bom, é mais provável fazermos as escolhas podemos ser justos, honestos e generosos, mas não
acertadas nos casos difíceis. com uma motivação muito forte.

A vida moral: noções introdutórias 101

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FRANCISCA — É isso mesmo, Lourenço. 7. Deixa que os factos falem por si mesmos.
MARIA — Há uma coisa que não está clara, Miguel. 8. Tem cuidado com o abuso de poder.
Disseste que as virtudes de um caráter bom são a base
9. Lembra-te de que as coisas más foram frequente-
das ações corretas. Mas como é que melhoras o cará-
mente feitas em nome da virtude.
ter sem saber que ações são corretas nos diversos
casos? Não estou a ver. 10. Nunca deixes a injustiça passar sem protesto.
LOURENÇO — Queres dizer que temos de ver que 11. Não fabriques desculpas para a crueldade.
virtudes formam um caráter bom, mas também 12. Sê amável com estranhos, mas não porque um dia
que princípios são corretos. poderás também ser um estranho.
MIGUEL — Isso parece-me bem visto. 13. Não permitas que o teu temperamento faça aquilo
MARIA — Mas então que regras morais tem uma pes- que a tua razão não pode fazer.
soa virtuosa? 14. Não insultes se podes refutar.
MIGUEL — O filósofo Colin McGinn apresentou um 15. Não confundas independência com rebelião.
conjunto de regras morais muito interessante no seu
livro Literacia Moral. Querem saber quais são? Aqui 16. Respeita a verdade acima das pessoas.
vão elas. 17. Não desprezes os desafortunados.
REGRAS MORAIS 18. Não deixes que a aparência exterior determine o teu
(de uma pessoa que gostaria de ser considerada virtuosa) juízo moral.
1. Sê bondoso em primeiro lugar, mas firme se abusam 19. Tolera a diferença.
da tua bondade.
20. Tem sentido de humor, mas não à custa da seriedade.
2. Nunca permitas que os padrões baixos dos outros
façam baixar os teus. LOURENÇO — Parece-me que conhecendo estas
regras será mais fácil ter um caráter bom.
3. Admira pessoas boas.
FRANCISCA — Francamente, Lourenço, essa é uma
4. Protege-te da inveja dos outros, e também da tua. maneira errada de ver as coisas. Um caráter bom não
5. Não esqueças que todos têm de morrer e que todos um vem num catálogo. Que ingenuidade! Julgas que
dia nasceram. aprendes nos livros a ter um caráter bom?

6. Sê verdadeiro, mas nunca para magoar os outros.

Guião de leitura

1 Identifique o problema que é debatido pelos quatro amigos.

2 Esclareça a dificuldade sentida pela Maria, pelo Lourenço e pela Francisca.

3 Explique a posição do Miguel.

4 Analise as dificuldades que as hipóteses debatidas enfrentam.

Fazer filosofia

1 É provável que considere algumas destas regras mais importantes do que outras. Mas o exercício que propomos não é
simplesmente dizer quais pensa serem as mais importantes — é que, dessas regras, diga qual é a regra que nenhuma cir-
cunstância o levaria a abandonar. Tente justificar claramente a sua escolha e responder às críticas dos seus colegas.

2 Escolha duas situações que vê como desafios que contribuem bastante para formar um caráter bom. Justifique a sua escolha.

102 Unidade 4

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4.1 Intenção ética e norma moral

4.1.1   A vida moral e os seus problemas
A vida moral é a nossa vida comprometida com o que real-
mente importa. Muitas são as coisas que importam na nossa
vida. Podemos ter uma ideia da riqueza da vida moral a
partir da diversidade de problemas que ela levanta. É por
essa razão que a ética cobre um conjunto de disciplinas dife-
rentes, e não é, como se poderia pensar, uma só disciplina.
A amostra que iremos apresentar permite descobrir não só
que há muitos problemas morais, mas também que eles são
de tipo diferente. É uma amostra possível dos problemas que
ocupam os filósofos morais; é provável que a vida nos tenha
já proporcionado circunstâncias em que foi importante res-
ponder-lhes. Para que as diferenças entre tipos de problemas
morais sobressaiam, é útil formar conjuntos distintos de
problemas.
Os problemas que apresentamos no primeiro conjunto são Fig. 1 — Fotograma do filme Invictus (2009), realizado por
razoavelmente gerais e abstratos. No entanto, a resposta Clint Eastwood.
a estes problemas tem implicações práticas, pois fornece A vida não dispensa convicções morais sólidas, mas sem uma
maneira sábia de as pôr em prática o risco de sermos
orientações sobre o que devemos fazer e o tipo de pessoa que
intransigentes é real. Nelson Mandela deu-nos um exemplo
devemos ser. claro dessa sabedoria moral.

Primeiro conjunto de problemas

• As consequências das ações são o único fator moralmente relevante?


• Se alguém faz uma coisa boa por uma má razão, é mais relevante que tenha feito uma coisa boa ou que a sua razão tenha sido má?
• As nossas obrigações especiais são sempre mais importantes do que os nossos deveres gerais?
• Os fins justificam os meios?
• As necessidades de muitos suplantam as de uns quantos ou de apenas um?
• Haverá uma diferença moralmente relevante entre atos e omissões?
• Que virtudes formam um caráter bom?
• Há um princípio moral básico ou há vários princípios morais básicos?
• Os deveres são absolutos ou podem, dadas as circunstâncias, ser suplantados por outros deveres?
• O que é o bem?

No segundo conjunto, são apresentados problemas razoavelmente particu-


lares e concretos. Eles põem-se, na verdade, em circunstâncias específicas.
Da resposta a estes problemas resultam diretamente deveres a ter em conta
nessas circunstâncias.

Segundo conjunto de problemas

• Como devem ser distribuídos os recursos de saúde?


• Devem as pessoas que em certas circunstâncias querem morrer ser ajudadas a pôr termo à sua vida?
• É errado comer carne de animais criados na indústria agropecuária intensiva?
• Há guerras justas?
• Quanto devemos estar dispostos a pagar por uma vida?
• É errado usar embriões para experimentação?
• As empresas devem procurar apenas a maximização do lucro?
• Matar um feto é tão imoral como matar um ser humano adulto?
• Os animais têm direitos?
• Devemos ajudar os nossos pais antes de estranhos?

A vida moral: noções introdutórias 103

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Os problemas apresentados no terceiro con-
junto são diferentes dos anteriores. A res-
posta que exigem já não diz o que devemos
fazer ou que tipo de pessoa devemos ser, nem
qual é, numa circunstância específica, o
nosso dever. Nada dizem, portanto, sobre o
conteúdo da moralidade, uma vez que não
recomendam deveres ou virtudes. Informam
antes sobre a natureza da moralidade. Assim,
a resposta a estas questões permite saber, por
exemplo, se a moralidade é subjetiva ou
objetiva, ou se é racional ou sentimental, mas
não fornece orientações normativas para as
diversas circunstâncias da nossa vida.
Fig. 2 — Fotograma do filme A Lista
de Schindler (1993), realizado por
Steven Spielberg. Terceiro conjunto de problemas
Este filme relata a história de um alemão que • O que é errado e o que é correto é uma expressão de preferências subjetivas?
salva centenas de pessoas durante a Segunda • O que é errado para uma pessoa é necessariamente errado para outra?
Guerra Mundial. Mesmo em contextos • O que é correto e o que é errado dependem da sociedade?
especialmente adversos, a motivação moral • A moralidade consiste em factos ou em sentimentos?
pode determinar as nossas escolhas. • A ética é uma forma de conhecimento ou uma forma de expressão de sentimentos
pessoais?
• A justificação moral procede de princípios gerais para juízos sobre casos particulares,
ou destes para os princípios gerais?
• Serão os valores morais objetivos ou subjetivos?
• As razões morais motivam por si mesmas?
• O que é a motivação moral?
• Ter os valores morais corretos é uma questão de sensibilidade ou de racionalidade?

Ética 4.1.2   A ética e as suas disciplinas


É agora mais claro por que razão a ética não é uma só disciplina: tipos dife-
rentes de problemas exigem igualmente tipos diferentes de respostas. Dado
Disciplinas Disciplinas que os problemas dos dois primeiros conjuntos dizem respeito ao que
normativas não normativas devemos fazer e ao tipo de pessoa que devemos ser, esses problemas são
normativos. Precisamos, por isso, de disciplinas normativas para lhes res-
Ética normativa Metaética pondermos. Mas os problemas do último conjunto, como vimos, não fazem
parte do conteúdo da moralidade. São antes problemas sobre a natureza da
moralidade, sobre o que é, afinal, a moralidade, e não sobre que morali-
Ética prática dade adotar. Segue-se que responder-lhes exige uma disciplina não norma-
Esquema 1 — Disciplinas da ética. tiva. Trata-se, nesse caso, de averiguar qual é a explicação mais satisfatória
da moralidade, apresentando a seu favor argumentos convincentes.

Disciplinas normativas: a ética normativa


e a ética prática
A ética normativa, que se ocupa do primeiro conjunto de problemas, pro-
cura responder à questão sobre como devemos viver. A resposta a esta
questão bastante geral envolve propostas normativas sobre o que fazer,
como agir e que tipo de pessoa ser. Essas propostas normativas estabelecem
e defendem princípios básicos, ou então virtudes fundamentais. Estes prin-
cípios básicos e estas virtudes fundamentais são especialmente importan-
tes. Na verdade, cabe-lhes o papel de justificação última dos deveres e das
virtudes a ter em conta nas circunstâncias específicas.

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Pensemos, por exemplo, no problema de saber como devem ser distribuí- Ética normativa
dos os recursos de saúde. Supõe-se que a justificação última da resposta a
este problema se apoia num princípio básico e geral. Poderá ser o princípio
básico segundo o qual devemos promover o bem da maioria, mas também
Teorias Teorias
poderá ser o princípio básico segundo o qual devemos gerar os maiores
teleológicas deontológicas
benefícios para os menos favorecidos. Saber qual é o princípio correto da
distribuição dos recursos de saúde é, por isso, um debate de ética norma-
tiva. Um dos mais importantes debates nessa disciplina é aquele que opõe Ex.: Ética
Ex.: Ética
teorias teleológicas e teorias deontológicas. Tentaremos compreendê-lo deontológica
utilitarista de
de Immanuel
mais à frente, estudando a ética utilitarista de John Stuart Mill, que é uma John Stuart Mill
Kant
versão de teoria teleológica, e a ética deontológica de Immanuel Kant. Por
isso, é útil fazer desde já uma breve caracterização destes dois tipos de Esquema 2 — Teorias da ética normativa.
teorias.

Teorias teleológicas e teorias deontológicas


O texto seguinte é um bom ponto de partida para essa caracterização.

Texto 1

As teorias fundacionais teleológicas partem da afirmação de que a base última da ética


normativa repousa na importância de algum bem ou bens centrais. Apesar de diferentes
teorias teleológicas apelarem a bens diferentes, esta preocupação exclusiva com o bem
(relevante) basta para dar às teorias teleológicas uma estrutura comum.
Em contraste, as teorias fundacionais deontológicas têm muito pouco em comum. Mas
claro que todas elas partilham a ideia de que as abordagens teleológicas são inadequa-
das: a relevância dos fatores normativos básicos, sustentam, não pode ter como explica-
ção última apenas um tal apelo exclusivo ao bem; além deste (ou em vez deste), outros
conceitos fundamentais têm de ser introduzidos.
Shelly Kagan, Normative Ethics. Ed. Westview Press, 1998, p. 240.

As teorias teleológicas tomam o bem como fundamento único da morali-


dade. As ações e os princípios são moralmente corretos se promoverem o
bem. O conceito de bem é central. O que distingue as diferentes teorias
teleológicas são, na verdade, diferentes teorias do bem. Umas dizem que o
bem consiste na felicidade; outras, que consiste na satisfação das preferên-
cias, por exemplo.
As teorias deontológicas defendem que o bem não é o único fundamento
da moralidade. Sugerem que outros fundamentos são igualmente impor-
tantes para justificar a correção moral de uma ação ou de um princípio.
Recorrem, por exemplo, à noção de contrato entre agentes livres e iguais;
nesse caso, uma ação moralmente correta é aquela que resulta de um con-
trato celebrado em certas condições. Ou recorrem à noção de autonomia,
que só é respeitada se os seres humanos não forem tratados apenas como
instrumentos das finalidades de outros seres humanos.
Todos estes outros fundamentos possíveis da moralidade são restrições à
promoção do bem. Uma ação pode até promover o bem, definido como
felicidade, mas não respeitar a autonomia dos outros, ou não ser universa-
lizável, por exemplo; não atendendo a essas restrições, a ação não está
moralmente justificada. A ética deontológica de Kant vê na universalização
e na autonomia restrições à promoção do bem. A teoria da justiça de Rawls,
que também estudaremos mais à frente, vê essas restrições nos valores de
liberdade e igualdade de todos os seres humanos.

A vida moral: noções introdutórias 105

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Vejamos agora em que consiste a ética prática, que é a outra disciplina
normativa da ética. A ética prática ou aplicada procura responder a proble-
mas particulares; trata, por isso, do segundo conjunto de problemas atrás
apresentado, entre outros problemas do mesmo tipo. É prática porque usa
princípios morais de caráter geral para responder da melhor maneira
a um problema particular. Portanto, quando deliberamos sobre problemas
morais que ocorrem no contexto das vidas pessoais, práticas profissionais,
políticas e instituições, recorremos a princípios gerais, que interpretamos
e afinamos de acordo com as exigências do caso. A finalidade dessa delibe-
ração é fazer um juízo moral particular sobre o caso em apreciação. No
entanto, a transição dos princípios gerais para os juízos particulares não
é linear nem óbvia.
Essa transição não é linear sobretudo nos casos moralmente complexos. Está
longe de ser claro o que devemos decidir e fazer nesses casos. Vários princí-
pios, e não apenas um, são aplicáveis. É particularmente difícil resolver estes
conflitos de princípios. Mas esse é o principal desafio da ética prática, e uma
das mais importantes tarefas da filosofia moral. As dificuldades levantadas
pelos casos moralmente complexos explicam que muitos juízos morais
sejam disputáveis. O debate sobre problemas como o aborto, a eutanásia,
a distribuição dos recursos de saúde, os direitos dos animais ou o uso de
embriões, por exemplo, é extraordinariamente rico. Dada a natureza complexa
dos casos, não é de esperar que uma resposta aos problemas que levantam
seja capaz de gerar consensos muito alargados.
Podemos imaginar que um dia até chegaremos a uma boa teoria moral
sobre a eutanásia, por exemplo. Todavia, um novo caso particular, envol-
vendo fatores moralmente relevantes até aí não estudados, pode levantar
problemas não previstos pela teoria. O debate sobre a eutanásia ganhará
então um novo fôlego.

A disciplina não normativa: a metaética


O que a ética normativa faz é averiguar se os princípios morais são corre-
tos. Diz-se, por isso, que trata de questões substantivas — de questões
acerca do conteúdo da moralidade. Mas a metaética não pergunta se os
princípios morais são corretos; as questões de que se ocupa são outras e
muitas delas são expressas no terceiro conjunto de problemas. Vejamos que
questões são essas a partir de um exemplo.
Vamos imaginar que alguém defende o princípio moral de que não benefi-
ciar o mais possível os menos favorecidos é errado. Uma das perguntas que
poderíamos fazer é o que significa o termo «errado». Será que se refere a
uma propriedade natural, como a propriedade de ser alto ou de ter olhos
castanhos? E como pode ser conhecida a propriedade de ser errado? De
que modo, afinal, pode ser conhecido o princípio em questão? E que jus-
tificação desse princípio é adequada?
Estas questões acerca de um princípio em particular são exemplos de ques-
tões mais gerais acerca de toda a moralidade. Em grande medida, essas
questões são ditadas pelo desejo de saber três coisas. Queremos saber o
que é a moralidade — se ela consiste em factos morais, em sentimentos ou
em outra coisa. Queremos saber como é conhecida — se existe uma intui-
ção especificamente moral ou uma outra maneira de a conhecer. E quere-
mos saber o que é uma justificação apropriada da moralidade — se existe,
na verdade, uma boa justificação em ética.

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4.1.3   A relação entre as disciplinas da ética
Não há fronteiras rígidas entre as diferentes disciplinas da ética, mas sim
relações de continuidade. É razoavelmente óbvio que entre a ética norma-
tiva e a ética prática existe uma relação de continuidade, pois ambas são
disciplinas normativas. A diferença entre elas encontra-se sobretudo no
grau de generalidade dos princípios defendidos. Os princípios de ética nor-
mativa são mais gerais e fundamentais do que os princípios que, no âmbito
da ética prática, são apresentados para responder ao problema moral da
eutanásia ou do aborto, por exemplo. E uma teoria moral sobre a eutanásia
será mais geral e fundamental do que o juízo moral particular, que dela
pode ser derivado, sobre se um doente concreto e particular, nas suas
particulares circunstâncias, teria ou não justificação para recorrer a uma
determinada forma de eutanásia.
Parece haver assim três graus de generalidade: percorremos um caminho
que começa em princípios muito gerais e fundamentais (princípios teleoló-
gicos ou deontológicos), passa por princípios menos gerais e fundamentais
(teoria moral teleológica ou deontológica sobre a eutanásia ou qualquer
outro problema particular) e chega, finalmente, a juízos morais particulares
sobre um determinado caso.
Poderá não ser tão óbvio que entre a ética normativa e a metaética existe
uma relação de continuidade e não fronteiras rígidas. Afinal, elas ocupam-se
de problemas claramente distintos, explorando uma o conteúdo da morali-
dade e outra a natureza da moralidade. Todavia, elas não são independentes
uma da outra. Assim, no âmbito da ética normativa, precisamos de justificar
os princípios gerais e fundamentais, para que eles sejam vistos como plau-
síveis. Mas isso implica que tenhamos, no âmbito da metaética, uma teoria
sobre o que é uma boa justificação em ética. E também precisamos de
clarificar esses princípios, o que geralmente acaba por conduzir a uma teo-
ria metaética sobre o que é a moralidade. Por exemplo, se afirmamos, na
tentativa de clarificar um princípio normativo geral, que ele é absoluto, não
poderemos defender ao mesmo tempo que a moralidade consiste em
padrões culturais variáveis em função dos contextos. Nesse caso, estaremos
mais inclinados a ver a moralidade como um conjunto de factos morais
independentes dos contextos.

Atividades

1 Qual é a disciplina da ética que propõe deveres e virtudes? Por que razão o faz?

2 O que distingue a ética normativa da metaética?

3 O que defendemos em termos normativos é irrelevante para o que defendemos ao nível metaético? Porquê?

4 Considere a seguinte afirmação: «Todos estão vinculados ao dever de não matar, quer queiram quer não.»
4.1 Indique se a afirmação poderia pertencer a uma teoria de ética normativa ou a uma teoria metaética. Justifique a sua resposta.

Debate

Imagine um mundo em que os seres humanos são apenas capazes de seguir o seu interesse próprio. Surpreendidos com esse facto,
descobrem que, afinal, a natureza humana é constituída de tal modo que seguir o interesse próprio é a única maneira de se realizarem.
Concluem, por isso, que se dá a coincidência de serem apenas capazes de fazer o que, felizmente, devem fazer. Esta teoria normativa
é teleológica ou deontológica? Porquê? Que nome lhe daria?

A vida moral: noções introdutórias 107

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4.2 A dimensão pessoal e social da ética
A ética é uma reflexão cuidadosa ditada por um conflito de perspetivas no
interior de cada um de nós. Temos, por um lado, uma perspetiva pessoal,
que nos leva a atender primariamente aos nossos interesses e projetos
particulares. Podemos ilustrá-la com esta imagem: quem determina a sua
vida segundo a perspetiva pessoal é como se cultivasse apenas o seu jar-
dim. Mas temos também uma perspetiva impessoal, que representa as
exigências dos outros, sejam eles quais forem. Os muros do nosso jardim
são derrubados por essa perspetiva que, dentro de nós, faz ouvir os outros.
Sem esta perspetiva impessoal não precisaríamos de refletir eticamente
— teríamos apenas de ajustar interesses particulares. Mas os muros do
jardim não se deixam derrubar facilmente. Gera-se, por essa razão, um
conflito. A ética emerge assim de um conflito entre a perspetiva pessoal e
a perspetiva impessoal. A primeira perspetiva envolve a dimensão pessoal
da ética; e a segunda envolve a sua dimensão social. Esse conflito é o pro-
blema básico que motiva a reflexão ética. É disso que o texto seguinte nos
fala:

Texto 2

O problema não resolvido é o problema familiar de reconciliar a A última representa as exigências da coletividade e dela vem a força
perspetiva da coletividade com a perspetiva do indivíduo; no que essas exigências têm em cada indivíduo. Se não existisse, não
entanto, quero abordá-lo não primariamente como uma questão haveria moralidade, mas apenas a colisão, o compromisso e a conver-
acerca da relação entre indivíduo e sociedade, mas na essência e na gência de perspetivas individuais. É porque o ser humano não ocupa
origem como uma questão acerca da relação de cada indivíduo con- apenas o seu ponto de vista próprio que cada um de nós é sensível
sigo mesmo. Isto reflete a convicção de que a ética […] tem de ser às exigências dos outros através da moralidade privada e pública.
entendida como algo que emerge de uma divisão em cada indiví- Thomas Nagel, Equality and Partiality. Ed. Oxford, 1991, pp. 3-4.
duo entre duas perspetivas, a pessoal e a impessoal.

Da perspetiva pessoal resulta um padrão moral para a conduta


do indivíduo. Da perspetiva impessoal resulta, por sua vez, um
padrão moral para as instituições sociais, que é diferente
daquele que se destina ao indivíduo. Como conciliar então as
duas perspetivas? Como ajustar os padrões morais em con-
flito?
O problema é, portanto, o de saber qual é a relação correta
entre a perspetiva pessoal e a perspetiva impessoal. A teoria
moral satisfatória será aquela que descobrir essa relação. Isso
exige que as pressões que separam as duas perspetivas sejam
contidas dentro de limites razoáveis. A pressão exercida pela
perspetiva pessoal, se não for contida, conduz a este resultado
insatisfatório: a dimensão social, se for atendida, só o será
depois de realizados os projetos e interesses particulares. É
como se as exigências dos outros ficassem apenas com as sobras
dos nossos recursos e energias deixadas pelos compromissos
particulares. E a pressão exercida pela perspetiva impessoal, se
não for contida, conduz igualmente a um resultado insatisfató-
rio, que é o seguinte: a dimensão social é tão exigente que a
Fig. 3 — Pormenor de O Jardim das Delícias Terrenas capacidade de cada um ter uma vida pessoal satisfatória, ou
(1504), de Hieronymus Bosch. mesmo uma vida pessoal, fica seriamente diminuída. Dada a
Se cultivarmos apenas o jardim dos nossos projetos sua importância, vale a pena caracterizar estas posições insatis-
particulares, estaremos a ignorar a dimensão social da ética. fatórias.
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4.2.1  A prioridade da perspetiva pessoal
Se à perspetiva pessoal é concedida prioridade, então as exigências dos
outros na nossa vida moral têm um peso secundário. Nesse caso, fica ao
critério de cada um decidir até onde levar os seus sacrifícios pelos outros.
Essa liberdade dos agentes é uma prerrogativa básica de que dispõem. Se,
no uso dessa prerrogativa, um agente conclui que o dever de ajudar os
outros exige de si um sacrifício que considera excessivo, nada há de errado
em não atender a esse dever.
A deontologia moral e a moralidade de senso comum inclinam-se mais
para esta prioridade da perspetiva pessoal sobre a perspetiva impessoal.
O texto seguinte caracteriza assim esta posição:

Texto 3

De acordo com a moralidade de senso comum, devemos dar algum E há certas pessoas a cujos interesses devemos dar algum tipo de
peso aos interesses de estranhos. Mas há certas pessoas a quem ou prioridade. Essas são as pessoas com quem mantemos certas rela-
podemos ou devemos dar algum tipo de prioridade. Assim, estamos ções especiais. Assim, cada pessoa deve dar algum tipo de prioridade
moralmente autorizados a dar algum tipo de prioridade aos nossos aos interesses dos seus filhos, pais, alunos, pacientes, àqueles que
próprios interesses. A maioria acredita que não tem o dever de aju- representa, ou aos seus compatriotas.
dar os outros quando isso exigiria um sacrifício demasiado grande. DereK ParfiT, Reasons and Persons. Ed. Oxford, 1984, p. 485.

A prioridade concedida à perspetiva pessoal implica a seguinte hierarquia


de deveres morais:

Deveres negativos Deveres positivos


Deveres gerais I IV
Deveres especiais II III

Quadro 1 — Hierarquia comum de deveres morais.

Nesta hierarquia de deveres morais, os deveres gerais negativos têm uma


importância maior do que todos os outros deveres. Deveres gerais negati-
vos são, por exemplo, os deveres de não causar dano aos outros ou de não
interferir com a sua liberdade. Estes deveres não exigem sacrifícios relevan-
tes: para os cumprirmos, apenas temos de nos abster de causar dano ou de
interferir na liberdade dos outros. Por ordem decrescente de importância,
temos em seguida os deveres especiais negativos, que resultam das nossas
relações especiais com certas pessoas. Também aqui, pela mesma razão,
não nos são pedidos sacrifícios relevantes. É menos exigente abstermo-nos
de causar dano a essas pessoas do que termos de lhes fazer o bem, agindo
nesse sentido.
Com uma importância ainda menor, temos depois os deveres especiais
positivos, que já nos exigem sacrifícios com alguma relevância, uma vez
que temos de ajudar e fazer o bem àqueles com quem temos relações espe-
ciais. Por fim, aos deveres gerais positivos é atribuída uma importância
residual. E esses são, justamente, os deveres mais exigentes. Fazer o bem a
estranhos, dando um peso relevante aos seus interesses, não é fácil. Dado
que não temos relações com eles, a motivação para os ajudar é menor, pois
não encontra apoio nos sentimentos que poderiam resultar dessas relações.
No entanto, aqueles que mais precisam da nossa ajuda, por se encontrarem
numa situação de grande vulnerabilidade, podem ser os estranhos.

A vida moral: noções introdutórias 109

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Os deveres positivos são especialmente relevantes quando se trata de identi-
ficar a perspetiva que tem prioridade. São eles que comportam uma exigên-
cia maior, pedindo-nos mais sacrifícios. Ora, os deveres positivos têm uma
importância menor na hierarquia de deveres morais do senso comum. E os
deveres gerais positivos, recomendados pela perspetiva impessoal, têm uma
importância ainda menor do que os deveres especiais positivos impostos
pela perspetiva pessoal. Os deveres gerais positivos são os mais exigentes,
mas podem ser aqueles que temos mais razões para atender. Se assim for, a
consequência perturbadora é que a moralidade de senso comum é incorreta.

4.2.2  A prioridade da perspetiva impessoal
Fig. 4 — Fotograma do filme Crash — Segundo esta posição, as exigências dos outros têm prioridade. Essas exigên-
No Limite (2004), realizado por Paul Haggis. cias são aquelas que nos impõem deveres positivos. Isso quer dizer que,
Este filme mostra que os preconceitos sociais, prioritariamente, temos de fazer o bem aos outros, sejam eles pessoas espe-
culturais e raciais são obstáculos poderosos ciais para nós ou simples estranhos. O dever geral positivo de beneficência
a vidas morais satisfatórias e à exigência é o mais importante, e de tal modo o é que pode implicar privações pessoais
de atender ao bem impessoal. consideráveis, limitando drasticamente a possibilidade de cada um cultivar
o seu jardim. O texto seguinte exprime com clareza essa posição:

Texto 4

A moralidade requer que realize — daqueles atos que nenhuma E exige que eu pergunte como posso fazer a maior contribuição
outra razão proibiria — aquele ato que é razoavelmente previsível possível, ponderadas todas as coisas — ainda que isto possa
que conduza às melhores consequências globais. impor-me privações consideráveis — e proíbe-me de fazer menos
do que isso. Se a afirmação é correta, a maioria das minhas ações é
Poucos de nós acreditam nesta afirmação; nenhum de nós age de
imoral, dado que quase nada do que faço otimiza o meu tempo e
acordo com ela. Considere apenas o quanto é radicalmente exi-
os meus recursos; se for honesto comigo, acabarei por reconhecer
gente. Ela vincula-nos a agir não com vista a prosseguir meramente
que falho constantemente em fazer tanto bem quanto aquele
os nossos interesses e projetos, ou os dos indivíduos que podemos
de que sou capaz.
privilegiar, mas os interesses de todos os indivíduos, do mundo
enquanto bem integral e total. Shelly Kagan, The Limits of Morality. Oxford: Oxford University Press, 1989, p. 1.

Ter como finalidade o bem de todos os indivíduos pressupõe considerá-los


como iguais, ou seja, os seus interesses são imparcialmente considerados.
Isso implica uma outra hierarquia de valores morais, a que poderíamos
chamar hierarquia utilitarista de valores morais.

Deveres negativos Deveres positivos


Deveres gerais II I
Deveres especiais IV III

Quadro 2 — Hierarquia utilitarista de deveres morais.

As teorias morais que acolhem com mais simpatia a prioridade da perspetiva


impessoal sobre a perspetiva pessoal são as teleológicas, particularmente as
suas versões utilitaristas. Esta posição é insatisfatória. Não aceitando restrições
à promoção imparcial do bem, ela tem a consequência implausível de
sacrificar excessivamente, ou mesmo anular, os nossos projetos particulares.
Vimos duas posições extremas quanto à relação correta entre a perspetiva
pessoal e a perspetiva impessoal, ou, por outras palavras, entre a dimensão
pessoal e a dimensão social da ética. Nenhuma delas parece promissora.
Teremos à disposição uma alternativa mais atraente?

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4.2.3  A paridade entre as duas perspetivas
É possível que entre ambas as perspetivas exista uma relação de paridade.
Isso poderia significar que elas têm uma justificação comum. Que justifica-
ção seria essa? Uma hipótese interessante consiste em defender que são as
mesmas considerações de vulnerabilidade que justificam as duas perspetivas.
Segundo essa hipótese, os deveres positivos, sejam gerais ou especiais, são
tentativas de fazer o bem pela mesma razão: a vulnerabilidade e dependência
em que se encontram os seres humanos que merecem preocupação.
Vejamos como pode ser feita a defesa da paridade entre as duas perspetivas:

Texto 5

O que farei é tentar operar com as nossas intuições acerca das respon- O que defendo é que essa é a verdadeira fonte de todas as responsa-
sabilidades especiais. Por outras palavras, irei argumentar que não há bilidades especiais padrão que tão prontamente admitimos. As mes-
nada assim de tão especial acerca delas. Isso não significa afirmar que mas considerações de vulnerabilidade que tornam as nossas obriga-
os deveres especiais são apenas casos particulares de alguns deveres ções para com as nossas famílias, amigos, clientes e compatriotas
mais gerais. Significa antes que ambos os tipos de deveres derivam especialmente fortes podem também gerar responsabilidades seme-
fundamentalmente dos mesmos tipos de considerações morais. Pelas lhantes perante um grupo de pessoas bastante maior que não tem
mesmas razões que reconhecemos um deles, teremos de reconhecer connosco qualquer relação especial.
o outro. O que é crucial, na minha opinião, é que os outros dependem roberT e. gooDin, Protecting the Vulnerable — A Reanalysis of
de nós. Eles são particularmente vulneráveis às nossas ações e escolhas. Our Social Responsabilities. Chicago: University of Chicago Press, 1985, p. 11.

O dever geral positivo de aliviar a fome de um estranho, por exemplo, é tão


forte como o dever especial positivo de proteger um filho de certas doen-
ças. Num caso e noutro, é a vulnerabilidade daqueles a quem procuramos
fazer o bem que justifica ambos os deveres. Por isso, não há razão para que
um desses deveres positivos tenha, à partida, prioridade sobre o outro. Se
assim for, a perspetiva pessoal, que atribui uma importância maior aos
deveres especiais positivos, está em paridade com a perspetiva impessoal,
que recomenda um dever geral positivo de beneficência.
A vulnerabilidade das pessoas com quem temos relações especiais justifica um
dever especial positivo de beneficência para com elas. Através da moralidade
privada respondemos, então, a parte da vulnerabilidade que há no mundo.
A outra parte exige de nós uma intervenção moral pública. Por meio de insti-
tuições sociais e políticas, nacionais e internacionais, procuramos estar à altura
do dever geral positivo de beneficência. Nenhum destes deveres tem
prioridade sobre o outro; e nenhum impede que o outro nos comprometa
— não há uma hierarquia de deveres. Tudo isto pode querer dizer que a
relação correta entre as duas perspetivas é uma relação de paridade.

Atividade

1 Explique a moralidade de senso comum e a moralidade utilitarista em termos de perspetivas e deveres.

Debate

Considere o seguinte caso: Dois carros colidem violentamente e incendeiam-se. Uma pessoa que passava por perto acorre para ajudar. Os
dois condutores estão vivos, mas muito feridos. Dada a intensidade das chamas, no máximo a pessoa conseguirá salvar apenas um deles. Mas
percebe, para sua aflição, que um dos condutores é o seu pai e que o outro é um especialista muito famoso no tratamento do cancro que
está perto de descobrir uma cura para essa terrível doença.
Qual dos condutores deve ser salvo? Justifique dizendo se a sua resposta está mais próxima do senso comum ou da moralidade utilitarista.

A vida moral: noções introdutórias 111

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Ideias-chave

A vida moral: noções introdutórias


• A vida moral levanta problemas normativos e problemas não • A reflexão ética é motivada pelo conflito entre a perspetiva
normativos. pessoal, que atende primariamente aos nossos interesses e
• A vida moral levanta problemas gerais e abstratos, mas tam- projetos particulares, e a perspetiva impessoal, que procura
bém problemas razoavelmente particulares e concretos. dar resposta à igual importância de todos os seres humanos.

• Os problemas mais gerais e abstratos são estudados no • A perspetiva pessoal manifesta-se num padrão moral para a
âmbito da metaética e da ética normativa. conduta individual e a perspetiva impessoal num padrão
moral para as instituições sociais.
• Os problemas mais particulares e concretos são estudados
no âmbito da ética prática. • O problema central da ética, gerado pelo conflito entre a pers-
petiva pessoal e a perspetiva impessoal, é o seguinte: Qual é a
• Os problemas morais, por serem diferentes, exigem respos- relação correta entre as suas perspetivas? Ou, dito de outro
tas igualmente diferentes. modo, como podemos ajustar o padrão moral para a conduta
• Os problemas normativos exigem respostas normativas e dos indivíduos e o padrão moral para as instituições sociais?
os não normativos exigem respostas não normativas. • Na moralidade de senso comum, a perspetiva pessoal tem
• As disciplinas normativas da ética são a ética normativa e a prioridade sobre a perspetiva impessoal.
ética prática; a disciplina não normativa é a metaética. • A hierarquia de deveres morais de senso comum atribui uma
• A ética normativa procura responder à questão sobre como importância apenas residual aos deveres gerais positivos.
devemos viver, e as suas teorias fazem propostas normativas • As teorias teleológicas, sobretudo nas suas versões utilitaris-
sobre o que fazer, como agir e que tipo de pessoa ser. tas, refletem a prioridade da perspetiva impessoal sobre a
• A ética normativa inclui teorias teleológicas, de que a teoria perspetiva pessoal.
utilitarista de John Stuart Mill é uma das versões, e teorias • A hierarquia de deveres morais utilitarista atribui mais impor-
deontológicas, de que a teoria deontológica de Immanuel tância aos deveres gerais positivos do que aos deveres espe-
Kant é uma das suas versões. ciais positivos.
• As teorias teleológicas consideram que o bem é o único fun- • A moralidade de senso comum é insatisfatória porque os
damento da moralidade, enquanto as deontológicas defen- interesses dos outros têm um peso demasiado secundário
dem que outros fatores moralmente relevantes além do bem nas nossas considerações.
são também fundamentos da moralidade, os quais têm a
importante função de serem restrições à promoção do bem. • A moralidade utilitarista é insatisfatória porque os projetos
pessoais ficam seriamente comprometidos.
• A ética prática delibera sobre casos particulares recorrendo a
princípios gerais, que afina segundo as exigências dos casos • Uma alternativa interessante à moralidade de senso comum
para que daí resulte um juízo moral correto sobre o caso em e à moralidade utilitarista defende que a relação correta
apreciação. entre as duas perspetivas é uma relação de paridade.

• A metaética procura explicar o que é a moralidade, e não • A defesa de uma relação de paridade entre as duas perspetivas
que moralidade adotar, tentando dar respostas convincentes tem a sua justificação em considerações de vulnerabilidade.
a três questões, a saber: em que consiste a moralidade, como • A defesa da paridade entre perspetivas tem como conse-
pode ser conhecida e qual é a sua justificação. quência que os deveres especiais positivos e os deveres
• Entre as diferentes disciplinas da ética não há fronteiras gerais positivos têm igual importância.
rígidas, mas relações de continuidade: entre a ética norma- • Segundo a posição da paridade entre perspetivas, os deveres
tiva e a ética prática há apenas diferenças no grau de gene- especiais positivos ficam a cargo da moralidade privada, e os
ralidade dos princípios, e entre a ética normativa e a metaé- deveres gerais positivos são atendidos pela nossa interven-
tica, que a procura explicar, há relações de dependência. ção moral pública.

Para aprofundar conhecimentos

Leituras:
AlmeidA, Aires (org.) — Dicionário Escolar de Filosofia. Lisboa: Plátano Editora, 2009.
BlAckBurn, Simon — Dicionário de Filosofia. Lisboa: Gradiva, 1997 [ed. original 1994].
GrAylinG, A. C. — «Virtudes e Atributos», in O Significado das Coisas. Lisboa: Gradiva, 2002 [ed. original 2001].
nAGel, Thomas — «Ética», in A Última Palavra. Lisboa: Gradiva, 1999 [ed. original 1997].

112 Unidade 4

365178 098-115 U4.indd 112 13/03/13 15:57


Esquema-síntese

A vida moral: noções introdutórias

Ética prática

Teorias teleológicas
Normativas

Ética normativa Ex.: Ética utilitarista


de John Stuart Mill
Disciplinas

Teorias deontológicas

Não normativa Metaética Ex.: Ética deontológica


de Immanuel Kant

Ética

se for prioritária Hierarquia comum


Pessoal
de deveres morais

se houver paridade
entre as perspetivas Não há uma hierarquia
Perspetivas
de deveres morais

se for prioritária Hierarquia utilitarista


Impessoal
de deveres morais

Filmes:
Invictus (2009), realizado por Clint Eastwood.
Crash — No Limite (2004), realizado por Paul Haggis.

Páginas da Internet:
http://criticanarede.com/eti_eticamoral.html (artigo «Ética», de Thomas Mautner)
http://criticanarede.com/teoriasetica.html (artigo «Teorias sobre a Ética», de Hugh LaFollette)

A vida moral: noções introdutórias 113

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TEsTE FOrmATIvO 4

CLAssIFIQUE As AFIrmAÇÕEs sEGUINTEs COmO vErDADEIrAs OU FALsAs.

  1.  A ética ocupa-se apenas de problemas normativos.

  2.  A ética é formada por disciplinas normativas e por uma disciplina não normativa.

  3.  Perguntar se a pena de morte é errada é levantar um problema normativo.

  4.  Perguntar que princípios morais básicos devemos adotar é levantar um problema não normativo.

  5.  Perguntar se a moralidade consiste em factos ou em sentimentos é levantar um problema


não normativo.

  6.  Perguntar qual é a justificação apropriada dos juízos morais é levantar um problema
normativo.

  7.  A resposta aos problemas não normativos diz-nos em que consiste a moralidade.

  8.  A resposta aos problemas normativos diz-nos que moralidade devemos adotar.

  9.  A ética normativa é a disciplina da ética que responde ao problema de saber o que
é a moralidade.

 10.  A ética normativa pretende fornecer uma resposta para o problema de saber como devemos viver.

 11.  A ética prática fornece uma resposta para problemas normativos gerais.

 12.  As teorias teleológicas e as teorias deontológicas são normativas.

 13.  As teorias teleológicas defendem que o fundamento da moralidade é o bem.

 14.  As teorias deontológicas defendem que o fundamento da moralidade é a promoção do maior


bem para o maior número.

 15.  Há fronteiras rígidas entre a ética normativa e a ética prática.

 16.  A metaética procura saber qual é a natureza da moralidade e o que é uma justificação moral.

 17.  A metaética diz-nos que princípios devemos adotar nas nossas vidas.

 18.  É na disciplina de metaética que são apresentadas teorias sobre se a moralidade é objetiva
ou não.

 19.  É na disciplina de ética normativa que são apresentadas teorias sobre se a moralidade é racional.

 20.  Entre a ética normativa e a metaética há uma relação de continuidade.

 21.  Os princípios normativos gerais e os juízos morais particulares distinguem-se apenas pelo
seu grau de generalidade.

 22.  Uma afirmação normativa geral é independente de afirmações metaéticas sobre o que
é a moralidade.

 23.  A afirmação «É um facto que mentir é errado.» é própria da disciplina de metaética.

 24.  A afirmação «Temos, à partida, o dever de não mentir.» é própria da disciplina de ética normativa.

 25.  A afirmação «Sem sentimentos de benevolência, a moralidade é apenas conversa.» é própria


da disciplina de ética normativa.

 26.  A afirmação «Os nossos princípios, para serem moralmente válidos, têm de resultar de uma
justificação imparcial.» é própria da metaética.

 27.  A afirmação «O dever de combater a fome é louvável, mas excede as nossas obrigações.»
é própria da disciplina de metaética.

114 Unidade 4

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 28.  A dimensão social da ética equivale à perspetiva impessoal.

 29.  A dimensão pessoal da ética reflete os nossos projetos particulares.

 30.  A reflexão ética é motivada pelo desejo de valorizar a dimensão social da ética.

 31.  A reflexão ética procura ajustar a perspetiva impessoal e a perspetiva pessoal.

 32.  A moralidade de senso comum dá prioridade à perspetiva impessoal.

 33.  Os deveres gerais positivos têm um peso importante na moralidade de senso comum.

 34.  Os deveres especiais positivos têm um peso irrelevante na moralidade de senso comum.

 35.  Segundo a hierarquia de deveres morais de senso comum, o dever de visitar um amigo que se
encontra internado num hospital é mais forte do que o dever de distribuir comida pelos sem-abrigo.

 36.  As teorias morais teleológicas, especialmente na sua versão utilitarista, inclinam-se mais para
dar prioridade à perspetiva impessoal.

 37.  A hierarquia utilitarista de deveres morais atribui um peso importante aos deveres gerais positivos.

 38.  Segundo a hierarquia utilitarista de deveres morais, o dever de aliviar a fome de um estranho
longínquo é mais forte do que o dever de aliviar a constipação de um filho.

 39.  A afirmação «Devemos contribuir, pelos meios considerados necessários, para que todas
as mulheres possam frequentar a escola.» exprime um dever especial positivo.

 40.  A afirmação «Devemos abster-nos de violar os contratos.» exprime um dever geral negativo.

 41.  A afirmação «Devemos impedir, usando todos os meios ao nosso alcance, que os nossos
filhos corram o risco de se afogar.» exprime um dever geral positivo.

 42.  A afirmação «Devemos abster-nos de interferir nos projetos particulares dos nossos amigos.»
exprime um dever especial negativo.

 43.  A afirmação «Não devemos interferir na liberdade dos outros.» exprime um dever geral positivo.

 44.  A moralidade de senso comum tem o aspeto insatisfatório de exigir demasiados sacrifícios
à nossa vida pessoal.

 45.  A moralidade utilitarista tem a desvantagem de comprometer a realização dos nossos


projetos particulares.

 46.  Defender uma relação de paridade entre a perspetiva pessoal e a perspetiva impessoal
é dar mais importância ao bem imparcialmente considerado.

 47.  A posição de que as duas dimensões da moralidade têm a mesma importância exige o
mesmo empenho nos nossos projetos particulares e na nossa intervenção moral pública.

 48.  A defesa da paridade entre as duas dimensões da moralidade é uma tentativa


de ajustamento das exigências de cada uma dessas dimensões.

 49.  Para quem defende a paridade das duas dimensões da moralidade, o dever de dar assistência
aos nossos pais é mais forte do que o dever de contribuir para um programa de vacinação
num país com uma taxa muito alta de mortalidade infantil.

 50.  A paridade entre as duas perspetivas exige de nós um empenho em projetos internacionais
de combate à fome tão claro como o nosso empenho na educação dos filhos.

F; 34. F; 35. V; 36. V; 37. V; 38. V; 39. F; 40. V; 41. F; 42. V; 43. F; 44. F; 45. V; 46. F; 47. V; 48. V; 49. F; 50. V.
1. F; 2. V; 3. V; 4. F; 5. V; 6. F; 7. V; 8. V; 9. F; 10. V; 11. F; 12. V; 13. V; 14. F; 15. F; 16. V; 17. F; 18. V; 19. F; 20. V; 21. V; 22. F; 23. V; 24. V; 25. F; 26. V; 27. F; 28. V; 29. V; 30. F; 31. V; 32. F; 33.
SOLUÇÕES:

A vida moral: noções introdutórias 115

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Unidade

5 A ética utilitarista
de John Stuart Mill

5.1 O princípio da maior felicidade
5.1.1 O que é a felicidade?
5.1.2 O argumento de Mill a favor do princípio da maior felicidade

5.2 Motivos e consequências


5.3 Uma avaliação crítica da ética de Mill
5.3.1 Algumas objeções à ética de Mill
5.3.2 Méritos da ética de Mill

Objetivos do capítulo Conceitos fundamentais

No fim desta unidade, deverá ser capaz de responder Os conceitos seguintes, que são centrais nesta unidade,
às seguintes questões: são definidos no fim do livro:
Qual é, segundo o utilitarismo de Mill, o princípio da ação altruísmo
moralmente correta? egoísmo ético
Com que argumento defende Mill o princípio da maior hedonismo
felicidade?
princípio da maior felicidade (ou princípio da utilidade)
Que objeções enfrenta a teoria utilitarista de Mill?
utilitarismo
Quais são os méritos dessa teoria?

Introdução

Quando procuramos decidir se uma ação é moralmente correta, é natural que tenhamos em conta as suas consequências. O utilitarismo
é uma teoria consequencialista, defendendo que a ação correta é determinada apenas pelas suas consequências.
Para decidir o que se deve fazer, é preciso usar toda a informação disponível sobre o que pode acontecer caso se realize a ação. Essa infor-
mação, que é sempre incerta, apoia crenças igualmente incertas sobre o que se deve fazer numa dada situação. Mas há crenças incertas
mais razoáveis do que outras.
O utilitarismo pretende responder à incerteza quanto ao futuro com as crenças mais razoáveis sobre as consequências das ações.

116 Unidade 5

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Estímulo

A história que irá ler pretende testar:


• a avaliação moral que, à partida, se faz deste caso;
• se a felicidade é o fator que mais pesa nas nossas decisões;
• se a felicidade é geralmente mais importante do que a realidade de fazer as coisas.

A máquina da felicidade
O Manuel gosta de ter amigos em casa para jogar na — Não acredito que prefiras uma tarde de sacrifício a
PlayStation. Desta vez, convidou o Jorge e o Diogo. uma tarde de prazer. Não acho que isso faça alguém feliz.
Geralmente, a mãe do Manuel chega a casa por volta das
— Talvez o prazer não seja tudo. Ocorreu-me ontem
cinco e meia e faz pipocas. Bem quentinhas sabem ainda
uma ideia que pode ter mudado a minha maneira de
melhor. Ao prazer de jogar na PlayStation soma-se o pra-
ver as coisas — afirmou o Diogo com ar pensativo.
zer de comer pipocas. O Jorge ficou de passar por casa
do Diogo e depois seguem os dois para casa do Manuel. — Conta lá essa grande ideia. Se concordar, vou já
para casa estudar — desafiou o Jorge na brincadeira.
Foi com espanto que o Jorge encontrou o Diogo a
estudar matemática. No dia seguinte não iam ter — Ouve com atenção — pediu o Diogo. — Imagina
teste, mas o Diogo parecia muito aplicado. O Jorge que foi criada a máquina da felicidade. É uma máquina
cumprimentou-o e perguntou: espetacular. Se nos ligarmos a ela, passamos a viver
numa realidade virtual permanentemente felizes.
— É para ir? São quase três. Foi a essa hora que pro-
metemos estar lá. — Diz-me lá como — interrompeu o Jorge.
— Hoje não me apetece. Disse que ia, mas estou arre- — É simples. Gostavas de ser uma estrela pop ou um
pendido — disse o Diogo com ar meio aborrecido. craque de futebol ou um cientista genial que fez uma
descoberta revolucionária. Ou ter uma outra vida
— Mas porquê? — quis saber o Jorge.
qualquer. Seja qual for, é uma vida cheia de prazeres.
— Estou com dúvidas nesta matéria de matemática.
— E depois? Isso parece-me uma fantasia sem sen-
Quero fazer muitos exercícios. É a única maneira de
tido, mas continua lá — observou o Jorge.
resolver as minhas dificuldades. Se não fizer agora,
depois temos mais matéria nova e eu fico a ver navios. — Mas o melhor da máquina é isto: nessa realidade
virtual, tens tudo o que te faz feliz, mas pensas que a
— Não acredito que queres ficar em casa mergulhado
tua vida decorre no mundo real; em nenhum
em equações quando podias passar uma tarde tão
momento duvidas de que és um ser humano normal
boa em casa do Manuel. Nem parece teu, rapaz —
com uma vida normal.
desafiou o Jorge, que continuou desconfiado: — Será
que estás com algum problema e não queres dizer?
— Não estou, a sério. É mesmo só a matemática. Já
percebi que sem praticar muito não tiro as notas que
quero. E, além disso, fico sem saber realmente, que é
o pior de tudo. Para o ano, as minhas dificuldades
serão ainda maiores. Será que não compreendes isto?
— Claro que compreendo, só que acho estranho. É a
primeira vez que não alinhas — respondeu o Jorge.
— Eu até gostava de ir, mas tenho de fazer este sacri-
fício. Diz ao Manuel que não posso — pediu o Diogo.
Fig. 1 — Cartaz do filme Total Recall (2012).
Fez-se um breve silêncio. No olhar do Jorge, a sur-
presa perante a atitude do Diogo era evidente. Já sem No filme Total Recall uma empresa implanta nos seus clientes
memórias falsas de experiências que eles gostariam de ter vivido.
grande esperança de o convencer, disse:

A ética utilitarista de John Stuart Mill 117

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— Agora a ideia já me parece mais interessante. Mas os jogadores de futebol no mundo real também
precisam de ter muita sorte. A sorte de terem o treina-
— Só que há uma condição para te ligares à máquina
dor certo, de nascerem no meio certo, de terem capa-
da felicidade — disse o Diogo a fazer mistério.
cidades a que a sociedade dá muito valor, pagando
— Que condição é essa? Diz lá. Estou curioso. bem por elas. E por aí fora. Podes imaginar muitos
— Se embarcares nessa realidade virtual, nunca mais outros exemplos — disse o Jorge.
podes sair dela. É como se fosses fazer a melhor via- — Queres então dizer que para sermos felizes preci-
gem da tua vida sem bilhete de regresso. samos de ter sorte? E que ter do nosso lado a sorte ou
Ficaram a pensar. Havia perplexidade nos olhares. a máquina da felicidade é a mesma coisa?
O Diogo recomeçou a conversa e perguntou ao Jorge: — É isso mesmo — afirmou o Jorge.
— O que fazias se tivesses à tua disposição uma — Mas deixas de ter contacto com a realidade. A tua
máquina da felicidade? vida é irreal, não o podes negar — argumentou o Diogo.
— Acho que me ligava — respondeu o Jorge. — E que diferença é que isso faz? Tanto a vida real
— Era de esperar. Para ti, o prazer parece ser a única como a irreal são a soma das experiências que senti-
coisa que conta — comentou o Diogo. mos ter em cada uma delas. A única diferença está nas
experiências que sentimos ter. É como fazeres viagens
— É a minha escolha, paciência. Há alguma coisa de diferentes. Por que razão uma viagem é melhor do que
errado em escolher aquilo que prefiro? a outra só por ser feita num barco que se chama reali-
— Se calhar até há. Olha, é errado ter uma vida que é dade? — indagou o Jorge, que falava com convicção.
uma farsa em vez de uma vida que mostra o que real- O Diogo estava agora ainda mais perplexo do que no
mente és — afirmou o Diogo. início da conversa. Em todo o caso, se tivesse de
— E quem disse que eu não mostro o que sou na tomar uma decisão naquele momento, não se ligaria
máquina da felicidade? Se eu escolher ser um craque à máquina da felicidade. Para ele, a felicidade não
do futebol em vez de um cientista genial, estou a reve- parecia ser a única coisa que contava. Por isso, reto-
lar o que sou — respondeu o Jorge com firmeza. mou os exercícios de matemática. Apressado, o Jorge
despediu-se. Não tinha uma máquina da felicidade à
— Talvez tenhas razão. Mas, seja como for, não és um espera dele, mas tinha, pelo menos, os prazeres de
craque de futebol à custa do teu esforço. Tens de admi- jogar na PlayStation e de comer pipocas.
tir que não mereces ser o que és — declarou o Diogo.
Inspirado na obra Anarquia, Estado e Utopia, de RobeRt Nozick,
— Tive a sorte de me ligar à máquina, é verdade. e na obra The Pig that Wants to Be Eaten and
99 Other Thought Experiments, de JuliaN baggiNi.

Guião de leitura

1 Formule o problema que o texto levanta.

2 Apresente a posição do Diogo e as razões que a apoiam.

3 Apresente as objeções do Jorge às razões do Diogo.

4 Exponha a justificação do Diogo para a sua posição.

5 Tome posição perante o problema e justifique a sua opção.

Fazer filosofia

1 Debata com toda a turma se a felicidade é o aspeto mais decisivo nas nossas vidas ou se outros aspetos, como a autonomia,
por exemplo, são tão ou mais importantes do que a felicidade.

2 Identifique aspetos da vida atual que podem ser semelhantes a uma existência ligada à máquina da felicidade.

118 Unidade 5

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5.1 O princípio da maior felicidade Biografia

O utilitarismo é um tipo de ética consequencialista; defende, por isso, que Vidas


a ação moralmente correta é a que produz as melhores consequências. John comprometidas
Stuart Mill (1806-1873), filósofo inglês defensor do utilitarismo, caracte- com um mundo
riza-o assim: melhor: John
Stuart Mill e
Harriet Taylor
Texto 1
Mill foi uma criança-prodígio. Ainda em
O credo que aceita a utilidade, ou o princípio da maior felicidade, como fundamento da idade de frequentar a escola primária, já lia
moralidade, defende que as ações estão certas na medida em que tendem a promover a em diversas línguas, entre as quais o grego
felicidade, erradas na medida em que tendem a produzir o reverso da felicidade. Por felici- clássico. Por volta dos 20 anos, sofreu uma
dade, entende-se o prazer e a ausência de dor; por infelicidade, a dor e a privação de prazer. depressão aguda. A poesia romântica,
particularmente a de Wordsworth,
John Stuart Mill, Utilitarismo. Porto: Porto Editora, 2005 [ed. original 1861], p. 48. contribuiu para que se libertasse dessa
fase sombria. Foi desde essa altura que
procurou conciliar o romantismo
e a crença iluminista nas capacidades
O princípio básico do utilitarismo é, então, o princípio da maior felicidade
racionais dos seres humanos. O aspeto
ou princípio da utilidade, que pode ser definido deste modo: mais admirável do seu talento é, aliás, a
combinação entre a teoria moral abstrata
e a compreensão humana da textura das
Princípio da maior felicidade:
emoções e das relações sociais, comum
A ação moralmente certa é aquela que maximiza a felicidade. nos grandes pensadores morais e
políticos. Amou intensamente Harriet
Taylor, por quem tinha também admiração
E deve fazê-lo de uma forma imparcial: a felicidade de cada um não conta intelectual. Casaram e escreveram juntos
mais do que a felicidade de qualquer outra pessoa. Saber por quem se dis- A Sujeição das Mulheres, um livro inspirador
tribui a felicidade é indiferente. O que realmente conta é saber se uma do feminismo moderno. Mill defendeu
ideias tão polémicas para a sua época que
determinada ação maximiza a felicidade. É de sublinhar que o utilitarismo
chegou mesmo a ser preso por apoiar
de Mill contrasta fortemente com o egoísmo ético. Este tem como princípio abertamente o uso de métodos
a satisfação do interesse próprio, de que resultará, presume-se, a felicidade contracetivos. O facto de trabalhar como
individual. Nada mais distante do princípio da maior felicidade, que nos administrador na Companhia das Índias
exige a maximização da felicidade imparcialmente considerada. É esta a Orientais a maior parte da sua vida não o
obrigação a que não podemos virar costas, seja qual for a justificação invo- impediu de escrever vários livros de
filosofia, política e economia. Depois foi
cada. Ao contrário do egoísmo ético, o utilitarismo é exigente, senão membro do parlamento britânico. Como
mesmo demasiado exigente, ao ponto de nos pedir que façamos o que reformista que era, aí se distinguiu pela
alguns dos seus críticos afirmam estar para além dos nossos deveres. defesa dos direitos das mulheres e das
classes trabalhadoras. De resto, os
O princípio básico dos utilitaristas é hoje central nas disputas morais. Mas na utilitaristas empenharam-se em mudanças
altura foi uma ideia revolucionária. Pela primeira vez, filósofos defendiam como a abolição da escravatura,
que a moralidade não dependia de Deus ou de regras abstratas. A felicidade a igualdade entre homens e mulheres
do maior número é tudo o que se deve perseguir com a ajuda da experiência. e o direito de voto para todos.

Atividades

1 Indique quais das afirmações seguintes são pensamentos consequencialistas e quais não são.
A — Devemos permitir o aborto porque a mulher tem demasiadas limitações cognitivas para dar os cuidados adequados ao seu filho.
B — Ajude a sua amiga a compreender a matéria de Português porque esse é o seu dever.
C — Se lhe disser a verdade, ela ficará deprimida.
D — Nunca quebre promessas seja em que circunstância for.
E — Roubar para matar a fome não é errado.
F — Tem a obrigação de doar um rim ao seu pai.

2 Apresente agora duas afirmações criadas por si, uma consequencialista e outra que não o seja.

A ética utilitarista de John Stuart Mill 119

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5.1.1   O que é a felicidade?
Mill tem uma perspetiva hedonista de felicidade. Segundo esta perspetiva, a
felicidade consiste no prazer e na ausência de dor.
O prazer pode ser mais ou menos intenso e mais ou menos duradouro.
Mas a novidade de Mill está em dizer que há prazeres superiores e inferiores,
o que significa que há prazeres intrinsecamente melhores do que outros.
Mas o que quer isto dizer? Simplesmente que há prazeres que têm mais
valor do que outros devido à sua natureza.
Mill defende que os tipos de prazer que têm mais valor são
os prazeres do pensamento, do sentimento e da imaginação;
tais prazeres resultam da experiência de apreciar a beleza,
a verdade, o amor, a liberdade, o conhecimento, a criação
artística. Qualquer prazer destes terá mais valor e fará as
pessoas mais felizes do que a maior quantidade imaginável
de prazeres inferiores. Quais são os prazeres inferiores?
Os prazeres ligados às necessidades físicas, como beber,
comer e ter sexo.
Diz-se que o hedonismo de Mill é sofisticado. Ao ter em conta
a qualidade dos prazeres na promoção da felicidade para
o maior número, evitou a crítica de muitos dos seus contempo-
râneos, que apelidavam o utilitarismo de «moral para porcos»;
uma outra consequência disso é deixar para segundo plano
Fig. 2 — Alegria de Viver (1905-1906), de Matisse. a ideia de que o prazer é algo que tem uma quantidade que
Segundo o utilitarismo, o fundamento da moralidade consiste se pode medir meramente em termos de duração e intensidade
na felicidade do maior número de pessoas. — é a qualidade do prazer que é relevante e decisiva.

Texto 2

De dois prazeres, se houver um ao qual todos ou quase todos os que um ser amplamente dotado sentirá sempre que, da forma como o
tiveram experiência de ambos derem uma preferência decidida, mundo é constituído, qualquer felicidade que possa esperar é imper-
independentemente de sentirem qualquer obrigação moral para o feita. Mas pode aprender a suportar as suas imperfeições, se de todo
preferir, então esse será o prazer mais desejável. Se um dos dois for forem suportáveis, e estas não o farão invejar o ser que, na verdade,
colocado, por aqueles que estão completamente familiarizados com está inconsciente das imperfeições, mas apenas porque não sente
ambos, tão acima do outro que eles o preferem mesmo sabendo de modo nenhum o bem que essas imperfeições qualificam.
que é acompanhado de um maior descontentamento, e se não abdi- É melhor ser um ser humano insatisfeito do que um porco satisfeito;
cariam dele por qualquer quantidade do outro prazer acessível à sua é melhor ser Sócrates insatisfeito do que um tolo satisfeito. E se o tolo
natureza, então teremos razão para atribuir ao deleite preferido uma ou o porco têm uma opinião diferente é porque só conhecem o seu
superioridade em qualidade que ultrapassa de tal modo a quanti- próprio lado da questão. A outra parte da comparação conhece
dade que esta se torna, por comparação, pouco importante. […] ambos os lados.
É indiscutível que um ser cujas capacidades de deleite sejam baixas John Stuart Mill, Utilitarismo. Porto: Porto Editora,
tem uma probabilidade maior de as satisfazer completamente, e que 2005 [ed. original 1861], pp. 50-51.

Distinção qualitativa Há filósofos que consideram a distinção entre prazeres inferiores e superio-
do prazer res incompatível com o hedonismo.
Se, como afirma o hedonismo, uma experiência vale mais do que outra
apenas em virtude de ser mais aprazível, ao aumentarmos progressiva-
Prazeres Prazeres mente a aprazibilidade do prazer inferior, chegaremos a um ponto em que
superiores inferiores este pesará mais do que um prazer superior na balança dos prazeres; e,
nesse caso, se quisermos manter o hedonismo, a distinção entre prazeres
Intelectuais Corporais
inferiores e superiores deixará de fazer sentido e terá de ser abandonada.

Esquema 1 — Distinção qualitativa do prazer.

120 Unidade 5

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5.1.2   O argumento de Mill a favor 
do princípio da maior felicidade
A prova de Mill do princípio da maior felicidade consiste num argumento
que parte da analogia entre o que é visível e o que é desejável. Primeiro,
verá como Mill o expõe. Depois, o argumento será simplificado para que o
possa discutir com proveito.

Texto 3

A doutrina utilitarista é a de que a felicidade é desejável, e é a única coisa desejável, como


um fim; todas as outras coisas são desejáveis apenas como um meio para esse fim. O que
se deverá exigir à doutrina — que condições será preciso que a doutrina satisfaça — para
que a sua pretensão de ser aceite seja bem-sucedida?
A única prova que se pode apresentar para mostrar que um objeto é visível é o facto de
as pessoas efetivamente o verem. A única prova de que um som é audível é o facto de as
pessoas o ouvirem, e as coisas passam-se do mesmo modo com as outras fontes da
nossa experiência. Similarmente, entendo que a única evidência que se pode produzir
para mostrar que uma coisa é desejável é o facto de as pessoas efetivamente a desejarem
Se o fim que a doutrina utilitarista propõe a si própria não fosse, na teoria e na prática,
reconhecido como um fim, nada poderia alguma vez convencer qualquer pessoa de que
o era. Não se pode apresentar qualquer razão para mostrar que a felicidade geral é dese-
jável, exceto a de que cada pessoa, na medida em que acredita que esta é alcançável,
deseja a sua própria felicidade. Isto, no entanto, sendo um facto, dá-nos não só toda a
prova que o caso admite, mas toda a prova que é possível exigir, para mostrar que a feli-
cidade é um bem: que a felicidade de cada pessoa é um bem para essa pessoa e, logo, a
felicidade geral um bem para o agregado de todas as pessoas.
John Stuart Mill, Utilitarismo. Porto: Porto Editora, 2005 [ed. original 1861], pp. 75-46.

Podemos agora simplificar o argumento do seguinte modo.


Dado que ver uma coisa prova que ela é visível, Mill conclui que desejar
uma coisa prova que ela é desejável. Como a seguir a esta conclusão afirma
que a única coisa que cada pessoa deseja como fim último é a sua própria
felicidade, conclui que a única coisa que é desejável como fim último para
cada pessoa é a sua própria felicidade. Desta conclusão extrai finalmente
aquela que afirma o princípio da maior felicidade: cada pessoa deve realizar
as ações que promovem a maior felicidade geral.

Juízo intuitivo

Avalie este argumento de acordo com a sua primeira reação.


A — Convincente. C — Duvidoso.
B — Atraente mas não convincente. D — Implausível.

Atividades

1 Qual é o princípio básico da ética de Mill?

2 O que significa dizer que é indiferente saber como se distribui a felicidade?

3 O que pensaria um utilitarista como Mill da célebre máxima dos mosqueteiros no romance de Alexandre Dumas: «Um por todos
e todos por um.»?

A ética utilitarista de John Stuart Mill 121

365178 116-131 U5.indd 121 13/03/13 16:01


O texto seguinte sublinha a importância de fazer escolhas imparciais para
se promover a felicidade geral. As escolhas são imparciais quando a felici-
dade própria conta o mesmo que a felicidade dos restantes envolvidos.
Temos assim uma versão utilitarista da regra de ouro, que provavelmente
já conhecerá na sua formulação negativa — não faça aos outros o que não
quer que lhe façam a si.

Texto 4

Tenho de voltar a repetir o que os críticos do utilitarismo raramente têm a justiça de


reconhecer: que a felicidade que constitui o padrão utilitarista do que está certo na con-
duta não é a felicidade do próprio agente, mas a de todos os envolvidos. Quanto à esco-
lha entre a sua própria felicidade e a felicidade dos outros, o utilitarismo exige que ele
seja tão estritamente imparcial como um espectador benevolente e desinteressado. Na
regra de ouro de Jesus de Nazaré, lemos todo o espírito da ética da utilidade. Tratar os
outros como queremos que nos tratem e amar o próximo como a nós mesmos consti-
tuem a perfeição ideal da moralidade utilitarista.
John Stuart Mill, Utilitarismo. Porto: Porto Editora, 2005 [ed. original 1861], p. 58.

Uma avaliação crítica do argumento de Mill


Que avaliação podemos fazer deste argumento? Desde logo, é provável que
veja o seguinte problema: a primeira premissa não é uma razão para aceitar
que desejar uma coisa prova que ela é desejável; se pode ver uma coisa, isso
significa que ela é visível; mas se pode desejar uma coisa, isso não significa
que ela seja desejável, isto é, que deva ser desejada. Por que razão a analo-
gia não resulta? Porque o conceito de visibilidade é descritivo, mas o con-
ceito de desejabilidade é normativo.
Vejamos agora a terceira premissa. Trata-se de uma premissa falsa, ou pelo
menos bastante duvidosa. Dizer que a felicidade é o fim último de cada
pessoa significa que tudo o que as pessoas
desejam é um meio para assegurar esse
fim. Se desejar que as crianças sujeitas
a maus-tratos recebam amor e proteção,
Mill diz que quer isto como um meio para
assegurar a sua felicidade. Mas a verdade
é que o bem-estar dos outros tem uma
importância que não depende da impor-
tância que dá à sua felicidade. Como
ninguém pode negar que muitas pessoas
têm preferências deste tipo, a terceira
premissa é falsa. Por outro lado, pessoas
deprimidas parecem por vezes não desejar
a sua própria felicidade.
E o que dizer do raciocínio «A única coisa
que cada pessoa deseja como fim último
é a sua própria felicidade. Logo, a única
coisa que é desejável como fim último
para cada pessoa é a sua própria felici-
dade.»? Se reparar bem, verá que é o
Fig. 3 — O Massacre dos Inocentes (c. 1320), de Giotto di Bondone. mesmo tipo de raciocínio que afirma a
Será legítimo sacrificar uma pessoa inocente com o fim de promover o bem segunda premissa a partir da primeira.
de muitas pessoas? Logo, o problema que levanta é o mesmo.

122 Unidade 5

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Do facto de desejar como fim último a sua própria felicidade não se segue
que a coisa mais desejável para si é ver os seus desejos satisfeitos. Isso
depende do tipo de desejos que tem. Se tiver desejos violentos, o melhor
para si é abandoná-los.
De qualquer modo, imagine que a quarta premissa é verdadeira. Será que daí
se pode concluir que cada pessoa deve realizar as ações que promovem a
maior felicidade? Mesmo que a sua felicidade seja a coisa mais desejável para
si, isso não implica que deve maximizar a felicidade geral. Em certas circuns-
tâncias, a felicidade dos outros exige que sacrifique a sua felicidade, e não
que a procure. Além disso, a última proposição parece contradizer a terceira.
Ao dizer de maneira descritiva, e não normativa, que cada um deseja apenas
a sua felicidade, a terceira premissa é uma expressão de egoísmo psicológico;
e nesse caso, como os seres humanos de facto apenas podem desejar a sua
própria felicidade, segue-se que não podem ter como fim a felicidade geral.
Logo, se de todo não podem ter como fim a felicidade geral, é incoerente
dizer que o fim último é maximizar a felicidade geral.
Fig. 4 — Cartaz do filme Gattaca (1997),
realizado por Andrew Niccol.
Avaliação crítica Este filme mostra que a promoção da
qualidade de vida pode recorrer a meios com
Assinale agora a sua avaliação ponderada do argumento a favor do princípio da maior consequências duvidosas e imprevisíveis.
felicidade.
A — Convincente. C — Duvidoso.
B — Atraente mas não convincente. D — Implausível.

Uma defesa do argumento de Mill


Alguns filósofos viram uma maneira de defender o argumento de Mill deste
ataque devastador. O erro de deduzir que uma coisa é desejável a partir do
facto de ser desejada é demasiado elementar para ser o que realmente está em
jogo no argumento. Para eles, Mill simplesmente consultou os nossos desejos
para averiguar que coisas são desejáveis. O facto de haver pessoas que dese-
jam acima de tudo a felicidade, e nada de errado encontram nisso, é apenas
um indício a favor da ideia de que a felicidade é desejável como fim último.
Assim, Mill teria o objetivo mais modesto de apresentar uma boa razão a
favor do princípio da maior felicidade, e não uma prova que o garantisse.

Atividades

1 Terá o princípio básico do utilitarismo de Mill alguma coisa que ver com o facto de ele ter sido um reformador social?
Justifique a sua resposta.

2 Qual é, segundo Mill, a coisa que tem mais valor na vida de cada um de nós?

3 «Mais vale passar a vida a ver televisão com um saco de pipocas na mão do que passar a vida a apreciar a música de Schubert.»
Mill concordaria com a afirmação? Justifique a sua resposta.

4 Será que desejar uma coisa a torna desejável? Justifique e dê exemplos.

5 Por que razão a terceira premissa do argumento é falsa?

6 Será que a conclusão do argumento se segue da afirmação «A única coisa que é desejável como fim último para cada pessoa
é a sua própria felicidade.»? Justifique a sua resposta.

7 Que defesa pode ser feita do argumento a favor do princípio da maior felicidade?

A ética utilitarista de John Stuart Mill 123

365178 116-131 U5.indd 123 13/03/13 16:01


5.2 Motivos e consequências
Uma ação tem motivos e consequências. Entre os fatores moralmente rele-
vantes das ações, os motivos e as consequências têm um lugar de destaque.
A correção moral de uma ação pode dever-se aos seus motivos, mas pode
dever-se também às suas consequências. Temos de saber então onde reside a
justificação moral da ação — se nos motivos ou nas consequências. Quanto
a isso, Mill não podia ser mais claro. Vejamos o que afirma o texto seguinte.

Texto 5

Os moralistas utilitaristas foram além de quase todos os outros ao afirmar que o motivo,
embora seja muito relevante para o valor do agente, é irrelevante para a moralidade da
ação. Aquele que salva um semelhante de se afogar faz o que está moralmente certo seja
o seu motivo o dever, seja a esperança de ser pago pelo incómodo; aquele que trai um
amigo que confia em si é culpado de um crime, mesmo que o seu objetivo seja servir
outro amigo relativamente ao qual tem maiores obrigações.
John Stuart Mill, Utilitarismo. Porto: Porto Editora, 2005 [ed. original 1861], p. 59.

Que significado tem o que acabou de ler? Que as consequências das ações
são o foco primário da avaliação moral.
Claro que os motivos dos agentes não deixam de ter importância. No
entanto, essa importância está limitada ao valor moral dos agentes, que não
é o foco primário da avaliação moral. O que é decisivo do ponto de vista
moral é salvar um semelhante de se afogar, na medida em que daí resultem
as melhores consequências — os motivos de quem o faz são secundários.
Mill reconhece que o interesse próprio e a inveja, na sua habitual estreiteza,
não motivam para realizar as ações que promovem a felicidade geral. Sem
dúvida que motivos benevolentes dispõem mais favoravelmente os agentes
para essa finalidade. Todavia, os motivos não são o fator moralmente deci-
sivo. Esta ideia é muito importante para compreender a diferença central
entre a ética de Mill e a ética de Kant. Como verá, neste último a avaliação
moral incidirá primariamente na motivação dos agentes.

Justificação moral
das ações

Motivos Consequências

Ética deontológica Ética utilitarista


de Immanuel Kant de John Stuart Mill

Esquema 2 — Fatores moralmente relevantes das ações.

Atividade

1 Por que razão considera Mill que os motivos são secundários na avaliação moral?

124 Unidade 5

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5.3 Uma avaliação crítica
da ética de Mill
A avaliação crítica da ética de Mill terá dois momentos. Primeiro serão
apresentadas algumas objeções que o utilitarismo enfrenta. Depois destaca-
remos alguns dos seus méritos próprios.

5.3.1  Algumas objeções à ética de Mill
As objeções que irá considerar têm uma estratégia em comum. A ideia é
partir dos juízos que faz acerca de casos particulares. Se esses juízos afir-
mam que uma ação é errada e a ética de Mill implica que é certa, terá indí-
cios para defender que a teoria é falsa.

A objeção da máquina de experiências


A teoria hedonista de Mill baseia-se na ideia de que o nosso bem-estar é
determinado pelas experiências que vivemos. O caso que se segue põe em
causa essa ideia.

Experiência mental 1

Imagine que tem à sua disposição um computador capaz de lhe fornecer todas as
experiências que mais deseja. Passará a ser uma pessoa absolutamente feliz e não
alguém que ora sente alegria e entusiasmo pela vida, ora tristeza e tédio. Tem de
escolher entre ligar-se à máquina de experiências ou prosseguir a vida que já tem. Se
o fizer, poderá viver a ilusão de ser, por exemplo, um ídolo pop, um revolucionário que
transforma o mundo num lugar perfeito ou até um jogador de futebol milionário, Fig. 5 — Cartaz do filme Matrix, realizado
informado e com gosto. Qual é a sua escolha? pelos irmãos Wachowski.
Se o utilitarismo de Mill for verdadeiro, a escolha certa é estabelecer a ligação à O filme Matrix passa-se num futuro
máquina. Mas muito provavelmente não vai ser capaz de esquecer o valor que tem o longínquo, num tempo em que máquinas
facto de viver uma vida real. Fazer certas coisas tem valor para além do sentimento de altamente inteligentes dominaram a espécie
felicidade que produz em si. Não quer perder a autonomia e a realidade de fazer as humana através de um programa de
coisas. Isto é eticamente crucial e está acima da felicidade. computador, em tudo semelhante à máquina
de experiências de que nos fala esta objeção.

A objeção das dificuldades de cálculo


As dificuldades inerentes ao processo de cálculo do bem-estar recomen-
dado pelo utilitarismo é uma das falhas da teoria mais destacadas pelos
seus críticos. Em muitas circunstâncias pode ser complicado avaliar qual
das ações disponíveis teria maior probabilidade de assegurar a maximização
da felicidade. Na sua versão mais extrema, esta crítica pode levar algumas
pessoas a dizer não só que é difícil, mas mesmo impossível, medir e com-
parar a felicidade de diferentes pessoas.
Como poderemos ter a certeza de que o enorme prazer do sádico não ultra-
passa o sofrimento da sua vítima?
Como poderemos comparar o prazer de um adepto fervoroso, que vê a sua
equipa marcar um golo, com o deleite que um apreciador de ópera experi-
menta ao ouvir a sua ária favorita?
A distinção entre prazeres superiores e inferiores oferece, no melhor dos
casos, uma solução parcial do problema.

A ética utilitarista de John Stuart Mill 125

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A objeção da justiça
A história que se segue oferece uma razão para rejeitarmos o utilitarismo
de Mill.

Experiência mental 2

Um crime horrível ocorreu numa cidade. O chefe da polícia descobriu que o assassino
está morto. Todavia, ninguém acreditará nele caso apresente os indícios conclusivos
que tem em sua posse. O estado de pânico na cidade é incontrolável. Rapidamente
um suspeito terá de ser julgado e condenado. Se tal não acontecer, revoltas semearão
o caos e a violência. Haverá certamente mortos e feridos.
Estava o angustiado chefe da polícia a pensar no caso e eis que entra no seu gabinete
um desconhecido que lhe diz vaguear pela cidade e não ter relações ou amizades que
o prendam ao mundo. O chefe da polícia tem de repente a solução para o caso. Por-
que não prender o vagabundo solitário e manipular as provas de maneira que ele seja
julgado, condenado e executado, uma vez que a lei estabelece a pena de morte para
casos do género? Ninguém saberá o que de facto se passou.
Se for esta a opção, morrerá uma pessoa, mas a vida e o bem-estar de outras serão preser-
vados. A consequência será claramente mais felicidade para o maior número.
Ora, se o utilitarismo for verdadeiro, esta é a opção certa. Mas será a opção justa? Não
Fig. 6 — Cartaz do filme Medidas Extremas haverá aqui um conflito muito sério entre o padrão utilitarista e o valor da justiça?
(1996), realizado por Michael Apted.
Este filme mostra que a maximização da
felicidade, caso não esteja sujeita a restrições
claras, pode implicar escolhas morais A objeção da integridade
claramente condenáveis. As histórias em que se baseia esta objeção poderiam passar-se consigo. Os
dilemas que elas apresentam são genuínos e não deixam pessoa alguma
indiferente.

Experiência mental 3

Caso 1 Caso 2
George fez um doutoramento em química mas não tem emprego. Os acasos de uma expedição botânica atiram Jim para o centro de
A sua saúde frágil limita as opções de trabalho. Tem dois filhos. É o uma aldeia sul-americana. De repente, vê à sua frente uma série
trabalho da sua mulher que garante a subsistência de uma família de homens atados e alinhados contra uma parede. Estão prestes a
que vive dificuldades e tensões. Os filhos ressentem-se de tudo isto, ser fuzilados. Mas tudo dependerá de Jim.
e tomar conta deles tornou-se um problema. Mas, um dia, um quí- Por cortesia, o capitão que comanda as operações concede-lhe o
mico mais velho propõe-lhe um emprego num laboratório que faz privilégio de matar um dos índios. Se o fizer, os outros serão liberta-
investigação em guerra química e biológica. George é contra este dos. Se recusar a proposta, todos os índios morrerão.
tipo de guerra. Já a sua mulher nada vê de incorreto nesse tipo de
investigação. Quer aceite quer não, a investigação prosseguirá.
George não é realmente necessário.

Segundo a teoria moral de Mill, George deve aceitar o emprego e Jim deve
matar o índio. Não se trata apenas de dizer que nada há de errado nisso,
mas de afirmar que essas são as opções corretas e óbvias. Mas será que são
realmente corretas e óbvias? Serão as considerações utilitaristas as únicas
relevantes para tratar destes casos?
Se a sua resposta for «não», é porque se sente especialmente responsável não
só pelo que é, mas também pelo que deve ser — pelo tipo de pessoa que
deve ser. E nesse caso é a sua integridade que está em jogo. Se admitir
que uma teoria ética não pode limitar-se a ponderar consequências e terá de
incluir considerações sobre o tipo de pessoa que devemos ser, o utilitarismo
de Mill é claramente insatisfatório.
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5.3.2  Méritos da ética de Mill
Ainda que sujeito a objeções, o utilitarismo tem méritos inegáveis. Considere
de seguida alguns deles.

Naturalismo
Direitos humanos, regras absolutas, mandamentos divinos e princípios abs-
tratos podem ser centrais para muitas pessoas, mas é difícil saber que relação
têm com as nossas vidas. Ora, o prazer e a dor que estão na base do utilita-
rismo são, por contraste, bem reais nas nossas vidas. Daí que o utilitarista,
perante uma pergunta do género «A moralidade é acerca de quê?», responda
que é acerca do prazer e como alcançá-lo e acerca da dor e como evitá-la.

Simplicidade
Alguns filósofos encontram no utilitarismo a simplicidade indispensável
para tratar de casos complexos. Se pensar nas lutas sociais e políticas, verá
que a sua discussão apela a conceitos morais como os de «dever», «direitos»
e «culpa» e faz juízos sobre o caráter das pessoas, o que é sempre delicado.
Ao ignorar as complicações que daqui resultam, o utilitarismo pode perguntar
simplesmente: «Que opções são realizáveis? Para cada uma das opções
realizáveis, quantas pessoas beneficiarão e quantas sofrerão? E quanto?»
Não é que as respostas a estas questões sejam fáceis. Todavia, é inegável
que as questões são simples e claras.

Pesar o prazer e a dor


Como o utilitarismo tem de pesar as boas e as más consequências e essa
avaliação pode depender de detalhes subtis, poucas são as regras gerais
que ele aprova. Regras como «Não mate.», «Não minta.» ou «Cumpra promes-
sas.» até podem aplicar-se em muitos casos, mas por vezes são maneiras de
fugir às questões e de evitar pensar seriamente sobre elas. Quebrar promes-
sas ou matar ocasionalmente pode parecer repulsivo, mas há alguns casos
em que é correto quebrar promessas ou matar se desse modo se maximizar
a felicidade. A única coisa valiosa é a felicidade da maioria. Por isso, não há
lugar para conflitos de valor.

Atividades

1 O que mostra a objeção da máquina de experiências?

2 Que consequência tem a objeção da justiça?

3 Segundo alguns filósofos, o utilitarismo de Mill tem o mérito da simplicidade. Porquê?

4 «Um dos méritos do utilitarismo é ele ser menos abstrato do que outras teorias.» Concorda? Porquê?

Debate

1 O utilitarismo não dá lugar a conflitos de valor. Isso será uma vantagem ou uma desvantagem?

2 A teoria moral de Kant, que em seguida irá estudar, defende que os homens são fins em si. Será que esta ideia pode corrigir alguns
defeitos do utilitarismo? Justifique a sua resposta.

3 O que faria num caso em que aliviar a dor de uma só pessoa diminui a felicidade de todos os envolvidos? Justifique a sua resposta.

A ética utilitarista de John Stuart Mill 127

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Ideias-chave

A ética utilitarista de John Stuart Mill


• O utilitarismo é uma teoria que procura encontrar resposta • Alguns filósofos procuraram defender o argumento de Mill,
para a seguinte pergunta: qual é a ação moralmente correta? afirmando que ele oferece um indício a favor da ideia de que
• O utilitarismo é uma teoria ética consequencialista; defende, a felicidade é desejável como fim último, mas não uma prova
por isso, que a ação moralmente correta é a que produz as conclusiva de que esta ideia é verdadeira.
melhores consequências. • O utilitarismo é considerado por muitos uma teoria que con-
• O princípio básico do utilitarismo é o princípio da maior feli- traria as nossas intuições morais e que parece, simultanea-
cidade (ou princípio da utilidade). mente, demasiado exigente e demasiado permissiva.

• O princípio da maior felicidade defende que é moralmente • O utilitarismo de Mill enfrenta a objeção de que a autonomia
correta a ação que produz a maior felicidade para o maior e a realidade são mais importantes do que a felicidade —
número de pessoas. objeção da máquina de experiências.

• O cálculo da felicidade deve ser imparcial, ou seja, a felici- • O utilitarismo de Mill é enfraquecido por permitir ações que
dade de uma pessoa particular não conta mais nem menos maximizam a felicidade, mas contrariam o valor da justiça
do que a de qualquer outra. — objeção da justiça.

• O utilitarismo de Mill contrasta fortemente com o egoísmo • O utilitarismo de Mill enfrenta a dificuldade de calcular qual
ético. das ações disponíveis tem uma maior probabilidade de maxi-
mizar a felicidade — objeção das dificuldades de cálculo.
• O utilitarismo de Mill é uma teoria exigente, pois temos sem-
pre a obrigação de atender imparcialmente à felicidade. • O utilitarismo de Mill é enfraquecido por se limitar a ponde-
rar consequências, excluindo considerações sobre o tipo de
• O utilitarismo de Mill apresenta uma perspetiva hedonista da pessoa que devemos ser — objeção da integridade.
felicidade, isto é, a felicidade consiste no prazer e na ausên-
cia de dor. • O utilitarismo de Mill tem o mérito de estabelecer a moralidade
numa base natural, de tal modo que a moralidade é tratada
• O utilitarismo de Mill não é apenas quantitativo, uma vez que como uma dimensão real das nossas vidas, pois envolve o
tem também em conta a qualidade dos prazeres. facto natural de termos dor e prazer — mérito do naturalismo.
• Mill defende que há prazeres superiores (intelectuais) e pra- • O utilitarismo de Mill tem o mérito de dispensar perguntas
zeres inferiores (corporais). complicadas sobre direitos e culpa, por exemplo, e de se
• O argumento de Mill a favor do princípio da utilidade não é ocupar apenas com questões mais simples, como as de
persuasivo; isto porque: a visibilidade é um conceito descri- saber que opções são realizáveis e qual dessas opções tem as
tivo e a desejabilidade é um conceito normativo; pressupõe melhores consequências — mérito da simplicidade.
que tudo o que as pessoas desejam como fim último é a sua • O utilitarismo de Mill tem o mérito de evitar conflitos de
própria felicidade; infere aquilo que se deve desejar a partir valor e de simplificar a tomada de decisões, uma vez que a
daquilo que de facto se deseja; por fim, ainda que seja ver- felicidade é a única coisa valiosa — mérito de pesar boas e
dade que a única coisa desejável como fim último para cada más consequências sem estar sujeito a regras gerais.
pessoa seja a sua própria felicidade, daí não se segue que
cada pessoa deve realizar as ações que promovem a maior
felicidade.

Para aprofundar conhecimentos

Leituras:
Mill, John Stuart — Utilitarismo. Lisboa: Gradiva, 2005 [ed. original 1861].
Rachels, James — Elementos de Filosofia Moral. Lisboa: Gradiva, 2004 [ed. original 2003], caps. 7 e 8.
singeR, Peter — «O Que a Ética É: Uma Perspectiva», in Ética Prática. Lisboa: Gradiva, 2002 [ed. original 1993].
WaRbuRton, Nigel — «Bem e Mal», in Elementos Básicos de Filosofia. Lisboa: Gradiva, 2007 [ed. original 1995], 2.a edição.
WaRbuRton, Nigel — «John Stuart Mill, Utilitarismo», in Grandes Livros de Filosofia. Lisboa: Edições 70, 2001 [ed. original 1998].
WilliaMs, Bernard — «Uma Crítica ao Utilitarismo», in Almeida, A. e Murcho, D. (org.) Textos e Problemas de Filosofia. Lisboa: Plátano
Editora, 2006 [ed. original 1973].

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Esquema-síntese

A ética utilitarista de John Stuart Mill


Será que a avaliação moral de uma ação depende apenas das suas consequências?

Não. Deontologia

Sim. Consequencialismo

John Stuart Mill Ex.: Utilitarismo

defende o

Princípio da maior felicidade


A ação correta é aquela que promove a
maior felicidade do maior número
(maximiza a felicidade).

requer baseia-se no

Imparcialidade Hedonismo
A felicidade de cada um não conta mais do que A felicidade consiste no prazer
a felicidade de qualquer outra pessoa. e na ausência de dor.

Distinção qualitativa
do prazer

Prazeres superiores Prazeres inferiores

Filmes:
Medidas Extremas (1996), realizado por Michael Apted.
Gattaca (1997), realizado por Andrew Nicol.

Páginas da Internet:
http://criticanarede.com/teleologicas.html (artigo «Éticas Teleológicas», de Thomas Hurka)
http://criticanarede.com/eti_mill.html (artigo «A Ética de John Stuart Mill», de Faustino Vaz)

A ética utilitarista de John Stuart Mill 129

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TESTE FOrMATIVO 5

CLASSIFIQUE AS AFIrMAÇÕES SEGUINTES COMO VErDADEIrAS OU FALSAS.

  1.  O utilitarismo de Mill procura dar resposta à exigência de consideração imparcial dos seres
humanos.

  2.  O utilitarismo é uma forma de deontologia.

3. O utilitarismo de Mill é uma teoria de tipo teleológico.

4. O conceito de bem é irrelevante no utilitarismo de Mill.

5. O utilitarismo de Mill defende restrições à promoção do bem.

  6.  O princípio da maior felicidade ou princípio da utilidade afirma que a ação correta
é a que maximiza a felicidade para o maior número.

  7.  A forma como a felicidade se distribui é um aspeto central do utilitarismo de Mill.

8. Para Mill, a felicidade de uma pessoa com quem temos uma relação de amizade conta mais
do que a felicidade de uma pessoa distante.

  9. O utilitarismo de Mill contrasta fortemente com o egoísmo ético.

 10. A satisfação do interesse próprio é relevante no utilitarismo de Mill.

11. Segundo alguns críticos, o utilitarismo de Mill é demasiado exigente por defender
a consideração imparcial da felicidade.

 12. O bem, segundo Mill, consiste na satisfação do interesse próprio.

 13. O bem, segundo Mill, consiste na felicidade.

 14.  A avaliação moral de uma ação depende das suas consequências.

15. A avaliação moral de uma ação depende do respeito por certos limites à promoção
das melhores consequências.

 16.  Mill pensa que a moralidade de uma ação depende do cumprimento de regras abstratas.

 17.  Defender a felicidade do maior número geralmente implica apoiar reformas sociais
que promovam a igualdade e a liberdade.

 18.  O hedonismo de Mill consiste na ideia de que a felicidade é um estado mental de prazer
e de ausência de dor.

 19.  O hedonismo de Mill é quantitativo.

20.  O
  hedonismo de Mill distingue prazeres superiores de prazeres inferiores.

 21. Para Mill, o prazer de comer tem a mesma importância moral que o prazer de apreciar a beleza.

 22. Mill prefere um Sócrates insatisfeito a um tolo satisfeito.

 23. O que conta mais é a duração e a intensidade do prazer.

 24.  O que conta mais é o tipo de prazer.

25.  Segundo Mill, uma vida limitada a prazeres baixos com grande intensidade e duração
é sempre pior do que uma vida de prazeres elevados com pouca intensidade e duração.

 26. O argumento de Mill em defesa do princípio da maior felicidade é válido.

 27. A analogia entre visibilidade e desejabilidade, que o argumento de Mill faz, é boa.

 28. Mill está errado quando afirma que desejar uma coisa prova que ela é desejável.

130 Unidade 5

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29.  A premissa «a única coisa que cada pessoa deseja como fim último é a sua própria felicidade.»
é falsa.

 30.  O facto de haver pessoas que sacrificam a sua qualidade de vida para ajudar pessoas
vulneráveis à pobreza mostra que a premissa da afirmação anterior é falsa.

 31.  Se o conhecimento ou o bem-estar dos outros têm importância intrínseca, então a felicidade
própria não é o fim último que cada pessoa deseja.

 32.  Da premissa «a única coisa que cada pessoa deseja como fim último é a sua própria
felicidade» segue-se que «a única coisa que é desejável como fim último para cada pessoa
é a sua própria felicidade».

 33.  Se é um facto que as pessoas apenas podem desejar a sua própria felicidade, então faz
sentido dizer que elas devem maximizar a felicidade geral.

 34. O argumento de Mill é uma prova que garante o princípio da maior felicidade.

 35. O argumento de Mill fornece apenas um indício a favor do princípio da maior felicidade.

36. Segundo Mill, os motivos são relevantes na avaliação moral.

37. Mill considera que o valor dos agentes é relevante na avaliação moral.

38. Mill defende que só as consequências são decisivas na avaliação moral.

 39. Uma ação com as melhores consequências, mas realizada por motivos egoístas, está
moralmente justificada se adotarmos a teoria moral de Mill.

40. A distinção entre tipos de prazer é uma solução satisfatória para a dificuldade de calcular
as consequências.

 41.  Se a teoria moral de Mill afirma que uma dada ação é correta e os nossos juízos dizem que
é errada, temos indícios para defender que a teoria é falsa.

 42.  O cálculo das consequências aprazíveis é uma tarefa fiável.

 43.  Não há um método para medir o prazer, nem para comparar tipos de prazer.

 44.  A objeção da máquina de experiências favorece a ideia de que a felicidade está acima
da realidade e da autonomia de fazermos as coisas.

 45.  A objeção da máquina de experiências mostra que a autonomia é mais importante do que
a felicidade.

 46.  A objeção da justiça mostra que a o utilitarismo de Mill entra em conflito com o valor
da justiça.

 47.  A objeção da justiça mostra que as nossas intuições de justiça estão em harmonia com
a teoria utilitarista.

 48.  A objeção da integridade mostra que as consequências são o único fator moralmente
relevante.

 49.  A objeção da integridade mostra que também somos responsáveis pelo tipo de pessoa que
devemos ser, e não apenas pelas consequências das nossas ações.

 50. A teoria de Mill está sempre de acordo com as nossas intuições morais.

F; 34. F; 35. V; 36. F; 37. F; 38. V; 39. V; 40. F; 41. V; 42. F; 43. V; 44. F; 45. V; 46. V; 47. F; 48. F; 49. V; 50. F.
1. V; 2. F; 3. V; 4. F; 5. F; 6. V; 7. F; 8. F; 9. V; 10. F; 11. V; 12. F; 13. V; 14. V; 15. F; 16. F; 17. V; 18. V; 19. F; 20. V; 21. F; 22. V; 23. F; 24. V; 25. V; 26. F; 27. F; 28. V; 29. V; 30. V; 31. V; 32. F; 33.
SOLUÇÕES:

A ética utilitarista de John Stuart Mill 131

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Unidade

6 A ética deontológica
de Immanuel Kant
6.1 Deontologia absoluta e deontologia moderada
6.2 Agir por dever e agir em conformidade com o dever
6.3 A boa vontade
6.4 Máximas e ações
6.5 O imperativo categórico
6.5.1 A fórmula da lei universal
6.5.2 A fórmula da humanidade
6.5.3 A equivalência entre a fórmula da lei universal
e a fórmula da humanidade

6.6 O imperativo hipotético


6.7 Autonomia e heteronomia
6.8 Uma avaliação crítica da ética de Kant
6.8.1 Fraquezas da ética de Kant
6.8.2 Méritos da ética de Kant

Objetivos da unidade Conceitos fundamentais

No fim desta unidade, deverá ser capaz de responder Os conceitos seguintes, que são centrais nesta unidade,
às seguintes questões: são definidos no fim do livro:
Qual é, segundo a ética deontológica de Kant, o princípio autonomia moral
fundamental da moralidade? deontologia absoluta
Como se sabe que uma ação tem valor moral? deontologia moderada
O que é um agente autónomo? imperativo categórico
Que objeções enfrenta a ética deontológica de Kant? imperativo hipotético
Quais são as ideias mais meritórias e interessantes
defendidas por Kant na sua teoria moral?

Introdução

Kant e Mill têm a preocupação de saber qual é o princípio fundamental da moralidade. Mas as semelhanças entre os dois terminam aqui.
Mill entende que o valor moral se encontra nas consequências da ação, que são medidas em termos de felicidade geral. Kant, por sua vez,
descobre o valor moral em certos motivos racionais dos agentes.
Segundo Kant, esses motivos geram deveres que restringem a promoção utilitarista das melhores consequências. Há, assim, deveres que
temos de respeitar, sejam quais forem as consequências das ações por eles ditadas. Isso significa que há ações obrigatórias em si mesmas.
Como o valor moral não reside nos estados de coisas, os agentes têm a importante tarefa de moldar o mundo, segundo motivos racionais.
Para Kant, são os agentes que, gozando de autonomia, devem procurar que o mundo seja um lugar de respeito pela dignidade das pessoas.

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Estímulo

A história que irá ler pretende testar:


• as intuições morais geradas por este e por outros casos semelhantes;
• se são plausíveis restrições à promoção das melhores consequências para a maioria;
• se, se sendo plausíveis, essas restrições são absolutas ou não.

A tortura
Uma bomba podia explodir a qualquer momento. — Já sabes que não, vá lá! Ouve-me com atenção.
O Matos capturou o principal suspeito. Era um terro- Estou perante o caso mais difícil que até hoje tive pela
rista há muito procurado. Sem problemas, confessou frente. A única hipótese de salvar centenas de vidas é
ter colocado a bomba algures. As suas palavras desti- torturar um inocente. Não sei o que fazer — disse o
lavam ódio. Nada parecia quebrar a firmeza com que Matos, numa voz angustiada.
se recusava a dizer onde tinha colocado a bomba.
— Espera lá! E essa hipótese é muito ou pouco prová-
Estavam muitas vidas inocentes em jogo.
vel? — perguntou a Carolina.
Os Serviços Secretos comunicaram ao Matos que o
— É muito provável, e esse é que é o problema —
ponto fraco do terrorista era o seu filho. Disseram-lhe
respondeu o Matos.
que tinha de torturar o filho para arrancar do pai a
informação sobre o paradeiro da bomba. Era a única — Mas por que razão vais torturar um inocente? Se é
hipótese credível que tinham em cima da mesa. Era inocente, que informação tem ele para te dar? — a
praticamente certo que o terrorista nada diria sob tor- Carolina não estava a entender.
tura. Mas era também praticamente certo que falaria
se visse o filho ser horrivelmente torturado. Filho
que, ainda por cima, era um inocente sem qualquer
ligação ao terrorismo.
O Matos, um polícia de missões difíceis e largos anos
de experiência, sempre se tinha oposto à tortura. Mas
a verdade é que se encontrava dividido. Perante uma
situação destas, não era caso para menos. Sentia que
precisava de conversar com alguém em quem con-
fiasse completamente. Apesar da dureza da sua profis-
são, queria ouvir a opinião da sua mulher, que era
uma pessoa sensata e de modos delicados. Não supor-
tava a ideia de que ela o visse como alguém capaz de
ser desumano. Abandonou a sala do interrogatório e
foi para o seu gabinete. Ligou imediatamente à sua
mulher.
— Carolina, preciso urgentemente de falar contigo.
Será que podes abandonar por momentos o teu traba-
lho? — pediu o Matos.
A Carolina era enfermeira num hospital de grandes
dimensões. Eram raros os dias em que não lidava com
casos de sofrimento extremo.
— Tiveste sorte — respondeu a Carolina. E conti- Fig. 1 — A Tortura de Prometeu (1819),
de Jean-Louis-Cesar Lair.
nuou — Apanhaste-me na pausa da manhã. Não te
Será que alguma vez estaremos justificados a torturar
importas que eu continue a comer?
um inocente?

A ética deontológica de Immanuel Kant 133

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O Matos esclareceu: — Não, Carolina, os princípios não são tudo para
mim, acredita. Até aceito que a tortura esteja certa em
— O inocente que eu tenho de torturar é filho do
casos raros. Mas, se a permitirmos nestes casos, ela
culpado. Sabemos com segurança que o ponto fraco
acabará por ser aplicada também em casos que não
do pai é o filho. Ver o filho a ser torturado levará o pai
são assim tão graves. Não sei se estás a ver: na prática
a confessar onde colocou a bomba em mais um aten-
é difícil controlar as coisas.
tado terrorista. É este o caso, Carolina. Sou eu que
lidero a investigação; cabe-me tomar a decisão final. A Carolina ficou a pensar por breves instantes. Em
seguida, observou:
Depois de uma pausa, a Carolina disse:
— Para ti, é melhor não torturar quando seria bom
— Difícil, realmente. Nunca sabemos o que faríamos
fazê-lo do que torturar quando fosse errado. É isso?
no lugar dos outros. Mas eu acho que, no teu lugar,
torturava o inocente. São muitas vidas em jogo. — É isso mesmo, Carolina — disse o Matos.
E, depois, torturar não é matar.
— Desculpa dizer-te isto, mas parece que estás a
— Falaste das vidas em jogo, e eu sei quanto isso é fugir ao problema. Até acredito que há boas razões
importante. Mas esqueceste o que eu posso sentir. para seguirmos uma regra que proíba a tortura.
A minha consciência não conta? — desafiou o Matos. O problema é que isso não adianta muito. Estás
perante uma situação em que torturar o filho do
— Claro que conta. Não julgues que não te compre-
terrorista tem vantagens claras — observou Carolina,
endo. Não queres «sujar as mãos»; manténs a tua
numa voz segura.
pureza à custa de muitas vidas inocentes. Não achas
que estás com demasiada pena de ti próprio? — per- — Isso já eu sei. Afinal, qual é para ti o problema?
guntou a Carolina. Começo a ficar ainda mais confuso. O tempo passa,
Carolina. Ajuda-me — insistiu o Matos.
— A questão não é assim tão pessoal! Sabes bem que
eu sempre fui contra a tortura. Não é para estar de — Para ser o mais clara possível, o problema não
bem comigo; é por uma questão de princípio. é saber se a tortura deve ser permitida, mas se nesta
Acredito que há limites que não podem ser ultrapas- situação devemos salvar vidas inocentes, quebrando a
sados — respondeu o Matos. regra de não torturar. Ajudei? — perguntou a Carolina.
— Sabes que impressão dás? Que estás agarrado aos — Sim, ajudaste. Obrigado — respondeu o Matos,
teus princípios. Tão agarrado que pareces indiferente às desligando o telefone. Tinha chegado a hora de
vidas daqueles que irão morrer — criticou a Carolina. decidir.
Inspirado na obra The Pig that Wants to Be Eaten
and 99 Other Thought Experiments, de Julian Baggini.

Guião de leitura

1 Formule o problema que o Matos enfrenta.

2 Identifique as opções disponíveis.

3 Apresente a razão pela qual a Carolina acusa o Matos de estar agarrado aos seus princípios.

4 Clarifique a posição do Matos e a posição da Carolina acerca da tortura.

5 Defina as posições do Matos e da Carolina.

Fazer filosofia

1 Debata com toda a turma o seguinte problema: Será permissível torturar em algumas situações?
1.1 Se defende que a tortura é permissível, identifique as situações em que tal permissibilidade se justifica.

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6.1 Deontologia absoluta
e deontologia moderada
O Matos diz que é contra a tortura por uma questão de princípio. Tem
Biografia
então, ao que parece, o princípio moral de que não se deve torturar. Em
seguida afirma que há limites que não podem ser ultrapassados. Temos
Kant:
assim razões para acreditar que o Matos vê o dever de não torturar como
a igualdade
uma restrição à promoção das melhores consequências. Mesmo que as van-
moral
tagens de torturar sejam claras neste caso, como é opinião da Carolina, isso
não deve ser feito. A ética do Matos é, por isso, deontológica. Immanuel Kant
(1724-1804)
A Carolina responde que o Matos, agarrado aos seus princípios, às restri- reconheceu a base
ções a que sujeita a promoção do bem da maioria, é indiferente às vidas mais sólida em
daqueles que irão morrer. Face a esta crítica, o Matos admite que a tortura que assenta a igualdade moral
de todos os seres humanos.
pode estar certa em casos raros e especialmente graves. Se esta for de facto
É como se cada indivíduo fosse portador
a sua posição, afinal o dever de não torturar não é absoluto. Por isso, a de uma alma única e nisso residisse
deontologia moral que aprova não é absoluta, mas sim moderada. Quer o seu valor inestimável. Esta ideia
isto dizer que a restrição que impede a tortura nem sempre se aplica. Se do cristianismo talvez tenha exercido
muito estiver em jogo e as consequências de torturar forem, previsivel- alguma influência no pensamento
mente, muito valiosas para a maioria, o dever de não torturar é suplantado moral de Kant através da sua educação
religiosa. Mas Kant não reconhecia
pelo bem que a tortura promove. autoridade moral na fé, na tradição
Logo em seguida, porém, a posição do Matos parece mudar. Assim, como ou em qualquer fonte exterior
à razão. E, como seria de esperar,
na prática será difícil evitar que a tortura se estenda de casos raros e espe-
não via qualquer valor moral
cialmente graves para casos menos graves, justifica-se que o dever de não no desejo de salvação e no medo
torturar seja absoluto. O Matos, que parecia um deontologista moderado, do inferno. Também não reconhecia
é afinal um deontologista absoluto, não estando disposto a infringir, seja autoridade moral no sentimento
em que circunstância for, a restrição de não torturar. de benevolência ou na atitude
de simpatia, distanciando-se assim
A pergunta que interessa fazer agora é a seguinte: a deontologia de Kant é da tradição moral sentimentalista.
moderada ou absoluta? Como acabámos de ver, não é suficiente caracteri- Os seres humanos têm capacidades
zar a ética de Kant simplesmente como deontológica. Só depois de saber- racionais que os motivam moralmente.
mos se Kant entende os deveres como restrições absolutas ou moderadas é São elas a barreira contra desejos
que teremos uma ideia precisa da sua deontologia. Esse, sim, é o aspeto nocivos, mas por vezes tentadores.
mais importante de uma posição deontológica. É, por isso, na razão que Kant deposita
todas as esperanças: a previsível
Kant entende que os deveres são restrições absolutas. Por exemplo, em esperança de conhecer o mundo,
caso algum devemos torturar, quebrar promessas, mentir ou matar inocen- observando-o com um conjunto
tes. Os deveres que impõem estas restrições absolutas são negativos. de pressupostos racionais partilhados
por todos; mas também a esperança
Temos, portanto, os deveres de não torturar, de não quebrar promessas, de
menos previsível de descobrir verdades
não mentir ou de não matar inocentes. morais absolutas. Motivados por estas
Para Kant, a força dos deveres negativos é maior do que a força dos deveres verdades, podemos alcançar a virtude,
que está ao alcance seja de quem for.
positivos. O dever negativo de não torturar vincula os agentes; por esta A felicidade, que só virá depois,
razão, Kant chamou deveres perfeitos aos deveres negativos. Mas o dever tem na virtude a sua fonte.
positivo de aliviar a fome, ainda que seja importante, não tem essa força Tudo isto explica que, nos seus escritos
normativa; daí Kant ter defendido que os deveres positivos são deveres políticos, Kant tenha procurado
imperfeitos. Face a deveres positivos de beneficência, por exemplo, os uma resposta para o desejo
de paz mundial dos agentes morais;
agentes têm prerrogativas, isto é, não têm a obrigação de fazer sempre o
e tenha, além disso, concebido uma
que mais promove o bem, seja ele entendido como felicidade geral ou satis- instituição global, a que as Nações Unidas
fação das preferências — reservam-se, portanto, o direito de não sacrificar se assemelham apenas parcialmente.
a sua vida pela promoção do bem.

A ética deontológica de Immanuel Kant 135

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6.2 Agir por dever e agir em
conformidade com o dever
O conceito de dever é central na ética de Kant. Ainda que muito intuitivo,
convém compreender o seu significado a partir da distinção entre agir por
dever e agir em conformidade com o dever. O caso apresentado a seguir, a
que chamaremos caso do merceeiro, esclarece essa distinção. Vejamos
como Kant o descreve.

Texto 1

É na verdade conforme ao dever que o merceeiro não suba os preços ao comprador


inexperiente, e, quando o movimento da loja é grande, o comerciante esperto também
não faz semelhante coisa, mas mantém um preço fixo geral para toda a gente, de forma
que uma criança pode comprar em sua casa tão bem como qualquer outra pessoa.
É-se, pois, servido honradamente; mas isso ainda não é bastante para acreditar que
o comerciante tenha assim procedido por dever e princípios de honradez; o seu interesse
assim o exigia […].
Immanuel Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes.
Lisboa: Edições 70, 2009, pp. 27-28.

O comerciante que vende os produtos ao mesmo


preço seja a quem for — até ao comprador inexpe-
riente, que poderia facilmente enganar — pode
fazê-lo por interesse, como sublinha o texto. Se
assim for, a sua motivação não é respeitar o dever,
que no caso é o dever de tratar os compradores de
igual modo, vendendo-lhes os produtos ao mesmo
preço. O que o motiva é outra coisa bem diferente.
Segundo Kant, é o seu interesse, particularmente o
interesse de ter um negócio rentável. Ora, uma
ação motivada pelos nossos interesses não tem
valor moral, ainda que seja conforme ao dever.
Mas, vistas cuidadosamente, uma ação realizada
por dever e uma ação conforme ao dever não se
distinguem pelas suas consequências. Se o comer-
ciante faz exatamente o mesmo nos dois casos,
como poderiam as consequências ser diferentes
num caso e noutro?
Fig. 2 — Sunday (1926), de Edward Hopper. Isto permite a Kant concluir que o valor moral das
Será que devemos atribuir valor moral a um merceeiro que não engana ações reside num certo tipo de motivação —
os seus clientes apenas para assegurar a prosperidade do seu negócio? a motivação determinada pela apreensão do dever.
Podemos afirmar com segurança que o merceeiro está motivado para tratar
todos os compradores de igual modo. No entanto, não tem o tipo moral-
mente certo de motivação. Falta-lhe, segundo Kant, o elemento decisivo
para a sua ação ter valor moral: a motivação moral, isto é, a motivação
determinada pela apreensão do dever.
Além dos interesses, também os sentimentos e os desejos, que Kant designa
por «inclinações», não geram uma motivação genuinamente moral.

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Kant ilustra essa ideia a partir destes casos.

Texto 2

Admitindo pois que o ânimo desse filantropo estivesse velado pelo especialmente de paciência e capacidade de resistência às suas pró-
desgosto pessoal que apaga toda a compaixão pela sorte alheia, prias dores e por isso pressupor e exigir as mesmas qualidades dos
e que ele continuasse a ter a possibilidade de fazer o bem aos des- outros; se a natureza não tivesse feito de um tal homem (que em boa
graçados, mas que a desgraça alheia o não tocava porque estava verdade não seria o seu pior produto) propriamente um filantropo,
bastante ocupado com a sua própria; se agora, que nenhuma incli- — não poderia ele encontrar ainda dentro de si um manancial que lhe
nação o estimula já, ele se arrancasse a esta mortal insensibilidade e pudesse dar um valor muito mais elevado do que o de um tempera-
praticasse a ação sem qualquer inclinação, simplesmente por dever, mento bondoso? Sem dúvida! — e exatamente aí é que começa o
só então é que ela teria o seu autêntico valor moral. Mais ainda: — Se valor do caráter, que é moralmente sem qualquer comparação o mais
a natureza tivesse posto no coração deste ou daquele homem pouca alto, e que consiste em fazer o bem, não por inclinação, mas por dever.
simpatia, se ele (homem honrado de resto) fosse por temperamento Immanuel Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes.
frio e indiferente às dores dos outros por ser ele mesmo dotado Lisboa: Edições 70, 2009, p. 29.

No primeiro caso, o do filantropo desgostado pela vida e já sem compai-


xão, a ação, que era apenas conforme ao dever, é agora realizada por dever.
Logo, tem valor moral por ter sido motivada simplesmente pelo dever. No
segundo caso, a pessoa de temperamento frio pode, ainda assim, praticar
uma ação com genuíno valor moral se for motivada nesse sentido pela
apreensão do dever. O seu caráter terá valor moral, ao passo que o caráter
compassivo do filantropo não merece tal estima. Um caráter com valor
moral consiste em ter uma boa vontade. Se o filantropo fosse não só com-
passivo mas também motivado pelo dever, o seu caráter já teria valor moral.
Ser apenas compassivo, ou ter apenas outros sentimentos benevolentes,
não basta para se formar em nós um caráter com valor moral.

Atividades

1 O que é um dever?

2 Apresente um exemplo de dever perfeito e um exemplo de dever imperfeito.

3 Explique a diferença entre deontologia absoluta e deontologia moderada.

4 Os deontologistas defendem, tal como os utilitaristas, que temos um dever positivo de beneficência (promover o bem). Mas, se
assim é, o que os distingue?

5 Quando afirmam que roubar é errado, um deontologista como Kant e um utilitarista como Mill querem dizer coisas diferentes.
Que significado tem para um e outro afirmar que roubar é errado?

6 Explique a diferença entre agir por dever e agir em conformidade com o dever.
6.1 Das ações seguintes, diga quais correspondem a agir por dever e quais correspondem a agir em conformidade com o dever.
Justifique a sua resposta.
A — O João teve pena da Rita, que ficava sozinha em casa, e convidou-a a ir à praia com ele e os amigos dele.
B — O Pedro não mentiu ao chefe por ter medo de ser descoberto.
C — A Joana não quebra o contrato que assinou com o clube, nem qualquer outro contrato, uma vez que não encontra uma
razão válida para o fazer.
D — A Inês não causa sofrimento ao Paulo, pois, se lhe causar sofrimento, entende que mostra que não tem bom coração.
E — O Gustavo, que é um empresário bem-sucedido, considera que não há justificação para despedir alguns dos seus empre-
gados com a finalidade de aumentar os lucros.
F — A Marta, que é bióloga e se dedica à investigação, considera não ser correto mentir às pessoas acerca dos objetivos da
investigação com que colaboram.

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6.3 A boa vontade
Como seres racionais, somos capazes de agir segundo princípios que livre-
mente queremos aceitar. Esta é, segundo Kant, uma das características que
distinguem os seres racionais. A capacidade de agir desse modo é a von-
tade. Uma boa vontade, por sua vez, é a nossa capacidade de agir segundo
princípios corretos. Dotados de boa vontade, saberemos agir por dever em
todas as circunstâncias. Daí que ter uma boa vontade seja o fim supremo
da vida moral. Nada tem mais valor do que uma boa vontade. Eis como
Kant exprime essa ideia:

Texto 3

Neste mundo, e até também fora dele, nada é possível pensar que coisas boas e desejáveis; mas também podem tornar-se extrema-
possa ser considerado bom sem limitação a não ser uma só coisa: mente más e prejudiciais se a vontade, que haja de fazer uso destes
uma boa vontade. Discernimento, argúcia de espírito, capacidade de dons naturais e cuja constituição particular por isso se chama caráter,
julgar e como quer que possam chamar-se os demais talentos do não for boa.
espírito, ou ainda coragem, decisão, constância de propósito, como Immanuel Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes.
qualidades do temperamento, são sem dúvida a muitos respeitos Lisboa: Edições 70, 2009, pp. 21-22.

Por ser boa sem limitação, a boa vontade tem um valor incondicional.
O que quer isto dizer? Ter um valor incondicional significa ter um valor
que é independente de todas as outras coisas que também podem ser valio-
sas, assim como dos nossos interesses, desejos e demais inclinações. Por
isso, a boa vontade não é um meio para alcançar outros bens, de que rece-
beria o seu valor. Esse é o caso de todas as outras qualidades que, como a
coragem e a argúcia de espírito, têm valor apenas como meios para fins
tidos como bons — têm, portanto, valor instrumental. A boa vontade, pelo
contrário, é boa em si mesma. O que tem a boa vontade em si mesma para
ser boa? A resposta de Kant é a seguinte:

Texto 4

A boa vontade não é boa por aquilo que promove ou realiza, pela nada pudesse alcançar a despeito dos seus maiores esforços, e só
aptidão para alcançar qualquer finalidade proposta, mas tão-somente afinal restasse a boa vontade (é claro que não se trata aqui de um
pelo querer, isto é, em si mesma, e, considerada em si mesma, deve simples desejo, mas sim do emprego de todos os meios de que as
ser avaliada em grau muito mais alto do que tudo o que por seu nossas forças disponham), ela ficaria a brilhar por si mesma como
intermédio possa ser alcançado em proveito de qualquer inclinação, uma joia, como alguma coisa que em si mesma tem o seu pleno
ou mesmo, se se quiser, da soma de todas as inclinações. Ainda valor. A utilidade ou a inutilidade nada podem acrescentar ou tirar a
mesmo que por um desfavor especial do destino, ou pelo apetrecha- este valor.
mento avaro duma natureza madrasta, faltasse totalmente a esta boa Immanuel Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes.
vontade o poder de fazer vencer as suas inclinações, mesmo que Lisboa: Edições 70, 2009, p. 23.

É o querer da vontade que a torna boa. É claro que a vontade pode querer
submeter-se aos nossos desejos e, por consequência, aos fins que estes
propõem, mas isso não fará dela uma boa vontade. O querer que a torna
boa é querer agir segundo os princípios morais corretos; não basta, por-
tanto, fazer o que está correto, pois isso poderá dever-se à motivação gerada
pelos nossos desejos — é preciso ainda que a vontade seja motivada pelos
princípios corretos. E como tem todo o valor em si mesma, é indiferente se
alcança ou não o que pretende, se é útil e promove a felicidade geral ou
não. Mesmo na pessoa mais vulnerável e impotente para fazer o que está
certo, a boa vontade «ficaria a brilhar por si mesma como uma joia».
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6.4 Máximas e ações
Agimos segundo princípios, e estes exprimem-se nas máxi-
mas das nossas ações. Kant afirma que as máximas são
princípios subjetivos da ação. É nelas que se expõe o modo
como tratamos os outros. O caráter subjetivo das máximas
significa simplesmente que elas são adotadas pelos sujeitos
quando estes realizam as suas ações.
É muito importante conhecer as máximas das nossas ações.
De facto, como o valor moral reside nos motivos dos agen-
tes, e estes se revelam nas máximas, não podemos avaliar
moralmente as ações se não conhecermos as máximas
pelas quais são realizadas. Isto quer dizer que, conhecidas
as máximas, teremos de as sujeitar a um processo de ava-
liação moral. Só depois desse teste poderemos concluir se
são moralmente corretas ou não. Na posse do veredito
moral proporcionado por esta avaliação das máximas,
saberemos se as ações correspondentes têm justificação
moral.
As máximas podem ser muito diferentes umas das outras.
Estes são exemplos de máximas diferentes para os atos de Fig. 3 — Kant no Seu Escritório (1926), silhueta de Heinrich
fazer contratos, promessas e dar segurança às crianças: Wolff.

1. a. Não rasgues os contratos que celebras.


b. Se queres ganhar a confiança dos outros, não
rasgues os contratos que celebras.
2. a. Não deixes de cumprir as promessas que fazes.
b. Se queres ser respeitado, não deixes de cumprir as
promessas que fazes.
3. a. Não comprometas a segurança das crianças.
b. Se queres ser visto como um adulto responsável,
não comprometas a segurança das crianças.
Precisamos agora de conhecer o processo de avaliação
moral das máximas sugerido por Kant, que se baseia no
imperativo categórico.

Atividades

1 O que é a vontade?

2 O que é a boa vontade?

3 Por que razão a boa vontade é como uma joia a brilhar dentro de cada um de nós?

4 O que são máximas e por que razão é importante conhecê-las?

Debate

Será que, na nossa vida moral, ter uma sensibilidade educada é menos importante do que ter uma vontade racional?
Justifique a sua posição.

A ética deontológica de Immanuel Kant 139

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6.5 O imperativo categórico

6.5.1   A fórmula da lei universal
Uma boa vontade quer ser moral. É este o motivo que a distingue. Para ser
moral, já o sabemos, a vontade não pode submeter-se às nossas inclinações,
deixando-se determinar por elas. Terá de ser então o sentido do dever a voz
com que a boa vontade ordena a ação. A boa vontade, quando opera, tem
no dever o seu comandante. O dever é como que a voz da consciência da
boa vontade, o comandante cuja autoridade não permitirá desvios na rota
traçada. Mas o dever, de que temos falado tanto, afinal o que é? Kant
define-o assim:

Texto 5

Dever é a necessidade de uma ação por respeito à lei.


Immanuel Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 2009, p. 31.

O dever implica respeito pela lei. E como, segundo Kant, o dever é uma
restrição absoluta, a ação que ordena é necessária. Por exemplo, temos de
não torturar, ou de não mentir, para que o mundo tenha racionalidade
moral; não podemos, consoante as circunstâncias, mentir ou não. Todavia,
o dever não implica respeito por uma qualquer lei particular, mas sim pela
Fig. 4 — A Regra de Ouro. ideia envolvida no conceito de lei. Ora, a ideia envolvida no conceito de lei
Há quem veja na fórmula da lei universal do é a ideia de regra universal.
imperativo categórico uma versão sofisticada
e racionalmente fundamentada da célebre As leis são regras universais que pretendem regular as nossas ações. A pes-
regra de ouro: «Não faças aos outros o que soa dotada de boa vontade quer que as suas ações se ajustem a regras
não gostarias que te fizessem a ti.» morais universais. Isto significa que deseja, para as máximas que adota, que
sejam universais. Caso consigam ser universais, ganhando assim o estatuto
de lei, terão a capacidade de regular as nossas ações e o modo como cada
um de nós trata todos os outros.
Kant desenvolve deste modo a ideia de lei moral:

Texto 6

Mas que lei pode ser então essa cuja representação, mesmo sem tomar em consideração
o efeito que dela se espera, tem de determinar a vontade para que esta se possa chamar
boa absolutamente e sem restrição? Uma vez que despojei a vontade de todos os estí-
mulos que lhe poderiam advir da obediência a qualquer lei, nada mais resta do que a
conformidade a uma lei universal das ações em geral que possa servir de único princípio
à vontade, isto é: devo proceder sempre de maneira que eu possa querer também que a
minha máxima se torne uma lei universal. Aqui é pois a simples conformidade à lei em
geral (sem tomar como base qualquer lei destinada a certas ações) o que serve de prin-
cípio à vontade, e também o que tem de lhe servir de princípio, para que o dever não seja
por toda a parte uma vã ilusão e um conceito quimérico […].
Immanuel Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 2009, p. 34.

A vontade, se quer ser absolutamente boa, deve regular-se pelo princípio


que o texto enuncia. Kant chamou-lhe imperativo categórico e viu nele o
princípio supremo da moralidade.

140 Unidade 6

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É, por isso, importante destacar a sua formulação, que é a seguinte:

Imperativo categórico na fórmula da lei universal:


Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo
querer que ela se torne lei universal.

O princípio da moralidade é um imperativo por ser uma ordem; e é cate-


górico por se aplicar a todas as pessoas enquanto agentes racionais, e não
enquanto seres humanos particulares, com desejos específicos e fins subje-
tivos que decorrem desses desejos. Daí que se aplique sem a condição de
que as pessoas tenham já certos desejos e fins. Afirmar que o imperativo é
categórico equivale, assim, a afirmar que o seu valor é incondicional.
O processo de avaliação moral das máximas baseia-se no imperativo
categórico. Este tem o papel, que na verdade é decisivo, de ser o teste de
moralidade das máximas, para podermos concluir depois se as ações cor-
respondentes têm justificação moral. Dado que o imperativo categórico
consiste na exigência de que as máximas sejam universais, esse teste é
conhecido como teste de universalização das máximas. Convém então ver
de que forma aplica Kant esse teste. Em questão está o caso da máxima da
promessa enganadora. Este exemplo esclarece particularmente bem o teste
de universalização.

Texto 7

Uma outra pessoa vê-se forçada pela necessidade a pedir dinheiro universal e ponho assim a questão: Que aconteceria se a minha
emprestado. Sabe muito bem que não poderá pagar, mas vê também máxima se transformasse em lei universal? Vejo então imediatamente
que não lhe emprestarão nada se não prometer firmemente pagar em que ela nunca poderia valer como lei universal da natureza e concor-
prazo determinado. Sente a tentação de fazer a promessa; mas tem dar consigo mesma, mas que, pelo contrário, ela se contradiria neces-
ainda consciência bastante para perguntar a si mesma: Não é proibido sariamente. Pois a universalidade de uma lei que permitisse a cada
e contrário ao dever livrar-se de apuros desta maneira? Admitindo que homem que se julgasse em apuros prometer o que lhe viesse à ideia
se decidia a fazê-lo, a sua máxima de ação seria: Quando julgo estar em com a intenção de o não cumprir tornaria impossível a própria pro-
apuros de dinheiro, vou pedi-lo emprestado e prometo pagá-lo, messa e a finalidade que com ela se pudesse ter em vista; ninguém
embora saiba que tal nunca sucederá. Este princípio de amor de si acreditaria em qualquer coisa que lhe prometessem e rir-se-ia apenas
mesmo ou da própria conveniência pode talvez estar de acordo com de tais declarações como de vãos enganos.
todo o meu bem-estar futuro; mas agora a questão é a de saber se é Immanuel Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes.
justo. Converto assim esta exigência do amor de si mesmo em lei Lisboa: Edições 70, 2009, pp. 63-64.

A máxima que temos é esta: «Quando julgo estar em apuros de dinheiro,


vou pedi-lo emprestado e prometo pagá-lo, embora saiba que tal nunca
sucederá.» Em seguida, a máxima é universalizada, como é exigido pelo
imperativo categórico. A ideia é saber o que aconteceria «se a máxima se
transformasse em lei universal». Isto pode dar a impressão errada de que
se procura calcular que consequências resultariam de todos agirem segundo
a máxima em questão. Mas não se trata disso: o que se procura saber com
o teste de universalização é se todos podem agir segundo a máxima da
promessa enganadora. Se for possível todos agirem segundo essa máxima,
ela é universalmente válida. Isto quer dizer que é objetiva, e não mera-
mente subjetiva. Se isso não for possível que todos ajam segundo essa
máxima, o teste de universalização permitirá concluir que a máxima não
tem validade moral.

A ética deontológica de Immanuel Kant 141

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O que podemos concluir neste caso? Será que a máxima da promessa enga-
nadora pode ser universal? O teste dita que não. Kant afirma que a máxima
universalizada «tornaria impossível a própria promessa» e, por consequên-
cia, «a finalidade que com ela se pudesse ter em vista». Se a máxima da
promessa enganadora, quando universalizada, torna impossível a própria
prática de fazer promessas, ocorre uma contradição, como sublinha Kant.
Podemos querer fazer promessas enganadoras, mas não podemos querer
que fazer promessas enganadoras seja uma lei universal, pois nesse caso
ninguém as faria porque não haveria, sequer, promessas. Isso seria, na
verdade, querer uma contradição, o que não é racional.
Há aqui uma importante lição sobre a ética defendida por Kant. Assim, este
caso pretende mostrar que uma máxima sem valor moral é também uma
máxima que não é racional. Do mesmo modo, as máximas moralmente
válidas são normas racionais. Já sabemos que uma pessoa dotada de boa
vontade escolhe máximas moralmente válidas. Agora sabemos mais: sabemos
que essa pessoa é capaz de reconhecer, simplesmente em virtude de ser
racional, se uma máxima pode ser uma lei moral ou não. Como prova da
sua racionalidade, a pessoa dotada de boa vontade tem para nos oferecer o
teste de universalização contido no imperativo categórico na fórmula da lei
universal.
O imperativo categórico é o princípio fundamental da moralidade.
E, segundo Kant, é o único. Mas não há apenas um imperativo categórico,
pois todas as máximas aprovadas no teste de universalização se convertem
em imperativos categóricos. Logo, todas as máximas aprovadas no teste de
universalização passam a ser consideradas ordens incondicionais. Deste
modo, a promoção das melhores consequências é suplantada por certas
restrições absolutas.

Teste Resposta Veredito

A máxima é boa
Sim e deve ser respeitada
em todas as circunstâncias.
Posso querer que uma
dada máxima se
transforme em lei
universal?
A máxima deve ser rejeitada
Não e não deve ser seguida em
qualquer circunstância.

Esquema 1 — Teste de universalização das máximas.

Atividades

1 O dever ordena uma ação necessária. Explique o que é uma ação necessária.

2 O que significa dizer que o dever implica respeito pela lei?

3 Que dever impõe o imperativo categórico na fórmula da lei universal?

4 O que é um imperativo categórico?

5 O imperativo categórico na fórmula da lei universal tem o papel de testar a moralidade das máximas. Diga em que consiste
esse teste e mostre como ele se aplica.

142 Unidade 6

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6.5.2   A fórmula da humanidade
O imperativo categórico enquanto princípio supremo
da moralidade é um só, mas tem como que duas faces,
que Kant presume serem equivalentes. Vejamos como
chega Kant à fórmula da humanidade.
Os seres humanos têm a capacidade de agir segundo
o imperativo categórico, essa joia que dentro de nós
brilha como um céu estrelado. Essa capacidade
envolve o esforço de nos distanciarmos das nossas
inclinações, e de assim nos dispormos a agir por
dever. Kant reconhece que este esforço é árduo em
muitos casos. É com esse esforço que, pouco a pouco,
a pessoa de boa vontade aprende a avaliar as razões
apresentadas nas máximas, raciocinando de acordo
com o imperativo categórico. Este é o modelo de
racionalidade moral que ela quer seguir quando deli-
bera e toma decisões, sejam quais forem os obstácu-
los que as inclinações ergam pelo caminho. Mas é
justamente nesta capacidade que reside o seu valor
absoluto e incondicional. Devemos orgulhar-nos Fig. 5 — O Homem de Vitrúvio (c. 1490), de Leonardo da Vinci.
dela, porque é ela a fonte do respeito que os outros
Para Kant, os seres humanos têm um valor absoluto e incondicional,
nos devem e do respeito que devemos a nós mesmos. por terem a capacidade de agir segundo o imperativo categórico.
E, claro, do respeito que devemos aos outros, que são
igualmente capazes de fazer esse esforço e de avaliar,
desse modo, as razões apresentadas nas máximas.
Todos somos, afinal, seres racionais, e nessa medida
ganhamos o estatuto de pessoas. Por isso, diz Kant:

Texto 8

O homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como fim em si mesmo,
não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário,
em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se
dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente
como fim.
Immanuel Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes.
Lisboa: Edições 70, 2009, p. 72.

Os seres racionais, que se distinguem por querer seguir o imperativo cate-


górico na fórmula da lei universal, são fins em si mesmos. Nada pode
suplantar o respeito que merecem — daí que não possam ser usados ape-
nas como meios.
A fórmula da humanidade do imperativo categórico resume essa ideia deste
modo:

Imperativo categórico na fórmula da humanidade:


Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa
como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como
fim e nunca simplesmente como meio.

A ética deontológica de Immanuel Kant 143

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O maior erro moral consiste em agir de modo contrário à fórmula da
humanidade. É absolutamente proibido tratar os outros apenas como
meios, como instrumentos das nossas finalidades, por muito desejáveis que
estas sejam, ou mesmo que à partida nos pareçam moralmente boas.
A fórmula da humanidade é de compreensão muito intuitiva. Todavia, é
ilusório pensar que a sua aplicação é fácil, como veremos agora. Por exem-
plo, se mentirmos a alguém porque dizer a verdade seria embaraçoso para
nós, estaremos a tratar essa pessoa simplesmente como uma fonte de emba-
raço, e não como um agente moral a quem devemos respeito; ora, se lhe
devemos respeito, então temos o dever de lhe dizer a verdade. Tratar uma
pessoa como uma fonte de embaraço pessoal é usá-la simplesmente como
meio, mas dizer-lhe a verdade é tratá-la como fim em si mesma. A mentira,
ainda que possa ser socialmente útil, não tem valor moral.
Outro caso ilustra também que a fórmula da humanidade não é de aplica-
ção linear. Como sabemos, há pessoas em quem são testados novos medi-
camentos; estão, portanto, a ser usadas como meios de uma investigação.
Se elas o fizerem sem terem dado o seu consentimento informado, isto é,
sem terem consentido depois de informadas acerca das finalidades e dos
riscos inerentes ao teste, essa prática é moralmente errada. Mas se derem o
seu consentimento informado, permitindo que os novos medicamentos
sejam testados nelas, é permissível à luz da fórmula da humanidade que
essas pessoas sejam usadas como meios da investigação. Neste caso, é ver-
dade que as pessoas estão a ser usadas como meios da investigação, mas só
depois de terem sido tratadas como fins em si mesmas, quando lhes foi
pedido que o consentissem. São, assim, tratadas com respeito, não dei-
xando de ter controlo sobre as suas vidas. Ora, a exigência da fórmula da
humanidade é não serem tratadas simplesmente como meios; se, além de
meios, forem também tratadas como fins em si mesmas, não se verifica
qualquer falha moral.

6.5.3   A equivalência entre a fórmula da lei 
universal e a fórmula da humanidade
O imperativo categórico é o princípio fundamental da moralidade. Apesar
de, segundo Kant, haver um só imperativo, não há uma só fórmula para
exprimir o seu conteúdo. A fórmula da lei universal e a fórmula da huma-
nidade são como que as duas faces pelas quais o imperativo categórico se
dá a conhecer. Segundo Kant, são duas faces que se equivalem — na ver-
dade, duas maneiras de dizer a mesma coisa. Mas não é fácil captar essa
equivalência, até porque as duas fórmulas parecem dizer coisas claramente
diferentes. E Kant, por sua vez, nunca foi muito claro sobre o assunto.
Para ver essa equivalência na prática, o melhor será regressarmos ao caso
da promessa enganadora, a que Kant aplicou as duas fórmulas. Vimos que
a máxima «quando julgo estar em apuros de dinheiro, vou pedi-lo empres-
tado e prometo pagá-lo, embora saiba que tal nunca sucederá» não pode
ser uma lei universal, pois querer que todos orientem a sua ação por ela é
querer uma contradição. Ora, é óbvio que essa máxima também não está
de acordo com a fórmula da humanidade. A pessoa a quem é pedido o
empréstimo é tratada simplesmente como meio; é apenas, por isso, um
instrumento para a obtenção de dinheiro. Na medida em que tem apenas
valor instrumental, deixa de ser tratada como pessoa e não vê respeitado o
seu valor incondicional.

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O veredito para esta máxima proporcionado pelas duas fórmulas é, então,
o mesmo. E é também o mesmo para outras máximas que Kant sujeitou a
avaliação moral pelas duas fórmulas do imperativo categórico. Daí que
tenha concluído que as duas fórmulas são, afinal, equivalentes.
Mas isto não mostra se existe uma conexão entre elas. Seria bom dispormos
de um raciocínio que justificasse essa conexão. Talvez assim a equivalência
entre as duas fórmulas fosse mais clara. O raciocínio seguinte é um modo
simples de o fazer. Tratar os outros como fins é considerar que têm uma
palavra a dizer quanto aos princípios que devem regular as nossas ações;
isto é verdade para as ações de qualquer outra pessoa, sobre as quais temos
nós agora também uma palavra a dizer. Logo, tratar os outros como fins é
querer agir segundo princípios que eles aceitariam para a nossa conduta
e para a deles. Princípios que todos aceitariam são princípios universais,
como é exigido pela fórmula da lei universal. Vê-se, assim, que tratar os
outros como fins compromete-nos com princípios universais. É nesta cone-
xão que se apoia a equivalência entre as duas fórmulas.

Imperativo
categórico

Fórmula Fórmula
da lei universal da humanidade

Tratar os outros como fins é querer


agir segundo princípios universais.

Esquema 2 — Equivalência entre a fórmula da lei universal e a fórmula da humanidade.

Atividades

1 Por que razão os outros nos devem respeito e nós a eles?

2 Segundo Kant, o que é sermos pessoas?

3 Que dever nos impõe o imperativo categórico na fórmula da humanidade?

4 O que significa dizer que as duas fórmulas do imperativo categórico são equivalentes?

5 Que conexão existe entre as duas fórmulas do imperativo categórico?

Debate

1 Durante a Segunda Guerra Mundial, os Aliados conduziram uma política de bombardeamento de alvos civis, na esperança de enfraque-
cerem o moral do inimigo.
1.1 Kant aceitaria esta política? Justifique a sua resposta.
1.2 Concorda com o veredito de Kant? Apresente as razões para a sua resposta.

2 Como responderia alguém que defende a ética de Kant a este problema: Uma vez que os mísseis e as bombas podem ser lançados com
um alto grau de precisão, devem os governos das nações livres estar na disposição de remover regimes cruéis, minimizadas as perdas
civis? Justifique a sua resposta.

A ética deontológica de Immanuel Kant 145

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6.6 O imperativo hipotético
Para compreender o conceito de imperativo hipotético e perceber de que
forma se distingue do conceito de imperativo categórico, regressemos aos
exemplos de máximas já apresentados. São eles os seguintes:
1. a. Não rasgues os contratos que celebras.
b. Se queres ganhar a confiança dos outros, não rasgues os contratos
que celebras.
2. a. Não deixes de cumprir as promessas que fazes.
b. Se queres ser respeitado, não deixes de cumprir as promessas que
fazes.
3. a. Não comprometas a segurança das crianças.
b. Se queres ser visto como um adulto responsável, não comprometas
a segurança das crianças.
As máximas 1a., 2a. e 3a. são deveres negativos que temos de cumprir
sejam quais forem os nossos desejos. Como não dependem dos nossos
desejos, esses deveres são fins objetivos, e não subjetivos. Segue-se que o
valor destes fins, por prescindir da condição de termos certos desejos,
é incondicional. As máximas referidas reúnem os requisitos necessários
para ganharem o estatuto de imperativo categórico. Se puderem ser univer-
salizadas e tratarem os outros como fins, como parece ser o caso, terão de
facto esse estatuto.
Mas as máximas 1b., 2b. e 3b. são diferentes. Os deveres sugeridos depen-
dem dos nossos desejos — o desejo de ganhar a confiança dos outros, por
exemplo. Esses deveres são, por isso, fins subjetivos. E o valor destes fins é
condicional, dado que resulta da condição de termos certos desejos. Ao
contrário das anteriores, as máximas em questão apenas podem ser impe-
rativos hipotéticos, uma vez que estes são motivados pela realização dos
nossos desejos.
Os imperativos hipotéticos recomendam uma ação, mas não a encaram
como boa em si mesma. A ação de não rasgar os contratos, por exemplo, é
boa apenas enquanto meio para um certo fim. E o mesmo se diga para as
ações recomendadas nos outros exemplos.
Do mesmo modo que todos os imperativos categóricos dependem do
imperativo categórico fundamental, também os imperativos hipotéticos
dependem do imperativo hipotético fundamental, que tem a formulação
seguinte:

Imperativo hipotético:
Devemos querer os meios necessários para alcançar os nossos fins.

Segundo Kant, os imperativos hipotéticos não fazem parte da moralidade.


Para que tal fosse possível, a ação que recomendam teria de ser boa em si
mesma. Mas não é esse o caso: a ação é boa apenas enquanto meio para um
certo fim. As ações recomendadas por imperativos hipotéticos têm, por
isso, um valor instrumental.

146 Unidade 6

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Organiza-se em imperativos
categóricos.

Moral
Certas ações são entendidas como
boas em si mesmas; o seu valor é
incondicional e constituem fins
objetivos.

Racionalidade

Organiza-se em imperativos
hipotéticos.

Instrumental
Certas ações são entendidas como
boas enquanto meios para certos fins;
o seu valor é condicional e os fins que
procuram realizar são subjetivos.

Esquema 3 — Dois tipos de racionalidade.

O que justifica a racionalidade moral é o valor incondicional que temos


enquanto pessoas, isto é, enquanto agentes racionais. Segue-se que o valor
das pessoas não depende dos sentimentos e desejos que suscitam em nós.
As ações boas em si mesmas, que os imperativos categóricos prescrevem,
são a expressão prática do respeito devido às pessoas pelo simples facto
de o serem. Sem dúvida que respeitamos as pessoas pelos seus talentos
e realizações — por exemplo, respeitamos um atleta por ter corrido os
100 metros num tempo recorde. No entanto, se nos ficarmos por esse
respeito, que deriva de um sentimento de admiração, escapa-nos o mais
importante: a dignidade que, em si mesma, cada pessoa tem. Uma digni-
dade que não consiste no talento que tem, mas que poderia não ter; ou
nos sentimentos que suscita em nós, mas que poderia não suscitar. Talen-
tos ou sentimentos suscitados em nós, na medida em que podem existir
ou não, são meramente contingentes. O valor moral é, pelo contrário,
imune à sorte.

Atividades

1 Explique a diferença entre imperativo hipotético e imperativo categórico.

2 Dos imperativos seguintes, diga quais são categóricos e quais são hipotéticos e justifique a sua opção.
A — Se quer ter sucesso como empresário, seja honesto.
B — Não deixe que os outros pensem por si.
C — Faça amigos, se quer ter uma vida compensadora.
D — Se deseja ter saúde, não fume.
E — Não ceda aos caprichos dos seus filhos.
F — Não aceite subornos.

3 Por que razão os imperativos hipotéticos não fazem parte da moralidade?

A ética deontológica de Immanuel Kant 147

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6.7 Autonomia e heteronomia
De onde vem a nossa dignidade de pessoas? Kant responde que vem da
nossa capacidade de agir segundo leis morais, a que deu o nome de «auto-
nomia». As leis morais, convém lembrar, são máximas que se saíram bem
perante as exigências do imperativo categórico, ganhando assim o estatuto
de princípios morais universalmente válidos.
A autonomia é concebida por Kant como autonomia da vontade. Nela
reside a justificação última da moralidade. É, por isso, uma noção central
da ética de Kant. Mas é também uma noção muito influente, de tal modo
que a ela se atribui o mérito de iniciar uma tradição de pensamento moral
baseada primariamente no princípio de autonomia, uma tradição que
ganhou grande simpatia num dos domínios mais importantes da ética — a
ética médica.
A vontade é autónoma quando quer ser determinada por
princípios universalmente válidos. Querendo ser determi-
nada deste modo, tem uma motivação genuinamente
moral para agir. Se uma ação resulta desta capacidade de
autonomia, podemos afirmar com segurança que é a nossa
ação. Somos, então, os seus autores. Isto significa que uma
vontade autónoma tem o papel causal de iniciar novas
cadeias de acontecimentos a partir dos princípios que
escolhe. Daí que, sem autonomia, a ação moral seja uma
ilusão. Na verdade, antes de ser moral, uma ação tem de
ser nossa. Não fôssemos dotados de autonomia e não
haveria uma justificação para a moralidade.
Para sermos os autores das nossas ações, temos de ser pri-
Fig. 6 — Fotograma do filme Uma Prova de Amor (2009), meiro os seus legisladores. O termo «legislador» é um dos
realizado por Nick Cassavetes. termos preferidos de Kant quando se refere aos agentes
Este filme mostra que o amor por um filho é uma motivação morais. Tal como o legislador político cria as leis que gover-
poderosa, mas o respeito pela autonomia parece ser uma restrição nam um Estado, o legislador moral cria as leis que determi-
moral a ter sempre em conta. nam a sua própria vontade. Diz Kant a este respeito:

Texto 9

[…] Que outra coisa pode ser, pois, a liberdade da vontade senão autonomia, isto é,
a propriedade da vontade de ser lei para si mesma?
Immanuel Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 2009, p. 100.

É preciso entender com cuidado a noção de autonomia proposta por Kant.


A exigência de autonomia não implica criar os princípios morais das nossas
ações, como se em cada circunstância estivéssemos perante o desafio de
sermos moralmente originais. Isso seria pedir demasiado à nossa capaci-
dade de autonomia. É requerido apenas que queiramos aceitar os princí-
pios morais com provas dadas da sua validade universal; trata-se, portanto,
de aceitação livre de tais princípios. Isto basta para que sejamos legislado-
res morais. É deste modo que somos moralmente autónomos e temos, por
consequência, a dignidade de pessoas.

148 Unidade 6

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A autonomia moral é vista por Kant como uma característica admirável Vontade
e sublime dos seres humanos — de todas, na verdade, a mais valiosa. Não
é caso para menos: ela é, como vimos, a fonte da nossa dignidade.
Como se esperaria, não é fácil estar à altura de uma característica admirável.
A aceitação livre de princípios morais, ainda que ao alcance de todos, exige Autónoma Heterónoma
um esforço sério. Em que consiste esse esforço?
Em primeiro lugar, esse esforço é a tarefa da vontade de todo o ser racional. Autodetermina-se, Deixa-se
O que o caracteriza é a persistência da vontade em não se deixar determinar querendo agir determinar
por tudo aquilo que não controla, e nisto incluem-se os nossos sentimentos segundo por inclinações:
e desejos — as nossas inclinações. É sobre eles que a vontade, para ser princípios aquilo que não
universais. controla.
autónoma, terá de exercer o seu domínio. É uma tarefa árdua, pois
a pressão a que a sujeitam os nossos sentimentos e desejos é grande. Caso Esquema 4 — Autonomia e heteronomia
não consiga resistir à motivação por eles gerada, que é sem dúvida forte, da vontade.
a vontade é heterónoma.
Uma vontade heterónoma não se autodetermina. Isto significa que não
legisla para si mesma por meio da aceitação livre dos princípios morais que
se revelam apropriados às circunstâncias. Trata-se de uma vontade incapaz
de autocontrolo, uma vez que não avalia racionalmente as razões para agir
contidas nas máximas. E não o faz porque não controla a força motivacional
dos sentimentos e desejos.
Subjugado por outro, um país perde a sua soberania; subjugada pelas incli-
nações, a vontade perde a sua autonomia. Nessa circunstância, um país não
faz as suas próprias leis, do mesmo modo que a vontade não é lei para si
mesma. A heteronomia é como que o pesadelo que se interpõe no sonho
de autocontrolo absoluto da vontade racional. Um sonho acalentado
por Kant, mas frequentemente criticado por não passar disso mesmo —
de um sonho.
A retidão do homem de princípios sugerida por Kant é um desejo nobre.
O homem de princípios é autónomo, é o comandante da sua vontade que
não vacila no esforço de controlar as inclinações. É provável que, sem
homens de princípios, não exista uma comunidade moral. Parece plausível
que seres subjugados pelas inclinações do medo, desespero, vaidade ou
interesse próprio sejam tão heterónomos como seres coagidos e manipula-
dos por outros. Mas a autonomia pedida ao homem de princípios, por
exigir que controle os seus sentimentos e desejos, talvez seja demasiado
difícil.

Atividades

1 Explique a diferença entre autonomia e heteronomia da vontade.

2 Q
 uando impomos uma lei moral a nós mesmos, a nossa vontade é autónoma ou não?
Justifique a sua resposta.

3 O que significa sermos legisladores morais?

4 Os seres humanos são dotados de autonomia, mas não é fácil agir com autonomia. Porquê?

A ética deontológica de Immanuel Kant 149

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6.8 Uma avaliação crítica
da ética de Kant
A avaliação crítica da ética de Kant terá dois momentos. Primeiro serão
apresentadas as suas fraquezas principais — aquelas que os seus críticos
apontam com mais frequência. Depois veremos os seus méritos mais
influentes, de que é devedora uma das tradições mais ricas de pensamento
moral — a tradição deontológica.

6.8.1  Fraquezas da ética de Kant
Deveres em conflito
É comum as situações práticas envolverem mais do que um aspeto moral-
mente relevante. Por isso, reduzi-las à rigidez de uma única máxima é
artificial. Não é assim que as coisas se passam na moralidade do dia a dia.
Por exemplo, se há muito prometemos aos nossos filhos dar um passeio
num determinado fim de semana, mas se, chegada a altura de o fazer, a
nossa mãe doente precisa de assistência, temos dois deveres em conflito.
Encarando Kant os deveres como categóricos, teremos neste caso a obriga-
ção de realizar duas ações incompatíveis. Mas, como é óbvio, não é possí-
vel realizar duas ações incompatíveis. Logo, não temos maneira de resolver
este conflito de deveres. Este resultado incoerente é previsível numa ética
de princípios absolutos.

Respeito e humanidade partilhada


Kant defende que merecemos respeito porque temos a capacidade de auto-
nomia. Esta capacidade consiste em aceitar racionalmente princípios
morais universais. Mas será que merecemos respeito apenas por isso? Um
grupo que se dedica a perseguir e maltratar grupos rivais esqueceu apenas
que as suas vítimas são capazes de escolher racionalmente princípios uni-
versais? Não parece. Esse grupo esqueceu que as suas vítimas têm a capa-
cidade de sofrer, ter medo, esperança e de amar. Esqueceu, afinal, que há
uma humanidade partilhada por ele e as suas vítimas, uma humanidade
que inclui, entre outros, os sentimentos referidos. Isto mostra que basear o
respeito pelos outros seres humanos apenas na sua capacidade de racioci-
nar segundo princípios morais universais é insuficiente.

Dever e relações
As ideias de lei e de princípio categórico destacam-se no pensamento moral
de Kant. É duvidoso, no entanto, que tenham uma importância assim tão
grande na nossa vida moral. Um exemplo disso é o seguinte: habitualmente,
não concebemos em termos de leis e princípios categóricos as nossas rela-
ções familiares e de amizade. Daí que alguns críticos afirmem que a ética
proposta por Kant não dá conta das responsabilidades morais implicadas
nas nossas relações de natureza mais pessoal e íntima. Essa, dizem, é uma
das suas limitações. Parece, portanto, que a ética de Kant, do mesmo modo
que o utilitarismo, está apenas preparada para tratar das relações entre estra-
nhos. Esta limitação resulta de Kant não atribuir valor moral a certas emo-
ções, como a simpatia, o remorso ou a compaixão. Entendidas como meras
inclinações, essas emoções não desempenham qualquer papel moral nas
nossas decisões, devendo ser submetidas ao controlo da vontade racional.
150 Unidade 6

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6.8.2   Méritos da ética de Kant
Universalização
Uma razão para agir não ganha o estatuto de princípio moral se não for boa
em todas as circunstâncias com semelhanças relevantes. Esta exigência de
universalização para os princípios morais teve em Kant um dos seus pri-
meiros e mais sofisticados defensores. Trata-se de uma exigência hoje
amplamente aceite, mas ainda não tanto quanto gostaríamos. O seu alcance
é enorme, uma vez que impede o tratamento desigual de pessoas especial-
mente vulneráveis, como deficientes mentais ou pessoas institucionaliza-
das. Por exemplo, a investigação biomédica não pode usar populações
institucionalizadas sem o seu consentimento válido, tal como não pode
usar populações não institucionalizadas, e portanto menos vulneráveis.

Razões morais e consequências


A ética de Kant proporcionou as bases para um dos debates mais importantes
da filosofia moral atual — o de saber se há razões morais independentes das
consequências e dos contextos, isto é, se há razões morais que fazem parte
de certos tipos de ações ou então de certas regras que orientam as ações.

O homem como fim em si mesmo


A fórmula da humanidade é hoje justificadamente vista como um dos pila-
res da nossa cultura moral. Tratar os outros seres humanos como fins em si
mesmos e nunca apenas como meios permite corrigir alguns dos defeitos
das éticas consequencialistas. É uma espécie de antídoto contra possíveis
violações da dignidade de cada pessoa em favor da felicidade geral. Por
mais que as consequências de uma prática possam ser meritórias do ponto
de vista da felicidade da maioria, a ideia de que nenhum ser humano pode
ser tratado simplesmente como meio é uma restrição segura contra abusos.
A exigência de tratar cada ser humano como fim em si mesmo, ainda que
precise de ser especificada em muitos casos, não pode ser ignorada pelo
cálculo das consequências. Este é, para a maioria dos comentadores, o mais
importante mérito de Kant.

Atividades

1 A ética de Kant conduz a conflitos de deveres que não tem meios de resolver. O que explica este resultado insatisfatório?

2 Por que razão a noção de respeito defendida por Kant é insuficiente?

3 Será a ética de Kant capaz de tratar adequadamente as relações pessoais? Porquê?

4 Que importância tem a exigência de universalização?

5 De que lado estaria Kant no debate moral atual sobre se as razões morais são independentes de contextos? Porquê?

6 Que ideia de Kant tem a capacidade de corrigir o consequencialismo moral? Porquê?

Debate

As circunstâncias contam mais numa ética que propõe deveres absolutos ou numa ética que propõe deveres não absolutos.
Justifique a sua resposta.

A ética deontológica de Immanuel Kant 151

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Ideias-chave

A ética deontológica de Immanuel Kant


• A deontologia moderada defende que certos deveres são • Os seres humanos, por serem capazes de deliberar de acordo
restrições à promoção do bem, mas que, dependendo das com o imperativo categórico, têm um valor absoluto e
circunstâncias, esses deveres podem ser suplantados pela incondicional.
promoção do bem. • Os seres humanos são racionais e, nessa medida, têm o esta-
• A deontologia absoluta defende que certos deveres são res- tuto de pessoas.
trições à promoção do bem que em circunstância alguma • As pessoas merecem respeito e, por isso, o imperativo cate-
podem ser suplantados. górico na fórmula da humanidade ordena o seguinte: age de
• A ética deontológica de Kant é uma forma de deontologia tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa
absoluta. como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultanea-
• O valor moral de uma ação não depende das suas conse- mente como fim e nunca simplesmente como meio.
quências, mas da motivação com que é realizada. • A fórmula da lei universal e a fórmula da humanidade do
• Agir em conformidade com o dever não tem valor moral imperativo categórico são equivalentes, pois tratar os outros
porque, nesse caso, a ação é motivada pelas inclinações. como fins em si mesmos é querer agir segundo princípios
universais.
• Agir por dever tem valor moral, uma vez que a ação é moti-
vada pela apreensão do dever (motivação moral). • O imperativo hipotético fundamental ordena que devemos
querer os meios necessários para alcançar os nossos fins.
• A vontade é a capacidade de agir segundo princípios que se
quer livremente aceitar. • Os imperativos hipotéticos ordenam fins subjetivos que têm
apenas um valor condicional.
• A boa vontade é a capacidade de agir segundo princípios
corretos que se quer livremente aceitar. • Os imperativos hipotéticos não fazem parte da racionalidade
moral, uma vez que não ordenam ações boas em si mesmas,
• A boa vontade tem valor em si mesma, e não como meio mas ações boas enquanto meios para certos fins, fazendo
para alcançar fins considerados valiosos. assim parte de uma outra racionalidade — a racionalidade
• As máximas são princípios subjetivos da ação que revelam os instrumental.
motivos dos agentes. • A autonomia é a fonte da dignidade das pessoas.
• Só saberemos se uma ação é moralmente correta ou não se • Uma vontade é autónoma quando se autodetermina, que-
conhecermos a máxima que a motivou. rendo agir segundo princípios universais.
• A boa vontade é determinada por deveres absolutos que • Uma vontade é heterónoma quando se deixa determinar por
ordenam ações necessárias. aquilo que não controla, isto é, pelas inclinações.
• Para ser boa, a vontade tem de ser determinada pelo impe- • As fraquezas da ética de Kant são as seguintes: não tem uma
rativo categórico. maneira de resolver conflitos de deveres; não baseia o res-
• O imperativo categórico é o princípio supremo da morali- peito pelas pessoas também na sua capacidade de ter certos
dade e ordena o seguinte: age apenas segundo uma máxima sentimentos; não está preparada para dar conta da dimen-
tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei são moral das relações pessoais.
universal. • Os méritos da ética de Kant são os seguintes: faz uma exi-
• O imperativo categórico na fórmula da lei universal desem- gência de universalização para os princípios morais; levanta
penha o papel de teste da moralidade das máximas, sujei- a questão de saber se há razões morais independentes das
tando-as a uma exigência de universalização. consequências e dos contextos; defende cada ser humano
como fim em si mesmo contra possíveis violações da sua
• Uma máxima tem valor moral se for universalizável, isto é, se
dignidade.
passar no teste de moralidade.

Para aprofundar conhecimentos

Kenny, Anthony — «Kant sobre a Moralidade, Dever e Lei», in Uma Nova História da Filosofia Ocidental — Ascensão da Filosofia
Moderna (volume III). Lisboa: Gradiva, 2011 [ed. original 2006].
Rachels, James — «Haverá Regras Morais Absolutas?», in Elementos de Filosofia Moral. Lisboa: Gradiva, 2004 [ed. original 2003].
Rachels, James — «Kant e o Respeito pelas Pessoas», in Elementos de Filosofia Moral. Lisboa: Gradiva, 2004 [ed. original 2003]
WaRbuRton, Nigel — «Bem e Mal», in Elementos Básicos de Filosofia. Lisboa: Gradiva, 2007 [ed. original 1995], 2.ª edição.
WaRbuRton, Nigel — «E se Toda a Gente Fizesse o Mesmo?», in Uma Pequena História de Filosofia. Lisboa: Edições 70, 2012
[ed. original 2011].

152 Unidade 6

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Esquema-síntese

A ética deontológica de Immanuel Kant

Vontade

Autonomia Heteronomia

Agir por dever Agir em conformidade com o dever

A ação tem valor moral. A ação não tem valor moral.

Motivo: Máxima: Motivo: Máxima:


dever imperativo categórico inclinações imperativo hipotético

Racionalidade moral Racionalidade instrumental

A ação é boa em si mesma A ação é boa enquanto


e constitui um fim objetivo. meio para um fim subjetivo.

Filmes:
Uma Prova de Amor (2009), realizado por Nick Cassavetes.
Fiel Jardineiro (2005), realizado por Fernando Meirelles.

Páginas da Internet:
http://criticanarede.com/eti_kant.html (artigo «A Teoria Moral de Kant», de Elliott Sober)
http://criticanarede.com/dialogokant.html (artigo «Diálogo sobre a Ética Kantiana», de Luís Veríssimo)

A ética deontológica de Immanuel Kant 153

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TEsTE FORMATIvO 6

CLAssIFIQUE As AFIRMAÇÕEs sEGUINTEs COMO vERDADEIRAs OU FALsAs.

  1.  Os deveres são entendidos por Kant como restrições moderadas à promoção do bem.

2. Kant atribui mais força normativa aos deveres positivos do que aos deveres negativos.

3. Segundo Kant, os deveres negativos são perfeitos.

4. O dever de ajudar os mais vulneráveis é um dever negativo.

5. Os deveres positivos são, segundo Kant, deveres imperfeitos.

6. Um dever perfeito tem força vinculativa.

7. A deontologia moral defendida por Kant é absoluta.

8. Kant admite que os agentes têm de sacrificar as suas vidas pessoais às exigências dos deveres
positivos.

9. Agir em conformidade com o dever é agir com uma motivação moral.

10. Ter uma motivação moral é querer agir por dever.

11. Agir por dever e agir em conformidade com o dever não se distinguem pelas consequências
das ações.

12. O valor moral de uma ação, segundo Kant, depende da motivação com que é realizada.

13. Kant pensa que os sentimentos, os desejos e os interesses são relevantes para se determinar
o valor moral das ações.

14. Ter uma boa vontade é, segundo Kant, a finalidade mais importante da vida moral.

15. A boa vontade, afirma Kant, tem valor instrumental.

16. Kant define a boa vontade como a vontade que quer agir segundo princípios morais corretos.

17. Se uma vontade alcança o que quer, então, diz Kant, é uma boa vontade.

18. Kant defende que não podemos avaliar moralmente as ações se não conhecermos
as suas máximas.

19. As máximas expõem os motivos dos agentes.

20. Segundo Kant, de uma máxima imoral pode resultar uma ação com valor moral.

21. O processo de avaliação moral das ações concebido por Kant incide sobre as máximas.

22. O dever é definido por Kant como o respeito pelas leis particulares.

23. O respeito pela ideia de regra universal é o que, segundo Kant, distingue o dever.

24. Se uma máxima puder converter-se em lei universal, então tem validade moral.

25. O princípio fundamental da moralidade é o imperativo categórico.

26. O imperativo categórico testa as máximas avaliando se estas são capazes de se tornar
leis particulares.

27. O imperativo categórico na fórmula da lei universal é um teste de universalização das máximas.

28. O teste de universalização das máximas procura saber se todos podem agir segundo
as máximas testadas.

29. A máxima da promessa enganadora tem a capacidade de se converter em lei universal.

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30. Se uma máxima, quando universalizada, torna impossível o que ela própria recomenda,
então não tem validade moral.

31. Se uma máxima universalizada gera uma contradição, então não é racional.

32. Kant afirma que temos o estatuto de pessoas porque somos capazes de sentimentos altruístas.

33. Segundo Kant, merecemos respeito por termos o estatuto de pessoas.

34. O estatuto de pessoa reside na capacidade de avaliarmos as máximas de acordo com


o imperativo categórico na fórmula da lei universal, vencendo os obstáculos que
as inclinações nos levantam.

35. Kant afirma que o imperativo categórico na fórmula da humanidade nos impede de usar
as pessoas apenas como meios.

36. Se uma pessoa deixa de ter controlo sobre a sua própria vida, então não é tratada com
respeito pelos outros, ou não se trata a si mesma com respeito.

37. Um imperativo é categórico se depende dos desejos que as pessoas têm.

38. O imperativo categórico é aplicável na condição de atendermos ao que cada ser humano
tem de singular.

39. As duas fórmulas do imperativo categórico são equivalentes porque tratar os outros como
fins é querer que eles tenham uma palavra a dizer sobre a sua conduta.

40. Um imperativo hipotético depende dos nossos desejos.

41. A racionalidade moral organiza-se em imperativos hipotéticos.

42. Kant defende que os outros merecem respeito porque têm dignidade em si mesmos.

43. Temos dignidade, segundo Kant, por sermos autónomos.

44. Uma vontade autónoma é aquela que escolhe os seus próprios princípios, sejam universais
ou não.

45. A autonomia é a capacidade de cada um agir segundo princípios universais livremente aceites.

46. A heteronomia ocorre quando a vontade se determina a si mesma.

47. Uma vontade autónoma legisla para si mesma.

48. Uma vontade é autónoma se avalia racionalmente as máximas das ações.

49. Uma vontade é tão heterónoma quando se deixa vencer pelo medo como quando se deixa
manipular pelos outros.

50. A ética de Kant, segundo os seus críticos, dispõe dos meios necessários para resolver conflitos
de valores.

51. Os críticos de Kant afirmam que a ética de Kant não está preparada para tratar das relações
pessoais.

52. A exigência de universalização das máximas é uma das falhas da ética de Kant.

53. A fórmula da humanidade do imperativo categórico é um dos importantes méritos de Kant,


pois tem a capacidade de proteger os mais vulneráveis.

33. V; 34. V; 35. V; 36. V; 37. F; 38. F; 39. F; 40. V; 41. F; 42. V; 43. V; 44. F; 45. V; 46. F; 47. V; 48. V; 49. V; 50. F; 51. V; 52. F; 53. V.
1. F; 2. F; 3. V; 4. F; 5. V; 6. V; 7. V; 8. F; 9. F; 10. V; 11. V; 12. V; 13. V; 14. V; 15. F; 16. V; 17. F; 18. V; 19. V; 20. F; 21. V; 22. F; 23. V; 24. V; 25. V; 26. F; 27. V; 28. V; 29. F; 30. V; 31. V; 32. F;
SOLUÇÕES:

A ética deontológica de Immanuel Kant 155

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Unidade

7 Ética, direito e política


7.1 Ética e direito
7.1.1 A desobediência civil

7.2 A teoria da justiça como equidade de Rawls


7.2.1 Os princípios de justiça
7.2.2 Uma avaliação crítica da teoria de Rawls

7.3 Igualdade e diferenças

Objetivos da unidade Conceitos fundamentais

No fim desta unidade, deverá ser capaz de responder Os conceitos seguintes, que são centrais nesta unidade,
às seguintes questões: são definidos no fim do livro:
Que relação deve haver entre ética e direito? equilíbrio refletido
Que princípios de justiça, segundo Rawls, devem governar igualdade democrática de oportunidades
a sociedade? posição original
Com que argumentos defende Rawls os princípios de princípio da diferença
justiça?
princípio da liberdade igual
Que objeções enfrenta a teoria da justiça de Rawls?
princípio da oportunidade justa
Quais são as ideias mais interessantes defendidas por
Rawls na sua teoria da justiça?

Introdução

Todos queremos viver numa sociedade justa. E todos lamentamos, com mais ou menos frequência, as injustiças que as sociedades ainda
não foram capazes de resolver. Temos intuições fortes acerca do que seria uma sociedade justa. Parece-nos que a igualdade, a liberdade
e a justiça social são valores centrais que deveriam fornecer um ideal normativo às sociedades. John Rawls, um dos maiores filósofos
políticos de sempre, respondeu de maneira particularmente interessante a esse desafio.
A sociedade justa defendida por Rawls recomenda princípios para as instituições e o governo das sociedades. São princípios baseados
justamente nos valores da igualdade, da liberdade e da justiça social. Orientando a política, influenciam as leis que são estabelecidas.
Como a sua base é moral, esses princípios de igualdade, liberdade e justiça social orientam também a relação entre ética e direito. Eles
sugerem que relação deve haver entre ética e direito e quando, em seu nome, temos razões para desobedecer à lei.

156 Unidade 7

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Estímulo

A história que irá ler pretende testar:


• as nossas intuições básicas de justiça;
• a importância da igualdade numa sociedade justa;
• o papel do mérito e do esforço numa sociedade justa.

Os primeiros colonos de Marte


Há 20 pessoas selecionadas para viver na primeira Os colonos reuniram-se mais uma vez. A Sofia deu
colónia de Marte. Elas têm pela frente uma tarefa uma outra sugestão:
pouco comum. No Planeta Vermelho haverá um certo
— Imaginem que apenas três pessoas irão viver para
número de bens: alojamento, comida, bebida, vestuá-
Marte e que os bens são distribuídos numa escala que
rio e objetos de luxo. Antes de iniciar a viagem, têm
vai de 1 (o mínimo) a 10 (o máximo). Temos três
de decidir como é que esses bens serão distribuídos
maneiras de distribuir esses bens:
por todos. O problema é que não sabem que tipo de
trabalho é mais importante na colónia. A primeira Hipótese 1: Pessoa A — 9; Pessoa B — 7;
sugestão é dada pelo colono Álvaro: Pessoa C — 2; TOTAL DE RIQUEZA: 18.
— Na minha opinião, todas as coisas deverão ser par- Hipótese 2: Pessoa A — 10; Pessoa B — 5;
tilhadas de maneira igual. Pessoa C — 2; TOTAL DE RIQUEZA: 17.
No entanto, a Joana discorda e afirma: Hipótese 3: Pessoa A — 7; Pessoa B — 5;
Pessoa C — 4; TOTAL DE RIQUEZA: 16.
— Eu não concordo contigo, Álvaro. Pensa bem: se
houver muito trabalho para ser feito e alguém se recu- Se virem bem, uma destas hipóteses é muito mais
sar a fazer a sua parte, achas justo que ele tenha uma justa do que as outras, mas não vou dizer qual é.
«fatia do bolo» igual à dos outros? Não achas que A Sofia espera que os seus companheiros pensem seri-
deve haver um prémio para quem contribui? amente sobre cada uma das hipóteses.
— És capaz de ter razão, Joana. Tal como os companheiros de Sofia, também nós temos
Todos aceitaram a crítica da Joana. Mas agora o pro- pela frente este problema. Muita gente pensa que o
blema parece mais difícil de resolver. Se dar a todos o mundo não é tão justo como seria bom que fosse. Por
mesmo talvez não seja o mais justo, o que será então? isso, que mundo escolheria para a colónia de Marte?
Um mundo de acordo com a hipótese 1, 2 ou 3?
A verdade é que têm de pensar mais sobre o assunto.
Um novo encontro fica marcado para o dia seguinte. Inspirado na obra The Pig that Wants to Be Eaten
and 99 Other Thought Experiments, de Julian Baggini,
e na obra Uma Teoria da Justiça, de John Rawls.

Guião de leitura

1 Formule o problema que os colonos enfrentam. 3 Apresente a crítica à resposta igualitária.

2 Identifique a resposta igualitária. 4 Descreva o teste intuitivo de justiça.

Fazer filosofia

1 Debata com toda a turma o seguinte problema: O que é uma sociedade justa?

2 Se defende que a desigualdade pode ser boa, apresente as razões a favor dessa posição.

Ética, direito e política 157

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7.1 Ética e direito
É frequente que a relação entre ética e direito seja de conflito. Nem sempre
as leis refletem o que é moral, e por vezes refletem mesmo o que é clara-
mente imoral. Todos temos hoje a noção de que as leis devem ser cuidado-
samente avaliadas. Sabendo que as leis não são necessariamente ótimas,
não cometemos o erro de argumentar que é moral o que é legal, ou que é
imoral o que é ilegal. O que se verifica muitas vezes, pelo contrário, é que
algo imoral não é ilegal, mas deveria sê-lo. É o caso, por exemplo, da prá-
tica de seguradoras que, em determinados países, exigem às pessoas certos
testes clínicos para as aceitarem como clientes, não respeitando a sua
privacidade. Como também se verifica que algo moral é ilegal, mas não
deveria sê-lo. Por exemplo, é moral que as mulheres tenham acesso a
estudos superiores, mas há ainda países em que a lei o proíbe.
Isto mostra que há tensão entre o que é legal e o que é moral. É razoável,
por isso, que as pessoas exerçam pressão para que as convicções morais
sejam refletidas nas leis. Para que tal suceda, querem que novas leis sejam
aprovadas, ou que leis estabelecidas deixem de ser válidas e as práticas que
antes permitiam passem a ser ilegais. Para ser razoável, no entanto, a pres-
são moral sobre a lei não pode chegar ao ponto de exigir que na lei estejam
Fig. 1 — Cartaz da UNICEF apelando refletidas todas as nossas obrigações morais. É verdade que temos a obriga-
à educação das mulheres islâmicas. ção moral de tratar os outros com simpatia, mas seria insensato, e mesmo
Em alguns países, existem leis que proíbem impraticável, tornar a antipatia ilegal.
o acesso das mulheres à educação.
Vimos, portanto, que tudo o que é legal deve ter alguma relação com a
moralidade, mas nem tudo o que é moral deve ser legal. Afirmar que
a totalidade da moralidade deve ser a totalidade da lei é tão injustificado
como defender que entre lei e moral não há qualquer conexão. Hoje é
facilmente aceite que o domínio da lei não é o domínio da moralidade.
O problema para as sociedades é o de não haver a preocupação de avaliar
a relação entre as leis que são aprovadas e as nossas convicções morais.
Por vezes, aspetos da vida social e económica estão submetidos a leis que
não foram cuidadosamente avaliadas do ponto de vista moral. Quando
isso sucede, aspetos da vida económica, por exemplo, ganham demasiada
autonomia e gera-se a ideia perigosa de que a economia e a ética são domí-
nios inteiramente separados. Isso pode ter consequências sérias. Vejamos
algumas delas:

Texto 1

Nos anos antes da crise, foram aprovadas leis que tornaram possível fazer legalmente
muitas coisas erradas. Muitas das práticas abusivas com cartões de crédito, empréstimos
predatórios, eram claramente imorais. Foram para além dos limites da decência, mas não
foram para além do que era legal.
Joseph stiglitz, Time, 11/06/2012.

Há casos ainda mais óbvios de leis claramente imorais. É o caso de leis que
discriminam mulheres, negam o voto a minorias étnicas ou a liberdade de
cada um ter a religião que mais lhe agradar. O que fazer então nos casos em
que o Estado, usando o seu poder de fazer leis, comete injustiças claras?
E o que fazer quando o Estado é teimosamente insensível aos apelos para
que termine com essas injustiças?

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7.1.1  A desobediência civil
A desobediência civil é o último recurso pacífico contra injustiças legais
teimosamente praticadas pelo Estado. Pode definir-se assim:

Texto 2

Começarei por definir a desobediência civil como um ato público, não violento, decidido
em consciência mas de natureza política, contrário à lei e usualmente praticado com o
objetivo de provocar uma mudança nas leis ou na política seguida pelo governo. Ao agir
desta forma, apelamos ao sentido de justiça da maioria da comunidade e declaramos
que, na nossa opinião ponderada, os princípios de cooperação social entre homens livres
e iguais não estão a ser respeitados.
John Rawls, Uma Teoria da Justiça. Editora Princípia, 2001, p. 282.

A desobediência civil não é violenta por duas razões. Por um lado, trata-se
de uma forma de apelo comparável a um discurso público, e não de uma
ameaça que precisaria de recorrer à força para ser eficaz; por outro lado, a
desobediência civil encontra-se na fronteira do direito, mas preserva a sua
fidelidade à lei, dado que aceita as consequências legais que sobre ela
recaem. A desobediência civil é uma forma de pressão ética sobre o direito
estabelecido. O que justifica a desobediência civil é a violação legal do
nosso sentido moral de justiça. Eis alguns exemplos de injustiças:

Texto 3

Assim, quando é negado o direito de voto a certas minorias, ou o direito de ocupar car-
gos públicos, de possuir imóveis ou de viajar, ou ainda quando certos grupos religiosos
são reprimidos e a outros são negadas oportunidades várias, tais práticas constituem
injustiças que podem ser óbvias para todos. São incorporadas de forma pública na prática
reconhecida das estruturas sociais, senão mesmo nas respetivas regras.
John Rawls, Uma Teoria da Justiça. Editora Princípia, 2001, pp. 287-288.

Estes exemplos mostram que a desobediência civil é justificada por injustiças


sérias que fazem parte das práticas sociais. São injustiças que negam liberda-
des e oportunidades básicas, como é o caso da negação da oportunidade de
ocupar um cargo público ou da liberdade de voto. A negação de liberdades
e oportunidades tão básicas explica o caráter resoluto dos movimentos de
desobediência civil, de que são exemplos o movimento em defesa dos direi-
tos civis, encabeçado por Martin Luther King, e o movimento anticolonial,
liderado por Gandhi. Ora, estes exemplos sugerem os princípios que uma
sociedade deve adotar para que não se verifiquem injustiças básicas. Parece,
portanto, que uma sociedade justa nas suas instituições e práticas sociais terá
de garantir para todos certas liberdades e oportunidades básicas.

Atividades
Fig. 2 — Movimento anticolonial, liderado
por Mahatma Gandhi.
1 Por que razão as relações entre ética e direito nem sempre são pacíficas?
Em 1930, Gandhi liderou milhares de indianos
2 Geralmente, é a ética que se ajusta ao direito ou o direito que se ajusta à ética? por ocasião da Grande Marcha do Sal.
Porquê? Caminharam a pé vários dias até ao mar,
onde recolheram a água e a deixaram secar
3 Em que caso se justifica a desobediência à lei? para obter sal: o propósito era desobedecer
às ordens inglesas do monopólio do sal.

Ética, direito e política 159

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7.2 A teoria da justiça como
equidade de Rawls
Há crianças vendidas por pais extremamente pobres a quem tem dinheiro
Biografia
e falta de escrúpulos para as comprar; pessoas cujo rendimento não per-
mite fazer mais do que uma refeição por dia; jovens que não têm a menor
John Rawls: U4P1H7
possibilidade de adquirir pelo menos a escolaridade básica; cidadãos que
um filósofo
estão presos por terem defendido as suas ideias. Perante casos destes senti-
atento
mos que as nossas intuições morais de justiça e igualdade não são respeita-
à realidade
das. Daí a pergunta: como é possível uma sociedade justa? A teoria da
social e política
justiça como equidade, defendida por John Rawls, é uma resposta muito
John Rawls herdou dos pais o gosto pela interessante a essa questão fundamental.
política e a atenção às desigualdades.
A sua reflexão filosófica é disso uma A justiça como equidade propõe um ideal normativo pelo qual são julgadas
consequência. Por isso, o problema que as instituições sociais, políticas e económicas da sociedade. Rawls apresenta
mereceu da sua parte uma atenção a teoria da justiça como equidade do seguinte modo:
incansável foi o de saber que princípios
devem governar uma sociedade justa. Daí
resultou uma interessante teoria da justiça Texto 4
social. Tão interessante que Robert Nozick,
um dos seus críticos mais argutos, disse De toda a sorte de coisas se diz que são justas ou injustas: não apenas leis, instituições e
o seguinte: «Agora os filósofos políticos sistemas sociais, mas também ações individuais de vários tipos, incluindo decisões, juízos
terão de trabalhar segundo a teoria de e imputações. Também qualificamos as atitudes e as inclinações das pessoas, bem como
Rawls, ou explicar porque não o fazem.» elas próprias, como justas ou injustas. O nosso tema, no entanto, é a justiça social. Para
Outros afirmam que Uma Teoria da Justiça nós, o objeto primário da justiça é a estrutura básica da sociedade, ou, mais exatamente,
é uma das três maiores obras de filosofia a forma pela qual as instituições mais importantes distribuem os direitos e deveres funda-
política, a par da República, de Platão, e do mentais e determinam a divisão dos benefícios da cooperação em sociedade. Por institui-
Leviathan, de Thomas Hobbes. O lugar ções mais importantes entendo a constituição política, bem como as principais estruturas
central que ocupa é inteiramente económicas e sociais.
merecido: mais do que ninguém, Rawls
John Rawls, Uma Teoria da Justiça. Editora Princípia, 2001, p. 30.
enfrentou de modo sistemático um dos
problemas básicos mais difíceis — o de
articular a liberdade e a igualdade, dois
valores que parecem incompatíveis numa Aquilo de que se ocupa a teoria de Rawls é a justiça social, que será conse-
conceção de justiça social.
guida através da forma como se distribuem os direitos e deveres dos cida-
dãos e se dividem os benefícios da cooperação em sociedade. Rawls entende
que o ideal normativo que propõe é o modo socialmente justo de proceder
a essa distribuição dos direitos e deveres e a essa divisão dos benefícios. Mas,
antes de vermos quais são os princípios que formam esse ideal normativo, é
conveniente identificar as suas ideias básicas de sociedade e de cidadão.
• A sociedade é um sistema equitativo de cooperação social entre gerações
ao longo do tempo.
• Os cidadãos são pessoas livres e iguais. Têm duas capacidades morais:
o sentido da justiça e o sentido do bem. A primeira capacidade permite-
-lhes conhecer os princípios da cooperação social justa, e depois aplicá-
-los e agir segundo o que recomendam. A segunda permite-lhes procurar
e rever racionalmente uma conceção do bem.
Rawls defende que a liberdade e a igualdade são valores compatíveis.
Entende, além disso, que estes são os valores que devem determinar a
forma como se distribuem os direitos e deveres dos cidadãos e se dividem
os encargos e benefícios da cooperação social. Caso a liberdade e a igual-
dade tenham este importante papel, o resultado será uma sociedade justa.
O que distingue uma sociedade justa é a garantia de que as suas institui-
ções políticas, sociais e económicas, orientadas pelos valores de liberdade
e igualdade, asseguram um outro valor que nos é caro — a justiça social.

160 Unidade 7

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Isto significa que a distribuição dos bens de que uma sociedade dispõe, e
que resultam da cooperação social, é uma expressão prática do valor de
justiça social. Esta é a ideia geral da teoria da justiça de Rawls. Já sabemos
que valores são centrais e que papel esses valores têm, mas isto é insufi-
ciente. Precisamos ainda de saber que princípios exprimem esses valores e
de que modo esses princípios se aplicam. Só depois teremos uma ideia
clara do ideal normativo proposto por Rawls.

7.2.1  Os princípios de justiça
Segundo Rawls, uma sociedade justa é governada por dois princípios, cada
um com a sua esfera própria de aplicação. Para que seja justa, uma socie-
dade terá ainda de aplicar os princípios segundo uma certa ordem de prio-
ridade. Vejamos a formulação final que Rawls dá a esses princípios e às
regras de prioridade a que estão sujeitos:

Texto 5

Vou agora apresentar a formulação final dos dois princípios da justiça aplicáveis às insti-
tuições. […]
Primeiro princípio
Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais amplo sistema total de liberdades básicas
iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para todos.
Segundo princípio
As desigualdades económicas e sociais devem ser distribuídas por forma que, simulta-
neamente:
a) redundem nos maiores benefícios possíveis para os menos beneficiados […];
b) sejam a consequência do exercício de cargos e funções abertos a todos em circuns-
tâncias de igualdade equitativa de oportunidades.
Primeira regra de prioridade (prioridade da liberdade)
Os princípios da justiça devem ser ordenados lexicalmente e, portanto, as liberdades
básicas podem ser restringidas apenas em benefício da própria liberdade. […]
Segunda regra de prioridade (prioridade da justiça sobre a eficiência e o bem-estar)
O segundo princípio da justiça goza de prioridade lexical face aos princípios da eficiência
e da maximização da soma de benefícios; e o princípio da igualdade equitativa de opor-
tunidades tem prioridade sobre o princípio da diferença.
John Rawls, Uma Teoria da Justiça. Editora Princípia, 2001, p. 239.

Esta formulação de Rawls, a bem da clareza, precisa de ser sim-


plificada e explicada. O primeiro e mais importante princípio,
segundo Rawls, é um princípio de liberdade (princípio da
liberdade igual). Para evitar confusões, convém dizer que o
segundo princípio, ainda que apresentado como um só, se
articula em dois princípios autónomos: um deles é um princípio
de igualdade de oportunidades (princípio da oportunidade
justa); o outro é um princípio de redistribuição da riqueza, de
maneira que os menos favorecidos fiquem na melhor situação
possível (princípio da diferença).

Fig. 3 — Mulheres lutando por direitos iguais.


Não ter direitos iguais é desrespeitar
os princípios de justiça de Rawls.

Ética, direito e política 161

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As regras de prioridade são estabelecidas porque, por si só, os princípios não
têm a capacidade de orientar as escolhas da sociedade; elas são, portanto, um
guia para essas escolhas, esperando-se que sejam muito proveitosas nos casos
de conflito de princípios. Assim, o princípio da liberdade igual tem priori-
dade sobre os outros dois, e o princípio da oportunidade justa tem prioridade
sobre o da diferença. É nisto que consiste a prioridade lexical de que fala
Rawls. Assim, ordenados segundo as regras de prioridade, os princípios são:

A sociedade deve assegurar a máxima liberdade


Princípio
para cada pessoa compatível com uma
da liberdade igual
liberdade igual para todos os outros.
As desigualdades económicas e sociais devem
Princípio
estar ligadas a postos e posições acessíveis a
da oportunidade
Princípios todos em condições de justa igualdade de
justa
de justiça oportunidades (alínea b do segundo princípio).

A sociedade deve promover a distribuição igual


da riqueza, exceto se a existência de
Princípio
desigualdades económicas e sociais gerar os
da diferença
maiores benefícios para os menos favorecidos
(alínea a do segundo princípio).

Quadro 1 — Princípios de justiça.

Atingido um nível de bem-estar acima da luta pela sobrevivência,


a liberdade tem prioridade absoluta sobre o bem-estar económico
ou a igualdade de oportunidades, o que faz de Rawls um liberal.
A liberdade está, digamos, fora da agenda política — é inegociável.
A liberdade de expressão e de religião, assim como outras liberdades,
são direitos que não podem ser violados por considerações econó-
micas. Por exemplo, se alguém tem um rendimento mínimo que
lhe permite viver, não pode abdicar da sua liberdade e aceitar a
restrição de não poder sair de uma exploração agrícola na condição
de passar a ganhar mais. Outro exemplo que a teoria de Rawls
Fig. 4 — Mulheres negras exercem pela primeira vez rejeita seria o de alguém abdicar de gozar de liberdade de expres-
o seu direito de votar.
são para um dia ter a vantagem económica de não lhe serem cobra-
A liberdade, que inclui a liberdade de votar, é inegociável,
dos impostos.
segundo Rawls.

Atividades

1 Em que consiste a justiça como equidade?

2 Que valores são importantes na teoria da justiça de Rawls?

3 Os princípios de justiça ocupam-se de coisas diferentes. A que se aplica cada um dos princípios de justiça?

4 Podemos afirmar que Rawls é um liberal? Porquê?

5 Os seguintes princípios estão incluídos nos princípios de justiça de Rawls. Diga em quais.
A — Todos devem ter acesso a uma educação de qualidade.
B — Ninguém deve interferir na opinião dos outros.
C — Os mais favorecidos devem estar sujeitos a impostos mais elevados.
D — Todos devem ter direito a cuidados de saúde.
E — Cada um deve poder ter as crenças que mais lhe agradarem.
F — Os mais talentosos devem ajudar os menos favorecidos.

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   A crítica de Rawls ao utilitarismo
Uma das finalidades de Rawls foi defender uma alternativa
ao utilitarismo enquanto teoria aplicável às escolhas sociais.
A segunda regra de prioridade afirma que o segundo princípio
tem prioridade sobre qualquer princípio de maximização dos
benefícios, como é o caso do princípio da utilidade de Mill.
Segundo o utilitarismo, se uma ação maximiza a felicidade,
não importa se a felicidade é distribuída de maneira igual ou
desigual. Grandes desníveis entre ricos e pobres parecem, em
princípio, justificados. Mas, na prática, o utilitarismo conduz
a uma distribuição mais igual. Assim, se uma família ganha
5 mil euros por mês e outra 500, o bem-estar da família
rica não diminuirá se 500 euros do seu rendimento forem
transferidos para a família pobre, mas o bem-estar desta
última aumentará substancialmente.
A explicação para que assim seja é que, a partir de certa altura, Fig. 5 — Grandes desníveis de riqueza.
a utilidade marginal do dinheiro diminui à medida que este Rawls critica o utilitarismo por este atribuir apenas valor
aumenta. Deste modo, uma determinada quantidade de instrumental à igualdade, e não valor intrínseco; isto significa
riqueza produzirá mais felicidade do que infelicidade se for que permite grandes desníveis de riqueza se essa for a maneira
retirada dos ricos para dar aos pobres. Isto parece sensato, mas de maximizar a felicidade.
deixa Rawls insatisfeito. Ainda que conduza a decisões igualitárias,
Rawls pensa que o utilitarismo comete o erro de não atribuir valor intrínseco
à igualdade, mas apenas valor instrumental. Isto quer dizer que a igualdade
não é boa em si, mas apenas se produzir a maior felicidade total.
A justiça na distribuição dos bens é considerada pelo utilitarismo como um
problema de administração eficiente. É justa a distribuição de bens que produz
a maior felicidade agregada. A decisão moral do utilitarista é, segundo Rawls,
semelhante à decisão do empresário e do consumidor: o primeiro procura
maximizar o lucro e o segundo procura maximizar a satisfação proporcio-
nada pelos bens que adquire. Ora, pensar em termos de felicidade agregada
equivale a tomar todos os sujeitos como formando um só e a negar, por
consequência, a pluralidade de sujeitos. Isto é um erro, critica Rawls, porque
cada pessoa, tomada em si mesma, merece consideração. Assim:

Texto 6

Cada pessoa beneficia de uma inviolabilidade que decorre da justiça, a por um maior número. Assim sendo, numa sociedade justa, a igualdade
qual nem sequer em benefício do bem-estar da sociedade como um de liberdades e direitos entre os cidadãos é considerada como definitiva;
todo poderá ser eliminada. Por esta razão, a justiça impede que a perda os direitos garantidos pela justiça não estão dependentes da negocia-
da liberdade para alguns seja justificada pelo facto de outros passarem ção política ou do cálculo dos interesses sociais.
a partilhar um bem maior. Não permite que os sacrifícios impostos a uns John Rawls, Uma Teoria da Justiça. Editora Princípia, 2001, p. 27.
poucos sejam compensados pelo aumento das vantagens usufruídas

Às pessoas não podem ser retirados direitos em nome da maximização da


utilidade. Isso seria ferir a inviolabilidade que cada uma tem, seja qual for
a sua condição social e económica. Os menos favorecidos, que são mais
vulneráveis a abusos, veem deste modo protegidos os seus direitos e a perspe-
tiva de uma vida satisfatória. O princípio da diferença dedica-lhes uma atenção
especial. Mas, para compreendermos claramente o princípio da diferença,
precisamos, em primeiro lugar, de saber quem são os menos favorecidos;
e, em seguida, de saber por que razão as desigualdades sociais e económicas
são boas para eles, gerando os maiores benefícios de que poderiam usufruir.
Ética, direito e política 163

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Os menos favorecidos
A finalidade do princípio da diferença é que os menos favorecidos tenham
a melhor situação possível. Daí que afirme que as desigualdades sociais e
económicas devem gerar os maiores benefícios para os menos favorecidos.
Vejamos quem são aqueles que a teoria da justiça de Rawls identifica como
os menos favorecidos:

Texto 7

Para assentar ideias, vamos determinar este grupo como abrangendo os que forem
menos beneficiados relativamente aos três domínios principais que possuem uma natu-
reza contingente. Assim, este grupo compreende pessoas que, pelas suas origens fami-
liares e de classe, estão em desvantagem relativamente a outras, cujas aptidões naturais
(atendendo ao modo como são postas em prática) as fazem sofrer as maiores dificulda-
des e cuja sorte e fortuna é menor, sendo que […] estes factos são avaliados a partir dos
bens sociais primários.
John Rawls, Uma Teoria da Justiça. Editora Princípia, 2001, p. 93.

Os menos favorecidos são definidos em relação a três domínios. São eles as


condições sociais, as aptidões naturais e a sorte no decurso da vida. Os
menos favorecidos estão sujeitos a três espécies de azar nas suas vidas: o de
nasceram, crescerem e viverem num meio social difícil; o de não serem
dotados pela natureza das aptidões necessárias a uma vida satisfatória; e o
de não terem, simplesmente, sorte na vida.
A nossa intuição básica de justiça é contrária à ideia de que o destino das
pessoas deve depender das circunstâncias em que por acaso se encon-
tram. Essas circunstâncias, diz o texto, têm uma natureza contingente.
Isto significa que poderiam ocorrer ou não, e que as pessoas não têm,
portanto, controlo sobre elas. Ora, é injusto que o lugar e destino de uma
pessoa na sociedade dependa de circunstâncias que não controla.
Segundo a nossa intuição de justiça, deve depender antes das suas escolhas
e do empenho que põe nelas. Do mesmo modo que Kant pretendia eliminar
das nossas escolhas morais a influência dos
desejos e sentimentos, que via como inclinações
contingentes, Rawls pretende eliminar a influên-
cia das contingências sociais, naturais e da sorte
na organização da sociedade. Essa é a forma de
os princípios de justiça que propõe se ajustarem
à nossa intuição básica de justiça.
Esta definição dos menos favorecidos, embora
útil, não é suficientemente precisa. Rawls estava
consciente de que não é possível definir os menos
favorecidos de um modo que elimine toda a mar-
gem de imprecisão. Ainda assim, no entanto,
procurou acrescentar à definição útil que já conhe-
cemos um critério mais preciso. Ofereceu-nos
então dois critérios possíveis. O primeiro define
Fig. 6 — Simone Fragoso, atleta paraolímpica portuguesa.
os menos favorecidos como aqueles que dispõem
aproximadamente do rendimento do trabalhador
Para Rawls, a justiça social consiste em assegurar liberdades e direitos básicos
a todos, e em especial aos menos favorecidos, de modo que os menos não qualificado, ou menos. O segundo define os
afortunados na lotaria social e natural possam ter uma vida digna menos favorecidos como todas as pessoas com
e satisfatória. menos de metade do rendimento médio.

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Desigualdades boas
Pode parecer que a melhor resposta às injustiças causadas pelas enormes
desigualdades sociais e económicas é organizar a sociedade de maneira que
todos tenham um nível igual de rendimento. Mas esta não é, pensa Rawls,
uma reação refletida. Considerações racionais sustentam, pelo contrário,
que há desigualdades boas, dado que só elas têm a capacidade de gerar
os maiores benefícios para os menos favorecidos. Daí que o princípio da
diferença as recomende.
Rawls pensa que o igualitarismo não consiste na defesa de um nível
de rendimento igual para todos. Essa igualdade de rendimento não é
necessariamente uma coisa boa. Na verdade, todos poderiam ter o mesmo
rendimento e viver numa situação de pobreza extrema. O que distingue o
igualitarismo é, então, uma preocupação especial com os menos favorecidos.
Se certas desigualdades derem a melhor resposta a essa preocupação, per-
mitindo aos menos favorecidos um rendimento maior do que teriam numa
situação de estrita igualdade, elas são bem-vindas a uma sociedade justa.
No entanto, isto exige uma explicação. Precisamos de saber como é que
as desigualdades de rendimento têm, contra o que à primeira vista poderia
parecer, a capacidade de gerar os maiores benefícios para os menos favore-
cidos.
No excerto seguinte, Rawls diz-nos como é que isso se consegue:

Texto 8

Podemos admitir, dada a cláusula do segundo princípio relativa às funções abertas a todos
e, em geral, dado o princípio da liberdade, que as melhores expectativas concedidas aos
empresários os encorajam a tomar decisões cujas consequências sejam a elevação das
perspetivas da classe trabalhadora. As suas maiores perspetivas agem como incentivos, de
modo que o processo económico seja mais eficiente, a inovação se processe de forma
mais acelerada, etc. […]
A questão central é que, para que estas desigualdades satisfaçam o princípio da diferença,
é necessário defender um argumento deste tipo.
John Rawls, Uma Teoria da Justiça. Editora Princípia, 2001, p. 80.

Rawls parte da ideia de que conceder melhores expectativas aos empresários


e, acrescentamos, aos mais talentosos e capazes, é um incentivo que torna
a economia mais eficiente; como uma economia mais eficiente gera mais
riqueza, haverá, conclui Rawls, mais riqueza para redistribuir pelos menos
favorecidos, que ficam assim na melhor situação possível.
Que incentivos são esses e que efeito têm nos mais capazes e talentosos?
Geralmente, os incentivos são financeiros. Antes de mais, são os do próprio
mercado: ganhar mais. Mas podem ser também reduções nos impostos
pagos pelos empresários e pelos que têm salários mais altos, apoios finan-
ceiros do Estado às empresas ou oferta de crédito mais barato às empresas
através de bancos em que o Estado detém uma participação importante.
O efeito que têm nos mais capazes e talentosos, dada a função motivadora
dos incentivos financeiros, é torná-los mais produtivos. O papel central
que os mais capazes e talentosos têm na organização económica da socie-
dade levará, assim, a uma economia mais eficiente e rica.

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O caso seguinte é uma maneira simples mas útil de mostrar o que Rawls
pretende dizer quando fala de incentivos e eficiência.

Caso 1

Situação A — Igualdade estrita


O João e a Teresa sabem que terão uma parte igual no total de bens que produzirem.
A quantidade dos bens que produzem é de 200 unidades. O João e a Teresa recebem
100 unidades cada um.

Situação B — Desigualdade gerada por incentivos


A Teresa é muito talentosa e pode produzir muito mais se beneficiar de incentivos.
O incentivo oferecido à Teresa é o de receber 175 unidades pelo esforço adicional que
assim se espera dela. A quantidade de bens produzidos ascende a 300 unidades.
O João recebe 125 unidades, beneficiando da desigualdade gerada através do incen-
tivo concedido à Teresa, que melhorou a eficiência económica.

É por este motivo que existem desigualdades boas. O que explica que
Rawls, um igualitário, aceite desigualdades sociais e económicas é a eficiên-
cia económica dos incentivos. A subtileza consiste em que tratar as pessoas
como iguais não implica remover todas as desigualdades, mas apenas
aquelas que trazem desvantagens para os menos favorecidos. Se dar mais
dinheiro a uma pessoa do que a outra promover mais os interesses de
Juízo intuitivo
ambas do que simplesmente dar-lhes a mesma quantidade de dinheiro,
então uma consideração igualitária dos interesses não proibirá essa
Avalie a teoria da justiça de Rawls de
acordo com a sua primeira reação. desigualdade.
A — Verdadeira. A teoria da justiça de Rawls defende também desigualdades de oportuni-
dade, na condição de que elas não sejam vetadas pelos mais desfavoreci-
B — Atraente mas não verdadeira.
dos. Por exemplo, um sistema de ensino pode permitir aos estudantes mais
C — Duvidosa. dotados o acesso a maiores apoios educativos se, previsivelmente, empre-
D — Falsa. sas em dificuldade vierem a beneficiar mais tarde do seu contributo,
aumentando os lucros e evitando despedimentos.

Atividades

1 Segundo Rawls, o que há de errado no utilitarismo?

2 Rawls concordaria que darmos uma atenção especial aos menos favorecidos é compensá-los das condições sociais desfavoráveis
em que vivem? Porquê?

3 Quem são os menos favorecidos?

4 Por que razão há desigualdades boas?


Procure apoiar a resposta com um exemplo.

Debate

Será que pode haver tensão entre o princípio da liberdade igual e o princípio da diferença? Porquê?

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A justificação dos princípios de justiça
Rawls apresenta dois argumentos a favor dos princípios de justiça: o argu-
mento da posição original e o argumento intuitivo da justiça social.
O primeiro é um argumento a favor de todos os princípios de justiça que
formam a teoria da justiça como equidade. O segundo é um argumento
que defende diretamente o segundo princípio de justiça. Diz Rawls que
este argumento é o mesmo que o primeiro, mas apresentado de maneira
diferente.

O argumento da posição original


Vamos imaginar que nos encontramos numa situação hipotética de escolha.
A nossa tarefa é escolher os princípios de uma sociedade justa. É uma
tarefa, sem dúvida, particularmente difícil. Vemo-nos como partes que vão
celebrar um contrato, talvez o mais importante de todos: aquele que funda
a sociedade em que todos gostariam de viver; a sociedade que a nossa sensi-
bilidade moral veria como equitativa e justa. Uma tarefa tão difícil e impor-
tante tem de ser conduzida com todos os cuidados. Isto significa que
o processo de escolha dos princípios de justiça tem de ser, também ele,
justo. Ora, um processo de escolha justo tem de ser imparcial e todas as
partes nele envolvidas têm de ser tratadas como iguais. Como é que isto
pode ser assegurado? Segundo Rawls, através de uma situação hipotética,
a que chamou posição original.
A posição original define-se pelo que não sabemos e pelo que sabemos.
Para que o processo de escolha seja justo, não sabemos o que é indispensá-
vel não saber, e sabemos o que é indispensável saber.

Posição original
O que não sabemos O que sabemos

• A nossa classe e estatuto social. • Factos gerais acerca da sociedade


• A geração a que pertencemos. (por exemplo, leis da psicologia
• A nossa raça e género. e princípios de economia).
• A nossa sorte na distribuição das • Bens sociais primários que fazem parte
capacidades naturais. do plano racional de uma vida boa
• As circunstâncias particulares da nossa (os direitos e as liberdades,
sociedade (políticas, económicas as oportunidades e os poderes,
e sociais). o rendimento e a riqueza).
• A nossa conceção pessoal de bem. • Bens naturais primários que fazem parte
do plano racional de uma vida boa
(saúde, inteligência, força, imaginação,
talentos naturais).
• Conjunto de princípios que podem ser
escolhidos (princípios de justiça e regras
de prioridade, utilitarismo
e perfecionismo).

Quadro 2 — A posição original.

Há dois pontos que convém esclarecer. Os bens sociais primários são


diretamente distribuídos pelas instituições sociais, em que Rawls inclui
também as empresas. Os bens naturais primários não são, como é óbvio,
diretamente distribuídos pelas instituições sociais, mas são por elas
influenciados.

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A saúde que temos, por exemplo, é influenciada pelos meios e recursos de
saúde de que dispomos e pelo nosso rendimento. O perfecionismo, que
figura nos princípios que podem ser escolhidos, defende que uma socie-
dade justa procura maximizar a realização da excelência humana na arte,
ciência e cultura, ou, numa versão mais moderada, procura satisfazer o
princípio de perfeição ao mesmo tempo que outros princípios.
É esta a posição original em que nos encontramos. Porque estamos como
que cobertos por um véu de ignorância quanto à nossa situação particular,
a posição original impede-nos de usar vantagens negociais no importante
contrato que vamos celebrar para fundar uma sociedade justa.
Não sabemos se somos ricos, poderosos, inteligentes e dotados de bom
aspeto, ou se somos o contrário disso. Foram, assim, eliminadas do pro-
cesso de escolha dos princípios de justiça as contingências sociais e natu-
rais. Esta é a mais importante restrição a que um processo de escolha, para
ser justo, tem de estar sujeito. Só ela, na verdade, assegura uma escolha
imparcial. Vale a pena ler com atenção o modo como Rawls caracteriza esse
processo:
Fig. 7 — Cartaz do filme John Q. (2002),
realizado por Nick Cassavetes. Texto 9
Este filme mostra que a distribuição dos
recursos de saúde levanta com especial A ideia é simplesmente a de realçar as restrições que parece razoável introduzir quanto
intensidade o problema fundamental da aos argumentos para os princípios de justiça e, portanto, quanto aos próprios princípios.
justiça na distribuição da riqueza. Assim, parece razoável, e geralmente aceitável, que na escolha desses princípios nin-
guém deve ser beneficiado ou prejudicado pela fortuna natural ou pelas circunstâncias
sociais. Parece também largamente aceite que não deve ser possível traçar princípios em
função da situação própria de cada um. Devemos ainda assegurar que as inclinações e
aspirações particulares, bem como as conceções de cada um sobre o seu próprio inte-
resse, não afetam os princípios adotados. O objetivo é excluir aqueles princípios que seria
racional tentar fazer aprovar, por menor que fosse a possibilidade de sucesso, em função
do conhecimento de certos dados que são irrelevantes do ponto de vista da justiça.
Por exemplo, se alguém soubesse que era rico, poderia achar racional tentar a aprovação
do princípio de que são injustos os impostos que financiam medidas de natureza social;
se a mesma pessoa soubesse que era pobre, iria provavelmente propor o princípio con-
trário. Para obter as restrições desejadas, é necessário imaginar uma situação em que
todos os intervenientes estão desprovidos de informações desta natureza. Exclui-se, por-
tanto, o conhecimento dos acasos que afastam os homens uns dos outros e permitem
que eles se deixem guiar pelo preconceito. Deste modo, o véu de ignorância é atingido
de forma natural.
John Rawls, Uma Teoria da Justiça.
Editora Princípia, 2001, p. 38.

Estando desprovidos de informação sobre a sua situação particular, os


intervenientes no contrato fazem uma escolha com base apenas nas consi-
derações gerais relevantes para ter uma vida boa. Excluir as contingências
sociais e naturais do processo de escolha equivale a pôr de lado todas as
considerações moralmente arbitrárias e injustificadas, como seria o caso se
atendêssemos a considerações de pobreza ou de riqueza.
Além de imparcial, por impedir vantagens negociais, o processo de escolha
é, então, racional, por atender apenas a considerações moralmente justifi-
cadas. É nele, aliás, que reside a chave para a compreensão da justiça como
equidade, que se verifica apenas quando o próprio processo de escolha
é equitativo. E um processo de escolha é equitativo na medida em que nele
todos se encontram numa posição de igualdade.

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Temos agora de escolher os princípios que devem governar a sociedade em
que a nossa sensibilidade moral nos levaria a gostar de viver. Eles serão o
guia mais seguro para podermos dizer, quando finalmente libertos do véu
de ignorância, que chegamos a um mundo justo. A escolha dos princípios
na posição original parece coincidir com o teste intuitivo de justiça. Vamos
então imaginar, por razões de simplificação, que são três os mundos possí-
veis a que podemos chegar, cada um constituído por três pessoas. O padrão
de distribuição de bens sociais primários nesses mundos tem uma escala
que vai de 1 a 10.

Teste intuitivo de justiça:


Mundo 1: 9, 8, 3.
Mundo 2: 10, 7, 2.
Mundo 3: 7, 6, 5.
Em qual destes mundos escolheríamos viver?

É muito provável que a nossa sensibilidade moral, com as suas intuições de


igualdade e justiça, nos conduza ao mundo 3. É essa a resposta de Rawls.
E é esse o mundo que assegura uma parte maior de bens sociais primários;
é ele que, na verdade, garante o melhor acesso possível a esses bens. Ponde-
radas as alternativas, intuitivamente preferimos que o pior resultado seja o
melhor possível, e não que o melhor resultado seja o melhor possível. Esta
é também a solução racional para o problema da justiça social. Trata-se da
solução maximin, que é assim conhecida por assegurar a maximização do
mínimo. Ora, dos princípios que podemos escolher, os princípios de justiça
propostos por Rawls sobressaem como aqueles que se ajustam à solução
maximin. Se as nossas intuições de igualdade e justiça nos conduzem ao
mundo 3, chegados lá, veremos que os menos favorecidos têm a melhor
situação possível no que respeita a liberdades, oportunidades e rendimento.
A solução maximin para o problema da justiça social é contrária ao utilita-
rismo. Garantindo a compensação mínima mais alta, o bem de uns quantos
não pode ser sacrificado pelo maior bem do maior número. Se comparar-
mos as alternativas presentes no teste referido, veremos que a soma total de
bens sociais do mundo 1 é 20, ao passo que no mundo 3 é 17. Este é,
assim, menos rico do que o mundo 1, mas sem dúvida mais igualitário.
É genuína a preocupação que revela pelos menos favorecidos, que tem
nesse mundo uma expressão prática clara: os menos favorecidos alcançam
nele o nível 5 na escala de distribuição de bens sociais primários, mas
ficam-se pelos níveis 3 e 2 nos outros mundos.
É verdade que os outros dois padrões de distribuição têm uma utilidade
média mais alta (a utilidade média obtém-se dividindo a riqueza total pelas
pessoas existentes). Mas só temos uma vida para viver e nada sabemos
sobre qual será a nossa posição mais provável nos outros dois padrões.
Por isso, a escolha do mundo 3 é mais racional e compatível com as nossas
intuições de igualdade e justiça. E o que diz o princípio da diferença?
Diz justamente que a sociedade deve promover a distribuição igual da
riqueza, a menos que as desigualdades económicas e sociais beneficiem
o mais possível os menos favorecidos. E a verdade é que nenhuma das
desigualdades dos mundos 1 e 2 gerou grandes benefícios para os menos
afortunados, que neles se encontram numa situação que fere a nossa sensi-
bilidade moral.

Ética, direito e política 169

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O argumento intuitivo da justiça social
Dissemos já que este argumento é o mesmo que o argumento da posição
original, mas apresentado de maneira diferente. Além disso, ocupa-se ape-
nas do segundo princípio, nas suas duas alíneas, isto é, ensaia uma defesa
do princípio da oportunidade justa e do princípio da diferença.
Este argumento apela à nossa intuição de que o destino das pessoas deve
depender das suas escolhas, e não das circunstâncias em que por acaso
se encontram. Ninguém merece ver as suas escolhas e ambições negadas
pela circunstância de pertencer a uma certa classe
social ou etnia, ou pela circunstância de ter uma
deficiência.
Por exemplo, não é plausível que uma pessoa
de uma certa etnia, pelo simples facto de o ser,
encontre resistências à possibilidade de liderar um
país; ou que uma pessoa deficiente, pelo simples
facto de o ser, não seja aceite num emprego para
o qual é perfeitamente capaz. Estas são circunstân-
cias que a igualdade de oportunidades deve elimi-
nar. Se assim é, pensa Rawls, isso talvez queira
dizer que tais circunstâncias não se ajustam à
nossa intuição de igualdade de oportunidades.
É preciso averiguar em que condições as desigual-
dades sociais e económicas estão justificadas
perante a nossa intuição de igualdade de oportu-
nidades. Este é o problema a que o argumento
intuitivo da justiça social procura dar resposta.
Como é que o faz? Testando diferentes princípios
de igualdade de oportunidades para ver se eles se
ajustam à nossa intuição de igualdade de oportu-
nidades. Caso não se ajustem, isso significa que
Fig. 8 — Cada um e a sua circunstância. permitem desigualdades sociais e económicas
As circunstâncias sociais e naturais em que nos encontramos não podem, injustificadas.
segundo Rawls, determinar o nosso lugar na sociedade. Vejamos então como é construído o argumento.

Igualdade de oportunidades formal:


Todos têm o direito legal de aceder a todas as posições sociais
vantajosas. Todas as carreiras estão abertas ao talento.

Este princípio de igualdade de oportunidades tem a virtude de eliminar


barreiras legais arbitrárias às perspetivas de vida de cada um, como leis que
discriminam o acesso das mulheres a certos lugares, por exemplo. Trata-se,
portanto, de igualdade na lei. Mas tem o defeito de ignorar a influência das
contingências sociais e naturais e da sorte — essas lotarias de fatores moral-
mente arbitrários — na parte que cada um tem na distribuição de bens
sociais primários. Que alguém tenha nascido e crescido num meio social
particularmente difícil, por exemplo, não é tido em consideração por este
princípio. No entanto, ninguém merece nascer numa determinada posição
social, seja ela qual for. Por isso, a igualdade de oportunidades formal,
permitindo desigualdades sociais e económicas injustificadas, não está de
acordo com a nossa intuição de igualdade de oportunidades.

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Igualdade de oportunidades liberal:
Todos têm o direito legal de aceder a todas as posições sociais
vantajosas e o direito de ver eliminada, ou pelo menos minimizada,
a influência das contingências sociais nas suas oportunidades.

Este princípio procura responder às limitações do anterior. Pessoas com o


mesmo talento, mas de classes sociais diferentes, não devem ver as suas
oportunidades de educação, por exemplo, sujeitas à barreira erguida pela
lotaria social. As perspetivas de sucesso de pessoas com os mesmos talen-
tos e capacidades não devem ser comprometidas pelo lugar que ocupam
na sociedade. Seria injusto se assim fosse, segundo este princípio, que
parece, portanto, mais ajustado à nossa intuição de igualdade de oportuni-
dades. Todos têm então oportunidades iguais, de maneira que vejam uma
possibilidade razoável de chegar às carreiras para que exibem talento e
capacidades.
Rawls admite que o princípio de oportunidades liberal é um passo na dire-
ção certa, mas que não resolve uma dificuldade séria. Por isso, afirma o
seguinte:

Texto 10

A dimensão do desenvolvimento das capacidades naturais e a forma como frutificam são


afetadas por toda a sorte de condições sociais e atitudes de classe. Mesmo a vontade de
fazer um esforço, de tentar e, portanto, de ser merecedor no sentido corrente da expres-
são depende de uma conjugação feliz de circunstâncias sociais e familiares. Na prática, é
impossível assegurar iguais possibilidades de sucesso e cultura a todos aqueles que são
dotados de modo semelhante e, portanto, podemos preferir adotar um princípio que
reconheça este facto e limite os efeitos da cega lotaria natural. O facto de a conceção
liberal o não conseguir fazer reforça o interesse na busca de outra interpretação para os
dois princípios de justiça.
John Rawls, Uma Teoria da Justiça.
Editora Princípia, 2001, p. 77.

Rawls diz-nos que o desenvolvimento das capacidades naturais está sujeito


à influência das condições sociais. Na prática, pessoas com os mesmos
talentos e capacidades não têm as mesmas perspetivas de sucesso, ainda
que gozem de oportunidades justas e iguais. Logo, também a igualdade de
oportunidades liberal não parece ajustar-se à nossa intuição básica de igual-
dade de oportunidades. Isto porque não é suficiente para minimizar os
efeitos da lotaria natural.
O que fazer então? Rawls sugere que é necessário um princípio que limite o
impacto das contingências naturais nas perspetivas de sucesso de cada um.
Até porque, além de pessoas igualmente dotadas nas suas capacidades
naturais, mas com perspetivas de sucesso desiguais, há pessoas que nascem
com menos talentos e capacidades naturais. Assim, o destino de um defi-
ciente, ou de alguém com um QI baixo, não deve ser determinado por
esses azares na lotaria natural. É injusto que, em relação a estes problemas,
nada seja feito.
Se oportunidades iguais limitam com sucesso apenas as contingências
sociais, algo mais tem de ser feito para responder também à lotaria natural.

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Igualdade de oportunidades democrática:
Todos têm o direito legal de aceder a todas as posições sociais
vantajosas, o direito de ver eliminada, ou pelo menos minimizada,
a influência das contingências sociais nas suas oportunidades e o
direito de ver minimizada a influência das contingências naturais
nas suas perspetivas de sucesso.

Este princípio procura dar resposta ao fracasso da igualdade de oportuni-


dades liberal em ajustar-se à nossa intuição de igualdade de oportunidades.
Por isso, atende também aos efeitos da lotaria natural, levando mais longe
a tentativa de minimizar a influência dos fatores moralmente arbitrários nas
perspetivas de sucesso de cada um. Por que razão uma sociedade justa
implica mais este passo? Porque será muito difícil que os menos favoreci-
dos vejam razoavelmente melhoradas as suas perspetivas de sucesso se
beneficiarem apenas de oportunidades iguais.
É, então, necessária uma compensação adicional. Só um princípio de redis-
tribuição do rendimento pelos menos favorecidos parece poder oferecê-la.
Se as desigualdades económicas permitirem a melhor compensação possí-
vel, e Rawls pensa que sim, elas são desejáveis. Está assim justificado, além
do princípio da oportunidade igual, o princípio da diferença, que tem um
papel decisivo: dele depende um ajustamento bem-sucedido da teoria da
justiça de Rawls à nossa intuição de igualdade de oportunidades. Isso é
claro na seguinte passagem:

Texto 11

A interpretação democrática […] é obtida pela combinação do princípio da igualdade


equitativa de oportunidades com o princípio da diferença.
John Rawls, Uma Teoria da Justiça. Editora Princípia, 2001, p. 78.

Juízo intuitivo

Avalie estes argumentos de acordo com a sua primeira reação.


A — Convincentes. C — Duvidosos.
B — Atraentes mas não convincentes. D — implausíveis.

Atividades

1 Descreva a situação hipotética de escolha apresentada no argumento da posição original.

2 O que é um processo de escolha justo?

3 Que teste intuitivo de justiça é proposto por Rawls?

4 Explique a solução para o problema da justiça social que resulta do teste intuitivo de justiça.

5 A que teste recorre o argumento da justiça social para saber qual é o princípio correto de igualdade de oportunidades?

6 Por que razão fracassa o princípio liberal de igualdade de oportunidades?

7 A igualdade de oportunidades democrática é bem-sucedida no teste conduzido pelo argumento da justiça social. Porquê?

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7.2.2  Uma avaliação crítica da teoria de Rawls
A teoria da justiça como equidade de Rawls é um instrumento poderoso de
avaliação normativa das sociedades. Não é de espantar, por isso, que tenha
estimulado um debate intenso, especialmente acerca do princípio da dife-
rença. Como sucede em todos os debates proveitosos, as limitações e os
méritos da teoria são agora mais salientes. Veremos primeiro as limitações
que as críticas revelaram e depois os méritos que, apesar das críticas, tor-
nam a teoria atraente.

Limitações da teoria da justiça de Rawls


Circunstâncias e escolhas
Uma pessoa não é responsável pelas circunstâncias em que se encontra,
mas é pelas suas escolhas. Esta distinção entre circunstâncias e escolhas faz
parte da nossa intuição básica de justiça.
Vejamos os casos seguintes. Vamos imaginar que duas pessoas têm as mes-
mas liberdades, oportunidades e recursos. A sua posição inicial é de igual-
dade no que respeita aos bens sociais primários de que dispõem. Uma das
pessoas tem o azar de contrair uma doença grave, crónica e incapacitante.
Esta desvantagem natural implica custos na ordem dos duzentos euros por
mês em cuidados médicos e em equipamentos. O que oferece a teoria de
Rawls a esta pessoa? Contra o que à partida se poderia pensar, a teoria de
Rawls não prevê a possibilidade de a compensar. Porquê? Porque os menos
favorecidos são aqueles que têm um certo conjunto de bens sociais primá-
rios; a circunstância em que passem a encontrar-se não é relevante para
determinar quem é menos favorecido e quem não é. Ora, neste caso, entre
as duas pessoas não existem diferenças relevantes em termos de bens
primários.
Claro que a influência das contingências naturais nas perspetivas de cada
um deve ser minimizada. No entanto, Rawls não enriqueceu devidamente
a sua teoria com a distinção entre circunstâncias e escolhas. Isso levou a
que não tivesse em conta custos não escolhidos e causados apenas por cir-
cunstâncias infelizes. Na prática, a pessoa é responsabilizada pelas circuns-
tâncias em que por acaso se encontra. Daí resultam injustiças, como é
exemplificado por este caso tão comum e frequente. E também pelo caso
seguinte, que é como que a outra face do mesmo problema.
Imaginemos duas pessoas que trabalham na mesma empresa de eletrodo-
mésticos. As suas funções são idênticas e têm, por isso, os mesmos recursos
económicos. Têm ainda em comum os mesmos talentos naturais e antece-
dentes sociais. Uma delas é apaixonada por futebol e gasta uma parte
razoável do seu rendimento nas deslocações permanentes que faz para
apoiar o seu clube. Somadas as outras despesas inevitáveis de uma família,
nada sobra. Por vezes, esta família tem mesmo de recorrer a apoio social
do Estado. A outra resolveu estudar sistemas elétricos depois do horário
normal de trabalho. Após um período de estudo, compra o equipamento
necessário e resolve vender os seus serviços de eletricista das seis da tarde
às nove da noite. Com muitas horas de trabalho, esforço e competência,
duplica o rendimento inicial. O princípio da diferença diz que as desigual-
dades de rendimento são permitidas no caso de beneficiarem os menos
favorecidos. Que consequência tem a sua aplicação a este caso? A conse-
quência de fazer o apaixonado por futebol beneficiar do rendimento do
eletricista esforçado.

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A conclusão que podemos inferir destes exemplos de injustiça é clara.
Do mesmo modo que não devemos responsabilizar seja quem for pelas
circunstâncias em que por caso se encontra, devemos responsabilizar seja
quem for pelas suas escolhas. Tal como é injusto não compensar custos não
escolhidos, também é injusto compensar custos escolhidos.
Rawls afirma que a sua teoria da justiça tem a preocupação de regular
as injustiças que resultam das circunstâncias, e não das escolhas, mas não
enriqueceu devidamente a sua teoria com a distinção entre circunstâncias
e escolhas. Isto levou a que não fizesse a distinção entre desigualdades
escolhidas e desigualdades determinadas pelas circunstâncias. Por isso,
a aplicação do princípio da diferença conduz a resultados que violam a
nossa intuição de justiça.

Motivos e incentivos
O princípio da diferença admite que há desigualdades boas. Se uma desi-
gualdade gerar os maiores benefícios para os menos favorecidos, então ela
é bem-vinda a uma sociedade justa. Este resultado bom para os menos
favorecidos consegue-se oferecendo incentivos financeiros aos mais capazes
e talentosos.
Rawls admite também que, numa sociedade justa, os mais talentosos são
motivados pelo princípio da diferença, procurando ajudar o mais possível
os menos favorecidos e abster-se de explorar em seu favor as vantagens
sociais e naturais de que dispõem. Mas, se assim é, porque precisam eles
de incentivos financeiros para criar mais riqueza e beneficiar os menos
favorecidos?
Uma coisa, segundo esta crítica, são
incentivos realmente necessários, dada a
dureza de certos tipos de trabalho; outra
coisa são incentivos sem os quais os
talentosos escolhem não trabalhar de
maneira tão produtiva. Estes não se justi-
ficam numa sociedade com uma cultura
de justiça moldada pelo princípio da
diferença. Os mais talentosos, nesse caso,
têm motivações justas, e isso é o que
Rawls esperaria deles. No entanto, exi-
gindo incentivos para o seu talento, não
são primariamente motivados pela preo-
cupação com os menos favorecidos,
expressa no princípio da diferença. Não
têm, portanto, uma motivação justa. Se a
tivessem, para que quereriam incentivos?
Porque agiriam eles, nessa circunstância,
tentando maximizar incentivos? Não
estarão eles a explorar as suas vantagens
socias e naturais contingentes?
Fig. 9 — Repórter de guerra. Se a nossa resposta a esta pergunta for
Os incentivos devem destinar-se aos mais talentosos, de maneira que eles gerem positiva, não se percebe por que razão
benefícios para os menos favorecidos, ou devem compensar a dureza de certos tipos procurou Rawls sustentar a confiança no
de trabalho? princípio da diferença em incentivos.

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Direito à propriedade e justiça
Há coisas que são nossas, e é justo que sejam nossas e de mais ninguém.
Por outras palavras, temos direito à propriedade dessas coisas. Trata-se de
um direito particular a que, muito provavelmente, poucos renunciariam.
O que justifica esse direito à propriedade de certos bens é o facto de a sua
aquisição ser justa. Resta saber o que é uma aquisição justa. Ora, uma aqui-
sição justa é a que resulta de passos justos. Esta definição não é inteira-
mente clara: precisamos agora de saber o que são passos justos. Passos
justos são passos dados de maneira completamente voluntária. Assim, se
uma transação entre duas pessoas é feita de modo completamente voluntá-
rio, o que através dela se adquire é justo. Passamos a ter, nesse caso, direito
à propriedade do bem adquirido.
Para percebermos melhor que implicações este direito à propriedade pode
ter, vejamos um caso construído a partir de Wilt Chamberlain, um famoso
jogador de basquetebol.

Caso 2

Wilt Chamberlain é um jogador de basquetebol em alta. A sociedade em que vive distribui


a riqueza segundo o princípio da diferença, ou segundo o princípio «a cada um segundo
as suas necessidades», ou então segundo o princípio que considerarmos mais correto —
podemos escolher o princípio que quisermos. A esta distribuição de riqueza vamos chamar
D1. Depois de várias propostas, Wilt Chamberlain decide assinar o seguinte contrato com
uma equipa: nos jogos em casa, recebe 25 cêntimos por cada bilhete de entrada. O entu-
siasmo à volta de Wilt Chamberlain é grande. Como é de facto muito bom, vale realmente
a pena pagar o bilhete para o ver jogar. A época termina e um milhão de pessoas viu os
jogos. Chamberlain ganhou 250 mil euros. O rendimento obtido é bem maior do que o
rendimento médio. Gera-se, assim, uma nova distribuição de riqueza na sociedade em
questão, a que vamos chamar D2.
Será esta nova distribuição de riqueza injusta? Na situação D1, o rendimento das pessoas
era legítimo: não havia protestos de terceiros para que se redistribuísse riqueza que foi
voluntariamente adquirida. Nenhuma questão aí se levantava acerca do direito de cada um
controlar os seus recursos. Depois as pessoas escolheram dar 25 cêntimos do seu rendi-
mento a Chamberlain, gerando-se a distribuição D2. Haverá agora lugar a reclamações de
terceiros que nada reivindicavam antes e que, bem vistas as coisas, mantêm o mesmo
rendimento? Que razão há para se redistribuir a riqueza? Que razão tem o Estado para Fig. 10 — Wilt Chamberlain.
interferir no rendimento de Chamberlain, cobrando-lhe agora impostos elevados?
Nome mítico da NBA, liga norte-americana
Se considerarmos que é justa a distribuição de riqueza que resulta de passos completa- de basquetebol, bateu mais de setenta
mente voluntários, então a situação D2 é justa. Mas, se é justa, a riqueza obtida por Cham- recordes. Um deles, simplesmente fabuloso,
berlain não tem de ser redistribuída de maneira a gerar os maiores benefícios para os foi o de fazer 100 pontos num só jogo.
menos favorecidos. Morreu em 1999.

Este é, assim, um caso contrário ao princípio da diferença, e favorável a um


outro princípio, conhecido como princípio da transferência, segundo o qual
tudo o que é adquirido de modo justo pode ser livremente transferido. Isto
quer dizer que podemos redistribuir esse rendimento pelos menos afortuna-
dos se assim o entendermos. O direito particular à propriedade é absoluto e,
nessa medida, não pode ser suplantado por um dever geral redistributivo.
Se assim for, o que fazer em relação às desigualdades naturais que condenam
à pobreza pessoas cujos talentos não são rentáveis no mercado? Podemos ter,
e de facto temos, uma forte intuição a favor da compensação de desigualdades
não escolhidas. É louvável e meritório que os mais afortunados ajudem os que
o são menos, ou os que o não são de todo; mas não é uma obrigação, uma vez
que o direito particular à propriedade, segundo esta crítica, é absoluto.
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Méritos da teoria da justiça de Rawls
Justiça social
O ideal de justiça social é, de todos, o mais complexo, pois tem de articular
valores que tomam direções diferentes e mesmo opostas — a liberdade e a
igualdade. Rawls não se furtou a esse desafio e apresentou uma solução que
concilia de maneira atraente liberdade e igualdade. Assim, as desigualdades
geradas pelo exercício das liberdades individuais podem contribuir decisi-
vamente para uma sociedade mais igualitária. Esta solução inteligente é hoje
central no debate sobre o problema da justiça social. Rawls parece ter tido
o mérito de captar o problema político do seu tempo e de mostrar simulta-
neamente que esse problema é, afinal, um problema básico da humanidade.

Escolha imparcial
Rawls teve o mérito de proporcionar uma compreensão mais clara da enorme
importância de processos de escolha imparciais numa sociedade justa. Uma
sociedade justa não é aquela que realiza os valores de liberdade e igualdade.
Uma sociedade justa é aquela que realiza esses valores por meios justos, que
consistem em processos de escolha imparciais. Isto significa, na verdade,
que é já nos processos de escolha que se realizam os valores de liberdade
e igualdade. A posição original oferece-nos uma maneira palpável de conduzir
Fig. 11 — Fotograma do filme Redenção
processos de escolha imparciais. Mostra-nos como podemos ser intervenien-
(2011), realizado por Marc Forster. tes iguais e livres nesses processos. Isto permite ainda compreender que a
Este filme mostra que fazer o bem pode exigir democracia implica mais do que votar uma vez de quatro em quatro anos.
empenhamentos arriscados. Nessas É decisivo que nela se proceda regularmente a escolhas imparciais. Se assim
circunstâncias, ter autonomia é decisivo. não for, terá sérias limitações e, um dia, sérios problemas de justiça social.

Autonomia
Avaliação crítica A autonomia envolve também a posição original. Kant, como sabemos, deu
um lugar de destaque à autonomia moral. Rawls, um admirador de Kant,
Assinale agora a sua avaliação ponderada mostrou o que é termos autonomia nas nossas escolhas sociais. Esse é um
da teoria da justiça de Rawls. dos seus principais méritos. Temos autonomia quando procuramos que as
A — Verdadeira. nossas escolhas se façam de acordo com a posição original. Só assim sere-
B — Atraente mas não verdadeira.
mos capazes de nos libertarmos, tanto quanto possível, das contingências
sociais e naturais que, diria Kant, geram em nós inclinações contrárias à
C — Duvidosa. moralidade. Não só contrárias à moralidade, diz agora Rawls, mas também
D — Falsa. contrárias a uma sociedade justa. A autonomia é, então, a capacidade de
nos elevarmos acima das contingências.

Atividades

1 Exemplifique circunstâncias e escolhas que não são devidamente consideradas pela teoria da justiça de Rawls.

2 Se os talentosos tiverem motivações justas, precisam de incentivos? Justifique a sua resposta.

3 Explique em que medida o caso Wilt Chamberlain pode ser visto como um exemplo contrário ao princípio da diferença.

Debate

«Se o Estado não redistribuir a riqueza cobrando impostos, os pobres perpetuarão a pobreza e os ricos perpetuarão a riqueza. Mas se o Estado
cobrar impostos em função da riqueza, os ricos ficam com menos capacidade de investimento e os pobres terão menos hipóteses de sair da
pobreza.» Como reagiria Rawls a estas afirmações? E os críticos que se apoiam no caso Wilt Chamberlain?

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7.3 Igualdade e diferenças
Ouvimos com alguma frequência que somos todos
iguais e todos diferentes. O que pode haver de inte-
ressante nesta ideia? Muito provavelmente, que há
uma natureza comum a todos os seres humanos
merecedora de respeito; e que há diferenças inultra-
passáveis que devemos igualmente respeitar. O pro-
blema é que, por vezes, estas diferenças geram confli-
tos muito sérios entre valores que não sabemos como
resolver. Vejamos como as coisas se passam.
Há conflitos de valores resolúveis por meio de ajusta-
mentos recíprocos. Um exemplo de como isto se faz
pode ser encontrado no movimento dos direitos civis
e no modo como Martin Luther King, de que já falá-
Fig. 12 — Manifestação contra filme americano anti-islão.
mos, defendeu iguais direitos para os negros. Apelando
à Declaração de Independência, à Constituição Ame- A diferença entre os que defendem a liberdade de pensamento e os que
a restringem por motivos religiosos é irresolúvel.
ricana e à Bíblia, mostrou que a negação dos direitos
civis aos negros era incoerente com os valores consa-
grados nesses textos, e que os americanos pareciam apregoar. Provou, por-
tanto, que negar direitos aos negros era contrário aos valores defendidos
pelos americanos. Para que estes formassem um conjunto coerente, era
necessário que se justassem às exigências de igualdade propostas pelo movi-
mento dos direitos civis. Foi a esse resultado que o debate moral conduziu.
Mas há conflitos de valores que não parecem resolúveis. Há casos em que não
é possível encontrar valores partilhados por ambos os lados, a partir dos
quais o conflito pode ser resolvido por ajustamentos recíprocos. Rawls
descreve assim essas diferenças irresolúveis:

Texto 12

Os nossos pontos de vista individuais e associativos, afinidades intelectuais e ligações


afetivas são demasiado diversos, especialmente numa sociedade democrática livre, para
permitirem acordos duradouros e razoáveis. Muitas conceções do mundo podem
plausivelmente ser construídas a partir de diferentes posições. A diversidade surge
naturalmente dos nossos poderes limitados e perspetivas distintas; é irrealista supor que
todas as nossas diferenças têm origem apenas na ignorância e perversidade, ou então
nas rivalidades que decorrem da miséria. A justiça como equidade procura construir uma
conceção de justiça que toma diferenças profundas e irresolúveis em questões de impor-
tância fundamental como uma condição permanente da vida humana.
John Rawls, «Kantian Constructivism in Moral Theory»,
in The Journal of Philosophy, vol. 77, n.º 9, 1980, pp. 515-572.

Resta saber que diferenças irresolúveis fazem parte da nossa condição. Isso
é muito importante porque, sabendo que são irresolúveis, talvez as pessoas
passem a respeitar mais as suas diferenças.

Atividades

1 Como podem ser resolvidos alguns conflitos de valores?

2 O que são diferenças irresolúveis?

Ética, direito e política 177

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Ideias-chave

Ética, direito e política


• O domínio da ética é diferente do domínio do direito, ainda • Os três princípios de justiça têm prioridade sobre o princípio
que deva haver uma conexão entre os dois. utilitarista da maximização da utilidade.
• Nem tudo o que é legal é moral e nem tudo o que é ilegal é • Rawls critica o utilitarismo por este não atribuir valor intrín-
imoral. seco à igualdade e considerar que a justiça social consiste na
• Nem tudo o que é moralmente correto deve refletir-se na lei. maximização da utilidade, cometendo assim o erro de não
atender à inviolabilidade de cada pessoa.
• A desobediência civil é um ato pacífico, determinado pela
consciência individual, contra injustiças legais praticadas • O igualitarismo de Rawls define-se por dedicar uma atenção
pelo Estado. especial aos menos favorecidos.

• A justiça como equidade é um ideal normativo pelo qual são • Os menos favorecidos são aqueles que têm três tipos de
julgadas as instituições sociais, políticas e económicas da azar: natural, social e o de simplesmente não terem sorte.
sociedade. • As desigualdades boas são aquelas que geram os maiores
• A justiça como equidade propõe um modo socialmente benefícios para os menos favorecidos; estão associadas a
justo de distribuir os direitos e deveres dos cidadãos e os incentivos que melhoram a eficiência económica e tornam a
benefícios da cooperação social. sociedade mais rica.

• O ideal normativo da justiça como equidade é formado por • Gerar mais riqueza é bom porque a sociedade passa a ter
princípios de justiça social. mais riqueza para redistribuir pelos menos favorecidos.

• A teoria da justiça de Rawls defende que a liberdade e a • O argumento da posição original é uma defesa dos princí-
igualdade são valores compatíveis. pios de justiça, e o argumento da justiça social é uma defesa
do princípio da diferença.
• Uma sociedade justa é aquela que se orienta pelos valores de
liberdade e igualdade na distribuição dos direitos e deveres • O argumento da posição original defende que os princípios
dos cidadãos e na divisão dos benefícios e encargos da coope- de justiça seriam escolhidos numa negociação imparcial.
ração social, proporcionando desse modo justiça social. • Uma negociação é imparcial quando os que nela intervêm
• A teoria da justiça de Rawls propõe três princípios: o princí- estão como que cobertos por um véu de ignorância quanto
pio da liberdade igual, o princípio da oportunidade justa e o à sua situação particular.
princípio da diferença. • O argumento da justiça social defende que o princípio da
• O princípio da liberdade igual diz que a sociedade deve asse- diferença tem a capacidade de limitar a influência das con-
gurar a máxima liberdade para cada pessoa compatível com tingências sociais e também das naturais nas perspetivas de
uma liberdade igual para todos os outros. sucesso de cada um, ajustando-se à nossa intuição de igual-
dade de oportunidades.
• O princípio da oportunidade justa diz que as desigualdades
económicas e sociais devem estar ligadas a postos e posi- • A teoria da justiça de Rawls enfrenta as seguintes objeções:
ções acessíveis a todos em condições de justa igualdade de não tem devidamente em conta a distinção entre circuns-
oportunidades. tâncias e escolhas; numa cultura de justiça moldada pelo
princípio da diferença, os mais talentosos teriam motivações
• O princípio da diferença diz que a sociedade deve promover justas, não precisando de incentivos; o direito particular à
a distribuição igual da riqueza, exceto se a existência de desi- propriedade, dado que é absoluto, não deixa espaço para
gualdades económicas e sociais gerar os maiores benefícios deveres gerais redistributivos.
para os menos favorecidos.
• Os méritos da teoria da justiça de Rawls são: concilia de
• A aplicação dos princípios de justiça está submetida a regras maneira atraente liberdade e igualdade para atender ao valor
de prioridade: o princípio da liberdade igual tem prioridade de justiça social; proporciona uma compreensão mais clara da
sobre os outros dois e o princípio da oportunidade igual tem importância dos processos de escolha imparciais; mostra o
prioridade sobre o princípio da diferença. que é termos autonomia nas nossas escolhas sociais.

Para aprofundar conhecimentos

Leituras:
Nagel, Thomas — «Justiça», in Que Quer Dizer Tudo Isto? Lisboa: Gradiva, 1995 [ed. original 1987].
Rachels, James — «Como Seria Uma Teoria Moral Satisfatória?», in Elementos de Filosofia Moral. Lisboa: Gradiva, 2004
[ed. original 2003].
Rosas, João Cardoso —«A Concepção Liberal‐Igualitária», in Concepções de Justiça. Lisboa: Edições 70, 2011.
Wolff, Jonathan — «A Distribuição da Riqueza», in Introdução à Filosofia Política. Lisboa: Gradiva, 2004 [ed. original 1996].

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Esquema-síntese

Ética, direito e política

Nem tudo o que é moralmente


São domínios que devem correto deve refletir-se na lei.
estar articulados, mas que
são diferentes. Nem tudo o que é legal é moral e
Ética e direito nem tudo o que é ilegal é imoral.

respondem
à exigência de uma

Sociedade justa

É governada por três princípios de justiça, segundo Rawls

Princípio
Princípio Princípio
da oportunidade
da liberdade igual da diferença
igual

são justificados por

Argumento da posição original

Argumento intuitivo
da justiça social

Filmes:
John Q. (2002), realizado por Nick Cassavetes.
Redenção (2011), realizado por Marc Forster.

Páginas da Internet:
http://criticanarede.com/pol_justica2.html (artigo «Justiça Distributiva», de Harry Gensler)
http://criticanarede.com/pol_justica.html (artigo «A Teoria da Justiça de John Rawls», de Faustino Vaz)

Ética, direito e política 179

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TESTE FORMATIvO 7

CLASSIFIQUE AS AFIRMAÇÕES SEGUINTES COMO vERDADEIRAS OU FALSAS.

  1.  É justificado afirmar que toda a moralidade deve estar refletida na lei.

  2.  A relação entre a ética e o direito é pacífica.

  3.  As leis devem ser sujeitas a avaliação moral.

  4.  É a ética que exerce pressão sobre o direito, e não o contrário.

  5.  Uma ação ilegal é imoral.

  6.  Uma ação legal pode ser imoral.

  7.  Uma ação moral é legal.

  8.  O
  direito é completamente autónomo em relação à ética e não se justifica que deva haver
uma conexão entre os dois domínios.

  9.  A teoria da justiça como equidade é uma teoria descritiva.

10.  A
  teoria da justiça como equidade propõe um modo socialmente justo de proceder à distribuição
dos direitos e deveres fundamentais e dos benefícios que resultam da cooperação social.

11.  A teoria da justiça como equidade é uma teoria da justiça para a conduta privada dos indivíduos.

12.  A teoria da justiça como equidade não permite fazer uma avaliação normativa das sociedades.

13.  A
  teoria da justiça como equidade pressupõe que a sociedade é uma soma de indivíduos.

14.  A
  teoria da justiça como equidade pressupõe que cada cidadão é livre de rever racionalmente
a sua conceção de bem.

15.  O sentido de justiça é uma capacidade que deve ser reconhecida a qualquer cidadão.

16.  S
  egundo Rawls, a justiça social resulta da articulação de dois valores fundamentais — o valor
da liberdade e o valor da igualdade.

17.  Segundo a teoria da justiça de Rawls, a liberdade e a igualdade são incompatíveis.

18.  A
  teoria da justiça de Rawls é formada por um princípio de liberdade.

19.  N
  ão há justiça social, segundo Rawls, se a riqueza não for distribuída de maneira a gerar
os maiores benefícios para os menos favorecidos.

20.  O
  princípio da oportunidade justa determina, por exemplo, que os estudantes mais dotados
gozem de oportunidades de educação melhores do que os estudantes menos dotados.

21.  O
  princípio da oportunidade justa pode determinar que os estudantes mais dotados gozem
de oportunidades de educação melhores do que os estudantes menos dotados.

22.  A
  s regras de prioridade na aplicação dos princípios de justiça implicam que a redistribuição
de riqueza pelos menos favorecidos suplante a liberdade.

23.  R
  awls é um liberal porque defende que a liberdade é inegociável.

24.  Podemos abdicar das liberdades básicas em troca de grandes compensações financeiras.

25.  A teoria da justiça de Rawls aceita o princípio utilitarista da maximização da utilidade.

26.  Rawls critica o utilitarismo por este não considerar que a igualdade tem valor intrínseco.

27.  P
  ensar em termos de felicidade agregada, como é característico do utilitarismo, evita,
segundo Rawls, que a dignidade de cada pessoa seja violada.

180 Unidade 7

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28.  Rawls defende que a justiça se subordina à promoção do bem.

29.  S
  egundo Rawls, os seres humanos são invioláveis, mas os seus direitos dependem da
negociação política.

30.  O
  s menos favorecidos são aqueles que estão expostos a contingências naturais e sociais
negativas e ao azar puro e simples.

31.  O que define o igualitarismo, pensa Rawls, é a sua preocupação especial com os menos
favorecidos.

32.  R
  awls defende que certas desigualdades são boas por gerarem o maior benefício para os
menos favorecidos.

 33.  R
  awls é contrário aos incentivos financeiros para os mais talentosos.

 34.  A
  desigualdade gerada por incentivos para os mais talentosos é mais benéfica para os menos
favorecidos do que uma situação de igualdade estrita.

 35.  O
  argumento da posição original procura mostrar que um processo de escolha justo dos princípios
de uma sociedade justa conduziria à adoção dos princípios de justiça propostos por Rawls.

 36.  Um processo de escolha justo é um processo que assegura imparcialidade e equidade.

 37.  N
  um processo de escolha justo, todos conhecem a sua classe social.

 38.  O
  argumento da posição original defende que uma escolha justa dos princípios de justiça
está como que coberta por um véu de ignorância quanto à situação particular dos agentes.

  solução maximin, que se define por maximizar o mínimo, é a que se ajusta às nossas
 39.  A
intuições básicas de igualdade e justiça.

 40.  O
  conceito de igualdade de oportunidades liberal implica a redistribuição da riqueza pelos
menos favorecidos.

 41.  É suficiente, pensa Rawls, que todos tenham oportunidades iguais para que a sociedade seja justa.

 42.  A
  igualdade de oportunidades liberal tem a capacidade de minimizar os efeitos da lotaria natural.

 43.  O conceito de igualdade de oportunidades democrática ajusta-se à nossa intuição


de igualdade de oportunidades.

 44.  O argumento da justiça social mostra que o princípio da diferença se ajusta à nossa intuição
básica de igualdade de oportunidades.

 45.  Segundo alguns críticos, a teoria de Rawls não tem adequadamente em conta a distinção
entre circunstâncias e escolhas.

 46.  Uma das críticas feitas a Rawls é a de que uma motivação justa dos mais talentosos exige incentivos.

 47.  Se a riqueza adquirida por um processo voluntário for justa, a propriedade é absoluta
e a riqueza não tem de ser redistribuída.

 48.  Rawls teve o mérito de ser um liberal sem preocupações igualitárias.

 49.  Um dos méritos de Rawls é mostrar que a igualdade e a liberdade se realizam nos processos
de escolha social.

 50.  Rawls permitiu compreender que a autonomia tem importância nas escolhas sociais.

27.F; 28. F; 29. F; 30. V; 31. V; 32. V; 33. F; 34. V; 35. V; 36. V; 37. F; 38. V; 39. V; 40. F; 41. F; 42. F; 43. V; 44. V; 45. V; 46. F; 47. V; 48. F; 49. V; 50. V.
1. F; 2. F; 3. V; 4. V; 5. F; 6. V; 7. F; 8. F; 9. F; 10. V; 11. F; 12. F; 13. F; 14. V; 15. V; 16. V; 17. F; 18. F; 19. V; 20. F; 21. V; 22. F; 23. V; 24. F; 25. F; 26. V;
SOLUÇÕES:

Ética, direito e política 181

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TEMA

IV A DIMENSÃO ESTÉTICA DA AÇÃO


HUMANA E DOS VALORES

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365178 182-207 U8.indd 183 13/03/13 16:04
Unidade

8 A experiência e o juízo estéticos

8.1 O que é a estética?


8.2 O que é um juízo estético?
8.3 Qual é a natureza da experiência e dos juízos estéticos?
8.3.1 A experiência estética: definição centrada no sujeito
8.3.2 O subjetivismo estético
8.3.3 A experiência estética: definição centrada no conteúdo
8.3.4 O objetivismo estético

Objetivos da unidade Conceitos fundamentais

No fim desta unidade, deverá ser capaz de responder Os conceitos seguintes, que são centrais nesta unidade,
às seguintes questões: são definidos no fim do livro:
O que é um juízo estético? atenção desinteressada/
Em que consiste a experiência estética segundo a interessada juízo de gosto
definição centrada no sujeito? E segundo a definição atitude estética juízo estético
centrada no conteúdo? complacência objetivismo estético
Qual é o alcance e quais são os limites da definição de contemplação propriedade estética
experiência estética centrada no sujeito? E da definição
centrada no conteúdo? estética subjetivismo estético
O que são o subjetivismo e o objetivismo estéticos? experiência estética superveniência
Que argumentos podem ser apresentados a favor do
subjetivismo e do objetivismo estéticos?
Que objeções enfrentam o subjetivismo e o objetivismo
estéticos?

Introdução

É possível que já tenha ouvido a palavra «estética», ou outras semelhantes, em contextos diferentes. Por exemplo, pode já ter ouvido falar
de esteticistas, de gabinetes de estética, de estética facial ou corporal, de cirurgia estética, etc. Todos estes usos comuns da palavra «esté-
tica» estão, de certa forma, relacionados com uma especial atenção e cuidado com a aparência, com a beleza sensível. É natural que isso
aconteça, porque a palavra «estética» vem do grego «aesthesis», que significa «perceção sensível» ou «compreensão pelos sentidos»; daí
estar ligada à forma como aparecemos aos olhos dos outros, ou seja, à forma como nos apresentamos aos seus sentidos. Mas, além destes
usos comuns, a palavra «estética» também pode ser utilizada para designar uma disciplina filosófica. Alexander Baumgarten foi o primeiro
a utilizar a palavra neste sentido, querendo com ela designar o estudo filosófico da perceção sensível, nomeadamente da experiência de
apreciação da natureza e das obras de arte. Mas, afinal, o que é a estética? De que problemas se ocupa? Aqui estão alguns exemplos:
«O que é a beleza?», «O que é a experiência estética?», «O que são e como se justificam os juízos estéticos?», «Existem propriedades
estéticas?», etc. Ao longo desta unidade, procuraremos avaliar criticamente algumas das principais respostas para estes problemas.

184 Unidade 8

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Estímulo

A história que irá ler pretende testar:


• as suas intuições acerca da noção de beleza;
• a sua opinião acerca do valor de beleza.

Beleza perdida
Calheiros é um poeta de renome. Até há pouco tempo e a única coisa que consegui fazer foi o poema que
Calheiros não tinha motivos para preocupações. acabou de ler.
Quando fez 23 anos, ganhou um importante prémio
EDITORA — Esta situação não é admissível! Tem de
literário e desde então o sucesso da sua poesia junto
voltar a escrever como antes. Em vez de se fechar em
dos críticos e do grande público assegurou-lhe uma
quatro paredes, experimente sair de casa, passear à
vida preenchida e sem dificuldades.
beira-mar, ver o pôr do Sol, subir uma montanha para
Calheiros dedicara toda a sua vida à poesia e agora com ver nascer o dia, … sei lá! Vocês, os poetas, devem
57 anos não se imaginava a fazer outra coisa. Mas, precisar dessas coisas bonitas para ter inspiração, não?
recentemente, viu-se forçado a fazer uma escolha que o
CALHEIROS — Pois, o problema está aí! Lembro-me
deixou numa situação um pouco desconfortável.
de que todas essas coisas costumavam encantar-me
Apercebendo-se de que a idade estava a avançar e que
e despertar em mim uma furiosa paixão que só podia
precisava de algum tipo de estabilidade, fez um contrato
ser saciada pela escrita. Mas, com o passar dos tem-
com uma editora que lhe assegurava um salário mensal
pos, deixaram de ter o mesmo encanto, tornaram-se
fixo e uma reforma simpática. Até aqui tudo bem.
coisas banais e sem graça.
O problema é que esse contrato exigia que Calheiros
produzisse um mínimo de três obras por ano. Noutros EDITORA — Como assim, deixaram de ter o mesmo
tempos isso não teria sido problemático. Calheiros era encanto? O pôr do Sol continua a ser tão belo quanto
uma pessoa extremamente sensível à beleza das coisas antes.
e, aparentemente, tinha uma inesgotável fonte de inspi- CALHEIROS — Não é bem assim! O pôr do Sol con-
ração, chegando mesmo a produzir cinco e seis obras de tinua a ter os mesmos matizes de cor, mas habituei-
poesia por ano. Contudo, recentemente o seu encanto -me de tal forma a contemplá-los que, para mim, a
pelas coisas começara a esmorecer e com o fim do ano sua beleza já não é a mesma de outrora.
a aproximar-se tinha escrito apenas um poema. A edi-
tora começava a ficar impaciente e, numa das suas con-
versas mais recentes, encostou-o à parede:
EDITORA — Só pode estar a brincar comigo! Isto é
tudo o que tem para me entregar? — lê o poema em
voz alta:
«Tempos houve em que prado, bosque e maresia,
A terra e tudo que nela floresce,
Perante mim surgia,
Sob preciosa luz celeste,
Qual glória e frescura que sentia
Noite dentro quando dormia.»
CALHEIROS — Sim. Infelizmente essa é a única e
perturbadora realidade que tenho para expressar.
Fig. 1 — Impressão, Nascer do Sol (1872), de Claude Monet.
EDITORA — Que quer dizer com isso?! A sua inspi- Será que os matizes de cor que Monet imprimiu neste quadro
ração secou? são belos, independentemente do estado de espírito do
observador?
CALHEIROS — De certa forma pode dizer-se que
sim. Passei o último ano fechado no escritório a tentar

A experiência e o juízo estéticos 185

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EDITORA — Vai-me desculpar, mas o que diz não faz EDITORA — Pois fique a saber que isso me parece
sentido! Se o pôr do Sol continua a ter os mesmos um perfeito disparate. Como explica o sucesso esma-
matizes de cor e não mudou em nada, então não pode gador dos seus livros? Eles vendem bem porque pos-
ter perdido a sua beleza. Continua tão belo quanto suem um genuíno valor, que lhes é reconhecido por
antes à espera de ser contemplado. quem está disposto a pagar para os ler. Não lhe parece?
CALHEIROS — Não está a perceber! As propriedades CALHEIROS — Não, para lhe ser sincero, não acre-
do pôr do Sol não se alteraram, o que se alterou foi o dito nisso. Acho que as pessoas se limitam a projetar
meu apreço por elas. nas obras os seus sentimentos e impressões subjetivas.
EDITORA — Como?! Se achava que o pôr do Sol era EDITORA — Então como explica os comentários dos
belo e nada se alterou, tem de reconhecer que o críticos sobre a riqueza da obra? Como explica o apreço
pôr do Sol continua a ser belo. Afinal de contas, a que as pessoas têm demonstrado na sua leitura?
beleza do pôr do Sol não desaparece só porque dei-
CALHEIROS — Creio que é simplesmente fruto da
xou de reparar nela. Por isso, o problema não está no
educação e do condicionamento cultural. Nesta cul-
pôr do Sol, mas sim em si. Por outras palavras: o pro-
tura somos educados para projetar certas impressões
blema é seu! Resolva-o e deixe de arranjar desculpas!
sobre determinados objetos e para apreciar um certo
CALHEIROS — Não é assim tão fácil! Acredite! Eu já tipo de literatura, noutros tempos e noutras socieda-
tentei! Toda esta situação está a deixar-me muito des o mesmo não se verifica…
depressivo. É como se a beleza das coisas estivesse a
EDITORA — Mas há obras cujo valor tem sido reco-
desvanecer perante os meus olhos sem que eu possa
nhecido por várias culturas ao longo dos séculos.
fazer algo. Consegue imaginar uma vida sem beleza?
CALHEIROS — Sim, mas há sempre quem se oponha
EDITORA — De facto, não me parece que seja
a esse reconhecimento. Posso aceitar que uma obra é
possível ser feliz sem uma certa dose de beleza no
reconhecida pela maioria das pessoas como sendo
nosso quotidiano. Mas para isso basta estarmos na
grandiosa e ainda assim, pessoalmente, não conside-
disposição de a procurar. Estamos rodeados de coisas
rar a obra digna desse reconhecimento.
belas, só temos de parar a correria do dia a dia e con-
templá-las em todo o seu esplendor. EDITORA — Sabe o que é que eu acho? Acho que se
está a servir desta conversa para me distrair dos meus
CALHEIROS — Mas há pessoas que não são capazes
propósitos. E sabe que mais? Independentemente dos
de ver essa beleza.
gostos subjetivos das pessoas, uma coisa é certa: obje-
EDITORA — Está a sugerir que a beleza está nos tivamente, um poema é muito diferente de três obras.
olhos de quem a vê?! É nisso que acredita?! O que significa que o nosso contrato fica sem efeito
a partir de agora.
CALHEIROS — Sim, de certa forma, pode dizer-se
que é exatamente nisso que acredito. Inspirado na obra The Big Questions: Philosophy, de Simon Blackburn.
Poema adaptado de Intimations of Immortality,
de William Wordsworth.

Guião de leitura

1 Formule o problema que o texto levanta. 4 Discuta as ideias:


A — A beleza está nos olhos de quem a vê.
2 Apresente os argumentos da editora.
B — É impossível ser feliz sem uma certa dose de beleza no
3 Formule os argumentos do poeta. nosso dia a dia.

Fazer filosofia

1 Faça uma pesquisa por poemas que lhe pareçam exemplos de boa e má poesia.
1.1 Discuta em grupo o valor dos poemas selecionados.

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8.1 O que é a estética?
O termo «estética» tem vários sentidos. Na linguagem comum tem sido
usado para referir práticas relacionadas com os cuidados do corpo e da
aparência. Mas existe igualmente um uso teórico do termo. Neste contexto,
a palavra «estética» serve para designar um determinado campo de inves-
tigação filosófica. No entanto, mesmo neste domínio existem vários senti-
dos que esta palavra pode assumir.
Num sentido lato, «estética» refere mais ou menos o mesmo que «filosofia
da arte». Ou seja, consiste num campo de investigação que se dedica a refletir
sobre os conceitos envolvidos na criação artística, como por exemplo os
conceitos de arte, representação, expressão, forma artística, estética,
interpretação, falsificação, criatividade, valor artístico, entre outros. Este
tipo de investigação distingue-se de outras aproximações ao campo da arte
por ser de natureza conceptual. Um sociólogo pode perguntar: Há mais
arte em Paris ou em Londres? Para responder a este problema, levará a cabo
uma investigação empírica, baseada na observação e em dados estatísticos,
que consiste em contar o número de obras de arte existentes em cada uma
destas cidades. No entanto, para que o sociólogo seja bem-sucedido,
é importante que saiba aplicar corretamente o conceito de arte. Ora, saber
como se aplica o conceito de arte não é uma tarefa empírica: não se chega
a esta conclusão por meio de votações, fazendo experiências ou observa-
ções. Esta tarefa faz parte do trabalho do filósofo da arte, que se dedica
a refletir sobre o conceito de arte e sobre as suas condições de aplicação
— as condições necessárias e suficientes para que algo seja arte.
Quando os filósofos, como Alexander Baumgarten (1714-1762), falam
sobre estética num sentido estrito, isso geralmente significa que estão
mais interessados nos aspetos relativos ao público, isto é, na interação entre
as obras de arte e certos objetos naturais e os espectadores que têm experiên-
cia desses objetos. Neste contexto, é frequente vermos a palavra «estética»
associada a expressões relativas a estados e operações mentais dos especta-
dores. É o que acontece, por exemplo, nos seguintes casos: «experiência
estética», «perceção estética», «atitude estética» e «juízo estético». Assim
sendo, a tarefa do esteta (ou filósofo da estética) é, pelo menos em parte,
determinar o que caracteriza a experiência estética (perceção, atitude ou
juízo) e o que a distingue de outros tipos de experiências.
Neste sentido, é possível distinguir estética de filosofia da arte, uma vez
que a arte pode, pelo menos em princípio, ser definida apenas por referên-
cia aos objetos artísticos e às suas funções, sem qualquer alusão ao espec-
tador e aos seus estados e operações mentais. Apesar de corresponderem a
domínios distintos, a estética e a filosofia da arte entendidas nestes moldes
podem ter pontos de interseção, na medida em que, além dos objetos e
acontecimentos naturais, também alguns objetos artísticos podem originar
experiências estéticas (perceções, atitudes ou juízos).
Um terceiro uso da palavra «estética» assenta na ideia de que o estatuto de
arte está intrinsecamente ligado à noção de experiência estética. Assim
sendo, a filosofia da arte estaria sob o domínio da estética, juntamente com
o estudo da estética da natureza. Este uso das palavras «estética» e «filosofia Fig. 2 — Capa da obra Aesthetica,
da arte» é tendencioso, porque está à partida a comprometer-nos com a de Alexander Baumgarten.
ideia de que as obras de arte são objetos produzidos com a intenção de Baumgarten foi o primeiro a utilizar o termo
provocar experiências estéticas no público, mas esta afirmação substancial «estética» para designar um determinado
acerca da natureza da arte está longe de ser consensual. campo da investigação filosófica.

A experiência e o juízo estéticos 187

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8.2 O que é um juízo estético?
Em geral, um juízo é o ato de estabelecer uma relação entre um sujeito (S)
e um predicado (P). Essa relação costuma simbolizar-se através da forma
«S é P» (ou «S não é P»). Os juízos estéticos não constituem uma exceção a
esta regra. Onde reside então a diferença entre juízos estéticos e outros tipos
de juízo? Podemos dizer que essa diferença reside, pelo menos em parte, nas
características específicas dos predicados envolvidos no juízo estético.
Considere os seguintes conjuntos de juízos:
Conjunto I
1. O primeiro álbum dos Moonspell é intenso.
2. O livro Antídoto, de José Luís Peixoto, é delicado.
3. A Torre dos Clérigos é monumental.
Conjunto II
4. O primeiro álbum dos Moonspell pesa 21 gramas.
5. O livro Antídoto, de José Luís Peixoto, tem 12 centímetros de largura.
6. A Torre dos Clérigos tem 324 metros de altura.
No primeiro grupo de juízos atribuímos três predicados a três objetos
particulares: o predicado «é intenso» ao primeiro álbum dos Moonspell,
o predicado «é delicado» ao livro Antídoto, de José Luís Peixoto, e o predi-
cado «é monumental» à Torre dos Clérigos. Nos juízos do segundo grupo
atribuímos os predicados «pesa 21 gramas», «tem 12 centímetros de lar-
gura» e «tem 324 metros de altura» a esses objetos.
Há algo de comum entre os juízos dos dois conjuntos, eles são acerca das
mesmas coisas: 1 e 4 são acerca do primeiro álbum dos Moonspell; 2 e 5
são acerca do livro Antídoto, de José Luís Peixoto; e 3 e 6 são acerca da
Torre dos Clérigos.
No entanto, não é difícil perceber que existe uma diferença significativa
entre eles. Propriedades como «pesar 21 gramas», «ter 12 centímetros
de largura» e «ter 324 metros de altura» são
propriedades que qualquer objeto pode ter,
independentemente de existirem seres huma-
nos (num universo sem pessoas, os objetos
ainda possuiriam um determinado peso, uma
determinada largura e uma determinada
altura). Mas as propriedades do primeiro grupo
são propriedades que dependem de uma
reação. A propriedade da monumentalidade
que foi atribuída à Torre dos Clérigos, por
exemplo, está dependente da perceção
humana. Edifícios com certas escalas e estrutu-
ras parecem-nos monumentais, dada a consti-
tuição física e psicológica da nossa espécie.
É natural que o mesmo não acontecesse com
criaturas gigantes vindas de outros planetas,
mas seria de esperar que isso acontecesse com
Fig. 3 — Torre dos Clérigos (2011), de Leandro Vale.
outras criaturas que tivessem uma constituição
Quando dizemos que a Torre dos Clérigos é monumental, estamos a fazer um física e psicológica parecida com a nossa.
juízo estético.

188 Unidade 8

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Os juízos do primeiro grupo são juízos estéticos, na medida em que
envolvem um tipo particular de propriedades a que chamamos proprieda-
des estéticas.

As propriedades estéticas dizem respeito à dimensão qualitativa


dos objetos e dependem das nossas reações perante os mesmos.

Estas propriedades distinguem-se das que surgem no segundo grupo, a que


chamamos propriedades físicas.

As propriedades físicas são estudadas pelos físicos e são


quantitativas.

Se criaturas de galáxias distantes aterrassem subitamente no nosso pla-


neta, objetos como o primeiro álbum dos Moonspell, o livro Antídoto, de
José Luís Peixoto, ou a Torre dos Clérigos não deixariam de ter as mesmas
propriedades físicas. E, em princípio, os alienígenas seriam capazes de
entender livros de física e de matemática. Mas será que iriam captar
a intensidade, a delicadeza e a monumentalidade das obras referidas?
Não é provável.
Se de facto as propriedades estéticas estão dependentes da resposta de
criaturas com o nosso tipo de sensibilidade, é bastante improvável que
seres de galáxias distantes captassem exatamente as mesmas propriedades.
Daí que estas propriedades sejam vistas como propriedades disposicionais,
ou seja, dependem das disposições daqueles que as apreendem. Assim,
propriedades estéticas como a intensidade, a delicadeza e a monumentali-
dade, por exemplo, dependem da interação entre criaturas como nós
e os objetos.

Atividades

1 O que é um juízo? Dê exemplos.

2 O que entende por juízo estético? Dê exemplos.

3 Distinga propriedades físicas de propriedades estéticas.

4 Indique quais dos seguintes juízos são juízos estéticos:


A — O Porto tem cerca de 240 000 habitantes.
B — O Porto é uma cidade lindíssima.
C — A Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, encontra-se no Museu do Louvre.
D — A Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, é uma pintura sublime.
E — O filme Beleza Roubada, de Bernardo Bertolucci, tem a duração de 114 minutos.
F — O filme Beleza Roubada, de Bernardo Bertolucci, é intenso.

Debate

A afirmação «O sangue é vermelho.» envolve uma propriedade dependente de reação? Porquê?

A experiência e o juízo estéticos 189

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8.3 Qual é a natureza da experiência
e dos juízos estéticos?
Se as propriedades estéticas dependem das nossas reações, será que pode-
mos dizer que são propriedades reais e objetivas — isto é, propriedades
dos objetos —, ou serão apenas meras projeções das nossas atitudes e sen-
timentos subjetivos? Será que ter uma experiência estética consiste na dete-
ção, pelos sujeitos, de certas propriedades dos objetos, ou consistirá na
projeção, pelos sujeitos, de certas propriedades nos objetos? Ou, posto de
outra forma, serão os nossos juízos estéticos objetivos ou subjetivos? Como
se justificam os juízos estéticos?
Se as propriedades estéticas não forem mais do que simples projeções de
estados subjetivos, então não existe um fundamento objetivo para os
nossos juízos estéticos. Estes seriam apenas expressões dos nossos gostos
pessoais, ou seja, meros juízos de gosto. Nesse caso, quando dizemos
«A 5.ª Sinfonia de Beethoven é bela.» não estamos realmente a falar da
5.ª Sinfonia de Beethoven, mas sim da nossa experiência subjetiva. Segundo
esta abordagem, a nossa experiência estética consistiria numa forma parti-
cular de atenção e contemplação. A esta posição sobre o problema da
natureza dos juízos estéticos dá-se o nome de «subjetivismo estético»;
a correspondente definição de experiência estética será, daqui em diante,
designada por «definição centrada no sujeito».
Por outro lado, se as propriedades estéticas são propriedades reais e obje-
tivas dos objetos, então há um fundamento objetivo para os nossos juízos
estéticos. Quando dizemos «A 5.ª Sinfonia de Beethoven é bela.», por exemplo,
queremos dizer que a beleza é uma propriedade real e objetiva da 5.ª Sinfonia
de Beethoven. Neste caso, a nossa experiência estética da 5.ª Sinfonia de
Beethoven é a experiência de determinadas propriedades reais desse objeto.
A esta posição sobre o problema da natureza dos juízos estéticos dá-se
o nome de «objetivismo estético»; a correspondente definição de experi-
ência estética será daqui em diante designada por «definição centrada no
conteúdo».

A experiência estética consiste Definição de


numa forma particular de experiência estética
atenção e contemplação. centrada no sujeito
O que é uma
experiência
estética?
A experiência estética é a Definição de
experiência de determinadas experiência estética
propriedades reais dos objetos. centrada no conteúdo

Os juízos estéticos são


expressões das nossas Subjetivismo estético
impressões subjetivas.
O que são
juízos
estéticos?
Os juízos estéticos são
atribuições de propriedades Objetivismo estético
estéticas aos objetos.

Esquema 1 — Natureza da experiência e dos juízos estéticos.

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8.3.1   A experiência estética: definição 
centrada no sujeito
Jerome Stolnitz (n. 1925) é um filósofo contemporâneo que defende uma
definição de experiência estética centrada no sujeito. De acordo com
Stolnitz, ter uma experiência estética depende da adoção de uma certa
atitude em relação aos objetos — uma atitude estética. Mas o que significa
adotar uma atitude estética? Uma atitude estética é uma forma particular
de atenção e contemplação. Mais concretamente, trata-se de uma atenção e
contemplação desinteressadas e complacentes dos objetos considerados em
si mesmos.
Para explicar o que isto significa exatamente, pode ser útil comparar este
tipo de atitude com a atitude que habitualmente adotamos em relação às
coisas, que é uma atitude prática. Geralmente, quando dirigimos a nossa
atenção para um determinado objeto, procuramos determinar que utili-
dade pode ter para nós e para os nossos objetivos. Por exemplo, vemos
uma caneta como algo com que podemos escrever, vemos um automóvel
que se aproxima como algo a evitar, etc. Nestes casos, a nossa atenção não
está centrada exclusivamente nos objetos — nos seus sons, ritmos, linhas,
formas, cores, etc. —, mas sim num determinado objetivo que pretende-
mos alcançar. Os objetos não estão a ser considerados em si mesmos, mas
sim como meios para atingir outros fins. Stolnitz expõe esta distinção nos
seguintes termos:

Texto 1

Podemos dizer de todos estes interesses não estéticos, e da perceção Para a atitude estética, as coisas não devem ser classificadas, nem
«prática» em geral, que o objeto é apreendido em função da sua estudadas, nem ajuizadas. Elas são em si aprazíveis, ou excitantes ao
origem e das suas consequências, das suas relações com as outras olhar. Deve ser claro, portanto, que serem «desinteressadas» é muito
coisas. Em contraste, a atitude estética «isola» o objeto e concentra- distinto de serem «não interessadas». Pelo contrário, como todos
se nele: a «aparência» das rochas, o som do mar, as cores da pintura. sabemos, podemos ser intensamente absorvidos por um livro ou um
Por isso, o objeto não é visto de maneira fragmentária, ou de passa- filme, de tal modo que ficamos muito mais «interessados» do que
gem, como acontece na perceção «prática», ao usarmos uma caneta habitualmente no curso da nossa atividade «prática».
para escrever, por exemplo. Toda a sua natureza e o seu caráter são Jerome Stolnitz, «A Atitude Estética», in Carmo D'orey (org.)
considerados demoradamente. […] O Que É a Arte? Lisboa: Dinalivro, 2007 [ed. original 1960].

É disto que falamos quando usamos a expressão «atenção desinteressada»


para descrever a experiência estética. Não estamos a querer dizer que se
trata de uma atenção sem interesse no objeto, mas simplesmente que esse
interesse deve recair inteiramente sobre o objeto, sem outros interesses
pessoais envolvidos. Nessa medida, o desinteresse é compatível com o facto
de haver interesse no objeto; significa apenas que se trata de um interesse
sem outros fins. Assim, para termos uma experiência estética de uma obra
de arte, por exemplo, teremos de lhe prestar uma atenção desinteressada,
em vez de perguntar se ela ofende os católicos, corrompe a juventude ou
promove uma determinada ideologia política.
Por outro lado, um pintor que faz quadros de grandes dimensões a pensar
nas vantagens económicas que poderão daí advir mantém-se ligado a inte-
resses pessoais que o impedem de ter uma experiência estética. Neste sen-
tido, ter uma experiência estética implica que nos libertemos das pressões
do quotidiano. Assim, se alguém tem realmente uma experiência estética
quando ouve a sua música preferida, deixa a vida e as preocupações do dia
a dia de parte, fruindo da música por si mesma.

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Para que se possa ter uma experiência estética, é também preciso que a
nossa atenção seja complacente. O que quer isto dizer? Simplesmente que
temos de nos render ao objeto e deixar-nos guiar pelas suas propriedades e
relações. É como se nos entregássemos ao objeto e jogássemos segundo as
suas regras próprias, sem lhe impor as nossas. Se rejeitarmos um romance
porque ele entra em choque com os nossos princípios morais, não pode-
mos dizer que chegamos a ter uma experiência estética da obra. Na prática,
se queremos ter uma experiência estética de uma esfregona ou de um
monte de lixo, por mais que isso nos cause uma rejeição imediata, devemos
ser capazes de suspender essa rejeição e fazer um esforço genuíno para
entender os objetos que temos pela frente.
Além de uma atenção desinteressada e complacente, dissemos que a atitude
estética envolve uma forma de contemplação. A palavra «contemplação»
aparece frequentemente associada à noção de experiência estética, mas, ao
contrário do que possa parecer à primeira vista, esta contemplação não é um
estado passivo. Não implica que tenhamos de ficar a olhar impávidos e dis-
tantes para um quadro ou para uma escultura, por exemplo. É antes uma
observação cuidadosa dos detalhes de um objeto de maneira a procurar esta-
belecer uma estrutura coerente e encontrar conexões. Para isso, é necessário
que a inteligência e a imaginação reconstruam ativamente o objeto, em vez
Fig. 4 — Lolita, de Vladimir Nabokov.
de o encararmos de um modo passivo.
Será que alguém que rejeita um romance
como Lolita, de Vladimir Nabokov, por este Para ajudá-lo a compreender melhor esta explicação da experiência esté-
atentar contra a moral, chega a aceder à obra tica, imagine, por exemplo, que está a ter uma experiência estética da sua
de um ponto de vista estético? música preferida. Em que consiste essa experiência?
• c onsiste em ouvir a música e nada mais desejar além da experiência de
ouvir a música — atenção desinteressada;
• consiste numa rendição à obra sobre a qual essa atenção é exercida, neste
caso a sua música preferida — atenção complacente;
• e consiste em ouvir a música com a inteligência e a imaginação de
maneira a compreender os sons e a sua conexão com os que já foram
ouvidos e a formar expectativas acerca dos que irão ser ouvidos, procu-
rando coerência na estrutura sonora da música — contemplação.
Segundo esta definição, são as reações do sujeito que contempla o objeto
que fazem com que uma experiência seja considerada estética e não as
propriedades dos próprios objetos.

Atividades

1 Segundo Stolnitz, qual é a diferença entre atitude prática e atitude estética?

2 O que significa dizer que a experiência estética se caracteriza por uma atenção desinteressada?

3 Segundo a definição de experiência estética centrada no sujeito, se pretendemos ter uma experiência estética, devemos adotar
uma postura complacente. Porquê?

4 «Uma vez que envolve uma forma de contemplação, a atitude estética obriga-nos a uma postura passiva perante os objetos.»
Concorda? Porquê?

Debate

«Se tenho interesse num determinado objeto, então já não posso ter uma experiência estética desse objeto.» Concorda? Porquê?

192 Unidade 8

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Aspetos positivos da definição centrada no sujeito
Esta forma de entender a noção de experiência estética tem duas grandes
vantagens:
xplica os desacordos que existem no que toca a este tipo de expe-
i. E
riência.
S egundo esta conceção, a experiência estética não depende da experiên-
cia das propriedades efetivas dos objetos, mas sim do facto de nós,
enquanto espectadores, adotarmos um certo tipo de atitude em relação
aos mesmos. Assim, perante a controversa literatura do Marquês de
Sade, por exemplo, algumas pessoas podem ter uma experiência esté-
tica, porque são capazes de se alhear do conteúdo moral da obra, ao
passo que outras não têm acesso a esse tipo de experiência, porque se Fig. 5 — Retrato de Marquês de Sade (1760),
recusam a alhear-se do conteúdo moral da obra. de Charles-Amédée-Philippe van Loo.
Marquês de Sade foi um polémico escritor
xplica por que razão qualquer objeto pode originar uma experiên-
ii. E
francês cujas obras expunham os seus
cia estética. retorcidos delírios sexuais. O seu nome deu
S egundo esta conceção, a experiência estética não se reporta à beleza origem ao termo «sadismo», que significa
«perversão que consiste em ter prazer sexual
das coisas, mas sim à atitude que assumimos perante elas. Assim, pode-
na dor física e psicológica de outrem».
mos ter experiências estéticas mesmo de coisas que habitualmente con-
sideramos feias. Por exemplo, podemos ter uma experiência estética de
uma rua conspurcada de palha, papéis sujos e outros detritos, porque
podemos alhear-nos do seu aspeto sujo e deixar-nos absorver pelos seus
tons, linhas e formas.

Objeções à definição centrada no sujeito


Apesar das suas vantagens, a definição de experiência centrada no sujeito
também enfrenta sérias objeções. De seguida apresentamos duas delas.

A atitude estética é um mito


A principal objeção a esta conceção da experiência estética chega na voz
de outro filósofo contemporâneo, George Dickie (n. 1926), para quem
a atitude estética é apenas um mito. Dickie chega a esta conclusão pois
considera que não existe aquilo que Stolnitz designa por «atenção desinte-
ressada».
Para justificar a sua posição, Dickie recorre a exemplos que, supostamente,
ilustram casos de atenção interessada e mostra que, na realidade, se trata de
casos de desatenção. É o que acontece nos exemplos que se seguem:
• U
m pai vai a uma peça de teatro porque a filha participa nela e passa o
tempo todo a elogiar o seu rebento.
• U
m oficial da Gestapo ouve atentamente uma música para verificar se
esta veicula alguma mensagem contra o partido nazi.
Um partidário da atitude estética diria que o pai e o oficial da Gestapo não
tiveram uma experiência estética, porque a sua atenção é guiada por inte-
resses pessoais, e não desinteressada. Dickie, por seu turno, sustenta que
um pai que esteja apenas concentrado na atuação da sua filha não dedicou
verdadeiramente atenção à peça, pelo que não se pode dizer que essa aten-
ção foi interessada. Do mesmo modo, também o oficial da Gestapo não está
atento à música no seu todo, às suas estruturas sonoras e melódicas; tudo
isso lhe escapa enquanto procura uma qualquer mensagem oculta contra o
partido.

A experiência e o juízo estéticos 193

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O diálogo que se segue pretende tornar mais clara a perspetiva de Dickie.
A Maria e a Ana estão a conversar sobre a expe riência de ouvir o Concerto
Imperador, de Beethoven. A Ana ouviu o concerto por puro prazer, mas a
Maria fê-lo porque ia ter de discorrer sobre ele num exame de teoria musi-
cal, no dia seguinte. A conversa decorreu do seguinte modo:

Caso 1

ANA — Que pena! Se ouviste o concerto a pensar no exame e com MARIA — Não concordo contigo. Tendo outros interesses ou não,
a preocupação de tirar boa nota, passou-te ao lado o seu fascínio! prestei atenção à música, tal como tu. A nossa atenção não foi dife-
rente, as nossas motivações é que foram diferentes.
MARIA — Como assim? Que queres dizer com isso?
ANA — Vou dar-te outro exemplo. O Rui não gosta de Beethoven e, no
ANA — Uma coisa é ouvir música por obrigação, outra é fazê-lo por
entanto, quando um dia me trouxe a casa, pôs a tocar o Concerto Impera-
prazer.
dor no carro para me impressionar. Como esse era o seu único interesse,
MARIA — Reconheço que tínhamos motivações diferentes para não podemos dizer que prestou uma atenção desinteressada ao con-
ouvir o concerto, mas isso não implica que eu não tenha usufruído certo; logo, não podemos dizer que tivemos experiências semelhantes.
plenamente dessa experiência!
MARIA — De facto, não podemos. Mas também não podemos dizer
ANA — Pois a mim parece-me que tivemos experiências bastante que prestou uma atenção interessada ao concerto.
diferentes!
ANA — Como assim?
MARIA — Não percebo porquê!? Afinal de contas, ouvi-o com muita
MARIA — O Rui estava tão preocupado com as tuas reações que
atenção, para não me escapar nada! Se ouvimos atentamente as
nem sequer podemos dizer que tenha prestado atenção à música.
mesmas melodias, então podemos dizer que tivemos as duas a
mesma experiência. Não te parece? ANA — Estás a sugerir que o par atenção/desatenção explica melhor
o que se passa com as nossas experiências do concerto do que o par
ANA — Não. Repara numa coisa: a atenção que dediquei à música
atenção interessada/atenção desinteressada?
foi especial, porque eu não tinha qualquer interesse no que estava
a fazer, a não ser ouvir a música. Podemos dizer que a minha MARIA — Exatamente! Eu e tu prestámos atenção ao concerto, mas
atenção foi uma atenção desinteressada. Mas tu, por outro lado, o Rui não. Aquilo a que chamas atenção desinteressada não é uma
estavas mais preocupada com o exame do que com a experiência de espécie de atenção propriamente dita, mas sim um tipo de motiva-
ouvir a música; por isso, a atenção que lhe dedicaste foi interessada. ção para certos atos de atenção.

Segundo Dickie, podemos prescindir da noção de atenção desinteressada,


pois as noções de motivação, atenção e desatenção, nas suas aceções
comuns, são tudo o que precisamos para explicar casos como estes.

As noções de complacência e desinteresse podem


revelar-se inconciliáveis
A definição centrada na emoção sustenta que uma experiência estética consiste
na «atenção e contemplação desinteressadas e complacentes dos objetos
considerados em si mesmos». No entanto, uma resposta complacente a um
filme sobre racismo, por exemplo, implica que sejamos levados a sentir-nos
revoltados e indignados com esse tipo de atitudes e comportamentos. Dado
que o filme aborda problemas práticos, muito provavelmente relacionados
com os interesses pessoais ou políticos do espectador, se formos um espec-
tador complacente, deveremos levar a sério as suas recomendações, pelo
que seremos impelidos a procurar melhorar a nossa sociedade e as nossas
vidas. Mas até que ponto é esta postura conciliável com uma atenção desin-
teressada? Se o desinteresse dominar relativamente à complacência, isso
pode inviabilizar que se aceda à totalidade da riqueza estética da obra.
Atividades

1 Explicite os principais aspetos positivos da definição de experiência estética centrada no sujeito.

2 Em que se baseia a objeção baseada na ideia de que a atitude estética é um mito.

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8.3.2   O subjetivismo estético
A definição de experiência estética centrada no sujeito está associada a uma
determinada conceção dos juízos estéticos — o subjetivismo estético.
Para melhor compreender esta perspetiva, considere de novo os juízos do
conjunto I e compare‐os com os do conjunto III:
Conjunto I
1. O primeiro álbum dos Moonspell é intenso.
2. O livro Antídoto, de José Luís Peixoto, é delicado.
3. A Torre dos Clérigos é monumental.
Conjunto III
7. O primeiro álbum dos Moonspell é ligeiro.
8. O livro Antídoto, de José Luís Peixoto, é agressivo.
9. A Torre dos Clérigos é vulgar.
À primeira vista, estes juízos parecem ser acerca do primeiro álbum dos
Moonspell, do livro Antídoto, de José Luís Peixoto, e da Torre dos Clérigos,
referindo-se a propriedades objetivas desses objetos; logo, parece impossí-
vel que tanto os juízos do conjunto I como os do conjunto III sejam verda-
deiros.
No entanto, se a experiência estética é um estado subjetivo de atenção e
contemplação desinteressadas e complacentes, então estes juízos referem-
se, na realidade, às impressões subjetivas de intensidade, delicadeza,
monumentalidade, ligeireza, agressividade e vulgaridade experimentadas
por aqueles que apreciam os referidos objetos. Neste sentido, as proprieda-
des estéticas não são propriedades reais dos objetos, mas sim meras proje-
ções dessas impressões.
Assim, para um subjetivista estético, afirmar que «O primeiro álbum dos
Moonspell é intenso.» é o mesmo que dizer: «Eu tenho uma sensação
de intensidade perante o primeiro álbum dos Moonspell.» Do mesmo
modo, afirmar que: «O primeiro álbum dos Moonspell é ligeiro.» significa:
«Eu tenho uma sensação de ligeireza perante o primeiro álbum dos Moons-
pell.» Isto implica que os juízos estéticos são subjetivos, porque a sua
verdade, ou falsidade, depende exclusivamente dos estados subjetivos de
quem os formula.
Deste modo, um subjetivista estético considera que os juízos estéticos não
passam de expressões dos nossos gostos pessoais, ou seja, são meros juízos
de gosto, como quando dizemos «gosto de chocolate», por exemplo. Isso
significa que a única coisa de que dispomos para tentar justificar estes juí-
zos são as preferências de cada um.
Se alguém nos pergunta «Porque é que gostas de chocolate?», podemos
responder «Porque é doce.», mas isso seria apenas especificar o que é que
nos agrada no chocolate. Se nos perguntassem «Porque é que gostas de
Fig. 6 — Cartaz de chocolates da Arcádia.
coisas doces?», a única resposta que poderíamos oferecer é «Porque sim.»;
Segundo o subjetivismo estético, os nossos
para tornar a nossa resposta mais informativa, restar-nos-ia apenas acres-
juízos estéticos não passam de expressões
centar «graças à minha configuração física e psicológica atual acontece sim- dos nossos gostos pessoais, ou seja, são
plesmente eu gostar de coisas doces» e esperar que a pessoa se contentasse meros juízos de gosto, como «gosto de
com esta resposta. chocolate».

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   Uma defesa do subjetivismo estético
O subjetivismo estético tem sido muito discutido pelos estetas e filósofos
da arte. O principal argumento utilizado para defender esta teoria é o argu-
mento dos desacordos.

O argumento dos desacordos
Existe um amplo consenso na atribuição de propriedades físicas aos obje-
tos. Esse consenso explica-se porque essas propriedades são propriedades
reais e objetivas. O mesmo não se verifica no que diz respeito às proprie-
dades estéticas. É neste facto que se baseia o argumento dos desacordos.
Para facilitar a discussão deste argumento, vamos apresentar a sua formu-
lação dividida em duas partes:

Argumento 1 (parte I)
Fig. 7 — IKB 234 (1957), de Yves Klein.
(1) Existem diversos e profundos desacordos no que toca às propriedades
É muito frequente haver quem discuta se um
estéticas.
quadro como este é belo ou não. O mesmo
não acontece se alguém disser que o quadro (2) Se as propriedades estéticas fossem propriedades reais e objetivas
é retangular. dos objetos, não existiriam diversos e profundos desacordos a seu
respeito.

Juízo intuitivo (3) Logo, as propriedades estéticas não são propriedades reais e objetivas
dos objetos.
Avalie o subjetivismo estético de acordo
com a sua primeira reação. Argumento 1 (parte II)
A — Convincente. (4) Ou as propriedades estéticas são propriedades reais e objetivas
B — Atraente mas não convincente. dos objetos, ou são projeções das nossas impressões subjetivas.
C — Duvidoso. (5) As propriedades estéticas não são propriedades reais e objetivas
D — Implausível.
dos objetos.
(6) Logo, as propriedades estéticas são projeções das nossas impressões
subjetivas.

   Objeções ao subjetivismo estético
É verdade que existem aspetos que tornam esta teoria bastante apelativa,
mas também existem algumas objeções de peso com as quais ela tem de
lidar. Apresentam-se de seguida alguns exemplos.

Objeção ao argumento dos desacordos
A primeira objeção que iremos considerar é uma resposta direta ao
argumento dos desacordos. Se prestarmos atenção aos argumentos que
compõem o argumento dos desacordos, podemos constatar que quer o
argumento da primeira parte, quer o argumento da segunda parte são váli-
dos, pelo que só estaremos justificados em recusar as suas conclusões se
rejeitarmos pelo menos uma das suas premissas.
Vamos começar pela segunda parte. A premissa que surge no ponto (4) é
relativamente consensual e muito difícil de refutar. Para o fazer, teríamos
de encontrar uma terceira alternativa para caracterizar as propriedades
estéticas, o que não é tarefa fácil. Logo, se queremos rejeitar a conclusão do
argumento, resta-nos tentar refutar a premissa que surge no ponto (5). Mas
essa premissa está justificada, uma vez que é a conclusão do argumento
que surge na primeira parte. Assim, se queremos rejeitá-la, temos de mos-
trar que há algo de errado com esse argumento.
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Mais uma vez, a primeira premissa é robusta e difícil de refutar. É evidente
que existem desacordos na atribuição de propriedades estéticas a determi-
nados objetos. Por isso, o melhor que temos a fazer é concentrar-nos na
premissa do ponto (2), que é mais controversa. É, em grande medida, por-
que os desacordos na atribuição de propriedades estéticas são bastante evi-
dentes que esta premissa é mais controversa, por muito estranho que isto
possa parecer. Deste modo, o que os opositores ao subjetivismo estético
têm de fazer é partir do pressuposto comum de que esses desacordos são
reais e mostrar que isso torna impossível que as propriedades estéticas
sejam meras projeções das nossas impressões subjetivas. É o que acontece
no argumento que se segue:

Argumento 2
(1) Há diversos e profundos desacordos acerca de propriedades estéticas.
(2) Se há desacordos acerca de propriedades estéticas, então as pessoas em
desacordo estão a fazer afirmações diferentes sobre as mesmas coisas.
(3) Se as pessoas em desacordo estão a fazer afirmações diferentes sobre
as mesmas coisas, então as propriedades estéticas não são meras
projeções das suas impressões subjetivas.
(4) Logo, as propriedades estéticas não são meras projeções das suas
impressões subjetivas.

A verdade é que para que haja um desacordo real entre dois apreciadores
de um determinado objeto (digamos, o primeiro álbum dos Moonspell,
para retomar o exemplo anterior), eles têm de estar a fazer afirmações
opostas sobre a mesma coisa. Consideremos os exemplos:
1. O primeiro álbum dos Moonspell é intenso.
10. O primeiro álbum dos Moonspell não é intenso.
Segundo o subjetivismo estético, o juízo 1 significa «Eu tenho uma sen-
sação de intensidade durante a audição do primeiro álbum dos Moons-
pell.» e o juízo 10 significa «Eu não tenho uma sensação de intensidade
durante a audição do primeiro álbum dos Moonspell.». Ora, se estes juí-
zos forem formulados por pessoas diferentes, aquilo que existe de aparen-
temente contraditório entre eles deixa de existir, uma vez que se referem
apenas às impressões e gostos que cada um experimenta, e não às pro-
priedades objetivas do álbum. Logo, se o subjetivismo estético fosse ver-
dadeiro, não existiriam autênticos desacordos quanto à atribuição de pro-
priedades estéticas aos objetos.

Objeção da aprendizagem por ostensão de termos


relativos a propriedades estéticas
Além do que já foi dito, é importante notar que, para que haja um
desacordo genuíno na atribuição de uma propriedade estética a um deter-
minado objeto, ambas as partes têm de possuir um enquadramento
conceptual comum. Se os pontos de vista em confronto usarem conceitos
diferentes, falarão cada um para seu lado, mas a comunicação entre os dois
é impossível.
Fig. 8 — A Traição das Imagens (1928-29),
Por exemplo, se a Maria considera o primeiro álbum dos Moonspell intenso de René Magritte.
e o Jerónimo acha que é ligeiro, então o desentendimento entre os dois só Neste quadro, Magritte faz uma alusão irónica
é real se estes usarem os termos «intenso» e «ligeiro» no mesmo sentido. à aprendizagem por ostensão.

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Se o Jerónimo entender por «ligeiro» aquilo que a Maria entende por
«intenso», o desacordo entre os dois é apenas aparente. Mas isso geral-
mente não acontece. A verdade é que isso não pode acontecer sistematica-
mente, dada a maneira como aprendemos a usar de forma consistente a
terminologia relativa a propriedades estéticas.
Aprendemos a usar termos como «intenso», «delicado», «ligeiro», «vul-
gar», etc. por ostensão. As pessoas apontam para certos exemplos de coisas
intensas, ou ouvimos músicas que são descritas como intensas, e apreende-
mos o sentido do termo. Para que isso seja possível, as pessoas têm de
designar o mesmo tipo de coisas com o mesmo termo, têm de considerar a
mesma característica dos objetos que os seus educadores consideram. Se
estes se limitassem a fazer projeções das suas impressões subjetivas, sería-
mos incapazes de considerar a mesma característica dos objetos que eles.
Por isso, é mais razoável supor que uns e outros têm acesso a uma determi-
nada propriedade real e objetiva desses objetos.

Objeção da diferença entre juízos estéticos e juízos de gosto


O subjetivismo estético tem de enfrentar outro problema sério. Se o subjeti-
Fig. 9 — Mona Lisa (1503-1506),
vismo estético for verdadeiro, então os nossos juízos estéticos não passam
de Leonardo da Vinci.
da expressão dos nossos gostos individuais. Mas se os nossos juízos estéti-
Segundo o subjetivismo estético, será
possível não apreciar subjetivamente este
cos não fossem mais do que juízos de gosto, não seria possível afirmar
retrato, mas ainda assim reconhecer o seu coerentemente coisas como «Eu não gosto da Mona Lisa, mas reconheço
valor estético? que é uma obra-prima.». No entanto, é perfeitamente possível que se reco-
nheça o valor estético de um determinado objeto ou obra de arte sem que
esse reconhecimento corresponda estritamente à expressão de um gosto ou
de uma preferência pessoal. Por outro lado, também é possível que ocorra
o inverso. Por vezes admitimos que gostamos de algo, de um filme ou de
uma música, por exemplo, apesar de reconhecermos que não é bom.
O subjetivista estético terá de se esforçar por mostrar de que modo a sua
teoria pode acomodar este tipo de ocorrências.

Avaliação crítica

Assinale agora a sua avaliação ponderada do subjetivismo estético.


A — Convincente. C — Duvidoso.
B — Atraente mas não convincente. D — Implausível.

Atividades

1 Em que consiste o subjetivismo estético?

2 Avalie o argumento dos desacordos.

3 Por que razão se diz que «caso o subjetivismo estético fosse verdadeiro, não teríamos forma de aprender a usar termos relativos
a propriedades estéticas»?

4 Formule explicitamente a objeção da diferença entre juízos estéticos e juízos de gosto.

Debate

«O subjetivismo estético é falso, porque há obras cujo valor é universal e intemporalmente reconhecido.» Concorda? Porquê?

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8.3.3   A experiência estética:
definição centrada no conteúdo
Uma alternativa à definição de experiência estética centrada no sujeito é
considerar que é o conteúdo da nossa experiência que faz com que esta seja
estética. No texto que se segue, Monroe Beardsley (1915-1985) defende
que se pretendemos apreender um objeto do ponto de vista estético, não
nos devemos ater aos seus efeitos psicológicos, mas sim às características
objetivas que este apresenta e que são responsáveis por esses efeitos.

Texto 2

O método afetivo de avaliação crítica consiste em ajuizar a obra As mesmas duas questões poderiam ser levantadas acerca da noção
pelos seus efeitos psicológicos, ou pelos efeitos psicológicos prová- geral que parece estar implícita nas outras razões afetivas: a obra é
veis […]. [N]ão considero irrelevantes as razões afetivas para a ava- boa se conduz a uma forte reação emocional de um certo tipo. Mas
liação dos objetos estéticos […], apenas defenderei que as razões de que modo difere a reação emocional das fortes reações emocio-
afetivas, só por si, são inadequadas […]. nais geradas por telegramas anunciando mortes, por sustos de
morte em carros descontrolados, pela doença grave de um filho ou
Primeiro, se alguém afirma que ouviu o andamento lento do Quar-
por um pedido de casamento? Há certamente uma diferença impor-
teto de Cordas em Mi Bemol Maior (Op. 127), de Beethoven, e que
tante que a explicação da reação emocional tem de ter em conta
lhe deu «prazer», ou nos adverte que nos daria prazer, penso que
para ser completa. O que há no objeto estético que causa a reação
deveríamos considerar esta advertência uma resposta fraca a esta
emocional? Talvez seja alguma qualidade específica intensa, na qual
grande música. E, contudo, num sentido muito amplo e vago é ver-
a nossa atenção está centrada quando estamos perante a obra. De
dade que nos dá prazer, tal como os amendoins salgados ou um
facto, alguns dos termos afetivos são […] muitas vezes enganadores,
mergulho em água fresca dão prazer. Somos, assim, levados a per-
pois são realmente sinónimos de termos descritivos: querem dizer
guntar que tipo de prazer nos dá e como difere esse prazer de outros
que o objeto tem certas qualidades específicas num grau de intensi-
[…]. E esta linha de investigação levar-nos-ia ao segundo aspeto.
dade apreciável. E, nesse caso, é claro que a razão já não é afetiva,
Pois uma afirmação afetiva informa-nos do efeito da obra, mas não
mas objetiva.
identifica as características da obra que causam esse efeito. […]
monroe BearDSley, «Razões Objetivas» in almeiDa, Aires e murCho, Desidério
Textos e Problemas de Filosofia, 2006 [ed. original 1958].

Neste sentido, uma experiência é chamada de «estética» quando corres-


ponde à experiência de propriedades como a delicadeza, o equilíbrio, a
elegância ou a vitalidade — ou seja, propriedades estéticas — de um objeto
ou de uma obra de arte. Segundo Beardsley, os objetos podem apresentar
propriedades como estas em diferentes graus de unidade, diversidade
e intensidade; por isso, para termos uma experiência da dimensão qualita-
tiva dos objetos, temos de prestar atenção às suas propriedades estéticas
e distinguir os seus graus de unidade, diversidade e intensidade.
O grau de unidade de um objeto está intrinsecamente ligado às suas rela-
ções formais. Quando as várias partes que o constituem estão bem organi-
zadas, dizemos que o objeto é coeso. Essa coesão pode verificar-se graças à
repetição de certos elementos ou padrões ou em virtude das semelhanças
existentes entre eles; mas também pode ser um reflexo da coerência do
objeto, como acontece, por exemplo, no enredo de um romance, em que a
maioria dos seus elementos contribui de alguma forma para o seu desenlace.
Além disso, pode considerar-se que grande parte da riqueza estética dos
objetos depende igualmente do seu grau de diversidade. Objetos que
conjugam harmoniosamente diversos elementos são ricos em subtilezas e
contrastes. Segundo esta abordagem, prestar atenção a esse tipo de comple-
xidade faz com que tenhamos uma experiência estética desses objetos.
Por fim, uma vez que as propriedades estéticas se apresentam sempre com
maior ou menor grau de intensidade, a experiência das qualidades estéti-
cas de um objeto será sempre uma experiência da sua intensidade.
A experiência e o juízo estéticos 199

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Em síntese, segundo esta definição, a experiência estética é a experiência
das propriedades estéticas de um objeto ou obra de arte e dos seus
graus de intensidade, unidade e diversidade. Neste sentido, classifica-
mos como estética uma experiência que se alimente exclusivamente das
propriedades sensíveis e formais dos objetos, e não das consequências que
estes possam eventualmente possuir para nós ou para a sociedade em geral.
No entanto, se as propriedades estéticas não são propriedades físicas —
como o peso ou a altura —, e também não são meras projeções das nossas
impressões subjetivas, então em que consistem?
Para os defensores da definição de experiência estética centrada no con-
teúdo, as propriedades estéticas, embora dependam de reações e disposi-
ções, estão vinculadas aos objetos, porque dependem das suas proprieda-
des não estéticas. Por exemplo, uma música tem a propriedade estética de
ser intensa devido a uma certa configuração dos seus sons, tons e ritmos;
Fig. 10 — Número 5/Número 22 (1950), um edifício tem a propriedade estética de ser monumental devido ao seu
de Mark Rothko.
volume e à sua estrutura. Assim, podemos afirmar que as propriedades
As pinturas de Mark Rothko, constituídas estéticas emergem das não estéticas.
por grandes manchas razoavelmente
regulares e uniformes de uma, duas ou três A este tipo de relação de dependência entre dois tipos de propriedades, em
cores, têm um grau de diversidade menor do que uma modificação num deles produz uma alteração no outro, dá-se o
que romances de grandes dimensões, como
nome de «superveniência». Dizemos, por exemplo, que a monumentali-
Os Irmãos Karamazov, de Fiódor Dostoiévski,
que parecem mais dispersos do que coesos. dade de um edifício sobrevém de algumas das suas propriedades mais
básicas, nomeadamente do seu volume, da sua dimensão, da sua escala,
etc. Contudo, a monumentalidade de um edifício não é redutível às suas
propriedades físicas — está também dependente do modo como criaturas
como nós reagem habitualmente a essas propriedades.

Aspetos positivos da definição centrada no conteúdo


Esta forma de entender a noção de experiência estética tem duas vantagens:
i. Dispensa a noção técnica de atenção desinteressada.
Segundo esta conceção, os usos comuns de expressões como distração
ou desatenção permitem explicar em que consiste a experiência estética,
sem recorrer à noção técnica e inventada de atenção desinteressada. Ter
uma experiência estética é, simplesmente, prestar atenção a determina-
das qualidades dos objetos.
ii. Aproxima-se do modo como comunicamos.
uando comunicamos aos outros uma experiência estética, como a
Q
experiência de ouvir a nossa música preferida, dizemos coisas como:
«Esta música tem um ritmo impressionante!» Quando fazemos afirma-
ções como esta, acreditamos que estamos a falar da música e das suas
propriedades objetivas, e não da nossa experiência subjetiva.
Atividades

1 Segundo a definição centrada no conteúdo, em que condições uma experiência pode ser chamada de «estética»?

2 Segundo Monroe Beardsley, em que consiste a unidade, a diversidade e a intensidade de um objeto ou obra de arte?

Debate

«Para apreciar algo do ponto de vista estético, temos de ignorar o seu conteúdo representacional e moral.» Concorda? Porquê?

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Objeções à definição centrada no conteúdo
Objeção das diferenças intersubjetivas
Segundo a definição centrada no conteúdo, a experiência estética depende
unicamente das propriedades dos objetos. Mas, se assim for, como se
explica que perante o mesmo objeto uma pessoa tenha uma experiência
estética e outra não? Se o objeto é o mesmo e as suas propriedades se man-
têm inaltera das, quaisquer dois indivíduos colocados perante esse objeto
(ou perante objetos com essas propriedades) deveriam ter o mesmo tipo de
experiência. Mas isso não se verifica, pelo que somos levados a admitir que
há algo de errado nesta definição.

Fig. 11 — Guernica (1937), de Pablo Picasso.


Como se explica que perante este quadro
há quem tenha uma experiência estética
e quem veja apenas uma representação
dos horrores da guerra?

Redunda na definição centrada no sujeito


Segundo a definição centrada no conteúdo, para termos uma experiência
estética de um objeto ou obra de arte, devemos restringir a nossa atenção
aos seus aspetos formais. Mas, de certo modo, é justamente isso que os
teóricos da atitude estética, como Stolnitz, defendem quando afirmam que,
para adotar uma atitude estética, o nosso interesse deve recair inteiramente
sobre o objeto, sem envolver considerações sobre a sua utilidade. Será que
a definição centrada no conteúdo redunda na definição centrada no sujeito?
Afinal de contas, ambas as definições referem que a experiência estética
depende de prestarmos atenção às coisas certas!

Atividade

1 Em que consiste a objeção das diferenças intersubjetivas?

Debate

Avalie a argumento que se segue.


Imagine que dois indivíduos estão perante o mesmo objeto e que um deles tem uma experiência estética e o outro não.
(1) Ou essa diferença se deve ao facto de o objeto ter propriedades diferentes de pessoa para pessoa ou se deve ao facto
de o sujeito dirigir uma forma especial de atenção para o objeto.
(2) Os objetos não mudam de propriedades de pessoa para pessoa.
(3) Logo, essa diferença deve-se ao facto de o sujeito dirigir uma forma especial de atenção para o objeto.
(4) Se essa diferença se deve a uma forma especial de atenção sobre o objeto, então a definição centrada no sujeito é verdadeira.
(5) Logo, a definição de experiência estética centrada no sujeito é verdadeira.

A experiência e o juízo estéticos 201

365178 182-207 U8.indd 201 13/03/13 16:04


8.3.4  O objetivismo estético
Consideremos mais uma vez os juízos 1, 2 e 3, apresentados na página
188. Se aceitarmos que a experiência estética é a experiência das proprie-
dades estéticas dos objetos, estes juízos dizem que o primeiro álbum
dos Moonspell tem a propriedade de ser intenso, que o livro Antídoto, de
José Luís Peixoto, tem a propriedade de ser delicado e que a Torre dos
Clérigos tem a propriedade de ser monumental. Recorrendo à noção de
superveniência, justificamos estes juízos dizendo que estas propriedades
dependem de uma certa disposição dos tons e dos ritmos da música dos
Moonspell, da forma como se organizam as palavras e os seus sentidos no
livro de José Luís Peixoto e da constituição e configuração dos materiais
que estruturam a Torre dos Clérigos, bem como da sua dimensão.
Isto resulta numa perspetiva acerca da natureza dos juízos estéticos radical-
mente oposta ao subjetivismo estético, uma vez que, se as propriedades
Fig. 12 — Teste de daltonismo.
estéticas não se referem a estados subjetivos projetados nos objetos, mas
Certos tipos de daltonismo impossibilitam
sim a propriedades objetivas dos mesmos, a verdade ou falsidade dos
que se veja o número 6 nesta figura. Será que
isso significa que a resposta à pergunta juízos estéticos não depende dos estados subjetivos de quem os for-
«Existe um 6 nesta figura?» é subjetiva? mula. Por esse motivo, esta teoria acerca dos juízos estéticos tem o nome
de objetivismo estético.
Consideremos que a maioria das pessoas aceita que as primeiras notas da
5.ª Sinfonia de Beethoven são imponentes. Para um objetivista, isso explica-
-se porque existem propriedades objetivas que fazem com que essa seja a
nossa reação adequada perante essas notas. Isto significa que, para o obje-
tivismo estético, quando duas pessoas manifestam um desacordo na atri-
buição de uma propriedade estética como a intensidade, apenas uma delas
está a fazer uma afirmação verdadeira.

Uma defesa do objetivismo estético


O principal argumento a favor do objetivismo estético baseia-se numa ana-
logia entre as propriedades estéticas e as propriedades cromáticas.
Para clarificar o sentido da relação de superveniência, os defensores desta
teoria sugerem uma analogia com a nossa experiência das propriedades
cromáticas. Também a sensação de cor parece estar dependente do modo
como criaturas com uma constituição física e psicológica semelhante à
nossa percecionam os objetos. São as estruturas moleculares dos objetos
que fazem com que estes reflitam ondas luminosas com uma certa frequên-
cia e um certo comprimento de onda, mas estas propriedades físicas, por si
só, não explicam a sensação de vermelho que temos quando olhamos, por
exemplo, para um Ferrari.
A cor vermelha é uma propriedade que depende da reação que criaturas
Juízo intuitivo como nós têm perante ondas luminosas com uma determinada configura-
ção. Podemos dizer que a vermelhidão é uma propriedade que sobrevém
Avalie o objetivismo estético de acordo das propriedades físicas dos materiais que compõem a tinta usada para
com a sua primeira reação. cobrir as várias peças do Ferrari. Mas isso não significa que as propriedades
A — Convincente. cromáticas não sejam propriedades reais e objetivas dos objetos. Se duas
B — Atraente mas não convincente.
pessoas estão em desacordo em relação à cor de um objeto, é porque uma
delas foi capaz de a discernir corretamente e a outra não. O mesmo poderia
C — Duvidoso. ser dito relativamente às propriedades estéticas: o facto de estas serem pro-
D — Implausível. priedades dependentes de reação não é uma condição suficiente para que
estas não sejam consideradas propriedades reais e objetivas das coisas.

202 Unidade 8

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Objeções ao objetivismo estético
Objeção da analogia fraca
Os defensores do objetivismo estético recorrem a uma analogia entre pro-
priedades estéticas e cromáticas para explicar a noção de superveniência.
Contudo, existem diferenças relevantes entre as propriedades estéticas e as
propriedades cromáticas para que a analogia possa ser boa. Desde logo, é
possível verificar que existem amplos consensos relativamente à atribuição
de propriedades cromáticas aos objetos, mas o mesmo não se verifica no
que toca às propriedades estéticas. A experiência mostra-nos que existem
grandes desacordos na atribuição de propriedades estéticas. Não é raro
alguém considerar que uma determinada pintura é elegante, ao mesmo
tempo que outra a considera grosseira e vulgar. Se existem diferenças signi-
ficativas entre propriedades estéticas e propriedades cromáticas, a analogia
utilizada pelos defensores do objetivismo estético é fraca.

Objeção do condicionamento cultural


Os objetivistas estéticos afirmam que a convergência que se verifica na
atribuição de uma propriedade como a imponência às primeiras notas da
5.ª Sinfonia de Beethoven se explica graças às suas propriedades objetivas,
que fazem com que essa seja a reação adequada. Mas existe uma explicação Fig. 13 — Femme à la Mangue (1892),
alternativa para essa convergência que não deve ser descartada: o condicio- de Paul Gauguin.
namento cultural. O facto de a maioria das pessoas reagir de igual modo Numas culturas somos educados para
apreciar certos alimentos em vez de outros.
perante essas notas não significa que a imponência é uma propriedade Será que a convergência que se verifica na
objetiva que estas exibem, mas sim que fomos cultural e socialmente con- atribuição de certas propriedades estéticas
dicionados para reagir desse modo e projetar uma sensação de imponência também se explica através do
perante a entrada da 5.ª Sinfonia. Esta explicação é apelativa, porque recorre condicionamento cultural?
a uma noção pacífica, como a de condicionamento cultural, e prescinde de
uma noção polémica, como a de propriedades estéticas.
Avaliação crítica
Objeção dos desacordos Assinale agora a sua avaliação ponderada
Uma importante dificuldade que esta teoria enfrenta resulta do facto bas- do objetivismo estético.
tante comum de haver profundos desacordos em relação às propriedades A — Convincente.
estéticas dos objetos. Na verdade, pessoas igualmente atentas e informadas B — Atraente mas não convincente.
fazem juízos incompatíveis acerca dos mesmos objetos. Ora, se as proprie-
dades estéticas dependem das não estéticas, como se justifica que existam C — Duvidoso.
tais desacordos? Não serão as propriedades estéticas meras projeções D — Implausível.
subjetivas, e não propriedades dos objetos?

Atividades

1 Em que consiste o objetivismo estético?

2 Apresente o principal argumento utilizado pelos defensores do objetivismo estético.

3 Formule explicitamente a objeção da analogia fraca.

Debate

«O facto de a maioria das pessoas reagir de igual modo perante o valor estético dos mesmos objetos não se deve às suas propriedades obje-
tivas, mas sim ao facto de termos sido cultural e socialmente condicionados para reagir desse modo.» Concorda? Porquê?

A experiência e o juízo estéticos 203

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Ideias-chave

A experiência e o juízo estéticos


• Em geral, um juízo é o ato de estabelecer uma relação entre • Segundo a definição de experiência estética centrada no
um sujeito e um predicado. conteúdo, uma experiência é chamada de «estética» quando
• Os juízos estéticos envolvem propriedades estéticas. corresponde à experiência das propriedades estéticas de um
objeto ou de uma obra de arte.
• As propriedades estéticas são propriedades disposicionais
que dizem respeito à dimensão qualitativa dos objetos. São • Para os defensores da definição de experiência estética cen-
exemplos de propriedades estéticas: a intensidade, a elegân- trada no conteúdo, as propriedades estéticas dos objetos
cia e a monumentalidade. sobrevêm das suas propriedades não estéticas.

• As propriedades físicas são estudadas pelos físicos e são • Para os defensores da definição centrada no conteúdo, a
quantitativas, como, por exemplo, o peso, a altura e a largura. experiência estética alimenta-se exclusivamente das proprie-
dades sensíveis e formais dos objetos e das relações que
• Um dos principais problemas estudados no âmbito da esté- estas estabelecem entre si, e é independente das conse-
tica é o problema de saber qual é a natureza da experiência quências que estes possam eventualmente possuir para nós
e dos juízos estéticos. ou para a sociedade em geral.
• Segundo a definição de experiência estética centrada no • Os aspetos positivos da definição de experiência estética
sujeito, a experiência estética consiste numa forma de aten- centrada no conteúdo são os seguintes: dispensa a noção
ção e contemplação desinteressadas e complacentes de um técnica de atenção desinteressada e aproxima-se do modo
objeto ou obra de arte. como comunicamos.
• As vantagens desta definição de experiência estética são as • As principais objeções apresentadas à definição de experiên-
seguintes: explica os desacordos que existem no que toca a cia estética centrada no conteúdo são as seguintes: objeção
este tipo de experiência e explica por que razão qualquer das diferenças intersubjetivas e objeção baseada na ideia de
objeto pode originar uma experiência estética. que esta definição acaba por se assemelhar à definição cen-
• As principais objeções que esta teoria enfrenta são as seguin- trada no sujeito.
tes: as noções de complacência e desinteresse podem revelar- • Para o objetivismo estético, as propriedades estéticas não se
-se inconciliáveis e a atitude estética é um mito. referem a estados subjetivos projetados nos objetos, mas
• Segundo o subjetivismo estético, os juízos estéticos referem- sim a propriedades objetivas dos mesmos.
-se às impressões subjetivas despertadas pelos objetos e não • Para um defensor do objetivismo estético, a verdade ou fal-
a propriedades objetivas dos mesmos. sidade dos juízos estéticos não depende dos estados subje-
• Para um subjetivista estético, afirmar que «x é intenso.» signi- tivos de quem os formula.
fica: «Eu tenho uma sensação de intensidade perante x.» • Um objetivista estético defende que justificamos os juízos
• Segundo o subjetivismo estético, a verdade ou a falsidade estéticos apelando às propriedades não estéticas das quais
dos juízos estéticos depende exclusivamente dos estados as propriedades estéticas sobrevêm.
subjetivos de quem os formula. • O principal argumento a favor do objetivismo estético
• O principal argumento a favor do subjetivismo estético é o baseia-se numa analogia entre as propriedades estéticas e as
argumento dos desacordos. propriedades cromáticas.
• As principais objeções que o subjetivismo estético enfrenta • As principais objeções que o objetivismo estético enfrenta
são: a objeção ao argumento dos desacordos, a objeção da são: a objeção da analogia fraca, a objeção dos desacordos e
aprendizagem por ostensão de termos relativos a proprieda- a objeção do condicionamento cultural.
des estéticas e a objeção da diferença entre juízos estéticos
e juízos de gosto.

Para aprofundar conhecimentos

Leituras:
AlmeidA, Aires e murcho Desidério — «Estética», in Textos e Problemas de Filosofia. Lisboa: Plátano Editora, 2006.
cArroll, Noël — «Arte e Experiência Estética», in Filosofia da Arte. Lisboa:
Texto Edições Texto & Grafia, 2010 [ed. original 1999].
Sobrante
dickie, George — «A Teoria da Beleza: De Platão ao Século xIx», «Teorias da Avaliação do Século xx» e «O Instrumentalismo de
Monroe Beardley», in Introdução à Estética. Lisboa: Bizâncio, 2008 [ed. original 1997].
GrAhAm, Gordon — «Hume e o Padrão do Gosto» e «Kant e o Belo», in Filosofia das Artes: Introdução à Estética. Lisboa: Edições 70,
2001 [ed. original 1997].
Stolnitz, Jerome — «A Atitude Estética», in D'Orey, Carmo (org.) O Que É a Arte? Lisboa: Dinalivro, 2007 [ed. original 1960].

204 Unidade 8

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Esquema-síntese

A experiência e o juízo estéticos

Subjetivismo estético Objetivismo estético

É uma forma de atenção É a experiência de propriedades


O que é
e contemplação desinteressadas estéticas dos
a experiência estética?
e complacentes. objetos.

São propriedades disposicionais


O que são as propriedades São meras projeções de impressões
que sobrevêm das propriedades
estéticas? subjetivas.
não estéticas dos objetos.

São expressões dos nossos gostos


O que são os juízos São atribuições de propriedades estéticas
e preferências individuais — juízos
estéticos? aos objetos.
de gosto.

Os juízos estéticos são


Não; referem-se às impressões Sim; referem-se a propriedades
universalmente verdadeiros
de cada um. objetivas.
ou falsos?

Apelando às propriedades não estéticas


Como se justificam os Apelando às preferências individuais
das quais sobrevêm as propriedades
juízos estéticos? de cada um.
estéticas.

Filmes:
Corrigindo Beethoven (2006), realizado por Agnieszka Holland.
Rapariga com Brinco de Pérola (2003), de Peter Webber.

Páginas da Internet:
http://criticanarede.com/problemasdaestetica.html (artigo «Problemas da Estética», de Jenefer Robinson).

A experiência e o juízo estéticos 205

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TEsTE FORmATIvO 8

ClAssIFICA As AFIRmAçõEs sEGUInTEs COmO vERDADEIRAs OU FAlsAs.

  1.  E
  m geral, um juízo é o ato de estabelecer uma relação entre um sujeito e um predicado.

  2.  O
  que distingue os juízos estéticos de outros tipos de juízos é, pelo menos em parte,
a especificidade dos predicados que este tipo de juízos envolve.

  3.  «  Este quadro é azul.» é um bom exemplo de um juízo estético.

  4.  «  Este poema é intenso.» é um bom exemplo de um juízo estético.

  5.  A
  s propriedades físicas são propriedades que dizem respeito à dimensão qualitativa
dos objetos e que dependem das nossas reações perante os mesmos.

  6.  A
  s propriedades estéticas são propriedades que dizem respeito à dimensão quantitativa
dos objetos e que dependem das nossas reações perante os mesmos.

  7.  A
  s propriedades estéticas são propriedades que dizem respeito à dimensão quantitativa
dos objetos e que não dependem das nossas reações perante os mesmos.

  8.  A
  s propriedades estéticas são propriedades que dizem respeito à dimensão qualitativa
dos objetos e que dependem das nossas reações perante os mesmos.

  9.  S
  ão exemplos de propriedades estéticas: a monumentalidade, a altura e a largura.

 10.  S
  ão exemplos de propriedades estéticas: a elegância, a delicadeza e a intensidade.

 11.  S
  ão exemplos de propriedades não estéticas: a duração, a altura e a largura.

 12.  A
  s propriedades estéticas são propriedades disposicionais que dizem respeito à dimensão
qualitativa dos objetos.

 13.  D
  iz-se que um objeto tem uma propriedade disposicional quando essa propriedade depende
exclusivamente da disposição dos elementos físicos que o compõem.

 14.  D
  iz-se que um objeto tem uma propriedade disposicional quando essa propriedade não
depende exclusivamente da disposição dos elementos físicos que o compõem.

 15.  D
  iz-se que um objeto tem uma propriedade disposicional quando essa propriedade depende
das disposições daqueles que o apreendem.

 16.  D
  iz-se que um objeto tem uma propriedade disposicional quando essa propriedade não
depende das disposições daqueles que o apreendem.

 17.  J  erome Stolnitz defende uma definição de experiência estética centrada no sujeito.

 18.  S
  egundo a definição de experiência estética centrada no sujeito, a experiência estética consiste
numa forma de atenção e contemplação interessadas e complacentes de um objeto ou obra de
arte.

 19.  S
  egundo a definição de experiência estética centrada no sujeito, a experiência estética consiste
na experiência das propriedades estéticas que são propriedades reais e objetivas das coisas.

20. Segundo Stolnitz, a atitude estética, tal como a atitude prática, procura determinar
a utilidade que um objeto pode ter para nós e para os nossos objetivos.

21. De acordo com a definição centrada no sujeito, se estamos interessados num objeto,
já não podemos ter uma experiência estética do mesmo.

22. Segundo a definição centrada no sujeito, um galerista que aprecia um quadro pelo seu valor
monetário não está a ter uma experiência estética do mesmo.

23. Rejeitar um romance por este atentar contra a moral e os bons costumes é fazer uma
apreciação complacente do mesmo.

206 Unidade 8

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24. Segundo a definição centrada no sujeito, para termos uma experiência estética, devemos
adotar uma postura desinteressada e contemplar passivamente um objeto ou obra de arte.

25. A ideia de que a atitude estética é um mito é uma das principais vantagens da definição
centrada no sujeito.

26. Um dos problemas da definição de experiência estética centrada no sujeito é o facto de, por
vezes, haver uma incompatibilidade entre as noções de contemplação e complacência.

27. A definição de experiência estética centrada no sujeito sustenta que as noções


de complacência e desinteresse podem revelar‐se inconciliáveis.

28. Para um subjetivista estético, afirmar que «x é intenso.» significa: «Eu tenho uma sensação
de intensidade perante x.»

29. Segundo o subjetivismo estético, embora os juízos estéticos se refiram a propriedade efetivas
das coisas, a sua verdade, ou falsidade, depende exclusivamente dos estados subjetivos
de quem os formula.

30. Para um subjetivista estético, os juízos estéticos não passam de expressões dos nossos gostos
pessoais, ou seja, são meros juízos de gosto.

31. Uma objeção ao subjetivismo estético é que existem casos em que os nossos juízos estéticos
não correspondem aos nossos juízos de gosto.

32. Um aspeto positivo do subjetivismo estético é o facto de esta teoria explicar de modo claro
o processo de aprendizagem por ostensão de termos relativos a propriedades estéticas.

33. A existência de desacordos na atribuição de propriedades estéticas só pode ser usada para
defender o subjetivismo estético.

34. Segundo a definição de experiência estética centrada no conteúdo, uma experiência


é chamada de «estética» quando corresponde à experiência das propriedades estéticas
de um objeto ou de uma obra de arte.

35. Um objeto tem um elevado grau de unidade quando existem poucos objetos semelhantes
a ele.

36. Para os defensores da definição de experiência estética centrada no conteúdo,


as propriedades estéticas estão vinculadas aos objetos, porque dependem das suas
propriedades não estéticas.

37. Um aspeto positivo da definição de experiência estética centrada no conteúdo é o facto


de esta lidar facilmente com os desacordos intersubjetivos.

38. Para o objetivismo estético, as propriedades estéticas não se referem a estados subjetivos
projetados nos objetos, mas sim a propriedades reais e objetivas dos mesmos.

39. Para o objetivismo estético, quando duas pessoas manifestam um desacordo na atribuição
de uma propriedade estética, apenas uma delas pode estar correta.

40. Segundo o objetivismo estético, as propriedades estéticas são propriedades físicas e reais
dos objetos.

41. Sendo F uma propriedade superveniente de G, qualquer objeto que tiver F terá G.

42. A analogia entre propriedades estéticas e cromáticas é incontestável.

33. F; 34. V; 35. F; 36. V; 37. F; 38. V; 39. V; 40. F; 41. F; 42. F.
1. V; 2. V; 3. F; 4. V; 5. F; 6. F; 7. F; 8. V; 9. F; 10. V; 11. V; 12. V; 13. F; 14. V; 15. V; 16. F; 17. V; 18. F; 19. F; 20. F; 21. F; 22. V; 23. F; 24. F; 25. F; 26. F; 27. F; 28. V; 29. F; 30. V; 31. V; 32. F;
SOLUÇÕES:

A experiência e o juízo estéticos 207

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Unidade

9 A criação artística
e a obra de arte
9.1 O que é a arte?
9.1.1 A teoria mimética da arte (ou teoria da arte como imitação)
9.1.2 A teoria representacionista da arte
9.1.3 A teoria expressivista da arte
9.1.4 A teoria formalista da arte
9.1.5 Arte, produção e consumo: uma teoria institucional da arte

Objetivos da unidade Conceitos fundamentais

No fim desta unidade, deverá ser capaz de responder Os conceitos seguintes, que são centrais nesta unidade,
às seguintes questões: são definidos no fim do livro:
O que é uma definição explícita de arte? antiessencialismo formalismo
Qual é a diferença entre os usos classificativo e valorativo arte mundo da arte
da palavra «arte»?
artefacto obra de arte
Quais são as teses das teorias mimética,
emoção estética representação
representacionista, expressivista e formalista da arte?
expressão representacionismo
Qual é o alcance de cada uma destas teorias?
expressivismo forma significante
Quais são os limites de cada uma destas teorias?

Introdução

Nesta unidade, iremos ocupar-nos do problema central da filosofia da arte: «O que é a arte?» À primeira vista, a pergunta pode parecer
disparatada, visto que, num certo sentido, todos sabemos o que é a arte: é música, pintura, escultura, etc. No entanto, aquilo que procu-
ramos não é apenas dizer que tipo de coisas são frequentemente designadas por arte. Afinal de contas, muitas das coisas a que hoje
chamamos arte, como a banda desenhada, não eram assim chamadas há uns anos. Por seu turno, muitas coisas que hoje não são consen-
sualmente consideradas arte, como os videojogos, por exemplo, poderão, ou não, vir a sê-lo num futuro próximo. Mas para isso precisamos
de critérios que permitam estabelecer com relativa segurança o que pertence e o que não pertence ao domínio da arte. Por outro lado,
apesar de a música ser geralmente considerada arte, isso não acontece com todo o tipo de música. Dificilmente a chamada música
«pimba» poderá ser considerada arte. Como sabemos, então, quais são os tipos de música que devem ser considerados arte e quais são
aqueles que devem ser excluídos dessa categoria? Que características tem de ter um objeto para que possa ser enquadrado nessa cate-
goria? Será que não existem características comuns a todas as obras de arte? Estes são alguns dos problemas envolvidos na discussão em
torno da definição de arte que iremos abordar de seguida.

208 Unidade 9

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Estímulo

A história que irá ler pretende testar:


• as suas intuições acerca da noção de arte;
• a sua opinião acerca do valor artístico de objetos encontrados, como os ready-mades de Marcel
Duchamp, por exemplo.

Será que isto é arte?


Catarina Vidal é curadora de uma galeria de arte que — Como assim?! A peça não perdeu as suas qualidades
enfrenta um dos momentos mais estranhos da sua formais só porque o seu autor não foi Moore. A única
carreira. Até há cerca de uma semana, Vidal exibia diferença é que, em vez de atribuir a Moore o mérito
orgulhosamente a sua peça favorita: uma escultura por esta sublime criação, temos de o fazer em relação a
sem título de Henry Moore, que foi descoberta após a outro escultor, ainda que se trate de um autor menos
morte do artista. Os contornos sinuosos e o equilíbrio conhecido. Já agora, sabe-me dizer qual é o nome do
geométrico da peça pareciam captar simultaneamente artista?
o aspeto espiritual e matemático da natureza. Ou pelo
— O problema é justamente esse, não há artista.
menos era nisso que Vidal acreditava até descobrir
A pedra foi encontrada por Moore tal como a vemos,
que afinal não se tratava de uma escultura de Moore;
este limitou-se a deixá-la inalterada com as formas
pior ainda, a peça nem sequer foi moldada por mãos
que lhe foram dadas pela natureza.
humanas; a chuva, o vento e a erosão deram à pedra
o seu aspeto atual. Moore limitara-se a trazer a pedra — Bem, isso é realmente surpreendente. Mas ainda
para o seu ateliê com o objetivo de a trabalhar, mas assim, acho que fez mal em retirá-la da exposição.
acabou por concluir que não havia nada que pudesse
fazer para melhorar o aspeto que a natureza lhe tinha
dado. Acontece simplesmente que a forma como a
pedra foi encontrada no seu ateliê fez com que toda a
gente assumisse que Moore a tinha talhado; mas a
recente publicação de alguns manuscritos autobiográ-
ficos de Moore trouxe a público a verdade acerca da
origem daquela peça.
Vidal ficou sem saber o que havia de fazer com o ex-
-líbris da sua coleção, mas antes que a sua reputação
como curadora fosse comprometida, retirou a peça da
vitrina onde estava exposta, no centro da galeria.
Enquanto decidia o que fazer, foi interpelada por um
apreciador de arte que visitava regularmente a galeria:
— Desculpe, estou à procura da escultura Sem Título,
de Moore, que estava em exposição na semana pas-
sada.
— Peço desculpa, mas essa peça foi retirada da expo-
sição.
— Porquê? Era a minha peça preferida. Fig. 1 — Fonte (1917), de Marcel Duchamp.
— Pois, ... devo confessar que também apreciava bas- Ao apresentar objetos quotidianos como obras de arte,
tante essa peça, mas a verdade é que uma descoberta Marcel Duchamp desafiou a nossa compreensão do
fenómeno artístico e deu origem a novos rumos
recente pôs em causa a sua autoria e, consequente- em teoria da arte.
mente, o seu estatuto como arte.

A criação artística e a obra de arte 209

365178 208-233 U9.indd 209 13/03/13 16:05


— Compreendo que sinta que a peça continua a — Calma. Parece-me que está a misturar um pouco as
merecer a nossa admiração, mas visto que não foi coisas. De facto, não é por ter sido produzida por
produzida por mãos humanas, penso que uma galeria Duchamp que Fonte é uma obra de arte; mas, ainda
de arte não é o local mais apropriado para a exibir. assim, podemos dizer que Duchamp agiu sobre um
vulgar urinol; ao selecioná-lo e exibi-lo tinha um
— Porque não? Afinal de contas uma galeria é o sítio
determinado propósito, pelo que faz sentido inter-
ideal para procurar objetos com formas apelativas e
pretá-lo e perguntar quais foram as intenções do seu
interessantes.
autor ao exibi-lo daquele modo. Mas isso não se veri-
— Sim, mas repare, uma vez que não foi produzida fica em relação a esta pedra. Ela é simplesmente uma
por nenhum artista, deixa de fazer sentido apreciá-la pedra que, por acaso, tem uma forma particularmente
enquanto reflexo das habilidades do seu criador, suave e equilibrada.
assim como deixa de fazer sentido tentar compreen-
— Bom, embora os novos dados não alterem aquilo
der de que modo essa peça se enquadra no contexto
que vemos, alteram seguramente a forma como o
mais vasto da obra do autor.
vemos. É verdade que com Duchamp a arte deixou de
— Mas isso não compromete a nossa apreciação artís- ser simplesmente aquilo que os artistas faziam e pas-
tica da obra. Em 1917, Marcel Duchamp resolveu sou a ser aquilo que os artistas decretavam; mas
expor um vulgar urinol a que chamou Fonte. Essa aquilo que está a sugerir é que algo passa a ser arte
obra figura em qualquer história da arte e, no entanto, desde que alguém o veja como arte e isso é absurdo.
não foi alterada pelo artista. O facto de ter sido criada Se assim fosse, a dada altura, seria impossível distin-
por mãos humanas não é relevante para o estatuto da guir aquilo que é arte daquilo que não é. Ao expor
obra enquanto arte, pois todos os outros urinóis são uma vulgar pedra como sendo uma obra de arte estou
criações humanas, mas não são obras de arte. Por a arriscar-me a perder a credibilidade enquanto cura-
isso, não vejo o que nos impede de proceder do dora e posso vir a ter de fechar as portas da galeria,
mesmo modo em relação à peça de Moore. coisa que não quero mesmo nada que aconteça.
— Precisamente. O facto de termos descoberto algo — Bem, devo dizer-lhe que estava disposto a pagar
acerca da sua origem não altera em nada aquilo que uma avultada quantia pela obra, mas já que para si
vemos quando a contemplamos, nem as sensações de não passa de uma simples pedra, que tal dar-ma, para
equilíbrio e harmonia que desperta em nós. Mesmo que eu possa oferecê-la à minha esposa como prenda
que se viesse a descobrir que o quadro Mona Lisa não de aniversário como tinha pensado fazer?
foi pintada por Leonardo da Vinci, não deixaríamos de
— Não nos vamos precipitar. Afinal, hoje em dia
nos surpreender com o seu sorriso enigmático e o seu
quem é que pode responder com firmeza à pergunta:
olhar misterioso. Uma obra de arte ganha uma dimen-
«O que é a arte?»
são própria e independente das intenções do seu autor.
Inspirado na obra The Pig That Wants to Be Eaten and 99 Other
Thought Experiments, de Julian Baggini.

Guião de leitura

1 Formule o problema discutido no texto.

2 Apresente os argumentos da curadora.

3 Apresente os argumentos do visitante.

4 Discuta a ideia: «Qualquer coisa pode ser arte.»

Fazer filosofia

1 Faça uma pesquisa sobre Marcel Duchamp e os seus ready-mades.

1.1 Discuta em grupo o estatuto desses objetos enquanto obras de arte.

210 Unidade 9

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9.1 O que é a arte?
O problema da definição da arte não é propriamente novo. Já no século v a. C.
Platão se questionava acerca da essência da arte. Perguntar pela essência de
algo é o mesmo que pedir uma definição explícita; neste caso, implica iden-
tificar as condições necessárias e suficientes para que algo possa ser consi-
derado arte, isto é, as características que um objeto tem necessariamente de
possuir para ser uma obra de arte e as características que só as obras de arte
possuem e que nos permitem distingui-las de outros objetos.
Este projeto é, por vezes, considerado excessivamente ambicioso, sobre-
tudo depois dos desenvolvimentos que ocorreram no plano artístico desde
finais do século xix. Muitos autores consideram que perante a enorme
variedade de coisas que ao longo dos tempos foram sendo classificadas
como obras de arte — pinturas, esculturas, poemas, bailados, performances,
found objects, happenings, vídeos, instalações, etc. — se torna impossível
encontrar um conjunto de características partilhadas por todas elas. Esta
posição é vulgarmente designada por «antiessencialismo». O antiessencia-
lismo caracteriza-se por defender que não é possível oferecer uma definição
explícita de arte porque não existe algo que seja a essência da arte. Mas
nem todos os filósofos aceitam pacificamente esta ideia e foram várias as
teorias propostas para abarcar o conceito de arte.
Assim, se uma teoria propuser uma condição necessária para que algo seja
arte e existirem objetos que reconhecidamente são considerados obras de
arte, mas não satisfazem essa condição, a teoria será criticada por ser dema-
siado restritiva. Por outro lado, se a teoria propõe uma condição suficiente
para que algo seja arte e essa condição for satisfeita por algo que reconheci-
damente não é arte, a teoria será considerada demasiado inclusiva. Num e
noutro caso, as teorias seriam rejeitadas por apresentarem contraexemplos,
isto é, exemplos que refutam uma afirmação sobre um determinado assunto.
Além disso, uma boa teoria da arte também deve preservar quer o sentido
classificativo quer o sentido valorativo da palavra «arte»:
• No sentido classificativo (descritivo), dizer
que algo é uma obra de arte é dizer que esse
objeto pertence a uma determinada classe.
• No sentido valorativo (avaliativo), dizer que
algo é uma obra de arte é reconhecer que esse
objeto, além de pertencer à categoria das obras
de arte, é um bom exemplar dessa categoria, ou
seja, é uma boa obra de arte. Chama-se «sentido
valorativo (ou avaliativo)» a este uso da palavra
«arte», porque ele envolve uma determinada
avaliação, implica que se atribua um determi-
nado valor estético ao objeto em causa.
As frases seguintes pretendem ilustrar a diferença
entre estes dois sentidos:
1. Isto é uma obra de arte (referindo-se a um
pedaço de cerâmica encontrado numa
escavação arqueológica). Fig. 2 — Liberdade Guiando o Povo (1830), de Eugène Delacroix.
Quando afirmamos que um quadro como este é uma obra de arte,
2. Este quadro é uma obra de arte (referindo-se a estamos a usar a expressão «obra de arte» no sentido classificativo
Liberdade Guiando o Povo, de Eugène Delacroix). ou valorativo?

A criação artística e a obra de arte 211

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Na primeira frase, a expressão «obra de arte» está claramente a ser usada
no sentido classificativo. Aquilo que se pretende é esclarecer alguém relati-
vamente à categoria a que pertence o objeto em causa. Na segunda frase,
não existe essa dúvida. Os quadros fazem parte do tipo de coisas que habi-
tualmente entendemos como pertencendo à categoria das obras de arte,
pelo que, substituindo a expressão «este quadro» por «esta obra de arte»,
a frase não deveria perder o seu sentido. Mas, se estivéssemos a usar a
expressão «obra de arte» no sentido classificativo, a frase significaria qual-
quer coisa como «Esta obra de arte é uma obra de arte.», ou seja, tornar-
-se-ia redundante. Geralmente não afirmamos este tipo de redundâncias;
por isso, o mais provável é que a expressão «obra de arte» esteja aqui a ser
usada no sentido valorativo. Se assim for, aquilo que pretendemos na
segunda frase não é apenas classificar um objeto como pertencendo a uma
determinada classe, mas distingui-lo como sendo um bom exemplar da
classe a que pertence. Deste modo, mesmo substituindo a expressão «este
quadro» por «esta obra de arte», a frase continua a ser informativa, pois
afirma qualquer coisa como «Esta obra de arte é uma boa obra de arte.».
Habitualmente não fazemos um uso muito regular do sentido classificativo.
Mas, desde a modernidade, o mundo da arte tem-nos oferecido a oportu-
nidade de voltar a fazer um uso mais regular deste sentido da palavra, pois
muitos museus e galerias de arte têm-nos apresentado, sob
o rótulo de obra de arte, objetos comuns indistinguíveis de
outros objetos quotidianos. Um exemplo famoso deste tipo
de objetos é a obra Fonte (um urinol), de Marcel Duchamp.
Este e outros exemplos do mesmo género ficaram conheci-
dos como ready-mades, uma vez que o artista não os pro-
duz, limita-se a encontrá-los prontos a ser exibidos.
Além disso, o uso classificativo é importante porque nos
permite falar de má arte. Se só usássemos o sentido valora-
tivo, não seria possível dizer que uma obra de arte é má,
pois não chegaria sequer a ser uma obra de arte. Deste
modo, além de nos permitir distinguir o que é arte do que
não é arte, uma boa teoria da arte deve dar conta destes
dois usos da palavra «arte», pelo que deve considerar a
Fig. 3 — My Bed (1998), de Tracey Emin. possibilidade de existir boa e má arte.
Para o crítico de arte Harold Rosenberg (1906-1978), Ao longo desta unidade, iremos avaliar criticamente cinco
a arte pós-moderna deve ser entendida como um objeto ansioso.
tentativas de definir arte: a teoria mimética, a teoria repre-
Como se a própria obra perguntasse «Sou uma obra-prima
ou uma montanha de sucata?», visto que, muitas vezes, sentacionista, a teoria expressivista, a teoria formalista e a
poderia ser ambas em simultâneo. teoria institucional.

Atividades

1 «Para definir explicitamente arte, basta encontrar uma propriedade que seja comum a todas as obras de arte.» Concorda? Porquê?

2 Por que motivo alguns autores consideram muito difícil, ou até mesmo impossível, definir arte?

3 O que significa dizer que uma boa teoria da arte deve dar conta dos usos comuns da palavra «arte»?

Debate

«Sem o sentido classificativo (descritivo), deixaríamos de poder falar de má arte.» Concorda? Porquê?

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9.1.1   A teoria mimética da arte
(ou teoria da arte como imitação)
A discussão em torno da definição de arte remonta a Platão e Aristóteles.
Teorias da arte
Estes filósofos refletiram sobre a poesia, a pintura, a música e a arquitetura
do seu tempo e concluíram que aquilo que existe de comum a todas as
obras de arte é o facto de estas envolverem sempre alguma forma de imita- Teoria mimética
ção. Aristóteles expressa esta ideia no excerto que se segue:
Teoria representacionista

Texto 1 Teoria expressivista

A poesia épica, a tragédia e a comédia, assim como a poesia ditirâmbica e a maior parte
da arte de tocar flauta e lira, são todas geralmente concebidas como imitações. Teoria formalista
Aristóteles, «Poética», in AlmeidA, Aires e murcho, Desidério (org.),
Textos e Problemas de Filosofia. Lisboa: Plátano Editora, 2006, pp. 134-136. Teoria institucional

Esquema 1 — Teorias que procuram definir


arte.

Uma vez que considera que a imitação — seja da natureza, de objetos, de


acontecimentos, de seres humanos ou das suas ações — é uma propriedade
geral que qualquer objeto classificado como arte possui (isto é, a imitação
é uma condição necessária para a arte), esta teoria designa-se por «teoria
mimética da arte» (do grego «mimesis» = imitação) ou «teoria da arte como
imitação».
Apesar de concordarem a respeito do caráter imitativo da arte, Platão e
Aristóteles extraíram consequências muito diferentes desta conclusão.
Enquanto Platão fazia deste aspeto o principal alvo do seu ataque à arte,
que era, no seu entender, uma mera simulação de aparências, Aristóteles
nada via de errado na imitação, antes pelo contrário, atribuía-lhe uma fun-
ção terapêutica que designou por «catarse» — purificação das paixões.
Evidentemente, estes autores não acreditavam que só a arte tinha a proprie-
dade de imitar a realidade. Também outras atividades, como a atividade
infantil de imitar os adultos, envolvem imitação, mas isso não implica
que sejam obras de arte. Dizer que a imitação é uma condição necessária
para a arte é afirmar que algo só é arte se for uma imitação, o que é muito
diferente de dizer que a imitação é uma condição suficiente para a arte; isso
significaria que tudo o que envolve imitação é arte.
Assim, a tese central desta teoria pode ser formulada do seguinte modo:

Tese da teoria mimética da arte:


x só é uma obra de arte se for uma imitação (ou dito de outra forma:
«se x é arte, então x é uma imitação»).
Juízo intuitivo

Esta teoria foi pacificamente aceite até finais do século xviii. Uma vida tão Avalie a teoria mimética de acordo
longa só se explica porque no tempo de Platão e Aristóteles os exemplos com a sua primeira reação.
mais relevantes de arte eram imitativos. Uma peça de teatro ou uma escul- A — Convincente.
tura eram imitações de pessoas, deuses, heróis e ações — a música e a
B — Atraente mas não convincente.
dança eram encaradas como elementos da representação teatral e não como
formas artísticas autónomas. A influência desta teoria ainda hoje se faz C — Duvidosa.
sentir: há quem diga que a pintura abstrata não é arte, porque não se parece D — Implausível.
com coisa alguma; ou que um filme não é arte, porque não tem uma histó-
ria parecida com a vida real.
A criação artística e a obra de arte 213

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Objeções à teoria mimética da arte
Objeção da pintura abstrata
No fim do século xix, as artes visuais distanciaram-se nitidamente do obje-
tivo de imitar a natureza. A fotografia era perfeitamente capaz de copiar a
aparência das coisas, por isso, os pintores começaram a usar a pintura com
outros objetivos. Os expressionistas, como Van Gogh, por exemplo, deixa-
ram de pretender representar com exatidão a aparência das coisas e passa-
ram a distorcê-la de forma a exprimir as suas emoções face aos objetos
representados. Cubistas, action painters e minimalistas afastaram-se tanto
dos seus referentes que os tornaram irreconhecíveis ou até mesmo inexis-
tentes. E depois de quase um século de pintura abstrata, a teoria mimética
não resiste à avaliação crítica e é hoje considerada falsa.
Algumas pinturas de Mark Rothko e Yves Klein, constituídas por puros
campos de cor, são poderosos contraexemplos a esta teoria (ver figura 8
da página 196 e figura 11 da página 200). Estas pinturas não são imitações
da realidade, mas são obras de arte. Logo, a teoria de que todas as obras
de arte são imitações é falsa, porque deixa de fora muitas coisas que
consideramos arte, ou seja, é demasiado restritiva. Se fosse aceite, teria a
consequência absurda de ignorar museus inteiros que se dedicam à arte
contemporânea.
Esta forma de argumentar é muito utilizada pelos filósofos e tem o nome
de «argumento por redução ao absurdo» (há quem use a expressão latina
reductio ad absurdum). Um argumento por redução ao absurdo funciona do
seguinte modo. Começa-se por supor que a ideia que pretendemos refutar
é verdadeira. Em seguida, mostra-se que essa ideia conduz validamente a
uma contradição, ou seja, tem consequências absurdas. Por fim, conclui-se
que a suposição de que se partiu tem de ser falsa. Neste caso, podemos
sintetizar o argumento do seguinte modo:

Argumento 1
(1) Se x é arte, então x é uma imitação.
(2) As obras de Mark Rothko e Yves Klein não são imitações.
(3) As obras de Mark Rothko e Yves Klein não são obras de arte.
(4) Mas as obras de Mark Rothko e Yves Klein são reconhecidamente
obras de arte.
(5) Logo, é falso que se x é arte, então x é uma imitação.

Objeção da arte decorativa


No que diz respeito à história da arte, a pintura abstrata é um fenómeno
relativamente recente, mas a arte visual puramente decorativa é tão antiga
como a história da arte figurativa.
Desde certas tapeçarias e cerâmicas até aos padrões ornamentais islâmicos,
Fig. 4 — Mosaico arabesco. a arte decorativa tem-nos oferecido ao longo dos tempos vários exemplos
Será que este padrão geométrico imita de obras de arte que não imitam a realidade; logo, também a arte decora-
alguma coisa? tiva constitui um contraexemplo à teoria mimética da arte.

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Objeção da música instrumental
Será que a música imita, necessariamente, alguma coisa? A resposta que
nos sentimos tentados a dar é: não. Se em alguns casos a música pode ser
enquadrada nas chamadas artes imitativas, por ter como principal função
acompanhar as palavras dos cantores, como acontece por exemplo na
ópera e em alguns cânticos religiosos, isso não significa que essa seja a sua
única, ou até mesmo principal, função. No início do século xix, a generali-
zação da música puramente instrumental deitou por terra qualquer possi-
bilidade de se considerar que toda a música pertence ao domínio das artes
imitativas.
Se a arte decorativa, a pintura abstrata e a música instrumental oferecem
exemplos de obras de arte genuínas, a teoria mimética da arte está em maus
lençóis. Claro que um defensor deste tipo de teoria pode recusar o estatuto
de obra de arte a algumas destas obras, mas uma vez que esse estatuto lhes
é amplamente reconhecido, o ónus da prova está do seu lado. No entanto,
considerando que a única justificação que apresenta para a sua rejeição é o
facto de estas obras não serem imitativas, o defensor da teoria mimética
acaba por estar a argumentar de forma viciosamente circular, visto que
saber se a imitação é ou não uma condição necessária para que algo seja
arte é justamente o que está a ser posto em causa.
Vejamos o que acontece através de uma simplificação da discussão entre o
defensor da teoria mimética e os seus críticos:
i. A teoria mimética defende que algo é arte só se for imitação. Mas será
esta teoria verdadeira?
ii. Os críticos defendem que não e apresentam como contraexemplos as Avaliação crítica
artes não imitativas.
iii. O defensor da teoria mimética defende-se dizendo que esses contra- Assinale agora a sua avaliação ponderada
exemplos falham, porque não são obras de arte. da teoria mimética.
A — Convincente.
iv. Os críticos perguntam por que razão se nega o estatuto de obra de arte
a esses exemplos. B — Atraente mas não convincente.

v. O defensor da teoria mimética afirma que esses exemplos não são obras C — Duvidosa.
de arte porque não constituem nenhuma forma de imitação, que é jus- D — Implausível.
tamente o que a teoria mimética afirma.

Atividades

1 Qual é a tese central da teoria mimética da arte?

2 «Segundo a teoria mimética, a imitação é uma condição suficiente para a arte.» Concorda?
Justifique a sua resposta.

3 Por que razão a teoria da arte como imitação teve uma vida tão longa?

4 «A teoria da arte como imitação é demasiado restritiva.» Concorda? Porquê?

Debate

Será que negar o estatuto de arte às artes não imitativas é uma boa estratégia para superar as objeções à teoria mimética da arte? Porquê?

A criação artística e a obra de arte 215

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9.1.2   A teoria representacionista da arte
Numa tentativa de resolver objeções como as anteriormente apresentadas,
aqueles que simpatizam com a teoria de Platão e Aristóteles substituíram a
ideia de imitação pela de representação. Por representação entendemos o
ato através do qual algo toma intencionalmente o lugar de outra coisa. Ou
dito de outra forma:
• x representa y se, e só se, um emissor tem a intenção de que x esteja em
vez de y e o recetor compreende essa intenção.
Neste sentido, a noção de representação é mais
abrangente do que a de imitação, porque embora
a imitação seja uma forma de representação, nem
toda a representação envolve imitação.
É fácil compreender esta afirmação se pensarmos
nos sinais de trânsito. O sinal de aproximação de
cruzamento, por exemplo, imita a forma de um
cruzamento, mas o mesmo não acontece com o
sinal de sentido proibido, não se pode dizer que
esse sinal imita a proibição de circular num dado
sentido; em vez disso, dizemos que esse sinal repre-
senta essa proibição. Segundo a teoria representa-
cionista, o mesmo se verifica na arte. Tal como as
cinco quinas da bandeira portuguesa não imitam
Portugal, mas antes representam esse país; também
a pintura abstrata de Mondrian não imita a aparên-
Fig. 5 — Composição viii (1923), de Wassily Kandinsky.
cia das coisas, mas representa a sua essência (ou
A pintura abstrata de Kandinsky não imita a essência das coisas,
mas representa a sua essência.
pelo menos é essa a sua intenção); o poema épico
Ilíada não imita a guerra de Troia, representa-a, etc.

Tese da teoria representacionista da arte:


x só é uma obra de arte se for uma representação (por outras
palavras: «Se x é arte, então x é uma representação.»).

A teoria mimética exclui muitas obras de arte, mas, visto que a noção de
representação é mais geral, talvez a teoria representacionista resista aos
contraexemplos apresentados. Afinal de contas, não podemos dizer que
toda a arte implica imitação, mas talvez possamos afirmar que toda a arte
implica alguma forma de representação. Por mais abstrata que uma obra
possa parecer, o seu autor deve pretender que ela represente alguma coisa,
ou não? Será que temos boas razões para acreditar nisso?
A teoria representacionista é definitivamente mais inclusiva do que a teoria
mimética, mas, conforme veremos de seguida, não está isenta de objeções.

Juízo intuitivo

Avalie a teoria representacionista de acordo com a sua primeira reação.


A — Convincente. C — Duvidosa.
B — Atraente mas não convincente. D — Implausível.

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Objeções à teoria representacionista da arte
Tal como a teoria mimética, também a teoria
representacionista não está isenta de contrae-
xemplos. Há muitas obras de arte que não são
representações. A arquitetura constitui um
exemplo paradigmático deste tipo de contrae-
xemplo. A Basílica de São Pedro, no Vaticano,
não está em vez da casa de Deus, ela é a casa de
Deus; o Capitólio, em Washington DC, tem
como função albergar, e não representar, a
assembleia legislativa.
O mesmo se verifica na música. Se prestarmos
atenção, grande parte da música instrumental
pretende apenas produzir determinados sons, e
não representar seja o que for. Algumas peças
de Bach, por exemplo, foram concebidas com
propósitos didáticos, a fim de promover certas
aprendizagens nos estudantes de música. Fig. 6 — Basílica de São Pedro, no Vaticano.
Também existem pinturas, poesias, filmes, A Basílica de São Pedro, no Vaticano, não representa a casa de Deus, ela é a
casa de Deus.
fotografias, peças de teatro e coreografias que
não representam coisa alguma, são simples-
mente exercícios formais que proporcionam experiências percetivas intensas;
e, na medida em que é apenas um sedutor jogo de formas, também a arte
decorativa continua a não ter lugar na teoria representacionista.
Por fim, resta acrescentar que os ready-mades, ou outros casos de found art
(ou objets trouvés), que constam de qualquer coletânea de história da arte,
não representam objetos comuns do quotidiano; são objetos comuns do
Avaliação crítica
quotidiano. A título de exemplo, recordem-se as obras de
Marcel Duchamp anteriormente referidas; a obra Fonte não representa um Assinale agora a sua avaliação ponderada
urinol, é um urinol; a obra Antecipação de Um Braço Partido não representa da teoria representacionista.
uma pá de limpar neve, é uma pá de limpar neve.
A — Convincente.
Assim, tal como acontecia com a teoria mimética, também a teoria repre- B — Atraente mas não convincente.
sentacionista enfrenta muitos e variados contraexemplos e, por isso, tam-
bém ela pode ser considerada demasiado restritiva. Será que não há C — Duvidosa.
maneira de salvar a intuição de que as obras de arte dizem alguma coisa D — Implausível.
sobre o mundo?

Atividades

1 Qual é a tese central da teoria representacionista da arte?

2 «A teoria representacionista é mais abrangente do que a teoria mimética da arte.» Concorda? Porquê?

3 Será a representação uma condição necessária para que algo possa ser arte? Porquê?

Debate

O neorrepresentacionismo defende que para que algo seja arte tem de ser acerca de alguma coisa. Será que esta estratégia permite superar
as limitações da teoria representacionista? Porquê?

A criação artística e a obra de arte 217

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9.1.3   A teoria expressivista da arte
Conforme foi anteriormente notado, a teoria mimética da arte (tal
como a sua vertente representacionista) vigorou até finais do século
xviii. De acordo com esta conceção, a arte era entendida como uma
imitação (ou representação) das características objetivas do mundo
exterior, da aparência dos objetos e das ações humanas. Contudo, o
século xviii assistiu a prodigiosos progressos científicos e, com o
crescente sucesso da ciência na descrição e explicação do mundo
exterior, a arte foi sendo relegada para segundo plano.
Com o advento do Romantismo, o século xix veio resgatar a impor-
tância da arte no quotidiano, atribuindo-lhe uma função diferente,
mas igualmente importante — dar conta do mundo subjetivo
da experiência interior. A arte deixa de ser um espelho do mundo
objetivo e passa a ser um espelho do mundo subjetivo, dos estados
de espírito, das emoções e das atitudes. Assim, o lugar central
preenchido pela imitação (ou pela representação) na arte passa a ser
ocupado pela expressão de sentimentos. O papel da arte passa a ser
o de exprimir as experiências subjetivas do artista. Mesmo quando
descreve ou pinta uma paisagem, o artista procura imprimir nessa
descrição ou pintura um significado emocional, que é bem mais
Fig. 7 — viajante sobre Um Mar de Névoa (1818), importante do que a mera reprodução da sua aparência. Cada obra
de Caspar David Friedrich.
de arte é, assim, o registo do que o artista sentiu.
Caspar David Friedrich é considerado por muitos o
expoente máximo da pintura romântica alemã. Mais Há várias versões da teoria expressivista da arte. Iremos analisar, em
do que uma reprodução fria do que é abarcado pelo seguida, a versão apresentada por Leão Tolstoi (1828-1910). Na sua
campo visual, as suas paisagens revelam os estados obra O Que É a Arte? Tolstoi defende o seguinte:
emocionais daquele que as contempla.

Texto 2

A arte é uma atividade humana que consiste nisto: um homem comunica consciente-
mente a outros, por meio de certos sinais externos, os sentimentos de que teve expe-
riência, e outras pessoas são contaminadas por estes sentimentos e também deles têm
experiência.
leão tolstoi «O Que É a Arte?», in dickie, George (1997) Introdução à Estética.
Lisboa: Bizâncio, 2008 [ed. original1898].

A formulação da teoria expressivista de Tolstoi é a seguinte:

Tese da teoria expressivista da arte:


x é uma obra de arte se, e só se, transmite as emoções do seu criador
a um público.

Esta teoria apresenta três condições necessárias que conjuntamente são


suficientes para que haja arte:
i. O artista tem de experimentar determinados sentimentos ou estados
emocionais (condição experimentalista);
ii. O artista tem de produzir uma obra que exprima os seus sentimentos
(condição expressivista);
iii. O público tem de ser contagiado pelos sentimentos do artista (condi-
ção identitária).

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Tolstoi era ele próprio um artista, um escritor, e o seu exemplo pode ser
utilizado para ilustrar a sua teoria da arte. Tolstoi participou na guerra. Esta
experiência despertou certos sentimentos no escritor. Tolstoi exprime esses
sentimentos no romance Guerra e Paz. O público lê a obra e é contagiado
por esses sentimentos. Satisfeitas conjuntamente as três condições necessá-
rias propostas por Tolstoi, temos assim uma condição suficiente para que
Guerra e Paz seja considerada uma obra de arte.

1. Tolstoi esteve na guerra e 2. Tolstoi escreve a obra Guerra e Paz, 3. A obra desperta no público os
experimentou vários sentimentos através da qual exprime esses mesmos sentimentos que o artista
ou estados emocionais. sentimentos ou estados emocionais. sentiu ao passar pela guerra.

Esquema 2 — Condições para considerar a obra Guerra e Paz uma obra de arte.

A teoria expressivista da arte tem o mérito de restaurar o estatuto da arte no Juízo intuitivo
mundo ocidental, mostrando que a arte está intrinsecamente ligada a aspe-
tos emocionais que têm uma importância inegável na vida das pessoas. Avalie a teoria expressivista de acordo
Além disso, a sua capacidade de lidar facilmente com a música instrumen- com a sua primeira reação.
tal e com a pintura abstrata valeu-lhe muitos adeptos que abandonaram A — Convincente.
a teoria representacionista. Afinal de contas, desde que corresponda à
B — Atraente mas não convincente.
expressão das emoções do artista e que o público se deixe contagiar por
essas emoções, a obra será considerada arte, mesmo que não imite nem C — Duvidosa.
represente coisa alguma. No entanto, tal como a teoria representacionista, D — Implausível.
também a teoria expressivista não está isenta de objeções.

Objeções à teoria expressivista da arte


Objeção à condição experimentalista
Será que um artista profissional tem necessariamente de experimentar
determinados estados emocionais enquanto cria arte?
É possível que um escritor de romances, por exemplo, tenha uma habili-
dade tal para manipular palavras, servindo-se de certos ritmos narrativos,
descrevendo situações que envolvem muitos e variados sentimentos, sem
ter ele próprio de experimentar os estados emocionais das suas persona-
gens. Imaginemos que o romance narra a história de um artista que se sente
desesperado por não conseguir produzir. Se o próprio escritor estivesse a
atravessar uma crise como essa, então também ele não seria capaz de escre-
ver a obra. Temos tendência para imaginar que os artistas são almas ator-
mentadas, ou pessoas que vivem e criam ao sabor da inspiração, mas esse
não tem, necessariamente, de ser o caso. Um escritor pode ter um determi-
nado horário de trabalho, escrever desapaixonadamente, com o objetivo de
pagar as suas contas e levar uma vida perfeitamente serena e tranquila.
Em síntese, a condição experimentalista é demasiado restritiva, porque
deixa de fora muitas produções artísticas que não têm por substrato uma
determinada vivência emocional do artista.

Objeções à condição expressivista


A segunda condição necessária, exigida pela teoria expressivista para que
algo seja uma obra de arte, indica que o artista tem de produzir uma obra
que seja a expressão dos seus sentimentos. Mas, embora os artistas possam
experimentar várias emoções, antes, durante e após o processo de criação
artística, há muitas obras de arte que não expressam qualquer tipo de emo-
ção. Apresentamos a seguir alguns contraexemplos a este requisito.
A criação artística e a obra de arte 219

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Contraexemplo da arte percetiva
Existe arte criada com o único objetivo de estimular as nossas estruturas
sensoriais — arte percetiva. Grande parte da arte decorativa, com os
seus padrões ornamentais e tapeçarias, bem como certos tipos de
música não exprimem nenhuma emoção em particular; são criações
que visam apenas ser agradáveis para os sentidos, e não comunicar
as emoções do artista. Não podemos sequer dizer que estas
obras exprimem prazer, elas limitam-se a provocá-lo, cati-
vando-nos através das suas configurações formais. Outra
forma de arte puramente percetiva é a Op Art (arte ótica).
Este tipo de composições não pretende exprimir emoções,
mas sim explorar a forma como certos efeitos óticos interagem
com o nosso sistema percetivo.

Contraexemplo da arte aleatória


Designa-se por arte aleatória um vasto leque de produções artísticas
que, de uma maneira ou de outra, procuram substituir os procedimen-
Fig. 8 — Hat-Meh (1971-72), de Victor
tos subjetivos de decisão por procedimentos objetivos, fortuitos e aleató-
Vasarely.
rios. Dispor aleatoriamente objetos sobre uma superfície, salpicar tinta ao
A Op Art surge em meados da década de
sessenta como uma variante da pintura
acaso sobre uma tela e utilizar programas de computador construídos
abstrata. Este estilo visa deliberadamente segundo uma lógica de probabilidades para compor estruturas musicais são
brincar com o nosso sistema percetivo, alguns dos procedimentos utilizados por este tipo de artistas, com o intuito
através da criação de efeitos visuais como a de remover da criação artística os estados emocionais do seu criador. Deste
sobreposição, o movimento e a interação modo, deixa de ser necessário que a obra corresponda à expressão das
entre o fundo e o foco principal.
emoções do artista para que possa ser considerada uma obra de arte.

Objeções à condição identitária


Tal como foi apresentada, a teoria expressivista da arte possui três polos: o
artista, a obra e o público. É em torno deste último polo — o público —
que gravita a terceira condição necessária exigida pela teoria: perante a
obra, o público deve experimentar o mesmo sentimento ou estado emocio-
nal do artista. Uma vez que envolve uma identificação entre as emoções do
artista e do espectador, chamamos a esta condição «identitária».
Trata-se da condição mais restritiva, pois considera que algo só é arte se o
público experimentar as mesmas emoções que o artista. Ora, isto é difícil
de sustentar, pois parece simplesmente implausível defender que o estatuto
de uma obra enquanto arte está dependente do facto de alguém ter uma
experiência semelhante à do seu criador, quando a contempla.

As emoções do auditório não têm de ser idênticas às do artista


Se pensarmos na arte da representação teatral, por exemplo, torna-se mani-
festo que as emoções do público não podem, muitas vezes, coincidir com
as emoções do artista. Se o ator está a representar um vilão narcisista, pode
despertar no público sentimentos de desprezo, ou até mesmo ódio, mas
esses sentimentos não têm de corresponder aos do próprio ator.
Existem outros exemplos do mesmo género: há quem diga que as improvi-
sações de Beethoven comoviam o público até às lágrimas, sem que este
parecesse minimamente comovido, rindo-se inclusivamente da tolice da
assistência e do poder exercido sobre ela.

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Nem toda a transmissão de emoções é arte
Se, por um lado, a teoria expressivista peca por apresentar condições neces-
sárias demasiado restritivas, também é verdade que, no que toca a condi-
ções suficientes, a teoria é excessivamente inclusiva.
Considere o seguinte exemplo:

Experiência mental 1

Imagine que o Carlos é alguém que se sente muito desanimado porque acabou de ser despedido do seu local de trabalho. O Carlos desata
num pranto e fala soluçadamente, lamentando-se pela sua situação. O Luís é um colega de trabalho que assistiu a tudo e que ficou como-
vido ao ver um homem adulto sentir-se tão destroçado. Começa a pensar que corre sérios riscos de ser ele o próximo a ser mandado
embora e deixa-se contagiar pelas emoções do Carlos.

Sem dúvida que o Carlos experimenta um sentimento — a tristeza de perder


o emprego; além disso, o Carlos exprime esse sentimento através das suas
ações, que acabam por contagiar o Luís com essa tristeza. Podemos dizer que:
a) O Carlos experimenta um sentimento — a tristeza de perder o emprego.
b) O Carlos exprime esse sentimento através das suas ações.
c) As ações de Carlos despertam no Luís o mesmo sentimento que este
experimentou.
Deste modo, todas as condições necessárias e suficientes propostas pela
teoria de Tolstoi foram satisfeitas. Mas estaremos na presença de uma obra
de arte? Claro que não. O Carlos está simplesmente a reagir a uma notícia
que o deixou abalado; não tem sequer a intenção de transmitir seja o que Avaliação crítica
for a quem quer que seja, muito menos de produzir uma obra de arte.
Por conseguir abarcar a pintura abstrata e a música instrumental, a teoria Assinale agora a sua avaliação ponderada
da expressão é mais abrangente do que as teorias da representação. No da teoria expressivista.
entanto, esta teoria revela-se pouco satisfatória por dois motivos: A — Convincente.

i. apresenta condições necessárias demasiado restritivas (não cobre toda a B — Atraente mas não convincente.
riqueza da arte); C — Duvidosa.
ii. apresenta condições suficientes demasiado abrangentes (não capta a D — Implausível.
especificidade da arte).

Atividades

1 Qual é a tese central da teoria expressivista da arte?

2 Em que consiste a chamada «falácia intencional»?

3 Por que razão as obras de arte baseadas no acaso constituem contraexemplos à teoria expressivista da arte?

4 «As emoções do público nem sempre coincidem com as emoções do artista.» Em que medida esta afirmação pode constituir uma
objeção à teoria expressivista da arte?

5 «A expressão de emoções é uma condição suficiente para que algo seja arte.» Concorda? Porquê?

Debate

«A teoria expressivista da arte pode não servir para definir arte num sentido classificativo, mas dá conta do sentido valorativo.» Concorda? Porquê?

A criação artística e a obra de arte 221

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9.1.4   A teoria formalista da arte
Tal como a teoria expressivista, também a teoria formalista da arte foi, em
grande medida, motivada pelas mudanças drásticas nas práticas artísticas que
marcaram o século xix, nomeadamente pelo aparecimento e crescente impor-
tância da pintura abstrata. A pintura impressionista surgiu como que um
primeiro impulso no percurso das artes visuais até à abstração. Este tipo de
pintura caracteriza-se por esbater os contornos das figuras representadas,
embora seja ainda possível identificá-las. Contudo, a preocupação com
o puro jogo das cores na superfície da tela impõe-se com uma evidência cada
vez maior nas obras dos pintores modernos, até que os seus referentes se
tornam impercetíveis ou até mesmo inexistentes.
Muitos autores consideram que o aparecimento da fotografia contribuiu,
em larga medida, para este desenvolvimento. Afinal de contas, a fotografia
permitia a reprodução de ima-
gens com grande rigor, de
forma rápida e a baixo custo.
Neste sentido, para não perder
o seu lugar na sociedade, a pin-
tura teve de evoluir noutras
direções. A pintura abstrata foi
uma das soluções encontradas
para este problema. A pintura
adquire assim um estatuto pró-
prio e autónomo — a «pintura
Fig. 9 — Nenúfares (1920-1926), de Claude Monet. pela pintura», como afirma
O impressionismo é uma corrente artística que procurava sobretudo captar as impressões sensíveis Noël Carroll no texto que se
do artista, e não representar com nitidez a aparência das coisas. segue:

Texto 3

Em vez de tratarem o quadro como um vidro — um espelho ou janela aberta para o


mundo —, os pintores começaram a explorar a própria textura do vidro. Deixaram de
olhar através dele, passaram a olhar para ele. Isto era pintura pela pintura — pintura que
experimentava as possibilidades da forma, da linha e da cor —, não era pintura para
mostrar o mundo.
Noël cArroll, Filosofia da Arte. Lisboa: Edições Texto e Grafia, 2010 [ed. original 1999], p. 127.

Este tipo de arte, em que o importante é a forma e a organização visual do


quadro (e não a sua capacidade de representar o mundo, ou de exprimir as
emoções do artista), teve um grande impacto no crítico e filósofo da arte
Clive Bell (1881-1964). Essa influência foi de tal modo decisiva que, em
1914, este autor acabou por apresentar uma teoria da arte que gravitava
em torno da noção de forma artística — a teoria formalista da arte.
Esta teoria não é totalmente inédita, já que, ainda no século xviii, Kant
tinha feito notar que a beleza depende apenas da pura forma de um objeto,
e não de considerações acerca da sua utilidade. No entanto, a formulação
da teoria apresentada e defendida por Bell no seu livro Arte, tornou-se já
um clássico incontornável na discussão contemporânea sobre a natureza da
arte e, por isso, a versão da teoria que iremos considerar daqui em diante
terá como referência essa formulação.

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Bell não diz simplesmente que a arte é forma; porque, de certa maneira,
tudo tem forma, seja um ensaio filosófico, uma demonstração matemática
ou um ritual religioso. Em vez disso, recorre à expressão «forma signifi-
cante». Mas o que significa a expressão «forma significante»? Segundo Bell,
trata-se de uma configuração — de linhas, cores, formas e espaços — que
tem a capacidade de originar um determinado tipo de emoção no especta-
dor — «emoção estética».
Neste sentido, dizer que x é uma obra de arte é afirmar que as suas linhas,
cores, formas e espaços foram concebidos com o intuito de gerar uma emo-
ção estética no espectador, que é o mesmo que dizer que x foi concebido
para exibir forma significante. Nas palavras de Bell:

Texto 4

O ponto de partida para todos os sistemas da estética tem de ser a Qual é a justificação para essa classificação? Qual é a qualidade
experiência pessoal de uma emoção peculiar. Aos objetos que provo- comum e peculiar a todos os membros dessa classe? Seja ela qual
cam tal emoção chamamos obras de arte. […] Que existe um tipo for, não há dúvida que se encontra muitas vezes acompanhada por
particular de emoção provocado por obras de arte visual e que essa outras qualidades; mas estas são fortuitas — aquela é essencial. Tem
emoção é provocada por todos os tipos de arte visual, por pinturas, de haver uma qualquer qualidade sem a qual uma obra de arte não
esculturas, edifícios, peças de cerâmica, gravuras, têxteis, etc., etc., não existe; na posse da qual nenhuma obra é, no mínimo, destituída de
é disputado, penso eu, por ninguém capaz de a sentir. Esta emoção é valor. Que qualidade é essa? Que qualidade é partilhada por todos os
chamada emoção estética e, se pudermos descobrir alguma quali- objetos que provocam as nossas emoções estéticas? […] Só uma
dade comum e peculiar a todos os objetos que a provocam, teremos resposta parece possível — a forma significante. Em cada uma
resolvido o que considero ser o problema central da estética. Tere- destas coisas, linhas e cores combinadas de uma maneira particular,
mos descoberto a qualidade essencial da obra de arte, a qualidade certas formas e relações de formas, estimulam as nossas emoções
que distingue as obras de arte de outras classes de objetos. estéticas. A estas relações e combinações de linhas e cores, a estas
formas esteticamente tocantes, chamo «Forma Significante»; e a
Com efeito, ou todas as obras de arte visual têm alguma qualidade
«Forma Significante» é a tal qualidade comum a todas as obras de
comum, ou quando falamos de «obras de arte» estamos a descon-
arte visual.
versar. Cada pessoa fala de «arte» fazendo uma classificação mental
pela qual distingue a classe das «obras de arte» de todas as outras clive Bell, «A Hipótese Estética», in d’orey, Carmo (org.)
classes. O Que É a Arte? Lisboa: Dinalivro, 2007.

Assim, a definição de arte proposta por Bell pode ser formulada do seguinte
modo:

Tese da teoria formalista da arte:


x é uma obra de arte se, e só se, x foi (principalmente) concebido
para exibir forma significante.

Tal como é aqui apresentada, a definição não se limita a afirmar que


o objeto possui, ou exibe, forma significante; introduz-se a ideia de que o
objeto foi concebido com esse propósito, ou, pelo menos, foi principal-
mente concebido com esse propósito. Isto significa que, no caso de ter sido
concebido com vários propósitos, o propósito de exibir forma significante
terá de ser o principal e todos os outros terão de ser secundários.
Este tipo de referência à intenção do criador é importante, porque, caso
contrário, não teríamos forma de distinguir as belezas naturais das obras de
arte. Deste modo, podemos afirmar que, embora muitas estruturas naturais
possam, eventualmente, originar uma emoção semelhante no seu especta-
dor, estas não são obras de arte, porque não foram concebidas com esse
propósito. Além disso, este tipo de referência tem ainda a vantagem
de lidar de modo satisfatório com a diferença entre os usos classificativo
(descritivo) e valorativo (avaliativo) da palavra «arte».

A criação artística e a obra de arte 223

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Um objeto será uma obra de arte (no sentido classificativo) se, e só se, foi
concebido com o objetivo de produzir uma emoção estética no espectador.
No caso de concretizar esse objetivo, será considerado uma boa obra de
arte, ou seja, uma obra de arte no sentido valorativo. Caso falhe o seu pro-
pósito, o objeto será ainda uma obra de arte, no sentido classificativo,
embora seja uma má obra de arte. Um objeto não pode deixar de ser uma
obra de arte só porque é de má qualidade. O que se pretende é encontrar
uma teoria geral da arte e não apenas uma teoria da boa arte; por isso, o
que conta é que o artista tenha a intenção de dotar a sua obra de forma
significante. Se o consegue ou não, isso é indiferente para uma teoria geral
Fig. 10 — O Juramento dos Horácios (1784), da arte, ainda que seja importante para apreciar a qualidade da obra.
de Jacques-Louis David.
Esta definição ajusta-se muito bem às exigências da pintura moderna, mas
O formalista dirá que, apesar de ser repre-
Bell acreditava que, além de dar conta da apreciação da pintura moderna,
sentacional, esta pintura pode ser consi-
derada arte, pois exibe forma significante. as suas considerações poderiam ser facilmente adaptadas a qualquer obra
As suas formas e cores estimulam as nossas de arte. Uma melodia, por exemplo, é uma obra de arte se, e só se, a sua
capacidades percetivas e a sua estrutura forma — as suas estruturas sonoras, tons, ritmos, etc. — foi concebida com
centrípeta arrasta o nosso olhar ao longo o intuito de provocar uma emoção estética, ou seja, tal como acontece na
da tela, até ao centro da imagem, onde pintura, uma melodia é arte se, e só se, exibir forma significante.
os braços e as espadas se cruzam na forma
de um «x». Por abandonar os requisitos representacionais e expressivistas das suas
rivais, a teoria formalista lida facilmente com os contraexemplos que afe-
tam as teorias mimética, representacionista e expressivista. Além disso, esta
teoria capta os valores formais das obras não imitativas ou inexpressivas
Juízo intuitivo
melhor do que as suas rivais. Isto não significa que uma obra de arte não
Avalie a teoria formalista de acordo
pode conter elementos representacionais ou expressivos. Afirmar que nem
com a sua primeira reação. a representação nem a expressão de emoções são funções essenciais
e exclusivas da arte significa apenas que esses elementos não são relevantes
A — Convincente.
para o estatuto de uma obra enquanto arte, pois a única coisa que é
B — Atraente mas não convincente. determinante para esse efeito são as suas propriedades formais.
C — Duvidosa.
Assim, segundo esta teoria, exibir forma significante é simultaneamente
D — Implausível. uma condição necessária e suficiente para que algo seja arte. Mas que
razões temos para aceitar esta ideia?

Objeções à teoria formalista da arte


Objeção 1
Segundo a teoria formalista, a qualidade de uma obra de arte depende do
facto de esta cumprir satisfatoriamente o intuito com o qual foi concebida
— exibir forma significante —, ou não. Isso quer dizer que o conteúdo
representacional de uma obra é sempre irrelevante para apreciação artística
da mesma. Mas isso não é verdade. Muitas vezes, é impossível apreciar
artisticamente uma obra, mesmo do ponto de vista formal, sem ter em
conta o seu conteúdo representacional.
O mesmo acontece, por exemplo, na literatura. Muitas figuras de estilo
aliam forma e conteúdo para criar determinados efeitos expressivos; se um
dos elementos não estiver presente, a composição deixa automaticamente
de funcionar. A aliteração, por exemplo, envolve a repetição sistemática de
consoantes e, frequentemente, a sua eficácia está dependente do facto de
haver alguma semelhança entre o som da consoante e o assunto em causa.
Assim, é o cariz imitativo da aliteração que desperta a nossa atenção para
esse jogo interessante entre a forma e o conteúdo. Portanto, podemos dizer
que, por vezes, o conteúdo representacional não só não é irrelevante, como
é mesmo fundamental para a apreciação artística de uma obra.

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Objeção 2
A teoria formalista afirma que o que determina a pertença de um determi-
nado objeto à categoria de obra de arte é a capacidade de proporcionar, em
virtude da sua forma, uma determinada emoção no seu espectador. Mas se
assim fosse como se explicaria que os ready-mades fossem considerados
obras de arte e as suas contrapartes do quotidiano não, apesar de exibirem
exatamente as mesmas propriedades formais?
Repara-se que, além desta consequência absurda, a teoria formalista tam-
bém teria dificuldade em distinguir o valor de uma obra de arte genuína do
valor de uma falsificação. Afinal de contas, se a falsificação for bem feita, a
sua forma será indistinguível da forma do original.

Objeção 3
Bell define forma significante apelando à noção de emoção estética. Mas
o que é uma emoção estética? Clarificar um conceito recorrendo a outros
conceitos igualmente nebulosos não é uma estratégia muito eficaz. O forma-
lista pode continuar a recuar de conceito em conceito, mas, se explicar o
obscuro em termos igualmente obscuros, o seu conceito inicial jamais estará Fig. 11 — Antecipação de Um Braço Partido
clarificado. Bell opta por dizer que a emoção estética é o que sentimos (1915), de Marcel Duchamp.
quando estamos perante certas configurações de linhas, cores e formas, ou Esta pá de limpar neve é uma obra
seja, quando estamos perante formas significantes. Mas esta estratégia não de arte. No entanto, as suas formas, linhas
resolve o problema, pois é viciosamente circular, visto que define forma e cores são idênticas às das suas contrapartes
significante recorrendo à noção de emoção estética; e, por sua vez, define do quotidiano.
emoção estética recorrendo à noção de forma significante.
O formalista pode tornar a noção de forma significante mais familiar, apro-
ximando-a do conceito de forma. Neste sentido, qualquer configuração, ou Avaliação crítica
forma, que relacione de modo adequado as diferentes partes de um todo é
um bom exemplo de forma significante. No entanto, esta alternativa não Assinale agora a sua avaliação ponderada
está isenta de dificuldades. Por um lado, porque há obras de arte que não da teoria formalista.
relacionam partes de um todo — por exemplo, as pinturas monocromáti- A — Convincente.
cas de Ad Reinhardt, de Robert Ryman e de Yves Klein (ver figura 8 na B — Atraente mas não convincente.
página 196) são blocos de uma única cor e, por isso, não têm partes que se
possam relacionar, seja de que modo for; por outro lado, isso tornaria o C — Duvidosa.
conceito de forma significante tão lato que qualquer coisa — desde uma D — Implausível.
casa até uma escova de dentes — teria forma significante.

Atividades

1 Qual é a tese da teoria formalista da arte?

2 Segundo Bell, o que significa a expressão «forma significante»?

3 Qual é a importância da referência à intenção do criador na definição de arte proposta pela teoria formalista da arte?

4 Por que razão se diz que a definição que Bell oferece de «forma significante» é viciosamente circular?

5 «A forma e o conteúdo são inseparáveis.» Esta afirmação pode constituir uma objeção à teoria formalista da arte? Porquê?

Debate

«A teoria formalista é mais abrangente do que as teorias representacionista e expressivista.» Concorda? Porquê?

A criação artística e a obra de arte 225

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9.1.5   Arte, produção e consumo: 
uma teoria institucional da arte
Na década de 1950, um importante ensaio de Morriz Weitz, intitulado
«O Papel da Teoria na Estética», sustenta que o fracasso das teorias essencia-
listas da arte se explica pelo facto de todas elas acreditarem que existe um
conjunto de condições necessárias e suficientes para a arte. Weitz considera
que não devemos procurar uma característica que seja partilhada por todos os
objetos artísticos, uma vez que isso implicaria impor limites a uma prática que
se caracteriza justamente pela sua abertura à mudança, à expansão e à inova-
ção. Assim sendo, Weitz rejeita qualquer definição essencialista, por considerar
que seria castrador para a criatividade dos artistas indicar as propriedades que
as suas criações deveriam possuir para poderem ser consideradas obras
de arte. Por este motivo, a posição de Morriz Weitz ficou conhecida por
«antiessencialismo».
Apesar de não ser fácil encontrar propriedades que todos os objetos artísticos
exibam, talvez seja possível encontrar uma definição de arte que assente não
em propriedades intrínsecas e manifestas dos objetos artísticos, mas sim em
propriedades extrínsecas e relacionais; que não sejam inerentes ao próprio
objeto, mas que dependam fundamentalmente do tipo de relações que este
estabelece com outras realidades.
É justamente este tipo de sugestão que Arthur Danto apresenta no seu provo-
catório artigo «O Mundo da Arte». Nesse artigo, Danto analisa a obra Caixa de
Brillo, de Andy Warhol, e conclui que aquilo que distingue essa obra das suas
vulgares contrapartes do quotidiano não são as suas características formais
nem quaisquer outras características que lhe sejam intrínsecas, mas sim o
facto de esta se inserir no contexto de uma prática social instituída — o
mundo da arte. Danto expressa assim esta ideia:

Texto 5

Ver algo como arte requer algo que o olhar não pode divisar — uma atmosfera de teoria
Fig. 12 — Caixas de Brillo (1964), de Andy artística, um conhecimento da história da arte: um mundo da arte.
Warhol. Arthur dANto, «O Mundo da Arte», in WArBurtoN, Nigel, O Que É a Arte?
Segundo Danto, aquilo que distingue uma Lisboa: Editorial Bizâncio, 2007 [ed. original 1961], p. 104.
vulgar caixa de cera Brillo da obra Caixas de
Brillo de Andy Warhol é algo que o olhar não
pode divisar — uma atmosfera de teoria
Com este comentário, Danto chama a atenção para a natureza institucional da
artística, um conhecimento da história da
arte: um mundo da arte. arte. Em 1974, o filósofo americano George Dickie formula de modo articu-
lado a primeira teoria institucional da arte:

Tese da teoria institucional da arte:


x é uma obra de arte, no sentido classificativo, se, e só se:
i. x é um artefacto;
ii. se foi atribuído o estatuto de candidato a apreciação a um conjunto das
suas características por um ou mais representantes do mundo da arte.

Segundo esta definição, existem duas condições para que algo seja arte.
A primeira é a artefactualidade. Para que exista uma obra de arte, é neces-
sário que exista um artefacto. À primeira vista, esta condição pode parecer
demasiado restritiva, visto que tradicionalmente se entende por artefacto
um objeto construído ou transformado por mãos humanas.

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No entanto, os ready-mades e a found art deixaram claro que o artista não
tem necessariamente de ter uma intervenção direta nas propriedades for-
mais da sua obra. Neste sentido, uma pedra ou um pedaço de madeira
podem vir a tornar-se obras de arte, mesmo mantendo-se inalterados.
Assim sendo, qualquer teoria da arte que tenha a artefactualidade como
condição necessária parece ter dificuldade em lidar com muita da arte
moderna e contemporânea.
Contudo, o sentido que Dickie atribui à noção de «artefacto» é bastante
mais lato do que o tradicional, pois este considera que, além dos objetos
materiais concretos produzidos ou transformados pelos seres humanos,
também os movimentos de uma coreografia, por exemplo, são artefactos
e mesmo objetos que não foram manufaturados ou cujas propriedades
formais não foram alteradas pela intervenção direta de um ser humano
podem, em determinados contextos, adquirir o estatuto de artefacto por
serem utilizados de certa maneira por alguém.
Consideremos o exemplo seguinte, apresentado por Dickie:

Texto 6

Suponhamos que se recolhe um pedaço de madeira flutuante e, sem o alterar de forma


alguma, o usamos para cavar um buraco ou brandi-lo perante um cão ameaçador. O pedaço
de madeira inalterado foi convertido em ferramenta ou arma pelo uso que lhe foi dado. […]
Em nenhum dos casos […] o pedaço de madeira é por si só um artefacto. O artefacto, em
ambos os casos, é o pedaço de madeira manipulado e usado de um certo modo.
GeorGe dickie, «A Teoria Institucional da Arte», in Introdução à Estética.
Lisboa: Editorial Bizâncio, 2008 [ed. original 1997], p. 139.

Algo semelhante pode ocorrer no contexto da arte. Se o pedaço de madeira


tivesse sido recolhido e exibido numa exposição como uma pintura ou uma
escultura, também se teria convertido num artefacto. Assim, o uso que
Dickie faz da palavra «artefacto» acolhe, entre outros, os desafios lançados
pelos ready-mades e pela found art, pelo que a artefactualidade não pode
constituir uma condição demasiado restritiva para arte.
Mas será que esta condição constitui um constrangimento da prática artís-
tica, no sentido apontado por Weitz? Isto é: será que o requisito da artefac-
tualidade limita a criatividade dos artistas? Nas linhas que se seguem,
Dickie oferece uma resposta a estas questões:

Texto 7

O requisito de artefactualidade não pode impedir a criatividade, uma vez que a artefac-
tualidade é uma condição necessária da criatividade. Não pode existir nenhuma instância
de criatividade sem a produção de um artefacto […].
GeorGe dickie, «O Que É a Arte?», in d’orey, Carmo, O Que É a Arte?
Lisboa: Dinalivro, 2007 [ed. original 1976], p. 117.

A segunda condição imposta pela teoria institucional diz-nos que, para que
um artefacto seja considerado uma obra de arte, é necessário que alguém
que atue em nome do mundo da arte tenha atribuído o estatuto de can-
didato a apreciação a um conjunto de características desse artefacto.

A criação artística e a obra de arte 227

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Para Dickie, a found art é, em grande medida, responsável por chamar a
atenção para o ato de conferir o estatuto de arte, pois alguns artistas confe-
riam o estatuto de arte a objetos vulgares formalmente indistinguíveis das
suas contrapartes mundanas. Essa atribuição tem lugar no contexto de uma
prática social instituída, que Dickie apelida de «mundo da arte». O mundo
da arte é uma instituição social informal cujos representantes atribuem o
estatuto de candidato a apreciação:

Texto 8

O núcleo fundamental do mundo da arte é um conjunto vagamente organizado […] que


inclui artistas […], produtores, diretores de museus, visitantes de museus, espectadores
de teatro, jornalistas, críticos de todos os tipos de publicações, historiadores da arte,
Fig. 13 — Art World Doodle, de Lizzie teóricos da arte, filósofos da arte e outros. São estas as pessoas que mantêm em funcio-
Johnson. namento o mecanismo do mundo da arte, permitindo assim a continuidade da sua exis-
tência. […] Todos estes papéis estão institucionalizados e têm de ser aprendidos, de uma
O mundo da arte é uma instituição social
forma ou de outra, pelos participantes. […]
composta por artistas, produtores, diretores
de museus, visitantes de museus, espectadores, GeorGe dickie, «O Que É a Arte?», in d’orey, Carmo, O Que É a Arte?
críticos, historiadores da arte, etc. Lisboa: Dinalivro, 2007 [ed. original 1976], pp. 106-107.

Quando um representante do mundo da arte atribui o estatuto de candi-


dato à apreciação a um determinado artefacto, determina que este é uma
obra de arte no sentido classificativo, mas não no sentido valorativo. Há
Juízo intuitivo
sempre a possibilidade de este não ser apreciado, ou seja, pode tratar-se de
uma má obra de arte. Neste sentido, atribuir o estatuto de candidato à
Avalie o subjetivismo estético de acordo
com a sua primeira reação. apreciação a um artefacto acarreta uma certa responsabilidade, pois, caso
ninguém o venha a apreciar, perde-se alguma credibilidade.
A — Convincente.
B — Atraente mas não convincente.
A teoria institucional da arte parece ter alguns méritos relativamente às suas
rivais, na medida em que oferece uma definição processual, e não uma
C — Duvidoso. definição funcional, de arte, defendendo que aquilo que faz com que algo
D — Implausível. seja uma obra de arte não são os seus efeitos ou funções, mas sim o modo
como é tratado por quem o criou, por quem o expõe e por quem o aprecia.

Objeções à teoria institucional da arte


Objeção 1
A teoria institucional sustenta que qualquer coisa pode tornar-se arte desde
que esse estatuto lhe seja atribuído por um representante do mundo da
arte. Muitos autores rejeitam esta teoria por ela parecer admitir demasia-
das coisas como obras de arte.
Imaginemos que um representante do mundo da arte atribuía o estatuto de
arte a tudo o que existe. A teoria institucional seria forçada a aceitar que
tudo o que existe é, de facto, arte. Nestas circunstâncias, uma definição de
arte tornar-se-ia inútil. O defensor da teoria institucional vê-se assim
perante um difícil dilema: ou aceita que um representante do mundo da
arte pode fazer tal atribuição, pois não há qualquer critério para a atribui-
ção de estatuto, ou considera que ele nunca a faria, pois existem razões que
justificam as atribuições de estatuto. A primeira opção faz da arte algo
completamente arbitrário e infundado, pelo que não teríamos razões
para nos preocuparmos com a sua definição. A segunda opção considera
que existem razões subjacentes às atribuições de estatuto, mas nesse caso
seria possível definir arte apelando diretamente a essas razões, independen-
temente do mundo da arte e dos seus representantes.
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Objeção 2
Uma vez que aparentemente não existe qualquer critério estabelecido para que
se faça parte do mundo da arte ou para que um artefacto se qualifique como
candidato à apreciação, a prática artística não se assemelha de todo a uma
instituição social. Por muito informal que seja, uma instituição social é mais do
que um conjunto de práticas interrelacionadas, requer certos procedimentos
e critérios formais para que se possa ser considerado um membro ou para que
se tenha autoridade para desempenhar certas funções, mas não há nada análogo
no mundo da arte. É evidente que os artistas fazem parte do mundo da arte
e é verdade que existem licenciaturas em artes plásticas, mas ter uma licencia-
tura em artes plásticas não é uma condição suficiente para que se seja um artista.

Objeção 3
A teoria institucional da arte é, por vezes, criticada por ser elitista e anti-
democrática, visto que confere poderes especiais a um círculo fechado de
indivíduos que têm o poder de transformar em arte tudo o que consideram
digno de ser apresentado como candidato à apreciação. Esta crítica falha,
contudo, o seu alvo, por dois motivos: em primeiro lugar, a teoria de Dickie
assume que qualquer um pode pertencer ao mundo da arte desde que se Fig. 14 — Artistas Saem à Rua, cartoon
de Henrique Monteiro.
submeta aos processos requeridos para tal. Em segundo lugar, porque atri-
buir o estatuto de arte, no sentido classificativo, a um artefacto não implica A teoria institucional é, por vezes, acusada
de elitismo, visto que só os membros
que se esteja a anexar-lhe qualquer tipo de valor. Dizer que pertence à cate- do mundo da arte têm legitimidade para
goria das obras de arte não é o mesmo que dizer que é uma boa obra de conferir o estatuto de arte a um artefacto.
arte; o candidato pode nunca chegar a ser efetivamente apreciado.

Objeção 4
Não pode haver arte sem que pré-exista a instituição social do mundo da
arte, mas não pode haver mundo da arte sem arte. Assim sendo, se a teoria
institucional for verdadeira, deixa de ser possível falar de arte primitiva,
Avaliação crítica
pois é improvável que existisse algo que se assemelhe ao mundo da arte
quando os homens das cavernas fizeram as primeiras pinturas rupestres. Assinale agora a sua avaliação ponderada
Além disso, a ideia de um artista solitário, que vive e cria à margem da da teoria mimética.
sociedade, torna-se utópica à luz desta teoria.
A — Convincente.

Objeção 5 B — Atraente mas não convincente.

A teoria institucional é criticada por ser viciosamente circular: para C — Duvidosa.


saber o que é uma obra de arte, temos de saber o que é o mundo da arte e, D — Implausível.
para saber o que é o mundo da arte, temos de saber o que são obras de arte.

Atividades

1 «Segundo Dickie, o requisito da artefactualidade limita a criatividade.» Concorda? Porquê?

2 Em que consiste a «atribuição de estatuto»? Dê exemplos.

3 Qual é a importância da noção de «candidato à apreciação» para a teoria institucional?

Debate

«Apesar de circular, a definição de arte proposta por Dickie é informativa.» Concorda? Porquê?

A criação artística e a obra de arte 229

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Ideias-chave

A criação artística e a obra de arte


• Perguntar pela natureza da arte é o mesmo que pedir uma • As principais objeções à teoria expressivista são: um artista
definição explícita de arte, ou seja, identificar as condições profissional não tem, necessariamente, de experimentar
necessárias e suficientes para que algo possa ser conside- determinados estados emocionais enquanto cria arte; as
rado arte. obras de arte podem não expressar qualquer emoção; não é
• No sentido classificativo, dizer que algo é uma obra de arte é necessário que o público experimente as mesmas emoções
dizer simplesmente que esse objeto pertence a uma deter- que o artista para que uma obra seja arte; nem toda a trans-
minada classe. missão de emoções é arte.

• No sentido valorativo, dizer que algo é uma obra de arte é • A teoria formalista da arte defende que: x é uma obra de arte
reconhecer que esse objeto, além de pertencer à categoria se, e só se, x foi concebido com o (principal) intuito de exibir
das obras de arte, é um bom exemplar dessa categoria, ou forma significante.
seja, é uma boa obra de arte. • A forma significante é uma configuração — de linhas, cores,
• A teoria mimética da arte (ou teoria da arte como imitação) formas e espaços — que tem a capacidade de originar um
remonta a Platão e Aristóteles e defende que: x só é uma determinado tipo de emoção no espectador — «emoção
obra de arte se for uma imitação. estética».

• A principal objeção que a teoria mimética da arte enfrenta é • A emoção estética é a emoção que sentimos perante certas
o facto de existirem exemplos de arte não imitativa, como a configurações de linhas, cores, formas e espaços, que desig-
pintura abstrata, a arte decorativa, a música instrumental e namos por «forma significante».
algumas formas de teatro, dança, cinema e literatura. • A teoria formalista da arte capta os valores formais das obras
• A teoria representacionista da arte substitui a noção de imita- não imitativas ou inexpressivas melhor do que as suas rivais.
ção pela noção de representação. • As principais objeções que a teoria formalista da arte
• Segundo a teoria representacionista: x só é uma obra de arte enfrenta são as seguintes: o conceito de forma significante é
se for uma representação. vago: ou a sua definição é circular ou é demasiado lata; há
obras de arte com formas indistinguíveis de objetos comuns;
• Há muitas obras de arte que não são representações; encon- a forma é, muitas vezes, inseparável do conteúdo.
tram-se exemplos disso na arquitetura, na música instrumen-
tal, na arte decorativa e noutras práticas artísticas que se • A teoria institucional da arte sustenta que: x é uma obra de
constituem como meros exercícios formais, sem a pretensão arte se, e só se, x é um artefacto e se foi atribuído o estatuto
de representar coisa alguma. de candidato a apreciação a um conjunto das suas caracte-
rísticas por uma ou várias pessoas que atuam em nome de
• Os ready-mades são objetos que adquiriram o estatuto de determinada instituição social (o mundo da arte).
obra de arte, mas não representam nada; são apenas objetos
comuns do quotidiano. • As principais vantagens desta perspetiva são: capta a natu-
reza social e relacional da arte e a propriedade não manifesta
• A teoria expressivista da arte sustenta que: x é uma obra de arte do estatuto melhor do que as suas precedentes.
se, e só se, x transmite as emoções do seu criador a um público.
• A teoria institucional enfrenta as seguintes objeções: faz da
• As principais vantagens desta perspetiva são: devolve à arte arte algo de arbitrário e infundado; a prática artística não
um lugar de destaque na sociedade, pois está intrinseca- constitui uma instituição social; é considerada elitista; impos-
mente ligada a aspetos emocionais que têm uma importân- sibilita a existência de arte primitiva e de arte solitária; é vicio-
cia inegável na vida das pessoas, e lida facilmente com a samente circular.
música instrumental e com a pintura abstrata.

Para aprofundar conhecimentos

Leituras:
AlmeidA, Aires e murcho, Desidério — «Estética», in Textos e Problemas de Filosofia. Lisboa: Plátano Editora, 2006.
cArroll, Noël — Filosofia da Arte. Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2010 [ed. original 1999].
dickie, George — Introdução à Estética. Lisboa: Editorial Bizâncio, 2008 [ed. original 1997], capítulos 5-8.
d'orey, Carmo (org.) — O Que É a Arte? Lisboa: Dinalivro, 2007.
WArburton, Nigel — O Que É a Arte? Lisboa: Editorial Bizâncio, 2007 [ed. original 2003].

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Esquema-síntese

A criação artística e a obra de arte

Argumentos a favor: Argumentos contra:


Teoria mimética:
x só é uma obra de arte •  N
  o tempo de Platão e Aristóteles a maioria •   Existem artes não imitativas.
se for uma imitação. das manifestações artísticas eram imitativas.

Teoria representacionista: Argumentos a favor: Argumentos contra:


x só é uma obra de arte •   A noção de representação é mais •   Há muitas obras de arte que não são
se for uma representação. abrangente do que a imitação. representações.

Argumentos a favor: Argumentos contra:


•   Devolve à arte um lugar de destaque •   O artista não tem de experimentar
Teoria expressivista: na sociedade. determinadas emoções enquanto cria.
x é uma obra de arte se,
•   Lida facilmente com a música •   Há obras de arte que não expressam
e só se, x transmite
instrumental e com a pintura abstrata. emoções.
as emoções do seu criador
a um público. •   O público não tem de experimentar
as mesmas emoções que o artista.
Nem toda a transmissão de emoções é arte.

Argumentos a favor: Argumentos contra:


Teoria formalista: •   Capta os valores formais das obras •   Por vezes, a forma é inseparável
x é uma obra de arte se, não representativas e inexpressivas do conteúdo.
e só se, x foi concebido com melhor do que as suas antecessoras. •   Há obras de arte com formas
o (principal) intuito
indistinguíveis de objetos comuns.
de exibir forma significante.
•   O conceito de forma significante é vago.

Teoria institucional: Argumentos a favor: Argumentos contra:


x é uma obra de arte se, •   Capta a propriedade não manifesta •   É, por vezes, considerada elitista.
e só se, x é um artefacto do estatuto, ignorada pelas teorias •   Faz da arte algo de arbitrário e infundado.
e se foi atribuído o estatuto precedentes demasiado focadas
de candidato a apreciação •   A prática artística não constitui uma
nas propriedades representativas
a um conjunto das suas instituição social.
e expressivas das obras de arte.
características por •   Impossibilita a existência de arte primitiva
•   Capta a natureza social e relacional
um representante e de arte solitária.
da arte.
do mundo da arte. •   É viciosamente circular.

Filmes:
O Sorriso de Mona Lisa (2003), de Mike Newell.
Untitled — Sem Título (2009), de Jonathan Parker.

Páginas da Internet:
http://criticanarede.com/fil_tresteoriasdaarte.html (artigo «O Que É a Arte», de Aires Almeida).
http://criticanarede.com/principiosdaarte.html (artigo «Os Princípios da Arte», de R. G. Collingwood).

A criação artística e a obra de arte 231

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TESTE FOrmATIvO 9

CLASSIFIQUE AS AFIrmAÇÕES SEGUINTES COmO vErDADEIrAS OU FALSAS.

  1.  Para definir arte explicitamente, basta que se encontre uma característica comum a todas
as obras de arte.

2. Num sentido classificativo, é elogioso dizer que algo é uma obra de arte.

  3. A distinção entre os sentidos classificativo e valorativo da palavra «arte» é irrelevante para


a filosofia da arte, pois habitualmente não fazemos uso do sentido classificativo.

  4.  A teoria mimética da arte defende que imitar a realidade é uma condição suficiente para que
algo seja considerado arte.

  5. A teoria mimética da arte defende que imitar a realidade é uma condição necessária para que
algo seja considerado arte.

  6.  A teoria mimética da arte acolhe perfeitamente a música instrumental, pois esta imita as
emoções humanas.

  7.  A teoria representacionista da arte substitui a noção de imitação pela noção de


representação.

  8.  A noção de imitação é mais abrangente do que a noção de representação.

  9. Segundo a teoria representacionista, x só é uma obra de arte se for uma representação (por
outras palavras: «Se x é arte, então x é uma representação.»).

 10. A teoria representacionista resolve as objeções apresentadas à teoria mimética da arte.

 11. A teoria representacionista da arte é menos restritiva do que a teoria mimética.

 12. Uma crítica à teoria representacionista é a ideia de que há muitas obras de arte que não são
representações.

 13. A arquitetura constitui um contraexemplo à teoria representacionista da arte.

 14. A teoria expressivista de Tolstoi diz que, para haver arte, basta existir um artista que exprime
as suas emoções através de uma obra.

 15. Segundo a teoria expressivista de Tolstoi, o público tem de experimentar os mesmos estados
emocionais que o artista.

 16. A teoria expressivista é incontestável porque o artista tem de experimentar as emoções


transmitidas pela sua obra para que esta possua valor artístico genuíno.

 17. Uma vantagem da teoria expressivista é o facto de esta lidar facilmente com a música
instrumental e com a pintura abstrata.

 18.  U
  ma objeção à teoria expressivista é o facto de os artistas profissionais não terem,
necessariamente, de experimentar determinados estados emocionais enquanto criam arte.

 19.  A teoria expressivista é demasiado restrita, pois existem expressões de emoções que não são arte.

 20. A existência da chamada «arte aleatória» torna a teoria expressivista demasiado inclusiva.

 21. Um aspeto positivo da teoria expressivista da arte é o facto de esta lidar de modo bastante
satisfatório com a found art.

 22.  A Op Art é um contraexemplo à teoria expressivista da arte.

 23.  «x é uma obra de arte se, e só se, x foi concebido com o (principal) intuito de exibir forma
significante.» é o principal argumento utilizado pelos defensores do formalismo.

 24. A teoria formalista da arte capta os valores formais das obras não imitativas ou inexpressivas
melhor do que as suas rivais.

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 25. Segundo Bell, uma forma significante é uma configuração — de linhas, cores, formas
e espaços — que tem a capacidade de originar uma emoção estética.

 26.  A teoria formalista defende que, para que uma obra seja considerada arte, é necessário que
corresponda à expressão das emoções do seu autor.

 27.  Segundo a teoria formalista, uma obra de arte só pode ter um propósito principal.

28.  O formalista não tem forma de excluir as belezas naturais da sua teoria da arte.

 29.  Uma crítica à teoria formalista da arte é o facto de esta ser incapaz de dar conta dos usos
classificativo e valorativo da palavra «arte».

30.  A teoria formalista tem a vantagem de permitir distinguir o valor de uma obra de arte
genuína do valor de uma imitação bem executada.

 31. A existência de obras de arte com conteúdo representacional constitui um contraexemplo


à teoria formalista.

32.  Segundo o formalismo, o conteúdo representacional de uma obra inviabiliza que esta possa
ser considerada arte.

 33.  Segundo o formalismo, o conteúdo representacional é irrelevante para o estatuto de uma


obra enquanto arte.

34.  Segundo o formalismo, as emoções do artista são irrelevantes para o estatuto de uma obra
enquanto arte.

 35.  A existência de obras de arte com formas indistinguíveis de objetos comuns constitui uma
objeção à teoria formalista da arte.

 36.  A
  definição de forma significante falha porque ou é viciosamente circular, ou é tão lata que
praticamente tudo tem forma significante.

37. Uma objeção à teoria formalista da arte baseia-se no facto de ser, muitas vezes, impossível
separar a forma do conteúdo.

38. A tese da teoria institucional é a seguinte: x só é arte se qualquer instituição social lhe atribuir
esse estatuto.

39. A teoria institucional defende que qualquer coisa se pode tornar arte desde que lhe seja
atribuído esse estatuto por um representante do mundo da arte.

40.  O requisito da artefactualidade limita a criatividade inerente à prática artística.

 41.  Tal como o Estado português e a Igreja Católica, a arte é uma instituição social com caráter
formal.

42.  O
  mundo da arte é uma instituição social composta por artistas, produtores, diretores
de museus, visitantes de museus, espectadores, críticos, historiadores da arte, etc.

43.  Segundo a teoria institucional da arte, há sempre a possibilidade de um artefacto ao qual


se atribui o estatuto de candidato a apreciação não chegar a ser apreciado, pelo que pode
existir má arte.

44.  A teoria institucional da arte não dá conta dos dois usos da palavra «arte».

45.  A teoria institucional impossibilita a existência de arte primitiva e de arte solitária.

33. V; 34. V; 35. V; 36. V; 37. V; 38. F; 39. V; 40. F; 41. F; 42. V; 43. V; 44. F; 45. V.
1. F; 2. F; 3. F; 4. F; 5. V; 6. F; 7. V; 8. F; 9. V; 10. F; 11. V; 12. V; 13. V; 14. F; 15. V; 16. F; 17. V; 18. V; 19. F; 20. F; 21. F; 22. V; 23. F; 24. V; 25. V; 26. F; 27. F; 28. F; 29. F; 30. F; 31. F; 32. F;
SOLUÇÕES:

A criação artística e a obra de arte 233

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TEMA

V A DIMENSÃO RELIGIOSA
DA AÇÃO HUMANA E DOS VALORES

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Unidade

10 A religião e o sentido
da existência
10.1 O problema do sentido da existência
10.1.1 Finitude e sentido
10.1.2 Sentido, finalidade e valor
10.1.3 A resposta religiosa (teísta) para o problema do sentido da existência

Objetivos da unidade Conceitos fundamentais

No fim desta unidade, deverá ser capaz de responder Os conceitos seguintes, que são centrais nesta unidade,
às seguintes questões: são definidos no fim do livro:
Em que consiste o problema do sentido da existência? absurdo sentido da existência
Em que consiste a resposta religiosa para o problema finalidade instrumental (ou sentido da vida)
do sentido da existência? finalidade última sentido teleológico
Qual é o principal argumento a favor da resposta religiosa finitude valor intrínseco/
para o problema do sentido da existência? instrumental
sentido axiológico
Que objeções enfrenta a resposta religiosa para valor objetivo
o problema do sentido da existência? sentido completo
valor subjetivo

Introdução

É provável que já se tenha questionado sobre o sentido de uma determinada atividade. «Por que razão fiz isto?» ou «Para que é que fiz
aquilo?» são perguntas que, de uma forma ou de outra, todos nós já fizemos. É normal que se justifiquem certas atividades com base
numa ou noutra finalidade que se pretende atingir. Mas, por sua vez, é legítimo perguntar «E o que justifica essa finalidade?».
Como já deve ter percebido, em filosofia existe a tentação de levar uma pergunta até às suas últimas consequências, daí que os filósofos
não parem por aqui e procurem algo que justifique cada uma das nossas finalidades e que dê um sentido a tudo o que fazemos. Assim,
perguntas sobre o sentido de uma dada atividade transformam-se rapidamente em perguntas de âmbito mais alargado como «Por que
razão existimos?» ou «Qual é o sentido das nossas vidas como um todo?».
Nesta unidade iremos discutir uma das respostas mais universais para este tipo de questões — a resposta religiosa. Desde tempos
imemoriais que a religião tem servido para conferir sentido à existência e às práticas humanas. A existência de um Deus (ou de vários
Deuses) que cria(m) o universo e os seres humanos com um determinado propósito, dotando-os de almas imortais, é encarada, por mui-
tos, como a única solução possível para o problema do sentido da existência. Será que isso é verdade?

236 Unidade 10

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Estímulo

A história que irá ler pretende testar:


• as suas intuições em relação ao problema do sentido da vida;
• a sua opinião em relação à ligação entre imortalidade e sentido da vida.

Condenada à vida
A Emília descobriu o segredo da vida eterna. Há mais IGOR — Como assim? Certamente que a sensação de
de trezentos anos, o seu pai, o Dr. Makropulos, ofere- que não estava confinada a durar apenas cerca de
ceu-lhe a fórmula do elixir da eterna juventude. oitenta e tal ou noventa e tal anos ajudou, não?
A Emília nunca compreendeu por que razão o pai lhe
EMÍLIA — Sim, recordo-me de ter sentido um grande
ofereceu tamanha dádiva, sem ter, ele próprio, usu-
alívio nos primeiros tempos. Lembro-me de ter pen-
fruído dela, mas… jovem e inconsequente, preparou
sado: «Agora que tenho todo o tempo do mundo,
o elixir e tomou-o sem qualquer sinal de hesitação.
mais cedo ou mais tarde, irei concretizar todos os
Contudo, hoje, amaldiçoa o dia em que tomou essa
meus projetos.» Mas essa sensação não durou muito.
decisão. Amigos, amantes e parentes acabaram todos
por envelhecer e morrer, deixando um vazio difícil de IGOR — Não compreendo. Há tanto para fazer, tantos
preencher. Além disso, sem a sombra da morte a pai- sítios para conhecer, … Acho que é inevitável pensar
rar sobre ela, a Emília perdeu a paixão e a ambição, e no jeito que daria poder prolongar a nossa vida.
todos os projetos a que se entrega lhe parecem des- EMÍLIA — Pois, mas a sensação de que tudo pode
propositados e fúteis. Aborrecida de morte, o seu ficar para depois começa a instalar-se e, ao fim de
único objetivo é pôr fim à sua enfadonha existência. algum tempo, começamos a perder a vontade de fazer
Aliás, esse objetivo deu um novo fôlego à sua existên- seja o que for. Depois de alguns anos, nada parece
cia e foi a única coisa que deu sentido aos últimos suficientemente importante para nos fazer agir.
cinquenta anos da sua vida. Há poucos dias, conse-
guiu finalmente desenvolver um antídoto e, enquanto IGOR — A mim não me faltaria o que fazer.
se preparava para o tomar, decidiu destruir tudo o EMÍLIA — Diz-me, Igor, o que farias?
que restava do elixir, juntamente com todos os vestí-
gios da fórmula e das investigações do seu pai. O Igor, IGOR — Viajava, conhecia pessoas novas, aprendia
um assistente que ao fim de 32 anos de serviço se coisas novas.
tornara amigo pessoal da Emília, não compreendeu EMÍLIA — Porque não fazes essas coisas todas? Não
bem esta atitude e decidiu confrontá-la: precisas da imortalidade para isso.
IGOR — Emília, porquê desistir de tudo? IGOR — Sim, mas poderia sempre viajar mais…
EMÍLIA — Igor, não vamos voltar a discutir isto.
IGOR — Não percebo por que motivo desistiu de
viver e muito menos por que razão decidiu privar
todos do milagre que o Dr. Makropulos nos legou.
EMÍLIA — Milagre não, Igor. Não se trata de um
milagre, mas sim de uma maldição. Foi por isso que
decidi destruir a fórmula.
IGOR — Só porque não conseguiu ser feliz, isso não
significa que ninguém consiga.
EMÍLIA — Não é tão fácil como parece. Eu também
já fui muito feliz, mas, a esta distância dos aconteci-
mentos, percebo com uma enorme clareza que essa
felicidade não teve nada que ver com a minha imorta- Fig. 1 — Cena da peça O Caso Makropulos (2012).
lidade.

A religião e o sentido da existência 237

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EMÍLIA — … e conhecer mais pessoas e aprender EMÍLIA — Talvez tenhas razão num aspeto, meu caro
mais coisas, até te aborreceres de morte. O problema Igor. Se eu sentisse que a minha vida tinha algum pro-
da vida não é a sua duração. O que importa não é o pósito, talvez não estivesse tão desejosa de acabar
tempo, mas o que fazemos com ele. com ela.
IGOR — Mas com mais tempo faríamos mais coisas! IGOR — Então compreende que não faz sentido des-
perdiçar a sua imortalidade só porque está aborre-
EMÍLIA — Não estou inteiramente de acordo.
cida?
Geralmente, adequamos os nossos projetos ao tempo
que temos. Se tivermos mais tempo, levamos mais EMÍLIA — E tu, já te apercebeste de que não vale a
tempo a fazer as mesmas coisas. pena prolongar a vida indefinidamente se ela não tiver
qualquer propósito?
IGOR — Mas as pessoas andam sempre aflitas de um
lado para o outro, com falta de tempo. IGOR — Agora que penso nisso, apercebo-me de que
a vida pode ter um propósito, e até talvez o tenha de
EMÍLIA — A falta de tempo é uma desculpa que as
modo ainda mais evidente, apesar de ser mortal.
pessoas arranjaram para justificar as suas existências
E, por outro lado, a imortalidade, por si só, não confere
miseráveis e patéticas. Uma vez que não controlam a
sentido a uma existência que não tenha qualquer pro-
duração das suas vidas, podem sempre dizer que se as
pósito. É isso que me tem estado a tentar dizer, não é?
coisas correram mal é porque não tiveram mais tempo.
Mas o que lhes falta não é mais tempo, é determinação EMÍLIA — Muito bem, amigo. Agora ajuda-me a
para fazer valer o tempo de que dispõem. levantar. Começo a sentir as minhas forças desapare-
cerem.
IGOR — Sim, mas a Emília foi sempre tão determi-
nada que o mais lógico seria aproveitar ao máximo IGOR — Com certeza.
todo o tempo de que dispõe.
EMÍLIA — Obrigada por tudo, Igor. Trata de aprovei-
EMÍLIA — Igor, o que dizes não podia ser mais dispa- tar a tua vida, pois ela é única e irrepetível.
ratado. Não percebes que quando o nosso tempo é
Mal acabou de dizer estas palavras, a Emília atirou
ilimitado, não faz sequer sentido falar em aproveitá-lo
o pedaço de papel que continha a fórmula do
ao máximo. Essa paixão mortal, essa chama que
Dr. Makropulos para a lareira. Este era o último vestí-
anima todos aqueles que sabem, à partida, que estão
gio da existência do elixir que faltava eliminar. Ao ver
condenados à morte, extingue-se rapidamente do
o pedaço de papel contorcer-se no meio das chamas,
peito daqueles que se sabem condenados à vida.
a Emília esboça um sorriso, algo que ninguém a via
IGOR — Isso só acontece porque ainda não encon- fazer há muito tempo. Foi então que o Igor compre-
trou algo que dê um propósito à sua existência, endeu o verdadeiro significado do que acabara de
quando isso acontecer verá que se sentirá novamente acontecer e se despediu para sempre do seu sonho
motivada, como nestes últimos anos em que procurou de imortalidade.
um antídoto para a sua condição. Inspirado na obra The Pig That Wants to Be Eaten
and 99 Other Thought Experiments, de Julian Baggini.

Guião de leitura

1 Formule o problema discutido no texto.

2 Apresente os argumentos do Igor.

3 Apresente os argumentos da Emília.

4 Discuta a ideia: «Não vale a pena prolongar a vida indefinidamente se ela não tiver qualquer propósito.»

Fazer filosofia

1 Faça uma pesquisa na literatura e no cinema de personagens que, apesar de serem imortais, não viam qualquer sentido
na sua existência. Discuta em grupo o significado desses casos.

238 Unidade 10

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10.1 O problema do sentido
da existência
10.1.1   Finitude e sentido
O problema do sentido da existência surge, frequentemente, associado ao
problema da morte. Se, mais cedo ou mais tarde, acabaremos por morrer
sem deixar vestígio do que fomos e se tudo o que fizemos acabará por desa-
parecer, qual poderá, então, ser a finalidade de tudo isto? De um modo
abrangente, podemos dizer que este problema está relacionado com a fini-
tude humana.
O conceito de «finitude» é mais amplo do que o de «mortalidade», porque
se aplica não só ao caráter finito da nossa existência, mas também ao facto
de termos consciência de que somos seres imperfeitos e limitados. Desta
consciência resulta inevitavelmente um profundo confronto entre dois
pontos de vista: o ponto de vista subjetivo e o ponto de vista objetivo.
De um ponto de vista subjetivo, a nossa vida é um assunto sério e impor-
tante (mortalmente importante), mas se a perspetivarmos de um ponto de
vista alargado, constatamos que somos minúsculos grãos de pó na história
de um vasto universo que escapa incessantemente a todas as nossas inves-
tidas para o compreender.

Fig. 2 — De Onde Viemos? Quem Somos? Para Onde Vamos? (1897), de Paul Gauguin.
As três questões que constituem o título deste quadro sintetizam, de certa forma,
o problema do sentido da existência. Da direita para a esquerda, Gauguin representa
as etapas fundamentais da vida humana, desde o nascimento até à velhice.

É neste confronto entre as aspirações humanas e a realidade que se instala


a ideia de que as nossas vidas podem ser simplesmente destituídas de sen-
tido, um perfeito absurdo. Afinal de contas, queremos viver para sempre,
mas sabemos que mais cedo ou mais tarde iremos morrer; queremos com-
preender o mundo, mas este furta-se constantemente à nossa compreensão;
em suma, queremos que a realidade se adeque às nossas exigências, mas
esta permanece indiferente aos nossos apelos.
Será que a nossa existência é, de facto, insignificante e despropositada?
Que condições poderiam fazer com que a vida fizesse sentido?

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10.1.2   Sentido, finalidade e valor
Para determinar que condições são exigidas para que a vida faça sentido,
vamos recorrer a uma experiência mental conhecida como «o mito de
Sísifo». Esta experiência mental foi apresentada pela primeira vez, numa
obra com o mesmo título, de Albert Camus (1913-1960), com o intuito de
ilustrar o absurdo (sem sentido) das nossas vidas. No excerto que se segue,
Richard Taylor (1919-2003) formula essa experiência de modo claro e
sucinto:

Experiência mental 1

Uma imagem perfeita de uma existência sem sentido […] encontra-se no mito de Sísifo. Sísifo, recorde-se,
traiu os segredos divinos divulgando-os aos mortais, e por isso foi condenado pelos Deuses a carregar
uma pedra até ao cimo de uma montanha, voltando imediatamente a pedra a cair, para Sísifo a carregar
outra vez até ao cimo, caindo outra vez, e assim por diante, uma vez e outra, para sempre. Ora, temos aqui
uma labuta destituída de sentido, despropositada, uma existência destituída de sentido que nunca é redi-
mida. […] A labuta repetitiva é a sua vida e a sua realidade, e continua para sempre, sem ter qualquer
sentido. Nada advém do que faz, exceto simplesmente mais do mesmo. […] Nada resulta disso, absoluta-
mente nada.

RichaRd TayloR, «O Sentido da Vida», in Viver Para Quê?, de Murcho, Desidério (org.)
Lisboa: Dinalivro, 2009 [ed. original 1970].
Fig. 3 — O Mito de Sísifo
(1549), de Tiziano Vecellio.

Esta experiência mental é uma metáfora sombria da existência humana; de


certa forma, também nós estamos condenados a repetir as mesmas coisas
vezes sem conta, para que no fim o Planeta acabe por desaparecer sem que
nada resulte desse esforço. Se percebermos o que há de errado com a exis-
tência trágica de Sísifo, poderemos determinar quais são as condições neces-
sárias e suficientes para que qualquer vida humana possa fazer sentido.
Conforme foi dito na introdução, perguntarmo-nos acerca do sentido de
algo é questionarmo-nos acerca da sua razão de ser, da sua finalidade ou
propósito. Uma atividade, por exemplo, não tem sentido se não tiver uma
finalidade. Neste sentido, pode parecer-nos que o problema do sentido da
existência não é assim tão complicado, pois, à partida, parece não haver
dificuldade em encontrar uma finalidade para a maioria das coisas que
fazemos: estudamos para tirar boas notas, para conseguir o curso ou
emprego que queremos; trabalhamos para ganhar dinheiro para poder
comprar aquilo de que necessitamos; comemos porque temos fome, dor-
mimos porque temos sono, etc. Neste sentido, até Sísifo tem uma finali-
dade — colocar a pedra no cimo da montanha. No entanto, como já vimos,
a vida de Sísifo é um exemplo típico de uma existência absurda. Porque
será que isso acontece?
A explicação para esta insuficiência reside, pelo menos em parte, na distin-
ção entre finalidades últimas e instrumentais. Já no século v a. C., Aristóteles
salientou a importância desta distinção na sua obra Ética a Nicómaco.

Uma finalidade instrumental é algo que queremos fazer tendo


em vista outra coisa.
Uma finalidade última é algo que queremos fazer por si mesmo,
sem qualquer outro fim em vista.

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Por exemplo, somos capazes de percorrer quilómetros e gastar gasolina
e dinheiro num bilhete para podermos assistir a um concerto da nossa banda
de rock favorita (ou para visitar um museu ou uma cidade). Os quilómetros
percorridos e o dinheiro gasto na gasolina e no bilhete não deixam de ser
finalidades nossas; contudo, são finalidades meramente instrumentais;
se não fosse pelo concerto, não teríamos feito nenhuma destas coisas.
Assistir ao concerto, por sua vez, é algo que valorizamos por si mesmo
e, por esse motivo, é uma finalidade última. É este tipo de finalidades que
atribui sentido a todas as pequenas finalidades instrumentais com que
diariamente nos ocupamos.
Por si só, as finalidades instrumentais não fazem nenhum sentido. Não
faria sentido percorrer os quilómetros e gastar dinheiro se não tivéssemos
outro objetivo em mente; a não ser, é claro, que a nossa finalidade última
fosse fazer uma viagem de carro; mas, nesse caso, seríamos fãs de roadtrips,
em vez de fãs de rock ‘n’ roll, pelo que a própria viagem seria, em si mesma,
uma finalidade última. O importante é que sem uma finalidade deste tipo
nem a vida nem nada do que fazemos teria
qualquer sentido. Logo, ter, pelo menos,
uma finalidade última é uma condição neces-
sária para o sentido da existência. Mas será
suficiente?
Não, não é suficiente. Imaginemos um indiví-
duo de 90 anos que tem o sonho de atravessar
o Atlântico a nado; ou um matemático que
dedicou toda a sua vida à tarefa de contar, um
a um, todos os grãos de areia do universo; ou
um caminhante que espera chegar a pé ao
planeta Marte. O que diríamos de todos estes
casos? Que são absurdos, por certo.
Embora os seus protagonistas tenham deter-
minadas finalidades, elas são absolutamente
inalcançáveis. Do mesmo modo, Sísifo, o
herói trágico do mito de que falamos, tem Fig. 4 — 200 Notas de 1 Dólar (1962), de Andy Warhol.
a finalidade de colocar uma enorme pedra Salvo certos casos patológicos ou ficcionais, ninguém encara a tarefa de ganhar
no cimo de uma montanha, mas dado que, dinheiro como uma finalidade última, mas sim como uma finalidade instrumental,
pois não valorizamos o dinheiro por si mesmo, mas por aquilo que podemos
quando chega ao topo, a pedra resvala e volta alcançar através dele.
a cair, a sua tarefa jamais poderá ser alcançada
e, portanto, não tem sentido.
Repare-se que é muito diferente dizer que uma finalidade é alcançável
e afirmar que essa finalidade já foi alcançada. Por exemplo, trabalhar na
procura de uma cura para o cancro é, à partida, uma finalidade alcançável,
mesmo que a minha vida chegue ao fim sem que eu tenha conseguido
alcançá-la. Há, também, uma diferença entre dizer que uma finalidade
é inalcançável e dizer que é muito difícil de concretizar. No primeiro caso,
a finalidade não é apenas difícil de alcançar, ela é, à partida, impossível; no
segundo, ainda que não tenha sido bem-sucedido, não se pode dizer que
a minha tentativa tenha sido totalmente disparatada.
Então, para que a nossa existência tenha sentido, não basta que tenha uma
finalidade última, essa finalidade tem de ser, pelo menos em princípio,
alcançável. Logo, ter, pelo menos, uma finalidade última alcançável é uma
condição necessária para o sentido da existência. Mas, mais uma vez,
é legítimo perguntar: «Será suficiente?»
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Também não, porque mesmo que Sísifo conseguisse manter a pedra no
topo da montanha, a sua vida não passaria, por esse motivo, a ter sentido.
Isto acontece porque essa atividade é simplesmente destituída de qualquer
tipo de valor.
Uma atividade pode ter valor intrínseco ou instrumental:

Uma atividade tem valor intrínseco se tem valor por si.


Uma atividade tem valor instrumental se tem valor em função
de ser um meio para alcançar algo que tem valor por si.

Assim, podemos concluir que ter, pelo menos, uma finalidade última alcan-
çável com valor intrínseco é uma condição necessária para o sentido da
existência, mas será suficiente?
Não necessariamente. Alguns autores não hesitariam em responder afir-
mativamente a esta questão, mas outros exigem que o valor dessa finali-
dade esteja de algum modo para lá da esfera puramente subjetiva.
Assim, podemos considerar que uma finalidade pode ter valor subjetivo
ou valor objetivo:

Algo tem valor subjetivo se tem valor para a pessoa em causa.


Algo tem valor objetivo se tem valor de um ponto de vista
impessoal, por vezes designado por «ponto de vista do universo»
(ou «sub specie aeternitatis»).

Esta distinção é sugerida por Taylor, que, depois de fazer a descrição do


mito de Sísifo que vimos anteriormente, sustenta que existem pelo menos
duas formas de alterar o aspeto trágico da vida de Sísifo:
i. E
mbora Sísifo continue a empurrar sempre a mesma pedra até ao topo
da montanha, os Deuses, num perverso ato de misericórdia, implantam-
-lhe o desejo compulsivo de empurrar pedras até ao cimo de monta-
nhas.
ii. E
m vez de transportar sempre a mesma pedra, Sísifo poderia empurrar
várias pedras até ao cimo da montanha e construir aí um templo.
No primeiro caso, embora possamos afirmar que, vista de fora, a vida de
Sísifo continua tão absurda quanto antes, podemos imaginar que Sísifo tem
uma opinião diferente sobre o assunto. De um ponto de vista subjetivo,
Sísifo tem uma vida realizada, porque tem a oportunidade de realizar para
toda a eternidade, sem preocupações nem frustrações, uma atividade que
ele valoriza intrinsecamente.
No segundo caso, ainda que Sísifo não valorize intrinsecamente a atividade
de empurrar pedras até ao cimo de montanhas, atribui-lhe um valor instru-
mental. Esta atividade serve como um meio para alcançar algo que é intrín-
seca e objetivamente valorizado — construir um templo que perdure e
acrescentar beleza ao mundo. Se a beleza for algo que possui valor objetivo,
Sísifo não será o único a apreciar o valor da sua obra, pelo que o valor da
sua atividade não será meramente subjetivo.

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Taylor está entre os autores que consideram que ter, pelo menos, uma fina-
lidade última alcançável e com valor subjetivo é uma condição suficiente
para que uma vida faça sentido. Para estes autores, não precisamos nem
devemos aspirar a mais do que isto; outros consideram que isso é insufi-
ciente, pois teria a estranha consequência de considerar que até a vida de
um ditador megalómano como Hitler faria sentido, desde que o próprio
atribuísse valor intrínseco a, pelo menos, uma finalidade última à qual se
tivesse dedicado ao longo da sua vida. Neste sentido, pode considerar-se
que, para que a nossa existência faça sentido, não basta que tenha sentido
de um ponto de vista subjetivo, é necessário transcendermos as barreiras
da nossa subjetividade e encontrar, pelo menos, uma finalidade última, que
além de ser alcançável, tenha valor objetivo. Mas que finalidade poderia ser
essa? Existem diferentes formas de responder a esta questão. De seguida
passaremos a examinar a resposta religiosa.
Em suma, independentemente da nossa perspetiva em relação ao assunto,
o problema do sentido da existência pode, em termos genéricos, ser formu-
lado do seguinte modo: Tem a vida pelo menos uma finalidade última
alcançável e com valor? Ou seja:

Uma vida tem sentido se, e só se:


a) tem pelo menos uma finalidade última;
b) essa finalidade é alcançável;
c) essa finalidade tem valor.

Atividades

1 Por que razão o problema do sentido da existência surge frequentemente associado ao problema da finitude humana?

2 Em que medida o mito de Sísifo constitui uma metáfora sombria da existência humana?

3 Distinga finalidades últimas de finalidades instrumentais. Dê exemplos.

4 Atente no diálogo que se segue:


— Decidi que não vou estudar para o teste da próxima semana.
— Porquê?
— Porque segundo uma antiga profecia o mundo vai acabar este ano.
— Isso é só superstição.
— Achas mesmo? Então é melhor agarrar-me aos livros.
4.1 Será que a pessoa que inicia o diálogo considera que estudar para o teste é uma finalidade última? Porquê?

5 Por que razão seria absurdo caminhar a pé até ao planeta Marte?

6 «Para que a vida tenha sentido, basta que tenha uma finalidade alcançável.» Concorda? Porquê?

7 Complete a seguinte afirmação: «Em termos genéricos, uma vida tem sentido se, e só se, …»

Debate

«A vida de Hitler teve tanto sentido como a vida de Martin Luther King.» Concorda? Porquê?

A religião e o sentido da existência 243

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10.1.3   A resposta religiosa (teísta) para 
o problema do sentido da existência
A resposta religiosa (ou resposta teísta, do grego «Theos» — Deus) diz-nos
que, se Deus não existe, nenhuma finalidade com valor sub specie aeterni­
tatis (valor objetivo de um ponto de vista impessoal) pode ser alcançada.
A ideia é a seguinte: se Deus não existir, a ameaça da finitude acabará sem-
pre por se entrepor entre o nosso desejo de sentido e a sua efetiva concre-
tização. Estamos condenados ao fracasso em qualquer tentativa de alcançar
algo que tenha valor para além da esfera pessoal e subjetiva, porque do
ponto de vista do universo nada do que possamos vir a alcançar aqui e
agora tem valor, visto que daqui a milhares de anos deixaremos de existir,
juntamente com tudo o que fizemos. Ou seja, ainda que Sísifo construísse
um belo templo no cimo da montanha, mais cedo ou mais tarde ele acaba-
ria por morrer e o templo que construiu acabaria por desaparecer junta-
mente com o planeta.
No entanto, se Deus existe, criou-nos com almas imortais e com um pro-
pósito transcendente. Assim, para os teístas, o problema coloca-se nos
seguintes termos:

Problema do sentido da existência, segundo os teístas:


Será a existência de Deus uma condição necessária e suficiente para o
sentido da existência? (Ou alternativamente: Será que a existência faz
sentido se, e só se, Deus existe?)

No artigo «O Sentido da Vida de acordo com o Cristianismo», Philip


L. Quinn (1940-2004) responde afirmativamente a esta questão. Para este
autor, a existência de Deus é a única alternativa possível para que uma vida
humana possa fazer sentido.
Quinn parte da ideia de que o sentido é uma característica de entidades
linguísticas — como textos e frases, por exemplo —, mas ao mesmo tempo
considera que, embora as vidas humanas não sejam como um texto ou uma
frase, os eventos que as compõem podem ser narrados, e as narrativas de
vidas humanas são entidades linguísticas suscetíveis de fazer sentido. Por
sua vez, também a história da humanidade pode constituir-se como uma
metanarrativa (a narrativa de todas as narrativas das vidas humanas) e,
deste modo, também essa metanarrativa pode fazer sentido. Quinn encon-
tra no cristianismo uma religião apoiada em várias narrativas, com especial
destaque para as narrativas da história da vida de Jesus Cristo, presentes
nos Evangelhos. A importância das narrativas sobre a vida de Cristo reside
no facto de esta constituir um exemplo de uma vida especialmente signifi-
cativa, que todos os cristãos se deviam esforçar por imitar como um modelo
a seguir. Nas palavras de Quinn:

Texto 1

Um imitador esforça-se por se tornar naquilo que admira… ao passo que um admirador
Fig. 5 — Cristo de São João da Cruz (1951),
mantém um certo distanciamento pessoal; consciente ou inconscientemente, não se
de Salvador Dalí.
apercebe de que aquilo que é admirado lhe impõe o requisito de ser, ou pelo menos
Segundo Quinn, a vida de Cristo constitui um tentar ser, aquilo que se admira.
modelo de uma existência com sentido, que
PhiliP l. Quinn, «The Meaning of Life According to Christianity», in Klemke, E. D. (org.) The Meaning of Life.
deve ser seguido por todos os cristãos.
Nova Iorque: Oxford University Press, 2000, 2.ª edição, pp. 59-60.

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Isto requer autossacrifício e exige que se esteja preparado para ser incom-
preendido pelos outros. É possível que uma vida como esta tenha sentido?
Quinn aceita a ideia de que a vida humana pode ter um sentido subjetivo,
a que resolveu chamar «sentido axiológico», mas considera que nenhuma
vida terá um sentido completo, a menos que, além de sentido axiológico,
possua também aquilo que designou por «sentido teleológico». Em suma,
para Quinn:

i. Uma vida humana possui sentido completo se, e só, se:


a) tiver cumulativamente sentido axiológico e sentido
teleológico.
ii. Uma vida humana possui sentido axiológico se, e só, se:
a) tem valor intrínseco positivo;
b) (no seu todo) é boa para a pessoa que a vive.
iii. Uma vida humana possui sentido teleológico se, e só, se:
a) tem, pelo menos, uma finalidade alcançável e relevante;
b) essa finalidade tem valor positivo;
c) inclui uma entrega efetiva a atividades com essa finalidade.

Alguém pode defender que uma vida de autossacrifício, dedicada a ajudar


os outros, como a vida de Cristo, terá resultado em benefícios objetivos
para aqueles que foram alvo da sua compaixão. No entanto, em última
análise, também esse esforço terá sido inglório, pois não só todas as pes-
soas que ajudou, como também esse nobre e compassivo espírito, acaba-
rão por morrer. Assim, mesmo quem vive uma vida de autossacrifício
acabará por morrer sem que se possa sequer dizer que a sua vida foi boa
para si próprio, isto é, sem que a sua vida tenha tido sentido axiológico.
É por este motivo que Quinn considera que apenas uma vida imortal pode
conter as recompensas adequadas, a nível pessoal, para que se possa con-
siderar que uma existência dedicada a um sentido teleológico tem, efetiva-
mente, um sentido completo. Fig. 6 — Vida e Morte (1916), de Gustav Klimt.
Se no fim acabarmos todos por morrer, qual
Resposta teísta de Quinn para o problema do sentido da existência: poderá ser o sentido da vida?

Se não formos imortais e nada do que fazemos for permanente,


a vida não faz sentido.

É justamente essa ideia que Quinn defende no excerto que se segue:

Texto 2

[…] Parece não ser difícil supor que a vida de um imitador […] de Tal como a vida do próprio Jesus, pelo menos as vidas de alguns
Cristo, que deseja e se esforça por fazer o bem, terá significado teleo- imitadores […] de Cristo serão, no seu todo, boas para eles apenas se
lógico positivo, apesar do sofrimento que provavelmente contém. Mas se prolongarem para além da morte nalguma forma de vida futura.
se essa vida acaba na morte do corpo, há problemas em supor que Por isso, a sobrevivência à morte do corpo parece ser necessária para
toda a vida desse tipo tenha também um significado axiológico posi- assegurar um significado axiológico positivo e, assim, um significado
tivo, porque algumas destas vidas, no conjunto, não parecem ser boas positivo completo para as vidas de todos aqueles cujas narrativas
para as pessoas que as vivem. Mas, como é óbvio, a vida terrena de correspondam tanto quanto é humanamente possível […] ao para-
Jesus, que terminou num sofrimento atroz e numa morte ignominiosa, digma ou protótipo apresentado nas narrativas dos Evangelhos da
dá origem exatamente ao mesmo problema. Contudo, faz parte da fé vida de Jesus.
cristã tradicional que a vida de Jesus não terminou com a morte do PhiliP l. Quinn, «The Meaning of Life According to Christianity»,
corpo mas continuou após a sua ressurreição e continuará até ao seu in Klemke, E. D. (org.) The Meaning of Life. Nova Iorque:
regresso em glória; pelo que, no seu todo, é uma vida boa para ele. Oxford University Press, 2000, 2.ª edição, pp. 59-61.

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Porém, segundo Quinn, se não tivermos um propósito transcendente,
ainda que a nossa vida possa ter sentido axiológico, continua a faltar algo
para que possamos considerar que possui um sentido completo. Assim, por
si só, a imortalidade não é suficiente para que uma vida humana faça sen-
tido, pois, além disso, esta deverá conter também sentido teleológico, ou
seja, deve ter alguma finalidade ou propósito relevante. Quinn considera
que este tipo de propósito também pode ser encontrado no cristianismo:

Texto 3

O cristianismo também faz uma narrativa acerca do destino da raça A narrativa da história da salvação revela alguns dos desígnios de
humana por intermédio da metanarrativa cósmica da história da Deus tanto para os indivíduos humanos como a para o conjunto da
salvação. Começa com a criação dos seres humanos à imagem e humanidade. Espera-se que os cristãos estejam de acordo com estes
semelhança de Deus. A Encarnação, na qual o Filho de Deus se desígnios e ajam para promovê-los até onde as suas circunstâncias
torna completamente humano e salva a humanidade pecadora, é permitam. Estes desígnios podem estar assim entre aqueles que dão
um episódio fundamental. Culminará com a vinda prometida do sentido teleológico positivo e, dessa forma, contribuírem para dar
Reino de Deus. [A]s grandes linhas da história tornam claro o amor um sentido positivo completo à vida de um cristão. […]
de Deus pela humanidade e o cuidado providencial com que é PhiliP l. Quinn, «The Meaning of Life According to Christianity»,
expresso. […] in Klemke, E. D. (org.) The Meaning of Life. Nova Iorque:
Oxford University Press, 2000, 2.ª edição, pp. 59-61.

Assim, segundo a perspetiva de Quinn, o absurdo da existência é apenas


aparente. A existência de Deus não só confere às nossas vidas um propósito
transcendente — cumprir os desígnios divinos (sentido teleológico) — como
nos oferece a vida eterna e a devida recompensa pelas nossas realizações
terrenas (sentido axiológico); portanto, a existência de Deus proporciona as
condições necessárias e suficientes para que a nossa vida tenha sentido com-
pleto. O argumento teísta pode ser formulado do seguinte modo:
Juízo intuitivo
Argumento 1
Avalie a resposta religiosa para o problema (1) A vida só faz sentido se formos imortais e tivermos um propósito
do sentido da existência de acordo com transcendente.
a sua primeira reação.
A — Convincente.
(2) Só somos imortais e temos um propósito transcendente se Deus existir.
B — Atraente mas não convincente. (3) Logo, a vida só faz sentido se Deus existir.
C — Duvidosa. Se o argumento for sólido, mostra que a existência de Deus é, de facto, uma
D — Implausível. condição necessária e suficiente para o sentido da existência. Mas será isso
verdade?

Atividades

1 Segundo Quinn, a noção de sentido pode aplicar-se às vidas humanas?

2 Para Quinn, qual é a importância das narrativas sobre a vida de Cristo?

3 Segundo Quinn, o que é necessário para que uma vida humana tenha sentido completo?

4 Segundo Quinn, por que razão a imortalidade é necessária para que a vida de um imitador de Cristo tenha sentido axiológico positivo?

Debate

«Se não formos imortais e nada do que fazemos é permanente, a vida não faz sentido.» Concorda? Porquê?

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Objeções à resposta teísta para o problema
do sentido da existência
Objeção ao requisito da imortalidade
No ensaio «O Absurdo», Thomas Nagel (n. 1937) sustenta que,
contrariamente ao que é defendido pela resposta teísta, a imortali-
dade não é nem uma condição necessária nem suficiente para o
sentido da existência:

Texto 4

Afirma-se por vezes que nada do que fazemos agora terá importância
daqui a um milhão de anos. Mas, se isso for verdade, então, pela mesma
ordem de ideias, nada do que acontecer daqui a um milhão de anos tem
importância agora. Em particular, não importa agora que daqui a um
milhão de anos nada do que fazemos agora tenha importância. Além disso,
mesmo que tivesse importância daqui a um milhão de anos o que agora
fazemos, como poderia isso impedir que os nossos interesses atuais fossem
absurdos? Se o facto de serem importantes agora não é suficiente para
o conseguir, como poderia fazer alguma diferença se fossem importantes
daqui a um milhão de anos?
A importância que terá daqui a um milhão de anos o que agora fazemos
só poderá fazer toda a diferença se o facto de ter importância daqui a um
milhão de anos depender de ter importância, sem mais qualificações.
Thomas nagel, «O Absurdo», in Viver para Quê? de MuRcho, Desidério (org.)
Lisboa: Dinalivro, 2009 [ed. original 1971], pp. 139-140.

Ou seja, Nagel considera que:


• se uma vida mortal não tem sentido, não passará a tê-lo só
porque se prolonga indefinidamente;
• se uma vida mortal tem sentido, não o perde só porque acabará
por terminar.
Para compreendermos melhor esta ideia, recordemos o exemplo
de Sísifo, condenado para a eternidade a empurrar uma pedra
montanha acima. A sua vida não tem sentido, apesar de se
prolongar por toda a eternidade, uma vez que a tarefa a que se
dedica não possui qualquer tipo de valor. Isto significa que,
mesmo que a nossa vida se prolongasse eternamente, ela não
passaria, só por esse motivo, a fazer sentido. Logo, a imortalidade
não pode ser considerada uma condição suficiente para o sentido
da existência.
Além disso, Nagel sustenta que a importância daquilo que fazemos
não depende do facto de daqui um milhão de anos alguém
lhe atribuir importância, mas sim do facto de ter importância,
sem mais qualificações. Assim, somos erroneamente conduzidos
à ideia de que a morte põe fim ao sentido da existência, porque
temos tendência para perspetivar a nossa vida como uma sequência Fig. 7 — O Além (1938), de René Magritte.
encadeada de finalidades que se justificam sucessivamente umas Dizer que temos uma vida imortal não é exatamente
às outras, até que a morte acaba inevitavelmente por interromper o mesmo que dizer que a nossa vida terrena se irá
prolongar para sempre. Mesmo que continuemos a
essa cadeia de justificação, sem que exista uma finalidade última existir de alguma maneira, é quase certo que deixaremos
que dê sentido à sequência como um todo — fazendo com que de poder fazer algumas das coisas que davam sentido à
tudo seja em vão. nossa vida, como, por exemplo, conviver com os vivos.
A religião e o sentido da existência 247

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A ideia anterior é apresentada no excerto que se segue:

Texto 5

Outro argumento inadequado é o seguinte: porque vamos morrer, todas as cadeias de


justificação têm de ser interrompidas no vazio; estudamos e trabalhamos para ganhar
dinheiro para pagar vestuário, casa, diversão, comida e para nos sustentarmos ano após
ano, talvez para sustentar uma família e ter uma carreira — mas com que fim último?
Tudo isto é uma viagem elaborada que não conduz a lado algum. (Teremos também
algum efeito sobre as vidas das outras pessoas, mas isso limita-se a reproduzir o pro-
blema, pois também elas irão morrer.)
Thomas nagel, «O Absurdo», in Viver para Quê? de MuRcho, Desidério (org.)
Lisboa: Dinalivro, 2009 [ed. original 1971], pp. 139-140.

Fig. 8 — Retrato do Poeta Fernando Pessoa


(1964), de Almada Negreiros.
Este argumento pode ser formulado do seguinte modo:
«Ele morrerá e eu morrerei / Ele deixará a
tabuleta, e eu deixarei versos. / A certa altura
Argumento 2
morrerá a tabuleta também, e os versos
também. / Depois de certa altura morrerá a rua (1) A nossa vida é uma sequência de finalidades em que cada uma delas
onde esteve a tabuleta, / E a língua em que tem como propósito outro membro qualquer da sequência.
foram escritos os versos. / Morrerá depois
o planeta girante em que tudo isto se deu.» (2) Se não formos imortais, essa cadeia de justificações será bruscamente
Excerto de «A Tabacaria», de Álvaro de Campos. interrompida, sem que haja uma finalidade última para tudo o que
fazemos.
(3) Se essa cadeia de justificações for bruscamente interrompida, sem que
haja uma finalidade última para tudo o que fazemos, então nenhuma
das finalidades a que nos dedicamos estará alguma vez justificada;
terá sido tudo em vão.
(4) Se tudo o que fazemos é em vão, então a vida não faz sentido.
(5) Logo, se não formos imortais, a vida não faz sentido.
(6) Se é verdade que «se não formos imortais, a vida não faz sentido»,
então a imortalidade é uma condição necessária para o sentido da
existência.
(7) Logo, a imortalidade é uma condição necessária para o sentido da
existência.

Segundo Nagel, este argumento falha porque a vida pode conter em si


mesma várias finalidades últimas, sem que sejam necessárias quaisquer
finalidades adicionais que as justifiquem. Logo, a primeira premissa do
argumento é falsa. Podemos formular este argumento do seguinte modo:

Argumento 3
(1) As cadeias de justificação chegam, muitas vezes, ao fim no seio da
vida — por exemplo, não é preciso qualquer justificação
complementar para que seja razoável tomar uma aspirina contra a dor
de cabeça, visitar uma exposição de um pintor que admiramos ou
impedir uma criança de colocar a sua mão num fogão quente.
(2) Se as cadeias de justificação chegam, muitas vezes, ao fim no seio da
vida, então a vida não é uma sequência de finalidades em que cada
uma delas tem como propósito outro membro qualquer da sequência.
(3) Logo, a vida não é uma sequência de finalidades em que cada uma
delas tem como propósito outro membro qualquer da sequência.
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Alguns autores consideram que a vida não pode conter em si mesma a sua
própria justificação, mas essa ideia não é muito fácil de defender.
Vejamos o que acontece no diálogo que se segue:

Caso 1

CARLOS — Uma vida mortal não se pode justificar a ela própria, é necessário que
exista qualquer coisa que a justifique a partir do exterior.
JOÃO — Por que razão dizes isso?
CARLOS — Bem, se reparares, nada se justifica a si próprio, todas as coisas precisam
de ser justificadas por algo exterior a si.
JOÃO — Desculpa, mas não concordo com o que acabaste de dizer. Se nada se
justifica a si próprio e todas as coisas precisam de ser justificadas por algo exterior
a si, então nunca poderemos dizer que algo (seja o que for) está justificado.
CARLOS — Como assim?
JOÃO — Repara, se justificarmos A com B, B com C e C com D e por aí em diante,
cairemos numa regressão até ao infinito, sem podermos considerar nunca que A está
justificado, pois essa justificação depende de B, C, D, etc., e estes, por sua vez, exigem
outras justificações. O processo estende-se até ao infinito sem que se encontre
alguma vez uma justificação ou finalidade última que dê sentido a toda a sequência.
CARLOS — Mas uma vida imortal não precisa de ser justificada a partir do exterior,
ela é, em si mesma, a sua própria finalidade.
JOÃO — Pois, aí é que está o problema. Se uma vida mortal não se pode justificar
a si mesma, não vejo por que razão uma vida imortal poderia fazê-lo. Apelar ao facto
de esta ser imortal é argumentar de forma circular, pois isso é justamente o que está
a ser disputado; por isso, não temos melhores razões para abrir uma exceção à regra
do «nada se justifica a si próprio» fora de uma vida mortal do que tínhamos no seu
interior. Parar em qualquer outro momento seria simplesmente arbitrário. Se vamos
escolher um sítio para parar, porque não fazê-lo dentro da própria vida?

Assim, uma vez que a vida pode ter sentido, apesar de ser mortal, podemos
concluir que a imortalidade não é uma condição necessária para o sentido
da existência. É isso que pretende mostrar o argumento que se segue:

Argumento 4
(1) Ou a vida é a sua própria finalidade ou há outra coisa que é
a finalidade da vida.
(2) Se a vida é a sua própria finalidade, tem sentido, apesar de ser mortal.
(3) Nenhuma outra coisa pode ser a finalidade da vida, sob pena
de regressão infinita ou de circularidade.
(4) Logo, a vida tem sentido, apesar de ser mortal.
(5) Se a vida tem sentido, apesar de ser mortal, então a imortalidade não
é uma condição necessária para o sentido da existência.
(6) Logo, a imortalidade não é uma condição necessária para o sentido
da existência.

Em suma, mesmo uma vida de autossacrifício dedicada a ajudar os outros


pode conter em si mesma a sua própria recompensa, desde que a pessoa
que vive essa vida tenha um interesse genuíno nesse tipo de objetivo.
A religião e o sentido da existência 249

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Objeção do dilema do propósito divino
Uma das razões apresentadas a favor da ideia de que «a vida faz sentido se,
e só se, Deus existe» foi o facto de Deus nos atribuir um propósito ou fina-
lidade última, que dá sentido a tudo o que fazemos. Isto pode ser expresso
do seguinte modo: «Se a nossa vida não possui uma finalidade última, atri-
buída por Deus, não tem sentido.»
No entanto, é legítimo perguntar se o propósito que Deus nos atribuiu tem
valor porque foi Deus quem o atribuiu ou se Deus nos atribuiu esse propó-
sito porque ele tem valor em si mesmo. Se o valor de um propósito depen-
der apenas do facto de ter sido atribuído por Deus, esse valor não deixará
de nos parecer algo arbitrário, a menos que haja boas razões para que Deus
o valorize; mas, nesse caso, haveria boas razões para valorizar esse propó-
sito, independentemente de este ter sido atribuído por Deus.
Não é difícil imaginar propósitos absurdos que Deus nos poderia atribuir
— contar os grãos de areia do deserto do Sara, tentar saltar até à Lua, etc. —,
mas Deus nunca nos atribuiria tais propósitos, o que mostra que não é pelo
facto de ter sido atribuído por Deus que um determinado propósito pode
conferir sentido à nossa vida, mas sim por ser o tipo de propósito que é.

Fig. 9 — Abrão e Isaac (1634), de Rembrandt. Objeção do artefacto divino


Será que qualquer propósito que Deus nos Kurt Baier (1917-2010) leva as objeções à resposta teísta um pouco mais
atribuísse seria capaz de conferir sentido às longe e defende mesmo que uma vida humana só pode ter sentido autên-
nossas vidas?
tico se Deus não existir. Baier é conduzido a esta conclusão pela considera-
ção de que existem duas aceções diferentes da palavra «propósito»:
• Numa primeira aceção, a palavra «propósito» é entendida como sinó-
nimo de «intenção», ou seja, algo que atribuímos a pessoas ou às suas
atividades. Ex.: Porque deixaste o carro a trabalhar?
• Numa segunda aceção, a palavra «propósito» é entendida como sinó-
nimo de «função», ou seja, é algo que atribuímos a coisas. Ex.: Para que
serve aquela engenhoca que instalaste na garagem?
Estas duas aceções estão relacionadas, uma vez que não podemos atribuir
um propósito a uma coisa sem apelar a uma pessoa, que levou a cabo uma
atividade com o propósito de dar origem a algo que tem uma determinada
função (ou propósito). No entanto, apesar de estarem relacionadas, estas
duas aceções da palavra «propósito» não se identificam uma com a outra,
pois, como é evidente, o propósito de uma pessoa não pode ser identificado
com o propósito dos objetos que produz. Por exemplo, uma pessoa que
fabrica corta-unhas, cria objetos que têm o propósito de cortar unhas; no
entanto, não podemos dizer que cortar unhas é o propósito dessa pessoa.
Se tivermos em mente a primeira aceção, há muitas coisas que podemos
fazer que só têm sentido se tiverem um determinado fim, ou propósito, em
vista. Neste sentido, se dedicarmos as nossas vidas a realizar atividades sem
qualquer propósito, ou finalidade última, então, de facto, as nossas vidas
serão absurdas ou despropositadas, como vimos anteriormente.
Contudo, ter ou não ter um propósito na segunda aceção é algo que geral-
mente não aumenta nem diminui o valor de uma coisa. Por exemplo, uma
fila de árvores perto de uma quinta pode não ter qualquer função, ou pro-
pósito, e ainda assim ser tão bela e tão valiosa como qualquer outra.

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No entanto, atribuir um propósito a um ser humano nesta segunda aceção
não é neutro, mas sim ofensivo, pois é degradante tratar um ser humano
como se este fosse um objeto concebido com uma determinada função. Se
perguntarmos a uma pessoa para que é que ela serve, o mais provável é que
ela se sinta diminuída ou insultada, pois estaríamos, de certo modo, a suge-
rir que essa pessoa é apenas um meio para determinados fins, em vez de a
considerarmos um fim em si mesma.
Uma vez que afirma que a única forma de uma vida humana ter sentido é
ter um propósito atribuído por Deus, a resposta religiosa trata o ser humano
como uma coisa, um artefacto divino, concebido com um certo propósito,
ou tarefa, pelo seu Criador. Mas isso seria demasiado redutor para os seres
humanos, dotados de autonomia e capazes de escolher por si mesmos os
propósitos que devem orientar a sua vida.
Avaliação crítica
É verdade que, se Deus não existir, a vida humana não terá um propósito,
de acordo com a segunda aceção, mas isso não impede que a vida tenha Assinale agora a sua avaliação ponderada
sentido. Não podemos confundir as duas aceções de «propósito». Dizer da resposta religiosa para o problema do
que a vida humana não tem nenhum propósito, de acordo com a segunda sentido da existência.
aceção, significa que esta não possui nenhum objetivo ou destino que lhe A — Convincente.
tenha sido atribuído por qualquer força exterior. No entanto, isso não B — Atraente mas não convincente.
significa que a vida humana não possa ter um propósito, de acordo com a
primeira aceção; significa apenas que a vida humana não tem qualquer C — Duvidosa.
propósito que lhe tenha sido atribuído por seja quem for exceto pela própria D — Implausível.
pessoa que a vive. Baier deixa clara a sua posição nas linhas que se seguem:

Texto 6

A mundividência cristã difere realmente da científica a este respeito, que a vida perca um propósito e, portanto, sentido estão a confundir
a um nível fundamental. A última despoja o homem de um propó- as duas aceções de «propósito» acima.
sito nesta [segunda] aceção. Vê o homem como um ser sem qual-
Pensam confusamente que se a mundividência científica for verda-
quer propósito que lhe tenha sido atribuído por seja quem for exceto
deira, então as suas vidas têm de ser fúteis porque essa mundividên-
ele mesmo. Despoja o homem de qualquer objetivo, propósito ou
cia implica que o homem não tem qualquer propósito que lhe tenha
destino que lhe tenha sido atribuído por qualquer força exterior.
sido dado a partir do exterior. Mas isto é uma confusão, pois, como
A mundividência cristã, por outro lado, encara o homem como uma
mostrei, a ausência de sentido só decorre da falta de propósito na
criatura, um artefacto divino, algo a meio caminho entre um robô
outra aceção, que a mundividência científica não implica de maneira
(manufaturado) e um animal (vivo), um homúnculo, ou talvez um
alguma. Estas pessoas concluem erradamente que não pode haver
Frankenstein, feito no laboratório divino, com um propósito, ou
qualquer propósito na vida porque não há propósito da vida; que os
tarefa, que lhe foi atribuído pelo seu Criador.
homens não podem adotar e alcançar por si propósitos porque o
Contudo, a falta de propósito, nesta [segunda] aceção, não impede homem, ao contrário de um robô ou de um cão de guarda, não é
de modo algum que a vida tenha sentido. Suspeito que muitas das uma criatura com um propósito.
pessoas que rejeitam a mundividência científica por esta implicar KuRT BaieR, «O Sentido da Vida», in Viver para Quê? de MuRcho, Desidério (org.)
Lisboa: Dinalivro, 2009 [ed. original 1957], pp. 82-83.

Atividades

1 «Para Nagel, a imortalidade é uma condição necessária e suficiente para o sentido da vida.» Concorda? Porquê?

2 Em que consiste a objeção do dilema do propósito divino?

Debate

«Ter um propósito atribuído a partir do exterior é um obstáculo para uma vida com sentido.» Concorda? Porquê?

A religião e o sentido da existência 251

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Ideias-chave

A religião e o sentido da existência


• O problema do sentido da existência está relacionado com o • Para que uma vida humana tenha sentido completo, ela tem
confronto entre um ponto de vista subjetivo, de acordo com de ter sentido axiológico e sentido teleológico.
o qual a nossa vida é um assunto importante, e um ponto de • Uma vida humana possui sentido axiológico se, e só, se tem
vista objetivo, segundo o qual somos minúsculos grãos de valor intrínseco positivo e é boa para a pessoa que a vive.
pó num vasto universo.
• Uma vida humana possui sentido teleológico se, e só, se tem,
• Perguntarmo-nos acerca do sentido de algo é questionarmo- pelo menos, uma finalidade alcançável e relevante, essa fina-
-nos sobre a sua razão de ser, a sua finalidade ou propósito. lidade tem valor positivo e existe uma entrega efetiva a ativi-
• Não basta que a vida tenha uma finalidade para que tenha dades com essa finalidade.
sentido. • Segundo a perspetiva de Quinn, a existência de Deus con-
• Existem finalidades últimas e finalidades instrumentais: uma fere às nossas vidas um propósito transcendente: cumprir os
finalidade instrumental é algo que fazemos tendo em vista desígnios divinos — sentido teleológico.
outra coisa; uma finalidade última é algo que fazemos por si • Segundo a perspetiva de Quinn, Deus oferece-nos a vida
mesmo, não tendo qualquer outro fim em vista. eterna e a devida recompensa pelas nossas realizações terre-
• Ter, pelo menos, uma finalidade última é uma condição nas — sentido axiológico.
necessária para o sentido da existência, mas não é suficiente. • Portanto, segundo a perspetiva de Quinn, Deus proporciona
Essa finalidade tem de ser alcançável e tem de ter valor. as condições necessárias e (conjuntamente) suficientes para
• Uma atividade pode ter valor intrínseco (tem valor por si) ou que a nossa vida tenha sentido completo.
instrumental (tem valor em função de ser um meio para • Nagel sustenta que a imortalidade não é uma condição
alcançar algo que tem valor por si). necessária nem suficiente para o sentido da existência.
• As coisas podem ter valor subjetivo ou objetivo: algo tem • Para Nagel, se uma vida mortal não tem sentido, não passará
valor subjetivo se tem valor para a pessoa em causa; algo tem a tê-lo só porque se prolonga indefinidamente; e se uma
valor objetivo se tem valor de um ponto de vista impessoal. vida mortal tem sentido, não o perde só porque acabará por
• O problema do sentido da existência pode, em termos gené- terminar.
ricos, ser formulado do seguinte modo: tem a vida pelo • O dilema do propósito divino consiste no facto de ser legí-
menos uma finalidade última alcançável e com valor? timo perguntar se o propósito que Deus nos atribuiu tem
• A resposta religiosa diz-nos que, se Deus não existe, valor porque foi Deus quem o atribuiu ou se Deus nos atri-
nenhuma finalidade com valor sub specie aeternitatis pode buiu esse propósito porque ele tem, em si mesmo, valor.
ser alcançada. • Ou o valor de um propósito depende apenas do facto de ter
• Segundo a resposta religiosa, se Deus existe, criou-nos com sido atribuído por Deus, pelo que esse valor não deixará de
almas imortais e com um propósito transcendente, e estas são nos parecer algo arbitrário, ou há boas razões para que esse
condições necessárias e suficientes para que a vida faça sentido. propósito seja valorizado. Neste caso, o seu valor é indepen-
• Quinn considera que, embora as vidas humanas não sejam dente do facto de ter sido atribuído por Deus.
como um texto ou uma frase, os eventos que as compõem • Para Baier, dizer que a vida humana não tem nenhum propó-
podem ser narrados, e as narrativas de vidas humanas são sito numa dada aceção não significa que não possa ter um
entidades linguísticas; logo, são suscetíveis de fazer sentido. propósito de todo; significa apenas que a vida humana não
• O cristianismo é uma religião apoiada em várias narrativas, tem qualquer propósito que lhe tenha sido atribuído por
com especial destaque para as narrativas da história da vida seja quem for, exceto pela própria pessoa que a vive.
de Jesus Cristo. • Segundo Baier, seria demasiado redutor para os seres huma-
• A importância das narrativas sobre a vida de Cristo reside no nos, dotados de autonomia e capazes de escolher por si
facto de esta ser uma vida especialmente significativa que mesmos os propósitos que devem orientar a sua vida, ter um
todos deveriam seguir e imitar. propósito atribuído a partir do exterior.

Para aprofundar conhecimentos

Leituras:
Murcho, Desidério (org.) — Viver para Quê? Lisboa: Dinalivro, 2007 [ed. original 2006].
Murcho, Desidério — «Sentido», in Filosofia em Directo. Lisboa: FFMS, 2011.
Nagel, Thomas — «Morte» e «O Sentido da Vida», in Que Quer Dizer Tudo Isto? Lisboa: Gradiva, 1995 [ed. original 1987].
rachels, James — «O Sentido da Vida», in Problemas da Filosofia. Lisboa: Gradiva, 2009 [ed. original 2005].

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Esquema-síntese

A religião e o sentido da existência


Será que a vida faz sentido se, e só se, Deus existe?

Resposta religiosa de Philip L. Quinn

Uma vida humana possui Objeções


sentido se, e só se, tiver:

Objeção ao requisito
Sentido axiológico Sentido teleológico da imortalidade

Uma vida possui Uma vida possui


sentido axiológico se, sentido teleológico se,
Objeção do dilema
e só se: e só se:
do propósito divino
a) tem valor intrínseco a) tem, pelo menos,
positivo; uma finalidade
b) ( no seu todo) é boa alcançável
para a pessoa que a e relevante;
vive. b) essa finalidade tem Objeção ao artefacto
valor positivo; divino
c) inclui uma entrega
efetiva a atividades
com essa finalidade. Não, Deus não é uma condição necessária
Só a imortalidade
oferece as e suficiente para o sentido da existência.
recompensas
adequadas para que
uma vida dedicada a Cumprir os desígnios
um sentido teleológico de Deus confere
tenha sentido sentido teleológico
axiológico. à vida humana.

Sim, só Deus confere sentido completo à existência humana.

Filmes:
Uma Casa, Uma Vida (2001), realizado por Irwin Winkler e Mark Andrus.
O Pequeno Buda (1993), realizado por Bernardo Bertolucci.

Página da Internet:
http://criticanarede.com/met_sentidodavida.html (artigo «O Sentido da Vida», de Susan Wolf )

A religião e o sentido da existência 253

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TESTE FOrmATIvO 10

CLASSIFIQUE AS AFIrmAÇÕES SEGUINTES COmO vErDADEIrAS OU FALSAS.

  1.  O problema do sentido da vida surge do confronto entre dois pontos de vista: o ponto
de vista subjetivo e o ponto de vista objetivo.

  2.  Para que a nossa vida tenha sentido, basta que tenhamos uma ou mais finalidades.

  3.  O mito de Sísifo é uma metáfora sombria da existência humana, porque Sísifo não tinha
qualquer finalidade.

  4.  Uma finalidade última é algo que queremos fazer por si mesmo, sem qualquer outro fim em vista.

  5.  Trabalhar para ganhar dinheiro é um bom exemplo de uma finalidade última.

  6.  As finalidades instrumentais dão sentido às finalidades últimas.

  7.  As finalidades últimas dão sentido às finalidades instrumentais.

  8.  O dinheiro tem valor intrínseco.

  9.  Ter, pelo menos, uma finalidade última é uma condição suficiente para a nossa vida fazer
sentido.

 10.  Se nos dedicarmos a uma finalidade última com valor, a nossa vida tem, necessariamente,
sentido.

 11.  Trabalhar na procura de uma cura para o cancro é, à partida, uma finalidade alcançável.

 12.  Alguém que procura ativamente curar o cancro colecionando selos tem uma vida com
sentido.

 13.  Algo tem valor objetivo se tem valor de um ponto de vista impessoal, ou sub specie aeternitatis.

 14.  Segundo uma perspetiva objetivista, a vida de um ditador megalómano como Hitler pode ser
uma vida com sentido, desde que tenha sentido para o próprio.

 15.  A ideia de que para que a vida tenha sentido é necessário que tenha uma finalidade última
alcançável e com valor objetivo, ou sub specie aeternitatis, é consensual.

 16.  A resposta religiosa diz-nos que, se Deus não existe, nenhuma finalidade com valor sub specie
aeternitatis pode ser alcançada.

 17.  P
  hilip L. Quinn considera que, embora as vidas humanas não sejam como um texto ou uma
frase, os eventos que as compõem podem ser narrados, e as narrativas de vidas humanas são
entidades linguísticas suscetíveis de fazer sentido.

 18.  A
  importância das narrativas sobre a vida de Cristo reside no facto de esta ser uma vida
especialmente significativa que todos deveriam seguir e imitar.

 19.  P
  ara Quinn, a diferença entre um simples admirador e um imitador de Cristo é que o imitador
reconhece que aquilo que é admirado lhe impõe o requisito de ser, ou pelo menos tentar ser,
aquilo que se admira, ao passo que o admirador mantém um certo distanciamento pessoal.

 20.  Segundo Quinn, uma vida humana possui sentido teleológico se, e só, se tem valor intrínseco
positivo e (no seu todo) é boa para a pessoa que a vive.

 21.  Segundo Quinn, uma vida humana possui sentido completo se, e só, se, possui
cumulativamente sentido teleológico e axiológico.

 22.  Para Quinn, a vida de um imitador de Cristo tem sentido completo, mesmo que acabe com a morte.

 23.  Para Quinn, apenas uma vida imortal pode conter as recompensas adequadas, a nível
pessoal, para que se possa considerar que uma existência de autossacrifício e dedicação
aos outros tenha sentido axiológico.

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 24.  Segundo a perspetiva religiosa de Quinn, cumprir os desígnios de Deus confere, por si só,
sentido axiológico à vida humana.

 25.  Segundo a perspetiva religiosa de Quinn, a existência de Deus confere sentido completo
às nossas vidas.

 26.  A resposta teísta aceita a ideia de que «se não formos imortais e nada do que fizermos for
permanente, a vida não faz sentido».

 27.  Segundo Nagel, a importância daquilo que fazemos agora depende essencialmente
da importância que terá daqui um milhão de anos.

 28.  Nagel sustenta que, embora a imortalidade seja uma condição suficiente para o sentido
da existência, não é uma condição necessária.

 29.  P
  ara Nagel, mesmo uma vida de autossacrifício dedicada a ajudar os outros pode conter em
si mesma a sua própria recompensa, desde que a pessoa que vive esse tipo de vida seja imortal.

 30.  Para Nagel, se uma vida mortal não tem sentido, não passará a tê-lo só porque se prolonga
indefinidamente; e se uma vida mortal tem sentido, não o perde só porque acabará por
terminar.

 31.  Segundo Nagel, a nossa vida é uma sequência encadeada de finalidades que se justificam
sucessivamente umas às outras, daí que a morte seja um obstáculo para o sentido da existência.

 32.  Considerando que a vida pode ter sentido, apesar de ser mortal, podemos concluir
validamente que a imortalidade não é uma condição suficiente para o sentido da existência.

 33.  Segundo Nagel, a vida não se pode justificar a si mesma.

 34.  Uma das objeções à ideia de que a imortalidade é uma condição necessária para o sentido
da vida baseia-se na ideia de que nenhuma outra coisa pode ser a finalidade da vida, sob
pena de regressão infinita ou de circularidade.

 35.  O dilema do propósito divino consiste no seguinte: ou o propósito que Deus nos atribui tem
valor pelo simples facto de ter sido atribuído por Deus (o que seria arbitrário) ou existem boas
razões para que se adote esse propósito, independentemente das recomendações divinas.

 36.  Baier defende que uma vida humana só pode ter sentido se Deus não existir.

 37.  Baier sustenta que existem pelo menos duas aceções da palavra «propósito».

 38.  S
  egundo Baier, a perspetiva religiosa reduz o ser humano ao estatuto de coisa ou artefacto
divino.

 39.  B
  aier considera que, seja qual for a aceção da palavra, atribuir um propósito a uma vida
humana é sempre neutro.

 40.  B
  aier acredita que, numa dada aceção da palavra, atribuir um propósito a uma vida humana
é ofensivo.

 41.  S
  egundo Baier, a vida humana não pode ter qualquer propósito, em nenhuma aceção
da palavra.

 42.  P
  ara Baier, dizer que Deus nos criou com um propósito é como dizer que um sapateiro criou
um par de sapatos com um propósito.

 43.  B
  aier sustenta que o problema do sentido da existência resulta de uma confusão entre dois
sentidos da palavra «propósito».

33. F; 34. V; 35. V; 36. V; 37. V; 38. V; 39. F; 40. V; 41. F; 42. V; 43. V.
1. V; 2. V; 3. F; 4. V; 5. F; 6. F; 7. V; 8. F; 9. F; 10. F; 11. V; 12. F; 13. V; 14. F; 15. F; 16. V; 17. V; 18. V; 19. V; 20. F; 21. V; 22. F; 23. V; 24. F; 25. V; 26. V; 27. F; 28. F; 29. F; 30. V; 31. F; 32. F;
SOLUÇÕES:

A religião e o sentido da existência 255

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Unidade

11 Religião, razão e fé

11.1 O problema da existência de Deus


11.1.1 Fideísmo
11.1.2 Teologia natural

Objetivos da unidade Conceitos fundamentais

No fim desta unidade, deverá ser capaz de responder Os conceitos seguintes, que são centrais nesta unidade,
às seguintes questões: são definidos no fim do livro:
Em que consiste o problema da existência de Deus? agnosticismo fideísmo
Quais são os principais atributos do Deus teísta? argumento cosmológico filosofia da religião
Em que consiste o fideísmo? argumento do desígnio milagre
Em que consiste a teologia natural? argumento ontológico teísmo
Qual é o alcance e quais são os limites dos principais ateísmo teologia natural
argumentos apresentados a favor e contra a existência Deus
de Deus?

Introdução

Na unidade anterior, vimos que, para alguns autores, a existência de Deus oferecia uma resposta para um problema pessoal da maior
importância: o problema do sentido da existência. Independentemente de concordarmos ou não com essa perspetiva, um outro pro-
blema subsiste: será que temos boas razões para acreditar que Deus existe? Este problema revela-se crucial, porque a crença na existência
de Deus tem um impacto muito significativo na forma como encaramos as nossas vidas e como lidamos uns com os outros.
As religiões oferecem uma explicação do mundo e de tudo o que nele acontece, incluindo o papel que cada um de nós desempenha no
desenrolar dos acontecimentos. Além disso, é frequente vermos, associado a uma religião, um código moral, que nos permite distinguir
o certo do errado, através de um conjunto de instruções sobre como nos devemos comportar e como devemos encarar os outros. Por
fim, quase todas as religiões têm ainda em comum a esperança da vida eterna e uma recompensa em troca da nossa observância das
instruções divinas. Um dos desafios que se colocam às sociedades contemporâneas é o de saber como lidar com a diversidade religiosa.
Algumas religiões convivem pacificamente com outros credos, mas nem todas partilham esta característica — a ideia de que os infiéis
devem ser convertidos ou perseguidos legitimou muitas atrocidades ao longo dos séculos e seguramente continua a fazê-lo no presente.
Compete aos filósofos da religião avaliar criticamente as pretensões religiosas, começando desde logo pela pretensão de que Deus existe.
Que razões temos a favor desta ideia? E contra ela? Nesta unidade, iremos discutir e analisar alguns argumentos tradicionalmente apre-
sentados a favor e contra a existência de Deus, procurando contribuir para uma tomada de posição informada e crítica sobre o assunto.

256 Unidade 11

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Estímulo

A história que irá ler pretende testar:


• as suas intuições relativamente à existência e aos atributos de Deus;
• as suas intuições em relação a alguns argumentos tradicionais a favor e contra a existência
de Deus.

Deus e o filósofo
Numa manhã cinzenta de inverno, as nuvens abriram- — Bem — respondeu o Senhor —, é bom porque foi
-se e um feixe de luz desceu sobre a terra, iluminando ordenado por mim.
um filósofo que deambulava à beira-mar. Uma voz
— Resposta errada, Vossa grandiosidade. Se algo é
potente ecoou nos céus e Deus disse ao filósofo:
bom apenas porque Vós dizeis que é, isso significa que
— Eu sou o Senhor teu Deus e ordeno-te que sacrifi- Vós poderíeis ter desejado que a tortura de crianças
ques o teu único filho. inocentes fosse boa. Mas isso é um absurdo, não é?
— Um momento, Vossa grandiosidade. Há aqui — Evidentemente! — replicou o Senhor. — Estava
alguma coisa que não me soa nada bem. Os Vossos apenas a testar-te. Diz lá outra vez qual era a outra
mandamentos ordenam muito claramente: «Não hipótese?
matarás!»
— Vós ordenais o que é bom, porque é bom. Mas isso
— Eu sou Deus, sou eu que faço as regras e também mostra que o bem não depende de todo da Vossa
posso desfazê-las. vontade. Portanto, não precisamos de estudar Deus
para estudar a natureza do bem.
— E como é que eu sei que vós sois realmente Deus?
— insistiu o filósofo. — Tanto quanto sei, podeis
muito bem ser um demónio a tentar enganar-me.
— Tens de ter fé! — replicou o Senhor.
— Fé ou insanidade? Se calhar a minha mente está a
pregar-me uma partida. Ou talvez estejais a testar-me
de uma forma astuta, para ver se eu tenho tão pouca
fibra moral, que basta uma voz profunda vinda das
nuvens para eu cometer infanticídio.
— Valha-me Eu! — exclamou o Senhor. — Estás, por
acaso, a sugerir que é razoável um mero mortal como
tu recusar-se a fazer aquilo que eu, o Senhor teu Deus,
ordena?
— Parece que sim — disse o filósofo. — E até agora
não me haveis dado nenhuma razão para mudar de
opinião.
— Mas eu sou o Senhor teu Deus, sou a fonte de tudo
o que é bom. Como pode a tua filosofia moral
ignorar-me?
— Bem, para responder a essa questão, tenho de fazer
primeiro algumas perguntas. Vós sois a fonte de tudo Fig. 1 — Joana d’Arc (1865), de John Everett Millais.
o que é bom e, por isso, tudo o que vós ordenais é Joana d’Arc afirmava ouvir vozes divinas, mas acabou por ser
bom. Mas há uma coisa que não consigo compreen- queimada viva, acusada de bruxaria. Em 1920, foi canonizada
pelo papa Bento XV. Hoje em dia, vários especialistas de saúde
der. O que vós ordenais é bom porque foi ordenado mental não hesitariam em diagnosticá-la como doente mental.
por vós ou é porque é bom que vós o ordenais?

Religião, razão e fé 257

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— Ainda assim, tens de admitir que escrevi uns bons — Que assim seja — disse o Senhor. — Que ocorra
livros sobre o assunto. Afinal, eu sou o Senhor teu uma inversão de cores.
Deus, omnipotente, omnisciente e sumamente bom.
E assim aconteceu, para grande confusão dos porta-
— Ora aí está outro problema interessante — atreveu- -bandeiras da Polónia e de São Marino. E o filósofo
-se, mais uma vez o filósofo. — Eu olho à minha disse ao Senhor:
volta e vejo doenças, fome, miséria, violência e sofri-
— Parabéns, Senhor! Mas se quereis verdadeiramente
mento, e vós nada fazeis para por fim a isso. Será que
impressionar-me, fazei um círculo-quadrado.
não sabeis o que se passa? Nesse caso não sois verda-
deiramente omnisciente. Será que não podeis fazer — Que assim seja — disse o Senhor. — Faça-se um
nada quanto a isso? E nesse caso não sois verdadeira- círculo-quadrado.
mente omnipotente. Ou será porque não quereis? — Mas isso não é um círculo-quadrado, é um círculo
E nesse caso não sois sumamente bom. — protestou o filósofo.
— Mas que impudência! — exclamou o Senhor. — — Se eu digo que é um quadrado, então é um qua-
Será que não percebes que é para o vosso bem que drado — respondeu Deus subindo o tom de voz. —
não acabo com essas atrocidades? Vocês precisam de Agora vê se deixas de ser impertinente.
crescer e de se aperfeiçoar moralmente, mas para isso
precisam de ser livres para fazer o bem, ou o mal, — Eu não vos pedi que modificásseis o significado da
ainda que corram o risco de provocar algum sofri- palavra «quadrado» para que passasse a designar
mento no caminho. Como poderia eu criar um círculos. O que eu pretendia era que fizésseis um
mundo melhor sem vos retirar o livre-arbítrio? círculo-quadrado — insistiu o filósofo.
— Fácil — respondeu presunçosamente o filósofo. Deus pensou por um instante e, ao fim de algum
— Em primeiro lugar, poderíeis ter-nos desenhado de tempo, respondeu:
modo a sentirmos menos dor. Segundo, poderíeis ter-vos — Definitivamente, devia ter-vos dado um intelecto
assegurado de que sentíamos mais empatia, para não mais sofisticado. Não posso esperar que um simples
provocarmos tanto sofrimento uns aos outros. mortal compreenda aquilo que a sua mente não pode
Terceiro, poderíeis tornar-nos melhores aprendizes, abarcar. Acho que é melhor ficarmos por aqui, meu
para que não tivéssemos de sofrer tanto para apren- caro. Até breve.
der. Quereis que continue?
As nuvens fecharam-se, o raio luminoso desvaneceu-se
— Ousas duvidar do meu poder? — interrogou o e o filósofo permaneceu em silêncio, enquanto pen-
Senhor, que começava a não achar piada à conversa. sava nas palavras do Senhor. Seria de facto demasiado
— Eu sou o Senhor teu Deus, todo-poderoso. Não há limitado para compreender o absoluto, ou estaria
nada que possas dizer que eu não consiga fazer. Deus apenas a desconversar?
— Muito bem, Vossa grandiosidade, então tornai tudo Inspirado na obra The Pig That Wants to Be Eaten and 99 Other
o que é azul vermelho e tudo o que é vermelho azul. Thought Experiments, de Julian Baggini.

Guião de leitura

1 Formule os diversos problemas sugeridos no texto.

2 Apresente a posição do filósofo.

3 Apresente a resposta de Deus.

4 Discuta a ideia: «Os desígnios de Deus são insondáveis.»

Fazer filosofia

1 Realize uma pesquisa sobre várias religiões.


1.1 Em grupo, procure determinar o que há de comum a todas elas (ou à maioria).

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11.1 O problema da existência de Deus
A filosofia da religião é a área da filosofia que se dedica a investigar e ana-
lisar racionalmente os fundamentos das crenças religiosas. Neste sentido,
distingue-se da teologia, da psicologia da religião, da sociologia da religião,
da história da religião, etc.
A mais essencial de todas as crenças
religiosas é a crença na existência de Deus;
por isso, o principal problema de que os
filósofos da religião se ocupam é o seguinte:
«Será que Deus existe?» A maior parte de
nós já se colocou esta questão num ou
noutro momento da vida. A forma como
respondemos a este problema acarreta
importantes consequências, não apenas no
nosso modo de entender o mundo, mas
também na forma como vivemos as nossas
vidas e como encaramos os outros. A dis- Fig. 2 — A Criação de Adão (c. 1512), de Miguel Ângelo.
cussão clássica deste problema refere-se a A maioria das religiões tem em comum a crença num ser único, pessoal,
uma particular conceção de Deus, comum omnisciente, omnipotente, que é sumamente bom e que criou o universo e tudo
a várias religiões. o que nele existe — Deus.

Conceção teísta de Deus:


Deus é um ser único, pessoal, omnisciente (que tudo sabe),
omnipotente (que tudo pode), que é sumamente bom (ou moralmente
perfeito) e que criou o universo e tudo o que nele existe.

Aqueles que acreditam que um tal ser existe designam-se por «teístas» (do
grego «theos» — Deus); aqueles que acreditam que um tal ser não existe
designam-se por «ateus» (do grego «a» — prefixo de negação + «theos»);
há ainda quem tenha decidido suspender a crença em relação à existência
de Deus, subscrevendo uma posição que ficou, por esse motivo, conhecida
por «agnosticismo» (do grego «a» + «gnose» — conhecimento).
Estas são as posições que temos ao nosso dispor, relativamente ao problema
da existência de Deus:

Teístas: acreditam que Deus existe.


Ateus: acreditam que Deus não existe.
Agnósticos: suspendem a crença em relação à existência de Deus.

Que argumentos podem ser apresentados a favor e contra cada uma destas
posições? Será que temos boas razões para acreditar na existência de Deus?
É deste problema que nos iremos ocupar em seguida.

Atividades

1 Quais são as principais características do Deus teísta?

2 Relativamente ao problema da existência de Deus, qual é a posição dos teístas, dos ateus e dos agnósticos?

Religião, razão e fé 259

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11.1.1   Fideísmo
Alguns autores consideram que a infinitude de Deus não pode ser abarcada
pela razão humana; portanto, os nossos usuais métodos de justificação
racional, através de argumentos ou provas, não são adequados para justifi-
car a crença em Deus. Segundo estes autores, a crença na existência de
Deus só pode ser o resultado de um ato de fé, daí que a sua posição seja
conhecida como «fideísmo». A fé é uma forte convicção de que uma dada
proposição é verdadeira (no caso, a proposição de que «Deus existe.»),
mesmo que não existam boas razões para isso. De entre os autores fideístas
destacam-se Nicolau de Cusa, Søren Kierkegaard e Blaise Pascal.

Nicolau de Cusa e a Docta Ignorantia


Embora certas interpretações dos escritos de Nicolau de Cusa pareçam
sugerir que este autor sustentava uma forma de panteísmo (do grego «pan»
— tudo + «theos» — Deus, ou seja, uma perspetiva segundo a qual Deus
e o universo são uma e a mesma coisa), essa não era a sua intenção, pelo
que podemos considerar que Cusa defendia a existência do Deus teísta. Na
sua obra De Docta Ignorantia («Douta Ignorância»), Cusa serve-se de um
conjunto de paradoxos matemáticos que envolvem o infinito para mostrar
Fig. 3 — Alegoria da Fé (1674), que, embora a razão humana esteja equipada para lidar de modo adequado
de Johannes Vermeer. com noções finitas, está condenada ao fracasso e à contradição quando
Será que existe alguma forma de conciliar pretende abarcar o infinito. Ora, sendo Deus infinito, não é de estranhar
a fé com a razão? que sejamos incapazes de O compreender racionalmente. A esta consciência
de que o nosso conhecimento de Deus e do universo é infinitesimal, Cusa
deu o nome de Docta Ignorantia.
Os paradoxos de Cusa pretendem demonstrar que no infinito se dá a coin-
cidência dos opostos, isto é, noções claramente opostas acabam por coin-
cidir quando entram em relação com o infinito.
O primeiro paradoxo utilizado por Cusa envolve as noções de maior e
menor. Maior e menor são noções opostas e claramente distintas quando
temos por referência grandezas finitas. Tomados dois números aleatoria-
mente (digamos 8 e 80), não teremos dificuldades em dizer qual deles é o
maior e qual deles é o menor. Assim, se imaginarmos dois atletas a disputar
uma prova de 500 metros, sabendo que um deles já percorreu 80 metros,
enquanto o outro só percorreu 8, não teremos dificuldade em determinar
qual deles está mais próximo da meta. No entanto, se fosse possível subs-
tituir a prova dos 500 metros por uma prova com metros infinitos, isso já
não seria tão fácil de determinar, pois, como tinham o infinito pela frente,
estariam ambos à mesma distância da meta. Cusa serve-se deste exemplo
para mostrar que, face ao infinito, noções com as quais lidamos diaria-
mente sem qualquer tipo de dificuldade tornam-se confusas e obscuras.
Outro paradoxo envolve as noções de reto e de curvo. Não temos dificuldade
em distinguir uma linha reta de uma linha curva. No entanto, Cusa observa
que, à medida que o raio de uma circunferência aumenta, a curvatura local
diminui. Seria mais difícil equilibrarmo-nos em cima de uma bola de basque-
tebol do que em cima de uma esfera com a dimensão da Terra. A olho nu
a Terra parece plana, porque, graças ao seu tamanho, a sua curvatura local
é bastante reduzida. Se a regra se mantiver constante, sempre que aumentar
o raio de uma circunferência, menor será a curvatura local. Mas até aqui nada
de muito estranho acontece. Mais uma vez o problema surge apenas quando
se introduz o infinito no assunto. Numa circunferência de raio infinito
a curvatura local é nula, ou seja, no infinito, reto e curvo coincidem.
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Por fim, Cusa utiliza as noções de movimento e de repouso para conceber
mais um paradoxo. Regra geral, não temos dificuldade em perceber se um
objeto está em movimento ou em repouso. Assim que um objeto para, perce-
bemos que cessou o seu movimento e, quando inicia o seu movimento, per-
cebemos que deixou de estar em repouso. Cusa convida-nos a imaginar um Juízo intuitivo
objeto que se desloca num movimento circular, desenhando uma circunferên-
cia perfeita com o seu trajeto. Depois pede-nos que imaginemos que este se Avalie a perspetiva de Nicolau de Cusa
desloca a uma velocidade infinita. Se apontarmos para qualquer parte da cir- de acordo com a sua primeira reação.
cunferência, podemos dizer que o objeto se encontra nesse ponto sem deixar A — Convincente.
nunca de lá estar, pelo que diríamos que está em repouso, ou seja, movimento B — Atraente mas não convincente.
e repouso tornam-se indistinguíveis quando o infinito entra em cena. Cusa
acredita ter motivos suficientes para desconfiar do alcance da razão no que C — Duvidosa.
diz respeito ao infinito. Sendo Deus, por definição, um ser infinito, é natural D — Implausível.
que os nossos limitados intelectos sejam incapazes de O compreender.

Objeção 1
Embora Nicolau de Cusa tenha de facto mostrado que existem vários para-
doxos matemáticos envolvendo o infinito, isso não é suficiente para
demonstrar que nenhum tipo de entendimento, ainda que rudimentar, do
infinito é possível. Afinal de contas, não obstante este tipo de paradoxos, é
possível ter a noção de um conjunto infinito, como o conjunto de todos os
números inteiros maiores do que um. Trata-se apenas de estipular um cri-
tério e prolongar uma série indefinidamente. Pela mesma ordem de ideias,
é possível ter um entendimento, ainda que limitado, de Deus.

Objeção 2
Ter dificuldades em conceber uma coisa não implica que não possamos mos-
trar que ela existe. Podemos ter dificuldades em conceber o que seria ganhar
um prémio de 100 milhões de euros no Euromilhões, mas isso não significa Avaliação crítica
que não temos ao nosso dispor formas de mostrar que esse prémio existe.
Assinale agora a sua avaliação ponderada
da perspetiva de Nicolau de Cusa.
Objeção 3
A — Convincente.
Se a nossa razão é tão limitada que não é capaz de conceber o infinito (Deus), B — Atraente mas não convincente.
então, quando afirmamos que acreditamos na existência de Deus, não sabe-
mos do que estamos a falar, o que se torna difícil de conciliar com uma carac- C — Duvidosa.
terização tão pormenorizada de alguns dos atributos de Deus: único, pessoal, D — Implausível.
omnipotente, omnisciente, sumamente bom e criador de tudo o que existe.

Atividades

1 Qual é a ideia central do fideísmo?

2 Qual é o propósito de Nicolau de Cusa ao recorrer a paradoxos matemáticos que envolvem o infinito?

3 Em que consiste o paradoxo baseado nas ideias de «grande» e «pequeno»?

4 Quais são as principais objeções que a posição de Nicolau de Cusa enfrenta?

Debate

Será que os paradoxos matemáticos de Nicolau de Cusa provam que a matemática não é uma ciência exata?

Religião, razão e fé 261

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Søren Kierkegaard e o salto de fé
Søren Kierkegaard acreditava que justificar a nossa crença em Deus não só
é inútil, pois a razão é incapaz de chegar a Deus, como é uma má opção,
uma vez que ao fazê-lo estamos a retirar o que há de essencial à própria fé.
Kierkegaard esclarece esta ideia no texto que se segue:

Texto 1

Sem riscos não existe fé. A fé é precisamente a contradição entre


a paixão infinita da espiritualidade e a incerteza objetiva. Se eu
puder apreender objetivamente Deus, então não creio nele, mas,
porque não posso conhecer Deus objetivamente, tenho de ter fé
e, se eu preservar a minha fé, tenho constantemente de me agar-
rar à incerteza objetiva, de modo a manter-me à tona num
oceano profundo com mais de 70 mil braças de água e continuar
a acreditar.
Søren KierKegaard, Concluding Unscientific Postscript to Philosophical Fragments, 1844.

A ideia de Kierkegaard é a de que procurar demonstrar racionalmente a


existência de Deus é retirar à fé o seu verdadeiro valor, que advém justa-
Juízo intuitivo mente do facto de esta ser uma escolha pessoal que se reveste de alguma
incerteza. Se tivéssemos boas razões para acreditar que Deus existe, pode-
Avalie a perspetiva de Kierkegaard ríamos dizer que essas razões seriam a causa da nossa crença, em vez de se
de acordo com a sua primeira reação. considerar que essa crença é fruto de uma escolha genuína da nossa parte.
A — Convincente. Além disso, se tivermos a certeza de que Deus existe, não hesitaremos em
B — Atraente mas não convincente.
seguir os seus desígnios, nem que seja por interesse numa futura recom-
pensa. No entanto, escolher seguir os desígnios de Deus sem certezas da
C — Duvidosa. Sua existência torna a nossa escolha mais arriscada (pois não sabemos se
D — Implausível. vamos ser recompensados por aquilo que fazemos ou não) e, por isso, mais
desinteressada e com mais valor.

Objeção 1
Se a fé é suficiente para justificar as verdades religiosas, então cada religião
está justificada a postular a existência das suas divindades. No entanto, a
existência de certas divindades é incompatível com a existência de outras,
pelo que a fé conduz a inconsistências. Além disso, se algumas religiões
convivem pacificamente com outros credos, nem todas partilham esta
característica. A ideia de que os infiéis devem ser convertidos ou persegui-
dos legitimou muitas atrocidades ao longo dos séculos e seguramente con-
tinuará a fazê-lo no futuro. Se a fé não possibilitar qualquer discussão ou
diálogo racional, não teremos forma de garantir que esse tipo de atrocidades
deixe de existir.

Objeção 2
A ideia de que é mais importante acreditar em Deus do que saber que
Deus existe não colhe uma aceitação pacífica. Afinal de contas, se imaginar-
mos um indivíduo que acredita em Deus sem ter razões para isso e outro
que, além de acreditar em Deus, tem boas razões para o fazer, percebemos
que a única diferença entre eles é que um deles, além de ter tudo o que
outro tem — a crença na existência de Deus —, tem ainda um conjunto de
razões a favor dessa ideia. Torna-se, por isso, difícil perceber por que
motivo se considera que este se encontra numa situação de desvantagem.
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Além disso, podemos considerar que Deus nos concedeu a razão precisa-
mente para que fôssemos, entre outras coisas, capazes de reconhecer a
necessidade da Sua existência através dela. Por fim, num ensaio de 1879,
W. K. Clifford defende que pode até ser muito irresponsável acreditar em
algo sem ter provas suficientes:

Texto 2

Um armador estava prestes a enviar para o mar o seu navio com de modo algum ajudá-lo, porque não tinha o direito a acreditar com
emigrantes. Ele sabia que o navio era velho e que não tinha uma boa base nas provas que tinha à sua disposição. Não adquiriu honesta-
construção; que já tinha visto muitos mares e climas, e que precisava mente a sua crença por meio da investigação paciente, mas por
de reparações constantes. Foi-lhe sugerido que o navio não tinha meio do silenciamento das suas dúvidas. E, apesar de ter talvez aca-
condições de navegabilidade. Estas dúvidas assombravam-lhe o bado por se sentir tão seguro que era incapaz de pensar de outro
espírito e faziam-no infeliz; pensava que talvez devesse inspecionar modo, na medida em que se colocou a si mesmo nesse estado de
e reparar o navio, apesar de isto lhe sair muito caro. Antes de o navio espírito deliberada e voluntariamente tem de ser responsabilizado
zarpar, todavia, conseguiu ultrapassar estas reflexões melancólicas. pela sua crença. Alteremos o caso ligeiramente e suponhamos que o
Disse de si para si que o navio tinha feito já tantas viagens em segu- navio não tinha afinal problemas; que fez a viagem em segurança, e
rança e tinha aguentado tantas tempestades que era uma perda de muitas outras depois dessa. Diminui isso a culpa do seu dono? Nem
tempo supor que não regressaria em segurança de mais esta via- um pouco. Depois de realizada, uma ação é correta ou incorreta para
gem. Confiaria na Providência, que dificilmente deixaria de proteger sempre; nenhuma falha acidental dos seus frutos, bons ou maus,
todas aquelas infelizes famílias que abandonavam a sua terra natal pode alterar isso. A questão do correto e do incorreto tem que ver
para procurar um melhor futuro noutro lado. […] [D]este modo, com a origem da sua crença, e não com a sua matéria; não tem que
adquiriu uma convicção sincera e confortável de que o seu navio era ver com o que ela era, mas com o modo como ele a adquiriu; não
inteiramente seguro e tinha condições de navegabilidade; assistiu à tem que ver com a questão de saber se a crença se revelou verda-
sua partida de coração ligeiro e com votos benevolentes pelo deira ou falsa, mas com a questão de saber se ele tinha o direito de
sucesso dos exilados no que seria o seu novo lar; e recebeu o acreditar com base nas provas que tinha à sua disposição. […]
dinheiro do seguro quando o navio se afundou no meio do oceano
Em suma: é sempre incorreto, em qualquer parte e para qualquer
sem deixar sobreviventes.
pessoa, acreditar seja no que for sem provas suficientes.
Que dizer dele? Isto, sem dúvida: que era muitíssimo culpado da W. K. Clifford, «The Ethics of Belief», in Madigan, T. J. (org),
morte daqueles homens. Aceita-se que acreditava sinceramente na The Ethics of Belief and Other Essays. Amherst, MA: Prometheus,
solidez do seu navio; mas a sinceridade da sua convicção não pode 1999 [ed. original 1877], pp. 70-96.

Objeção 3 Avaliação crítica


Tal como foi anteriormente notado, a posição fideísta não é compatível com
a ideia teísta de que é possível descrever Deus, ainda que em traços gerais. Assinale agora a sua avaliação ponderada
da perspetiva de Kierkegaard.
Se Deus e os seus desígnios estão para além da nossa compreensão, nem
sequer podemos saber, como Kierkegaard supõe que podemos, que tipo de A — Convincente.
crença seria mais valorizado por Deus, se uma crença na ausência de razões B — Atraente mas não convincente.
ou uma crença devidamente fundamentada. C — Duvidosa.
D — Implausível.

Atividades

1 Por que razão Kierkegaard acreditava que justificar racionalmente a crença na existência de Deus era uma má opção?

2 Em que medida se pode considerar que a fé conduz a inconsistências?

3 Por que motivo se diz que a posição de Kierkegaard entra em choque com o próprio fideísmo?

Debate

«Mais vale acreditar que Deus existe sem ter boas razões para isso do que acreditar que Deus existe porque existem boas razões para o fazer.»
Concorda? Porquê?

Religião, razão e fé 263

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Blaise Pascal e o argumento do apostador
Blaise Pascal subscreve a tese do fideísmo, segundo a qual Deus é infinita-
mente incompreensível, pelo que não podemos provar diretamente a sua
existência. No entanto, a sua versão de fideísmo é mais moderada porque
não considera que a fé entra em conflito com a razão, apenas afirma que a
fé deve substituir a razão nos casos em que o seu alcance é limitado.
Contudo, Pascal não se fica por aqui. Uma vez que não podemos determi-
nar com certeza se Deus existe ou não, conclui que o melhor que temos a
fazer é apostar. Recorrendo a uma estratégia semelhante à utilizada por
John Rawls para decidir quais deveriam ser os princípios de uma sociedade
justa — o princípio maximin —, Pascal defende que temos boas razões para
apostar na ideia de que Deus existe.
O princípio maximin sustenta que, quando várias alternativas se apresentam
diante de nós e não sabemos ao certo como vamos ser afetados por qualquer
decisão que tomemos, o mais razoável é pensar no pior que nos pode aconte-
cer em cada uma das opções disponíveis e escolher o melhor de entre os pio-
res cenários. A decisão de Pascal pode ser esquematizada no quadro seguinte.

Deus existe Deus não existe


Perdemos algumas horas a
Acreditamos Viveremos para sempre no
rezar e a ir à missa e tivemos
em Deus Paraíso.
algumas restrições em vão.
Não acreditamos
Vamos parar ao Inferno. Não perdemos nada.
em Deus
Quadro 1 — Resultados possíveis da crença/descrença em Deus.

Ora, conforme se pode constatar, se apostarmos em acreditar que Deus


existe e Este, de facto, existir, viveremos para sempre no Paraíso. Enquanto,
se apostarmos em acreditar que Deus existe, mas Este não existir, perderemos
algumas horas a rezar e a ir à missa e teremos algumas restrições em vão.
Por outro lado, se apostarmos em acreditar que Deus não existe, mas, na
realidade, Este existir, vamos parar ao Inferno. Mas, se apostarmos em acre-
ditar que Deus não existe e Este, de facto, não existir, não perdemos nada.
Segundo o princípio maximin, devemos comparar os piores cenários de
cada opção. Na primeira opção, o pior cenário é acreditarmos em Deus
e Ele não existir; nesse caso, perdemos algumas horas a rezar e a ir à missa
e tivemos algumas restrições em vão. Na segunda opção, o pior cenário
é nós não acreditarmos em Deus, quando na realidade Ele existe, pelo que
vamos parar ao Inferno. Como ir parar ao Inferno é muito pior do que
perder algumas horas a rezar e a ir à missa e ter algumas restrições em vão,
teremos muito mais a perder se apostarmos que Deus não existe e Ele existir
do que se apostarmos que Deus existe e Ele não existir. Logo, é mais razoável
apostar na existência de Deus do que apostar que Ele não existe.

Juízo intuitivo

Avalie o argumento do apostador de acordo com a sua primeira reação.


A — Convincente. C — Duvidoso.
B — Atraente mas não convincente. D — Implausível.

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Objeção 1
Se Deus é infinitamente incompreensível, como podemos saber qual é a
Sua atitude se apostarmos em acreditar que Ele não existe? A ideia fideísta
de que a razão não é capaz de compreender a infinitude divina não é com-
patível com uma descrição pormenorizada de qual seria a atitude de Deus
perante as nossas crenças e escolhas.

Objeção 2
Não podemos simplesmente decidir acreditar em algo. As nossas crenças estão
causalmente relacionadas umas com as outras e com a nossa experiência do
mundo, não se pode simplesmente decidir passar a acreditar em algo ou dei-
xar de acreditar em algo, sem termos motivos para isso, por muito conve-
niente que fosse. Não passo a acreditar que sou o músico mais talentoso do
mundo só porque decidi fazê-lo, quando todas as evidências de que disponho
apontam no sentido contrário. Do mesmo modo, não passo a acreditar que
Deus existe só porque concluí que poderia ser mais conveniente fazê-lo.

Objeção 3
Por fim, resta acrescentar que a aposta de Pascal, por tentadora que possa
parecer, não deixa de soar a uma decisão interesseira. No entanto, é mais
razoável supor que Deus prefere as pessoas que têm uma vida digna,
mesmo que não acreditem na Sua existência, às pessoas que só têm uma
vida digna por medo do Inferno.

Avaliação crítica

Assinale agora a sua avaliação ponderada


do argumento do apostador.
A — Convincente.
B — Atraente mas não convincente.
C — Duvidoso.
Fig. 4 — Juízo Final (pormenor) (1541), de Miguel Ângelo.
Será justo recompensar alguém que só acredita em Deus porque tem medo do Inferno D — Implausível.
e condenar alguém que tem uma vida digna mas não acredita em Deus?

Atividades

1 Por que razão se diz que Pascal defende uma versão mais moderada de fideísmo do que Kierkegaard?

2 Por que razão Pascal considera que é mais razoável apostar que Deus existe do que apostar que Deus não existe?

Debate

«Posso decidir acreditar em algo, mesmo que não tenha boas razões para o fazer, simplesmente por considerar que essa crença é útil. Por
exemplo, numa partida desportiva, posso ter boas razões para acreditar que a equipa adversária vai vencer, porque é mais forte e, ainda assim,
decidir acreditar que isso não vai acontecer, pois isso ajuda-me a ter a motivação necessária para dar o meu máximo na partida.» Concorda? Porquê?

Religião, razão e fé 265

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11.1.2   Teologia natural
Alguns autores acreditam que é possível encontrar uma justificação racional
(com base em dados ou argumentos) para a crença na existência de Deus.
Esse projeto tem sido designado por teologia natural. Analisaremos de
seguida os principais argumentos apresentados neste domínio.

Argumento cosmológico
A primeira versão do argumento cosmológico (ou argumento da causa pri-
meira) foi apresentada por São Tomás de Aquino (1225-1274), na sua obra
Suma Teológica, e baseia-se num argumento semelhante, anteriormente utilizado
por Aristóteles. Na sua obra Diálogos sobre a Religião Natural, David Hume
apresenta uma versão mais simples e bastante fácil de entender deste argumento:

Texto 3

O que existir tem de ter uma causa ou razão da sua existência, uma quanto qualquer objeto particular que comece a existir no tempo.
vez que é absolutamente impossível para qualquer coisa produzir-se É ainda razoável perguntar por que razão esta sucessão particular
a si própria, ou ser a causa da sua própria existência. Remontando, de causas existiu desde sempre, e não qualquer outra sucessão,
portanto, dos efeitos às causas, temos de continuar a percorrer uma ou nenhuma. […] O que foi, então, que determinou que algo existisse,
sucessão infinita, sem qualquer causa final, ou temos finalmente de e não o nada, concedendo ser a uma possibilidade particular, em detri-
recorrer a uma causa última qualquer, que exista necessariamente. mento das outras? Causas externas, estamos a supor que não as há.
Ora, que a primeira suposição é absurda pode demonstrar-se assim: «Acaso» é uma palavra sem significado. Terá sido nada? Mas isso nunca
na cadeia ou sucessão infinita de causas e efeitos, a existência de poderá produzir coisa alguma. Temos, portanto, de recorrer a um
cada efeito é determinada pelo poder e eficácia da causa imediata- Ser necessariamente existente, que tem em si mesmo a razão da sua
mente precedente; mas a totalidade da cadeia ou sucessão eterna, existência; e que não podemos supor não existir sem exprimirmos uma
tomada no seu todo, não é determinada ou causada por coisa contradição. Consequentemente, há um tal Ser — isto é, uma Divindade.
alguma. Todavia, é evidente que exige uma causa ou razão, tanto david Hume, Diálogos sobre a Religião Natural, 1779.

Este argumento pode ser formulado do seguinte modo:

Argumento 1
(1) Tudo o que existe tem uma causa ou razão de ser exterior a si.
(2) Se tudo o que existe tem uma causa ou razão de ser exterior a si,
então ou há uma regressão infinita de causas e efeitos, ou há uma
causa primeira, que existe necessariamente.
(3) Se há uma regressão infinita de causas e efeitos, então não existe algo
de exterior à sucessão infinita das causas e efeitos como um todo que
lhe dê origem.
(4) Logo, há uma causa primeira, que existe necessariamente.
(5) O único ser necessariamente existente que tem em si mesmo a razão
da sua existência é Deus.
Juízo intuitivo (6) Logo, Deus existe.

Avalie o argumento cosmológico de Este argumento parte daquilo que vemos no mundo à nossa volta e constata que
acordo com a sua primeira reação. tudo o que existe é um efeito de uma causa que o antecede. De seguida afirma
A — Convincente. que se quisermos percorrer a totalidade da cadeia causal que compõe o universo,
B — Atraente mas não convincente.
ou regredimos infinitamente, ou teremos forçosamente de parar em algum
ponto. Não podemos regredir infinitamente, porque tem de haver algo que cause
C — Duvidoso. a própria sucessão das causas e dos efeitos. Se não houver uma causa primeira,
D — Implausível. não é possível existir seja o que for, pois sem a causa não há o efeito; logo, há uma
causa primeira que dá origem à totalidade da sucessão de causas e efeitos.

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Objeção 1
A conclusão apresentada no ponto quatro do argumento cosmológico («há
uma causa primeira, que existe necessariamente») e a ideia avançada no
ponto cinco («O único ser necessariamente existente que tem em si mesmo
a razão da sua existência é Deus.») contrariam a primeira premissa do argu-
mento, que afirma que «Tudo o que existe tem uma causa ou razão de ser
exterior a si.»; logo, o argumento é autocontraditório.
Se tudo o que existe tem uma causa ou razão de ser exterior a si, então
Deus não pode ser a sua própria causa, nem conter em si mesmo a razão da
sua existência.

Objeção 2
Que razões temos para aceitar a premissa cinco: «O único ser necessaria- Fig. 5 — A Criação do Mundo (1504),
mente existente que tem em si mesmo a razão da sua existência é Deus.»? de Hieronymus Bosch.
A personagem Démea, do diálogo de Hume, limita-se a considerar que o Será que o mundo tem forçosamente de ter
nada não pode dar origem a coisa alguma e que o acaso é uma palavra sem sido criado? Não poderá existir desde
sempre?
significado, mas isto não é suficientemente exaustivo e certamente não é
esclarecedor. Pode não haver um único ser necessário, mas sim vários seres
necessários. Além disso, esse(s) ser(es) pode(m) não ter os atributos da
omnipotência, omnisciência e da suma bondade, isto é, pode(m) não ser
Deus.

Objeção 3
Avaliação crítica
Que razões temos para acreditar que o universo foi criado e que começou
a existir num determinado momento do passado? Tanto quanto sabemos, Assinale agora a sua avaliação ponderada
o universo pode existir desde sempre. A ideia de um ser necessário que do argumento cosmológico.
justifique a sucessão das causas e dos efeitos a partir do exterior é um pos- A — Convincente.
tulado arbitrário. Por que razão paramos em Deus a nossa busca de justifi- B — Atraente mas não convincente.
cação? Afinal de contas, poderíamos continuar a procurar determinar o que
causou Deus, ou ter parado em qualquer outro momento, dentro do pró- C — Duvidoso.
prio universo físico, por exemplo, e não numa divindade imaterial que está D — Implausível.
para além dele.

Atividades

1 Em que consiste a teologia natural?

2 Descreva argumento cosmológico.

3 Por que razão se diz que o argumento cosmológico é autocontraditório?

4 O argumento cosmológico é suficiente para mostrar que a causa primeira é Deus? Porquê?

Debate

1 «Se não houver uma causa primeira, não é possível existir seja o que for.» Concorda? Porquê?

2 «Se tudo o que existe tem uma causa ou razão de ser exterior a si, então Deus não pode ser a sua própria causa, nem conter em si mesmo
a razão da sua existência.» Concorda? Porquê?

Religião, razão e fé 267

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Argumento do desígnio
O argumento do desígnio é um dos mais influentes argumentos alguma vez
apresentados a favor da existência de Deus. A palavra «desígnio» significa
«finalidade, intenção, propósito», e este argumento considera que a exis-
tência de um desígnio inteligente é a melhor explicação para a ordem que
vemos no universo e para a adequação de certas partes da natureza para as
suas funções ou fins. De seguida, iremos analisar a formulação clássica
deste argumento apresentada por William Paley (1743-1805), na sua obra
Teologia Natural:

Texto 4

Ao atravessar um campo, suponhamos que tropeço numa pedra e Ao observar este mecanismo […], pensamos que a inferência é
me perguntam como foi ela ali parar. Poderia talvez responder que, inevitável: o relógio teve de ter um criador; teve de existir, num ou
tanto quanto me é dado saber, a pedra sempre esteve naquele local. noutro momento, e num ou noutro lugar, um ou mais artífices
Não seria muito fácil, talvez, mostrar o absurdo desta resposta. Mas que o construíram com o propósito que vemos que lhe é apro-
suponha-se que eu tinha encontrado um relógio no chão e que me priado; […]
instavam a responder à questão de saber como apareceu o relógio
Todos os indícios de invenção, toda a manifestação de desígnio, que
naquele lugar. Neste caso, dificilmente consideraria a hipótese de dar
existiam no relógio existem nas obras da natureza — com a dife-
a resposta anterior — que, tanto quanto me era dado a saber, o reló-
rença de, no caso da natureza, serem mais e maiores, num grau que
gio sempre ali estivera. No entanto, porque não pode esta resposta
ultrapassa todo o cálculo. Quero eu dizer que o engenho da natu-
ser apropriada ao relógio, tal como o é no caso da pedra? […] Por
reza ultrapassa o engenho da arte em complexidade, subtileza e
esta e só esta razão: quando inspecionamos o relógio, vemos que as
estranheza do mecanismo; e ultrapassa-o ainda mais, se isso é possí-
suas diversas partes estão organizadas e associadas com um propó-
vel, em termos de número e diversidade; contudo, em muitíssimos
sito (o que não poderia acontecer no caso da pedra); por exemplo,
casos, não é menos evidentemente mecânico, menos engenhoso,
vemos que as suas diversas partes estão configuradas e ajustadas de
menos apropriado ao seu fim ou apropriado à sua tarefa do que as
modo a produzir movimento e que esse movimento está de tal
mais perfeitas produções do engenho humano.
forma regulado que assinala as horas do dia; e vemos que se as suas
diversas partes estivessem configuradas de forma diferente, tivessem William Paley, «Teologia Natural», in Textos e Problemas de
outro tamanho ou estivessem colocadas de forma diferente ou Filosofia, de Almeida, Aires e Murcho, Desidério (org.)
Lisboa: Plátano Editora, 2006 [ed. original 1809].
segundo outra ordem qualquer, então a máquina não originaria
qualquer movimento […]

Em primeiro lugar, é importante notar que se trata de um argumento por


analogia. Num argumento por analogia pretende-se concluir que algo é de
certo modo porque é análogo (possui a mesma lógica) a outra coisa que é
desse modo. A estrutura básica de um argumento por analogia é a seguinte:

(1) x tem as propriedades a, b, c, d, … n, e tem a propriedade o.


(2) Tal como x, y tem as propriedades a, b, c, d, … n.
(3) Logo, tal como x, também y tem a propriedade o.

Para ser eficaz, um argumento por analogia tem de se basear num número
significativo de semelhanças relevantes entre as duas realidades que se
estão a comparar e não podem existir diferenças relevantes entre elas.
A título ilustrativo, considerem-se os seguintes exemplos:

Argumento 2
(1) A Beatriz gosta de debates, de lógica, de pensar sobre questões éticas
e metafísicas e, além disso, gosta de filosofia.
(2) Tal como a Beatriz, a Helena gosta de debates, de lógica e de pensar
sobre questões éticas e metafísicas.
(3) Logo, tal como a Beatriz, a Helena gosta de filosofia.

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Argumento 3
(1) A Beatriz tem cabelo castanho, é alta, tem olhos azuis e, além disso,
gosta de filosofia.
(2) Tal como a Beatriz, a Helena tem cabelo castanho, é alta e tem olhos
azuis.
(3) Logo, tal como a Beatriz, a Helena gosta de filosofia.

Não precisamos de pensar muito no assunto para perceber que as premis-


sas do argumento 2 tornam a sua conclusão bastante provável, ao contrário
do que acontece no argumento 3.
Agora que já compreendemos o funcionamento dos argumentos por analo-
gia, podemos aplicar esses conhecimentos na análise do argumento do
desígnio. Este argumento pode ser formulado do seguinte modo:

Argumento 4 (parte 1) Fig. 6 — O Ancião dos Dias (1794),


de William Blake.
(1) Os relógios possuem uma estrutura complexa e as suas partes
Segundo o argumento do desígnio, Deus
apresentam um ajuste perfeito; por isso, têm de ter um criador é uma espécie de arquiteto divino, que
inteligente. projetou e criou o mundo.
(2) Tal como os relógios, também os seres vivos e a natureza possuem
uma estrutura complexa e as suas partes apresentam um ajuste
perfeito.
(3) Logo, tal como os relógios, também os seres vivos e a natureza têm
de ter um criador inteligente.

Argumento 4 (parte 2)
(1) A complexidade e o perfeito ajuste das suas partes é infinitamente
superior na natureza e nos seres vivos do que num relógio.
(2) Se a complexidade e o perfeito ajuste das suas partes é infinitamente
superior na natureza e nos seres vivos do que num relógio, então o
seu criador é um supremo artífice, infinitamente superior a qualquer Juízo intuitivo
artífice humano.
Avalie o argumento do desígnio
(3) Se o criador da natureza é um supremo artífice, infinitamente de acordo com a sua primeira reação.
superior a qualquer artífice humano, então é Deus. A — Convincente.
(4) Logo, Deus existe e é o supremo criador de toda a natureza. B — Atraente mas não convincente.

Será que se trata de uma boa analogia? Será que as premissas tornam a C — Duvidoso.
conclusão provavelmente verdadeira? Vejamos, em seguida, as objeções D — Implausível.
que o argumento enfrenta.

Objeção 1
A analogia na qual se baseia o argumento é muito fraca. As semelhanças
entre os artefactos e a natureza não são suficientemente relevantes para
que a analogia possa ser eficaz.
Temos conhecimento do tipo de coisas que geralmente dá origem a artefac-
tos como os relógios; por isso, se virmos um artefacto semelhante a um
relógio, é de supor que tenha tido uma causa idêntica. Mas não temos
experiência alguma do tipo de coisas que geralmente causa universos físi-
cos completos; por isso, neste caso, não estamos habilitados a fazer o
mesmo tipo de inferência.

Religião, razão e fé 269

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Objeção 2
O argumento não serve para mostrar que o criador é Deus. Tanto quanto
nos é permitido saber, o trabalho de conceção e criação do universo pode
muito bem ser o resultado de uma equipa de designers supremos e não a
tarefa de um único Deus, omnipotente, omnisciente e sumamente bom.
A maioria dos projetos complexos — um avião, por exemplo — tem habi-
tualmente mais do que um criador. Além disso, podemos constatar que o
universo tem algumas falhas, pelo que o seu criador estará longe de ser
perfeito.

Objeção 3
Por fim, a teoria evolucionista proposta por Charles Darwin (1809-1882)
oferece uma explicação alternativa para o aparente desígnio da natureza,
pelo menos tão aceitável quanto a existência de um artífice supremo.
Segundo esta teoria, existem diferenças, ou variações, aleatórias entre os
membros de uma espécie. Algumas dessas diferenças interagem com o
meio envolvente de modo a aumentar ou diminuir as hipóteses de sobrevi-
vência (e, consequentemente, de reprodução) dos seus portadores. As
Fig. 7 — A Venerable Orang-outang, características que favorecem a adaptação são hereditariamente transmiti-
caricatura de Charles Darwin com corpo das à geração seguinte, e assim sucessivamente. Este processo dá origem à
de macaco, publicada na revista satírica
The Hornet.
atual variedade e complexidade de organismos vivos, bem como ao ajuste
perfeito das suas partes para as funções que desempenham. Imaginemos
Caricaturas como esta resultam
frequentemente de uma distorção um nervo ligeiramente sensível à luz que oferece uma pequena vantagem
das perspetivas de Darwin. adaptativa a um determinado organismo. Se repetirmos o processo por
milhares de gerações, poderemos vir a obter um nervo ótico; e assim suces-
sivamente, até acabarmos por ter um olho inteiramente funcional. Nas
palavras de Darwin:

Avaliação crítica Texto 5

Assinale agora a sua avaliação ponderada Nos corpos vivos, a variação irá causar as ligeiras alterações, a geração multiplicá-las-á
do argumento do desígnio. quase infinitamente, e a seleção natural escolherá cada melhoria com uma perícia infalí-
vel. Deixemos este processo decorrer ao longo de milhões e milhões de anos, e durante
A — Convincente. cada ano em milhões de indivíduos de muitos tipos. Não poderemos acreditar então que
B — Atraente mas não convincente. um instrumento ótico vivo se pode formar assim […] do mesmo modo que as obras do
Criador […]?
C — Duvidoso.
CHarleS darWin, «A Origem das Espécies», in RaCHelS, James, Problemas da Filosofia.
D — Implausível. Lisboa: Gradiva, 2009 [ed. original 1859], p. 43 (adaptado).

Atividades

1 O que é um argumento por analogia?

2 O que é necessário para que um argumento por analogia seja eficaz?

3 Avalie o argumento do desígnio.

Debate

«A teoria evolucionista limita-se a adiar o problema levantado pelo desígnio da natureza, não chega a resolvê-lo.» Concorda? Porquê?

270 Unidade 11

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Argumento ontológico
O argumento ontológico é um argumento por redução ao absurdo (na uni-
dade 9 já vimos como funciona este tipo de argumentos). O argumento
tenta mostrar que a própria definição de Deus, enquanto ser perfeito (ou
ser maior do que o qual nada pode ser pensado), implica a sua existência,
pelo que seria absurdo ou contraditório supor um ser perfeito que não
existe (dado que não existir seria considerado uma falha ou imperfeição).
O argumento ontológico foi concebido por Anselmo de Cantuária (também
conhecido por Santo Anselmo) e pode ser formulado do seguinte modo:

Argumento 5
(1) Ou Deus existe apenas no pensamento ou, além de existir no
pensamento, existe na realidade.
(2) Deus existe apenas no pensamento.
(3) Se Deus existe apenas no pensamento, então podemos conceber um
ser maior do que Deus que, além de existir no pensamento, também
existe na realidade.
(4) Podemos conceber um ser maior do que Deus que, além de existir no
pensamento, também existe na realidade.
(5) Mas Deus é, por definição, o ser maior do que o qual nada pode ser Juízo intuitivo
pensado; portanto, não podemos conceber um ser maior do que Ele.
Avalie o argumento ontológico de acordo
(6) É falso que Deus existe apenas no pensamento. com a sua primeira reação.
(7) Logo, além de existir no pensamento, Deus existe na realidade. A — Convincente.
B — Atraente mas não convincente.
O argumento ontológico foi considerado por muitos uma proeza lógica e
C — Duvidoso.
uma prova sedutora da existência de Deus. Contudo, a sua aceitação está
longe de ser pacífica, tendo vários filósofos se dedicado a explorar as suas D — Implausível.
insuficiências. De seguida iremos analisar algumas delas.

Objeção 1
A primeira premissa não contempla a possibilidade de Deus não existir no
entendimento. A posição fideísta sustenta precisamente que não podemos
ter um entendimento da infinitude de Deus, fazendo Dele apenas uma
representação obscura e difusa. Se Deus não existe sequer no pensamento,
parece que todo o argumento cai por terra.

Objeção 2
O argumento trata a existência como um predicado real, que, tal como
todos outros, pode ser usado para definir um conceito, mas não podemos
tratar a existência desse modo. Podemos definir um conceito dizendo que
os elementos a que se aplica têm um determinado conjunto de
características, mas não faz sentido dizer que a existência está entre elas.
Em última análise, podemos acabar por concluir que não existe nada que
tenha as características requeridas, pelo que o conceito não se aplica a coisa
alguma — é o que acontece com os conceitos de «fada» e «Pai Natal», por
exemplo. A definição estabelece as condições de aplicação do conceito, mas
a existência, ou inexistência, depende do facto de essas condições serem,
ou não, satisfeitas, por algo ou alguém.

Religião, razão e fé 271

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Simon Blackburn (n. 1944), um dos mais importantes filósofos da atuali-
dade, expressa esta ideia dizendo que podemos imaginar como seria o(a)
nosso(a) companheiro(a) ideal e colocar um anúncio no jornal:

PESSOA ATENCIOSA PROCURA


alguém alegre, vegetariano, fã de futebol, que toque
banjo e não fume.

Mas, apesar de podermos decidir o que queremos incluir na descrição, é o


mundo que decide se há, ou não, alguém que cumpra todos esses requisi-
tos. Pode simplesmente não haver ninguém que seja alegre, vegetariano(a),
que toque banjo, seja fã de futebol e não fume. Será que o problema ficaria
resolvido se acrescentássemos à descrição «e que exista»? A nova descrição
ficaria com o seguinte aspeto:

PESSOA ATENCIOSA PROCURA


alguém alegre, vegetariano, fã de futebol, que toque
banjo, que não fume e que exista.

É óbvio que ninguém nos vai telefonar a dizer que preenche todas as con-
dições menos a última, mas também é óbvio que qualquer pessoa que
respondesse ao segundo anúncio poderia também ter respondido ao pri-
meiro. Ninguém nos iria telefonar a dizer que é alegre, vegetariano, fã de
futebol, toca banjo e não fuma, mas não existe. O facto de acrescentar «e
que exista» à nossa descrição não altera em nada as hipóteses de alguém
responder ao nosso anúncio. Acrescentar esta última condição foi um des-
perdício de dinheiro.
Com efeito, se reconstruirmos o argumento ontológico para mostrar que
o(a) companheiro(a) ideal — o(a) companheiro(a) melhor do que o(a) qual
nada pode ser pensado — existe, obtemos o seguinte argumento:

Argumento 6
(1) Ou o(a) companheiro(a) perfeito(a) existe apenas no pensamento, ou,
além de existir no pensamento, existe na realidade.
(2) O(A) companheiro(a) perfeito(a) existe apenas no pensamento.
(3) Se existe apenas no pensamento, então podemos conceber um
companheiro(a) mais perfeito(a), que, além de existir no pensamento,
também existe na realidade.
(4) Podemos conceber um companheiro(a) mais perfeito(a), que, além de
existir no pensamento, também existe na realidade.
(5) Mas o(a) companheiro(a) perfeito(a) é, por definição, o(a)
companheiro(a) perfeito(a) melhor que o(a) qual nada pode ser pen-
sado, portanto, não podemos conceber um(a) companheiro(a) melhor
do que o(a) companheiro(a) perfeito(a).
(6) É falso que o(a) companheiro(a) perfeito(a) existe apenas no pensa-
mento.
(7) Logo, além de existir no pensamento, o(a) companheiro(a) perfeito(a)
existe na realidade.

272 Unidade 11

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Segundo o argumento ontológico, Deus é o único ser cuja essência implica
a existência, mas o argumento pode ser adaptado para mostrar que todo o
tipo de coisas perfeitas existem: a casa perfeita, o professor perfeito, o aluno
perfeito, etc. Contudo, todos esses argumentos cairiam no mesmo erro:
tratar a existência como um predicado real igual a todos os outros.
Já no tempo de Santo Anselmo um monge chamado Gaunilo chamou a
atenção para este facto, mostrando que se o argumento ontológico pudesse
estabelecer com segurança a existência de Deus, enquanto ser perfeito,
também estaríamos autorizados a concluir que uma ilha perfeita existe, o
que seria absurdo; logo, o argumento ontológico não pode provar a exis-
tência de Deus.

Objeção 3
Outra forma de encarar os problemas do argumento ontológico é conside-
rar que este se baseia numa comparação ilegítima entre pensamento e rea-
Fig. 8 — Ceci n’est pas une pomme (1964),
lidade. Pense numa maçã com 5 quilos e compare-a com uma maçã real de René Magritte.
com meio quilo. Qual delas é mais pesada? Bem, por um lado, diríamos
Também esta obra irónica de Magritte joga
que a maçã imaginada tem mais 4,5 quilos do que a maçã real, mas, por com a diferença entre maçãs reais e
outro lado, maçãs imaginadas não têm peso; por isso, por muito leve que imaginárias.
uma maçã real possa ser, será sempre mais pesada do que uma maçã ima-
ginada.
O argumento ontológico comete um erro semelhante ao comparar a exten-
são de um ser que existe apenas no pensamento com a extensão de um ser
que, além de existir no pensamento, também existe na realidade. É como
se pudéssemos medir a área ocupada por um ser que existe apenas no pen-
samento e acrescentar-lhe a área do universo físico, mas um ser imaginado
não tem área no mesmo sentido que, digamos, um estádio de futebol, por
isso a comparação não faz sentido.

Juízo intuitivo

Assinale agora a sua avaliação ponderada do argumento ontológico.


A — Convincente. C — Duvidoso.
B — Atraente mas não convincente. D — Implausível.

Atividades

1 Segundo o argumento ontológico, por que razão Deus existe por definição?

2 Por que razão se diz que a existência não pode ser tratada como um predicado real?

3 Em que medida se pode afirmar que, se o argumento ontológico demonstrasse a existência de Deus, então a ilha perfeita existiria?

4 Por que razão se diz que o argumento ontológico se baseia numa comparação ilegítima?

Debate

«Deus é o único ser cuja essência implica a existência.» Concorda com esta afirmação? Porquê?

Religião, razão e fé 273

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Argumento baseado na ocorrência de milagres
Os milagres são intervenções divinas que consistem na violação de uma lei
da natureza — caminhar sobre a água, levitar, transformar pão em rosas,
fazer uma aparição, etc. Se os milagres são intervenções divinas, para pro-
varmos a existência de Deus, basta provar a existência de um milagre, ou
seja, podemos construir argumentos a favor da existência de Deus com a
seguinte configuração (x é um acontecimento como caminhar sobre a água,
levitar, transformar pão em rosas, fazer uma aparição, etc.):
Juízo intuitivo
Argumento 7
Avalie o argumento baseado na (1) x é um milagre.
ocorrência de milagres de acordo
com a sua primeira reação. (2) Se x é um milagre, Deus existe.
A — Convincente. (3) Logo, Deus existe.
B — Atraente mas não convincente.
Dada a nossa definição de milagre, a segunda premissa parece incontestável,
C — Duvidoso.
pelo que, se houver algum problema com este tipo de argumento, ele terá
D — Implausível. de estar na primeira premissa. Em que condições estamos autorizados a
afirmar com segurança algo como «x é um milagre.»?

Objeções
Segundo David Hume, a probabilidade de qualquer instância da primeira
premissa ser verdadeira é bastante reduzida, pois existem várias explicações
possíveis para um acontecimento aparentemente milagroso (x), todas elas
mais prováveis do que a hipótese de x ser, de facto, um milagre.
Por exemplo:
a) pode haver uma causa natural desconhecida;
b) a pessoa que afirma ter presenciado o milagre pode estar enganada;
os sentidos iludem-nos frequentemente e, além disso, certos estados
psicológicos alterados podem sempre toldar as nossas perceções
dos acontecimentos;
c) a pessoa que afirma ter presenciado o milagre pode estar a tentar
enganar-nos por qualquer motivo — para gozar connosco, para ganhar
fama ou adquirir privilégios, etc.
Comparem-se as seguintes afirmações:
1. Existe uma causa natural desconhecida para x, OU a pessoa que afirma
ter presenciado x está enganada, OU a pessoa que afirma ter presenciado
x está a tentar enganar-nos.
2. x é um milagre.
A afirmação 1 traduz a junção de todas as possibilidades alternativas à
ocorrência de um milagre genuíno. Ora, se isoladamente elas já eram mais
prováveis do que tal ocorrência, tomadas em conjunto tornam essa possi-
bilidade ainda mais remota, visto que as circunstâncias que tornariam a
Fig. 9 — A Ressurreição de Cristo (c. 1612),
afirmação 1 verdadeira são muito mais numerosas do que as circunstâncias
de Peter Paul Rubens. que tornariam verdadeira a afirmação 2. Logo, quando estamos perante o
Os milagres são intervenções divinas que testemunho de um milagre, é mais razoável supor que uma das alternativas
consistem na violação de uma lei da natureza, propostas em 1 é verdadeira do que supor a existência de um aconteci-
como ressuscitar os mortos, por exemplo. mento milagroso.

274 Unidade 11

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Repare-se que Hume nunca diz que a ocorrência de milagres é impossível,
ele apenas afirma que a veracidade dos testemunhos desse tipo de ocorrên-
cias é pouco provável. Hume expressa esta ideia com um toque de ironia
na passagem que se segue:

Texto 6

A consequência direta disto tudo […] é «que nenhum testemunho é suficiente para esta-
belecer um milagre, a não ser que o testemunho seja de um tal cariz que a sua falsidade
fosse ainda mais milagrosa do que o facto que pretende estabelecer […]». Quando
alguém me diz que viu um morto ser trazido de volta à vida, imediatamente pondero
comigo mesmo se é mais provável que essa pessoa me esteja a enganar ou que se esteja
a enganar a ela própria, ou que o facto que ela relata tenha realmente acontecido. Peso
um milagre contra o outro e, conforme a superioridade que descubro, tomo a minha
decisão, rejeitando sempre o maior milagre.
David Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano.
Lisboa: INCM, 2002 [ed. original 1748], p. 127.

Além dos problemas associados à primeira premissa do argumento baseado


na ocorrência de milagres, existem relatos de milagres provenientes das
várias religiões, pelo que cada religião estaria justificada a acreditar na exis-
tência do seu Deus. Isso conduziria a conclusões inconsistentes, porque
existem várias divindades incompatíveis entre si (o Deus teísta, por exemplo,
é incompatível com a existência de outras divindades). Por esse motivo, os
testemunhos da ocorrência de milagres não podem ser uma condição
suficiente para demonstrar que uma determinada divindade existe.
Além dos argumentos a favor da existência de Deus anteriormente analisa-
dos, existem também argumentos a favor da ideia de que Deus não existe.
A objeção clássica à existência de Deus é o chamado «problema do mal»,
que analisaremos de seguida.

Juízo intuitivo

Assinale agora a sua avaliação ponderada do argumento baseado na ocorrência


de milagres.
A — Convincente. C — Duvidoso.
B — Atraente mas não convincente. D — Implausível.

Atividades

1 O que é um milagre? Dê exemplos.

2 Em que medida a ocorrência de milagres constitui uma prova da existência de Deus?

3 Por que razão Hume desconfia da veracidade dos testemunhos da ocorrência de milagres?

Debate

«Os relatos de milagres conduzem a conclusões inconsistentes; logo, não podem ser uma condição suficiente para provar a existência de
uma determinada divindade.» Concorda? Porquê?

Religião, razão e fé 275

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O problema do mal
Embora o problema do mal não faça parte da teologia natural, visto que é
um argumento contra a existência de Deus e não a favor da sua existência,
as respostas a este problema fazem parte desse projeto, daí que este tema
seja discutido neste ponto.
Resumidamente, o problema do mal consiste em saber como conciliar a
existência de um Deus criador, omnipotente, omnisciente e sumamente
bom com a existência de mal no mundo. Olhando à nossa volta — basta
ligar o telejornal —, vemos inocentes a sofrer injustificadamente a todo o
momento. Como pode Deus ter criado um universo assim? Sendo todo-
-poderoso e sumamente bom, não poderia ter criado um universo sem este
tipo de falhas? Não poderá em qualquer momento emendar essas falhas?
A formulação clássica deste argumento é atribuída a Epicuro (341 a. C.-
-271 a. C.), que faz notar que há uma inconsistência lógica entre os atributos
de Deus e a existência de mal no mundo. Eis o argumento na forma canónica:

Argumento 8
(1) Se Deus existe, é omnipotente, omnisciente e sumamente bom.

Juízo intuitivo (2) Se Deus é omnipotente, pode acabar com o mal no mundo.
(3) Se Deus é omnisciente, sabe que existe mal no mundo.
Avalie a objeção do problema do mal
de acordo com a sua primeira reação. (4) Se Deus é sumamente bom, então quer acabar com o mal no mundo.
A — Convincente. (5) Se existe mal no mundo, então ou Deus não pode acabar com o mal
B — Atraente mas não convincente. no mundo, ou Deus não sabe que existe mal no mundo, ou Deus não
quer acabar com o mal no mundo.
C — Duvidosa.
D — Implausível.
(6) Existe mal no mundo.
(7) Logo, Deus não existe.

Resposta fideísta
Se aceitarmos, tal como sustentam os fideístas, que Deus é infinitamente
incompreensível, então não podemos supor que dizer «Deus é bom.» é o
mesmo que dizer que alguém é bom. A bondade de uma entidade divina
que tem um acesso privilegiado aos acontecimentos, desde a eternidade,
pode muito bem nunca chegar a ser inteiramente compreendida por meros
intelectos mortais.

Resposta do livre-arbítrio
Alguns filósofos consideram que um Deus cuja bon-
dade é compatível com o que nos parecem ser as
mais profundas atrocidades e injustiças não nos serve
de muito. De entre estes autores destaca-se a figura
de Agostinho de Hipona (ou Santo Agostinho), que
se dedicou a procurar uma explicação alternativa
para o mal do mundo que pudesse simultaneamente
ser articulada com a ideia de um Deus benevolente,
aos nossos olhos. A explicação que encontrou baseia-
Fig. 10 — Queda e Expulsão de Adão e Eva (c. 1515), de Miguel Ângelo. -se no seguinte: por bondade, Deus criou os seres
Santo Agostinho acreditava que o mal era, em parte, responsabilidade das humanos com livre-arbítrio. Esta estratégia é tão
escolhas de Adão e Eva, que, por terem atraiçoado a vontade de Deus, famosa quanto o próprio problema do mal e ficou
foram expulsos do Paraíso. conhecida como a «resposta do livre-arbítrio».

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Segundo Santo Agostinho, é melhor viver num mundo onde temos livre-
-arbítrio, mesmo que isso abra caminho para escolhas erradas e para o
sofrimento, do que viver num mundo onde somos meros fantoches nas
mãos do Criador. Visto que mais vale um mundo onde as pessoas tenham
livre-arbítrio, Deus tolera a existência do mal. A suprema dádiva do livre-
-arbítrio compensa largamente o mal menor da possibilidade de errar.
Assim, embora Deus seja suficientemente poderoso para criar um mundo
sem mal e, para evitar todo o mal existente, a sua bondade faz com que nos
conceda liberdade de escolha, o mal que existe no mundo não resulta dire-
tamente da sua Criação, mas sim das nossas escolhas livres.
Santo Agostinho também acreditava que o mal era, em parte, responsabili-
dade das escolhas de Adão e Eva. Deus criou o mundo para ser um Paraíso
perfeito, sem qualquer vestígio de sofrimento absurdo, mas quando Adão e
Eva provaram a maçã da Árvore do Conhecimento, traíram os desígnios
divinos e trouxeram o pecado ao mundo. Santo Agostinho acreditava, ainda,
que a marca do pecado cometido por Adão e Eva — o Pecado Original —
passava de geração em geração através do ato da reprodução sexual.

Resposta do aperfeiçoamento moral


A resposta do livre-arbítrio permite explicar por que razão existe o
mal moral (mal decorrente das nossas escolhas); no entanto, além do mal
moral, existe também o mal natural (mal decorrente das tragédias e catás-
trofes naturais, das doenças e das epidemias). Ainda que Deus tenha de
permitir que os seres humanos façam escolhas erradas para que possam
gozar do livre-arbítrio, podia facilmente minimizar este tipo de flagelos.
Em resposta a esta ideia, os teístas afirmam que esse tipo de tragédias serve
para nos unir e para que possamos aperfeiçoar-nos de um ponto de vista
moral. Portanto, Deus permite o mal porque, se não houvesse mal, as pes-
Avaliação crítica
soas não se poderiam aperfeiçoar moralmente, ou seja, um maior bem jus-
tifica o mal. Assinale agora a sua avaliação ponderada
Ao longo desta unidade analisámos cuidadosa e imparcialmente argumen- da objeção do problema do mal.
tos a favor e contra a existência de Deus. É possível que tenha mudado a A — Convincente.
sua maneira de pensar sobre o assunto, mas também é possível que a sua B — Atraente mas não convincente.
opinião se tenha mantido inalterada. O importante é que, independente-
C — Duvidosa.
mente de acreditar, ou não, que Deus existe, o faça pelas melhores razões.
Esperamos ter contribuído para uma tomada de posição informada e crítica D — Implausível.
sobre este problema.

Atividades

1 Em que consiste o problema do mal?

2 Qual é a resposta fideísta para o problema do mal?

3 Em que consiste a resposta do livre-arbítrio para o problema do mal?

4 Como explicam os teístas a existência do mal natural?

Debate

«Mesmo num mundo com livre-arbítrio, Deus poderia diminuir consideravelmente a quantidade de mal no mundo.» Concorda? Porquê?

Religião, razão e fé 277

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Ideias-chave

Religião, razão e fé
• O teísmo é uma conceção de Deus, comum a várias religiões, • Segundo o argumento cosmológico, tudo o que existe tem
segundo a qual Deus é um ser único, pessoal, omnisciente, uma causa exterior a si, exceto Deus, que existe necessaria-
omnipotente, que é sumamente bom e que criou o mundo. mente e é a causa primeira de tudo o que existe.
• Os teístas acreditam que Deus existe, os ateus acreditam que • Objeções ao argumento cosmológico: se tudo o que existe
Deus não existe e os agnósticos suspendem a crença em tem uma causa exterior a si, então Deus também não pode
relação à existência de Deus. ser a sua própria causa; pode não haver um único mas vários
• O fideísmo é uma perspetiva segundo a qual não é possível seres necessários e esse(s) ser(es) pode(m) não ter os atribu-
justificar a crença em Deus através de dados ou argumentos tos de Deus; a ideia de um ser necessário que justifique a
de caráter racional, apenas através da fé. sucessão das causas e efeitos a partir do exterior é um postu-
lado arbitrário.
• Nicolau de Cusa usa paradoxos matemáticos que envolvem
o infinito para mostrar que a razão humana não é capaz de • Segundo o argumento do desígnio, tal como os relógios, os
compreender o infinito — Deus. seres vivos possuem uma estrutura complexa, e as suas par-
tes apresentam um ajuste perfeito; por isso, também têm de
• Objeções à perspetiva de Cusa: é possível ter uma noção de ter um criador inteligente.
infinito; ter dificuldades em conceber uma coisa não implica
que não possamos mostrar que ela existe; se a nossa razão é • Objeções ao argumento do desígnio: as semelhanças entre
tão limitada que não é capaz de conceber o infinito (Deus), os artefactos e a natureza não são suficientemente relevan-
então, quando afirmamos que acreditamos na existência de tes para a analogia ser eficaz; a conceção e a criação do uni-
Deus, não sabemos do que estamos a falar. verso podem ser obra de várias entidades; o mundo tem
algumas falhas, pelo que não pode ser obra de um ser per-
• Søren Kierkegaard acreditava que justificar a nossa crença feito; a teoria evolucionista de Darwin oferece uma explica-
em Deus é uma má opção, pois ao fazê-lo estamos a retirar o ção alternativa para o aparente desígnio da natureza.
que há de essencial à própria fé: o seu caráter incerto.
• O argumento ontológico baseia-se na ideia de que Deus é
• Objeções à perspetiva de Kierkegaard: se a fé é suficiente um ser perfeito (maior do que o qual nada pode ser pensado)
para justificar as verdades religiosas, então cada religião está para concluir que Deus é um ser que existe por definição.
justificada a acreditar na existência das suas divindades; não
explica por que motivo é melhor crer na ausência de razões; • Objeções ao argumento ontológico: Deus pode nem sequer
pode até ser irresponsável acreditar em algo quando não se existir no entendimento; a existência não é um predicado
tem boas razões para o fazer; Deus pode ter-nos concedido real que possa ser usado para definir um conceito; a compa-
a razão precisamente para que fôssemos, entre outras coisas, ração entre pensamento e realidade é ilegítima.
capazes de reconhecer a necessidade da Sua existência; se • O argumento baseado na ocorrência de milagres afirma que,
Deus é infinitamente incompreensível, nem sequer pode- dado que os milagres são intervenções divinas, a sua ocor-
mos saber que tipo de crença seria mais valorizado por Ele. rência prova a existência de Deus.
• Blaise Pascal conclui que temos boas razões para apostar em • Objeções ao argumento baseado na ocorrência de milagres:
acreditar que Deus existe, porque ir parar ao Inferno é muito existem várias explicações mais prováveis para um aconteci-
pior do que ter algumas restrições em vão. mento aparentemente milagroso; existem relatos de mila-
• Objeções à perspetiva de Pascal: se Deus é infinitamente gres de várias religiões, pelo que cada religião estaria justifi-
incompreensível, não sabemos qual é a Sua atitude se apos- cada a acreditar na existência do seu Deus.
tarmos em acreditar que Ele não existe; é mais razoável supor • O problema do mal consiste em saber como conciliar a exis-
que Deus prefira as pessoas que têm uma vida digna, mesmo tência de um Deus com a existência de mal no mundo.
que não acreditem na Sua existência, às pessoas que só o • Respostas ao problema do mal: dizer que Deus é bom não é
fazem por medo do Inferno. o mesmo que dizer que alguém é bom; o mal é uma conse-
• A teologia natural sustenta que é possível encontrar uma quência do livre-arbítrio; o mal natural promove o nosso
justificação racional para a crença na existência de Deus. aperfeiçoamento moral.

Para aprofundar conhecimentos

Leituras:
BlackBurn, Simon — «Deus», in Pense. Lisboa: Gradiva, 2001 [ed. original 1999].
rachels, James — «Deus e a Origem do Universo» e «O Problema do Mal», in Problemas da Filosofia. Lisboa: Gradiva, 2009
[ed. original 2005].
swinBurne, richard — Será Que Deus existe? Lisboa: Gradiva, 1998 [ed. original 1996].
warBurton, Nigel — «Deus», in Elementos Básicos de Filosofia. Lisboa: Gradiva, 2.ª ed., 2007 [ed. original 1995].

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Esquema-síntese

Religião, razão e fé
Porque não temos melhores
razões para acreditar que Deus
Agnosticismo Não
existe do que temos para
acreditar que não existe.

Ateísmo Não Porque Deus não existe.

O problema do mal.

Será que temos boas


razões para acreditar
na existência
de Deus?

Porque, embora Deus


Fideísmo Não exista, é infinitamente
incompreensível.

Porque podemos justificar com


Teologia natural Sim base em argumentos a crença
de que Deus existe.

• Argumento cosmológico
• Argumento do desígnio
• Argumento ontológico
• Argumento baseado na
ocorrência de milagres

Filmes:
O Nome da Rosa (1986), realizado por Jean-Jacques Annaud.
Ágora (2009), realizado por Alejandro Amenábar.

Páginas da Internet:
http://criticanarede.com/deus.html (artigo «A Ideia de Deus», de William L. Rowe)
http://www.filedu.com/anunesseraquedeusexiste.html (artigo «Será Que Deus Existe», de Álvaro Nunes)

Religião, razão e fé 279

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TESTE FORmATIvO 11

CLASSIFIQUE AS AFIRmAÇÕES SEGUINTES COmO vERDADEIRAS OU FALSAS.

  1.  A filosofia da religião é a área da filosofia que se dedica a investigar e analisar racionalmente
os fundamentos das crenças religiosas.

  2.  Segundo o teísmo, Deus não é um ser pessoal, é um ser omnisciente (que tudo sabe),
omnipotente (que tudo pode), que é sumamente bom (ou moralmente perfeito).

  3.  Os teístas não acreditam que Deus existe.

  4.  Os agnósticos não acreditam que Deus existe.

  5.  Os ateus não acreditam que Deus existe.

  6.  O fideísmo caracteriza-se por sustentar que a razão conduz à fé, e vice-versa.

  7.  O fideísmo caracteriza-se por sustentar que a crença em Deus não pode ser provada através
de argumentos racionais.

  8.  Nicolau de Cusa usa paradoxos matemáticos que envolvem o infinito para mostrar que
a razão humana não é capaz de compreender Deus.

  9.  Nicolau de Cusa usa paradoxos matemáticos para demonstrar que Deus é infinito.

 10.  Os paradoxos de Nicolau de Cusa mostram que no infinito se dá a coincidência dos opostos.

 11.  Uma das objeções que a perspetiva de Nicolau de Cusa enfrenta é o facto de os seus
paradoxos não terem aplicação no domínio do finito.

 12.  A perspetiva de Nicolau de Cusa não demostra que é impossível conceber Deus, porque
é possível termos algum conhecimento do infinito, como acontece, por exemplo, com o
conjunto dos números inteiros maiores do que um.

 13.  Uma das críticas à perspetiva de Nicolau de Cusa baseia-se na ideia de que ter dificuldades
em conceber uma coisa implica que não podemos mostrar que ela existe.

 14.  Para Kierkegaard, é mais importante saber do que crer.

 15.  Para Kierkegaard, é tão importante saber como crer.

 16.  Para Kierkegaard, é mais importante crer do que saber.

 17.  Para Kierkegaard, o verdadeiro valor da fé advém justamente do facto de esta ser uma
escolha que se reveste de alguma incerteza.

 18.  O fideísmo de Kierkegaard é uma versão moderada de fideísmo, pois para este autor não
há oposição entre fé e razão.

 19.  O fideísmo de Kierkegaard não é uma versão moderada de fideísmo, pois para este autor não
há oposição entre fé e razão.

 20.  Uma objeção que a perspetiva de Kierkegaard enfrenta é o facto de, por vezes, ser
irresponsável acreditar em algo quando não se tem boas razões para o fazer.

 21.  Uma das críticas que se apresenta à perspetiva de Kierkegaard é o facto de ser impossível saber
que tipo de crença seria mais valorizado por Deus, se este for infinitamente incompreensível.

 22.  Blaise Pascal sustenta o fideísmo, porque para ele Deus é infinitamente incompreensível.

 23.  O fideísmo de Pascal é radical, porque advoga uma oposição entre a fé e a razão.

 24.  O fideísmo de Pascal não é radical, porque não advoga uma oposição entre a fé e a razão.

 25.  Pascal limita-se a defender que a fé e a razão têm alcances diferentes.

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 26.  O princípio maximin sustenta que, perante uma situação de incerteza, o mais razoável
é agir de modo a beneficiar o maior número possível de indivíduos.

 27.  O princípio maximin sustenta que, perante uma situação de incerteza, devemos tomar
as nossas decisões como se o pior nos fosse acontecer.

 28.  Pascal conclui que é melhor apostar na existência de Deus, porque ir parar ao Inferno é muito
pior do que perder algumas horas a rezar e a ir à missa e ter algumas restrições em vão.

 29.  Um argumento a favor da perspetiva de Pascal é que, se Deus é infinitamente


incompreensível, não podemos saber qual é a Sua atitude se apostarmos em acreditar que
Ele não existe.

 30.  Uma das objeções que a perspetiva de Pascal enfrenta é que é mais razoável supor que Deus
prefira as pessoas que têm uma vida digna, mesmo que não acreditem na Sua existência,
às pessoas que só têm uma vida digna por medo do Inferno.

 31.  Uma das objeções à perspetiva de Pascal baseia-se no processo de origem e formação das crenças.

 32.  O argumento cosmológico baseia-se na ideia de que Deus é um ser perfeito.

 33.  Segundo o argumento cosmológico, tudo o que existe tem uma causa ou razão de ser exterior
a si, exceto Deus, que existe necessariamente e é a causa primeira de tudo quanto existe.

 34.  Segundo o argumento cosmológico, a vontade suprema precede a geração natural.

 35.  Uma das objeções ao argumento ontológico é o facto de podermos parar arbitrariamente a
nossa procura pela causa primeira em qualquer ponto da sequência das causas e dos efeitos.

 36.  Segundo o argumento do desígnio, tal como os relógios, os seres vivos possuem uma
estrutura complexa, e as suas partes apresentam um ajuste perfeito; por isso, também têm
de ter um criador inteligente.

 37.  O argumento do desígnio é um argumento por analogia.

 38.  Uma das objeções que o argumento do desígnio enfrenta é o facto de a teoria evolucionista
de Darwin oferecer uma explicação alternativa para o aparente desígnio da natureza.

 39.  O argumento ontológico baseia-se na ideia de que o mundo é perfeito para concluir que
Deus é perfeito.

 40.  O argumento ontológico apoia-se na ideia de que, se Deus não existir, não é perfeito.

 41.  Uma das objeções que o argumento ontológico enfrenta é o facto de a existência não ser um
predicado real, que se possa usar para definir conceitos.

 42.  O argumento baseado na ocorrência de milagres pretende concluir que os milagres são fruto
da intervenção divina.

 43.  Segundo Hume, nunca devemos acreditar num relato de um milagre.

 44.  Segundo Hume, existem diversas explicações para um testemunho da ocorrência de um


milagre mais prováveis de que a sua efetiva ocorrência.

 45.  O problema do mal consiste em saber como conciliar a existência de um Deus criador,
omnipotente, omnisciente e sumamente bom com a existência de mal no mundo.

 46.  Uma resposta possível para o problema do mal é considerar que, embora o livre-arbítrio
não permita explicar o mal moral, oferece uma explicação para o mal natural.

33. V; 34. V; 35. F; 36. V; 37. V; 38. V; 39. F; 40. V; 41. V; 42. F; 43. F; 44. V; 45. V; 46. F.
1. V; 2. F; 3. F; 4. V; 5. V; 6. F; 7. V; 8. V; 9. F; 10. V; 11. F; 12. V; 13. F; 14. F; 15. F; 16. V; 17. V; 18. F; 19. F; 20. V; 21. V; 22. V; 23. F; 24. V; 25. V; 26. F; 27. V; 28. V; 29. F; 30. V; 31. V; 32. F;
SOLUÇÕES:

Religião, razão e fé 281

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TEMA

VI PROBLEMAS DO MUNDO
CONTEMPORÂNEO

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Problema

1 Até onde é permissível


incrementar seres humanos?

Introdução

A ética do incremento, seja ele reprodutivo ou não, é o assunto deste capítulo. Em primeiro lugar, serão apresentados e discutidos os
argumentos a favor do incremento; em seguida, será a vez de submeter à avaliação crítica os argumentos contra o incremento. A finali-
dade do debate é apresentar imparcialmente estas duas posições substantivas. Caberá depois a cada um, através da elaboração de um
ensaio filosófico, fazer um juízo eticamente informado sobre o problema.

Atividade prática

1 Depois da leitura deste capítulo, elabore um ensaio filosófico sobre o seguinte problema: até onde é permissível incrementar
seres humanos?

Passos que deve respeitar no seu ensaio filosófico:


a) Apresente o problema que irá debater.
b) Apresente a posição que será defendida.
c) Exponha os argumentos a favor da posição defendida.
d) Proceda à avaliação crítica dos argumentos expostos.
e) Responda às questões levantadas pela avaliação crítica.
f ) Extraia a conclusão do debate desenvolvido ao longo do seu ensaio.

Exigências que o seu ensaio deve ter em conta:


a) Use uma linguagem clara.
b) Conduza logicamente as ideias que apresenta.
c) Pense de maneira autónoma — é mais importante ter ideias próprias do que simplesmente repetir as ideias dos outros.

284 Problema 1

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   Tipos e estratégias de incremento
De um modo geral, incrementar é melhorar as qualidades e os desempe-
nhos dos seres humanos. Existem incrementos reprodutivos e incrementos
não reprodutivos. É por isso útil esclarecer desde já cada um destes tipos
de incremento. O recurso a exemplos talvez seja a melhor maneira de
o fazer.
Um exemplo de incremento reprodutivo é a seleção de embriões na
reprodução assistida; e um exemplo de incremento não reprodutivo
é a instrução musical de uma criança para que as suas capacidades mate-
máticas e espácio-temporais melhorem, se de facto for verdade que há uma
relação entre as duas coisas; ou o consumo de asteroides anabolizantes para
melhorar desempenhos que exigem força e resistência; ou ainda o consumo
de inibidores da reabsorção de serotonina, como o Prozac, que melhora
a sociabilidade. Assim, no que respeita a incrementos não reprodutivos,
há então aqueles que envolvem sobretudo esforço pessoal e aqueles que
induzem melhores desempenhos de forma mais automática.
O princípio da beneficência determina a obrigação moral de impedir
o dano e promover benefícios sempre que isso é possível. É nele que se
apoia a defesa do incremento. Admitir que o princípio da beneficência
fornece razões morais para incrementar não implica a obrigação de usar
uma estratégia específica de incremento. Uma coisa é ter razões morais
para incrementar; outra é ter a obrigação de adotar uma certa estratégia de
incremento. É por isso que o debate acerca da ética do incremento não
pode apelar apenas ao princípio da beneficência. Ter isto em conta é muito
importante quando se delibera sobre casos particulares.

Fig. 1 — Bebés em ambiente artificial.


Esta imagem sugere que pode haver tipos de incremento que fazem do ser humano
um produto artificialmente controlado pela tecnologia.

Até onde é permissível incrementar seres humanos? 285

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   Razões morais para incrementar
Em seguida, iremos apresentar e discutir os principais argumentos a favor
de incrementar:
• argumento da incapacidade;
• argumento da relação de continuidade entre danos e benefício;
• argumento da compatibilidade entre estratégias de incremento
e mudança social.

Argumento da incapacidade
A incapacidade é uma condição em que há dano para a pessoa, que pode
ser de natureza física ou mental. Uma incapacidade é uma desvantagem.
Mas, como se poderia pensar, não é uma desvantagem em relação às
condições do ser humano típico — é antes uma desvantagem em relação
a qualquer alternativa relevante. Esta é assim uma noção lata, e não estrita,
de incapacidade.
Segundo esta noção, as condições típicas da nossa espécie podem conver-
ter-se em incapacidades. Isso sucede, por exemplo, quando há mudanças
relevantes nos fatores ambientais ou se descobre a causa de uma doença.
O dano impede as pessoas de terem experiências valiosas, reduz as suas
oportunidades, implica riscos ou prejudica a qualidade do que fazem.
As suas causas são diversas: médicas, cognitivas, genéticas, ambientais ou
sociais. É por isso errada uma conceção social de incapacidade. Mesmo
a sociedade mais inclusiva e livre de preconceitos que se possa imaginar
não remove muitas características que geram incapacidade.
De uma noção lata de incapacidade segue-se uma noção igualmente lata
de dano. Há dano quando o bem-estar individual é significativamente
afetado. Isso sucede sempre que há um entrave dos interesses e preferên-
cias por certos estados de coisas agradáveis. Um deficiente motor sofre
dano se vive numa cidade sem rampas de acesso a passeios ou edifícios.
O seu interesse em circular com autonomia fica sujeito a um entrave que
afeta significativamente o seu bem-estar. Uma mulher sofre também dano
pelo simples facto de nascer em países que entravam o seu interesse em
educar-se ou participar na vida pública.
Se certas condições causam dano, há razões morais para as impedir ou para
reduzir os seus efeitos negativos. É isso o que determina o princípio moral
da beneficência. Mas dessas razões morais, como é óbvio, não se segue
a escolha de uma estratégia ou método que promova a redução do dano.
Essa é uma escolha que pode depender de uma análise cuidadosa da
relação custo-benefício, da força das razões morais naquele contexto parti-
cular ou do grau de dano. Este último fator, por exemplo, pesa frequente-
mente, e é razoável que assim seja: a força da obrigação moral depende do
grau de incapacidade. Num caso em que é provável apenas uma incapaci-
dade ligeira, poderá não haver qualquer obrigação moral de impedir
o dano ou de reduzir os seus efeitos.

286 Problema 1

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Argumento da relação de continuidade  
entre danos e benefícios
Muitas pessoas rejeitam o incremento; ou, se não rejeitam, têm sobre ele
muitas dúvidas. E têm igualmente a intuição de que há razões morais para
impedir danos gerados por incapacidades dos filhos. Mas, se têm esta
intuição, não terão também de reconhecer que há razões morais para incre-
mentar? Ora, aceitar que se deve impedir o dano e rejeitar que se deve
promover o incremento é negar que há uma relação de continuidade entre
danos e benefícios.
Reconhece-se amplamente, porém, que há razões morais para melhorar
as condições em que os outros se encontram, seja no caso em que geram
incapacidades ou não. Logo, não há, por um lado, razões para impedir
o dano e, por outro, razões para promover o incremento. Estas são antes
razões morais para melhorar as condições em que os outros se encontram.
A relação de continuidade entre danos e benefícios é apoiada pela analogia
intuitiva entre incapacidade e incremento: em relação a alternativas
relevantes, se a primeira é uma desvantagem, a segunda é uma vantagem.
Dada esta analogia, se temos razões morais para impedir ou reduzir
desvantagens, elas estendem-se à promoção de vantagens.
Há ainda casos em que seria ilusório separar a redução de desvantagens
da promoção de vantagens. Um deles é o dos pacientes que sofrem
de privação do sono. Esta incapacidade gera danos emocionais e cognitivos
— as pessoas ficam mais lentas a processar a linguagem e a resolver proble-
mas matemáticos e estão mais sujeitas a acidentes de viação. As anfetaminas
usadas para reduzir estes efeitos melhoram igualmente competências
cognitivas como a atenção, a concentração e as capacidades de memorizar
e planear.
Não é assim possível separar a redução de desvantagens da
promoção de vantagens. Segue-se, portanto, que melhorar
um desempenho não é errado, nem poderia ser, uma vez
que as razões para promover vantagens têm uma relação
de continuidade em relação às razões para reduzir desvan-
tagens. Isso levaria a que, em certos casos, fosse também
errado impedir danos. A intuição que nega a relação de
continuidade entre danos e benefícios não parece então
resistir ao teste da argumentação racional.
Negar essa relação de continuidade não é a única objeção
ao incremento. Também se afirma que passar num exame
depois de se ter usado substâncias químicas tem menos
valor do que alcançar esse objetivo apenas através
do esforço pessoal. Os incrementos químicos e genéticos
podem ainda ter uma consequência mais séria do que
simplesmente diminuir o mérito das realizações individuais.
Eliminando a necessidade de esforço para obter sucesso,
ou reduzindo-o significativamente, pode alterar aspetos
fundamentais da nossa identidade. Uma crítica diferente
defende que a distribuição injusta das vantagens do incre- Fig. 2 — Aluno a receber um excelente resultado num exame.
mento afetará de maneira relevante uma sociedade que não Ter uma boa nota num exame depois de se ter usado substâncias
soube ainda resolver muitas das suas injustiças. químicas diminui o mérito das realizações pessoais.

Até onde é permissível incrementar seres humanos? 287

365178 282-304.indd 287 13/03/13 16:14


Argumento da compatibilidade entre estratégias  
de incremento e mudança social
No caso em que um teste pré-natal revela que a futura criança terá uma
incapacidade grave, é de supor que os pais tomem medidas para impedir
ou reduzir os seus efeitos na criança, o que poderá implicar estratégias de
incremento reprodutivo. Além disso, é também de supor que se empe-
nhem na melhoria das condições da sociedade em que vivem, se isso per-
mitir que a criança tenha mais qualidade de vida. Isto
mostra que não veem como mutuamente exclusivas
estratégias de incremento e mudanças sociais. A alterna-
tiva com que se deparam é antes outra: prosseguir com
a gravidez ou terminá-la. Não há assim razões morais
para pensar que a adoção de estratégias de incremento
não é o melhor curso de ação porque impediria, ou
reduziria, o esforço de mudança social. Essas estratégias
são compatíveis com o empenhamento na melhoria das
condições da sociedade. Mas este argumento não é sufi-
ciente para responder a uma objeção mais séria. A com-
patibilidade entre diferentes estratégias não é necessaria-
mente a melhor maneira de incrementar as capacidades
mentais e físicas. Sabe-se que o exercício físico e mental,
uma dieta equilibrada e um ambiente estimulante são
Fig. 3 — Realização de um exame pré-natal. uma base sólida para a melhoria dessas capacidades.
A razão moral para evitar danos ao bem-estar e à qualidade de vida Não serão também a base mais sólida de uma vida que
é central em muitas práticas médicas. tem mais qualidade global?

   Razões morais para não incrementar
Apresentaremos e discutiremos agora os principais argumentos contra
incrementar: o argumento da segurança, o argumento da distribuição
injusta, o argumento do mundo sem agentes dignos de admiração e o argu-
mento da criança feita mercadoria.

Argumento da segurança
É conhecida a preocupação com a segurança dos procedimentos envolvi-
dos no incremento, mas é ainda maior a preocupação suscitada por um
caso particular de incremento — a manipulação genética. O conhecimento
das consequências deste método de incremento é, na verdade, muito limi-
tado. As modificações genéticas, dada a sua natureza, têm implicações
muito sérias. A avaliação que exigem é especialmente complexa. Pode suce-
der que não melhorem realmente a qualidade de vida das pessoas. Em todo
o caso, alguns pensam que a manipulação genética de embriões é uma
condição necessária para incrementar o desempenho de uma capacidade,
mas não deixa de haver uma razão muito forte para duvidar que produza
uma descendência globalmente melhor.
Há estudos que apoiam as preocupações geradas por esta dúvida. É o caso
de um estudo sobre os efeitos da manipulação genética em ratos para
melhorar a memória de curto prazo e a aprendizagem destes animais, um
estudo conduzido pela universidade da Pensilvânia. Os resultados não
foram animadores. Os ratos revelaram uma invulgar sensibilidade à dor.
Este efeito, que não foi previsto, mostra que a qualidade de vida dos ratos
não melhorou, embora as competências cognitivas em questão tenham sido
incrementadas.

288 Problema 1

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As preocupações de segurança devem então ser tidas em conta. É provável
que uma análise cuidadosa da relação riscos-benefícios não recomende cer-
tas estratégias de incremento de funções cognitivas complexas. Todavia,
esta prudência é irrelevante para defender que estes incrementos são, em si
mesmos, eticamente incorretos. Um incremento cognitivo é incorreto ape-
nas na circunstância em que a saúde e a qualidade de vida das pessoas
estão sujeitas a riscos. E, ainda assim, não a um risco qualquer, mas a um
risco que não é suplantado pelo valor do que se pretende alcançar através
do incremento.
A análise dos riscos e benefícios é outro problema. Os aspetos que inclui
não são de natureza moral. Trata-se então de saber como obter informação
isenta, calcular o rácio riscos-benefícios ou decidir quem fará essa ponde-
ração; ou de saber que perceção do risco têm as pessoas envolvidas e que
valor dão aos benefícios que os incrementos permitem. Há quem prefira
não correr qualquer risco e há quem se disponha a sujeitar-se a todas as
consequências do incremento, incluindo as indesejáveis. Desde que contri-
bua para realizações valiosas, como ganhar uma competição olímpica, pode
até haver quem sacrifique uns quantos anos de vida. Alguns atletas, de
resto, já o confessaram.

Argumento da distribuição injusta
Algumas estratégias de incremento poderão ser muito dispendiosas. É esse
o caso da manipulação genética. É muito provável que apenas as classes
favorecidas estejam em condições de usufruir delas. É de admitir, portanto,
que essas estratégias de incremento serão injustamente distribuídas. Uma
nova desigualdade será estabelecida — a desigualdade entre pessoas gene-
ticamente incrementadas e pessoas que o não são.
Parece justificado o receio de que esta importante desigualdade aumente os
já acentuados desníveis da sociedade atual. E se, pelo menos até agora,
estes desníveis da sociedade atual não têm sido corrigidos, essa é uma razão
muito forte para que não sejam permissíveis os incrementos dispendiosos.
Os defensores do incremento genético dizem que esta razão, ao invés
de forte, é claramente fraca. Admitindo que o problema do incremento
genético está na sua distribuição, reconhecem tacitamente que esse tipo
de incremento é bom em si. Logo, o argumento da distribuição injusta não
é uma objeção ética ao incremento genético. Levanta antes um problema
de distribuição, sem dúvida urgente, mas não específico do incremento
cognitivo, seja genético ou outro igualmente dispendioso.
Muitos outros recursos benéficos, como a educação, os alimentos ou as
terapias, estão também injustamente distribuídos. Não há nisso, porém,
uma razão para defender que o uso desses recursos é moralmente incor-
reto. E seria obviamente absurdo que houvesse. Uma coisa é o problema
ético do incremento, outra bem diferente é o problema ético da distribui-
ção. Que fazer perante o problema ético da distribuição dos incrementos
dispendiosos? Supondo que a sociedade ganharia com os benefícios produ-
zidos pelos incrementos cognitivos, talvez a regulação do mercado e o
acesso subsidiado pelo Estado para os mais desfavorecidos fossem a solução
mais razoável. Mas este é outro debate.

Até onde é permissível incrementar seres humanos? 289

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Argumento do mundo sem agentes dignos de admiração
Há juízos que elogiam as realizações bem-sucedidas dos agentes e juízos
que os culpam pelos seus fracassos. Num e noutro caso pressupõe-se que
os agentes gozam de alguma liberdade de ação. Imagine-se um mundo em
que o uso de estratégias de incremento, incluindo as genéticas, se genera-
lizou. O esforço dos agentes é apenas marginalmente responsável pelo
sucesso das suas realizações físicas e intelectuais. Num mundo assim não
haveria boas razões para admirar os agentes. As
noções de agente e de responsabilidade seriam então
significativamente revistas. Ainda que os seres huma-
nos não deixassem de ser agentes responsáveis pelas
suas ações, é provável que o fossem num grau bas-
tante fraco.
Estas noções fracas de agente e responsabilidade
seriam acompanhadas pelas reações psicológicas habi-
tuais a casos de fraude. Em grande medida, cada
agente seria encarado como um atleta olímpico que
ganhou a prova devido à ingestão de drogas ilícitas
poderosas.
Este cenário de um mundo sem agentes dignos de
admiração é muito provável para os críticos do incre-
Fig. 4 — Lance Armstrong, atleta acusado de doping.
mento. Se é bom que os agentes se encarem como
O caso de Lance Armstrong mostra que temos, à partida, intuições
responsáveis pelas suas ações num grau forte, então
morais contrárias a certos tipos de incremento.
há uma razão moral bastante forte para não incremen-
tar seres humanos.
Talvez o cenário apresentado não seja plausível. Afinal, se todos os atletas
olímpicos fossem incrementados, os seus êxitos não seriam uma fraude,
e a reação psicológica de que se é enganado não teria lugar. As reações
psicológicas acabariam por se ajustar a um mundo de seres humanos incre-
mentados. Não é então claro que os agentes deixariam de se sentir donos
das suas ações. A consequência mais provável seria outra: a «fasquia seria
aumentada». Logo, a noção de mérito não seria enfraquecida. Os agentes
mais bem-sucedidos, e com incrementos semelhantes, seriam responsáveis
pelas suas realizações no mesmo grau em que agora o são.
Todavia, o argumento do mundo sem agentes dignos de admiração capta
um aspeto importante. No caso em que há duas estratégias para alcançar um
objetivo, uma de incremento (o método fácil) e outra baseada no esforço
pessoal, há de facto mais mérito se o êxito resulta desta última estratégia.
O agente é, neste caso, mais digno de admiração. Isto implica, obviamente,
que um ser humano não merece o mesmo elogio se o êxito obtido depende
de capacidades incrementadas para esse efeito. Mas a conclusão que isto
permite é modesta: apenas se pode afirmar que ser bem-sucedido pelo
método fácil é menos digno de admiração. Não se segue, portanto, que é
moralmente incorreto adotar o método fácil. Há, porém, uma subtileza a ter
em conta. Uma estratégia de incremento pode ser menos digna de admira-
ção e ser, apesar disso, a melhor opção. No caso em que a instrução musical
de uma criança não tem uma resposta positiva, se o efeito pretendido apenas
puder ser alcançado através de uma droga segura que incrementa a capaci-
dade musical, essa é a melhor opção. Dessa capacidade incrementada resul-
tam benefícios cognitivos e emocionais para a criança.

290 Problema 1

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Argumento da criança feita mercadoria
Esta é uma razão popular contra o incremento reprodutivo. Afirma-se que
este tipo de incremento de capacidades cognitivas encoraja os pais a conceber
os filhos como uma espécie de mercadoria. Caso assim seja, o incremento
não é ético.
Há roupas, carros ou telemóveis que servem para refletir uma dada imagem
da pessoa a que pertencem. Fazem-no porque exibem certas propriedades
estéticas. Também as crianças podem servir para dar à sociedade uma certa
imagem dos pais. Para isso, basta que exibam propriedades a que geral-
mente se reconhece valor. Inteligência, beleza e uma estrutura física atlética
são exemplos dessas propriedades.
Um pai que procede a um incremento reprodutivo seguro da inteligência
do filho, para que este dê à sociedade a imagem que lhe garante o reconhe-
cimento pretendido, está a tratá-lo como se fosse um telemóvel da moda.
Em si mesma, a criança não tem valor — não tem, portanto, valor intrín-
seco; tem apenas valor como um meio para adquirir estatuto (valor instru-
mental).
É verdade que as motivações para conceber filhos têm relevância moral.
Se um incremento reprodutivo tem como motivação contribuir para um
certo estatuto dos pais, então é errado. Mas, neste caso, o problema não
está no incremento — está na motivação para incrementar. Esta razão
contra o incremento parece então deslocada. Não é, afinal, uma razão
especificamente contra o incremento reprodutivo. Seja incrementada
ou não, qualquer reprodução com motivações semelhantes será errada.
Se uma certa motivação faz da criança a conceber mera mercadoria, ainda
que os pais recusem uma estratégia de incremento reprodutivo, esse não
deixa de ser um exemplo que não deve ser seguido.

Fig. 5 — Um certo ar de uniformidade.


Escolher as características que um filho deve exibir pode levar a uma importante redução
da diversidade biológica.

Até onde é permissível incrementar seres humanos? 291

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Problema

2 Que ética para o fim de vida


particularmente vulnerável?

Introdução

Será que há boas razões para defender um direito público de morrer? Este é o problema que será debatido neste capítulo. Apresentaremos
razões a favor e razões contrárias a esse direito, de um modo que pretendemos imparcial. Caberá depois a cada um, através da elaboração
de um ensaio filosófico, fazer um juízo eticamente informado sobre o problema.

Atividade prática

1 Depois da leitura deste capítulo, elabore um ensaio filosófico sobre o seguinte problema: há boas razões para que a ética do fim
de vida particularmente vulnerável inclua o direito de morrer?

Passos que deve respeitar no seu ensaio filosófico:


a) Apresente o problema que irá debater.
b) Apresente a posição que será defendida.
c) Exponha os argumentos a favor da posição defendida.
d) Proceda à avaliação crítica dos argumentos expostos.
e) Responda às questões levantadas pela avaliação crítica.
f ) Extraia a conclusão do debate desenvolvido ao longo do seu ensaio.

Exigências que o seu ensaio deve ter em conta:


a) Use uma linguagem clara.
b) Conduza logicamente as ideias que apresenta.
c) Pense de maneira autónoma — é mais importante ter ideias próprias do que simplesmente repetir as ideias dos outros.

292 Problema 2

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   Vidas especialmente vulneráveis
Os progressos na saúde têm sido grandes. É cada vez mais fácil manter
vivas pessoas que há poucas décadas não teriam resistido às doenças e
limitações que as afligem. Isto deve-se à variedade e eficácia dos medica-
mentos, por um lado; e, por outro, aos meios artificiais de hidratar, alimen-
tar e pôr a respirar doentes que têm incapacidades extremas, entre as quais
se destacam o coma, a paralisia e o estado vegetativo persistente, a que
alguns preferem chamar «estado persistente de não reação». Pessoas muito
vulneráveis veem desse modo a sua vida prolongar-se, em alguns casos
muito para além do que era previsível no passado.
Tudo isto, que parece bom, levanta ainda com mais intensidade problemas
que sempre foram particularmente difíceis. Um deles é o de saber se pes-
soas muito vulneráveis, que se mantêm vivas graças aos desenvolvimentos
da medicina, têm vidas que vale a pena viver. Pergunta-se, por isso, se
a qualidade dessas vidas não estará
seriamente comprometida. O pro-
blema é de uma delicadeza extrema.
A dor por vezes aguda, a dependên-
cia, a incapacidade de reagir ao meio
e de ter relações afetivas podem,
segundo alguns, conduzir a uma vida
degradante que, bem vistas as coisas,
não dignifica aqueles que a têm.
Que ética então para o fim de vida
particularmente vulnerável? Será que
ela inclui, reunidas certas condições,
o direito de morrer?
Para problemas com esta delicadeza
extrema, não precisamos apenas de
bons argumentos — precisamos tam-
bém de ter a sensibilidade apropriada
ou, como se costuma dizer, de ter
bom coração. A circunstância mais
feliz seria aquela em que os bons argu-
mentos contribuíssem para formar um
bom coração, e um bom coração nos Fig. 1 — Casal mediático que lutou pelo direito à eutanásia.
levasse a discernir os melhores argu- A luta pelo direito público de morrer exige um exame cuidadoso das razões morais
mentos. relevantes. Mas é também importante que cada um dê a cara pelas suas convicções.

   O direito de morrer
O direito de morrer de que iremos falar é um direito público estabelecido
na lei e nas regras que orientam a prática médica. Define-se por incluir uma
regra que requer dos médicos, em circunstâncias devidamente especifica-
das, uma resposta ao pedido dos pacientes que desejam morrer. Essa res-
posta pode consistir simplesmente em permitir que os pacientes morram
ou mesmo em ajudá-los a morrer. Saber se temos este direito de morrer é
uma questão central na ética do fim de vida.
Apresentaremos primeiro razões a favor do direito de morrer e depois
razões para o recusarmos.

Que ética para o fim de vida particularmente vulnerável? 293

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   Razões a favor do direito de morrer
A favor do direito de morrer escolhemos as razões que nos parecem mais
intuitivas e mais frequentemente debatidas. São razões que procuram
destacar como decisivos fatores moralmente relevantes comuns às vidas
que terminam de modo difícil.

O mal que devemos remover
Há processos de morte prolongados. Pessoas muito vulneráveis podem
passar por processos de morrer que se estendem para além do que consi-
deram suportável. As dores extremas e incessantes, a perda irremediável
das capacidades funcionais, a perda progressiva e igualmente irremediável
das capacidades cognitivas, a inaptidão para estabelecer relações afetivas
e para ter os prazeres mais simples — tudo isto faz com que uma vida
assim seja, na perspetiva de algumas pessoas, insuportável. Conscientes da
sua condição sem esperança, estas pessoas concluem que não se justifica
viver. Desejam, por isso, que a sua morte seja apressada por meios não
dolorosos.
Para essas pessoas, a existência descrita não se justifica porque não é um
bem. Sendo, na sua perspetiva, uma existência desumanizada, e portanto
um mal, defendem que é do seu melhor interesse que a morte chegue
depressa e sem dor. Gostariam, por isso, de ser ajudadas a morrer pelos
médicos que cuidam delas.
Ajudar a morrer não contraria a prática da medicina, que na opinião dos
defensores do direito de morrer não se confina a tratar lesões e a curar
doenças. Essa seria uma conceção inadequadamente restrita de medicina.
Quando os benefícios prováveis das tentativas de curar e tratar são suplan-
tados pelo fardo do tratamento, os médicos devem ocupar-se
primariamente do alívio da dor e do sofrimento. É, por isso, um imperativo
desenvolver os cuidados paliativos para melhorar o controlo da dor
e do sofrimento.
É verdade que os cuidados paliativos, recorrendo a analgésicos cada vez
mais eficazes, são suficientes para aliviar a dor em muitos casos. No
entanto, subsistem situações de dor
intolerável que resistem aos meios de
que dispõem os cuidados paliativos.
Só ajudando a morrer, portanto, é que
os médicos podem aliviar a dor,
respondendo assim ao dever de cuidar
dos seus pacientes.
Se o fazem com uma disposição genuína
de cuidar, o sentimento que os motiva
é de benevolência. Isto sugere que a
condição de vulnerabilidade extrema
dos seus pacientes gerou neles com-
paixão. A morte que proporcionam
é conhecida por eutanásia justamente
por ser compassiva. Removendo o mal
de uma existência desumanizada,
cumprem o dever de beneficência a
Fig. 2 — Fotograma do filme Mar Adentro (2004), realizado por Alejandro Amenábar. que, como médicos, não podem deixar
Neste filme, o protagonista luta com abnegação e lucidez pelo direito a pôr um fim de atender.
à sua vida.

294 Problema 2

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Controlar a vida
Controlar a vida é vivê-la com autonomia. Esse é um desejo que todos, em
maior ou menor grau, parecem ter. Ainda que em situação de vulnerabili-
dade extrema, as pessoas de que temos falado querem também viver com a
autonomia possível. Ora, o processo de morrer faz parte da vida que que-
remos viver com autonomia. Se queremos controlar a vida, é de supor que
não deixaremos de fora um dos processos mais delicados inerentes à
mesma — o processo de morrer. Controlar a vida implicará, então, contro-
lar o processo de morrer. Isto tem importantes consequências na justifica-
ção moral do direito de morrer.
Segundo os defensores da autonomia no processo de morrer, não basta agir
de modo compassivo e benevolente para que o direito de morrer das pes-
soas muito vulneráveis tenha uma justificação moralmente sólida. Terá
ainda de ser seguro que a decisão de exercer esse direito não suscita dúvi-
das quanto à sua autonomia. A esse respeito é importante saber que uma
escolha autónoma não consiste simplesmente na manifestação de preferên-
cias. Vejamos que características a distinguem.
• Em primeiro lugar, uma escolha autónoma é racional. Isto quer dizer
que terá de resultar de uma ponderação cuidadosa dos fatores moral-
mente relevantes de cada caso particular.
• Em segundo lugar, uma escolha autónoma é livre. Isto significa que não
pode estar sujeita a constrangimentos que impeçam as pessoas de fazer
a escolha que responde ao seu melhor interesse, ponderadas todas as
alternativas.
• Uma escolha autónoma é, em terceiro lugar, aquela que se realiza
em condições de estabilidade emocional. Só uma pessoa emocional-
mente estável está defendida contra o enorme poder das emoções na fase
final da vida. Isso exige uma compreensão das emoções que podem
influenciar a escolha. No caso de o medo, a angústia ou a tristeza causa-
dos pelo desconforto da solidão determinarem a escolha de exercer o
direito de morrer, essa escolha não será, como é óbvio, uma expressão
de autonomia.
• Uma escolha autónoma é, ainda, uma forma de consentimento. A pessoa
que, com autonomia, escolhe exercer o direito de morrer consente a sua
própria morte. Esse consentimento, pelo qual a vontade da pessoa se
manifesta, pode ser dado também através de uma diretiva antecipada de
vontade. Desse modo, a pessoa solicita expressamente a sua morte, esta-
belecendo o que deseja para uma situação em que já não é capaz de ser
autónoma e, portanto, de solicitar seja o que for em condições de racio-
nalidade, liberdade e estabilidade emocional.
Como se vê, o autocontrolo é decisivo para os que têm uma grande simpatia
pelo papel que a noção de autonomia tem na justificação moral. Tão decisivo
que, mesmo quando já não é possível tê-lo, os médicos devem agir como se
ele ainda existisse. Procedem assim segundo o princípio do respeito pela
autonomia.
Os agentes racionais, em que à partida se incluem todas as pessoas, sejam
ou não muito vulneráveis, devem ter a oportunidade de viver de acordo
com as suas decisões autónomas. Exercer o direito de morrer é como que
o último gesto de autonomia nas suas vidas.

Que ética para o fim de vida particularmente vulnerável? 295

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Vidas sem qualidade
Em muitos casos, a autonomia já não é mais possível. Pessoas que se
encontram em coma ou em estado vegetativo persistente, por exemplo,
podem não ter deixado qualquer diretiva antecipada de vontade. Perdida a
autonomia ou qualquer expressão dela, haverá ainda uma razão para pro-
porcionar a essas pessoas uma morte compassiva? Os defensores do direito
de morrer afirmam que sim e acrescentam que essa razão é a falta de qua-
lidade de vida de certas pessoas. Vejamos, então, o que é para eles uma vida
sem qualidade.
Uma vida sem qualidade é aquela que não exibe as características que defi-
nem uma pessoa. Quando alguém já não é capaz de ter certos comporta-
mentos nem certos tipos de consciência, desconhecendo-se a si próprio
como alguém com um passado que viveu e um futuro em relação ao qual
manifesta interesses, esse alguém deixou de ter o estatuto de pessoa.
As seguintes capacidades são geralmente apresentadas como condições
necessárias e suficientes para se ser uma pessoa:
• capacidade de autoconsciência e de pensamento racional;
• capacidade de conceber um futuro para si mesmo e de recordar um pas-
sado relativo a si mesmo;
Fig. 3 — Manifestação a favor da eutanásia. • capacidade de ser um sujeito de interesses não momentâneos.
Os problemas morais do fim de vida
conduzem a reações fortes e até Ora, alguém que deixa de ser pessoa, por não exibir estas características,
espetaculares. É natural que assim seja dada perdeu o estatuto que era antes a condição da sua importância moral.
a delicadeza desses problemas. A vida moral
envolve a nossa racionalidade, mas também As características que definem o que é uma pessoa são as características
a nossa sensibilidade. moralmente relevantes dos seres humanos. Perdê-las é passar a ter uma
vida que não vale a pena viver. Deixa assim de haver razões, defendem
aqueles que simpatizam com estas ideias, para que seres humanos sem
qualidade de vida sejam dignos de consideração moral. As vidas que têm
não estão a ser usadas de qualquer modo que faça sentido. Por isso, con-
cluem, é permissível dar-lhes uma morte compassiva.

   Razões contrárias ao direito de morrer
As razões que iremos apresentar podem ser desaprovadas por algumas das
intuições morais que hoje são muito fortes. Não é por isso, como é óbvio,
que deixam de ser interessantes. No entanto, talvez peçam de nós uma
abertura maior para as considerarmos imparcialmente.

Uma opção indesejável
Partilhamos a intuição de que ter opções é sempre desejável. Sucede, no
entanto, que esta intuição sobre o valor das opções está errada. Há casos
em que ter certas opções é pior do que simplesmente não as ter. Vejamos
alguns casos que o comprovam.
O líder sindical que vê os membros do seu sindicato aprovarem um corte
de salários irá inevitavelmente negociar com os patrões numa posição
de fraqueza. Por possuir mais esta opção, ele ficará mais permeável a ter de
exercê-la. Mas, se a não tivesse, ele poderia mais facilmente chegar a um
acordo sem precisar de a exercer — sem precisar, na verdade, de aceitar
um corte de salários. Seja qual for o resultado da negociação, o simples
facto de ter mais uma opção é indesejável para o líder sindical.

296 Problema 2

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Também a pessoa que trabalha numa loja de conveniência preferia não ter
a opção de abrir o cofre da loja. Ela sabe que é melhor para si abrir o cofre
quando tiver uma arma apontada à cabeça, mas isso faz dela um alvo mais
apetecível para os ladrões do que se não tivesse a opção de abrir o cofre.
Ter mais esta opção é, portanto, indesejável para a pessoa em questão.
E o que dizer de alguns convites para jantar? Temos agora mais duas
opções: a de aceitarmos o convite e a de o recusarmos. Ainda que nesse
caso o melhor para nós seja aceitar o convite, podíamos simplesmente pre-
ferir não ter convite nenhum. Claro que, mesmo assim, podemos ficar em
casa, recusando o convite. Mas seria bem melhor podermos ficar em casa
sem ter de recusar o convite. Ter mais estas opções revela-se indesejável
para nós.
O direito público de morrer pode criar uma situação semelhante aos casos
descritos. Protegendo legalmente a opção de exercer esse direito, o facto de
estar disponível a opção de morrer pode causar dano a algumas pessoas,
ainda que elas possam concluir que exercer o direito de morrer é o melhor
para os seus interesses. A partir do momento em que têm essa opção, elas
passam obviamente a ser vistas pelos outros como tendo essa opção. Isto
quer dizer que a sua existência é agora vista como uma obra sua, pois
podem escolher entre viver e morrer. Isso contraria a convicção muito
enraizada de que a existência é algo que nos foi dado viver sem termos de
o justificar. No entanto, a opção entre viver e morrer conduz à exigência de
justificarmos a nossa existência perante as outras pessoas. Essa exigência
é um fardo que pode pesar tanto que a existência se torna insuportável.
O fardo de justificar a existência, havendo a opção legalmente protegida
de morrer, seria especialmente pesado para as pessoas doentes e enfermas,
e na verdade para todas as pessoas muito vulneráveis. De resto, muitas
dessas pessoas, como aquelas que se encontram em coma ou em estado
vegetativo persistente, não têm sequer a capacidade de justificar a sua
existência. Este facto, numa sociedade que exige uma justificação para
viver, implicaria o risco de serem vistas como pessoas cujas vidas não são
dignas de ser vividas. Afinal, se não são capazes de explicar perante os
outros por que razão escolhem existir, a razão que poderiam ter para exis-
tir deixa de ter força. Isto é ainda mais claro se aceitarmos que a nossa
cultura não é particularmente simpática em relação à passividade e à
dependência. O fardo de justificar a existência tenderá a ser insuportável
para aqueles que não veem na sua doença terminal, ou na sua incapaci-
dade extrema, uma razão suficiente para morrer.
Estabelecer o direito de morrer na nossa cultura, oferecendo a opção de
morrer, pode equivaler a dar às pessoas uma nova e muito poderosa razão
para morrer. E isto porque oferecer-lhes essa opção poderá causar-lhes
o dano de terem o fardo de justificar a sua existência; ou de viverem, caso
seja essa a sua opção, com o desconforto da dúvida, perguntando-se se a
continuação da sua existência será vista como razoável. É como se as pes-
soas muito vulneráveis tivessem de pedir desculpa por viverem. Por isso, o
melhor é não maltratar os outros com mais uma opção, sobretudo com
uma opção tão sensível como a de morrer. Abstermo-nos de maltratar
desse modo as pessoas mais vulneráveis respeita um princípio que nos é
caro — o princípio da não maleficência.

Que ética para o fim de vida particularmente vulnerável? 297

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Um direito diferente
O direito à vida é diferente de muitos outros direitos. Mas pensa-se com
frequência que não é — que o direito à vida é, afinal, semelhante ao direito
à propriedade. Dado que o direito à propriedade é alienável, isto é, pode
ser suspenso, conclui-se que o direito à vida pode também ser suspenso,
autorizando-se assim as pessoas muito vulneráveis a exercer o direito de
morrer. No entanto, há diferenças relevantes entre o direito à vida e o
direito à propriedade. Essas diferenças relevantes apoiam a ideia de que
o direito à vida é inalienável, não podendo portanto ser suspenso.
Se o dono de uma loja de guloseimas disser a uma criança que lhe oferece
algumas, nesse momento ele alienou o direito a esses bens. O facto de ter
alienado esses bens não implica que ele tenha alienado o seu direito à pro-
priedade em geral. Na verdade, ele não pode validamente renunciar ao
direito de ter bens, que ele e qualquer outro ser humano têm. Por isso,
o direito de alienar alguns bens nada tem de incompatível com o direito à
propriedade em geral. As coisas não se passam assim com o direito à vida.
Neste caso, se alguém aliena o direito à sua vida específica, está também
a alienar o direito à vida em geral, uma vez que não tem a possibilidade de
alienar esta sua vida e viver outra.
Esta importante distinção entre o direito à vida e o direito à propriedade
sugere que o direito à vida não é alienável. A vida não faz parte dos bens
sobre os quais uma pessoa pode deliberar livremente, como se a sua vontade
fosse soberana. A saúde e a integridade física, acrescentam os defensores do
direito à vida, são igualmente bens que um ser humano não pode suspen-
der. A autonomia dos seres humanos, que lhes permite abandonar certos
direitos, é limitada por certos bens. Isto significa que a vontade não é sobe-
rana, estando sujeita a fazer escolhas dentro de uma gama de alternativas
moralmente legítimas. Poderá pensar-se que há aqui um constrangimento
sério à liberdade individual. Nada mais errado: esse constrangimento da
vontade acaba por ser libertador, pois permite aos seres humanos reconhe-
cer o seu valor como seres humanos.
Segue-se do que foi dito que não podemos dispor livremente da vida que
nos é dado viver. É por isso que consideramos relevante avaliar as razões
de um doente que pretende exercer o direito de morrer. No entanto, as suas
razões não têm de supor que há um direito à vida, a que ele, por convicção
íntima, decidiu renunciar. Essas razões podem, em alternativa, basear-se
num juízo sobre a qualidade de vida. Se assim for, a defesa de que um
direito público de morrer não tem justificação terá de se apoiar noutros
argumentos.

Vidas com igual dignidade
Há vidas piores do que outras e até, como sabemos, vidas muito piores do
que outras. É provável que a vida de um deficiente ou de uma pessoa debi-
litada por uma doença grave seja pior do que a vida de uma pessoa normal
e saudável. Mas não é por uma vida ser bastante pior do que outras que se
pode afirmar que é desprovida de valor. É um erro confundir a ideia de que
uma vida é pior do que outras com a ideia de uma vida que não vale a pena
viver. Para saber se uma vida é digna de ser vivida ou não, teríamos de
determinar o limiar de uma vida digna que nos permitisse concluir se uma
vida se encontra abaixo do limiar, não merecendo ser vivida, ou se, pelo
contrário, está acima do limiar e merece ser vivida.

298 Problema 2

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Isso levanta a dificuldade muito séria de identificar as características que
fazem de um ser humano alguém que se encontra no limiar de uma vida
digna. Que tipo de comportamentos e que tipo de consciência teria de
exibir? É muito difícil responder a esta questão. Não temos à disposição
uma lista de indicadores de uma vida digna. E, mesmo que tivéssemos essa
lista, não se vê como poderia ela ser uma descrição completamente não
arbitrária. Afinal, que tipos de comportamento e que tipos de consciência
teriam de ser incluídos? E, mais importante ainda, quais deles teriam de ser
excluídos? Estamos perante uma tarefa muito sensível que gera disputas
substantivas.
Uma alternativa mais plausível, dizem aqueles que se opõem à ideia de um
limiar de vida digna, é considerar que o direito à vida é um direito de todos
os seres humanos inocentes, seja qual for o seu estádio de desenvolvi-
mento. O conceito de inocência é central para se perceber o direito à vida.
Assim, a relevância moral do conceito de inocência não está sujeita a varia-
ções dos desejos das outras pessoas, ou de outros fatores. Faz parte da
própria inocência que suceda justamente o contrário — que os desejos dos
outros e demais considerações a respeitem, como se ela fosse uma referên-
cia moral sólida que qualquer ponderação entre fatores não deverá
suplantar. Fig. 4 — Manifestação contra a eutanásia,
em Paris.
A vida de pessoas inocentes exige proteção e cuidados. Este é, então, um
direito básico de todos os seres humanos. Todos eles, doentes terminais ou
deficientes profundos, assim como aqueles que são diminuídos por vulne-
rabilidades extremas, têm igual dignidade. A vida dessas pessoas poderá
não ter valor instrumental, e na verdade pouco ou mesmo nenhum terá.
Teria valor instrumental se proporcionasse os meios para realizar finalida-
des valiosas, como ter relações afetivas ou reagir apropriadamente aos estí-
mulos do meio. No entanto, conserva o seu valor intrínseco, que consiste
no bem último que ela promove — a própria vida. A vida é, portanto, um
bem, tenha ou não valor instrumental.
Ora, os juízos sobre a qualidade de vida dessas pessoas tomam apenas em
consideração o seu valor instrumental. Esse é, segundo os defensores da
igual dignidade de todos os seres humanos, o seu erro de partida. A vida
de uma pessoa muito vulnerável é dura e difícil; sem dúvida que desafia as
capacidades dos que a rodeiam, desafio que depende também de fatores
psicológicos individuais. No entanto, do ponto de vista moral, o dever que
nos impõe é o de a protegermos e de cuidarmos dela.
Uma analogia com a obra de arte talvez melhore a compreensão do valor
intrínseco da vida inocente. Seria errado deixar que uma obra de arte fosse
destruída apenas porque choca com a moda vigente ou porque é ignorada
por todas as pessoas de uma sociedade. Essa atitude teria apenas em conta
o seu valor instrumental. No entanto, o seu valor intrínseco enquanto obra
de arte mantém-se intacto. Daí o erro que seria destruí-la.
Do mesmo modo, o valor intrínseco de uma vida humana inocente não
é comprometido pela diminuição, mesmo que significativa, do seu valor
instrumental. Segue-se que o direito de morrer, por não respeitar o valor
intrínseco de uma vida inocente, não está moralmente justificado.

Que ética para o fim de vida particularmente vulnerável? 299

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GlOssáRiO regredimos infinitamente, ou teremos sabe), omnipotente (que tudo pode), que é
forçosamente de parar em algum ponto. sumamente bom (ou moralmente perfeito)
Não podemos regredir infinitamente, e que criou o universo e tudo o que nele
A
porque tem de haver algo que cause a existe — Deus.
Absurdo: No âmbito do problema do própria sucessão das causas e dos efeitos; Atenção desinteressada/interessada:
sentido da vida, a noção de «absurdo» é logo, há uma causa primeira que dá origem Diz-se que prestamos uma atenção
usada para caracterizar uma existência à totalidade da sucessão de causas e efeitos desinteressada a um objeto quando o
despropositada e sem sentido. A noção foi — essa causa incausada é Deus. nosso interesse recai inteiramente sobre
introduzida pelo existencialista Albert Argumento do desígnio: Argumento por o objeto, sem outros interesses pessoais
Camus (1913-1960) para designar a analogia que defende que, tal como os à mistura, fruindo-o por si mesmo, sem
desproporção evidente entre as aspirações relógios, os seres vivos possuem uma outros fins em vista. Por oposição, uma
humanas e o mundo, visto que queremos estrutura complexa e as suas partes atenção interessada não está centrada
viver para sempre, mas sabemos que mais apresentam um ajuste perfeito; por isso, tal exclusivamente nos objetos — nos seus
cedo ou mais tarde iremos morrer; como acontece com os relógios, também sons, ritmos, linhas, formas, cores, etc. —,
queremos compreender o mundo, mas os seres vivos têm de ter um criador mas sim num determinado objetivo que
este furta-se constantemente à nossa inteligente. Dada a sofisticação e pretendemos alcançar.
compreensão; queremos que a realidade se complexidade do universo, esse criador Atitude estética: Forma de atenção
adeque às nossas exigências, mas esta deve ser infinitamente superior aos seres desinteressada e complacente perante um
permanece indiferente (surda) aos nossos humanos; logo, esse criador é Deus. objeto ou obra de arte. Ter uma atitude
apelos.
Argumento ontológico: Argumento que estética (por oposição a ter uma atitude
Ação: Acontecimento intencionalmente se baseia na ideia de que Deus é um ser prática) perante um objeto implica centrar
(ver intenção) causado por um agente. perfeito (maior do que o qual nada pode a atenção exclusivamente no próprio
Agente: Autor de uma ação, ou seja, aquele ser pensado) para concluir que Deus é um objeto — nos seus sons, ritmos, linhas,
que mediante a sua vontade dá origem a ser que existe por definição, pois é formas, cores, etc. —, independentemente
um determinado acontecimento. impossível concebê-Lo como inexistente, da utilidade que este possa ter para nós e
tal como seria impossível conceber um para os nossos objetivos.
Agnosticismo: Atitude de suspensão do triângulo cuja soma dos seus ângulos
juízo relativamente à crença de que existe Autonomia moral: Autonomia da vontade.
internos fosse diferente de 180º. A vontade é autónoma quando se
um ser único, pessoal, omnisciente (que
tudo sabe), omnipotente (que tudo pode), Arte: Conjunto de atividades humanas que autocontrola. O autocontrolo da vontade é
que é sumamente bom (ou moralmente envolvem a criatividade para originar conseguido quando esta se motiva a si
perfeito) e que criou o universo e tudo o algum tipo de manifestação sensível mesma ao querer agir segundo princípios
que nele existe — Deus. perante um público, bem como os bens morais universalmente válidos, resistindo às
originados por esse tipo de processos. No inclinações.
Análise conceptual: Decomposição de um contexto da filosofia, a definição de arte é
conceito nos conceitos mais simples que o justamente um dos problemas centrais da
formam com a finalidade de conhecer o C
filosofia da arte. Ao longo dos tempos,
seu âmbito de aplicação. várias teorias foram sendo propostas na Causalidade: Tipo de relação entre dois
Altruísmo: Agir em benefício dos outros tentativa de definir explicitamente arte, eventos em que um deles — a causa —
sem atender ao benefício próprio. procurando condições necessárias e origina o outro — o efeito.
Estabelece, como teoria normativa, suficientes para que algo seja arte. Existem, Causalidade intencional: Em filosofia da
a obrigação moral de promover contudo, autores que consideram que o ação distingue-se, geralmente, a
primariamente o bem-estar e o interesse conceito de «arte» não pode ser definido. causalidade natural — em que a causa é de
dos outros, ainda que essa não seja a nossa Artefacto: Tradicionalmente, um artefacto natureza física — da causalidade intencional
inclinação. é um objeto construído ou transformado (ou causalidade do agente) — em que a
Antiessencialismo: Perspetiva segundo a por mãos humanas. Contudo, no seio da causa é de natureza mental e corresponde à
qual não é possível oferecer uma definição teoria institucional proposta por Dickie, intenção do agente. Em tais casos, existe
explícita de arte, porque não existe algo este termo adquire um sentido muito mais uma conexão interna entre a causa e o
que seja a essência da arte. abrangente, pois, além dos objetos efeito, porque a causa é uma representação
materiais concretos produzidos ou mental do estado de coisas que origina.
Argumento: Um argumento é um
transformados pelos seres humanos, inclui A causa representa (mentalmente) e,
conjunto de proposições organizadas de
também os movimentos de uma simultaneamente, desencadeia o efeito.
tal maneira que se pretende que uma
delas, a que chamamos conclusão, seja coreografia ou as notas de uma melodia, Cogência: Chamamos cogente a um
apoiada por outra ou outras, que por exemplo, bem como objetos que não argumento sólido cujas premissas são mais
designamos por premissas. foram manufaturados ou cujas plausíveis do que a conclusão.
propriedades formais não foram alteradas
Argumento cosmológico: Argumento que pela intervenção direta de um ser humano, Compatibilismo: Tese segundo a qual
parte daquilo que vemos no mundo à mas que adquiriram a sua artefactualidade o livre-arbítrio e o determinismo podem
nossa volta e constata que tudo o que ao serem manuseados de certa maneira coexistir.
existe é um efeito de uma causa que o por alguém. Complacência: Temos uma atitude de
antecede. De seguida, afirma que se complacência perante um objeto quando
quisermos percorrer a totalidade da cadeia Ateísmo: Crença de que não existe um ser
único, pessoal, omnisciente (que tudo fazemos um esforço genuíno para o
causal que compõe o universo, ou entender, deixando-nos guiar pelas suas

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propriedades e relações, em vez de lhe Dever especial negativo: Dever de não consideram que este tipo de experiência
impor as nossas próprias vivências e regras. maltratar as pessoas com quem temos depende sobretudo da atitude do sujeito
Conceito: Tradicionalmente, entende-se por relações especiais e de não interferir com perante os objetos, outros consideram que
conceito uma representação mental, geral e os seus direitos. depende sobretudo de determinadas
abstrata dos elementos comuns a uma Dever especial positivo: Dever de fazer o propriedades objetivas dos mesmos.
classe de objetos ou de seres. Neste sentido, bem às pessoas com quem temos relações Experiência mental: Situação imaginária
só os termos gerais, como «cão», «homem», especiais e de assegurar os seus direitos. concebida para testar conceitos e teorias
«quadrado», etc., exprimem conceitos. Num Dever geral negativo: Dever de não filosóficas.
sentido mais lato, os conceitos são unidades maltratar toda e qualquer pessoa e de não Expressão: Forma de comunicar a uma
básicas do pensamento, expressas por interferir com os seus direitos. audiência uma emoção individual sentida
termos gerais ou particulares, como pelo artista, por meio de linhas, formas,
«Sócrates», «Júpiter», «Lisboa», etc. Dever geral positivo: Dever de fazer o bem
a toda e qualquer pessoa e de assegurar os cores, sons, ações ou palavras.
Contemplação: Observação cuidadosa dos seus direitos. Expressivismo: Teoria da arte que sustenta
pormenores de um objeto de maneira a que transmitir as emoções do seu criador
procurar estabelecer uma estrutura a um público é uma condição necessária
coerente e encontrar conexões. Implica E
e suficiente para que algo seja arte.
que se tenha uma postura ativa, pois Egoísmo ético: Teoria normativa sobre como
exige que a inteligência e a imaginação as pessoas devem agir. Defende que as
reconstruam ativamente o objeto, em F
pessoas devem agir apenas com a finalidade
vez de se deixarem confundir pela de promover o seu interesse próprio. Fideísmo: Perspetiva segundo a qual os
diversidade de estímulos que apresenta. nossos usuais métodos de justificação
Emoção estética: Conceito usado no
âmbito da teoria formalista da arte. racional, através de argumentos ou provas,
D não são adequados para justificar a crença
Segundo Clive Bell, «emoção estética» é a
emoção que sentimos ao contemplar em Deus, pelo que a crença na existência
Decisão racional: Decisão que resulta de Deus só pode ser o resultado de um
de um processo de deliberação cuidadoso, certas estruturas formais a que chamamos
«forma significante». Há quem defenda que ato de fé.
mesmo que subsistam dúvidas quanto
à correção da decisão tomada; para ser esta definição é viciosamente circular, pois Filosofia da religião: Área da filosofia que
racional, uma decisão terá de atender recorre à noção de forma significante, e se dedica a investigar e analisar
a razões para agir, sejam elas de ordem esta, por sua vez, é definida fazendo alusão racionalmente os fundamentos das crenças
técnica, prudencial e/ou moral. à própria noção de emoção estética. religiosas. Neste sentido, distingue-se da
Equilíbrio refletido: Método de justificação teologia, da psicologia da religião, da
Deliberação: Processo através do qual sociologia da religião, da história da
se consideram e avaliam razões para agir. moral que procura gerar coerência no
sistema de princípios e valores. Fá-lo religião, etc. A mais essencial de todas as
Deontologia absoluta: Defende que através de ajustamentos recíprocos nos crenças religiosas é a crença na existência
os deveres são restrições à promoção princípios morais gerais e nos juízos de Deus; por isso, o principal problema de
das melhores consequências que têm particulares sobre problemas morais. que os filósofos da religião se ocupam é o
de ser atendidas em todas as Um sistema de valores e princípios está seguinte: «Será que Deus existe?»
circunstâncias, incluindo aquelas justificado quando há coerência e Finalidade instrumental: Algo que
em que infringir essas restrições teria harmonia entre os seus princípios e valores. queremos fazer tendo em vista outra coisa.
consequências bastante mais benéficas
para a maioria do que mantê-las. Estética: A palavra «estética» tem vários Finalidade última: Algo que queremos
usos, mas em filosofia significa geralmente fazer por si mesmo, sem qualquer outro fim
Deontologia moderada: Defende que uma disciplina ou área de investigação que em vista.
os deveres são restrições à promoção se dedica ao estudo da apreciação sensível
das melhores consequências que, Finitude: Conceito que se aplica ao
da natureza e da arte. Há quem considere carácter finito, limitado e imperfeito
à partida, têm de ser atendidas, mas que a estética e a filosofia da arte se
que podem ser infringidas em certas da existência humana.
identificam inteiramente, há quem
circunstâncias se daí resultarem considere que, embora correspondam a Forma significante: Conceito usado no
consequências bastante benéficas domínios diferentes, estas disciplinas têm âmbito da teoria formalista da arte.
para a maioria. pontos de contacto e há, ainda, quem Segundo Clive Bell, «forma significante»
Determinismo: Tese segundo a qual tudo considere que a filosofia da arte é um é uma configuração de formas, linhas, cores
o que acontece é uma consequência dos subdomínio da estética. e espaços que produzem um determinado
acontecimentos anteriores e das leis da tipo de emoção no espectador —
Ética normativa: Disciplina da ética que a emoção estética. Há quem defenda que
natureza. responde ao problema normativo esta definição é viciosamente circular, pois
Deus: A discussão clássica em filosofia da fundamental, que é o de saber como recorre à noção de emoção estética e esta,
religião refere-se a uma particular conceção devemos viver. As respostas normativas por sua vez, é definida fazendo alusão à
de Deus, comum a várias religiões, segundo que apresenta para o problema propõem própria noção de forma significante.
a qual Deus é um ser único, pessoal, deveres ou, em alternativa, virtudes.
omnisciente (que tudo sabe), omnipotente Formalismo: Teoria da arte que sustenta
Experiência estética: É geralmente entendida que ser concebido com o principal intuito
(que tudo pode), que é sumamente bom como a nossa experiência de apreciação
(ou moralmente perfeito) e que criou o de exibir forma significante é uma condição
sensível da natureza e da arte; contudo, a sua necessária e suficiente para que algo seja
universo e tudo o que nele existe. definição não é consensual. Alguns autores arte.
Filosofia 301

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H que dizem simplesmente como as coisas produtores, diretores de museus, visitantes
são, os juízos de facto são descritivos. de museus, espectadores, críticos,
Hedonismo: Teoria do valor moral segundo Juízo de gosto: Juízo que se limita a historiadores da arte, etc.
a qual o bem consiste no prazer. Este é, por expressar um gosto ou uma preferência
isso, a finalidade última da ação. Há versões pessoal, como por exemplo: «Eu gosto O
de hedonismo que distinguem prazeres de chocolate» ou «Eu gosto de ouvir
superiores de prazeres inferiores. Objetivismo estético: Teoria acerca da
a 5.ª Sinfonia de Beethoven.».
natureza dos juízos estéticos que defende
Juízo de valor: Juízo acerca de como as que estes são objetivos, na medida em que
i
coisas devem ser. É o caso deste juízo: se referem a propriedades reais dos objetos,
Igualdade democrática de oportunidades: «Deve ser permissível abortar um feto de e não apenas às nossas impressões
Conceito de igualdade de oportunidades dez dias.» Por dizerem como as coisas subjetivas perante os mesmos. Segundo o
que minimiza a influência dos fatores devem ser, os juízos de valor são objetivismo estético, uma propriedade
sociais e dos fatores naturais nas normativos. estética como a beleza, por exemplo, não é
perspetivas de sucesso de cada um. Juízo estético: Em geral, um juízo é o ato uma impressão subjetiva projetada nos
de estabelecer uma relação entre um objetos, mas sim uma propriedade real que
Imperativo categórico: Princípio básico da
sujeito (S) e um predicado (P). Essa relação sobrevém de outras propriedades exibidas
ética de Kant. Tem duas fórmulas. Na
costuma simbolizar-se através da forma pelos objetos. Assim sendo, de acordo com
fórmula da lei universal, afirma que
«S é P» (ou «S não é P»). No caso dos juízos o objetivismo estético, o valor de verdade de
devemos agir apenas segundo uma
estéticos, os predicados são propriedades um determinado juízo estético não depende
máxima tal que possamos ao mesmo
estéticas. De acordo com o subjetivismo das preferências e impressões subjetivas de
tempo querer que ela se torne lei universal.
estético, os juízos estéticos correspondem quem o formula, mas sim das propriedades
Na fórmula da humanidade, afirma que
aos nossos juízos de gosto, uma vez que se efetivamente exibidas pelos objetos.
devemos agir de tal maneira que a
humanidade, tanto na nossa pessoa como referem às nossas impressões subjetivas Obra de arte: Resultado de um
na pessoa de qualquer outro, seja usada perante os objetos; no entanto, para o determinado processo criativo, como uma
sempre e simultaneamente como fim e objetivismo estético, são juízos pintura, uma escultura, um poema, uma
nunca simplesmente como meio. objetivamente verdadeiros ou falsos, pois peça musical, uma peça de teatro, uma
referem-se a propriedades objetivas dos coreografia, uma instalação, etc. No contexto
Imperativo hipotético: Afirma que mesmos. da filosofia, a definição de obra de arte está
devemos querer os meios necessários para
associada a um dos problemas centrais da
alcançar os nossos fins. A ação que
l filosofia da arte — o problema da definição
recomenda é boa apenas enquanto meio
da arte. Uma teoria geral da arte deve
para um certo fim, e não em si mesma. Libertismo: Tese segundo a qual temos fornecer um critério que permita classificar
Incompatibilismo: Tese segundo a qual livre-arbítrio e, por isso, nem tudo está objetos ou ações como obras de arte.
o livre-arbítrio não é compatível com determinado.
o determinismo. Livre-arbítrio: Capacidade de decidir P
Inconsistência: Relação lógica entre (arbitrar) livremente o que fazer com as
afirmações, crenças ou teorias em que, se nossas vidas, de modo que possamos ser Posição original: Situação de escolha
uma for verdadeira, a outra tem de ser falsa, moralmente responsabilizados pelas hipotética em que as pessoas têm
dado que não podem ser verdadeiras ao escolhas que fazemos. conhecimento de todos os factos
mesmo tempo. relevantes acerca da natureza humana, mas
não das suas capacidades e interesses
Intenção: Em filosofia da mente, dizer que M
particulares e do seu lugar particular na
um estado mental é intencional significa sociedade — se são inteligentes ou sofrem
Metaética: Disciplina da ética que
apenas que ele é acerca de alguma coisa. de limitações cognitivas, ricas ou pobres,
responde ao problema não normativo de
Os exemplos mais estudados de estados homens ou mulheres, negras ou brancas,
saber em que consiste a moralidade.
intencionais são as crenças e os desejos. de uma minoria religiosa ou não, por
Trata-se, por outras palavras, de saber qual
Uma crença é sempre a crença de que tal exemplo. Esta situação assegura
é a natureza da moralidade. As respostas
e tal coisa acontece, um desejo é sempre imparcialidade na escolha dos princípios de
mais comuns ao problema afirmam que a
um desejo de que tal e tal coisa deveria uma sociedade justa, impedindo que as
moralidade e os valores morais são
acontecer ou, então, ter lugar. Em filosofia pessoas escolham princípios que
objetivos, relativos ou subjetivos.
da ação, destaca-se o facto de, por vezes, privilegiam os seus interesses.
tais estados fazerem acontecer coisas, Milagre: Violação das leis da natureza que
como, por exemplo, no caso de alguém resulta da intervenção de Deus. Princípio da diferença: Princípio
querer ir à praia. Nessas circunstâncias, redistributivo segundo o qual a sociedade
Motivo: Razão pela qual se leva a cabo uma
o desejo de ir à praia desencadeia, deve promover a distribuição igual da
ação, ou seja, aquilo que nos faz ter uma
geralmente, o evento que representa — riqueza, exceto se a existência de
determinada intenção.
o ir à praia (ver causalidade intencional). desigualdades económicas e sociais gerar
Mundo da arte: Conjunto de sistemas — os maiores benefícios para os menos
teatro, pintura, escultura, literatura, música, favorecidos.
J
etc. —, em que cada um proporciona um
Princípio da liberdade igual: Princípio de
Juízo de facto: Juízo acerca do que as contexto institucional para a atribuição do
liberdade segundo o qual a sociedade deve
coisas são. É o caso deste juízo: «Um feto de estatuto a objetos pertencentes ao seu
assegurar a máxima liberdade para cada
dez dias não é um indivíduo distinto.» Dado domínio. É composto por artistas,

302 Glossário

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pessoa compatível com uma liberdade Sentido completo: Segundo Philip L. Teologia natural: Perspetiva segundo a
igual para todos os outros. Quinn, uma vida humana possui sentido qual é possível encontrar uma justificação
Princípio da maior felicidade (ou princípio completo se, e só se, tiver cumulativamente racional — com base em dados ou
da utilidade): Princípio básico do sentido axiológico e sentido teleológico. argumentos — para a crença na existência
utilitarismo. Estabelece o dever de Sentido da existência (ou sentido da de Deus.
maximizar o bem, que tem a sua expressão vida): Expressão geralmente utilizada para Teoria deontológica: Teoria normativa
na ideia de gerar o maior bem para o maior designar o propósito, a razão de ser ou a segundo a qual a promoção do bem está
número. finalidade da nossa existência ou das sujeita a restrições; certos deveres que
Princípio da oportunidade justa: Princípio nossas vidas. O problema do sentido da todos têm estabelecem restrições à
de igualdade de oportunidades segundo o existência é discutido no âmbito da promoção do bem.
qual as desigualdades económicas e sociais metafísica e consiste essencialmente em Teoria teleológica: Teoria normativa
devem estar ligadas a postos e posições saber se a vida tem pelo menos uma segundo a qual uma ação é correta se
acessíveis a todos em condições de justa finalidade última alcançável e com valor. promover o bem.
igualdade de oportunidades. Sentido teleológico: Segundo Philip L.
Problema do mal: Problema que consiste Quinn, uma vida humana possui sentido U
em saber como conciliar a existência de um teleológico se, e só se, tem, pelo menos,
uma finalidade alcançável e relevante; essa Utilitarismo: Teoria moral
Deus criador, omnipotente, omnisciente e
finalidade tem valor positivo e inclui uma consequencialista que defende que a ação
sumamente bom com a existência de mal
entrega efetiva a atividades com essa correta é aquela que tem as melhores
no mundo.
finalidade. consequências, isto é, que promove o
Propriedade estética: Propriedade maior bem para o maior número, definindo
dependente de reação que diz respeito à Solidez: Chamamos sólido a um
o bem como prazer e ausência de dor.
dimensão qualitativa dos objetos. Para o argumento válido com premissas
subjetivismo estético, as propriedades verdadeiras.
V
estéticas não passam de certas impressões Subjetivismo estético: Teoria acerca da
subjetivas projetadas nos objetos; para o natureza dos juízos estéticos que defende Validade: Um argumento é válido quando
objetivismo estético, são propriedades reais que estes são subjetivos, na medida a conclusão se segue das premissas; ou, de
das coisas, que sobrevêm das suas em que se referem apenas a impressões maneira mais rigorosa, quando é impossível
propriedades não estéticas. Exs.: propriedades subjetivas e não a propriedades reais dos ter premissas verdadeiras e conclusão falsa.
expressivas, como soturno, melancólico, objetos. Segundo o subjetivismo estético,
Valor instrumental: Algo tem valor
alegre; propriedades de carácter, como uma propriedade estética como a beleza,
instrumental se tem valor em função de ser
arrojado, majestoso, pomposo; propriedades por exemplo, não é uma propriedade real
um meio para alcançar algo que tem valor
de organização formal, como coerente, dos objetos, mas sim uma impressão
por si.
equilibrado, coeso, caótico; propriedades de subjetiva que é projetada nos mesmos,
gosto, como berrante, vulgar, piroso, pelos sujeitos que os apreciam. Assim Valor intrínseco: Algo tem valor intrínseco
espalhafatoso e propriedades de reação, sendo, de acordo com o subjetivismo se tem valor por si, independentemente de
como belo, sublime, cómico. estético, o valor de verdade de um ser, ou não, um meio para alcançar outra(s)
determinado juízo estético depende das coisa(s).
R preferências e impressões subjetivas de Valor objetivo: Algo tem valor objetivo se
quem o formula. tem valor de um ponto de vista impessoal,
Realismo moral: Teoria segundo a qual os por vezes designado «o ponto de vista
Subjetivismo moral: Teoria segundo a qual
valores morais são factos independentes da do universo» (ou «sub specie aeternitatis»
os valores morais são disposições
nossa sensibilidade, desejos e interesses. — do latim, sob o signo da eternidade;
subjetivas, como é o caso de certos
Relativismo moral: Teoria segundo a qual sentimentos e emoções. Em termos mais do ponto de vista da eternidade).
os valores morais são padrões culturais. Isto gerais, o subjetivismo moral afirma que os Valor subjetivo: Algo tem valor subjetivo
implica que os valores são relativos aos valores são expressões da nossa se tem valor para a pessoa em causa.
contextos culturais. sensibilidade.
Representação: x é uma representação de Superveniência: Tipo de relação entre duas
y se, e só se, um emissor tem a intenção propriedades (ou dois tipos de
de que x esteja em vez de y e o recetor propriedades). Diz-se que uma propriedade
compreende essa intenção. F sobrevém de uma propriedade G quando
Representacionismo: Teoria da arte que as coisas têm a propriedade F em virtude
sustenta que representar algo é uma de terem a propriedade G.
condição necessária para que algo seja arte.
T
s Teísmo: Crença de que existe um ser único,
Sentido axiológico: Segundo Philip L. pessoal, omnisciente (que tudo sabe),
Quinn, uma vida humana possui sentido omnipotente (que tudo pode), que é
axiológico se, e só se, tem valor intrínseco sumamente bom (ou moralmente perfeito)
positivo e (no seu todo) é boa para a e que criou o universo e tudo o que nele
pessoa que a vive. existe — Deus.

Filosofia 303

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Fontes fotográficas P. 197 A Traição das Imagens, 1928-29 O Projeto Desafios de Filosofia
P. 247 O Além, 1938 destinado ao 10.o ano de escolaridade,
©Almada Negreiros, SPA, 2013 P. 273 Ceci n’est pas une pomme, 1964 do Ensino Secundário, é uma obra coletiva,
P. 248 Retrato do Poeta Fernando Pessoa, 1964 concebida e criada pelo Departamento de Investigações
©Salvador Dalí. Fundación Gala-Salvador Dalí, e Edições Educativas da Santillana-Constância,
©2013 Andy Warhol Foundation for the SPA, Lisboa 2013 sob a direção de Sílvia Vasconcelos.
Visual Arts/Artists Rights Society (ARS), P. 13 Escultura A Cidade das Gavetas, 1936
EQUIPA TÉCNICA
New York/SPA, Lisbon P. 244 Cristo de São João da Cruz, 1951
Chefe de Equipa Técnica: Patrícia Boleto
P. 226 Caixas de Brillo, 1964
©Sucession H. Matisse/SPA 2013 Modelo Gráfico e Capa: Carla Julião
P. 241 200 Notas de 1 Dólar, 1962
P. 120 Alegria de Viver, 1905-1906 Imagem da Capa: Ashima-Endless, Limitless,
Agência Lusa Without Boundaries, de Laura Lee Harris
©Sucession Marcel Duchamp/ADAGP, Ilustrações: Sérgio Veterano
P. 85 Voluntários
Paris, 2013 Paginação: Exemplarr, Christophe Marques e Sérgio Pires
P. 164 Simone Fragoso
P. 209 A Fonte, 1917 Documentalista: Luísa Rocha
Album Archivo Fotográfico P. 225 Antecipação de Um Braço Partido, 1915 Revisão: Catarina Pereira e Sofia Graça Moura
P. 103 Fotograma do filme Invictus
©Succession Pablo Picasso/SPA, 2013 EDITORA
P. 104 Fotograma do filme A Lista de Schindler
(Portugal) Eva Arim
P. 110 Fotograma do filme Crash — No limite
P. 201 Guernica, 1937
P. 148 Fotograma do filme Uma Prova de Amor CONSULTORES CIENTÍFICOS
P. 176 Fotograma do filme Redenção ©The Lucian Freud Archive/ Adriana Silva Graça — Doutora em Filosofia pela
P. 294 Fotograma do filme Mar Adentro The Bridgeman Art Library Universidade de Lisboa. Professora no Departamento
P. 57 Benefits Supervisor Sleeping, 1995 de Filosofia da mesma universidade e investigadora
Corbis
do Centro de Filosofia no grupo LanCog.
PP. 6-7 Diversas chaves ©Tracey Emin, Dacs, 2013 João Cardoso Rosas — Professor Associado
P. 45 Richard Loeb e Nathan Leopold P. 209 My Bed, 1998 do Departamento de Filosofia da Universidade do Minho
P. 58 Usain Bolt e coordenador da linha de ação em Filosofia e Cultura
©Vassily Kandinsky, ADAGP, 2013
P. 77 Manifestação pelos direitos humanos do Centro de Estudos Humanísticos da mesma
P. 209 Composition VIII, 1923
P. 88 Família poligâmica universidade.
P. 161 Marcha de libertação feminina ©Victor Vasarely, ADAGP, 2013
P. 162 Mulheres negras exercem o seu direito P. 220 Hat-Meh, 1971-72
de votar
P. 163 Sem-abrigo ©Yves Klein, ADAGP, 2013
P. 174 Repórter de guerra P. 196 IKB 234, 1957
P. 177 Manifestação no Paquistão
P. 237 Cena da peça O Caso Makropulos Agradecimentos
PP. 282-283  Venda de cromossomas
P. 290 Lance Armstrong Agradecemos a colaboração de Artur Polónio
P. 291 Desfile de meninas e a leitura atenta das alunas Ana Pedrosa
P. 296 Manifestação a favor da eutanásia e Rita Monteiro. O apoio recebido não foi apenas
estimulante, foi também encorajador.
Gettyimages © 2013
PP. 32-33 Crianças na praia Amnesty Internacional
P. 73 Ação sobre a Pena de Morte Rua Mário Castelhano, 40 – Queluz de Baixo
P. 67 Mulheres a usar burka
2734-502 Barcarena, Portugal
P. 71 Trabalho infantil
Banksy
P. 93 Nazis a queimar livros APOIO AO PROFESSOR
PP. 182-183 Graffiti Removal
PP. 98-99 Casal a beijar-se Tel.: 214 246 901
P. 214 Mosaico arabesco Cordaid apoioaoprofessor@santillana.com
PP. 234-235  Escultura de Buda, na Tailândia P. 22 Cartaz da campanha People in Need
APOIO AO LIVREIRO
P. 285 Bebés em ambiente artificial
Damian Searles Tel.: 214 246 906
P. 293 Casal que lutou pelo direito apoioaolivreiro@santillana.com
P. 79 Campo de concentração de Auschwitz
à eutanásia
P. 299 Manifestação contra a eutanásia Elizabeth J. Morrison Internet: www.santillana.pt
P. 228 Art World Doodle Impressão e Acabamento: Lidergraf
iStock
P. 18 Forca Henrique Monteiro ISBN: 978-989-708-392-1
P. 287 Aluno a receber resultado de exame P. 228 Artistas Saem à Rua, 2012 C. Produto: 510 111 004
P. 288 Realização de ecografia
Leandro Vale 1.a Edição
Laura Lee Harris P. 188 Torre dos Clérigos, 2011 5.a Tiragem
CAPA  Ashima-Endless, Limitless, without
Malcolm Evans Depósito Legal: 361341/13
Boundaries
P. 65 Cartoon Cruel Culture
© Mark Rothko, ARS, 2013
Unicef
P. 200 Número 5/Número 22, 1950
P. 158 Campanha de apelo à educação das
Museu Arqueológico de Florença ©2012 mulheres islâmicas
Photo Scala
P. 9 Vaso grego

©René Magritte, ADAGP, Paris et SPA 2013 A cópia ilegal viola os direitos dos autores.
P. 24 Clarividência, 1936 Os prejudicados somos todos nós.

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