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*510111004*
Filosofia
10. Filosofia
ano
C. Produto
Faustino Vaz e Luís Veríssimo
Consultores científicos: Adriana Silva Graça (FLUL) e João Cardoso Rosas (UMinho)
Filosofia
Componentes do projeto:
Manual do aluno
Caderno de atividades
Livromédia
Entrada de unidade
Unidade
2 Organização do manual
Conceitos e definições
importantes em destaque.
Filosofia 3
I INICIAÇÃO À ATIVIDADE
FILOSÓFICA 6
TEMA
1 Abordagem introdutória
4 A vida moral: noções introdutórias 100
Unidade Unidade
à filosofia e ao filosofar 8
TEMA
5 A ética utilitarista
de John Stuart Mill 117
6 A ética deontológica
Unidade
de Immanuel Kant 132
4 Índice
10
7.1.1 A desobediência civil 159 Unidade A religião e o sentido da existência 236
7.2 A teoria da justiça como equidade
de Rawls 160
7.2.1 Os princípios de justiça 161
10.1 O problema do sentido
7.2.2 Uma avaliação crítica
da existência 239
da teoria de Rawls 173
10.1.1 Finitude e sentido 239
7.3 Igualdades e diferenças 177
10.1.2 Sentido, finalidade e valor 240
TESTE FORMATIVO 7 180
10.1.3 A resposta religiosa (teísta)
para o problema do sentido
da existência 244
TESTE FORMATIVO 10 254
TEMA
IV A DIMENSÃO ESTÉTICA
DA AÇÃO HUMANA E DOS VALORES 182
VI
8.3.3 A experiência estética: TEMA PROBLEMAS DO MUNDO
definição centrada CONTEMPORÂNEO 282
no conteúdo 199
8.3.4 O objetivismo estético 202
TESTE FORMATIVO 8 206
I INICIAÇÃO À ATIVIDADE
FILOSÓFICA
1 Abordagem introdutória
à filosofia e ao filosofar
1.1 O que é a filosofia?
1.1.1 Os problemas da filosofia
1.1.2 As disciplinas da filosofia
No fim desta unidade, deverá ser capaz de responder Os conceitos seguintes, que são centrais nesta unidade,
às seguintes questões: são definidos no fim do livro:
Como surgem os problemas filosóficos? análise conceptual experiência mental
Quais são os problemas e as disciplinas fundamentais da argumento inconsistência
filosofia? cogência solidez
O que determina se uma teoria filosófica é melhor conceito validade
do que outra?
Como se faz filosofia?
Introdução
Gostaríamos que estudar filosofia fosse estimulante, que percebesse e sentisse a importância dos problemas filosóficos. Das respostas que
lhes dermos resultará uma noção do que somos e do que deveríamos ser; do lugar que ocupamos e do lugar que deveríamos ocupar no
universo; da sociedade que construímos e da sociedade que deveríamos construir. Isto significa que a filosofia ajuda a compreender
e também a avaliar o que somos, o nosso lugar no universo e a sociedade. Para que a filosofia cumpra esse papel, é indispensável que
todos usem as ferramentas que ela nos oferece. Nesta unidade introdutória, iremos mostrar como se desenvolve a atividade filosófica.
E fazêmo-lo porque gostaríamos, desde logo, que ficasse com uma noção clara da dimensão prática da filosofia. A partir daí será mais fácil
que participe com proveito na atividade de fazer filosofia.
8 Unidade 1
A máquina humana
A Marta passava grande parte do dia na escola. — Imagina que uma parte do teu cérebro fica doente
Chegava a casa apenas por volta das seis da tarde. e perdes a visão. Felizmente, uma nova técnica per-
Gostava de regressar a um lugar que era seu, mas ulti- mite que passes a ver outra vez: os médicos tiram do
mamente andava a sentir uma solidão que a deixava teu cérebro a parte doente e substituem-na por um
inquieta. Não tinha com quem conversar. Só duas chip muito pequenino, de silicone.
horas depois de chegar a casa podia ter a companhia
— E passo a ver outra vez? Assim, sem sentir qual-
dos seus pais.
quer diferença? — perguntou a Inês.
No autocarro, ainda podia conversar com a sua amiga
— Isso mesmo! Estarás como nova — respondeu a
Inês. Apesar do barulho do trânsito e das paragens
Marta. Em seguida, desenvolveu a ideia: — Uns anos
constantes, esse era um momento bom. Mas durava
mais tarde, uma outra parte do teu cérebro fica
apenas um bocadinho. Naquele dia, mal entrou no
doente. Deixas de te lembrar dos nomes das pessoas e
autocarro, a Marta contou à sua amiga que chegava a
das coisas. Felizmente, mais uma vez, a ciência está
casa e se sentia só. A meio da conversa, teve uma ideia
preparada para te resolver o problema. É retirada do
em que nunca tinha pensado.
teu cérebro a parte que deixou de funcionar e outro
— Inês, e se eu tivesse um computador com quem chip muito pequenino permite que te lembres nova-
pudesse conversar? — perguntou. mente dos nomes.
A Inês não estava a ver muito bem onde a Marta que- — Compreendo. E, mais uma vez, não sinto qualquer
ria chegar. E disse: diferença em relação ao que era antes, certo? —
perguntou a Inês, que começava a entender o argu-
— Conversar como? O computador tem sentimentos
mento da Marta.
como nós, é isso?
— Certo — disse a Marta.
— Sim, tem sentimentos. Por isso, compreende o que
sentimos e pode conversar connosco. — Já estou a ver — observou a Inês. E foi ela a
desenvolver o argumento: — Depois, outras partes
A Inês interrompeu:
do meu cérebro ficam doentes e vão sendo substituí-
— Estás a sonhar! Isso não é possível. das. Até que, finalmente, todo o meu cérebro foi
— Os computadores são capazes de fazer tantas coi- substituído. É isso?
sas! Não me digas que nunca haverá um computador
capaz de ter uma conversa! — retorquiu a Marta.
— Duvido. Mesmo que pudesse conversar, não enten-
deria realmente o que dizia. Era como se falasse sem
ter consciência do que dizia. Quando ouvisse certas
palavras, estaria simplesmente programado para dizer
outras — afirmou a Inês.
— Queres dizer que um computador nunca poderá Fig. 1 — Vaso grego (século vi a. C.), de Ergotimos e Cleitias.
ter uma mente como a nossa? — perguntou a Marta. Segundo a lenda, Teseu tinha um navio feito de pregos e
tábuas de madeira. À medida que iam ficando velhas, as várias
— Claro que não! — respondeu a Inês. partes do navio foram sendo substituídas. Com o passar do
tempo já não resta nenhuma das peças originais do navio.
A Marta ficou a pensar. Não parecia muito conven- Será que podemos dizer que se trata do mesmo navio?
cida. Até que teve uma ideia:
A Inês estava a gostar da conversa. Depois, observou: A Inês viu que daí a pouco teria de sair.
— Pois… Se calhar, um dia nada irá distinguir uma — Falaste em chegar a casa, e já estamos mesmo ao pé
mente como a nossa de um cérebro de um computador. da minha! Foi boa esta conversa. Espero que hoje te
sintas menos só quando entrares em casa. Até amanhã!
— É o que eu penso — concordou a Marta. —
Imagina uma máquina que fala e se comporta como Quando chegou a casa, a Marta tentou imaginar como
os seres humanos. Como podemos distingui-la seria ter um robô inteligente à espera dela. Uma das
de nós? Não estou a ver o que é que, nesse caso, nós coisas em que pensou foi na relação que deveria ter com
teríamos a mais do que ela. ele. Que direitos ele teria? Seria assassínio matá-lo?
Seria cruel causar-lhe dor? Em todo o caso, achou que
A Inês continuava com aquele ar distante de quem saberia resolver essas questões. Agradava-lhe a ideia
pensava no problema. Havia qualquer coisa que não de fazer amizade com uma máquina humana.
batia certo. De repente, percebeu o que era. E disse:
Inspirado na obra Problemas da Filosofia, de James Rachels,
e na obra Core Questions in Philosophy, de Elliott Sober.
Guião de leitura
3 Apresente as razões da Inês contra a ideia de que um cérebro artificial pode ser igual ao nosso.
4 Identifique algumas descobertas relevantes que a ciência terá de fazer para criar uma máquina humana.
5 Formule alguns problemas que poderiam ocorrer entre humanos e máquinas humanas.
Fazer filosofia
2 Faça uma pesquisa sobre os avanços realizados até ao momento na área de investigação conhecida como inteligência artificial.
10 Unidade 1
1.1.1 Os problemas da filosofia
Num certo momento da sua evolução, ninguém
sabe exatamente quando, a espécie humana
deu consigo a fazer certas perguntas. E cada um
de nós, a dada altura, surpreende-se também a
fazer as mesmas perguntas. Elas parecem ter
uma grande vitalidade. É, assim, muito natural
que as façamos. São tão naturais e familiares
que não precisamos de um treino especial para
as fazermos, nem conseguimos imaginar uma
existência humana sem elas.
Um filósofo descreveu o momento em que as
fazemos como um momento de espanto face ao
universo e ao nosso lugar nele. Mas é também
nesse momento que perdemos a inocência
que seria existir sem que essas perguntas nos
ocorressem. A partir daí não é possível fingir
que nada de importante se passou, e sobretudo
que não faz diferença procurar responder-lhes.
No gesto natural de fazer as perguntas ditadas
por esse momento de espanto, começamos
então a pensar filosoficamente. É por isso que,
num certo sentido, todos estamos já na filosofia. Fig. 2 — Um Filósofo em Meditação (1632), de Rembrandt.
Que perguntas são essas que nos fazem estar já Porque a filosofia é sobretudo uma atividade, perceberemos melhor o que
na filosofia? ela é a partir do que ela faz.
Problema Em que consiste? Experiência que nos leva a colocar este problema
12 Unidade 1
1.1.2 As disciplinas da filosofia
Conhecidos os problemas fundamentais da filosofia, podemos agora saber
quais são as disciplinas filosóficas fundamentais que procuram responder-
-lhes e as suas subdisciplinas. A axiologia é a disciplina que enfrenta os
problemas sobre o que é valioso e bom. As suas subdisciplinas mais
importantes são a ética, que estuda os valores morais, e a estética, que
estuda os valores estéticos. A metafísica estuda os problemas
sobre o que é real. A filosofia da mente, a filosofia da linguagem
e a filosofia da religião, por exemplo, são disciplinas filosóficas
que investigam o que é real nos domínios de que se ocupam.
Entre outras coisas, pretendem, respetivamente, saber que
tipo de existência têm certos fenómenos mentais, o que
é a relação de referência ao mundo da linguagem ou se Deus
existe. A epistemologia trata do problema fundamental
do conhecimento. A sua subdisciplina mais conhecida
é a filosofia da ciência, que procura saber, por exemplo,
se o conhecimento científico é objetivo e como são
justificadas as teorias científicas. Mas precisamos de Fig. 3 — A Cidade das Gavetas (1936), escultura de Salvador Dalí.
saber também como conhecemos e justificamos os A filosofia subdivide o seu campo de estudo em disciplinas,
valores morais; a isso se dedica a epistemologia moral. para organizar a investigação.
Estuda problemas relacionados com os aspetos mais • Que tipos de entidades há?
Metafísica gerais da estrutura da realidade. • Haverá verdades necessárias?
Procura investigar que tipos de entidades existem. • Será que temos livre-arbítrio?
Atividades
1 As questões filosóficas podem ser metafísicas, epistemológicas, éticas ou lógicas, ou do campo da filosofia da ação, da filosofia
política, da filosofia da religião, da filosofia da ciência, da estética, entre outros. Por sua vez, as questões não filosóficas podem ser
consideradas científicas, factuais ou históricas, técnicas, económicas ou outras.
1.1 De acordo com o exemplo, faça o devido enquadramento de cada uma das questões que seguidamente se apresentam:
a) Serão as teorias científicas objetivamente verdadeiras? — filosófica/filosofia da ciência
b) As nossas ações estão causalmente determinadas pelos acontecimentos anteriores e pelas leis da natureza?
c) Como funciona o cérebro humano?
d) Como podem os estados diminuir o desemprego?
e) Legalmente, pode-se abortar em Portugal?
f) Será o aborto moralmente permissível?
1.2 Compare as questões e) e f ). O que há de comum entre elas? E o que há de diferente?
Debate
Esboce a sua filosofia a respeito de três problemas filosóficos do conjunto de problemas apresentado, dizendo, por exemplo, que posição
tomaria acerca do problema da justiça distributiva ou da liberdade.
14 Unidade 1
Cada uma destas atividades, por sua vez, recorre a ferramentas próprias
que se têm revelado proveitosas.
Não há um repertório previamente definido de ferramentas. Isto quer dizer
Fig. 4 — Filosofia (1511), de Rafael Sanzio.
que, na prática da filosofia, não há algo que se pareça com um método.
Esta alegoria da filosofia segura nas suas
É o que afirma o texto seguinte: mãos dois livros intitulados Natureza e Moral
e é ladeada pela inscrição causarum cognitio,
Texto 1 que significa «conhece as causas».
Parte importante do trabalho filosófico pode
Há quem se interrogue sobre se há na filosofia um método para ser estudado […]. ser descrita deste modo: conhecer as causas
Esquece a ideia de um método único, usado em todo o pensamento filosófico e só aí. (o «porquê?») das nossas crenças.
Os filósofos, no entanto, usam vários tipos de métodos: eles filosofam de várias maneiras.
A metodologia da comunidade filosófica é o seu repertório destes métodos. A palavra
«método» aqui não implica um algoritmo mecanicamente aplicável que garante um
resultado num tempo finito.
TimoThy Williamson, The Philosophy of Philosophy.
Ed. Blackwell, 2007, p. 3.
Texto 2
Ainda considerei usar no título a expressão «método filosófico», mas decidi em sentido
contrário na base de que isso parecia prometer, mais do que eu acredito ser possível,
uma espécie de receita para fazer filosofia.
Quando numa certa ocasião lhe pediram conselho, conta-se que o duque de Wellington
respondeu: «Sir, está metido em grandes apuros, e tem de se livrar deles o melhor que
puder.» O meu conselho dificilmente poderia ser mais útil. No ponto crucial, apenas
posso dizer: «Use o seu próprio juízo.»
TimoThy Williamson, The Philosophy of Philosophy.
Ed. Blackwell, 2007, prefácio.
Validade
Em primeiro lugar, um bom argumento tem de ser válido. Vejamos dois
exemplos de argumentos válidos:
Argumento 1
(1) Se a alma é imortal, pensar não depende da atividade do cérebro.
(2) Ora, a alma é imortal.
(3) Logo, pensar não depende da atividade do cérebro.
Argumento 2
(1) Se a alma é imortal, pensar não depende da atividade do cérebro.
(2) Pensar, no entanto, depende da atividade do cérebro.
(3) Logo, a alma não é imortal.
Por que razão argumentos rivais como os apresentados acima são ambos
válidos? O que acontece é que a conclusão de cada um se segue logica-
mente das premissas.
16 Unidade 1
Cogência
Um outro pormenor é decisivo para avaliarmos até que ponto um argu-
mento pode ser promissor. O contraste entre dois novos argumentos
ajudará a tornar saliente esse pormenor. Os argumentos são os seguintes:
Argumento 3
(1) Se Deus é o dono da vida, então a pena de morte é errada.
(2) Deus é o dono da vida.
(3) Logo, a pena de morte é errada.
Argumento 4
(1) Se há pessoas que estão sujeitas a desigualdades pelas quais não são
responsáveis, então merecem ser compensadas através de ajudas
proporcionadas pelo Estado.
(2) Há pessoas que estão sujeitas a desigualdades pelas quais não são
responsáveis.
(3) Logo, essas pessoas merecem ser compensadas através de ajudas
proporcionadas pelo Estado.
Atividades
1 Das três noções estudadas — validade, solidez e cogência — identifique aquela que é sugerida por cada uma das seguintes
afirmações:
A — Tudo o que o argumento afirma é verdade.
B — O raciocínio está impecavelmente construído.
C — O mérito do argumento é ter organizado muito bem as ideias que pretendia transmitir.
D — Não se vê como é possível recusar as premissas do argumento.
E — É um facto que as coisas se passam como o argumento diz.
F — Qualquer pessoa sensata estará na disposição de aceitar o argumento.
2 Por que razão é importante que, além de válido, um argumento seja sólido?
3 Por que razão é importante que, além de sólido, um argumento seja cogente?
18 Unidade 1
Argumento 5
(1) Se chove, então o piso está escorregadio.
(2) É um facto que o piso está escorregadio.
(3) Logo, chove.
Argumento 6
(1) Se chove, então o piso está escorregadio.
(2) É um facto que não chove.
(3) Logo, o piso não está escorregadio.
Argumento 7
(1) O bem deve ser promovido.
(2) O bem, além disso, consiste em ter qualidade de vida.
(3) Logo, a qualidade de vida deve ser promovida.
Argumento 8
(1) Aqueles que são contra quotas de representação política
e institucional para as mulheres revelam sem querer
as suas motivações machistas.
(2) Logo, é errado ser contra quotas de representação para as mulheres.
Atividades
1 Explique o erro lógico de cada uma das falácias seguintes e identifique-o como formal ou informal.
A — Se Manuel Vasques anseia por dar o seu depoimento, então é inocente. Mas ele não anseia por esse momento. Logo,
não é inocente.
B — A ideia do Pedro é o resultado de muitos anos de experiência. Logo, tem de ser verdadeira.
C — Se o Banco de Portugal baixar as taxas de juro, então é fácil emprestar dinheiro. Verifica-se que é fácil emprestar dinheiro.
Logo, o Banco de Portugal baixou as taxas de juro.
D — Todos acham que a competição gera progresso. Logo, seria estranho que não fosse verdade que a competição gera
progresso.
20 Unidade 1
A análise conceptual
Em muitos casos, a análise conceptual é simples e não gera qualquer discus-
são. Tratando-se de conceitos fundamentais, como aqueles que os problemas
filosóficos implicam, tudo muda de figura. Vejamos, respetivamente, um
exemplo simples e um exemplo complexo de análise conceptual.
Fig. 8 — Cartaz de uma campanha contra a pobreza. As pessoas que discordam teriam a obriga-
Numa sociedade justa, as vítimas de pobreza não deveriam ser abandonadas
ção de apresentar uma análise alternativa do
à sua sorte. conceito. Essa análise poderia ser a seguinte:
22 Unidade 1
Atividades
1 A análise de conceitos é particularmente útil quando se faz filosofia. Esclareça esta afirmação.
2 Será que, por fornecer respostas conceptuais, a filosofia não informa acerca da realidade?
24 Unidade 1
A experiência mental
A experiência mental é talvez a mais importante ferramenta da atividade
filosófica de imaginar. Trata-se de uma situação imaginária, mais ou menos
distante da realidade, concebida para testar se um conceito ou uma teoria são
corretos. Iremos agora mostrar como se desenvolve esse teste recorrendo a
dois exemplos de experiências mentais.
No primeiro exemplo, a que chamaremos máquina de experiências, será tes-
tado um conceito de bem. O segundo exemplo testa um conceito de ação
racional; é conhecido como dilema do prisioneiro.
Problema e conceito
Experiência mental Teste
que responde ao problema
O que é o bem? Experiência mental que apresenta a situação imaginária de alguém que
Máquina O bem consiste na felicidade, medida pode ligar-se a uma máquina capaz de fornecer todas as experiências
de experiências em termos de estados mentais mentais de prazer que desejar; a ligação à máquina é definitiva; a pessoa
de prazer e ausência de dor. acredita que vive de facto essas experiências de prazer.
Testar inconsistências
A atividade filosófica de imaginar é igualmente útil quando se trata de tes-
tar a consistência das nossas crenças e princípios. Esse teste consiste em
averiguar se as nossas crenças podem ser verdadeiras ao mesmo tempo.
Por exemplo, se alguém acredita que os atos homossexuais são condenáveis
porque não são naturais, é útil imaginar outras crenças que essa pessoa,
para ser consistente, deveria adotar. Uma delas poderia ser a crença de que
cantar ópera, por essa razão, é também condenável. Se essa pessoa adotar
a crença referida acerca da homossexualidade, mas não a crença acerca de
cantar ópera, comete o erro de ser inconsistente, pois essas crenças não
podem ser verdadeiras ao mesmo tempo. Alguma coisa terá de ser feita no
conjunto das suas crenças. Parece que, pelo menos, uma das crenças terá
de ser revista.
Um outro caso de inconsistência poderia ser este. Alguém é pacifista por-
que tem como um dos seus princípios últimos o princípio da santidade da
vida. Segue-se desse princípio que tirar uma vida é errado, seja qual for o
caso. Em seguida, poderíamos imaginar que posição tem essa pessoa acerca
do aborto. Se ela defender, por exemplo, que o aborto é permissível até às
vinte semanas, algo de errado parece passar-se.
Não se vê como pode esta posição ser compatível com o seu pacifismo.
Estes dois casos de inconsistência mostram que é importante imaginar o
que se segue das nossas crenças e princípios. Se não o fizermos, poderemos
julgar que temos certos princípios quando, afinal, isso não é assim tão
claro.
Atividades
26 Unidade 1
Texto 3
Do uso das ferramentas que formam o ideal socrático pode depender a qua-
lidade da sua vida. Todos estamos já na filosofia. Conscientes disso ou não,
todos temos já uma perspetiva do que é real e valioso e de como obtivemos
conhecimento do que é real e valioso. Essas nossas perspetivas filosóficas
influenciam as decisões que tomamos. Ora, se não as avaliarmos, fazendo
filosofia com as ferramentas de que dispomos, não saberemos até que ponto
elas são viáveis. E também não saberemos, por consequência, se as nossas
decisões são as mais acertadas. Este manual, por essa razão, é um convite
permanente a que faça filosofia.
Abordagem introdutória à filosofia e ao filosofar 27
• As disciplinas fundamentais da filosofia são a metafísica, a • A atividade filosófica fornece explicações conceptuais e a
lógica, a epistemologia e a axiologia. atividade científica fornece explicações causais.
• As atividades centrais da prática filosófica são as atividades • A atividade de imaginar é importante na prática filosófica
de argumentar, analisar e imaginar. porque permite testar as teorias filosóficas.
• A prática filosófica não se apoia num método, mas num • A experiência mental é uma ferramenta central da atividade
repertório de ferramentas que não está previamente defi- de imaginar, pois sujeita as teorias filosóficas ao teste de situa-
nido. ções imaginárias, para averiguar se são verdadeiras.
• Em filosofia, dado que não há resultados garantidos por • As teorias filosóficas mais recentes resultam de modificações
métodos de aplicação mecânica, cada um tem de fazer o seu para responder ao teste da experiência mental.
próprio juízo sobre o problema. • A atividade de imaginar é igualmente útil para testar a con-
• A atividade de argumentar educada responde à exigência de sistência das nossas crenças.
raciocinar bem. • As atividades filosóficas de argumentar, analisar e imaginar
• Os argumentos podem ser válidos, sólidos e cogentes. são complementares, contribuindo para um resultado final
superior ao que conseguiriam isoladamente.
Leituras:
Almeida, Aires (org.) — Dicionário Escolar de Filosofia. Lisboa: Plátano Editora, 2.ª edição, 2009.
Kolack, Daniel e Martin, Raymond — Sabedoria sem Respostas: Uma Introdução Concisa à Filosofia. Lisboa: Temas e Debates,
2004 [ed. original 2002].
Nagel, Thomas — Que Quer Dizer Tudo Isto?: Uma Iniciação à Filosofia. Lisboa: Gradiva, 1995 [ed. original 1987].
Rachels, James — Os Problemas da Filosofia. Lisboa: Gradiva, 2009 [ed. original 2005].
Warburton, Nigel — Elementos Básicos de Filosofia. Lisboa: Gradiva, 1998 [ed. original 1995].
28 Unidade 1
Filosofia
investiga
Como devemos viver?
Três problemas
O que existe?
fundamentais
Três atividades
complementares
Permitem chegar
à verdade acerca
dos problemas
fundamentais.
Filmes:
Matrix (1999), realizado pelos irmãos Wachowsky.
Waking Life (2001), realizado por Richard Linklater.
Páginas da Internet:
http://criticanarede.com/fil_especificidade.html (artigo «A Especificidade da Filosofia», de Desidério Murcho).
http://criticanarede.com/logefil.html (artigo «Lógica e Filosofia», de Desidério Murcho).
3. A
s perguntas filosóficas resultam de uma atitude de espanto face à natureza enigmática
do mundo.
5. C
omeçamos a pensar filosoficamente quando temos respostas para certos problemas.
6. É possível imaginar uma existência humana que não faz perguntas filosóficas.
7. No sentido em que põem naturalmente certos problemas, os seres humanos estão
já na filosofia.
8. O
s problemas filosóficos fundamentais são três e dizem respeito ao modo como devemos
viver, ao que existe e ao conhecimento.
9. A
s disciplinas filosóficas fundamentais são as seguintes: axiologia, metafísica
e epistemologia.
10. A
lógica é uma disciplina filosófica fundamental.
11. F
azer filosofia envolve apenas duas atividades: a atividade de argumentar e a atividade
de analisar.
12. F
azer filosofia envolve geralmente as atividades de argumentar, imaginar e analisar.
13. A
s atividades que fazem parte da prática filosófica desenvolvem-se de modo autónomo.
14. E
xiste, em filosofia, um método.
15. N
a atividade filosófica não existe um método, mas um repertório de ferramentas que não
está previamente definido.
16. N
a atividade filosófica existe um método de aplicação mecânica que garante certos
resultados, dispensando-nos de fazer o nosso próprio juízo sobre os problemas.
17. A
s teorias filosóficas apoiam-se na experimentação.
18. U
m argumento é formado por premissas e por uma conclusão.
19. A
s premissas de um argumento formam a teoria que ele defende.
20. A
s premissas de um argumento são as razões que sustentam uma teoria filosófica.
21. A
conclusão de um argumento exprime a teoria defendida.
22. A
s noções de validade e de solidez são as ferramentas da atividade de argumentar.
23. A
noção de cogência e a deteção de falácias fazem parte das ferramentas da atividade
de argumentar.
24. P
ara ser uma defesa racional de uma teoria, um argumento terá de ser válido, sólido
e cogente.
25. U
m argumento válido é um argumento que tem premissas verdadeiras.
26. U
m argumento válido é um argumento em que a conclusão se segue das premissas.
27. S
e um argumento não for válido, não pode ser sólido.
30 Unidade 1
29. U
m argumento sólido, dado que tem premissas verdadeiras, é sempre plausível.
30. U
m argumento cogente é um argumento sólido com premissas mais plausíveis do que
a conclusão.
31. U
m argumento cogente pode não ser persuasivo.
32. P
ara determinar se um argumento é cogente ou não, é preciso avaliar a plausibilidade
das premissas.
33. A
plausibilidade das premissas é independente das pessoas.
34. U
ma falácia é um argumento visivelmente mau.
35. U
ma falácia é um argumento mau que pode parecer-nos bom.
36. U
ma falácia formal é um erro lógico na estrutura do argumento.
37. Uma falácia informal é um erro lógico que depende do modo como o argumento está
construído.
38. A
análise conceptual responde à exigência de pensar de modo rigoroso.
40. A
análise conceptual tem a finalidade de estabelecer de forma precisa as fronteiras
dos conceitos.
41. U
m conceito correto é um conceito corretamente analisado.
42. A
análise conceptual é especialmente importante em filosofia porque os conceitos
investigados em filosofia, por serem fundamentais, têm fronteiras difíceis de definir.
43. A
atividade filosófica fornece respostas causais.
44. A
atividade científica fornece respostas causais.
45. D
uas importantes ferramentas da atividade filosófica de imaginar são as experiências mentais
e os testes de inconsistência.
46. A
s experiências mentais são situações reais.
47. A
s experiências mentais são situações imaginárias que testam a aplicação de conceitos
e teorias apenas nos casos reais.
48. A
s experiências mentais são situações imaginárias que testam a aplicação de conceitos
e teorias em todos os casos concebíveis.
49. T
estar inconsistências consiste em imaginar se temos crenças que podem ser verdadeiras
ao mesmo tempo.
50. T
estar inconsistências consiste em imaginar se temos crenças que não podem ser verdadeiras
ao mesmo tempo.
F; 34. F; 35. V; 36. V; 37. F; 38. V; 39. F; 40. V; 41. V; 42. V; 43. F; 44. V; 45. V; 46. F; 47. F; 48. V; 49. F; 50. V.
1. F; 2. F; 3. V; 4. V; 5. F; 6. F; 7. V; 8. V; 9. F; 10. V; 11. F; 12. V; 13. F; 14. F; 15. V; 16. F; 17. F; 18. V; 19. F; 20. V; 21. V; 22. F; 23. V; 24. V; 25. F; 26. V; 27. V; 28. F; 29. F; 30. V; 31. F; 32. V; 33.
SOLUÇÕES:
2 A ação humana:
análise e compreensão do agir
2.1 A rede conceptual da ação
2.1.1 O que é uma ação?
2.1.2 Deliberação
2.1.3 Decisão racional
No fim desta unidade, deverá ser capaz de responder Os conceitos seguintes, que são centrais nesta unidade,
às seguintes questões: são definidos no fim do livro:
O que é uma ação? ação deliberação
Que tipos de causalidade existem? agente desejo
Em que consistem a deliberação e a decisão racional? causalidade determinismo
Em que consiste o problema do livre-arbítrio? causalidade do agente incompatibilismo
Que respostas ao problema do livre-arbítrio são (ou intencional) intenção
apresentadas? causalidade natural libertismo
Que argumentos sustentam essas respostas? compatibilismo livre-arbítrio
Que objeções enfrentam esses argumentos? decisão racional motivo
Introdução
O que é uma ação? Haverá uma diferença relevante entre as ações e outras coisas que fazemos ou que simplesmente acontecem? E, se
há, qual é? Ações são acontecimentos. Como devemos explicá-las? Será a maneira como explicamos os acontecimentos naturais ade-
quada à explicação das ações? Possivelmente não, se houver uma diferença relevante entre acontecimentos que são ações e aconteci-
mentos que não são ações. A filosofia da ação procura resolver este problema.
Argumentos e explicações são coisas diferentes. Argumentar a favor de uma ação é uma tentativa de a justificar. Explicá-la é simplesmente
uma tentativa de compreender porque ocorreu. Saber qual é a explicação adequada das ações é um problema de que se ocupa a filoso-
fia da ação. É dele que trataremos em primeiro lugar.
Em seguida, um outro problema merecerá a nossa atenção — o de saber se há ações livres e se somos, na verdade, livres. Na maior parte
do tempo, acreditamos que sim, mas acreditamos também que tudo tem uma causa. Ora, estas duas crenças parecem inconsistentes: não
parece possível que ambas sejam verdadeiras. Isto porque se tudo tem uma causa, também as ações que acreditamos serem livres têm
uma causa; e, nesse caso, essas ações não são livres; mas, por outro lado, se há ações livres, então não pode ser verdade que tudo tem uma
causa. Em que ficamos então?
34 Unidade 2
Guião de leitura
3 Apresente a razão pela qual Deep defende a sua condenação à morte e a razão pela qual Mary defende a sua reabilitação.
4 Refira e justifique se é a posição de Mary ou a de Deep que apoia mais a ideia de que temos a capacidade de agir livremente.
Fazer filosofia
1 Debata com toda a turma o seguinte problema: Qual é a resposta mais justa ao crime e, em geral, às violações dos direitos
básicos das pessoas?
2 Se defende que a pena de morte é a retribuição justa para certos casos, justifique a sua posição e identifique esses casos.
36 Unidade 2
2.1.1 O que é uma ação?
Saber o que é uma ação é um problema conceptual. Podemos
observar pessoas a agir, mas a observação, por si só, não nos permite
distinguir as ações de outras coisas que podem parecer ações,
mas não o são. Para isso, precisamos de uma definição explícita
correta de ação.
Temos uma definição explícita correta de triângulo, por exemplo,
se somos capazes de dizer não só quais são as propriedades que
todos os triângulos têm, mas também quais são as propriedades
que só os triângulos têm; ou, simplificadamente, quais são as
condições necessárias e suficientes para algo ser um triângulo.
Analogamente, teremos uma definição explícita correta de ação se
formos capazes de dizer quais são as propriedades que todas
as ações têm e só as ações têm; isto é, as condições necessárias
e suficientes para algo ser uma ação. Fig. 2 — Acidente (Autorretrato) (1936),
de A. Ponce de León.
Imagine que a pessoa sentada a seu lado, no cinema, está a tossir
Ter um ataque de tosse é, tal como sofrer um acidente,
de maneira aparentemente irreprimível. A situação é desconfor- algo que nos acontece; por outro lado, simular um ataque
tável. Mas há uma diferença significativa entre a pessoa a quem de tosse ou provocar um acidente são coisas que fazemos.
sucede ter um ataque de tosse e a pessoa que simula ter um ataque
de tosse: no primeiro caso, algo simplesmente acontece, e não parece que
haja muito a fazer acerca disso; o segundo caso, porém, envolve claramente
algum propósito ou intenção. Não parece plausível que uma simulação
simplesmente aconteça. Imagine agora que sabe que a pessoa sentada a seu
lado quer tossir de maneira irreprimível. É provável que deseje saber por que
razão essa pessoa o faz. Haverá certamente uma razão para isso. Tossir de
maneira irreprimível simplesmente porque se quer, sem uma razão para o fazer,
seria uma expressão de irracionalidade.
Uma boa razão para distinguir as ações de outras coisas que não são ações,
embora possam parecê-lo, é a necessidade que temos de explicar por que
motivo fazemos certas coisas querendo fazê-las. Gostamos de acreditar
que somos racionais. Se somos racionais, então deveremos ter a possibili-
dade de agir por razões e de apresentar as razões que nos levam a agir, se
for o caso; se não formos capazes de fazer uma coisa ou outra, então a
crença na nossa racionalidade enfraquecerá consideravelmente. Além disso,
a crença na nossa racionalidade sustenta a crença de que somos livres:
dado que pensamos, deliberamos, ponderamos consequências, escolhemos
agir ou não agir em função de razões, etc., temos tendência a acreditar que
somos livres. Se escolhemos fazer algo livremente, então o que quer
que façamos não teria acontecido se não tivéssemos querido fazê-lo; logo,
dizemos, somos responsáveis por aquilo que fazemos querendo fazê-lo.
No entanto, nem sempre as coisas são assim tão simples: por vezes, parece-nos
que não poderíamos ter feito algo diferente do que fizemos, dadas as
circunstâncias. Quando refletimos sobre o que fazer, quando deliberamos,
pesando razões a favor e contra uma certa ação, parece-nos que a decisão
acerca do que fazer está sob o nosso controlo; que podemos agir de uma
maneira ou de outra, conforme quisermos, mas quando pensamos retros-
petivamente, quando regressamos mentalmente às nossas ações e aos con-
textos em que ocorreram, parece-nos, por vezes, que não poderíamos ter
agido de maneira diferente: fizemos o que tínhamos de fazer.
A diferença significativa entre a bola que toca na mão e a mão que toca na
bola é a intencionalidade. A bola não é um agente; e, portanto, não pode
tocar na mão — nem fazer seja o que for — intencionalmente. Logo, a bola
que toca na mão é um acontecimento, mas não é uma ação. Mas a mão que
toca na bola pode ser uma ação, desde que seja intencionalmente realizada
por um agente.
38 Unidade 2
Texto 1
Uma ação intencional é aquela que uma pessoa pratica e pretende Mas estes não são acontecimentos que eu leve a cabo intencional-
praticar — como quando desço para o andar de baixo ou digo algo mente. Limitam-se a acontecer — posso nem sequer saber da sua
que pretendo dizer. Uma ação básica é aquela que a pessoa faz direta existência.) […]
e intencionalmente, sem levar a cabo nenhuma outra ação intencio-
Só posso produzir efeitos no mundo fora do meu corpo fazendo
nal. Ir de Oxford para Londres é uma ação não básica, porque a levo
algo de intencional com o meu corpo. […] Quando realizo uma ação
a cabo fazendo outras coisas — indo até à estação, entrando no
intencional qualquer, procuro com ela atingir um certo propósito
comboio, etc. —, mas apertar a minha mão ou mexer a minha perna
— normalmente um propósito para além da mera realização da pró-
ou mesmo dizer «isto» são ações básicas. Faço-as diretamente, sem
pria ação (como quando canto só por cantar).
levar a cabo outro ato intencional. (Com certeza que certos aconte-
cimentos têm de ocorrer no meu corpo — os meus sentidos têm de RichaRd SwinbuRne, Será Que Deus Existe? Lisboa:
transmitir impulsos — para que eu consiga realizar uma ação básica. Gradiva, 1998 [ed. original 1996], pp. 12-13.
A ideia de causalidade
Explicar uma ação é dizer por que razão aconteceu; e a razão por que uma
certa ação aconteceu é a intenção — os desejos e as crenças relevantes —
do agente. A maneira adequada de descrever uma ação é a que exprime
a ligação causal entre o acontecimento e a intenção do agente. Mas o que
queremos dizer exatamente com «ligação causal»?
Acreditamos habitualmente que qualquer acontecimento tem uma causa.
Acreditamos, por exemplo, que a queda dos corpos é causada pela gravi-
dade: a gravidade é a causa, a queda do corpo é o efeito. Sempre que
a causa atua, o efeito acontece. Pensamos, por isso, que há uma relação
de um certo tipo entre a gravidade e a queda dos corpos. A esse tipo de
relação chamamos «ligação causal».
A ação humana: análise e compreensão do agir 39
Ação
Causalidade natural e causalidade do agente
Falamos de causalidade quando procuramos explicar uma ação; também
falamos de causalidade quando queremos explicar um acontecimento natu-
envolve
ral. Uma carícia e uma trovoada são causadas: a primeira por um agente; a
segunda por acontecimentos anteriores e pelas leis da natureza. Mas serão
Agente
causadas da mesma maneira? Ou estaremos, em casos diferentes, a usar a
mesma palavra para referir coisas diferentes? Deveremos distinguir a cau-
Intencionalidade
salidade natural da causalidade do agente, ou será a mesma coisa?
40 Unidade 2
Texto 3
Alguns pensadores afirmaram que as pessoas e os seus propósitos não fazem diferença
nenhuma: os acontecimentos cerebrais causam (e são causados por) outros aconteci-
mentos nervosos e produzem movimentos corporais sem que as pessoas e os seus pro-
pósitos façam qualquer diferença. Mas ninguém consegue pensar consistentemente
desta maneira. Ter o propósito […] de mexer a própria mão ou qualquer outra coisa
implica tentar mexer a mão. E nós sabemos muito bem que se deixássemos de ter pro-
pósitos e de tentar executá-los, nada aconteceria; deixaríamos de comer, de falar, de
escrever e de andar como agora acontece. O que tentamos alcançar desempenha um
papel determinante relativamente ao que acontece.
RichaRd SwinbuRne, Será Que Deus Existe? Lisboa: Gradiva, 1998 [ed. original 1996], p. 31.
Atividades
1 Todas as ações são acontecimentos, mas nem todos os acontecimentos são ações. Porquê?
Razões técnicas
As razões acerca da maneira mais eficiente de fazer alguma coisa são razões
técnicas. Os nossos projetos e tarefas quotidianas levantam questões técnicas.
Quando cozinhamos, por exemplo, procuramos a melhor maneira de fritar
batatas ou grelhar carapaus; se praticamos futebol, procuramos a maneira
mais eficiente de jogar no meio campo. Temos, então, razões técnicas para
cozinhar e jogar futebol de certas maneiras. Estas razões são moralmente
neutras; logo, não é por termos uma razão técnica para cozinhar e jogar
futebol de certas maneiras que estas atividades particulares estão certas ou
erradas. Do mesmo modo, o assassino incapaz de ponderar acerca do bem
e do mal — o assassino amoral — não deixará de pesar razões técnicas para
os seus atos.
Razões prudenciais
O mesmo assassino também não deixará de pesar razões prudenciais, pois
é de admitir que considere se certos atos satisfazem o seu próprio interesse,
ou o seu bem-estar, a longo prazo. Um ato prudente é, então, aquele que
se prevê ter consequências futuras interessantes para o agente. Requer, por
isso, que este tenha a capacidade de projetar as consequências futuras dos
atos e de ser por elas motivado. Pessoas razoavelmente prudentes têm esta
capacidade mais educada do que pessoas pouco prudentes. Isto explica em
parte que umas procurem satisfazer desejos momentâneos a que outras se
opõem por razões de prudência. É o caso do estudante aplicado que
modera as suas saídas noturnas para obter vantagens cognitivas de longo
prazo.
As razões prudenciais são distintas das razões morais. Todavia, pesar cuida-
dosamente razões prudenciais conduz em muitos casos a um comportamento
Fig. 4 — Alegoria da Prudência (1565),
que é correto do ponto de vista moral. Isso implica que comportamentos
de Ticiano.
incorretos do ponto de vista moral geralmente sejam também imprudentes.
As razões prudenciais visam o nosso interesse
próprio, ou o nosso bem-estar, a longo prazo.
Há por isso quem veja no interesse próprio esclarecido um importante prin-
Um ato prudente é, então, aquele que se cípio moral. Dado que é esclarecido, este interesse próprio não é estreito e
prevê ter consequências futuras interessantes egoísta, consistindo antes na consideração dos interesses de todos os que são
para o agente. afetados pelas nossas escolhas. Esta é uma consideração tipicamente moral.
Logo, o interesse próprio esclarecido serve-se inteligentemente de razões
morais. E, de facto, não é prudente ser apenas prudente.
42 Unidade 2
Caso 1
Caso 2
Este caso revela que as razões que convencem o Pedro não passam, afinal,
de racionalizações. Elas são o pretexto fácil para dar uma aparência de
moralidade à simples satisfação do interesse próprio. Não formam, por-
tanto, uma justificação racional da sua decisão. Ora, uma decisão racional
não pode ceder a racionalizações disfarçadas de razões.
Atividades
1 Descreva um processo de deliberação em que apresente as razões de diferentes tipos que justificam uma dada decisão.
3 Descreva um caso de conflito entre razões morais que parece não poder ser resolvido.
44 Unidade 2
Caso 3
46 Unidade 2
Causas e escolhas
Imagine uma pessoa que sofre de uma doença hereditária. Será que ela é
responsável por tê-la? Decerto que não. A sua doença é causada por coisas
que a pessoa não pode controlar: nada fez para a ter e nada poderia ter feito
que a pudesse evitar. A cadeia de causas que levou ao aparecimento dessa
doença começou antes de a pessoa ter nascido. Logo, sofrer dessa doença não
é algo que a pessoa tivesse feito: é algo que lhe aconteceu. Sofrer de uma
doença hereditária não é, por conseguinte, uma ação. Parece, portanto, que
o exemplo da doença hereditária não é relevante para o problema do livre-
-arbítrio: se um acontecimento não é uma ação, é óbvio que não pode ser
uma ação livre.
Uma ação é, por exemplo, erguer a mão. Esta é o resultado de acontecimen-
tos anteriores; esses acontecimentos são, por sua vez, causados por outros, e
assim sucessivamente. A cadeia causal que resultou no gesto de erguer a mão
pode estender-se indefinidamente até um passado remoto: um tempo em
que a pessoa que ergue a mão ainda não tinha nascido. Esse gesto foi, por-
tanto, causado por coisas que a pessoa que o faz não controla.
Assim, se o determinismo é verdadeiro, faça uma pessoa o que fizer, parece
que não poderia ter feito outra coisa Ora, isto não é diferente do caso da
pessoa que sofre de uma doença hereditária: se tudo o que acontece é cau-
sado por acontecimentos anteriores e pelas leis da natureza, não podemos
deixar de fazer aquilo que fazemos. O que fazemos é, de facto, tão inevitável
como aquilo que nos acontece; tão inevitável, de facto, como um aguaceiro
ou qualquer outro acontecimento natural. Logo, nada do que fazemos foi
escolhido por nós; e, sendo assim, não somos responsáveis pelas coisas que
fazemos.
Texto 4
Suponha-se que um homem é levado, durante o sono, para um quarto onde se encontra
uma pessoa que ele espera ver e com quem deseja falar; e que aí é fechado, sem que
possa sair: acorda, e fica contente por se encontrar em tão agradável companhia, com a
qual decide ficar; isto é, prefere ficar a sair. Pergunto: não é o seu ficar um ato voluntário?
Ninguém duvidaria disso. No entanto, estando fechado, é evidente que não é livre de não
ficar, não tem a liberdade de sair. Assim, a liberdade nada tem que ver com a vontade ou
a preferência; tem que ver, sim, com o facto de a pessoa ter ou não o poder de fazer algo,
de acordo com o que a mente escolhe ou decide. A nossa ideia de liberdade vai tão
longe quanto esse poder, e não mais. Isto porque onde quer que uma restrição venha
limitar esse poder, ou uma compulsão faça desaparecer a indiferença ou a capacidade de
agir ou de impedir a ação, aí a liberdade, e a nossa ideia dela, cessa.
John Locke, An Essay Concerning Human Understanding, Book ii, 1689, cap. 21, par. 10.
Causas e programas
Estamos naturalmente como que programados para fazer muitas coisas: res-
pirar, caminhar, dormir, etc. Não poderá suceder que estejamos programa-
dos para fazer todas as coisas que fazemos? Esta ideia pode parecer muito
estranha: computadores, por exemplo, podem ser programados, mas nós não
somos computadores.
É possível que a ideia só nos pareça estranha porque temos consciência de
que fazemos coisas, mas não do programa que nos determina. Esta parece ser
a posição de Espinosa, um filósofo holandês contemporâneo de Locke, que
é talvez o mais conhecido dos filósofos deterministas. Na sua Ética defende
que não somos livres: acreditamos ilusoriamente ser livres porque ignoramos
as causas das nossas ações. Tal como a pessoa que está fechada no quarto,
acreditamos ser livres porque desconhecemos os factos relevantes.
Texto 5
Os homens enganam-se quando se julgam livres, e esta opinião consiste apenas em que
eles têm consciência das suas ações e são ignorantes das causas pelas quais são determi-
nados. O que constitui, portanto, a ideia da sua liberdade é que eles não conhecem
nenhuma causa das suas ações. Com efeito, quando dizem que as ações humanas
dependem da vontade, dizem meras palavras, das quais não têm nenhuma ideia. Efetiva-
mente, todos ignoram o que seja a vontade e como é que ela move o corpo.
eSpinoSa, Ética, parte ii, proposição xxxv, escólio, 1677, p. 55.
48 Unidade 2
O dilema do determinismo
O determinismo parece conduzir-nos a uma posição insustentável. Com
efeito, a crença no determinismo pode ser verdadeira e pode ser falsa; no
entanto, quer seja verdadeira quer seja falsa, parece ter como consequência
que não há ações livres e, consequentemente, que ninguém é responsável
pelo que faz.
Imagine que o seu colega do lado, durante a aula, ergue a mão. Se o determi-
nismo é verdadeiro, o gesto do seu colega tem uma causa: foi causado por
acontecimentos anteriores e pelas leis da natureza. Esses acontecimentos
foram, por sua vez, causados por acontecimentos anteriores e pelas leis da
natureza. O gesto de erguer a mão é, portanto, o resultado inevitável de uma
cadeia de acontecimentos que remonta a um tempo em que o seu colega
ainda não tinha nascido. Sendo assim, não é possível que ele tenha erguido a
mão livremente: não poderia ter feito algo diferente do que fez. E, consequente-
mente, não pode ser responsabilizado por tê-la erguido. É tão responsável por
ter feito o que fez como a pessoa que sofre de uma doença hereditária é res-
ponsável pela sua infeliz condição.
Suponha agora que o determinismo é falso. Se o determinismo é falso, então
o gesto de erguer a mão não tem causa: aconteceu por acaso. Se erguer a mão
foi algo que aconteceu por acaso, então o seu colega não escolheu fazê-lo:
simplesmente, deu pela sua mão erguendo-se. Consequentemente, não é res-
ponsável por ter feito o que fez.
Assim, quer o determinismo seja verdadeiro quer seja falso, não há ações
livres; e, se não há ações livres, ninguém é responsável pelas suas ações; logo,
ninguém é responsável pelas suas ações. Este argumento é conhecido como
o «dilema do determinismo». O dilema do determinismo pode ser formu-
lado esquematicamente da seguinte maneira:
Argumento 1
(1) Ou as nossas ações são determinadas ou acontecem por acaso.
(2) Se são determinadas, então não somos livres e não somos
responsáveis por elas.
(3) Se acontecem por acaso, então não somos livres e não somos
responsáveis por elas.
(4) Logo, não somos livres e não somos responsáveis pelas nossas ações. Fig. 7 — Cartaz do filme Waking Life (2001),
realizado por Richard Linklater.
Este argumento é dedutivamente válido: se as premissas forem verdadeiras, a
No capítulo 6 — Free Will and Physics — do
conclusão será verdadeira. No entanto, se as premissas forem verdadeiras, filme Waking Life, o dilema do determinismo
teremos chegado, novamente, a uma conclusão que contraria fortemente é-nos apresentado através de uma breve
algumas das nossas intuições fundamentais — nomeadamente a crença de animação.
que somos livres e responsáveis pelas nossas ações.
Texto 6
A mecânica quântica é uma teoria sobre o comportamento de partí- Porque a aleatoriedade não é liberdade. Ensaiemos uma pequena
culas minúsculas. Esta teoria foi desenvolvida na primeira parte do experiência mental. Primeiro finjamos que a mecânica quântica está
século xx e é ainda aceite pelos físicos de hoje. A mecânica quântica incorreta e que a física é verdadeiramente determinista. A ameaça à
(ou pelo menos uma certa versão) é uma teoria radicalmente inde- liberdade humana que isto representa é aquilo de que temos falado
terminista. Não prevê com certeza o que irá ocorrer; apresenta até agora […]. A seguir, no cérebro de cada pessoa, acrescentemos
somente probabilidades de resultados. Independentemente da um pouco de lotaria, que muito de vez em quando, aleatoriamente,
quantidade de informação que se tenha acerca de uma partícula, faz a pessoa desviar-se numa direção e não noutra. Isto é semelhante
não se pode prever onde estará mais tarde. Tudo o que se pode dizer ao que a mecânica quântica afirma que realmente acontece: há um
é até que ponto é provável que a partícula se encontre em várias elemento de aleatoriedade na ocorrência dos acontecimentos. Será
localizações. E isto não é uma mera limitação do conhecimento que a ameaça à liberdade desaparece? Evidentemente que não. Se a
humano. A posição futura da partícula simplesmente não é determi- pessoa original, completamente determinada, não tinha livre-arbítrio
nada pelo passado, por mais que saibamos acerca dela. Só as proba- algum, então a nova pessoa, com o elemento de aleatoriedade, tão-
bilidades são determinadas. -pouco tem livre-arbítrio; a lotaria só introduz aleatoriedade, e não
liberdade ou responsabilidade. […] Quando muito, a aleatoriedade
Nas secções anteriores ignorei a mecânica quântica. Por exemplo,
compromete a liberdade.
supus que se uma causa ocorre, o seu efeito tem de ocorrer, apesar
de a mecânica quântica afirmar que as causas apenas tornam os seus Conee, Earl e SideR, Theodor, Enigmas da Existência:
efeitos prováveis. Por que razão ignorei a mecânica quântica? Uma Visita Guiada à Metafísica. Lisboa: Bizâncio, 2010, pp. 157-158.
O argumento do determinismo
Se o determinismo é verdadeiro, não há, no mundo, lugar para
a liberdade. Ora, a crença de que somos livres é, sob muitos
aspetos, uma crença essencial para a maior parte de nós:
parece que sem ela seremos incapazes de compreender o que
somos e como agimos. Deve haver uma diferença significativa
entre uma pessoa que caminha sob o efeito do álcool e uma
pessoa que simula caminhar sob o efeito do álcool. Se o deter-
minismo é verdadeiro, o comportamento das duas pessoas
é explicado da mesma maneira: quer o comportamento
de uma quer o da outra são causados por acontecimentos
anteriores e pelas leis da natureza. Parece, portanto, que o
Fig. 8 — Rain, Steam and Speed — The Great Western determinismo não nos permite dar conta da diferença entre a
Railway (1844), de J. M. W. Turner. pessoa que age sob certas causas e a pessoa que simula fazê-lo.
Num universo determinista, o estado do mundo num dado Assim, a crença no determinismo deve ser rigorosamente
momento fixa o estado do mundo em todos os momentos avaliada. Para isso, comecemos por representar o argumento
subsequentes, como se a história do universo fosse uma linha do determinismo de maneira a compreendê-lo claramente.
de comboio sem bifurcações, isto é, sem que possamos
controlar em que direção esta deve seguir.
50 Unidade 2
Argumento 2
(1) As nossas ações são causadas por acontecimentos anteriores e pelas
leis da natureza.
(2) Se as nossas ações são causadas por acontecimentos anteriores e pelas
leis da natureza, então não somos livres.
(3) Logo, não somos livres.
(4) Se não somos livres, não somos responsáveis pelas nossas ações.
(5) Logo, não somos responsáveis pelas nossas ações.
Atividades
Debate
52 Unidade 2
Texto 7
[…] A todo o ser racional que tem uma vontade temos de atribuir-lhe necessariamente
também a ideia de liberdade, sob a qual ele unicamente pode agir. Pois num tal ser pen-
samos nós uma razão que é prática, quer dizer, que possui causalidade em relação aos
seus objetos. […] Ela tem de considerar-se a si mesma como autora dos seus princípios,
independentemente de influências estranhas; por conseguinte, como razão prática ou
como vontade de um ser racional, tem de considerar-se a si mesma como livre; isto é, a
vontade desse ser só pode ser uma vontade própria sob a ideia de liberdade, e, portanto,
é preciso atribuir, em sentido prático, uma tal vontade a todos os seres racionais.
immanueL k ant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes.
Lisboa: Edições 70, 2009, p. 102.
54 Unidade 2
Atividades
56 Unidade 2
Texto 8
Do facto de o meu comportamento poder ser explicado, no sentido em que pode ser
subsumido por uma lei da natureza, não se segue que estou a agir sob coação.
Se isto for correto, dizer que eu podia ter agido de outra maneira é dizer, primeiro, que eu
teria agido de maneira diferente se assim o tivesse escolhido; segundo, que a minha ação
foi voluntária no sentido em que as ações, digamos, de um cleptomaníaco não o são; e,
em terceiro lugar, que ninguém me obrigou a escolher o que escolhi. E estas três condi-
ções podem muito bem ser respeitadas. E, quando o são, pode dizer-se que agi livre-
mente, mas isto não significa que agir como agi foi uma questão de acaso ou, por outras
Juízo intuitivo
palavras, que a minha ação não poderia ser explicada. E que as minhas ações possam ser
explicadas é tudo o que é exigido pelo postulado do determinismo. […]
Avalie este argumento de acordo com
O meu comportamento pode ser previsto, mas dizer que o meu comportamento pode a sua primeira reação.
ser previsto não é dizer que estou a agir sob coação. É realmente verdade que não posso
escapar ao meu destino, se isto significar apenas que farei o que farei. Mas isto é uma A — Convincente.
tautologia, tal como é uma tautologia dizer que o que vai acontecer vai acontecer. B — Atraente mas não convincente.
E tautologias como estas nada provam sobre o livre-arbítrio.
C — Duvidoso.
a. J. ayeR, «Liberdade e Necessidade», in ALmeida, Aires e MuRcho, Desidério, Temas
e Problemas da Filosofia. Lisboa: Plátano, 2006 [ed. original 1954], pp. 38-39. D — Implausível.
Parece óbvio que não tem. Deve, por conseguinte, haver algo À primeira vista, o compatibilismo parece ter dificuldade em
explicar por que razão o ato de comer, beber, mentir ou roubar
de errado na maneira como o compatibilista entende a ação compulsivamente não é livre, apesar de ser causado pelas
livre. crenças e desejos do agente.
A ação humana: análise e compreensão do agir 57
58 Unidade 2
Texto 9
Acredito que, num certo sentido, o problema não tem solução porque algo na ideia de
ação é incompatível com as ações serem acontecimentos e os seres humanos coisas. No
entanto, à medida que as determinantes externas do que alguém fez são gradualmente
expostas nos seus efeitos sobre as consequências, caráter e a própria escolha, torna-se
gradualmente claro que as ações são acontecimentos e as pessoas coisas. Eventual-
mente, nada restará que possa ser atribuído à responsabilidade de um eu, e não nos
caberá senão uma parte de uma imensa sequência de acontecimentos, que pode ser
deplorada ou celebrada, mas não censurada ou elogiada.
thomaS nageL, Mortal Questions. Ed. Cambridge, 1991, p. 37.
Avaliação crítica
Algo nas ações não pode ser reduzido a um acontecimento. Pensamos assim
quando vemos as nossas ações a partir da nossa experiência de deliberação Assinale agora a sua avaliação ponderada
— quando as vemos a partir de dentro. Esta é uma perspetiva com que con- do argumento do compatibilismo.
vivemos intimamente. É aquela que nos oferece a ideia, talvez consoladora, A — Convincente.
de que temos livre-arbítrio. Mas, se começarmos a ver de fora as nossas ações B — Atraente mas não convincente.
e formos alargando essa perspetiva, a nossa capacidade de agir livremente
parece mergulhar indistintamente numa vastidão impessoal de causas e efei- C — Duvidoso.
tos. Para os mais céticos, fica assim sem resposta a questão de saber se há no D — Implausível.
universo lugar para a liberdade.
Atividades
3 Apresente a distinção entre desejos de primeira ordem e desejos de segunda ordem. Dê exemplos.
4 Segundo o compatibilista, uma coisa é explicar como chegámos a ter certos poderes, outra é o que fazemos com os poderes
que atualmente temos. Esclareça esta ideia.
Debate
• Uma decisão racional não deve ser confundida com uma • Uma objeção ao libertismo afirma que o livre-arbítrio, defi-
racionalização. nido como a capacidade de a vontade agir apenas segundo
princípios racionais, não existe.
• Quando a decisão é tomada por razões, falamos de «decisão
racional». • O argumento a favor do compatibilismo mostra que temos
livre-arbítrio porque escolhemos, sem sermos coagidos
• O problema do livre-arbítrio levanta-se porque temos simul- nesse sentido, uma das alternativas de ação disponíveis.
taneamente evidência quer de que o determinismo é ver-
dadeiro quer de que temos livre-arbítrio. Ora, estas duas • Uma objeção ao argumento a favor do compatibilismo
crenças parecem incompatíveis. recorre ao comportamento aditivo e afirma que esse com-
portamento não é livre, ainda que não seja coagido.
• O livre-arbítrio é a capacidade de agir livremente.
• O compatibilista responde à objeção baseada no comporta-
• Dizemos que uma ação é livre se o agente age de uma mento aditivo dizendo que não basta ter um desejo e não
maneira podendo ter agido de maneira diferente. ser forçado a realizá-lo para ser livre — é ainda preciso dese-
• O determinista defende que não temos livre-arbítrio, mas jar esse desejo (desejo de segunda ordem), coisa que geral-
apenas a ilusão de que o temos: o que nos leva a acreditar no mente não acontece no comportamento aditivo.
livre-arbítrio é a ignorância das causas que determinam as
nossas ações.
Leituras:
AlmeidA, Aires (org.) — Dicionário Escolar de Filosofia. Lisboa: Plátano Editora, 2009.
Conee, earl e Sider, Theodore — Enigmas da Existência: Uma Visita Guiada à Metafísica. Lisboa: Bizâncio, 2010 [ed. original 2003]
(especialmente o capítulo «Livre-Arbítrio e Determinismo»).
GeorGe, Alexander (org.) — Que Diria Sócrates? Lisboa: Gradiva, 2008 [ed. original 2007] (especialmente as páginas 235 e 236).
nAGel, Thomas — Que Quer Dizer Tudo Isto? Lisboa: Gradiva, 1995 [ed. original 1987] (especialmente o capítulo «Livre-Arbítrio»).
60 Unidade 2
Agente
Ações envolvem
Intencionalidade
humanas
Causalidade do agente
Serão livres?
São determinadas pelos São livres quando são realizadas São livres quando são
acontecimentos anteriores e pelas sem coação. determinadas pela deliberação
leis da natureza. racional do agente.
Filmes:
Os Agentes do Destino (2011), realizado por George Nolfi.
Corre, Lola, Corre (1998), realizado por Tom Tykwer.
Páginas da Internet:
http://criticanarede.com/met_accao.html (artigo «Ação», de Jennifer Hornsby)
http://criticanarede.com/determinismo.html (artigo «Livre-Arbítrio e Determinismo», de Clifford Williams)
4. Para que um acontecimento seja uma ação, tem de ser intencional.
12. A partir da ideia de que todos os acontecimentos são causados por acontecimentos
anteriores e pelas leis da natureza, pode concluir-se validamente que todas as ações
também o são, visto que todas as ações são acontecimentos.
15. Segundo Espinosa, acreditamos ilusoriamente que somos livres, porque ignoramos
as causas das nossas ações.
16. O dilema do determinismo conduz à conclusão de que somos responsáveis pelas nossas ações.
17. S
egundo o dilema do determinismo, sejam as nossas ações determinadas ou aconteçam
por acaso, não somos responsáveis por elas.
20. Quem aceita que «se as nossas ações são causadas por acontecimentos anteriores e pelas leis
da natureza, não somos livres» pensa, necessariamente, que não existem ações livres.
21. Um libertista acredita que há ações livres e, por conseguinte, que o determinismo é falso.
22. Um libertista acredita que há ações livres, apesar de o determinismo ser verdadeiro.
23. Tanto o determinista como o libertista acreditam que o livre-arbítrio não é compatível com
o determinismo.
24. O libertismo é uma teoria compatibilista, pois sustenta que o livre-arbítrio é compatível com
o determinismo do universo físico.
25. O libertismo defende que nada do que fazemos é determinado por acontecimentos
anteriores e pelas leis da natureza.
26. O libertista sustenta que, por vezes, fazemos certas coisas podendo não as ter feito.
62 Unidade 2
29. O argumento a favor do libertismo permite concluir que agir segundo deveres morais não
exige livre-arbítrio.
30. A objeção ao argumento a favor do libertismo afirma que temos livre-arbítrio apenas quando
a nossa vontade exerce controlo absoluto sobre as circunstâncias.
31. A objeção ao argumento a favor do libertismo defende que este erra ao pretender que só
temos livre-arbítrio quando as nossas ações não são influenciadas pela sorte.
33. O compatibilismo defende que umas coisas estão determinadas e outras não.
35. O compatibilismo defende que, uma vez que tudo está determinado, não somos livres.
36. O compatibilismo defende que, uma vez que somos livres, nem tudo está determinado.
37. O compatibilismo defende que somos livres, apesar de tudo estar determinado.
38. Segundo o compatibilismo, uma razão para agir fornece uma explicação perfeitamente
razoável de uma dada ação.
39. Ter livre-arbítrio é, segundo o compatibilismo, ter a capacidade de escolher os motivos da ação.
41. O compatibilismo afirma que uma ação é livre se não é determinada nem realizada sob coação.
42. O compatibilismo afirma que uma ação é livre desde que seja realizada sem coação, ainda
que seja determinada.
43. Uma ação é livre se o agente quer realizá-la, dados os motivos que lhe acontece ter.
44. Uma objeção ao compatibilismo afirma que esta teoria não é capaz de dar conta da diferença
entre um comportamento aditivo e um comportamento que considera livre.
46. Dada a maneira como define livre-arbítrio, o compatibilismo terá de admitir que
o comportamento aditivo de um alcoólico é livre.
47. Uma defesa da teoria compatibilista recorre à distinção entre desejos de primeira ordem
e desejos de segunda ordem.
48. O desejo de comer um gelado é um desejo de segunda ordem e o desejo de desejar comer
um gelado é um desejo de primeira ordem.
49. O compatibilismo apela a desejos de primeira ordem e desejos de segunda ordem para dar
conta da distinção entre um comportamento aditivo e um comportamento livre.
50. Os desejos de primeira ordem são desejos acerca dos nossos desejos.
51. A teoria compatibilista afirma que o comportamento aditivo é livre na medida em que revela
um conflito entre os desejos de primeira ordem e os desejos de segunda ordem.
F; 34. V; 35. F; 36. F; 37. V; 38. V; 39. F; 40. V; 41. F; 42. V; 43. V; 44. V; 45. F; 46. V; 47. V; 48. F; 49. V; 50. F; 51. F.
1. F; 2. V; 3. F; 4. V; 5. V; 6. F; 7. V; 8. F; 9. V; 10. V; 11. V; 12. V; 13. F; 14. V; 15. V; 16. F; 17. V; 18. F; 19. V; 20. F; 21. V; 22. F; 23. V; 24. F; 25. F; 26. V; 27. F; 28. V; 29. F; 30. F; 31. V; 32. V; 33.
SOLUÇÕES:
No fim desta unidade, deverá ser capaz de responder Os conceitos seguintes, que são centrais nesta unidade,
às seguintes questões: são definidos no fim do livro:
Que relação há entre juízos de facto e juízos de valor? juízo de facto
Quais são as dimensões da experiência valorativa? juízo de valor
O que são os valores segundo o relativismo moral, realismo moral
o realismo moral e o subjetivismo moral? relativismo moral
Que dificuldades enfrentam a teoria relativista, a teoria subjetivismo moral
realista e a teoria subjetivista?
Como é entendido o diálogo entre culturas diferentes
a partir de cada uma destas teorias acerca dos valores?
Introdução
Gostaríamos que muitas coisas fossem diferentes do que são. Gostaríamos que fossem melhores e mais perfeitas. E também nos incluímos
nesse desejo, porque talvez não sejam poucas as vezes em que deveríamos ter sido diferentes, para melhor, claro. Por que razão isto acon-
tece? Porque temos valores a partir dos quais julgamos praticamente tudo: objetos, ações e agentes. Os factos, felizmente, não nos bastam.
Isso significa duas coisas: que os nossos valores questionam os factos fornecidos pela experiência e que temos a aspiração de moldar o
mundo a partir dos nossos valores. Daí resulta que a vida humana é incompreensível sem valores. Isto é óbvio e não parece digno de uma
atenção especial. Mas, se pensarmos um pouco, veremos que há aqui um aspeto intrigante. Afinal, em que consistem os valores? Falar de
valores é falar de sentimentos, factos, ou simplesmente dos padrões culturais de cada sociedade?
64 Unidade 3
O banqueiro relativista
A Sara e o João tinham acabado de jantar. Quase mudar o mundo. Além de que não estás a ser tole-
deitada no sofá, a Sara pegou no livro que andava rante. Cada cultura tem os seus valores. Se não respei-
a ler. Era a história de um jogador da Bolsa que não tares esses valores, como é que queres que respeitem
conseguia controlar a sede de ganhar dinheiro. O João os da tua cultura?
também se aninhou no sofá e abriu um livro sobre
A Sara estava surpreendida com o raciocínio do João.
a cultura do Médio Oriente. A Sara espreitou a capa
Por isso comentou com alguma dureza:
do livro que João lia e ficou surpreendida.
— Estranho. Pareces disposto a tolerar tudo. Se a
— A ler um livro sobre o Médio Oriente? Nunca me
minha cultura tiver valores errados, não quero que os
pareceste muito interessado num assunto desses. Será
respeitem, mas antes que os mudem.
que estás a pensar em fazer negócios por essas para-
gens? O João contrariou a Sara:
— Por acaso até estou, acertaste — respondeu o João. — Valores errados? O que queres tu dizer com isso?
Os valores deles estão errados para a tua cultura, e os
— Vais expandir o banco para um país do Médio
teus estão errados para a cultura deles. É tudo relativo.
Oriente? — perguntou a Sara.
A Sara replicou:
— Tudo indica que sim. Há muitas oportunidades
de negócio em alguns países da zona. — Com que então é tudo relativo! Não sabia que te
tinhas tornado relativista. Tenho pena. Para mim, há
Em seguida, o João falou sobre o crescimento econó-
valores corretos e valores errados. Não é porque uma
mico desses países e a segurança que os seus governos
cultura aprova certos valores que eles passam a estar
ofereciam a quem quisesse instalar-se lá. Parecia entu-
corretos para essa cultura; nem para essa nem para
siasmado. Manejava números com facilidade e estava
nenhuma.
convencido de que o banco a que presidia
teria um enorme sucesso. A Sara impa-
cientou-se com tanto conhecimento eco-
nómico. O seu marido não parecia querer
saber de mais nada. E perguntou:
— Falas apenas de economia. Esqueces
que a cultura e as leis de alguns desses
países deixam muito a desejar.
— Referes-te a quê? — perguntou o João.
— Refiro-me aos direitos das mulheres,
por exemplo. Mas também poderia falar-
te de não haver democracia nem liber-
dade de opinião.
Prontamente, o João disse:
— Que tenho eu a ver com isso? Vou sim- Fig. 1 — Cruel Culture, de Malcolm Evans.
plesmente fazer o meu trabalho. Não quero
— Claro que não. Estás a fazer confusões. Uma coisa Um bocadinho irritada com as palavras secas do João,
é a ciência, outra bem diferente são os valores, ou a a Sara afirmou:
ética, ou a moral, como lhe quiseres chamar. Na ciên- — Estás enganado. Eu não tenho certos valores por
cia há acordo. Toda a gente aceita que a composição causa do que sinto, mas porque descobri boas razões
química da água é H2O. E sabes porquê? Porque essa para os defender. Diz-me uma coisa: será que estás a
é uma verdade acerca da água. pensar jantar com governantes desses países?
A Sara observou: — Claro que sim — disse o João. — Há algum mal
— Queres dizer que não há verdades acerca dos valo- nisso?
res, é isso? — Pode haver. É que, se estás a pensar levar-me, não
— É isso — respondeu o João. E continuou: — Por contes comigo. Eu, de corpo todo tapado e cabeça
muito que te custe. É isso que explica o desacordo coberta por um véu? Nem pensar! Não acho que
entre as pessoas, as culturas, os grupos, e sei lá mais o esteja certo pelo simples facto de me ser imposto.
quê. Lamento que não penses da mesma maneira.
Inspirado na obra Ethical Theory 1 — The Question of Objectivity,
de James Rachels, e na obra Relativism, de Maria Baghramian.
Guião de leitura
2 Apresente os dois argumentos do João a favor da ideia de que os valores são relativos: o argumento da variação cultural
e o argumento do desacordo.
Fazer filosofia
1 Debata com toda a turma este caso, procurando defender cuidadosamente uma posição própria.
66 Unidade 3
Atividades
2 Imagine que uma empresa, para ser muito mais competitiva do que já era, passou a pagar salários mínimos a todos os seus tra-
balhadores. Qual dos princípios ou critérios valorativos apresentados faria resultar desse facto um juízo de valor negativo?
68 Unidade 3
Texto 1
Há dois sentimentos contrastantes acerca da nossa vida moral que, Esta perspetiva da escolha moral colide com o segundo sentimento
de algum modo, todos partilhamos. Por um lado, é frequente sentir- que todos partilhamos — o de ser frequentemente difícil, quando
mos que a moralidade é uma área de decisão pessoal, um domínio perante a urgência de uma perplexidade moral, descobrir que res-
em que cada um de nós tem o direito de tomar a sua própria decisão posta é a correta. Se estou desorientado quanto ao que devo fazer,
acerca do que fazer. Ainda que as outras pessoas possam oferecer então é provável que sinta que o que importa não é que a resposta a
conselhos sobre o que devemos fazer e que princípios morais deve- que chego deva ser a minha, e pela qual estou preparado para arcar
mos adotar, elas não têm autoridade para nos dizerem como viver as com a responsabilidade última, mas que seja a resposta correta. Não
nossas vidas. Não há peritos em moral. […] penso na minha escolha como algo que determina a resposta correta;
o que quero, pelo contrário, é que a minha escolha seja determinada
É assim que podemos sentir que o que importa não é que a nossa
pela resposta correta. É porque temo que possa fazer uma escolha
decisão seja a correta — pois quem determina a decisão correta? —,
errada que encaro a decisão como tão difícil.
mas que cada um de nós tome a sua decisão. Cada um de nós, como
por vezes se diz, tem de determinar o que está certo para si. Cada um DaviD Mcnaughton, Moral Vision — An Introduction to Ethics.
de nós tem de decidir segundo que valores quer viver a sua vida e os Ed. Blackwell, 1988, pp. 3-4.
restantes devem respeitar a sinceridade dessas escolhas.
O que nos diz o texto? Por um lado, que a experiência valorativa é pessoal;
isso significa que os valores são escolhas pessoais, e que, nessa medida, são
relativos aos agentes. Mas, por outro lado, o texto diz-nos que, em con-
traste com esse aspeto da nossa experiência valorativa, sentimos que os
valores morais são independentes das nossas escolhas; por isso, uma esco-
lha é correta se for determinada pelo valor correto, e não porque é a nossa
escolha. Isto sugere que os valores morais são neutros em relação aos
agentes.
Decisão pessoal
Dimensão
subjetiva
Motivação do agente
Experiência
valorativa
Resposta moral correta
Dimensão
objetiva
Factos morais
Uma boa teoria acerca dos valores e juízos morais não pode ser contrária à
experiência valorativa dos agentes. Mas como esta contém elementos con-
trastantes, será possível que uma teoria os articule de maneira satisfatória?
Veremos agora como respondem a este desafio as teorias acerca dos valores
e juízos morais que fazem parte do seu plano de estudos.
Relativismo
Os valores são padrões culturais.
moral
Teorias Realismo
acerca dos Os valores são factos morais.
moral
valores
Atividades
1 Das afirmações seguintes, identifique as que dizem respeito à dimensão subjetiva da experiência valorativa e as que dizem
respeito à dimensão objetiva. Justifique as suas escolhas.
A — Os valores refletem os compromissos mais caros das pessoas.
B — Os valores não dependem das minhas preferências.
C — A moralidade não muda ao sabor das circunstâncias.
D — A honestidade é um valor opcional.
2 Se agirmos de certas maneiras porque o ambiente social em que crescemos nos educou nesse sentido, temos uma experiência
valorativa ou não? Porquê?
70 Unidade 3
Relativismo moral:
Os valores morais são relativos às sociedades, no sentido em que são
padrões culturais socialmente aprovados.
Um juízo moral correto é um juízo socialmente aprovado numa
cultura.
Texto 2
Texto 3
A minha tese é a de que a moralidade surge quando um grupo de Um cão pode ser grande em relação aos chihuahuas, mas não
pessoas alcança um acordo implícito ou chega a um entendimento grande em relação aos cães em geral. Do mesmo modo, argumenta-
tácito acerca das relações entre si. Parte do que quero dizer com isto rei que uma ação pode ser errada em relação a um acordo, mas não
é que os juízos morais […] fazem sentido apenas em relação, ou por em relação a outro. Tal como não faz sentido perguntar se um cão é
referência, a um ou outro acordo ou entendimento. […] grande, fora de qualquer relação com um acordo, argumentarei que
também não faz sentido perguntar se uma ação é errada fora de
O meu relativismo moral é uma tese sobriamente lógica […]. Tal
qualquer relação com um acordo.
como o juízo de que algo é grande faz sentido apenas em relação a
uma ou outra classe de comparação, irei argumentar que também o giLbert harMan, «Moral Relativism Defended», in Ethical Theory,
juízo de que é errado alguém fazer algo faz sentido apenas em rela- Russ Shafer-Landau (ed.). Ed. Blackwell, 2007, p. 41.
ção a um acordo ou entendimento.
Cada cultura consiste num acordo que codifica a relação entre as pessoas.
É com base nesse acordo que se aprova ou desaprova moralmente o que as
pessoas fazem.
Para que tudo fique mais claro, o mesmo autor dá em seguida um exemplo
incluído no acordo que regula a nossa vida moral. Trata-se de darmos
geralmente mais peso a não maltratar do que a ajudar os outros. É o que
acontece quando, sinceramente horrorizados, rejeitamos a hipótese de um
médico salvar a vida de cinco pacientes, tirando para isso a vida a um sexto
e distribuindo os órgãos saudáveis deste pelos outros, segundo as necessi-
dades de cada um.
A explicação para o valor de não maltratar ter mais peso do que o valor de
ajudar é a seguinte:
Texto 4
Este aspeto das nossas vidas morais pode parecer bastante enigmá- Seria de esperar um compromisso, e um princípio mais fraco, prova-
tico, especialmente se supomos que os sentimentos morais derivam velmente, seria aceite. Por outras palavras, ainda que todos pudes-
da simpatia e preocupação com os outros. Mas a hipótese de que a sem concordar com um princípio forte a respeito de evitar maltratar,
moralidade deriva de um acordo entre pessoas com poderes e recur- não seria verdade que todos apoiariam um princípio igualmente
sos diferentes fornece uma explicação plausível. Os ricos, os pobres, os forte de ajuda mútua. É provável que apenas um princípio mais fraco
fortes e os fracos beneficiariam todos se tentassem evitar maltratar-se deste tipo ganhasse aceitação geral. Por isso, a hipótese de que a
uns aos outros. Por isso, todos poderiam concordar com essa solução. moralidade deriva de um entendimento entre pessoas com diferen-
Mas os ricos e os fortes não beneficiariam com uma solução em que tes poderes e recursos pode explicar (e, de acordo com o que penso,
todos tentassem fazer o mais possível para ajudar aqueles que preci- de facto explica) que, na nossa moralidade, evitar maltratar seja con-
sam. Os pobres e os fracos ficariam com todos os benefícios desta siderado mais importante do que ajudar aqueles que precisam.
última solução. Uma vez que os ricos e os fortes poderiam prever que giLbert harMan, «Moral Relativism Defended», in Ethical Theory,
deles seria requerida a maior parte da ajuda e que pouco receberiam Russ Shafer-Landau (ed.). Ed. Blackwell, 2007, p. 46.
em troca, teriam relutância em concordar com um princípio forte de
ajuda mútua.
72 Unidade 3
Juízo intuitivo
Avaliação crítica
Atividades
4 O facto de haver cada vez mais valores comuns é uma objeção ao argumento da variação cultural?
Justifique a sua resposta.
74 Unidade 3
Avaliação crítica
Relativismo moral
Pontos fortes Pontos fracos
• O relativismo moral é uma reação compreensível contra • Falha no teste decisivo: não está de acordo com a dimensão
a colonização e o imperialismo cultural do Ocidente. subjetiva, nem com a dimensão objetiva da experiência do valor.
• O relativismo moral desenvolve a nossa compreensão de que há • O argumento da variação cultural não consegue sustentar a tese
modos diferentes de ter vidas com sentido e integridade. do relativismo moral.
• O relativismo moral é uma teoria que terá de aceitar como
corretas práticas horríveis que sejam socialmente aprovadas.
• O relativismo moral é uma teoria que não consegue explicar
a noção de progresso moral.
Atividades
1 A conclusão de que os valores são relativos segue-se do facto de haver variação cultural? Porquê?
3 Se afirmar que uma cultura em que a liberdade de religião é aprovada é melhor do que outra que proíbe certos cultos religiosos,
está a ser relativista ou não? Porquê?
4 Haverá razões históricas que expliquem a importância que o relativismo moral adquiriu na cultura ocidental? Se sim, quais?
Debate
Escolha cinco valores que não considere relativos. Apresente a toda a turma as razões que o levaram a escolher esses valores. Depois de
debater as razões apresentadas, a turma irá escolher os valores que mereceram um consenso maior.
Para cada um dos cinco valores escolhidos, apresente uma circunstância que seja uma exceção plausível a esses valores. Debata com toda a
turma a sua resposta.
76 Unidade 3
Realismo moral:
Os valores morais são objetivos, no sentido em que são
independentes do que pensam e sentem as pessoas e as sociedades.
Um juízo moral correto é um juízo adequado aos factos morais de
cada circunstância.
Seria fatal para a nação ignorar a urgência do momento e subestimar Tenho um sonho de que os meus quatro pequenos rebentos viverão
a determinação do Negro. um dia numa nação onde não serão julgados pela cor da sua pele,
mas pelo seu caráter.
Este opressivo verão do legítimo descontentamento do Negro não
passará até que chegue o revigorante outono de liberdade e igual- Tenho um sonho, hoje.
dade. 1963 não é um fim, mas um começo. Discurso de Martin Luther King, proferido a 28 de agosto de 1963.
78 Unidade 3
Texto 6
Um objeto real não tem de ser percebido ou reconhecido para existir. Pode haver
circunstâncias em que ninguém observa um objeto particular, mas nós pensamos
nele como algo que existe com certas propriedades, esteja alguém a observá-lo ou não.
Ter uma alucinação ou uma imagem residual não é entendido como uma experiência
de algo real, precisamente porque pensamos que o conteúdo da experiência não
existe independentemente da experiência. […] Pensamos nas folhas de uma árvore
retendo a sua cor, esteja alguém a vê-la ou não; e uma árvore que cai numa ilha desabi-
tada produz um barulho. Do mesmo modo, argumenta o realista moral, o valor está
presente para nós como algo que está lá fora à espera de ser descoberto; a qualidade
moral da ação não depende do seu reconhecimento por alguém. Se acabamos por
perceber que uma ação foi errada, não pensamos que a sua imoralidade existe apenas
em virtude da nossa resposta.
DaviD McNaughton, Moral Vision — An Introduction to Ethics.
Ed. Blackwell, 1988, pp. 95-96.
Texto 7
80 Unidade 3
Avaliação crítica
Realismo moral
Pontos fortes Pontos fracos
• Está de acordo com a dimensão objetiva da experiência do valor:
• Tem dificuldade em explicar a dimensão subjetiva da experiência
explica a existência de factos morais e de respostas morais
do valor.
corretas.
• Encara a argumentação racional como um processo distanciado
• Sublinha a importância da argumentação racional acerca
dos sentimentos e demais disposições afetivas dos agentes.
de problemas morais.
Atividades
2 Por que razão o senso comum moral está de acordo com a teoria realista?
5 O realismo moral tem dificuldade em dar conta da dimensão subjetiva da experiência valorativa. Mas responde a essa dificuldade
dizendo que os valores têm um estatuto racional privilegiado. O que significa ter esse estatuto?
6 Que crítica podemos fazer à ideia realista de que os valores têm um estatuto racional privilegiado?
Debate
Escolha dois valores que considere racionais, mas que as pessoas geralmente não estejam motivadas para seguir.
Debata com toda a turma o que explica essa falta de motivação.
Subjetivismo moral:
Os valores morais são subjetivos, no sentido em que são sentimentos
comuns à humanidade.
Um juízo moral correto é um juízo que exprime os sentimentos
apropriados às circunstâncias.
Texto 8
Mas ele, querendo justificar a pergunta feita, disse a Jesus: «E quem é o meu próximo?»
Tomando a palavra, Jesus respondeu: «Certo homem descia de Jerusalém para Jericó e
caiu nas mãos dos salteadores que, depois de o despojarem e encherem de pancadas, o
abandonaram, deixando-o meio morto. Por coincidência, descia por aquele caminho um
sacerdote que, ao vê-lo, passou ao largo. Do mesmo modo, também um levita passou
por aquele lugar e, ao vê-lo, passou adiante.
Mas um samaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dele e, vendo-o, encheu-se de
compaixão. Aproximou-se, ligou-lhe as feridas, deitando nelas azeite e vinho, colocou-o
sobre a sua própria montada, levou-o para uma estalagem e cuidou dele. No dia seguinte,
tirando dois denários, deu-os ao estalajadeiro, dizendo: “Trata bem dele e, o que gastares
a mais, pagar-to-ei quando voltar.” Qual destes três te parece ter sido o próximo daquele
homem que caiu nas mãos dos salteadores?»
Respondeu: «O que usou de misericórdia para com ele.» Jesus retorquiu: «Vai e faz tu
também o mesmo.»
Nova Bíblia dos Capuchinhos,
pp. 1692-1693.
Este caso tem ainda mais um motivo de interesse moral apenas indireta- Atividades
mente sugerido pelo texto. Acontece que os samaritanos eram, na altura,
1 Será que este caso apoia o subjeti-
uma etnia desprezada pelos judeus, que evitavam ter relações com eles.
vismo moral?
Jesus Cristo, sendo judeu, distancia-se da sua cultura, realçando o con-
traste entre a bondade do samaritano e a indiferença do sacerdote judeu. 2 Podemos ver neste caso uma crítica
Ele é assim o próximo do samaritano, que, por sua vez, é o próximo do indireta a uma das teorias acerca dos
valores que já estudou. Qual é a teo-
estranho espancado e abandonado.
ria criticada? Justifique a sua res-
Ter valores consiste em ter certos sentimentos. Essa é a ideia central do posta.
subjetivismo moral, de que o bom samaritano é um exemplo claro. Esses
sentimentos distinguem-se por abraçar a humanidade e quebrar as barrei-
ras estreitas das culturas. Por essa razão, poderíamos dar-lhes a designação
geral de sentimento de humanidade. É o que faz o texto que a seguir apre-
sentamos.
Texto 9
Texto 10
Quando um homem denomina outro de seu inimigo, seu rival, seu homens, em algum grau, concordam. Enquanto o coração humano
antagonista, seu adversário, entende-se que fala a linguagem do for composto dos mesmos elementos que no presente, nunca será
amor-próprio e que exprime sentimentos, peculiares a ele mesmo, indiferente ao bem público, nem inteiramente insensível à tendência
que surgem da sua situação e circunstância particulares. Mas quando das qualidades e modos das pessoas. E ainda que este sentimento
atribui a qualquer homem o epíteto de vicioso, odioso ou depra- de humanidade possa não ser em geral tão fortemente apreciado
vado, fala uma outra linguagem, exprimindo sentimentos em rela- como a vaidade ou ambição, sendo comum a todos os homens,
ção aos quais espera o acordo de toda a audiência. Terá, por isso, de pode todavia ser o fundamento da moral ou de qualquer sistema
abandonar a sua situação privada e particular, e escolher um ponto geral de censura ou louvor. A ambição de um homem não é a ambi-
de vista comum a ele e aos outros; terá de propor algum princípio ção de outro, nem o mesmo acontecimento ou objeto dará satisfa-
universal da constituição humana e tocar uma nota para a qual toda ção a ambos; mas a humanidade de um homem é a humanidade de
a humanidade tem um acorde e uma sinfonia. Por conseguinte, se qualquer outro, e o mesmo objeto toca esta paixão em todas as cria-
ele pretende dizer que este homem possui qualidades cuja tendên- turas humanas.
cia é perniciosa para a sociedade, escolheu este ponto de vista DaviD huMe, Enquiry Concerning the Principles of Morals.
comum e tocou o princípio de humanidade, com que todos os Ed. Kindle, 2011, secção IX.
Texto 8
Primeiro sentimos afeição por uma ou outra qualidade das pessoas com quem nos
cruzamos, possivelmente porque fomos educados para isso. Depois tomamos o ponto
de vista comum que opera a mudança da afeição para a estima, avaliando um traço de
caráter como admirável ou o seu reverso. Em terceiro lugar, podemos ganhar consciência
de que este é um traço que nós próprios exibimos ou não.
E, em quarto lugar, quando isso sucede sentimos autossatisfação e orgulho, ou vergonha
e mal-estar, dependendo da nossa avaliação inicial, e imaginando que essa é também
a avaliação que os outros fazem de nós. Esta é uma espécie de vibração interna da
simpatia com os sentimentos imaginados dos outros.
SiMon BLackburn, Ruling Passions. Ed. Oxford, 1998, p. 203.
86 Unidade 3
Avaliação crítica
Subjetivismo moral
Pontos fortes Pontos fracos
• Explica a dimensão objetiva e subjetiva da experiência valorativa. • O desenvolvimento da capacidade de simpatia pode sujeitar-se
• Explica os valores morais a partir de uma capacidade natural — a processos sociais errados do ponto de vista moral.
a capacidade de simpatia. • É difícil isolar o sentimento moral de maneira a distingui-lo
• Apresenta o sentimento de benevolência como o sentimento de fatores não morais que podem influenciar as reações de
moral fundamental. aprovação ou desaprovação e as escolhas dos agentes.
• Propõe o bem público como a finalidade das escolhas morais
motivadas pelo sentimento de benevolência.
• Apresenta o ponto de vista da humanidade como uma mudança
de perspetiva em relação ao amor-próprio ou interesse particular.
Atividades
5 Em que capacidade natural assenta o subjetivismo moral? Como funciona essa capacidade?
6 Estará o subjetivismo moral em condições de dar conta das duas dimensões da experiência valorativa? Porquê?
7 O desenvolvimento da capacidade de simpatia é um processo social. Que dificuldade daí resulta para o subjetivismo moral?
8 É fácil saber que as pessoas estão realmente a ser motivadas pelo sentimento moral? Porquê?
Debate
Imaginemos que alguém ora é honesto e leal, ora quebra esses valores quando isso convém ao seu interesse próprio e não é notado. Essa
pessoa calcula o que faz com inteligência, de tal modo que é muito bem-sucedida e considerada pelos outros. Discuta com toda a turma se
este caso apoia ou contraria o subjetivismo moral.
3.2.1 Uma comunidade moral ou muitas
comunidades morais?
É óbvio que há diversidade cultural. Mas se há apenas uma comunidade
moral ou se há muitas é assunto de debate. Isso tem implicações na forma
como é entendido e praticado o diálogo entre culturas.
Se a cada cultura corresponde uma comunidade moral, então há tantas
comunidades morais quantas as culturas. Esta é a ideia defendida pelo
relativismo moral. Mas é concebível que à diversidade cultural não corres-
ponda diversidade moral. Nesse caso, pode haver uma só comunidade
moral, ainda que a diversidade cultural seja grande, como de facto é. Com
diferenças nos pormenores, esta é a posição básica dos realistas e dos subje-
tivistas morais. Segue-se que o diálogo entre culturas é entendido e prati-
cado de maneiras muito diferentes consoante se é relativista, por um lado,
ou realista e subjetivista, por outro.
88 Unidade 3
Juízo intuitivo
Texto 12
É artificial tratar estas questões como se envolvessem sempre duas culturas claramente
autocontidas. Uma cultura completamente individualizável é, no melhor dos casos, uma
coisa rara. Culturas, subculturas, fragmentos de culturas encontram-se e permutam e
modificam práticas e atitudes. As práticas sociais nunca podem apresentar-se com um
certificado dizendo que pertencem a uma cultura genuinamente diferente, de maneira
que lhes foi garantida imunidade em relação a juízos e práticas estranhas.
BernarD WiLLiaMs, Ethics and the Limits of Philosophy. Ed Routledge, 2006. p. 159.
O texto sugere que há duas ideias falsas implícitas nas premissas do argu-
mento. São elas a ideia de que as culturas são homogéneas e a ideia de que
as fronteiras entre as culturas estão claramente delineadas. Se for verdade
que as culturas não estão protegidas umas das outras pela imunidade refe-
rida, então a ideia de tolerância como mera coexistência pacífica não parece
estar justificada. Segundo o texto que a seguir apresentamos, essa tolerân-
cia sem crítica é uma maneira apressada de lidar com as relações entre
culturas diferentes.
Em maior ou menor grau, todos sentimos hoje problemas quando tentamos compre-
ender culturas que nos são estranhas. Ouvimos constantemente falar de costumes que
nos surpreendem. Vemos mudanças ao longo da nossa vida que teriam impressionado
os nossos pais. Quero discutir aqui uma maneira muito apressada de lidar com esta
dificuldade, uma maneira drástica que muitas pessoas teoricamente favorecem nos
tempos que correm. Ela consiste simplesmente em negar que alguma vez poderemos
compreender suficientemente bem qualquer cultura, excetuando a nossa, para fazer-
mos juízos sobre ela. Os que a recomendam sustentam que o mundo está dividido, com
contornos nítidos, em sociedades separadas, unidades fechadas, cada uma com o seu
sistema de pensamento. Sentem que o respeito e a tolerância que um sistema deve a
outro os proíbe de alguma vez adotarem uma posição crítica em relação a qualquer
outra cultura. Os juízos morais, sugerem, são uma cunhagem de moeda válida apenas
no país de origem.
Mary MigDLey, «Trying Out One’s New Sword», in Ethical Theory,
Russ Shafer-Landau (ed.). Ed. Blackwell, 2007, p. 58.
Texto 14
Se todos os valores, afinal, são aceitáveis no seu lugar próprio, não nos
resta senão defender um princípio de tolerância universal para o diálogo
entre culturas diferentes. Na prática, essa tolerância acolheria indistinta-
mente todos os valores e crenças morais. A consciência de que os valores
não são objetivos, que muitos dizem ter, parece recomendar essa prática de
tolerância universal. Seremos nós capazes de a ter? E estará o relativista em
posição de defender esse princípio de tolerância universal?
Considere a seguinte resposta a estas duas questões:
Texto 15
Esta consciência [de que os valores não são objetivos] não pode simplesmente desativar
as suas reações éticas quando é confrontado com outro grupo, e não há razões para que
deva fazê-lo. Algumas pessoas julgaram que deveria, acreditando que uma perspetiva
apropriadamente relativista requer que esteja igualmente recetivo às crenças éticas seja
de quem for. Isto é confuso de um modo sério, uma vez que encara o relativismo como
algo que resulta numa moralidade não relativista de tolerância universal.
BernarD WiLLiaMs, Ethics and the Limits of Philosophy. Ed. Routledge, 2006, p. 159.
90 Unidade 3
Avaliação crítica
Atividades
3 O relativismo moral propõe um princípio de tolerância universal para o diálogo entre culturas. O problema é que não seria
suposto que o fizesse. Porquê?
Debate
Texto 16
Uma vez que estamos todos no mesmo barco, supomos que o debate em que os agen-
tes cuidadosamente reúnem e avaliam as razões uns dos outros a favor e contra as suas
opiniões morais é a melhor maneira de descobrir quais são os factos morais. Se os parti-
cipantes estão de espírito aberto e pensam com clareza, supomos que dessa discussão
deverá resultar uma convergência numa opinião moral — uma convergência acerca da
verdade.
Podemos resumir esta primeira característica da prática moral da seguinte maneira: pen-
samos que as questões morais têm respostas corretas, que o que torna essas respostas
corretas são factos morais objetivos, que esses factos são determinados pelas circunstân-
cias, e que, argumentando, podemos descobrir que factos são esses. O termo «objetivo»
significa aqui simplesmente a possibilidade de uma convergência das perspetivas morais
do tipo acabado de referir.
MichaeL SMith, «Realism», in Ethical Theory, Russ Shafer-Landau (ed.).
Ed. Blackwell, 2007, p. 72.
92 Unidade 3
Texto 17
A verdade ganha mais com os erros daquele que, sem o estudo e a preparação necessá-
rios, pensa por si do que com as opiniões verdadeiras daqueles que só as têm porque se
impedem a si mesmos de pensar. Não que a liberdade de pensamento seja precisa ape-
nas, ou principalmente, para formar grandes pensadores. Pelo contrário, é tão precisa, e
ainda mais indispensável, para permitir aos seres humanos médios a estatura intelectual
de que são capazes. Já houve, e talvez volte a haver, grandes pensadores individuais
numa atmosfera geral de escravatura mental. Mas nunca houve, nem alguma vez haverá,
nessa atmosfera, um povo intelectualmente ativo.
John Stuart MiLL, Sobre a Liberdade. Lisboa: Edições 70, 2006 [ed. original 1859], p. 75.
Atividades
2 De acordo com o realismo moral, quando participamos no diálogo entre culturas, somos primariamente membros
da comunidade moral ou de uma cultura particular?
2.1 Justifique a resposta dada.
Debate
Será que a Declaração Universal dos Direitos Humanos expressa factos morais, ou reflete simplesmente os padrões morais
das sociedades que os subscreveram?
Os valores:
análise e compreensão da experiência valorativa
• Os juízos de facto dizem como as coisas são; por isso, são • O realismo moral afirma que os valores são objetivos; são,
descritivos. por isso, factos morais das circunstâncias.
• Os juízos de valor dizem como as coisas deveriam ser; são, • Segundo o realismo moral, um juízo moral correto é um
por isso, normativos. juízo adequado aos factos morais da circunstância.
• Os juízos de valor resultam de uma apreciação dos factos à • O realismo moral defende que os juízos morais corretos têm
luz de um critério valorativo. um estatuto racional, influenciando assim a motivação dos
• Os critérios valorativos são princípios que justificam a transi- agentes.
ção dos juízos de facto para os juízos de valor, isto é, dos • Os pontos fracos do realismo moral são os seguintes: tem
factos para os valores. dificuldade em explicar a dimensão subjetiva da experiên-
• A experiência valorativa tem uma dimensão subjetiva e cia valorativa e concebe a argumentação racional como
objetiva. um processo distanciado das disposições afetivas dos
agentes.
• A dimensão subjetiva da experiência valorativa envolve as
motivações e as decisões pessoais dos agentes. • Os pontos fortes do realismo moral são os seguintes: explica
a dimensão objetiva da experiência valorativa e sublinha a
• A dimensão objetiva da experiência valorativa envolve a cor- importância da argumentação racional no debate sobre pro-
reção da resposta moral dos agentes e factos morais. blemas morais.
• Saber o que são os valores é o problema a que procuram • O subjetivismo moral afirma que os valores são subjetivos;
responder o relativismo moral, o realismo moral e o subjeti- são, por isso, sentimentos comuns à humanidade.
vismo moral.
• Segundo o subjetivismo moral, um juízo moral correto é um
• O relativismo moral afirma que os valores são relativos às juízo que exprime os sentimentos apropriados às circunstân-
sociedades; são, por isso, padrões culturais socialmente cias.
aprovados.
• O subjetivismo moral defende que o sentimento moral fun-
• Segundo o relativismo, um juízo moral correto é um juízo damental é o sentimento de benevolência e que este é
socialmente aprovado numa cultura. explicado pela nossa capacidade natural de simpatia.
• O relativismo moral apoia-se nos argumentos da variação • Os pontos fracos do subjetivismo moral são os seguintes: a
cultural e da tolerância. educação do sentimento moral pode sujeitar-se a processos
• Os pontos fracos do relativismo moral são os seguintes: não sociais errados e é difícil isolá-lo de fatores não morais que
dá conta das duas dimensões da experiência valorativa, podem exercer influência sobre ele.
aceita como corretas práticas condenáveis, não explica a • Os pontos fortes do subjetivismo moral são os seguintes: dá
noção de progresso moral e o argumento da variação cultu- conta das duas dimensões da experiência valorativa, explica
ral em que se apoia é fraco. a moralidade a partir da capacidade natural de simpatia,
• Os pontos fortes do relativismo moral são os seguintes: é sublinha a importância do sentimento de benevolência e
uma reação compreensível à colonização e ao imperialismo do bem público, e o ponto de vista da humanidade repre-
cultural do Ocidente e desenvolve a nossa compreensão de senta uma mudança significativa em relação ao interesse
modos diferentes de ter vidas com sentido e integridade. próprio.
Leituras:
Mill, John Stuart — Sobre a Liberdade. Lisboa: Edições 70, 2006 [ed. original 1859] (especialmente os capítulos «Sobre a Liberdade
de Pensamento e Discussão» e «Sobre a Individualidade como Um dos Elementos do Bem-Estar»).
Nagel, Thomas — Que Quer Dizer Tudo Isto? Lisboa: Gradiva, 1995 [ed. original 1987] (especialmente o capítulo «Certo e Errado»).
Rachels, James — Elementos de Filosofia Moral. Lisboa: Gradiva, 2004 [ed. original 2003] (especialmente os capítulos «O Desafio
do Relativismo Cultural» e «O Subjetivismo em Ética»).
WaRbuRtoN, Nigel — Elementos Básicos de Filosofia. Lisboa: Gradiva, 1998 [ed. original 1995] (especialmente o capítulo «Bem e Mal»).
94 Unidade 3
Os valores:
análise e compreensão da experiência valorativa
+ critério valorativo
Juízos de facto Juízos de valor
Experiência valorativa
Filmes:
Contra a Parede (2004), realizado por Fatih Akin.
Num Mundo Melhor (2010), realizado por Susanne Bier.
Páginas da Internet:
http://criticanarede.com/eti_factovalor.html (artigo «A Distinção Facto/Valor», de Roger Crisp).
http://criticanarede.com/fil_relatcultural.html (artigo «Ética e Relativismo Cultural», de Harry Gensler).
1. O
s juízos de facto são descritivos e os juízos de valor são normativos.
2. A informação descritiva dos juízos de facto é irrelevante para os juízos de valor.
4. As mudanças nos juízos de valor são independentes das mudanças nos juízos de facto.
5. Os critérios valorativos são princípios que codificam a passagem do nível descritivo para
o nível normativo.
7. S
e dissermos «Fiz uma doação a uma instituição que ajuda a combater a pobreza porque isso
é gratificante para mim.», estaremos a recorrer a um critério valorativo para justificar essa ação.
10. Na experiência valorativa há uma tensão entre aspetos subjetivos e aspetos objetivos.
13. Q
uando uma decisão está de acordo com os valores de quem a toma, há nessa experiência
valorativa uma dimensão objetiva.
14. U
ma decisão determinada unicamente pelos valores corretos exprime a dimensão objetiva
da experiência valorativa.
17. A afirmação «A coragem é uma coisa boa.» exprime a ideia de que a coragem tem valor
relativo.
18. A
afirmação «A capacidade de arriscar é uma coisa boa para a nossa sociedade.» exprime
a ideia de que a capacidade de arriscar tem valor absoluto.
19. O
relativismo moral defende que o que tem valor ou deixa de ter se estabelece por referência
a um acordo.
20. O
argumento da variação cultural sustenta a ideia de que os valores são independentes
das culturas.
21. A variação cultural não implica que os valores são relativos, nem que são objetivos.
22. S
e defendermos que a aprovação social de uma prática não equivale a afirmar que ela tem
valor, estaremos a fazer uma crítica ao relativismo moral.
23. Se admitirmos que há progresso moral, ficaremos comprometidos com o relativismo moral.
27. A
sujeição das mulheres é errada, segundo o realismo moral, dado que é contrária aos nossos
sentimentos.
96 Unidade 3
29. O
realismo moral, à partida, dá conta da dimensão objetiva, mas não da dimensão subjetiva
da experiência valorativa.
30. S
e dissermos, tal como o realista moral, que há juízos de valor com um estatuto racional
privilegiado, então os valores podem mudar os nossos desejos e ter a capacidade de motivar.
31. O
realismo moral pensa que de uma razão com força não é possível extrair a força
de ter razão.
32. S
e descobrir os valores corretos exige argumentação racional, a qual se define por respeitar,
tanto quanto possível, condições idealizadas de reflexão, então o realismo moral é uma boa
teoria.
33. S
e defendermos que ter os valores corretos é sobretudo uma questão de sensibilidade,
então não poderemos aceitar o realismo moral.
35. É
nos sentimentos morais comuns à humanidade, defende o subjetivismo moral, que se
encontram os valores.
36. O
subjetivismo moral afirma que responder às circunstâncias com os sentimentos
apropriados é ter os valores corretos.
37. A capacidade de simpatia não tem um papel relevante na defesa do subjetivismo moral.
38. O processo de internalização do olhar dos outros não educa a capacidade de simpatia.
39. O
processo de educação da capacidade de simpatia, por ser social, está exposto à aprovação
de práticas moralmente erradas, mas socialmente aceites.
41. Todas as teorias acerca dos valores concordam que há apenas uma comunidade moral.
42. Segundo o relativismo moral, a cada cultura particular corresponde uma comunidade moral.
43. O argumento relativista da tolerância afirma que a tolerância consiste na coexistência pacífica
de culturas diferentes.
45. A ideia relativista de que as culturas são homogéneas e têm fronteiras claras não está sujeita
a disputa.
47. Segundo o realismo moral, a cada cultura particular corresponde uma comunidade moral.
48. A tolerância, segundo o realismo moral, exige a liberdade de cada um pensar por si.
49. Segundo o subjetivismo moral, a cada cultura particular corresponde apenas uma
comunidade moral.
50. A tolerância, para o subjetivismo moral, implica a promoção do bem público através
de sentimentos moralmente apropriados.
V; 34. F; 35. V; 36. V; 37. F; 38. F; 39. V; 40. F; 41. F; 42. V; 43. V; 44. F; 45. F; 46. F; 47. F; 48. V; 49. F; 50. V.
1. V; 2. F; 3. F; 4. F; 5. V; 6. F; 7. V; 8. V; 9. F; 10. V; 11. V; 12. F; 13. F; 14. V; 15. F; 16. V; 17. F; 18. F; 19. V; 20. F; 21. V; 22. V; 23. F; 24. F; 25. F; 26. V; 27. F; 28. F; 29. V; 30. V; 31. F; 32. V; 33.
SOLUÇÕES:
4 A vida moral:
noções introdutórias
4.1 Intenção ética e norma moral
4.1.1 A vida moral e os seus problemas
4.1.2 A ética e as suas disciplinas
4.1.3 A relação entre as disciplinas da ética
No fim desta unidade, deverá ser capaz de responder Os conceitos seguintes, que são centrais nesta unidade,
às seguintes questões: são definidos no fim do livro:
Que tipos de problemas morais existem? dever especial negativo
Que disciplinas da ética respondem aos diferentes tipos dever especial positivo
de problemas morais? dever geral negativo
O que define as duas teorias principais de ética normativa? dever geral positivo
Que relação há entre as diferentes disciplinas da ética? ética normativa
Que perspetivas parecem estar em conflito dentro de nós? metaética
Quais são os diferentes tipos de deveres morais que temos? teoria deontológica
Que respostas podemos dar ao conflito entre a perspetiva teoria teológica
pessoal e a perspetiva impessoal?
Introdução
A finalidade desta unidade é contribuir para a compreensão das unidades que se seguem — a sua finalidade é instrumental. O que ela faz
é fornecer ferramentas que ajudem a compreender as teorias morais das unidades seguintes e, por consequência, a nossa vida moral.
Num primeiro momento, serão apresentadas noções básicas sobre os diferentes tipos de problemas morais e os diferentes tipos de teorias
morais. Depois, serão dadas noções sobre os diferentes tipos de deveres morais e as diversas perspetivas de hierarquização desses deveres.
Estas, por sua vez, estão associadas à maneira como se responde à diferença entre a dimensão social e a dimensão pessoal da ética, que
em grande medida pode ser vista como equivalente à diferença entre a perspetiva pessoal e impessoal da ética.
Esta unidade introdutória desenha, por isso, uma espécie de geografia moral e ilumina alguns marcos centrais de um território. Organiza,
assim, a nossa compreensão. Saberemos depois melhor que terra pisamos e será menor a possibilidade de perdermos o nosso sentido de
orientação nesse território imenso que é a ética.
100 Unidade 4
Guião de leitura
Fazer filosofia
1 É provável que considere algumas destas regras mais importantes do que outras. Mas o exercício que propomos não é
simplesmente dizer quais pensa serem as mais importantes — é que, dessas regras, diga qual é a regra que nenhuma cir-
cunstância o levaria a abandonar. Tente justificar claramente a sua escolha e responder às críticas dos seus colegas.
2 Escolha duas situações que vê como desafios que contribuem bastante para formar um caráter bom. Justifique a sua escolha.
102 Unidade 4
4.1.1 A vida moral e os seus problemas
A vida moral é a nossa vida comprometida com o que real-
mente importa. Muitas são as coisas que importam na nossa
vida. Podemos ter uma ideia da riqueza da vida moral a
partir da diversidade de problemas que ela levanta. É por
essa razão que a ética cobre um conjunto de disciplinas dife-
rentes, e não é, como se poderia pensar, uma só disciplina.
A amostra que iremos apresentar permite descobrir não só
que há muitos problemas morais, mas também que eles são
de tipo diferente. É uma amostra possível dos problemas que
ocupam os filósofos morais; é provável que a vida nos tenha
já proporcionado circunstâncias em que foi importante res-
ponder-lhes. Para que as diferenças entre tipos de problemas
morais sobressaiam, é útil formar conjuntos distintos de
problemas.
Os problemas que apresentamos no primeiro conjunto são Fig. 1 — Fotograma do filme Invictus (2009), realizado por
razoavelmente gerais e abstratos. No entanto, a resposta Clint Eastwood.
a estes problemas tem implicações práticas, pois fornece A vida não dispensa convicções morais sólidas, mas sem uma
maneira sábia de as pôr em prática o risco de sermos
orientações sobre o que devemos fazer e o tipo de pessoa que
intransigentes é real. Nelson Mandela deu-nos um exemplo
devemos ser. claro dessa sabedoria moral.
104 Unidade 4
Texto 1
106 Unidade 4
Atividades
1 Qual é a disciplina da ética que propõe deveres e virtudes? Por que razão o faz?
3 O que defendemos em termos normativos é irrelevante para o que defendemos ao nível metaético? Porquê?
4 Considere a seguinte afirmação: «Todos estão vinculados ao dever de não matar, quer queiram quer não.»
4.1 Indique se a afirmação poderia pertencer a uma teoria de ética normativa ou a uma teoria metaética. Justifique a sua resposta.
Debate
Imagine um mundo em que os seres humanos são apenas capazes de seguir o seu interesse próprio. Surpreendidos com esse facto,
descobrem que, afinal, a natureza humana é constituída de tal modo que seguir o interesse próprio é a única maneira de se realizarem.
Concluem, por isso, que se dá a coincidência de serem apenas capazes de fazer o que, felizmente, devem fazer. Esta teoria normativa
é teleológica ou deontológica? Porquê? Que nome lhe daria?
Texto 2
O problema não resolvido é o problema familiar de reconciliar a A última representa as exigências da coletividade e dela vem a força
perspetiva da coletividade com a perspetiva do indivíduo; no que essas exigências têm em cada indivíduo. Se não existisse, não
entanto, quero abordá-lo não primariamente como uma questão haveria moralidade, mas apenas a colisão, o compromisso e a conver-
acerca da relação entre indivíduo e sociedade, mas na essência e na gência de perspetivas individuais. É porque o ser humano não ocupa
origem como uma questão acerca da relação de cada indivíduo con- apenas o seu ponto de vista próprio que cada um de nós é sensível
sigo mesmo. Isto reflete a convicção de que a ética […] tem de ser às exigências dos outros através da moralidade privada e pública.
entendida como algo que emerge de uma divisão em cada indiví- Thomas Nagel, Equality and Partiality. Ed. Oxford, 1991, pp. 3-4.
duo entre duas perspetivas, a pessoal e a impessoal.
Texto 3
De acordo com a moralidade de senso comum, devemos dar algum E há certas pessoas a cujos interesses devemos dar algum tipo de
peso aos interesses de estranhos. Mas há certas pessoas a quem ou prioridade. Essas são as pessoas com quem mantemos certas rela-
podemos ou devemos dar algum tipo de prioridade. Assim, estamos ções especiais. Assim, cada pessoa deve dar algum tipo de prioridade
moralmente autorizados a dar algum tipo de prioridade aos nossos aos interesses dos seus filhos, pais, alunos, pacientes, àqueles que
próprios interesses. A maioria acredita que não tem o dever de aju- representa, ou aos seus compatriotas.
dar os outros quando isso exigiria um sacrifício demasiado grande. DereK ParfiT, Reasons and Persons. Ed. Oxford, 1984, p. 485.
4.2.2 A prioridade da perspetiva impessoal
Fig. 4 — Fotograma do filme Crash — Segundo esta posição, as exigências dos outros têm prioridade. Essas exigên-
No Limite (2004), realizado por Paul Haggis. cias são aquelas que nos impõem deveres positivos. Isso quer dizer que,
Este filme mostra que os preconceitos sociais, prioritariamente, temos de fazer o bem aos outros, sejam eles pessoas espe-
culturais e raciais são obstáculos poderosos ciais para nós ou simples estranhos. O dever geral positivo de beneficência
a vidas morais satisfatórias e à exigência é o mais importante, e de tal modo o é que pode implicar privações pessoais
de atender ao bem impessoal. consideráveis, limitando drasticamente a possibilidade de cada um cultivar
o seu jardim. O texto seguinte exprime com clareza essa posição:
Texto 4
A moralidade requer que realize — daqueles atos que nenhuma E exige que eu pergunte como posso fazer a maior contribuição
outra razão proibiria — aquele ato que é razoavelmente previsível possível, ponderadas todas as coisas — ainda que isto possa
que conduza às melhores consequências globais. impor-me privações consideráveis — e proíbe-me de fazer menos
do que isso. Se a afirmação é correta, a maioria das minhas ações é
Poucos de nós acreditam nesta afirmação; nenhum de nós age de
imoral, dado que quase nada do que faço otimiza o meu tempo e
acordo com ela. Considere apenas o quanto é radicalmente exi-
os meus recursos; se for honesto comigo, acabarei por reconhecer
gente. Ela vincula-nos a agir não com vista a prosseguir meramente
que falho constantemente em fazer tanto bem quanto aquele
os nossos interesses e projetos, ou os dos indivíduos que podemos
de que sou capaz.
privilegiar, mas os interesses de todos os indivíduos, do mundo
enquanto bem integral e total. Shelly Kagan, The Limits of Morality. Oxford: Oxford University Press, 1989, p. 1.
110 Unidade 4
Texto 5
O que farei é tentar operar com as nossas intuições acerca das respon- O que defendo é que essa é a verdadeira fonte de todas as responsa-
sabilidades especiais. Por outras palavras, irei argumentar que não há bilidades especiais padrão que tão prontamente admitimos. As mes-
nada assim de tão especial acerca delas. Isso não significa afirmar que mas considerações de vulnerabilidade que tornam as nossas obriga-
os deveres especiais são apenas casos particulares de alguns deveres ções para com as nossas famílias, amigos, clientes e compatriotas
mais gerais. Significa antes que ambos os tipos de deveres derivam especialmente fortes podem também gerar responsabilidades seme-
fundamentalmente dos mesmos tipos de considerações morais. Pelas lhantes perante um grupo de pessoas bastante maior que não tem
mesmas razões que reconhecemos um deles, teremos de reconhecer connosco qualquer relação especial.
o outro. O que é crucial, na minha opinião, é que os outros dependem roberT e. gooDin, Protecting the Vulnerable — A Reanalysis of
de nós. Eles são particularmente vulneráveis às nossas ações e escolhas. Our Social Responsabilities. Chicago: University of Chicago Press, 1985, p. 11.
Atividade
Debate
Considere o seguinte caso: Dois carros colidem violentamente e incendeiam-se. Uma pessoa que passava por perto acorre para ajudar. Os
dois condutores estão vivos, mas muito feridos. Dada a intensidade das chamas, no máximo a pessoa conseguirá salvar apenas um deles. Mas
percebe, para sua aflição, que um dos condutores é o seu pai e que o outro é um especialista muito famoso no tratamento do cancro que
está perto de descobrir uma cura para essa terrível doença.
Qual dos condutores deve ser salvo? Justifique dizendo se a sua resposta está mais próxima do senso comum ou da moralidade utilitarista.
• Os problemas mais gerais e abstratos são estudados no • A perspetiva pessoal manifesta-se num padrão moral para a
âmbito da metaética e da ética normativa. conduta individual e a perspetiva impessoal num padrão
moral para as instituições sociais.
• Os problemas mais particulares e concretos são estudados
no âmbito da ética prática. • O problema central da ética, gerado pelo conflito entre a pers-
petiva pessoal e a perspetiva impessoal, é o seguinte: Qual é a
• Os problemas morais, por serem diferentes, exigem respos- relação correta entre as suas perspetivas? Ou, dito de outro
tas igualmente diferentes. modo, como podemos ajustar o padrão moral para a conduta
• Os problemas normativos exigem respostas normativas e dos indivíduos e o padrão moral para as instituições sociais?
os não normativos exigem respostas não normativas. • Na moralidade de senso comum, a perspetiva pessoal tem
• As disciplinas normativas da ética são a ética normativa e a prioridade sobre a perspetiva impessoal.
ética prática; a disciplina não normativa é a metaética. • A hierarquia de deveres morais de senso comum atribui uma
• A ética normativa procura responder à questão sobre como importância apenas residual aos deveres gerais positivos.
devemos viver, e as suas teorias fazem propostas normativas • As teorias teleológicas, sobretudo nas suas versões utilitaris-
sobre o que fazer, como agir e que tipo de pessoa ser. tas, refletem a prioridade da perspetiva impessoal sobre a
• A ética normativa inclui teorias teleológicas, de que a teoria perspetiva pessoal.
utilitarista de John Stuart Mill é uma das versões, e teorias • A hierarquia de deveres morais utilitarista atribui mais impor-
deontológicas, de que a teoria deontológica de Immanuel tância aos deveres gerais positivos do que aos deveres espe-
Kant é uma das suas versões. ciais positivos.
• As teorias teleológicas consideram que o bem é o único fun- • A moralidade de senso comum é insatisfatória porque os
damento da moralidade, enquanto as deontológicas defen- interesses dos outros têm um peso demasiado secundário
dem que outros fatores moralmente relevantes além do bem nas nossas considerações.
são também fundamentos da moralidade, os quais têm a
importante função de serem restrições à promoção do bem. • A moralidade utilitarista é insatisfatória porque os projetos
pessoais ficam seriamente comprometidos.
• A ética prática delibera sobre casos particulares recorrendo a
princípios gerais, que afina segundo as exigências dos casos • Uma alternativa interessante à moralidade de senso comum
para que daí resulte um juízo moral correto sobre o caso em e à moralidade utilitarista defende que a relação correta
apreciação. entre as duas perspetivas é uma relação de paridade.
• A metaética procura explicar o que é a moralidade, e não • A defesa de uma relação de paridade entre as duas perspetivas
que moralidade adotar, tentando dar respostas convincentes tem a sua justificação em considerações de vulnerabilidade.
a três questões, a saber: em que consiste a moralidade, como • A defesa da paridade entre perspetivas tem como conse-
pode ser conhecida e qual é a sua justificação. quência que os deveres especiais positivos e os deveres
• Entre as diferentes disciplinas da ética não há fronteiras gerais positivos têm igual importância.
rígidas, mas relações de continuidade: entre a ética norma- • Segundo a posição da paridade entre perspetivas, os deveres
tiva e a ética prática há apenas diferenças no grau de gene- especiais positivos ficam a cargo da moralidade privada, e os
ralidade dos princípios, e entre a ética normativa e a metaé- deveres gerais positivos são atendidos pela nossa interven-
tica, que a procura explicar, há relações de dependência. ção moral pública.
Leituras:
AlmeidA, Aires (org.) — Dicionário Escolar de Filosofia. Lisboa: Plátano Editora, 2009.
BlAckBurn, Simon — Dicionário de Filosofia. Lisboa: Gradiva, 1997 [ed. original 1994].
GrAylinG, A. C. — «Virtudes e Atributos», in O Significado das Coisas. Lisboa: Gradiva, 2002 [ed. original 2001].
nAGel, Thomas — «Ética», in A Última Palavra. Lisboa: Gradiva, 1999 [ed. original 1997].
112 Unidade 4
Ética prática
Teorias teleológicas
Normativas
Teorias deontológicas
Ética
se houver paridade
entre as perspetivas Não há uma hierarquia
Perspetivas
de deveres morais
Filmes:
Invictus (2009), realizado por Clint Eastwood.
Crash — No Limite (2004), realizado por Paul Haggis.
Páginas da Internet:
http://criticanarede.com/eti_eticamoral.html (artigo «Ética», de Thomas Mautner)
http://criticanarede.com/teoriasetica.html (artigo «Teorias sobre a Ética», de Hugh LaFollette)
2. A ética é formada por disciplinas normativas e por uma disciplina não normativa.
4. Perguntar que princípios morais básicos devemos adotar é levantar um problema não normativo.
6. Perguntar qual é a justificação apropriada dos juízos morais é levantar um problema
normativo.
7. A resposta aos problemas não normativos diz-nos em que consiste a moralidade.
8. A resposta aos problemas normativos diz-nos que moralidade devemos adotar.
9. A ética normativa é a disciplina da ética que responde ao problema de saber o que
é a moralidade.
10. A ética normativa pretende fornecer uma resposta para o problema de saber como devemos viver.
11. A ética prática fornece uma resposta para problemas normativos gerais.
16. A metaética procura saber qual é a natureza da moralidade e o que é uma justificação moral.
17. A metaética diz-nos que princípios devemos adotar nas nossas vidas.
18. É na disciplina de metaética que são apresentadas teorias sobre se a moralidade é objetiva
ou não.
19. É na disciplina de ética normativa que são apresentadas teorias sobre se a moralidade é racional.
21. Os princípios normativos gerais e os juízos morais particulares distinguem-se apenas pelo
seu grau de generalidade.
22. Uma afirmação normativa geral é independente de afirmações metaéticas sobre o que
é a moralidade.
24. A afirmação «Temos, à partida, o dever de não mentir.» é própria da disciplina de ética normativa.
26. A afirmação «Os nossos princípios, para serem moralmente válidos, têm de resultar de uma
justificação imparcial.» é própria da metaética.
27. A afirmação «O dever de combater a fome é louvável, mas excede as nossas obrigações.»
é própria da disciplina de metaética.
114 Unidade 4
30. A reflexão ética é motivada pelo desejo de valorizar a dimensão social da ética.
33. Os deveres gerais positivos têm um peso importante na moralidade de senso comum.
34. Os deveres especiais positivos têm um peso irrelevante na moralidade de senso comum.
35. Segundo a hierarquia de deveres morais de senso comum, o dever de visitar um amigo que se
encontra internado num hospital é mais forte do que o dever de distribuir comida pelos sem-abrigo.
36. As teorias morais teleológicas, especialmente na sua versão utilitarista, inclinam-se mais para
dar prioridade à perspetiva impessoal.
37. A hierarquia utilitarista de deveres morais atribui um peso importante aos deveres gerais positivos.
38. Segundo a hierarquia utilitarista de deveres morais, o dever de aliviar a fome de um estranho
longínquo é mais forte do que o dever de aliviar a constipação de um filho.
39. A afirmação «Devemos contribuir, pelos meios considerados necessários, para que todas
as mulheres possam frequentar a escola.» exprime um dever especial positivo.
40. A afirmação «Devemos abster-nos de violar os contratos.» exprime um dever geral negativo.
41. A afirmação «Devemos impedir, usando todos os meios ao nosso alcance, que os nossos
filhos corram o risco de se afogar.» exprime um dever geral positivo.
42. A afirmação «Devemos abster-nos de interferir nos projetos particulares dos nossos amigos.»
exprime um dever especial negativo.
43. A afirmação «Não devemos interferir na liberdade dos outros.» exprime um dever geral positivo.
44. A moralidade de senso comum tem o aspeto insatisfatório de exigir demasiados sacrifícios
à nossa vida pessoal.
46. Defender uma relação de paridade entre a perspetiva pessoal e a perspetiva impessoal
é dar mais importância ao bem imparcialmente considerado.
47. A posição de que as duas dimensões da moralidade têm a mesma importância exige o
mesmo empenho nos nossos projetos particulares e na nossa intervenção moral pública.
49. Para quem defende a paridade das duas dimensões da moralidade, o dever de dar assistência
aos nossos pais é mais forte do que o dever de contribuir para um programa de vacinação
num país com uma taxa muito alta de mortalidade infantil.
50. A paridade entre as duas perspetivas exige de nós um empenho em projetos internacionais
de combate à fome tão claro como o nosso empenho na educação dos filhos.
F; 34. F; 35. V; 36. V; 37. V; 38. V; 39. F; 40. V; 41. F; 42. V; 43. F; 44. F; 45. V; 46. F; 47. V; 48. V; 49. F; 50. V.
1. F; 2. V; 3. V; 4. F; 5. V; 6. F; 7. V; 8. V; 9. F; 10. V; 11. F; 12. V; 13. V; 14. F; 15. F; 16. V; 17. F; 18. V; 19. F; 20. V; 21. V; 22. F; 23. V; 24. V; 25. F; 26. V; 27. F; 28. V; 29. V; 30. F; 31. V; 32. F; 33.
SOLUÇÕES:
5 A ética utilitarista
de John Stuart Mill
5.1 O princípio da maior felicidade
5.1.1 O que é a felicidade?
5.1.2 O argumento de Mill a favor do princípio da maior felicidade
No fim desta unidade, deverá ser capaz de responder Os conceitos seguintes, que são centrais nesta unidade,
às seguintes questões: são definidos no fim do livro:
Qual é, segundo o utilitarismo de Mill, o princípio da ação altruísmo
moralmente correta? egoísmo ético
Com que argumento defende Mill o princípio da maior hedonismo
felicidade?
princípio da maior felicidade (ou princípio da utilidade)
Que objeções enfrenta a teoria utilitarista de Mill?
utilitarismo
Quais são os méritos dessa teoria?
Introdução
Quando procuramos decidir se uma ação é moralmente correta, é natural que tenhamos em conta as suas consequências. O utilitarismo
é uma teoria consequencialista, defendendo que a ação correta é determinada apenas pelas suas consequências.
Para decidir o que se deve fazer, é preciso usar toda a informação disponível sobre o que pode acontecer caso se realize a ação. Essa infor-
mação, que é sempre incerta, apoia crenças igualmente incertas sobre o que se deve fazer numa dada situação. Mas há crenças incertas
mais razoáveis do que outras.
O utilitarismo pretende responder à incerteza quanto ao futuro com as crenças mais razoáveis sobre as consequências das ações.
116 Unidade 5
A máquina da felicidade
O Manuel gosta de ter amigos em casa para jogar na — Não acredito que prefiras uma tarde de sacrifício a
PlayStation. Desta vez, convidou o Jorge e o Diogo. uma tarde de prazer. Não acho que isso faça alguém feliz.
Geralmente, a mãe do Manuel chega a casa por volta das
— Talvez o prazer não seja tudo. Ocorreu-me ontem
cinco e meia e faz pipocas. Bem quentinhas sabem ainda
uma ideia que pode ter mudado a minha maneira de
melhor. Ao prazer de jogar na PlayStation soma-se o pra-
ver as coisas — afirmou o Diogo com ar pensativo.
zer de comer pipocas. O Jorge ficou de passar por casa
do Diogo e depois seguem os dois para casa do Manuel. — Conta lá essa grande ideia. Se concordar, vou já
para casa estudar — desafiou o Jorge na brincadeira.
Foi com espanto que o Jorge encontrou o Diogo a
estudar matemática. No dia seguinte não iam ter — Ouve com atenção — pediu o Diogo. — Imagina
teste, mas o Diogo parecia muito aplicado. O Jorge que foi criada a máquina da felicidade. É uma máquina
cumprimentou-o e perguntou: espetacular. Se nos ligarmos a ela, passamos a viver
numa realidade virtual permanentemente felizes.
— É para ir? São quase três. Foi a essa hora que pro-
metemos estar lá. — Diz-me lá como — interrompeu o Jorge.
— Hoje não me apetece. Disse que ia, mas estou arre- — É simples. Gostavas de ser uma estrela pop ou um
pendido — disse o Diogo com ar meio aborrecido. craque de futebol ou um cientista genial que fez uma
descoberta revolucionária. Ou ter uma outra vida
— Mas porquê? — quis saber o Jorge.
qualquer. Seja qual for, é uma vida cheia de prazeres.
— Estou com dúvidas nesta matéria de matemática.
— E depois? Isso parece-me uma fantasia sem sen-
Quero fazer muitos exercícios. É a única maneira de
tido, mas continua lá — observou o Jorge.
resolver as minhas dificuldades. Se não fizer agora,
depois temos mais matéria nova e eu fico a ver navios. — Mas o melhor da máquina é isto: nessa realidade
virtual, tens tudo o que te faz feliz, mas pensas que a
— Não acredito que queres ficar em casa mergulhado
tua vida decorre no mundo real; em nenhum
em equações quando podias passar uma tarde tão
momento duvidas de que és um ser humano normal
boa em casa do Manuel. Nem parece teu, rapaz —
com uma vida normal.
desafiou o Jorge, que continuou desconfiado: — Será
que estás com algum problema e não queres dizer?
— Não estou, a sério. É mesmo só a matemática. Já
percebi que sem praticar muito não tiro as notas que
quero. E, além disso, fico sem saber realmente, que é
o pior de tudo. Para o ano, as minhas dificuldades
serão ainda maiores. Será que não compreendes isto?
— Claro que compreendo, só que acho estranho. É a
primeira vez que não alinhas — respondeu o Jorge.
— Eu até gostava de ir, mas tenho de fazer este sacri-
fício. Diz ao Manuel que não posso — pediu o Diogo.
Fig. 1 — Cartaz do filme Total Recall (2012).
Fez-se um breve silêncio. No olhar do Jorge, a sur-
presa perante a atitude do Diogo era evidente. Já sem No filme Total Recall uma empresa implanta nos seus clientes
memórias falsas de experiências que eles gostariam de ter vivido.
grande esperança de o convencer, disse:
Guião de leitura
Fazer filosofia
1 Debata com toda a turma se a felicidade é o aspeto mais decisivo nas nossas vidas ou se outros aspetos, como a autonomia,
por exemplo, são tão ou mais importantes do que a felicidade.
2 Identifique aspetos da vida atual que podem ser semelhantes a uma existência ligada à máquina da felicidade.
118 Unidade 5
Atividades
1 Indique quais das afirmações seguintes são pensamentos consequencialistas e quais não são.
A — Devemos permitir o aborto porque a mulher tem demasiadas limitações cognitivas para dar os cuidados adequados ao seu filho.
B — Ajude a sua amiga a compreender a matéria de Português porque esse é o seu dever.
C — Se lhe disser a verdade, ela ficará deprimida.
D — Nunca quebre promessas seja em que circunstância for.
E — Roubar para matar a fome não é errado.
F — Tem a obrigação de doar um rim ao seu pai.
2 Apresente agora duas afirmações criadas por si, uma consequencialista e outra que não o seja.
Texto 2
De dois prazeres, se houver um ao qual todos ou quase todos os que um ser amplamente dotado sentirá sempre que, da forma como o
tiveram experiência de ambos derem uma preferência decidida, mundo é constituído, qualquer felicidade que possa esperar é imper-
independentemente de sentirem qualquer obrigação moral para o feita. Mas pode aprender a suportar as suas imperfeições, se de todo
preferir, então esse será o prazer mais desejável. Se um dos dois for forem suportáveis, e estas não o farão invejar o ser que, na verdade,
colocado, por aqueles que estão completamente familiarizados com está inconsciente das imperfeições, mas apenas porque não sente
ambos, tão acima do outro que eles o preferem mesmo sabendo de modo nenhum o bem que essas imperfeições qualificam.
que é acompanhado de um maior descontentamento, e se não abdi- É melhor ser um ser humano insatisfeito do que um porco satisfeito;
cariam dele por qualquer quantidade do outro prazer acessível à sua é melhor ser Sócrates insatisfeito do que um tolo satisfeito. E se o tolo
natureza, então teremos razão para atribuir ao deleite preferido uma ou o porco têm uma opinião diferente é porque só conhecem o seu
superioridade em qualidade que ultrapassa de tal modo a quanti- próprio lado da questão. A outra parte da comparação conhece
dade que esta se torna, por comparação, pouco importante. […] ambos os lados.
É indiscutível que um ser cujas capacidades de deleite sejam baixas John Stuart Mill, Utilitarismo. Porto: Porto Editora,
tem uma probabilidade maior de as satisfazer completamente, e que 2005 [ed. original 1861], pp. 50-51.
Distinção qualitativa Há filósofos que consideram a distinção entre prazeres inferiores e superio-
do prazer res incompatível com o hedonismo.
Se, como afirma o hedonismo, uma experiência vale mais do que outra
apenas em virtude de ser mais aprazível, ao aumentarmos progressiva-
Prazeres Prazeres mente a aprazibilidade do prazer inferior, chegaremos a um ponto em que
superiores inferiores este pesará mais do que um prazer superior na balança dos prazeres; e,
nesse caso, se quisermos manter o hedonismo, a distinção entre prazeres
Intelectuais Corporais
inferiores e superiores deixará de fazer sentido e terá de ser abandonada.
120 Unidade 5
Texto 3
Juízo intuitivo
Atividades
3 O que pensaria um utilitarista como Mill da célebre máxima dos mosqueteiros no romance de Alexandre Dumas: «Um por todos
e todos por um.»?
Texto 4
122 Unidade 5
Atividades
1 Terá o princípio básico do utilitarismo de Mill alguma coisa que ver com o facto de ele ter sido um reformador social?
Justifique a sua resposta.
2 Qual é, segundo Mill, a coisa que tem mais valor na vida de cada um de nós?
3 «Mais vale passar a vida a ver televisão com um saco de pipocas na mão do que passar a vida a apreciar a música de Schubert.»
Mill concordaria com a afirmação? Justifique a sua resposta.
6 Será que a conclusão do argumento se segue da afirmação «A única coisa que é desejável como fim último para cada pessoa
é a sua própria felicidade.»? Justifique a sua resposta.
7 Que defesa pode ser feita do argumento a favor do princípio da maior felicidade?
Texto 5
Os moralistas utilitaristas foram além de quase todos os outros ao afirmar que o motivo,
embora seja muito relevante para o valor do agente, é irrelevante para a moralidade da
ação. Aquele que salva um semelhante de se afogar faz o que está moralmente certo seja
o seu motivo o dever, seja a esperança de ser pago pelo incómodo; aquele que trai um
amigo que confia em si é culpado de um crime, mesmo que o seu objetivo seja servir
outro amigo relativamente ao qual tem maiores obrigações.
John Stuart Mill, Utilitarismo. Porto: Porto Editora, 2005 [ed. original 1861], p. 59.
Que significado tem o que acabou de ler? Que as consequências das ações
são o foco primário da avaliação moral.
Claro que os motivos dos agentes não deixam de ter importância. No
entanto, essa importância está limitada ao valor moral dos agentes, que não
é o foco primário da avaliação moral. O que é decisivo do ponto de vista
moral é salvar um semelhante de se afogar, na medida em que daí resultem
as melhores consequências — os motivos de quem o faz são secundários.
Mill reconhece que o interesse próprio e a inveja, na sua habitual estreiteza,
não motivam para realizar as ações que promovem a felicidade geral. Sem
dúvida que motivos benevolentes dispõem mais favoravelmente os agentes
para essa finalidade. Todavia, os motivos não são o fator moralmente deci-
sivo. Esta ideia é muito importante para compreender a diferença central
entre a ética de Mill e a ética de Kant. Como verá, neste último a avaliação
moral incidirá primariamente na motivação dos agentes.
Justificação moral
das ações
Motivos Consequências
Atividade
1 Por que razão considera Mill que os motivos são secundários na avaliação moral?
124 Unidade 5
5.3.1 Algumas objeções à ética de Mill
As objeções que irá considerar têm uma estratégia em comum. A ideia é
partir dos juízos que faz acerca de casos particulares. Se esses juízos afir-
mam que uma ação é errada e a ética de Mill implica que é certa, terá indí-
cios para defender que a teoria é falsa.
Experiência mental 1
Imagine que tem à sua disposição um computador capaz de lhe fornecer todas as
experiências que mais deseja. Passará a ser uma pessoa absolutamente feliz e não
alguém que ora sente alegria e entusiasmo pela vida, ora tristeza e tédio. Tem de
escolher entre ligar-se à máquina de experiências ou prosseguir a vida que já tem. Se
o fizer, poderá viver a ilusão de ser, por exemplo, um ídolo pop, um revolucionário que
transforma o mundo num lugar perfeito ou até um jogador de futebol milionário, Fig. 5 — Cartaz do filme Matrix, realizado
informado e com gosto. Qual é a sua escolha? pelos irmãos Wachowski.
Se o utilitarismo de Mill for verdadeiro, a escolha certa é estabelecer a ligação à O filme Matrix passa-se num futuro
máquina. Mas muito provavelmente não vai ser capaz de esquecer o valor que tem o longínquo, num tempo em que máquinas
facto de viver uma vida real. Fazer certas coisas tem valor para além do sentimento de altamente inteligentes dominaram a espécie
felicidade que produz em si. Não quer perder a autonomia e a realidade de fazer as humana através de um programa de
coisas. Isto é eticamente crucial e está acima da felicidade. computador, em tudo semelhante à máquina
de experiências de que nos fala esta objeção.
Experiência mental 2
Um crime horrível ocorreu numa cidade. O chefe da polícia descobriu que o assassino
está morto. Todavia, ninguém acreditará nele caso apresente os indícios conclusivos
que tem em sua posse. O estado de pânico na cidade é incontrolável. Rapidamente
um suspeito terá de ser julgado e condenado. Se tal não acontecer, revoltas semearão
o caos e a violência. Haverá certamente mortos e feridos.
Estava o angustiado chefe da polícia a pensar no caso e eis que entra no seu gabinete
um desconhecido que lhe diz vaguear pela cidade e não ter relações ou amizades que
o prendam ao mundo. O chefe da polícia tem de repente a solução para o caso. Por-
que não prender o vagabundo solitário e manipular as provas de maneira que ele seja
julgado, condenado e executado, uma vez que a lei estabelece a pena de morte para
casos do género? Ninguém saberá o que de facto se passou.
Se for esta a opção, morrerá uma pessoa, mas a vida e o bem-estar de outras serão preser-
vados. A consequência será claramente mais felicidade para o maior número.
Ora, se o utilitarismo for verdadeiro, esta é a opção certa. Mas será a opção justa? Não
Fig. 6 — Cartaz do filme Medidas Extremas haverá aqui um conflito muito sério entre o padrão utilitarista e o valor da justiça?
(1996), realizado por Michael Apted.
Este filme mostra que a maximização da
felicidade, caso não esteja sujeita a restrições
claras, pode implicar escolhas morais A objeção da integridade
claramente condenáveis. As histórias em que se baseia esta objeção poderiam passar-se consigo. Os
dilemas que elas apresentam são genuínos e não deixam pessoa alguma
indiferente.
Experiência mental 3
Caso 1 Caso 2
George fez um doutoramento em química mas não tem emprego. Os acasos de uma expedição botânica atiram Jim para o centro de
A sua saúde frágil limita as opções de trabalho. Tem dois filhos. É o uma aldeia sul-americana. De repente, vê à sua frente uma série
trabalho da sua mulher que garante a subsistência de uma família de homens atados e alinhados contra uma parede. Estão prestes a
que vive dificuldades e tensões. Os filhos ressentem-se de tudo isto, ser fuzilados. Mas tudo dependerá de Jim.
e tomar conta deles tornou-se um problema. Mas, um dia, um quí- Por cortesia, o capitão que comanda as operações concede-lhe o
mico mais velho propõe-lhe um emprego num laboratório que faz privilégio de matar um dos índios. Se o fizer, os outros serão liberta-
investigação em guerra química e biológica. George é contra este dos. Se recusar a proposta, todos os índios morrerão.
tipo de guerra. Já a sua mulher nada vê de incorreto nesse tipo de
investigação. Quer aceite quer não, a investigação prosseguirá.
George não é realmente necessário.
Segundo a teoria moral de Mill, George deve aceitar o emprego e Jim deve
matar o índio. Não se trata apenas de dizer que nada há de errado nisso,
mas de afirmar que essas são as opções corretas e óbvias. Mas será que são
realmente corretas e óbvias? Serão as considerações utilitaristas as únicas
relevantes para tratar destes casos?
Se a sua resposta for «não», é porque se sente especialmente responsável não
só pelo que é, mas também pelo que deve ser — pelo tipo de pessoa que
deve ser. E nesse caso é a sua integridade que está em jogo. Se admitir
que uma teoria ética não pode limitar-se a ponderar consequências e terá de
incluir considerações sobre o tipo de pessoa que devemos ser, o utilitarismo
de Mill é claramente insatisfatório.
126 Unidade 5
Naturalismo
Direitos humanos, regras absolutas, mandamentos divinos e princípios abs-
tratos podem ser centrais para muitas pessoas, mas é difícil saber que relação
têm com as nossas vidas. Ora, o prazer e a dor que estão na base do utilita-
rismo são, por contraste, bem reais nas nossas vidas. Daí que o utilitarista,
perante uma pergunta do género «A moralidade é acerca de quê?», responda
que é acerca do prazer e como alcançá-lo e acerca da dor e como evitá-la.
Simplicidade
Alguns filósofos encontram no utilitarismo a simplicidade indispensável
para tratar de casos complexos. Se pensar nas lutas sociais e políticas, verá
que a sua discussão apela a conceitos morais como os de «dever», «direitos»
e «culpa» e faz juízos sobre o caráter das pessoas, o que é sempre delicado.
Ao ignorar as complicações que daqui resultam, o utilitarismo pode perguntar
simplesmente: «Que opções são realizáveis? Para cada uma das opções
realizáveis, quantas pessoas beneficiarão e quantas sofrerão? E quanto?»
Não é que as respostas a estas questões sejam fáceis. Todavia, é inegável
que as questões são simples e claras.
Atividades
4 «Um dos méritos do utilitarismo é ele ser menos abstrato do que outras teorias.» Concorda? Porquê?
Debate
1 O utilitarismo não dá lugar a conflitos de valor. Isso será uma vantagem ou uma desvantagem?
2 A teoria moral de Kant, que em seguida irá estudar, defende que os homens são fins em si. Será que esta ideia pode corrigir alguns
defeitos do utilitarismo? Justifique a sua resposta.
3 O que faria num caso em que aliviar a dor de uma só pessoa diminui a felicidade de todos os envolvidos? Justifique a sua resposta.
• O princípio da maior felicidade defende que é moralmente • O utilitarismo de Mill enfrenta a objeção de que a autonomia
correta a ação que produz a maior felicidade para o maior e a realidade são mais importantes do que a felicidade —
número de pessoas. objeção da máquina de experiências.
• O cálculo da felicidade deve ser imparcial, ou seja, a felici- • O utilitarismo de Mill é enfraquecido por permitir ações que
dade de uma pessoa particular não conta mais nem menos maximizam a felicidade, mas contrariam o valor da justiça
do que a de qualquer outra. — objeção da justiça.
• O utilitarismo de Mill contrasta fortemente com o egoísmo • O utilitarismo de Mill enfrenta a dificuldade de calcular qual
ético. das ações disponíveis tem uma maior probabilidade de maxi-
mizar a felicidade — objeção das dificuldades de cálculo.
• O utilitarismo de Mill é uma teoria exigente, pois temos sem-
pre a obrigação de atender imparcialmente à felicidade. • O utilitarismo de Mill é enfraquecido por se limitar a ponde-
rar consequências, excluindo considerações sobre o tipo de
• O utilitarismo de Mill apresenta uma perspetiva hedonista da pessoa que devemos ser — objeção da integridade.
felicidade, isto é, a felicidade consiste no prazer e na ausên-
cia de dor. • O utilitarismo de Mill tem o mérito de estabelecer a moralidade
numa base natural, de tal modo que a moralidade é tratada
• O utilitarismo de Mill não é apenas quantitativo, uma vez que como uma dimensão real das nossas vidas, pois envolve o
tem também em conta a qualidade dos prazeres. facto natural de termos dor e prazer — mérito do naturalismo.
• Mill defende que há prazeres superiores (intelectuais) e pra- • O utilitarismo de Mill tem o mérito de dispensar perguntas
zeres inferiores (corporais). complicadas sobre direitos e culpa, por exemplo, e de se
• O argumento de Mill a favor do princípio da utilidade não é ocupar apenas com questões mais simples, como as de
persuasivo; isto porque: a visibilidade é um conceito descri- saber que opções são realizáveis e qual dessas opções tem as
tivo e a desejabilidade é um conceito normativo; pressupõe melhores consequências — mérito da simplicidade.
que tudo o que as pessoas desejam como fim último é a sua • O utilitarismo de Mill tem o mérito de evitar conflitos de
própria felicidade; infere aquilo que se deve desejar a partir valor e de simplificar a tomada de decisões, uma vez que a
daquilo que de facto se deseja; por fim, ainda que seja ver- felicidade é a única coisa valiosa — mérito de pesar boas e
dade que a única coisa desejável como fim último para cada más consequências sem estar sujeito a regras gerais.
pessoa seja a sua própria felicidade, daí não se segue que
cada pessoa deve realizar as ações que promovem a maior
felicidade.
Leituras:
Mill, John Stuart — Utilitarismo. Lisboa: Gradiva, 2005 [ed. original 1861].
Rachels, James — Elementos de Filosofia Moral. Lisboa: Gradiva, 2004 [ed. original 2003], caps. 7 e 8.
singeR, Peter — «O Que a Ética É: Uma Perspectiva», in Ética Prática. Lisboa: Gradiva, 2002 [ed. original 1993].
WaRbuRton, Nigel — «Bem e Mal», in Elementos Básicos de Filosofia. Lisboa: Gradiva, 2007 [ed. original 1995], 2.a edição.
WaRbuRton, Nigel — «John Stuart Mill, Utilitarismo», in Grandes Livros de Filosofia. Lisboa: Edições 70, 2001 [ed. original 1998].
WilliaMs, Bernard — «Uma Crítica ao Utilitarismo», in Almeida, A. e Murcho, D. (org.) Textos e Problemas de Filosofia. Lisboa: Plátano
Editora, 2006 [ed. original 1973].
128 Unidade 5
Não. Deontologia
Sim. Consequencialismo
defende o
requer baseia-se no
Imparcialidade Hedonismo
A felicidade de cada um não conta mais do que A felicidade consiste no prazer
a felicidade de qualquer outra pessoa. e na ausência de dor.
Distinção qualitativa
do prazer
Filmes:
Medidas Extremas (1996), realizado por Michael Apted.
Gattaca (1997), realizado por Andrew Nicol.
Páginas da Internet:
http://criticanarede.com/teleologicas.html (artigo «Éticas Teleológicas», de Thomas Hurka)
http://criticanarede.com/eti_mill.html (artigo «A Ética de John Stuart Mill», de Faustino Vaz)
1. O utilitarismo de Mill procura dar resposta à exigência de consideração imparcial dos seres
humanos.
6. O princípio da maior felicidade ou princípio da utilidade afirma que a ação correta
é a que maximiza a felicidade para o maior número.
8. Para Mill, a felicidade de uma pessoa com quem temos uma relação de amizade conta mais
do que a felicidade de uma pessoa distante.
11. Segundo alguns críticos, o utilitarismo de Mill é demasiado exigente por defender
a consideração imparcial da felicidade.
15. A avaliação moral de uma ação depende do respeito por certos limites à promoção
das melhores consequências.
16. Mill pensa que a moralidade de uma ação depende do cumprimento de regras abstratas.
17. Defender a felicidade do maior número geralmente implica apoiar reformas sociais
que promovam a igualdade e a liberdade.
18. O hedonismo de Mill consiste na ideia de que a felicidade é um estado mental de prazer
e de ausência de dor.
20. O
hedonismo de Mill distingue prazeres superiores de prazeres inferiores.
21. Para Mill, o prazer de comer tem a mesma importância moral que o prazer de apreciar a beleza.
25. Segundo Mill, uma vida limitada a prazeres baixos com grande intensidade e duração
é sempre pior do que uma vida de prazeres elevados com pouca intensidade e duração.
27. A analogia entre visibilidade e desejabilidade, que o argumento de Mill faz, é boa.
28. Mill está errado quando afirma que desejar uma coisa prova que ela é desejável.
130 Unidade 5
30. O facto de haver pessoas que sacrificam a sua qualidade de vida para ajudar pessoas
vulneráveis à pobreza mostra que a premissa da afirmação anterior é falsa.
31. Se o conhecimento ou o bem-estar dos outros têm importância intrínseca, então a felicidade
própria não é o fim último que cada pessoa deseja.
32. Da premissa «a única coisa que cada pessoa deseja como fim último é a sua própria
felicidade» segue-se que «a única coisa que é desejável como fim último para cada pessoa
é a sua própria felicidade».
33. Se é um facto que as pessoas apenas podem desejar a sua própria felicidade, então faz
sentido dizer que elas devem maximizar a felicidade geral.
34. O argumento de Mill é uma prova que garante o princípio da maior felicidade.
35. O argumento de Mill fornece apenas um indício a favor do princípio da maior felicidade.
37. Mill considera que o valor dos agentes é relevante na avaliação moral.
39. Uma ação com as melhores consequências, mas realizada por motivos egoístas, está
moralmente justificada se adotarmos a teoria moral de Mill.
40. A distinção entre tipos de prazer é uma solução satisfatória para a dificuldade de calcular
as consequências.
41. Se a teoria moral de Mill afirma que uma dada ação é correta e os nossos juízos dizem que
é errada, temos indícios para defender que a teoria é falsa.
43. Não há um método para medir o prazer, nem para comparar tipos de prazer.
44. A objeção da máquina de experiências favorece a ideia de que a felicidade está acima
da realidade e da autonomia de fazermos as coisas.
45. A objeção da máquina de experiências mostra que a autonomia é mais importante do que
a felicidade.
46. A objeção da justiça mostra que a o utilitarismo de Mill entra em conflito com o valor
da justiça.
47. A objeção da justiça mostra que as nossas intuições de justiça estão em harmonia com
a teoria utilitarista.
48. A objeção da integridade mostra que as consequências são o único fator moralmente
relevante.
49. A objeção da integridade mostra que também somos responsáveis pelo tipo de pessoa que
devemos ser, e não apenas pelas consequências das nossas ações.
50. A teoria de Mill está sempre de acordo com as nossas intuições morais.
F; 34. F; 35. V; 36. F; 37. F; 38. V; 39. V; 40. F; 41. V; 42. F; 43. V; 44. F; 45. V; 46. V; 47. F; 48. F; 49. V; 50. F.
1. V; 2. F; 3. V; 4. F; 5. F; 6. V; 7. F; 8. F; 9. V; 10. F; 11. V; 12. F; 13. V; 14. V; 15. F; 16. F; 17. V; 18. V; 19. F; 20. V; 21. F; 22. V; 23. F; 24. V; 25. V; 26. F; 27. F; 28. V; 29. V; 30. V; 31. V; 32. F; 33.
SOLUÇÕES:
6 A ética deontológica
de Immanuel Kant
6.1 Deontologia absoluta e deontologia moderada
6.2 Agir por dever e agir em conformidade com o dever
6.3 A boa vontade
6.4 Máximas e ações
6.5 O imperativo categórico
6.5.1 A fórmula da lei universal
6.5.2 A fórmula da humanidade
6.5.3 A equivalência entre a fórmula da lei universal
e a fórmula da humanidade
No fim desta unidade, deverá ser capaz de responder Os conceitos seguintes, que são centrais nesta unidade,
às seguintes questões: são definidos no fim do livro:
Qual é, segundo a ética deontológica de Kant, o princípio autonomia moral
fundamental da moralidade? deontologia absoluta
Como se sabe que uma ação tem valor moral? deontologia moderada
O que é um agente autónomo? imperativo categórico
Que objeções enfrenta a ética deontológica de Kant? imperativo hipotético
Quais são as ideias mais meritórias e interessantes
defendidas por Kant na sua teoria moral?
Introdução
Kant e Mill têm a preocupação de saber qual é o princípio fundamental da moralidade. Mas as semelhanças entre os dois terminam aqui.
Mill entende que o valor moral se encontra nas consequências da ação, que são medidas em termos de felicidade geral. Kant, por sua vez,
descobre o valor moral em certos motivos racionais dos agentes.
Segundo Kant, esses motivos geram deveres que restringem a promoção utilitarista das melhores consequências. Há, assim, deveres que
temos de respeitar, sejam quais forem as consequências das ações por eles ditadas. Isso significa que há ações obrigatórias em si mesmas.
Como o valor moral não reside nos estados de coisas, os agentes têm a importante tarefa de moldar o mundo, segundo motivos racionais.
Para Kant, são os agentes que, gozando de autonomia, devem procurar que o mundo seja um lugar de respeito pela dignidade das pessoas.
132 Unidade 6
A tortura
Uma bomba podia explodir a qualquer momento. — Já sabes que não, vá lá! Ouve-me com atenção.
O Matos capturou o principal suspeito. Era um terro- Estou perante o caso mais difícil que até hoje tive pela
rista há muito procurado. Sem problemas, confessou frente. A única hipótese de salvar centenas de vidas é
ter colocado a bomba algures. As suas palavras desti- torturar um inocente. Não sei o que fazer — disse o
lavam ódio. Nada parecia quebrar a firmeza com que Matos, numa voz angustiada.
se recusava a dizer onde tinha colocado a bomba.
— Espera lá! E essa hipótese é muito ou pouco prová-
Estavam muitas vidas inocentes em jogo.
vel? — perguntou a Carolina.
Os Serviços Secretos comunicaram ao Matos que o
— É muito provável, e esse é que é o problema —
ponto fraco do terrorista era o seu filho. Disseram-lhe
respondeu o Matos.
que tinha de torturar o filho para arrancar do pai a
informação sobre o paradeiro da bomba. Era a única — Mas por que razão vais torturar um inocente? Se é
hipótese credível que tinham em cima da mesa. Era inocente, que informação tem ele para te dar? — a
praticamente certo que o terrorista nada diria sob tor- Carolina não estava a entender.
tura. Mas era também praticamente certo que falaria
se visse o filho ser horrivelmente torturado. Filho
que, ainda por cima, era um inocente sem qualquer
ligação ao terrorismo.
O Matos, um polícia de missões difíceis e largos anos
de experiência, sempre se tinha oposto à tortura. Mas
a verdade é que se encontrava dividido. Perante uma
situação destas, não era caso para menos. Sentia que
precisava de conversar com alguém em quem con-
fiasse completamente. Apesar da dureza da sua profis-
são, queria ouvir a opinião da sua mulher, que era
uma pessoa sensata e de modos delicados. Não supor-
tava a ideia de que ela o visse como alguém capaz de
ser desumano. Abandonou a sala do interrogatório e
foi para o seu gabinete. Ligou imediatamente à sua
mulher.
— Carolina, preciso urgentemente de falar contigo.
Será que podes abandonar por momentos o teu traba-
lho? — pediu o Matos.
A Carolina era enfermeira num hospital de grandes
dimensões. Eram raros os dias em que não lidava com
casos de sofrimento extremo.
— Tiveste sorte — respondeu a Carolina. E conti- Fig. 1 — A Tortura de Prometeu (1819),
de Jean-Louis-Cesar Lair.
nuou — Apanhaste-me na pausa da manhã. Não te
Será que alguma vez estaremos justificados a torturar
importas que eu continue a comer?
um inocente?
Guião de leitura
3 Apresente a razão pela qual a Carolina acusa o Matos de estar agarrado aos seus princípios.
Fazer filosofia
1 Debata com toda a turma o seguinte problema: Será permissível torturar em algumas situações?
1.1 Se defende que a tortura é permissível, identifique as situações em que tal permissibilidade se justifica.
134 Unidade 6
Texto 1
136 Unidade 6
Texto 2
Admitindo pois que o ânimo desse filantropo estivesse velado pelo especialmente de paciência e capacidade de resistência às suas pró-
desgosto pessoal que apaga toda a compaixão pela sorte alheia, prias dores e por isso pressupor e exigir as mesmas qualidades dos
e que ele continuasse a ter a possibilidade de fazer o bem aos des- outros; se a natureza não tivesse feito de um tal homem (que em boa
graçados, mas que a desgraça alheia o não tocava porque estava verdade não seria o seu pior produto) propriamente um filantropo,
bastante ocupado com a sua própria; se agora, que nenhuma incli- — não poderia ele encontrar ainda dentro de si um manancial que lhe
nação o estimula já, ele se arrancasse a esta mortal insensibilidade e pudesse dar um valor muito mais elevado do que o de um tempera-
praticasse a ação sem qualquer inclinação, simplesmente por dever, mento bondoso? Sem dúvida! — e exatamente aí é que começa o
só então é que ela teria o seu autêntico valor moral. Mais ainda: — Se valor do caráter, que é moralmente sem qualquer comparação o mais
a natureza tivesse posto no coração deste ou daquele homem pouca alto, e que consiste em fazer o bem, não por inclinação, mas por dever.
simpatia, se ele (homem honrado de resto) fosse por temperamento Immanuel Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes.
frio e indiferente às dores dos outros por ser ele mesmo dotado Lisboa: Edições 70, 2009, p. 29.
Atividades
1 O que é um dever?
4 Os deontologistas defendem, tal como os utilitaristas, que temos um dever positivo de beneficência (promover o bem). Mas, se
assim é, o que os distingue?
5 Quando afirmam que roubar é errado, um deontologista como Kant e um utilitarista como Mill querem dizer coisas diferentes.
Que significado tem para um e outro afirmar que roubar é errado?
6 Explique a diferença entre agir por dever e agir em conformidade com o dever.
6.1 Das ações seguintes, diga quais correspondem a agir por dever e quais correspondem a agir em conformidade com o dever.
Justifique a sua resposta.
A — O João teve pena da Rita, que ficava sozinha em casa, e convidou-a a ir à praia com ele e os amigos dele.
B — O Pedro não mentiu ao chefe por ter medo de ser descoberto.
C — A Joana não quebra o contrato que assinou com o clube, nem qualquer outro contrato, uma vez que não encontra uma
razão válida para o fazer.
D — A Inês não causa sofrimento ao Paulo, pois, se lhe causar sofrimento, entende que mostra que não tem bom coração.
E — O Gustavo, que é um empresário bem-sucedido, considera que não há justificação para despedir alguns dos seus empre-
gados com a finalidade de aumentar os lucros.
F — A Marta, que é bióloga e se dedica à investigação, considera não ser correto mentir às pessoas acerca dos objetivos da
investigação com que colaboram.
Texto 3
Neste mundo, e até também fora dele, nada é possível pensar que coisas boas e desejáveis; mas também podem tornar-se extrema-
possa ser considerado bom sem limitação a não ser uma só coisa: mente más e prejudiciais se a vontade, que haja de fazer uso destes
uma boa vontade. Discernimento, argúcia de espírito, capacidade de dons naturais e cuja constituição particular por isso se chama caráter,
julgar e como quer que possam chamar-se os demais talentos do não for boa.
espírito, ou ainda coragem, decisão, constância de propósito, como Immanuel Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes.
qualidades do temperamento, são sem dúvida a muitos respeitos Lisboa: Edições 70, 2009, pp. 21-22.
Por ser boa sem limitação, a boa vontade tem um valor incondicional.
O que quer isto dizer? Ter um valor incondicional significa ter um valor
que é independente de todas as outras coisas que também podem ser valio-
sas, assim como dos nossos interesses, desejos e demais inclinações. Por
isso, a boa vontade não é um meio para alcançar outros bens, de que rece-
beria o seu valor. Esse é o caso de todas as outras qualidades que, como a
coragem e a argúcia de espírito, têm valor apenas como meios para fins
tidos como bons — têm, portanto, valor instrumental. A boa vontade, pelo
contrário, é boa em si mesma. O que tem a boa vontade em si mesma para
ser boa? A resposta de Kant é a seguinte:
Texto 4
A boa vontade não é boa por aquilo que promove ou realiza, pela nada pudesse alcançar a despeito dos seus maiores esforços, e só
aptidão para alcançar qualquer finalidade proposta, mas tão-somente afinal restasse a boa vontade (é claro que não se trata aqui de um
pelo querer, isto é, em si mesma, e, considerada em si mesma, deve simples desejo, mas sim do emprego de todos os meios de que as
ser avaliada em grau muito mais alto do que tudo o que por seu nossas forças disponham), ela ficaria a brilhar por si mesma como
intermédio possa ser alcançado em proveito de qualquer inclinação, uma joia, como alguma coisa que em si mesma tem o seu pleno
ou mesmo, se se quiser, da soma de todas as inclinações. Ainda valor. A utilidade ou a inutilidade nada podem acrescentar ou tirar a
mesmo que por um desfavor especial do destino, ou pelo apetrecha- este valor.
mento avaro duma natureza madrasta, faltasse totalmente a esta boa Immanuel Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes.
vontade o poder de fazer vencer as suas inclinações, mesmo que Lisboa: Edições 70, 2009, p. 23.
É o querer da vontade que a torna boa. É claro que a vontade pode querer
submeter-se aos nossos desejos e, por consequência, aos fins que estes
propõem, mas isso não fará dela uma boa vontade. O querer que a torna
boa é querer agir segundo os princípios morais corretos; não basta, por-
tanto, fazer o que está correto, pois isso poderá dever-se à motivação gerada
pelos nossos desejos — é preciso ainda que a vontade seja motivada pelos
princípios corretos. E como tem todo o valor em si mesma, é indiferente se
alcança ou não o que pretende, se é útil e promove a felicidade geral ou
não. Mesmo na pessoa mais vulnerável e impotente para fazer o que está
certo, a boa vontade «ficaria a brilhar por si mesma como uma joia».
138 Unidade 6
Atividades
1 O que é a vontade?
3 Por que razão a boa vontade é como uma joia a brilhar dentro de cada um de nós?
Debate
Será que, na nossa vida moral, ter uma sensibilidade educada é menos importante do que ter uma vontade racional?
Justifique a sua posição.
6.5.1 A fórmula da lei universal
Uma boa vontade quer ser moral. É este o motivo que a distingue. Para ser
moral, já o sabemos, a vontade não pode submeter-se às nossas inclinações,
deixando-se determinar por elas. Terá de ser então o sentido do dever a voz
com que a boa vontade ordena a ação. A boa vontade, quando opera, tem
no dever o seu comandante. O dever é como que a voz da consciência da
boa vontade, o comandante cuja autoridade não permitirá desvios na rota
traçada. Mas o dever, de que temos falado tanto, afinal o que é? Kant
define-o assim:
Texto 5
O dever implica respeito pela lei. E como, segundo Kant, o dever é uma
restrição absoluta, a ação que ordena é necessária. Por exemplo, temos de
não torturar, ou de não mentir, para que o mundo tenha racionalidade
moral; não podemos, consoante as circunstâncias, mentir ou não. Todavia,
o dever não implica respeito por uma qualquer lei particular, mas sim pela
Fig. 4 — A Regra de Ouro. ideia envolvida no conceito de lei. Ora, a ideia envolvida no conceito de lei
Há quem veja na fórmula da lei universal do é a ideia de regra universal.
imperativo categórico uma versão sofisticada
e racionalmente fundamentada da célebre As leis são regras universais que pretendem regular as nossas ações. A pes-
regra de ouro: «Não faças aos outros o que soa dotada de boa vontade quer que as suas ações se ajustem a regras
não gostarias que te fizessem a ti.» morais universais. Isto significa que deseja, para as máximas que adota, que
sejam universais. Caso consigam ser universais, ganhando assim o estatuto
de lei, terão a capacidade de regular as nossas ações e o modo como cada
um de nós trata todos os outros.
Kant desenvolve deste modo a ideia de lei moral:
Texto 6
Mas que lei pode ser então essa cuja representação, mesmo sem tomar em consideração
o efeito que dela se espera, tem de determinar a vontade para que esta se possa chamar
boa absolutamente e sem restrição? Uma vez que despojei a vontade de todos os estí-
mulos que lhe poderiam advir da obediência a qualquer lei, nada mais resta do que a
conformidade a uma lei universal das ações em geral que possa servir de único princípio
à vontade, isto é: devo proceder sempre de maneira que eu possa querer também que a
minha máxima se torne uma lei universal. Aqui é pois a simples conformidade à lei em
geral (sem tomar como base qualquer lei destinada a certas ações) o que serve de prin-
cípio à vontade, e também o que tem de lhe servir de princípio, para que o dever não seja
por toda a parte uma vã ilusão e um conceito quimérico […].
Immanuel Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 2009, p. 34.
140 Unidade 6
Texto 7
Uma outra pessoa vê-se forçada pela necessidade a pedir dinheiro universal e ponho assim a questão: Que aconteceria se a minha
emprestado. Sabe muito bem que não poderá pagar, mas vê também máxima se transformasse em lei universal? Vejo então imediatamente
que não lhe emprestarão nada se não prometer firmemente pagar em que ela nunca poderia valer como lei universal da natureza e concor-
prazo determinado. Sente a tentação de fazer a promessa; mas tem dar consigo mesma, mas que, pelo contrário, ela se contradiria neces-
ainda consciência bastante para perguntar a si mesma: Não é proibido sariamente. Pois a universalidade de uma lei que permitisse a cada
e contrário ao dever livrar-se de apuros desta maneira? Admitindo que homem que se julgasse em apuros prometer o que lhe viesse à ideia
se decidia a fazê-lo, a sua máxima de ação seria: Quando julgo estar em com a intenção de o não cumprir tornaria impossível a própria pro-
apuros de dinheiro, vou pedi-lo emprestado e prometo pagá-lo, messa e a finalidade que com ela se pudesse ter em vista; ninguém
embora saiba que tal nunca sucederá. Este princípio de amor de si acreditaria em qualquer coisa que lhe prometessem e rir-se-ia apenas
mesmo ou da própria conveniência pode talvez estar de acordo com de tais declarações como de vãos enganos.
todo o meu bem-estar futuro; mas agora a questão é a de saber se é Immanuel Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes.
justo. Converto assim esta exigência do amor de si mesmo em lei Lisboa: Edições 70, 2009, pp. 63-64.
A máxima é boa
Sim e deve ser respeitada
em todas as circunstâncias.
Posso querer que uma
dada máxima se
transforme em lei
universal?
A máxima deve ser rejeitada
Não e não deve ser seguida em
qualquer circunstância.
Atividades
1 O dever ordena uma ação necessária. Explique o que é uma ação necessária.
5 O imperativo categórico na fórmula da lei universal tem o papel de testar a moralidade das máximas. Diga em que consiste
esse teste e mostre como ele se aplica.
142 Unidade 6
Texto 8
O homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como fim em si mesmo,
não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário,
em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se
dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente
como fim.
Immanuel Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes.
Lisboa: Edições 70, 2009, p. 72.
6.5.3 A equivalência entre a fórmula da lei
universal e a fórmula da humanidade
O imperativo categórico é o princípio fundamental da moralidade. Apesar
de, segundo Kant, haver um só imperativo, não há uma só fórmula para
exprimir o seu conteúdo. A fórmula da lei universal e a fórmula da huma-
nidade são como que as duas faces pelas quais o imperativo categórico se
dá a conhecer. Segundo Kant, são duas faces que se equivalem — na ver-
dade, duas maneiras de dizer a mesma coisa. Mas não é fácil captar essa
equivalência, até porque as duas fórmulas parecem dizer coisas claramente
diferentes. E Kant, por sua vez, nunca foi muito claro sobre o assunto.
Para ver essa equivalência na prática, o melhor será regressarmos ao caso
da promessa enganadora, a que Kant aplicou as duas fórmulas. Vimos que
a máxima «quando julgo estar em apuros de dinheiro, vou pedi-lo empres-
tado e prometo pagá-lo, embora saiba que tal nunca sucederá» não pode
ser uma lei universal, pois querer que todos orientem a sua ação por ela é
querer uma contradição. Ora, é óbvio que essa máxima também não está
de acordo com a fórmula da humanidade. A pessoa a quem é pedido o
empréstimo é tratada simplesmente como meio; é apenas, por isso, um
instrumento para a obtenção de dinheiro. Na medida em que tem apenas
valor instrumental, deixa de ser tratada como pessoa e não vê respeitado o
seu valor incondicional.
144 Unidade 6
Imperativo
categórico
Fórmula Fórmula
da lei universal da humanidade
Atividades
4 O que significa dizer que as duas fórmulas do imperativo categórico são equivalentes?
Debate
1 Durante a Segunda Guerra Mundial, os Aliados conduziram uma política de bombardeamento de alvos civis, na esperança de enfraque-
cerem o moral do inimigo.
1.1 Kant aceitaria esta política? Justifique a sua resposta.
1.2 Concorda com o veredito de Kant? Apresente as razões para a sua resposta.
2 Como responderia alguém que defende a ética de Kant a este problema: Uma vez que os mísseis e as bombas podem ser lançados com
um alto grau de precisão, devem os governos das nações livres estar na disposição de remover regimes cruéis, minimizadas as perdas
civis? Justifique a sua resposta.
Imperativo hipotético:
Devemos querer os meios necessários para alcançar os nossos fins.
146 Unidade 6
Moral
Certas ações são entendidas como
boas em si mesmas; o seu valor é
incondicional e constituem fins
objetivos.
Racionalidade
Organiza-se em imperativos
hipotéticos.
Instrumental
Certas ações são entendidas como
boas enquanto meios para certos fins;
o seu valor é condicional e os fins que
procuram realizar são subjetivos.
Atividades
2 Dos imperativos seguintes, diga quais são categóricos e quais são hipotéticos e justifique a sua opção.
A — Se quer ter sucesso como empresário, seja honesto.
B — Não deixe que os outros pensem por si.
C — Faça amigos, se quer ter uma vida compensadora.
D — Se deseja ter saúde, não fume.
E — Não ceda aos caprichos dos seus filhos.
F — Não aceite subornos.
Texto 9
[…] Que outra coisa pode ser, pois, a liberdade da vontade senão autonomia, isto é,
a propriedade da vontade de ser lei para si mesma?
Immanuel Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 2009, p. 100.
148 Unidade 6
Atividades
2 Q
uando impomos uma lei moral a nós mesmos, a nossa vontade é autónoma ou não?
Justifique a sua resposta.
4 Os seres humanos são dotados de autonomia, mas não é fácil agir com autonomia. Porquê?
6.8.1 Fraquezas da ética de Kant
Deveres em conflito
É comum as situações práticas envolverem mais do que um aspeto moral-
mente relevante. Por isso, reduzi-las à rigidez de uma única máxima é
artificial. Não é assim que as coisas se passam na moralidade do dia a dia.
Por exemplo, se há muito prometemos aos nossos filhos dar um passeio
num determinado fim de semana, mas se, chegada a altura de o fazer, a
nossa mãe doente precisa de assistência, temos dois deveres em conflito.
Encarando Kant os deveres como categóricos, teremos neste caso a obriga-
ção de realizar duas ações incompatíveis. Mas, como é óbvio, não é possí-
vel realizar duas ações incompatíveis. Logo, não temos maneira de resolver
este conflito de deveres. Este resultado incoerente é previsível numa ética
de princípios absolutos.
Dever e relações
As ideias de lei e de princípio categórico destacam-se no pensamento moral
de Kant. É duvidoso, no entanto, que tenham uma importância assim tão
grande na nossa vida moral. Um exemplo disso é o seguinte: habitualmente,
não concebemos em termos de leis e princípios categóricos as nossas rela-
ções familiares e de amizade. Daí que alguns críticos afirmem que a ética
proposta por Kant não dá conta das responsabilidades morais implicadas
nas nossas relações de natureza mais pessoal e íntima. Essa, dizem, é uma
das suas limitações. Parece, portanto, que a ética de Kant, do mesmo modo
que o utilitarismo, está apenas preparada para tratar das relações entre estra-
nhos. Esta limitação resulta de Kant não atribuir valor moral a certas emo-
ções, como a simpatia, o remorso ou a compaixão. Entendidas como meras
inclinações, essas emoções não desempenham qualquer papel moral nas
nossas decisões, devendo ser submetidas ao controlo da vontade racional.
150 Unidade 6
Atividades
1 A ética de Kant conduz a conflitos de deveres que não tem meios de resolver. O que explica este resultado insatisfatório?
5 De que lado estaria Kant no debate moral atual sobre se as razões morais são independentes de contextos? Porquê?
Debate
As circunstâncias contam mais numa ética que propõe deveres absolutos ou numa ética que propõe deveres não absolutos.
Justifique a sua resposta.
Kenny, Anthony — «Kant sobre a Moralidade, Dever e Lei», in Uma Nova História da Filosofia Ocidental — Ascensão da Filosofia
Moderna (volume III). Lisboa: Gradiva, 2011 [ed. original 2006].
Rachels, James — «Haverá Regras Morais Absolutas?», in Elementos de Filosofia Moral. Lisboa: Gradiva, 2004 [ed. original 2003].
Rachels, James — «Kant e o Respeito pelas Pessoas», in Elementos de Filosofia Moral. Lisboa: Gradiva, 2004 [ed. original 2003]
WaRbuRton, Nigel — «Bem e Mal», in Elementos Básicos de Filosofia. Lisboa: Gradiva, 2007 [ed. original 1995], 2.ª edição.
WaRbuRton, Nigel — «E se Toda a Gente Fizesse o Mesmo?», in Uma Pequena História de Filosofia. Lisboa: Edições 70, 2012
[ed. original 2011].
152 Unidade 6
Vontade
Autonomia Heteronomia
Filmes:
Uma Prova de Amor (2009), realizado por Nick Cassavetes.
Fiel Jardineiro (2005), realizado por Fernando Meirelles.
Páginas da Internet:
http://criticanarede.com/eti_kant.html (artigo «A Teoria Moral de Kant», de Elliott Sober)
http://criticanarede.com/dialogokant.html (artigo «Diálogo sobre a Ética Kantiana», de Luís Veríssimo)
1. Os deveres são entendidos por Kant como restrições moderadas à promoção do bem.
2. Kant atribui mais força normativa aos deveres positivos do que aos deveres negativos.
8. Kant admite que os agentes têm de sacrificar as suas vidas pessoais às exigências dos deveres
positivos.
11. Agir por dever e agir em conformidade com o dever não se distinguem pelas consequências
das ações.
12. O valor moral de uma ação, segundo Kant, depende da motivação com que é realizada.
13. Kant pensa que os sentimentos, os desejos e os interesses são relevantes para se determinar
o valor moral das ações.
14. Ter uma boa vontade é, segundo Kant, a finalidade mais importante da vida moral.
16. Kant define a boa vontade como a vontade que quer agir segundo princípios morais corretos.
17. Se uma vontade alcança o que quer, então, diz Kant, é uma boa vontade.
18. Kant defende que não podemos avaliar moralmente as ações se não conhecermos
as suas máximas.
20. Segundo Kant, de uma máxima imoral pode resultar uma ação com valor moral.
21. O processo de avaliação moral das ações concebido por Kant incide sobre as máximas.
22. O dever é definido por Kant como o respeito pelas leis particulares.
23. O respeito pela ideia de regra universal é o que, segundo Kant, distingue o dever.
24. Se uma máxima puder converter-se em lei universal, então tem validade moral.
26. O imperativo categórico testa as máximas avaliando se estas são capazes de se tornar
leis particulares.
27. O imperativo categórico na fórmula da lei universal é um teste de universalização das máximas.
28. O teste de universalização das máximas procura saber se todos podem agir segundo
as máximas testadas.
154 Unidade 6
31. Se uma máxima universalizada gera uma contradição, então não é racional.
32. Kant afirma que temos o estatuto de pessoas porque somos capazes de sentimentos altruístas.
35. Kant afirma que o imperativo categórico na fórmula da humanidade nos impede de usar
as pessoas apenas como meios.
36. Se uma pessoa deixa de ter controlo sobre a sua própria vida, então não é tratada com
respeito pelos outros, ou não se trata a si mesma com respeito.
37. Um imperativo é categórico se depende dos desejos que as pessoas têm.
38. O imperativo categórico é aplicável na condição de atendermos ao que cada ser humano
tem de singular.
39. As duas fórmulas do imperativo categórico são equivalentes porque tratar os outros como
fins é querer que eles tenham uma palavra a dizer sobre a sua conduta.
42. Kant defende que os outros merecem respeito porque têm dignidade em si mesmos.
44. Uma vontade autónoma é aquela que escolhe os seus próprios princípios, sejam universais
ou não.
45. A autonomia é a capacidade de cada um agir segundo princípios universais livremente aceites.
49. Uma vontade é tão heterónoma quando se deixa vencer pelo medo como quando se deixa
manipular pelos outros.
50. A ética de Kant, segundo os seus críticos, dispõe dos meios necessários para resolver conflitos
de valores.
51. Os críticos de Kant afirmam que a ética de Kant não está preparada para tratar das relações
pessoais.
52. A exigência de universalização das máximas é uma das falhas da ética de Kant.
33. V; 34. V; 35. V; 36. V; 37. F; 38. F; 39. F; 40. V; 41. F; 42. V; 43. V; 44. F; 45. V; 46. F; 47. V; 48. V; 49. V; 50. F; 51. V; 52. F; 53. V.
1. F; 2. F; 3. V; 4. F; 5. V; 6. V; 7. V; 8. F; 9. F; 10. V; 11. V; 12. V; 13. V; 14. V; 15. F; 16. V; 17. F; 18. V; 19. V; 20. F; 21. V; 22. F; 23. V; 24. V; 25. V; 26. F; 27. V; 28. V; 29. F; 30. V; 31. V; 32. F;
SOLUÇÕES:
7.1 Ética e direito
7.1.1 A desobediência civil
No fim desta unidade, deverá ser capaz de responder Os conceitos seguintes, que são centrais nesta unidade,
às seguintes questões: são definidos no fim do livro:
Que relação deve haver entre ética e direito? equilíbrio refletido
Que princípios de justiça, segundo Rawls, devem governar igualdade democrática de oportunidades
a sociedade? posição original
Com que argumentos defende Rawls os princípios de princípio da diferença
justiça?
princípio da liberdade igual
Que objeções enfrenta a teoria da justiça de Rawls?
princípio da oportunidade justa
Quais são as ideias mais interessantes defendidas por
Rawls na sua teoria da justiça?
Introdução
Todos queremos viver numa sociedade justa. E todos lamentamos, com mais ou menos frequência, as injustiças que as sociedades ainda
não foram capazes de resolver. Temos intuições fortes acerca do que seria uma sociedade justa. Parece-nos que a igualdade, a liberdade
e a justiça social são valores centrais que deveriam fornecer um ideal normativo às sociedades. John Rawls, um dos maiores filósofos
políticos de sempre, respondeu de maneira particularmente interessante a esse desafio.
A sociedade justa defendida por Rawls recomenda princípios para as instituições e o governo das sociedades. São princípios baseados
justamente nos valores da igualdade, da liberdade e da justiça social. Orientando a política, influenciam as leis que são estabelecidas.
Como a sua base é moral, esses princípios de igualdade, liberdade e justiça social orientam também a relação entre ética e direito. Eles
sugerem que relação deve haver entre ética e direito e quando, em seu nome, temos razões para desobedecer à lei.
156 Unidade 7
Guião de leitura
Fazer filosofia
1 Debata com toda a turma o seguinte problema: O que é uma sociedade justa?
2 Se defende que a desigualdade pode ser boa, apresente as razões a favor dessa posição.
Texto 1
Nos anos antes da crise, foram aprovadas leis que tornaram possível fazer legalmente
muitas coisas erradas. Muitas das práticas abusivas com cartões de crédito, empréstimos
predatórios, eram claramente imorais. Foram para além dos limites da decência, mas não
foram para além do que era legal.
Joseph stiglitz, Time, 11/06/2012.
Há casos ainda mais óbvios de leis claramente imorais. É o caso de leis que
discriminam mulheres, negam o voto a minorias étnicas ou a liberdade de
cada um ter a religião que mais lhe agradar. O que fazer então nos casos em
que o Estado, usando o seu poder de fazer leis, comete injustiças claras?
E o que fazer quando o Estado é teimosamente insensível aos apelos para
que termine com essas injustiças?
158 Unidade 7
Texto 2
Começarei por definir a desobediência civil como um ato público, não violento, decidido
em consciência mas de natureza política, contrário à lei e usualmente praticado com o
objetivo de provocar uma mudança nas leis ou na política seguida pelo governo. Ao agir
desta forma, apelamos ao sentido de justiça da maioria da comunidade e declaramos
que, na nossa opinião ponderada, os princípios de cooperação social entre homens livres
e iguais não estão a ser respeitados.
John Rawls, Uma Teoria da Justiça. Editora Princípia, 2001, p. 282.
A desobediência civil não é violenta por duas razões. Por um lado, trata-se
de uma forma de apelo comparável a um discurso público, e não de uma
ameaça que precisaria de recorrer à força para ser eficaz; por outro lado, a
desobediência civil encontra-se na fronteira do direito, mas preserva a sua
fidelidade à lei, dado que aceita as consequências legais que sobre ela
recaem. A desobediência civil é uma forma de pressão ética sobre o direito
estabelecido. O que justifica a desobediência civil é a violação legal do
nosso sentido moral de justiça. Eis alguns exemplos de injustiças:
Texto 3
Assim, quando é negado o direito de voto a certas minorias, ou o direito de ocupar car-
gos públicos, de possuir imóveis ou de viajar, ou ainda quando certos grupos religiosos
são reprimidos e a outros são negadas oportunidades várias, tais práticas constituem
injustiças que podem ser óbvias para todos. São incorporadas de forma pública na prática
reconhecida das estruturas sociais, senão mesmo nas respetivas regras.
John Rawls, Uma Teoria da Justiça. Editora Princípia, 2001, pp. 287-288.
Atividades
Fig. 2 — Movimento anticolonial, liderado
por Mahatma Gandhi.
1 Por que razão as relações entre ética e direito nem sempre são pacíficas?
Em 1930, Gandhi liderou milhares de indianos
2 Geralmente, é a ética que se ajusta ao direito ou o direito que se ajusta à ética? por ocasião da Grande Marcha do Sal.
Porquê? Caminharam a pé vários dias até ao mar,
onde recolheram a água e a deixaram secar
3 Em que caso se justifica a desobediência à lei? para obter sal: o propósito era desobedecer
às ordens inglesas do monopólio do sal.
160 Unidade 7
7.2.1 Os princípios de justiça
Segundo Rawls, uma sociedade justa é governada por dois princípios, cada
um com a sua esfera própria de aplicação. Para que seja justa, uma socie-
dade terá ainda de aplicar os princípios segundo uma certa ordem de prio-
ridade. Vejamos a formulação final que Rawls dá a esses princípios e às
regras de prioridade a que estão sujeitos:
Texto 5
Vou agora apresentar a formulação final dos dois princípios da justiça aplicáveis às insti-
tuições. […]
Primeiro princípio
Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais amplo sistema total de liberdades básicas
iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para todos.
Segundo princípio
As desigualdades económicas e sociais devem ser distribuídas por forma que, simulta-
neamente:
a) redundem nos maiores benefícios possíveis para os menos beneficiados […];
b) sejam a consequência do exercício de cargos e funções abertos a todos em circuns-
tâncias de igualdade equitativa de oportunidades.
Primeira regra de prioridade (prioridade da liberdade)
Os princípios da justiça devem ser ordenados lexicalmente e, portanto, as liberdades
básicas podem ser restringidas apenas em benefício da própria liberdade. […]
Segunda regra de prioridade (prioridade da justiça sobre a eficiência e o bem-estar)
O segundo princípio da justiça goza de prioridade lexical face aos princípios da eficiência
e da maximização da soma de benefícios; e o princípio da igualdade equitativa de opor-
tunidades tem prioridade sobre o princípio da diferença.
John Rawls, Uma Teoria da Justiça. Editora Princípia, 2001, p. 239.
Atividades
3 Os princípios de justiça ocupam-se de coisas diferentes. A que se aplica cada um dos princípios de justiça?
5 Os seguintes princípios estão incluídos nos princípios de justiça de Rawls. Diga em quais.
A — Todos devem ter acesso a uma educação de qualidade.
B — Ninguém deve interferir na opinião dos outros.
C — Os mais favorecidos devem estar sujeitos a impostos mais elevados.
D — Todos devem ter direito a cuidados de saúde.
E — Cada um deve poder ter as crenças que mais lhe agradarem.
F — Os mais talentosos devem ajudar os menos favorecidos.
162 Unidade 7
Texto 6
Cada pessoa beneficia de uma inviolabilidade que decorre da justiça, a por um maior número. Assim sendo, numa sociedade justa, a igualdade
qual nem sequer em benefício do bem-estar da sociedade como um de liberdades e direitos entre os cidadãos é considerada como definitiva;
todo poderá ser eliminada. Por esta razão, a justiça impede que a perda os direitos garantidos pela justiça não estão dependentes da negocia-
da liberdade para alguns seja justificada pelo facto de outros passarem ção política ou do cálculo dos interesses sociais.
a partilhar um bem maior. Não permite que os sacrifícios impostos a uns John Rawls, Uma Teoria da Justiça. Editora Princípia, 2001, p. 27.
poucos sejam compensados pelo aumento das vantagens usufruídas
Texto 7
Para assentar ideias, vamos determinar este grupo como abrangendo os que forem
menos beneficiados relativamente aos três domínios principais que possuem uma natu-
reza contingente. Assim, este grupo compreende pessoas que, pelas suas origens fami-
liares e de classe, estão em desvantagem relativamente a outras, cujas aptidões naturais
(atendendo ao modo como são postas em prática) as fazem sofrer as maiores dificulda-
des e cuja sorte e fortuna é menor, sendo que […] estes factos são avaliados a partir dos
bens sociais primários.
John Rawls, Uma Teoria da Justiça. Editora Princípia, 2001, p. 93.
164 Unidade 7
Texto 8
Podemos admitir, dada a cláusula do segundo princípio relativa às funções abertas a todos
e, em geral, dado o princípio da liberdade, que as melhores expectativas concedidas aos
empresários os encorajam a tomar decisões cujas consequências sejam a elevação das
perspetivas da classe trabalhadora. As suas maiores perspetivas agem como incentivos, de
modo que o processo económico seja mais eficiente, a inovação se processe de forma
mais acelerada, etc. […]
A questão central é que, para que estas desigualdades satisfaçam o princípio da diferença,
é necessário defender um argumento deste tipo.
John Rawls, Uma Teoria da Justiça. Editora Princípia, 2001, p. 80.
Caso 1
É por este motivo que existem desigualdades boas. O que explica que
Rawls, um igualitário, aceite desigualdades sociais e económicas é a eficiên-
cia económica dos incentivos. A subtileza consiste em que tratar as pessoas
como iguais não implica remover todas as desigualdades, mas apenas
aquelas que trazem desvantagens para os menos favorecidos. Se dar mais
dinheiro a uma pessoa do que a outra promover mais os interesses de
Juízo intuitivo
ambas do que simplesmente dar-lhes a mesma quantidade de dinheiro,
então uma consideração igualitária dos interesses não proibirá essa
Avalie a teoria da justiça de Rawls de
acordo com a sua primeira reação. desigualdade.
A — Verdadeira. A teoria da justiça de Rawls defende também desigualdades de oportuni-
dade, na condição de que elas não sejam vetadas pelos mais desfavoreci-
B — Atraente mas não verdadeira.
dos. Por exemplo, um sistema de ensino pode permitir aos estudantes mais
C — Duvidosa. dotados o acesso a maiores apoios educativos se, previsivelmente, empre-
D — Falsa. sas em dificuldade vierem a beneficiar mais tarde do seu contributo,
aumentando os lucros e evitando despedimentos.
Atividades
2 Rawls concordaria que darmos uma atenção especial aos menos favorecidos é compensá-los das condições sociais desfavoráveis
em que vivem? Porquê?
Debate
Será que pode haver tensão entre o princípio da liberdade igual e o princípio da diferença? Porquê?
166 Unidade 7
Posição original
O que não sabemos O que sabemos
168 Unidade 7
170 Unidade 7
Texto 10
Texto 11
Juízo intuitivo
Atividades
4 Explique a solução para o problema da justiça social que resulta do teste intuitivo de justiça.
5 A que teste recorre o argumento da justiça social para saber qual é o princípio correto de igualdade de oportunidades?
7 A igualdade de oportunidades democrática é bem-sucedida no teste conduzido pelo argumento da justiça social. Porquê?
172 Unidade 7
Motivos e incentivos
O princípio da diferença admite que há desigualdades boas. Se uma desi-
gualdade gerar os maiores benefícios para os menos favorecidos, então ela
é bem-vinda a uma sociedade justa. Este resultado bom para os menos
favorecidos consegue-se oferecendo incentivos financeiros aos mais capazes
e talentosos.
Rawls admite também que, numa sociedade justa, os mais talentosos são
motivados pelo princípio da diferença, procurando ajudar o mais possível
os menos favorecidos e abster-se de explorar em seu favor as vantagens
sociais e naturais de que dispõem. Mas, se assim é, porque precisam eles
de incentivos financeiros para criar mais riqueza e beneficiar os menos
favorecidos?
Uma coisa, segundo esta crítica, são
incentivos realmente necessários, dada a
dureza de certos tipos de trabalho; outra
coisa são incentivos sem os quais os
talentosos escolhem não trabalhar de
maneira tão produtiva. Estes não se justi-
ficam numa sociedade com uma cultura
de justiça moldada pelo princípio da
diferença. Os mais talentosos, nesse caso,
têm motivações justas, e isso é o que
Rawls esperaria deles. No entanto, exi-
gindo incentivos para o seu talento, não
são primariamente motivados pela preo-
cupação com os menos favorecidos,
expressa no princípio da diferença. Não
têm, portanto, uma motivação justa. Se a
tivessem, para que quereriam incentivos?
Porque agiriam eles, nessa circunstância,
tentando maximizar incentivos? Não
estarão eles a explorar as suas vantagens
socias e naturais contingentes?
Fig. 9 — Repórter de guerra. Se a nossa resposta a esta pergunta for
Os incentivos devem destinar-se aos mais talentosos, de maneira que eles gerem positiva, não se percebe por que razão
benefícios para os menos favorecidos, ou devem compensar a dureza de certos tipos procurou Rawls sustentar a confiança no
de trabalho? princípio da diferença em incentivos.
174 Unidade 7
Caso 2
Escolha imparcial
Rawls teve o mérito de proporcionar uma compreensão mais clara da enorme
importância de processos de escolha imparciais numa sociedade justa. Uma
sociedade justa não é aquela que realiza os valores de liberdade e igualdade.
Uma sociedade justa é aquela que realiza esses valores por meios justos, que
consistem em processos de escolha imparciais. Isto significa, na verdade,
que é já nos processos de escolha que se realizam os valores de liberdade
e igualdade. A posição original oferece-nos uma maneira palpável de conduzir
Fig. 11 — Fotograma do filme Redenção
processos de escolha imparciais. Mostra-nos como podemos ser intervenien-
(2011), realizado por Marc Forster. tes iguais e livres nesses processos. Isto permite ainda compreender que a
Este filme mostra que fazer o bem pode exigir democracia implica mais do que votar uma vez de quatro em quatro anos.
empenhamentos arriscados. Nessas É decisivo que nela se proceda regularmente a escolhas imparciais. Se assim
circunstâncias, ter autonomia é decisivo. não for, terá sérias limitações e, um dia, sérios problemas de justiça social.
Autonomia
Avaliação crítica A autonomia envolve também a posição original. Kant, como sabemos, deu
um lugar de destaque à autonomia moral. Rawls, um admirador de Kant,
Assinale agora a sua avaliação ponderada mostrou o que é termos autonomia nas nossas escolhas sociais. Esse é um
da teoria da justiça de Rawls. dos seus principais méritos. Temos autonomia quando procuramos que as
A — Verdadeira. nossas escolhas se façam de acordo com a posição original. Só assim sere-
B — Atraente mas não verdadeira.
mos capazes de nos libertarmos, tanto quanto possível, das contingências
sociais e naturais que, diria Kant, geram em nós inclinações contrárias à
C — Duvidosa. moralidade. Não só contrárias à moralidade, diz agora Rawls, mas também
D — Falsa. contrárias a uma sociedade justa. A autonomia é, então, a capacidade de
nos elevarmos acima das contingências.
Atividades
1 Exemplifique circunstâncias e escolhas que não são devidamente consideradas pela teoria da justiça de Rawls.
3 Explique em que medida o caso Wilt Chamberlain pode ser visto como um exemplo contrário ao princípio da diferença.
Debate
«Se o Estado não redistribuir a riqueza cobrando impostos, os pobres perpetuarão a pobreza e os ricos perpetuarão a riqueza. Mas se o Estado
cobrar impostos em função da riqueza, os ricos ficam com menos capacidade de investimento e os pobres terão menos hipóteses de sair da
pobreza.» Como reagiria Rawls a estas afirmações? E os críticos que se apoiam no caso Wilt Chamberlain?
176 Unidade 7
Texto 12
Resta saber que diferenças irresolúveis fazem parte da nossa condição. Isso
é muito importante porque, sabendo que são irresolúveis, talvez as pessoas
passem a respeitar mais as suas diferenças.
Atividades
• A justiça como equidade é um ideal normativo pelo qual são • Os menos favorecidos são aqueles que têm três tipos de
julgadas as instituições sociais, políticas e económicas da azar: natural, social e o de simplesmente não terem sorte.
sociedade. • As desigualdades boas são aquelas que geram os maiores
• A justiça como equidade propõe um modo socialmente benefícios para os menos favorecidos; estão associadas a
justo de distribuir os direitos e deveres dos cidadãos e os incentivos que melhoram a eficiência económica e tornam a
benefícios da cooperação social. sociedade mais rica.
• O ideal normativo da justiça como equidade é formado por • Gerar mais riqueza é bom porque a sociedade passa a ter
princípios de justiça social. mais riqueza para redistribuir pelos menos favorecidos.
• A teoria da justiça de Rawls defende que a liberdade e a • O argumento da posição original é uma defesa dos princí-
igualdade são valores compatíveis. pios de justiça, e o argumento da justiça social é uma defesa
do princípio da diferença.
• Uma sociedade justa é aquela que se orienta pelos valores de
liberdade e igualdade na distribuição dos direitos e deveres • O argumento da posição original defende que os princípios
dos cidadãos e na divisão dos benefícios e encargos da coope- de justiça seriam escolhidos numa negociação imparcial.
ração social, proporcionando desse modo justiça social. • Uma negociação é imparcial quando os que nela intervêm
• A teoria da justiça de Rawls propõe três princípios: o princí- estão como que cobertos por um véu de ignorância quanto
pio da liberdade igual, o princípio da oportunidade justa e o à sua situação particular.
princípio da diferença. • O argumento da justiça social defende que o princípio da
• O princípio da liberdade igual diz que a sociedade deve asse- diferença tem a capacidade de limitar a influência das con-
gurar a máxima liberdade para cada pessoa compatível com tingências sociais e também das naturais nas perspetivas de
uma liberdade igual para todos os outros. sucesso de cada um, ajustando-se à nossa intuição de igual-
dade de oportunidades.
• O princípio da oportunidade justa diz que as desigualdades
económicas e sociais devem estar ligadas a postos e posi- • A teoria da justiça de Rawls enfrenta as seguintes objeções:
ções acessíveis a todos em condições de justa igualdade de não tem devidamente em conta a distinção entre circuns-
oportunidades. tâncias e escolhas; numa cultura de justiça moldada pelo
princípio da diferença, os mais talentosos teriam motivações
• O princípio da diferença diz que a sociedade deve promover justas, não precisando de incentivos; o direito particular à
a distribuição igual da riqueza, exceto se a existência de desi- propriedade, dado que é absoluto, não deixa espaço para
gualdades económicas e sociais gerar os maiores benefícios deveres gerais redistributivos.
para os menos favorecidos.
• Os méritos da teoria da justiça de Rawls são: concilia de
• A aplicação dos princípios de justiça está submetida a regras maneira atraente liberdade e igualdade para atender ao valor
de prioridade: o princípio da liberdade igual tem prioridade de justiça social; proporciona uma compreensão mais clara da
sobre os outros dois e o princípio da oportunidade igual tem importância dos processos de escolha imparciais; mostra o
prioridade sobre o princípio da diferença. que é termos autonomia nas nossas escolhas sociais.
Leituras:
Nagel, Thomas — «Justiça», in Que Quer Dizer Tudo Isto? Lisboa: Gradiva, 1995 [ed. original 1987].
Rachels, James — «Como Seria Uma Teoria Moral Satisfatória?», in Elementos de Filosofia Moral. Lisboa: Gradiva, 2004
[ed. original 2003].
Rosas, João Cardoso —«A Concepção Liberal‐Igualitária», in Concepções de Justiça. Lisboa: Edições 70, 2011.
Wolff, Jonathan — «A Distribuição da Riqueza», in Introdução à Filosofia Política. Lisboa: Gradiva, 2004 [ed. original 1996].
178 Unidade 7
respondem
à exigência de uma
Sociedade justa
Princípio
Princípio Princípio
da oportunidade
da liberdade igual da diferença
igual
Argumento intuitivo
da justiça social
Filmes:
John Q. (2002), realizado por Nick Cassavetes.
Redenção (2011), realizado por Marc Forster.
Páginas da Internet:
http://criticanarede.com/pol_justica2.html (artigo «Justiça Distributiva», de Harry Gensler)
http://criticanarede.com/pol_justica.html (artigo «A Teoria da Justiça de John Rawls», de Faustino Vaz)
1. É justificado afirmar que toda a moralidade deve estar refletida na lei.
8. O
direito é completamente autónomo em relação à ética e não se justifica que deva haver
uma conexão entre os dois domínios.
10. A
teoria da justiça como equidade propõe um modo socialmente justo de proceder à distribuição
dos direitos e deveres fundamentais e dos benefícios que resultam da cooperação social.
11. A teoria da justiça como equidade é uma teoria da justiça para a conduta privada dos indivíduos.
12. A teoria da justiça como equidade não permite fazer uma avaliação normativa das sociedades.
13. A
teoria da justiça como equidade pressupõe que a sociedade é uma soma de indivíduos.
14. A
teoria da justiça como equidade pressupõe que cada cidadão é livre de rever racionalmente
a sua conceção de bem.
15. O sentido de justiça é uma capacidade que deve ser reconhecida a qualquer cidadão.
16. S
egundo Rawls, a justiça social resulta da articulação de dois valores fundamentais — o valor
da liberdade e o valor da igualdade.
18. A
teoria da justiça de Rawls é formada por um princípio de liberdade.
19. N
ão há justiça social, segundo Rawls, se a riqueza não for distribuída de maneira a gerar
os maiores benefícios para os menos favorecidos.
20. O
princípio da oportunidade justa determina, por exemplo, que os estudantes mais dotados
gozem de oportunidades de educação melhores do que os estudantes menos dotados.
21. O
princípio da oportunidade justa pode determinar que os estudantes mais dotados gozem
de oportunidades de educação melhores do que os estudantes menos dotados.
22. A
s regras de prioridade na aplicação dos princípios de justiça implicam que a redistribuição
de riqueza pelos menos favorecidos suplante a liberdade.
23. R
awls é um liberal porque defende que a liberdade é inegociável.
24. Podemos abdicar das liberdades básicas em troca de grandes compensações financeiras.
26. Rawls critica o utilitarismo por este não considerar que a igualdade tem valor intrínseco.
27. P
ensar em termos de felicidade agregada, como é característico do utilitarismo, evita,
segundo Rawls, que a dignidade de cada pessoa seja violada.
180 Unidade 7
29. S
egundo Rawls, os seres humanos são invioláveis, mas os seus direitos dependem da
negociação política.
30. O
s menos favorecidos são aqueles que estão expostos a contingências naturais e sociais
negativas e ao azar puro e simples.
31. O que define o igualitarismo, pensa Rawls, é a sua preocupação especial com os menos
favorecidos.
32. R
awls defende que certas desigualdades são boas por gerarem o maior benefício para os
menos favorecidos.
33. R
awls é contrário aos incentivos financeiros para os mais talentosos.
34. A
desigualdade gerada por incentivos para os mais talentosos é mais benéfica para os menos
favorecidos do que uma situação de igualdade estrita.
35. O
argumento da posição original procura mostrar que um processo de escolha justo dos princípios
de uma sociedade justa conduziria à adoção dos princípios de justiça propostos por Rawls.
37. N
um processo de escolha justo, todos conhecem a sua classe social.
38. O
argumento da posição original defende que uma escolha justa dos princípios de justiça
está como que coberta por um véu de ignorância quanto à situação particular dos agentes.
solução maximin, que se define por maximizar o mínimo, é a que se ajusta às nossas
39. A
intuições básicas de igualdade e justiça.
40. O
conceito de igualdade de oportunidades liberal implica a redistribuição da riqueza pelos
menos favorecidos.
41. É suficiente, pensa Rawls, que todos tenham oportunidades iguais para que a sociedade seja justa.
42. A
igualdade de oportunidades liberal tem a capacidade de minimizar os efeitos da lotaria natural.
44. O argumento da justiça social mostra que o princípio da diferença se ajusta à nossa intuição
básica de igualdade de oportunidades.
45. Segundo alguns críticos, a teoria de Rawls não tem adequadamente em conta a distinção
entre circunstâncias e escolhas.
46. Uma das críticas feitas a Rawls é a de que uma motivação justa dos mais talentosos exige incentivos.
47. Se a riqueza adquirida por um processo voluntário for justa, a propriedade é absoluta
e a riqueza não tem de ser redistribuída.
49. Um dos méritos de Rawls é mostrar que a igualdade e a liberdade se realizam nos processos
de escolha social.
50. Rawls permitiu compreender que a autonomia tem importância nas escolhas sociais.
27.F; 28. F; 29. F; 30. V; 31. V; 32. V; 33. F; 34. V; 35. V; 36. V; 37. F; 38. V; 39. V; 40. F; 41. F; 42. F; 43. V; 44. V; 45. V; 46. F; 47. V; 48. F; 49. V; 50. V.
1. F; 2. F; 3. V; 4. V; 5. F; 6. V; 7. F; 8. F; 9. F; 10. V; 11. F; 12. F; 13. F; 14. V; 15. V; 16. V; 17. F; 18. F; 19. V; 20. F; 21. V; 22. F; 23. V; 24. F; 25. F; 26. V;
SOLUÇÕES:
No fim desta unidade, deverá ser capaz de responder Os conceitos seguintes, que são centrais nesta unidade,
às seguintes questões: são definidos no fim do livro:
O que é um juízo estético? atenção desinteressada/
Em que consiste a experiência estética segundo a interessada juízo de gosto
definição centrada no sujeito? E segundo a definição atitude estética juízo estético
centrada no conteúdo? complacência objetivismo estético
Qual é o alcance e quais são os limites da definição de contemplação propriedade estética
experiência estética centrada no sujeito? E da definição
centrada no conteúdo? estética subjetivismo estético
O que são o subjetivismo e o objetivismo estéticos? experiência estética superveniência
Que argumentos podem ser apresentados a favor do
subjetivismo e do objetivismo estéticos?
Que objeções enfrentam o subjetivismo e o objetivismo
estéticos?
Introdução
É possível que já tenha ouvido a palavra «estética», ou outras semelhantes, em contextos diferentes. Por exemplo, pode já ter ouvido falar
de esteticistas, de gabinetes de estética, de estética facial ou corporal, de cirurgia estética, etc. Todos estes usos comuns da palavra «esté-
tica» estão, de certa forma, relacionados com uma especial atenção e cuidado com a aparência, com a beleza sensível. É natural que isso
aconteça, porque a palavra «estética» vem do grego «aesthesis», que significa «perceção sensível» ou «compreensão pelos sentidos»; daí
estar ligada à forma como aparecemos aos olhos dos outros, ou seja, à forma como nos apresentamos aos seus sentidos. Mas, além destes
usos comuns, a palavra «estética» também pode ser utilizada para designar uma disciplina filosófica. Alexander Baumgarten foi o primeiro
a utilizar a palavra neste sentido, querendo com ela designar o estudo filosófico da perceção sensível, nomeadamente da experiência de
apreciação da natureza e das obras de arte. Mas, afinal, o que é a estética? De que problemas se ocupa? Aqui estão alguns exemplos:
«O que é a beleza?», «O que é a experiência estética?», «O que são e como se justificam os juízos estéticos?», «Existem propriedades
estéticas?», etc. Ao longo desta unidade, procuraremos avaliar criticamente algumas das principais respostas para estes problemas.
184 Unidade 8
Beleza perdida
Calheiros é um poeta de renome. Até há pouco tempo e a única coisa que consegui fazer foi o poema que
Calheiros não tinha motivos para preocupações. acabou de ler.
Quando fez 23 anos, ganhou um importante prémio
EDITORA — Esta situação não é admissível! Tem de
literário e desde então o sucesso da sua poesia junto
voltar a escrever como antes. Em vez de se fechar em
dos críticos e do grande público assegurou-lhe uma
quatro paredes, experimente sair de casa, passear à
vida preenchida e sem dificuldades.
beira-mar, ver o pôr do Sol, subir uma montanha para
Calheiros dedicara toda a sua vida à poesia e agora com ver nascer o dia, … sei lá! Vocês, os poetas, devem
57 anos não se imaginava a fazer outra coisa. Mas, precisar dessas coisas bonitas para ter inspiração, não?
recentemente, viu-se forçado a fazer uma escolha que o
CALHEIROS — Pois, o problema está aí! Lembro-me
deixou numa situação um pouco desconfortável.
de que todas essas coisas costumavam encantar-me
Apercebendo-se de que a idade estava a avançar e que
e despertar em mim uma furiosa paixão que só podia
precisava de algum tipo de estabilidade, fez um contrato
ser saciada pela escrita. Mas, com o passar dos tem-
com uma editora que lhe assegurava um salário mensal
pos, deixaram de ter o mesmo encanto, tornaram-se
fixo e uma reforma simpática. Até aqui tudo bem.
coisas banais e sem graça.
O problema é que esse contrato exigia que Calheiros
produzisse um mínimo de três obras por ano. Noutros EDITORA — Como assim, deixaram de ter o mesmo
tempos isso não teria sido problemático. Calheiros era encanto? O pôr do Sol continua a ser tão belo quanto
uma pessoa extremamente sensível à beleza das coisas antes.
e, aparentemente, tinha uma inesgotável fonte de inspi- CALHEIROS — Não é bem assim! O pôr do Sol con-
ração, chegando mesmo a produzir cinco e seis obras de tinua a ter os mesmos matizes de cor, mas habituei-
poesia por ano. Contudo, recentemente o seu encanto -me de tal forma a contemplá-los que, para mim, a
pelas coisas começara a esmorecer e com o fim do ano sua beleza já não é a mesma de outrora.
a aproximar-se tinha escrito apenas um poema. A edi-
tora começava a ficar impaciente e, numa das suas con-
versas mais recentes, encostou-o à parede:
EDITORA — Só pode estar a brincar comigo! Isto é
tudo o que tem para me entregar? — lê o poema em
voz alta:
«Tempos houve em que prado, bosque e maresia,
A terra e tudo que nela floresce,
Perante mim surgia,
Sob preciosa luz celeste,
Qual glória e frescura que sentia
Noite dentro quando dormia.»
CALHEIROS — Sim. Infelizmente essa é a única e
perturbadora realidade que tenho para expressar.
Fig. 1 — Impressão, Nascer do Sol (1872), de Claude Monet.
EDITORA — Que quer dizer com isso?! A sua inspi- Será que os matizes de cor que Monet imprimiu neste quadro
ração secou? são belos, independentemente do estado de espírito do
observador?
CALHEIROS — De certa forma pode dizer-se que
sim. Passei o último ano fechado no escritório a tentar
Guião de leitura
Fazer filosofia
1 Faça uma pesquisa por poemas que lhe pareçam exemplos de boa e má poesia.
1.1 Discuta em grupo o valor dos poemas selecionados.
186 Unidade 8
188 Unidade 8
Atividades
Debate
190 Unidade 8
Texto 1
Podemos dizer de todos estes interesses não estéticos, e da perceção Para a atitude estética, as coisas não devem ser classificadas, nem
«prática» em geral, que o objeto é apreendido em função da sua estudadas, nem ajuizadas. Elas são em si aprazíveis, ou excitantes ao
origem e das suas consequências, das suas relações com as outras olhar. Deve ser claro, portanto, que serem «desinteressadas» é muito
coisas. Em contraste, a atitude estética «isola» o objeto e concentra- distinto de serem «não interessadas». Pelo contrário, como todos
se nele: a «aparência» das rochas, o som do mar, as cores da pintura. sabemos, podemos ser intensamente absorvidos por um livro ou um
Por isso, o objeto não é visto de maneira fragmentária, ou de passa- filme, de tal modo que ficamos muito mais «interessados» do que
gem, como acontece na perceção «prática», ao usarmos uma caneta habitualmente no curso da nossa atividade «prática».
para escrever, por exemplo. Toda a sua natureza e o seu caráter são Jerome Stolnitz, «A Atitude Estética», in Carmo D'orey (org.)
considerados demoradamente. […] O Que É a Arte? Lisboa: Dinalivro, 2007 [ed. original 1960].
Atividades
2 O que significa dizer que a experiência estética se caracteriza por uma atenção desinteressada?
3 Segundo a definição de experiência estética centrada no sujeito, se pretendemos ter uma experiência estética, devemos adotar
uma postura complacente. Porquê?
4 «Uma vez que envolve uma forma de contemplação, a atitude estética obriga-nos a uma postura passiva perante os objetos.»
Concorda? Porquê?
Debate
«Se tenho interesse num determinado objeto, então já não posso ter uma experiência estética desse objeto.» Concorda? Porquê?
192 Unidade 8
Caso 1
ANA — Que pena! Se ouviste o concerto a pensar no exame e com MARIA — Não concordo contigo. Tendo outros interesses ou não,
a preocupação de tirar boa nota, passou-te ao lado o seu fascínio! prestei atenção à música, tal como tu. A nossa atenção não foi dife-
rente, as nossas motivações é que foram diferentes.
MARIA — Como assim? Que queres dizer com isso?
ANA — Vou dar-te outro exemplo. O Rui não gosta de Beethoven e, no
ANA — Uma coisa é ouvir música por obrigação, outra é fazê-lo por
entanto, quando um dia me trouxe a casa, pôs a tocar o Concerto Impera-
prazer.
dor no carro para me impressionar. Como esse era o seu único interesse,
MARIA — Reconheço que tínhamos motivações diferentes para não podemos dizer que prestou uma atenção desinteressada ao con-
ouvir o concerto, mas isso não implica que eu não tenha usufruído certo; logo, não podemos dizer que tivemos experiências semelhantes.
plenamente dessa experiência!
MARIA — De facto, não podemos. Mas também não podemos dizer
ANA — Pois a mim parece-me que tivemos experiências bastante que prestou uma atenção interessada ao concerto.
diferentes!
ANA — Como assim?
MARIA — Não percebo porquê!? Afinal de contas, ouvi-o com muita
MARIA — O Rui estava tão preocupado com as tuas reações que
atenção, para não me escapar nada! Se ouvimos atentamente as
nem sequer podemos dizer que tenha prestado atenção à música.
mesmas melodias, então podemos dizer que tivemos as duas a
mesma experiência. Não te parece? ANA — Estás a sugerir que o par atenção/desatenção explica melhor
o que se passa com as nossas experiências do concerto do que o par
ANA — Não. Repara numa coisa: a atenção que dediquei à música
atenção interessada/atenção desinteressada?
foi especial, porque eu não tinha qualquer interesse no que estava
a fazer, a não ser ouvir a música. Podemos dizer que a minha MARIA — Exatamente! Eu e tu prestámos atenção ao concerto, mas
atenção foi uma atenção desinteressada. Mas tu, por outro lado, o Rui não. Aquilo a que chamas atenção desinteressada não é uma
estavas mais preocupada com o exame do que com a experiência de espécie de atenção propriamente dita, mas sim um tipo de motiva-
ouvir a música; por isso, a atenção que lhe dedicaste foi interessada. ção para certos atos de atenção.
194 Unidade 8
O argumento dos desacordos
Existe um amplo consenso na atribuição de propriedades físicas aos obje-
tos. Esse consenso explica-se porque essas propriedades são propriedades
reais e objetivas. O mesmo não se verifica no que diz respeito às proprie-
dades estéticas. É neste facto que se baseia o argumento dos desacordos.
Para facilitar a discussão deste argumento, vamos apresentar a sua formu-
lação dividida em duas partes:
Argumento 1 (parte I)
Fig. 7 — IKB 234 (1957), de Yves Klein.
(1) Existem diversos e profundos desacordos no que toca às propriedades
É muito frequente haver quem discuta se um
estéticas.
quadro como este é belo ou não. O mesmo
não acontece se alguém disser que o quadro (2) Se as propriedades estéticas fossem propriedades reais e objetivas
é retangular. dos objetos, não existiriam diversos e profundos desacordos a seu
respeito.
Juízo intuitivo (3) Logo, as propriedades estéticas não são propriedades reais e objetivas
dos objetos.
Avalie o subjetivismo estético de acordo
com a sua primeira reação. Argumento 1 (parte II)
A — Convincente. (4) Ou as propriedades estéticas são propriedades reais e objetivas
B — Atraente mas não convincente. dos objetos, ou são projeções das nossas impressões subjetivas.
C — Duvidoso. (5) As propriedades estéticas não são propriedades reais e objetivas
D — Implausível.
dos objetos.
(6) Logo, as propriedades estéticas são projeções das nossas impressões
subjetivas.
Objeções ao subjetivismo estético
É verdade que existem aspetos que tornam esta teoria bastante apelativa,
mas também existem algumas objeções de peso com as quais ela tem de
lidar. Apresentam-se de seguida alguns exemplos.
Objeção ao argumento dos desacordos
A primeira objeção que iremos considerar é uma resposta direta ao
argumento dos desacordos. Se prestarmos atenção aos argumentos que
compõem o argumento dos desacordos, podemos constatar que quer o
argumento da primeira parte, quer o argumento da segunda parte são váli-
dos, pelo que só estaremos justificados em recusar as suas conclusões se
rejeitarmos pelo menos uma das suas premissas.
Vamos começar pela segunda parte. A premissa que surge no ponto (4) é
relativamente consensual e muito difícil de refutar. Para o fazer, teríamos
de encontrar uma terceira alternativa para caracterizar as propriedades
estéticas, o que não é tarefa fácil. Logo, se queremos rejeitar a conclusão do
argumento, resta-nos tentar refutar a premissa que surge no ponto (5). Mas
essa premissa está justificada, uma vez que é a conclusão do argumento
que surge na primeira parte. Assim, se queremos rejeitá-la, temos de mos-
trar que há algo de errado com esse argumento.
196 Unidade 8
Argumento 2
(1) Há diversos e profundos desacordos acerca de propriedades estéticas.
(2) Se há desacordos acerca de propriedades estéticas, então as pessoas em
desacordo estão a fazer afirmações diferentes sobre as mesmas coisas.
(3) Se as pessoas em desacordo estão a fazer afirmações diferentes sobre
as mesmas coisas, então as propriedades estéticas não são meras
projeções das suas impressões subjetivas.
(4) Logo, as propriedades estéticas não são meras projeções das suas
impressões subjetivas.
A verdade é que para que haja um desacordo real entre dois apreciadores
de um determinado objeto (digamos, o primeiro álbum dos Moonspell,
para retomar o exemplo anterior), eles têm de estar a fazer afirmações
opostas sobre a mesma coisa. Consideremos os exemplos:
1. O primeiro álbum dos Moonspell é intenso.
10. O primeiro álbum dos Moonspell não é intenso.
Segundo o subjetivismo estético, o juízo 1 significa «Eu tenho uma sen-
sação de intensidade durante a audição do primeiro álbum dos Moons-
pell.» e o juízo 10 significa «Eu não tenho uma sensação de intensidade
durante a audição do primeiro álbum dos Moonspell.». Ora, se estes juí-
zos forem formulados por pessoas diferentes, aquilo que existe de aparen-
temente contraditório entre eles deixa de existir, uma vez que se referem
apenas às impressões e gostos que cada um experimenta, e não às pro-
priedades objetivas do álbum. Logo, se o subjetivismo estético fosse ver-
dadeiro, não existiriam autênticos desacordos quanto à atribuição de pro-
priedades estéticas aos objetos.
Avaliação crítica
Atividades
3 Por que razão se diz que «caso o subjetivismo estético fosse verdadeiro, não teríamos forma de aprender a usar termos relativos
a propriedades estéticas»?
Debate
«O subjetivismo estético é falso, porque há obras cujo valor é universal e intemporalmente reconhecido.» Concorda? Porquê?
198 Unidade 8
Texto 2
O método afetivo de avaliação crítica consiste em ajuizar a obra As mesmas duas questões poderiam ser levantadas acerca da noção
pelos seus efeitos psicológicos, ou pelos efeitos psicológicos prová- geral que parece estar implícita nas outras razões afetivas: a obra é
veis […]. [N]ão considero irrelevantes as razões afetivas para a ava- boa se conduz a uma forte reação emocional de um certo tipo. Mas
liação dos objetos estéticos […], apenas defenderei que as razões de que modo difere a reação emocional das fortes reações emocio-
afetivas, só por si, são inadequadas […]. nais geradas por telegramas anunciando mortes, por sustos de
morte em carros descontrolados, pela doença grave de um filho ou
Primeiro, se alguém afirma que ouviu o andamento lento do Quar-
por um pedido de casamento? Há certamente uma diferença impor-
teto de Cordas em Mi Bemol Maior (Op. 127), de Beethoven, e que
tante que a explicação da reação emocional tem de ter em conta
lhe deu «prazer», ou nos adverte que nos daria prazer, penso que
para ser completa. O que há no objeto estético que causa a reação
deveríamos considerar esta advertência uma resposta fraca a esta
emocional? Talvez seja alguma qualidade específica intensa, na qual
grande música. E, contudo, num sentido muito amplo e vago é ver-
a nossa atenção está centrada quando estamos perante a obra. De
dade que nos dá prazer, tal como os amendoins salgados ou um
facto, alguns dos termos afetivos são […] muitas vezes enganadores,
mergulho em água fresca dão prazer. Somos, assim, levados a per-
pois são realmente sinónimos de termos descritivos: querem dizer
guntar que tipo de prazer nos dá e como difere esse prazer de outros
que o objeto tem certas qualidades específicas num grau de intensi-
[…]. E esta linha de investigação levar-nos-ia ao segundo aspeto.
dade apreciável. E, nesse caso, é claro que a razão já não é afetiva,
Pois uma afirmação afetiva informa-nos do efeito da obra, mas não
mas objetiva.
identifica as características da obra que causam esse efeito. […]
monroe BearDSley, «Razões Objetivas» in almeiDa, Aires e murCho, Desidério
Textos e Problemas de Filosofia, 2006 [ed. original 1958].
1 Segundo a definição centrada no conteúdo, em que condições uma experiência pode ser chamada de «estética»?
2 Segundo Monroe Beardsley, em que consiste a unidade, a diversidade e a intensidade de um objeto ou obra de arte?
Debate
«Para apreciar algo do ponto de vista estético, temos de ignorar o seu conteúdo representacional e moral.» Concorda? Porquê?
200 Unidade 8
Atividade
Debate
202 Unidade 8
Atividades
Debate
«O facto de a maioria das pessoas reagir de igual modo perante o valor estético dos mesmos objetos não se deve às suas propriedades obje-
tivas, mas sim ao facto de termos sido cultural e socialmente condicionados para reagir desse modo.» Concorda? Porquê?
• As propriedades físicas são estudadas pelos físicos e são • Para os defensores da definição centrada no conteúdo, a
quantitativas, como, por exemplo, o peso, a altura e a largura. experiência estética alimenta-se exclusivamente das proprie-
dades sensíveis e formais dos objetos e das relações que
• Um dos principais problemas estudados no âmbito da esté- estas estabelecem entre si, e é independente das conse-
tica é o problema de saber qual é a natureza da experiência quências que estes possam eventualmente possuir para nós
e dos juízos estéticos. ou para a sociedade em geral.
• Segundo a definição de experiência estética centrada no • Os aspetos positivos da definição de experiência estética
sujeito, a experiência estética consiste numa forma de aten- centrada no conteúdo são os seguintes: dispensa a noção
ção e contemplação desinteressadas e complacentes de um técnica de atenção desinteressada e aproxima-se do modo
objeto ou obra de arte. como comunicamos.
• As vantagens desta definição de experiência estética são as • As principais objeções apresentadas à definição de experiên-
seguintes: explica os desacordos que existem no que toca a cia estética centrada no conteúdo são as seguintes: objeção
este tipo de experiência e explica por que razão qualquer das diferenças intersubjetivas e objeção baseada na ideia de
objeto pode originar uma experiência estética. que esta definição acaba por se assemelhar à definição cen-
• As principais objeções que esta teoria enfrenta são as seguin- trada no sujeito.
tes: as noções de complacência e desinteresse podem revelar- • Para o objetivismo estético, as propriedades estéticas não se
-se inconciliáveis e a atitude estética é um mito. referem a estados subjetivos projetados nos objetos, mas
• Segundo o subjetivismo estético, os juízos estéticos referem- sim a propriedades objetivas dos mesmos.
-se às impressões subjetivas despertadas pelos objetos e não • Para um defensor do objetivismo estético, a verdade ou fal-
a propriedades objetivas dos mesmos. sidade dos juízos estéticos não depende dos estados subje-
• Para um subjetivista estético, afirmar que «x é intenso.» signi- tivos de quem os formula.
fica: «Eu tenho uma sensação de intensidade perante x.» • Um objetivista estético defende que justificamos os juízos
• Segundo o subjetivismo estético, a verdade ou a falsidade estéticos apelando às propriedades não estéticas das quais
dos juízos estéticos depende exclusivamente dos estados as propriedades estéticas sobrevêm.
subjetivos de quem os formula. • O principal argumento a favor do objetivismo estético
• O principal argumento a favor do subjetivismo estético é o baseia-se numa analogia entre as propriedades estéticas e as
argumento dos desacordos. propriedades cromáticas.
• As principais objeções que o subjetivismo estético enfrenta • As principais objeções que o objetivismo estético enfrenta
são: a objeção ao argumento dos desacordos, a objeção da são: a objeção da analogia fraca, a objeção dos desacordos e
aprendizagem por ostensão de termos relativos a proprieda- a objeção do condicionamento cultural.
des estéticas e a objeção da diferença entre juízos estéticos
e juízos de gosto.
Leituras:
AlmeidA, Aires e murcho Desidério — «Estética», in Textos e Problemas de Filosofia. Lisboa: Plátano Editora, 2006.
cArroll, Noël — «Arte e Experiência Estética», in Filosofia da Arte. Lisboa:
Texto Edições Texto & Grafia, 2010 [ed. original 1999].
Sobrante
dickie, George — «A Teoria da Beleza: De Platão ao Século xIx», «Teorias da Avaliação do Século xx» e «O Instrumentalismo de
Monroe Beardley», in Introdução à Estética. Lisboa: Bizâncio, 2008 [ed. original 1997].
GrAhAm, Gordon — «Hume e o Padrão do Gosto» e «Kant e o Belo», in Filosofia das Artes: Introdução à Estética. Lisboa: Edições 70,
2001 [ed. original 1997].
Stolnitz, Jerome — «A Atitude Estética», in D'Orey, Carmo (org.) O Que É a Arte? Lisboa: Dinalivro, 2007 [ed. original 1960].
204 Unidade 8
Filmes:
Corrigindo Beethoven (2006), realizado por Agnieszka Holland.
Rapariga com Brinco de Pérola (2003), de Peter Webber.
Páginas da Internet:
http://criticanarede.com/problemasdaestetica.html (artigo «Problemas da Estética», de Jenefer Robinson).
1. E
m geral, um juízo é o ato de estabelecer uma relação entre um sujeito e um predicado.
2. O
que distingue os juízos estéticos de outros tipos de juízos é, pelo menos em parte,
a especificidade dos predicados que este tipo de juízos envolve.
5. A
s propriedades físicas são propriedades que dizem respeito à dimensão qualitativa
dos objetos e que dependem das nossas reações perante os mesmos.
6. A
s propriedades estéticas são propriedades que dizem respeito à dimensão quantitativa
dos objetos e que dependem das nossas reações perante os mesmos.
7. A
s propriedades estéticas são propriedades que dizem respeito à dimensão quantitativa
dos objetos e que não dependem das nossas reações perante os mesmos.
8. A
s propriedades estéticas são propriedades que dizem respeito à dimensão qualitativa
dos objetos e que dependem das nossas reações perante os mesmos.
9. S
ão exemplos de propriedades estéticas: a monumentalidade, a altura e a largura.
10. S
ão exemplos de propriedades estéticas: a elegância, a delicadeza e a intensidade.
11. S
ão exemplos de propriedades não estéticas: a duração, a altura e a largura.
12. A
s propriedades estéticas são propriedades disposicionais que dizem respeito à dimensão
qualitativa dos objetos.
13. D
iz-se que um objeto tem uma propriedade disposicional quando essa propriedade depende
exclusivamente da disposição dos elementos físicos que o compõem.
14. D
iz-se que um objeto tem uma propriedade disposicional quando essa propriedade não
depende exclusivamente da disposição dos elementos físicos que o compõem.
15. D
iz-se que um objeto tem uma propriedade disposicional quando essa propriedade depende
das disposições daqueles que o apreendem.
16. D
iz-se que um objeto tem uma propriedade disposicional quando essa propriedade não
depende das disposições daqueles que o apreendem.
17. J erome Stolnitz defende uma definição de experiência estética centrada no sujeito.
18. S
egundo a definição de experiência estética centrada no sujeito, a experiência estética consiste
numa forma de atenção e contemplação interessadas e complacentes de um objeto ou obra de
arte.
19. S
egundo a definição de experiência estética centrada no sujeito, a experiência estética consiste
na experiência das propriedades estéticas que são propriedades reais e objetivas das coisas.
20. Segundo Stolnitz, a atitude estética, tal como a atitude prática, procura determinar
a utilidade que um objeto pode ter para nós e para os nossos objetivos.
21. De acordo com a definição centrada no sujeito, se estamos interessados num objeto,
já não podemos ter uma experiência estética do mesmo.
22. Segundo a definição centrada no sujeito, um galerista que aprecia um quadro pelo seu valor
monetário não está a ter uma experiência estética do mesmo.
23. Rejeitar um romance por este atentar contra a moral e os bons costumes é fazer uma
apreciação complacente do mesmo.
206 Unidade 8
25. A ideia de que a atitude estética é um mito é uma das principais vantagens da definição
centrada no sujeito.
26. Um dos problemas da definição de experiência estética centrada no sujeito é o facto de, por
vezes, haver uma incompatibilidade entre as noções de contemplação e complacência.
28. Para um subjetivista estético, afirmar que «x é intenso.» significa: «Eu tenho uma sensação
de intensidade perante x.»
29. Segundo o subjetivismo estético, embora os juízos estéticos se refiram a propriedade efetivas
das coisas, a sua verdade, ou falsidade, depende exclusivamente dos estados subjetivos
de quem os formula.
30. Para um subjetivista estético, os juízos estéticos não passam de expressões dos nossos gostos
pessoais, ou seja, são meros juízos de gosto.
31. Uma objeção ao subjetivismo estético é que existem casos em que os nossos juízos estéticos
não correspondem aos nossos juízos de gosto.
32. Um aspeto positivo do subjetivismo estético é o facto de esta teoria explicar de modo claro
o processo de aprendizagem por ostensão de termos relativos a propriedades estéticas.
33. A existência de desacordos na atribuição de propriedades estéticas só pode ser usada para
defender o subjetivismo estético.
35. Um objeto tem um elevado grau de unidade quando existem poucos objetos semelhantes
a ele.
38. Para o objetivismo estético, as propriedades estéticas não se referem a estados subjetivos
projetados nos objetos, mas sim a propriedades reais e objetivas dos mesmos.
39. Para o objetivismo estético, quando duas pessoas manifestam um desacordo na atribuição
de uma propriedade estética, apenas uma delas pode estar correta.
40. Segundo o objetivismo estético, as propriedades estéticas são propriedades físicas e reais
dos objetos.
41. Sendo F uma propriedade superveniente de G, qualquer objeto que tiver F terá G.
33. F; 34. V; 35. F; 36. V; 37. F; 38. V; 39. V; 40. F; 41. F; 42. F.
1. V; 2. V; 3. F; 4. V; 5. F; 6. F; 7. F; 8. V; 9. F; 10. V; 11. V; 12. V; 13. F; 14. V; 15. V; 16. F; 17. V; 18. F; 19. F; 20. F; 21. F; 22. V; 23. F; 24. F; 25. F; 26. F; 27. F; 28. V; 29. F; 30. V; 31. V; 32. F;
SOLUÇÕES:
9 A criação artística
e a obra de arte
9.1 O que é a arte?
9.1.1 A teoria mimética da arte (ou teoria da arte como imitação)
9.1.2 A teoria representacionista da arte
9.1.3 A teoria expressivista da arte
9.1.4 A teoria formalista da arte
9.1.5 Arte, produção e consumo: uma teoria institucional da arte
No fim desta unidade, deverá ser capaz de responder Os conceitos seguintes, que são centrais nesta unidade,
às seguintes questões: são definidos no fim do livro:
O que é uma definição explícita de arte? antiessencialismo formalismo
Qual é a diferença entre os usos classificativo e valorativo arte mundo da arte
da palavra «arte»?
artefacto obra de arte
Quais são as teses das teorias mimética,
emoção estética representação
representacionista, expressivista e formalista da arte?
expressão representacionismo
Qual é o alcance de cada uma destas teorias?
expressivismo forma significante
Quais são os limites de cada uma destas teorias?
Introdução
Nesta unidade, iremos ocupar-nos do problema central da filosofia da arte: «O que é a arte?» À primeira vista, a pergunta pode parecer
disparatada, visto que, num certo sentido, todos sabemos o que é a arte: é música, pintura, escultura, etc. No entanto, aquilo que procu-
ramos não é apenas dizer que tipo de coisas são frequentemente designadas por arte. Afinal de contas, muitas das coisas a que hoje
chamamos arte, como a banda desenhada, não eram assim chamadas há uns anos. Por seu turno, muitas coisas que hoje não são consen-
sualmente consideradas arte, como os videojogos, por exemplo, poderão, ou não, vir a sê-lo num futuro próximo. Mas para isso precisamos
de critérios que permitam estabelecer com relativa segurança o que pertence e o que não pertence ao domínio da arte. Por outro lado,
apesar de a música ser geralmente considerada arte, isso não acontece com todo o tipo de música. Dificilmente a chamada música
«pimba» poderá ser considerada arte. Como sabemos, então, quais são os tipos de música que devem ser considerados arte e quais são
aqueles que devem ser excluídos dessa categoria? Que características tem de ter um objeto para que possa ser enquadrado nessa cate-
goria? Será que não existem características comuns a todas as obras de arte? Estes são alguns dos problemas envolvidos na discussão em
torno da definição de arte que iremos abordar de seguida.
208 Unidade 9
Guião de leitura
Fazer filosofia
210 Unidade 9
Atividades
1 «Para definir explicitamente arte, basta encontrar uma propriedade que seja comum a todas as obras de arte.» Concorda? Porquê?
2 Por que motivo alguns autores consideram muito difícil, ou até mesmo impossível, definir arte?
3 O que significa dizer que uma boa teoria da arte deve dar conta dos usos comuns da palavra «arte»?
Debate
«Sem o sentido classificativo (descritivo), deixaríamos de poder falar de má arte.» Concorda? Porquê?
212 Unidade 9
A poesia épica, a tragédia e a comédia, assim como a poesia ditirâmbica e a maior parte
da arte de tocar flauta e lira, são todas geralmente concebidas como imitações. Teoria formalista
Aristóteles, «Poética», in AlmeidA, Aires e murcho, Desidério (org.),
Textos e Problemas de Filosofia. Lisboa: Plátano Editora, 2006, pp. 134-136. Teoria institucional
Esta teoria foi pacificamente aceite até finais do século xviii. Uma vida tão Avalie a teoria mimética de acordo
longa só se explica porque no tempo de Platão e Aristóteles os exemplos com a sua primeira reação.
mais relevantes de arte eram imitativos. Uma peça de teatro ou uma escul- A — Convincente.
tura eram imitações de pessoas, deuses, heróis e ações — a música e a
B — Atraente mas não convincente.
dança eram encaradas como elementos da representação teatral e não como
formas artísticas autónomas. A influência desta teoria ainda hoje se faz C — Duvidosa.
sentir: há quem diga que a pintura abstrata não é arte, porque não se parece D — Implausível.
com coisa alguma; ou que um filme não é arte, porque não tem uma histó-
ria parecida com a vida real.
A criação artística e a obra de arte 213
Argumento 1
(1) Se x é arte, então x é uma imitação.
(2) As obras de Mark Rothko e Yves Klein não são imitações.
(3) As obras de Mark Rothko e Yves Klein não são obras de arte.
(4) Mas as obras de Mark Rothko e Yves Klein são reconhecidamente
obras de arte.
(5) Logo, é falso que se x é arte, então x é uma imitação.
214 Unidade 9
v. O defensor da teoria mimética afirma que esses exemplos não são obras C — Duvidosa.
de arte porque não constituem nenhuma forma de imitação, que é jus- D — Implausível.
tamente o que a teoria mimética afirma.
Atividades
2 «Segundo a teoria mimética, a imitação é uma condição suficiente para a arte.» Concorda?
Justifique a sua resposta.
3 Por que razão a teoria da arte como imitação teve uma vida tão longa?
Debate
Será que negar o estatuto de arte às artes não imitativas é uma boa estratégia para superar as objeções à teoria mimética da arte? Porquê?
A teoria mimética exclui muitas obras de arte, mas, visto que a noção de
representação é mais geral, talvez a teoria representacionista resista aos
contraexemplos apresentados. Afinal de contas, não podemos dizer que
toda a arte implica imitação, mas talvez possamos afirmar que toda a arte
implica alguma forma de representação. Por mais abstrata que uma obra
possa parecer, o seu autor deve pretender que ela represente alguma coisa,
ou não? Será que temos boas razões para acreditar nisso?
A teoria representacionista é definitivamente mais inclusiva do que a teoria
mimética, mas, conforme veremos de seguida, não está isenta de objeções.
Juízo intuitivo
216 Unidade 9
Atividades
2 «A teoria representacionista é mais abrangente do que a teoria mimética da arte.» Concorda? Porquê?
3 Será a representação uma condição necessária para que algo possa ser arte? Porquê?
Debate
O neorrepresentacionismo defende que para que algo seja arte tem de ser acerca de alguma coisa. Será que esta estratégia permite superar
as limitações da teoria representacionista? Porquê?
Texto 2
A arte é uma atividade humana que consiste nisto: um homem comunica consciente-
mente a outros, por meio de certos sinais externos, os sentimentos de que teve expe-
riência, e outras pessoas são contaminadas por estes sentimentos e também deles têm
experiência.
leão tolstoi «O Que É a Arte?», in dickie, George (1997) Introdução à Estética.
Lisboa: Bizâncio, 2008 [ed. original1898].
218 Unidade 9
1. Tolstoi esteve na guerra e 2. Tolstoi escreve a obra Guerra e Paz, 3. A obra desperta no público os
experimentou vários sentimentos através da qual exprime esses mesmos sentimentos que o artista
ou estados emocionais. sentimentos ou estados emocionais. sentiu ao passar pela guerra.
Esquema 2 — Condições para considerar a obra Guerra e Paz uma obra de arte.
A teoria expressivista da arte tem o mérito de restaurar o estatuto da arte no Juízo intuitivo
mundo ocidental, mostrando que a arte está intrinsecamente ligada a aspe-
tos emocionais que têm uma importância inegável na vida das pessoas. Avalie a teoria expressivista de acordo
Além disso, a sua capacidade de lidar facilmente com a música instrumen- com a sua primeira reação.
tal e com a pintura abstrata valeu-lhe muitos adeptos que abandonaram A — Convincente.
a teoria representacionista. Afinal de contas, desde que corresponda à
B — Atraente mas não convincente.
expressão das emoções do artista e que o público se deixe contagiar por
essas emoções, a obra será considerada arte, mesmo que não imite nem C — Duvidosa.
represente coisa alguma. No entanto, tal como a teoria representacionista, D — Implausível.
também a teoria expressivista não está isenta de objeções.
220 Unidade 9
Experiência mental 1
Imagine que o Carlos é alguém que se sente muito desanimado porque acabou de ser despedido do seu local de trabalho. O Carlos desata
num pranto e fala soluçadamente, lamentando-se pela sua situação. O Luís é um colega de trabalho que assistiu a tudo e que ficou como-
vido ao ver um homem adulto sentir-se tão destroçado. Começa a pensar que corre sérios riscos de ser ele o próximo a ser mandado
embora e deixa-se contagiar pelas emoções do Carlos.
i. apresenta condições necessárias demasiado restritivas (não cobre toda a B — Atraente mas não convincente.
riqueza da arte); C — Duvidosa.
ii. apresenta condições suficientes demasiado abrangentes (não capta a D — Implausível.
especificidade da arte).
Atividades
3 Por que razão as obras de arte baseadas no acaso constituem contraexemplos à teoria expressivista da arte?
4 «As emoções do público nem sempre coincidem com as emoções do artista.» Em que medida esta afirmação pode constituir uma
objeção à teoria expressivista da arte?
5 «A expressão de emoções é uma condição suficiente para que algo seja arte.» Concorda? Porquê?
Debate
«A teoria expressivista da arte pode não servir para definir arte num sentido classificativo, mas dá conta do sentido valorativo.» Concorda? Porquê?
Texto 3
222 Unidade 9
Texto 4
O ponto de partida para todos os sistemas da estética tem de ser a Qual é a justificação para essa classificação? Qual é a qualidade
experiência pessoal de uma emoção peculiar. Aos objetos que provo- comum e peculiar a todos os membros dessa classe? Seja ela qual
cam tal emoção chamamos obras de arte. […] Que existe um tipo for, não há dúvida que se encontra muitas vezes acompanhada por
particular de emoção provocado por obras de arte visual e que essa outras qualidades; mas estas são fortuitas — aquela é essencial. Tem
emoção é provocada por todos os tipos de arte visual, por pinturas, de haver uma qualquer qualidade sem a qual uma obra de arte não
esculturas, edifícios, peças de cerâmica, gravuras, têxteis, etc., etc., não existe; na posse da qual nenhuma obra é, no mínimo, destituída de
é disputado, penso eu, por ninguém capaz de a sentir. Esta emoção é valor. Que qualidade é essa? Que qualidade é partilhada por todos os
chamada emoção estética e, se pudermos descobrir alguma quali- objetos que provocam as nossas emoções estéticas? […] Só uma
dade comum e peculiar a todos os objetos que a provocam, teremos resposta parece possível — a forma significante. Em cada uma
resolvido o que considero ser o problema central da estética. Tere- destas coisas, linhas e cores combinadas de uma maneira particular,
mos descoberto a qualidade essencial da obra de arte, a qualidade certas formas e relações de formas, estimulam as nossas emoções
que distingue as obras de arte de outras classes de objetos. estéticas. A estas relações e combinações de linhas e cores, a estas
formas esteticamente tocantes, chamo «Forma Significante»; e a
Com efeito, ou todas as obras de arte visual têm alguma qualidade
«Forma Significante» é a tal qualidade comum a todas as obras de
comum, ou quando falamos de «obras de arte» estamos a descon-
arte visual.
versar. Cada pessoa fala de «arte» fazendo uma classificação mental
pela qual distingue a classe das «obras de arte» de todas as outras clive Bell, «A Hipótese Estética», in d’orey, Carmo (org.)
classes. O Que É a Arte? Lisboa: Dinalivro, 2007.
Assim, a definição de arte proposta por Bell pode ser formulada do seguinte
modo:
224 Unidade 9
Objeção 3
Bell define forma significante apelando à noção de emoção estética. Mas
o que é uma emoção estética? Clarificar um conceito recorrendo a outros
conceitos igualmente nebulosos não é uma estratégia muito eficaz. O forma-
lista pode continuar a recuar de conceito em conceito, mas, se explicar o
obscuro em termos igualmente obscuros, o seu conceito inicial jamais estará Fig. 11 — Antecipação de Um Braço Partido
clarificado. Bell opta por dizer que a emoção estética é o que sentimos (1915), de Marcel Duchamp.
quando estamos perante certas configurações de linhas, cores e formas, ou Esta pá de limpar neve é uma obra
seja, quando estamos perante formas significantes. Mas esta estratégia não de arte. No entanto, as suas formas, linhas
resolve o problema, pois é viciosamente circular, visto que define forma e cores são idênticas às das suas contrapartes
significante recorrendo à noção de emoção estética; e, por sua vez, define do quotidiano.
emoção estética recorrendo à noção de forma significante.
O formalista pode tornar a noção de forma significante mais familiar, apro-
ximando-a do conceito de forma. Neste sentido, qualquer configuração, ou Avaliação crítica
forma, que relacione de modo adequado as diferentes partes de um todo é
um bom exemplo de forma significante. No entanto, esta alternativa não Assinale agora a sua avaliação ponderada
está isenta de dificuldades. Por um lado, porque há obras de arte que não da teoria formalista.
relacionam partes de um todo — por exemplo, as pinturas monocromáti- A — Convincente.
cas de Ad Reinhardt, de Robert Ryman e de Yves Klein (ver figura 8 na B — Atraente mas não convincente.
página 196) são blocos de uma única cor e, por isso, não têm partes que se
possam relacionar, seja de que modo for; por outro lado, isso tornaria o C — Duvidosa.
conceito de forma significante tão lato que qualquer coisa — desde uma D — Implausível.
casa até uma escova de dentes — teria forma significante.
Atividades
3 Qual é a importância da referência à intenção do criador na definição de arte proposta pela teoria formalista da arte?
4 Por que razão se diz que a definição que Bell oferece de «forma significante» é viciosamente circular?
5 «A forma e o conteúdo são inseparáveis.» Esta afirmação pode constituir uma objeção à teoria formalista da arte? Porquê?
Debate
«A teoria formalista é mais abrangente do que as teorias representacionista e expressivista.» Concorda? Porquê?
Texto 5
Ver algo como arte requer algo que o olhar não pode divisar — uma atmosfera de teoria
Fig. 12 — Caixas de Brillo (1964), de Andy artística, um conhecimento da história da arte: um mundo da arte.
Warhol. Arthur dANto, «O Mundo da Arte», in WArBurtoN, Nigel, O Que É a Arte?
Segundo Danto, aquilo que distingue uma Lisboa: Editorial Bizâncio, 2007 [ed. original 1961], p. 104.
vulgar caixa de cera Brillo da obra Caixas de
Brillo de Andy Warhol é algo que o olhar não
pode divisar — uma atmosfera de teoria
Com este comentário, Danto chama a atenção para a natureza institucional da
artística, um conhecimento da história da
arte: um mundo da arte. arte. Em 1974, o filósofo americano George Dickie formula de modo articu-
lado a primeira teoria institucional da arte:
Segundo esta definição, existem duas condições para que algo seja arte.
A primeira é a artefactualidade. Para que exista uma obra de arte, é neces-
sário que exista um artefacto. À primeira vista, esta condição pode parecer
demasiado restritiva, visto que tradicionalmente se entende por artefacto
um objeto construído ou transformado por mãos humanas.
226 Unidade 9
Texto 6
Texto 7
O requisito de artefactualidade não pode impedir a criatividade, uma vez que a artefac-
tualidade é uma condição necessária da criatividade. Não pode existir nenhuma instância
de criatividade sem a produção de um artefacto […].
GeorGe dickie, «O Que É a Arte?», in d’orey, Carmo, O Que É a Arte?
Lisboa: Dinalivro, 2007 [ed. original 1976], p. 117.
A segunda condição imposta pela teoria institucional diz-nos que, para que
um artefacto seja considerado uma obra de arte, é necessário que alguém
que atue em nome do mundo da arte tenha atribuído o estatuto de can-
didato a apreciação a um conjunto de características desse artefacto.
Texto 8
Objeção 3
A teoria institucional da arte é, por vezes, criticada por ser elitista e anti-
democrática, visto que confere poderes especiais a um círculo fechado de
indivíduos que têm o poder de transformar em arte tudo o que consideram
digno de ser apresentado como candidato à apreciação. Esta crítica falha,
contudo, o seu alvo, por dois motivos: em primeiro lugar, a teoria de Dickie
assume que qualquer um pode pertencer ao mundo da arte desde que se Fig. 14 — Artistas Saem à Rua, cartoon
de Henrique Monteiro.
submeta aos processos requeridos para tal. Em segundo lugar, porque atri-
buir o estatuto de arte, no sentido classificativo, a um artefacto não implica A teoria institucional é, por vezes, acusada
de elitismo, visto que só os membros
que se esteja a anexar-lhe qualquer tipo de valor. Dizer que pertence à cate- do mundo da arte têm legitimidade para
goria das obras de arte não é o mesmo que dizer que é uma boa obra de conferir o estatuto de arte a um artefacto.
arte; o candidato pode nunca chegar a ser efetivamente apreciado.
Objeção 4
Não pode haver arte sem que pré-exista a instituição social do mundo da
arte, mas não pode haver mundo da arte sem arte. Assim sendo, se a teoria
institucional for verdadeira, deixa de ser possível falar de arte primitiva,
Avaliação crítica
pois é improvável que existisse algo que se assemelhe ao mundo da arte
quando os homens das cavernas fizeram as primeiras pinturas rupestres. Assinale agora a sua avaliação ponderada
Além disso, a ideia de um artista solitário, que vive e cria à margem da da teoria mimética.
sociedade, torna-se utópica à luz desta teoria.
A — Convincente.
Atividades
Debate
«Apesar de circular, a definição de arte proposta por Dickie é informativa.» Concorda? Porquê?
• No sentido valorativo, dizer que algo é uma obra de arte é • A teoria formalista da arte defende que: x é uma obra de arte
reconhecer que esse objeto, além de pertencer à categoria se, e só se, x foi concebido com o (principal) intuito de exibir
das obras de arte, é um bom exemplar dessa categoria, ou forma significante.
seja, é uma boa obra de arte. • A forma significante é uma configuração — de linhas, cores,
• A teoria mimética da arte (ou teoria da arte como imitação) formas e espaços — que tem a capacidade de originar um
remonta a Platão e Aristóteles e defende que: x só é uma determinado tipo de emoção no espectador — «emoção
obra de arte se for uma imitação. estética».
• A principal objeção que a teoria mimética da arte enfrenta é • A emoção estética é a emoção que sentimos perante certas
o facto de existirem exemplos de arte não imitativa, como a configurações de linhas, cores, formas e espaços, que desig-
pintura abstrata, a arte decorativa, a música instrumental e namos por «forma significante».
algumas formas de teatro, dança, cinema e literatura. • A teoria formalista da arte capta os valores formais das obras
• A teoria representacionista da arte substitui a noção de imita- não imitativas ou inexpressivas melhor do que as suas rivais.
ção pela noção de representação. • As principais objeções que a teoria formalista da arte
• Segundo a teoria representacionista: x só é uma obra de arte enfrenta são as seguintes: o conceito de forma significante é
se for uma representação. vago: ou a sua definição é circular ou é demasiado lata; há
obras de arte com formas indistinguíveis de objetos comuns;
• Há muitas obras de arte que não são representações; encon- a forma é, muitas vezes, inseparável do conteúdo.
tram-se exemplos disso na arquitetura, na música instrumen-
tal, na arte decorativa e noutras práticas artísticas que se • A teoria institucional da arte sustenta que: x é uma obra de
constituem como meros exercícios formais, sem a pretensão arte se, e só se, x é um artefacto e se foi atribuído o estatuto
de representar coisa alguma. de candidato a apreciação a um conjunto das suas caracte-
rísticas por uma ou várias pessoas que atuam em nome de
• Os ready-mades são objetos que adquiriram o estatuto de determinada instituição social (o mundo da arte).
obra de arte, mas não representam nada; são apenas objetos
comuns do quotidiano. • As principais vantagens desta perspetiva são: capta a natu-
reza social e relacional da arte e a propriedade não manifesta
• A teoria expressivista da arte sustenta que: x é uma obra de arte do estatuto melhor do que as suas precedentes.
se, e só se, x transmite as emoções do seu criador a um público.
• A teoria institucional enfrenta as seguintes objeções: faz da
• As principais vantagens desta perspetiva são: devolve à arte arte algo de arbitrário e infundado; a prática artística não
um lugar de destaque na sociedade, pois está intrinseca- constitui uma instituição social; é considerada elitista; impos-
mente ligada a aspetos emocionais que têm uma importân- sibilita a existência de arte primitiva e de arte solitária; é vicio-
cia inegável na vida das pessoas, e lida facilmente com a samente circular.
música instrumental e com a pintura abstrata.
Leituras:
AlmeidA, Aires e murcho, Desidério — «Estética», in Textos e Problemas de Filosofia. Lisboa: Plátano Editora, 2006.
cArroll, Noël — Filosofia da Arte. Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2010 [ed. original 1999].
dickie, George — Introdução à Estética. Lisboa: Editorial Bizâncio, 2008 [ed. original 1997], capítulos 5-8.
d'orey, Carmo (org.) — O Que É a Arte? Lisboa: Dinalivro, 2007.
WArburton, Nigel — O Que É a Arte? Lisboa: Editorial Bizâncio, 2007 [ed. original 2003].
230 Unidade 9
Filmes:
O Sorriso de Mona Lisa (2003), de Mike Newell.
Untitled — Sem Título (2009), de Jonathan Parker.
Páginas da Internet:
http://criticanarede.com/fil_tresteoriasdaarte.html (artigo «O Que É a Arte», de Aires Almeida).
http://criticanarede.com/principiosdaarte.html (artigo «Os Princípios da Arte», de R. G. Collingwood).
1. Para definir arte explicitamente, basta que se encontre uma característica comum a todas
as obras de arte.
2. Num sentido classificativo, é elogioso dizer que algo é uma obra de arte.
4. A teoria mimética da arte defende que imitar a realidade é uma condição suficiente para que
algo seja considerado arte.
5. A teoria mimética da arte defende que imitar a realidade é uma condição necessária para que
algo seja considerado arte.
6. A teoria mimética da arte acolhe perfeitamente a música instrumental, pois esta imita as
emoções humanas.
9. Segundo a teoria representacionista, x só é uma obra de arte se for uma representação (por
outras palavras: «Se x é arte, então x é uma representação.»).
12. Uma crítica à teoria representacionista é a ideia de que há muitas obras de arte que não são
representações.
14. A teoria expressivista de Tolstoi diz que, para haver arte, basta existir um artista que exprime
as suas emoções através de uma obra.
15. Segundo a teoria expressivista de Tolstoi, o público tem de experimentar os mesmos estados
emocionais que o artista.
17. Uma vantagem da teoria expressivista é o facto de esta lidar facilmente com a música
instrumental e com a pintura abstrata.
18. U
ma objeção à teoria expressivista é o facto de os artistas profissionais não terem,
necessariamente, de experimentar determinados estados emocionais enquanto criam arte.
19. A teoria expressivista é demasiado restrita, pois existem expressões de emoções que não são arte.
20. A existência da chamada «arte aleatória» torna a teoria expressivista demasiado inclusiva.
21. Um aspeto positivo da teoria expressivista da arte é o facto de esta lidar de modo bastante
satisfatório com a found art.
23. «x é uma obra de arte se, e só se, x foi concebido com o (principal) intuito de exibir forma
significante.» é o principal argumento utilizado pelos defensores do formalismo.
24. A teoria formalista da arte capta os valores formais das obras não imitativas ou inexpressivas
melhor do que as suas rivais.
232 Unidade 9
26. A teoria formalista defende que, para que uma obra seja considerada arte, é necessário que
corresponda à expressão das emoções do seu autor.
27. Segundo a teoria formalista, uma obra de arte só pode ter um propósito principal.
28. O formalista não tem forma de excluir as belezas naturais da sua teoria da arte.
29. Uma crítica à teoria formalista da arte é o facto de esta ser incapaz de dar conta dos usos
classificativo e valorativo da palavra «arte».
30. A teoria formalista tem a vantagem de permitir distinguir o valor de uma obra de arte
genuína do valor de uma imitação bem executada.
32. Segundo o formalismo, o conteúdo representacional de uma obra inviabiliza que esta possa
ser considerada arte.
34. Segundo o formalismo, as emoções do artista são irrelevantes para o estatuto de uma obra
enquanto arte.
35. A existência de obras de arte com formas indistinguíveis de objetos comuns constitui uma
objeção à teoria formalista da arte.
36. A
definição de forma significante falha porque ou é viciosamente circular, ou é tão lata que
praticamente tudo tem forma significante.
37. Uma objeção à teoria formalista da arte baseia-se no facto de ser, muitas vezes, impossível
separar a forma do conteúdo.
38. A tese da teoria institucional é a seguinte: x só é arte se qualquer instituição social lhe atribuir
esse estatuto.
39. A teoria institucional defende que qualquer coisa se pode tornar arte desde que lhe seja
atribuído esse estatuto por um representante do mundo da arte.
41. Tal como o Estado português e a Igreja Católica, a arte é uma instituição social com caráter
formal.
42. O
mundo da arte é uma instituição social composta por artistas, produtores, diretores
de museus, visitantes de museus, espectadores, críticos, historiadores da arte, etc.
44. A teoria institucional da arte não dá conta dos dois usos da palavra «arte».
33. V; 34. V; 35. V; 36. V; 37. V; 38. F; 39. V; 40. F; 41. F; 42. V; 43. V; 44. F; 45. V.
1. F; 2. F; 3. F; 4. F; 5. V; 6. F; 7. V; 8. F; 9. V; 10. F; 11. V; 12. V; 13. V; 14. F; 15. V; 16. F; 17. V; 18. V; 19. F; 20. F; 21. F; 22. V; 23. F; 24. V; 25. V; 26. F; 27. F; 28. F; 29. F; 30. F; 31. F; 32. F;
SOLUÇÕES:
V A DIMENSÃO RELIGIOSA
DA AÇÃO HUMANA E DOS VALORES
10 A religião e o sentido
da existência
10.1 O problema do sentido da existência
10.1.1 Finitude e sentido
10.1.2 Sentido, finalidade e valor
10.1.3 A resposta religiosa (teísta) para o problema do sentido da existência
No fim desta unidade, deverá ser capaz de responder Os conceitos seguintes, que são centrais nesta unidade,
às seguintes questões: são definidos no fim do livro:
Em que consiste o problema do sentido da existência? absurdo sentido da existência
Em que consiste a resposta religiosa para o problema finalidade instrumental (ou sentido da vida)
do sentido da existência? finalidade última sentido teleológico
Qual é o principal argumento a favor da resposta religiosa finitude valor intrínseco/
para o problema do sentido da existência? instrumental
sentido axiológico
Que objeções enfrenta a resposta religiosa para valor objetivo
o problema do sentido da existência? sentido completo
valor subjetivo
Introdução
É provável que já se tenha questionado sobre o sentido de uma determinada atividade. «Por que razão fiz isto?» ou «Para que é que fiz
aquilo?» são perguntas que, de uma forma ou de outra, todos nós já fizemos. É normal que se justifiquem certas atividades com base
numa ou noutra finalidade que se pretende atingir. Mas, por sua vez, é legítimo perguntar «E o que justifica essa finalidade?».
Como já deve ter percebido, em filosofia existe a tentação de levar uma pergunta até às suas últimas consequências, daí que os filósofos
não parem por aqui e procurem algo que justifique cada uma das nossas finalidades e que dê um sentido a tudo o que fazemos. Assim,
perguntas sobre o sentido de uma dada atividade transformam-se rapidamente em perguntas de âmbito mais alargado como «Por que
razão existimos?» ou «Qual é o sentido das nossas vidas como um todo?».
Nesta unidade iremos discutir uma das respostas mais universais para este tipo de questões — a resposta religiosa. Desde tempos
imemoriais que a religião tem servido para conferir sentido à existência e às práticas humanas. A existência de um Deus (ou de vários
Deuses) que cria(m) o universo e os seres humanos com um determinado propósito, dotando-os de almas imortais, é encarada, por mui-
tos, como a única solução possível para o problema do sentido da existência. Será que isso é verdade?
236 Unidade 10
Condenada à vida
A Emília descobriu o segredo da vida eterna. Há mais IGOR — Como assim? Certamente que a sensação de
de trezentos anos, o seu pai, o Dr. Makropulos, ofere- que não estava confinada a durar apenas cerca de
ceu-lhe a fórmula do elixir da eterna juventude. oitenta e tal ou noventa e tal anos ajudou, não?
A Emília nunca compreendeu por que razão o pai lhe
EMÍLIA — Sim, recordo-me de ter sentido um grande
ofereceu tamanha dádiva, sem ter, ele próprio, usu-
alívio nos primeiros tempos. Lembro-me de ter pen-
fruído dela, mas… jovem e inconsequente, preparou
sado: «Agora que tenho todo o tempo do mundo,
o elixir e tomou-o sem qualquer sinal de hesitação.
mais cedo ou mais tarde, irei concretizar todos os
Contudo, hoje, amaldiçoa o dia em que tomou essa
meus projetos.» Mas essa sensação não durou muito.
decisão. Amigos, amantes e parentes acabaram todos
por envelhecer e morrer, deixando um vazio difícil de IGOR — Não compreendo. Há tanto para fazer, tantos
preencher. Além disso, sem a sombra da morte a pai- sítios para conhecer, … Acho que é inevitável pensar
rar sobre ela, a Emília perdeu a paixão e a ambição, e no jeito que daria poder prolongar a nossa vida.
todos os projetos a que se entrega lhe parecem des- EMÍLIA — Pois, mas a sensação de que tudo pode
propositados e fúteis. Aborrecida de morte, o seu ficar para depois começa a instalar-se e, ao fim de
único objetivo é pôr fim à sua enfadonha existência. algum tempo, começamos a perder a vontade de fazer
Aliás, esse objetivo deu um novo fôlego à sua existên- seja o que for. Depois de alguns anos, nada parece
cia e foi a única coisa que deu sentido aos últimos suficientemente importante para nos fazer agir.
cinquenta anos da sua vida. Há poucos dias, conse-
guiu finalmente desenvolver um antídoto e, enquanto IGOR — A mim não me faltaria o que fazer.
se preparava para o tomar, decidiu destruir tudo o EMÍLIA — Diz-me, Igor, o que farias?
que restava do elixir, juntamente com todos os vestí-
gios da fórmula e das investigações do seu pai. O Igor, IGOR — Viajava, conhecia pessoas novas, aprendia
um assistente que ao fim de 32 anos de serviço se coisas novas.
tornara amigo pessoal da Emília, não compreendeu EMÍLIA — Porque não fazes essas coisas todas? Não
bem esta atitude e decidiu confrontá-la: precisas da imortalidade para isso.
IGOR — Emília, porquê desistir de tudo? IGOR — Sim, mas poderia sempre viajar mais…
EMÍLIA — Igor, não vamos voltar a discutir isto.
IGOR — Não percebo por que motivo desistiu de
viver e muito menos por que razão decidiu privar
todos do milagre que o Dr. Makropulos nos legou.
EMÍLIA — Milagre não, Igor. Não se trata de um
milagre, mas sim de uma maldição. Foi por isso que
decidi destruir a fórmula.
IGOR — Só porque não conseguiu ser feliz, isso não
significa que ninguém consiga.
EMÍLIA — Não é tão fácil como parece. Eu também
já fui muito feliz, mas, a esta distância dos aconteci-
mentos, percebo com uma enorme clareza que essa
felicidade não teve nada que ver com a minha imorta- Fig. 1 — Cena da peça O Caso Makropulos (2012).
lidade.
Guião de leitura
4 Discuta a ideia: «Não vale a pena prolongar a vida indefinidamente se ela não tiver qualquer propósito.»
Fazer filosofia
1 Faça uma pesquisa na literatura e no cinema de personagens que, apesar de serem imortais, não viam qualquer sentido
na sua existência. Discuta em grupo o significado desses casos.
238 Unidade 10
Fig. 2 — De Onde Viemos? Quem Somos? Para Onde Vamos? (1897), de Paul Gauguin.
As três questões que constituem o título deste quadro sintetizam, de certa forma,
o problema do sentido da existência. Da direita para a esquerda, Gauguin representa
as etapas fundamentais da vida humana, desde o nascimento até à velhice.
Experiência mental 1
Uma imagem perfeita de uma existência sem sentido […] encontra-se no mito de Sísifo. Sísifo, recorde-se,
traiu os segredos divinos divulgando-os aos mortais, e por isso foi condenado pelos Deuses a carregar
uma pedra até ao cimo de uma montanha, voltando imediatamente a pedra a cair, para Sísifo a carregar
outra vez até ao cimo, caindo outra vez, e assim por diante, uma vez e outra, para sempre. Ora, temos aqui
uma labuta destituída de sentido, despropositada, uma existência destituída de sentido que nunca é redi-
mida. […] A labuta repetitiva é a sua vida e a sua realidade, e continua para sempre, sem ter qualquer
sentido. Nada advém do que faz, exceto simplesmente mais do mesmo. […] Nada resulta disso, absoluta-
mente nada.
RichaRd TayloR, «O Sentido da Vida», in Viver Para Quê?, de Murcho, Desidério (org.)
Lisboa: Dinalivro, 2009 [ed. original 1970].
Fig. 3 — O Mito de Sísifo
(1549), de Tiziano Vecellio.
240 Unidade 10
Assim, podemos concluir que ter, pelo menos, uma finalidade última alcan-
çável com valor intrínseco é uma condição necessária para o sentido da
existência, mas será suficiente?
Não necessariamente. Alguns autores não hesitariam em responder afir-
mativamente a esta questão, mas outros exigem que o valor dessa finali-
dade esteja de algum modo para lá da esfera puramente subjetiva.
Assim, podemos considerar que uma finalidade pode ter valor subjetivo
ou valor objetivo:
242 Unidade 10
Atividades
1 Por que razão o problema do sentido da existência surge frequentemente associado ao problema da finitude humana?
2 Em que medida o mito de Sísifo constitui uma metáfora sombria da existência humana?
6 «Para que a vida tenha sentido, basta que tenha uma finalidade alcançável.» Concorda? Porquê?
7 Complete a seguinte afirmação: «Em termos genéricos, uma vida tem sentido se, e só se, …»
Debate
«A vida de Hitler teve tanto sentido como a vida de Martin Luther King.» Concorda? Porquê?
Texto 1
Um imitador esforça-se por se tornar naquilo que admira… ao passo que um admirador
Fig. 5 — Cristo de São João da Cruz (1951),
mantém um certo distanciamento pessoal; consciente ou inconscientemente, não se
de Salvador Dalí.
apercebe de que aquilo que é admirado lhe impõe o requisito de ser, ou pelo menos
Segundo Quinn, a vida de Cristo constitui um tentar ser, aquilo que se admira.
modelo de uma existência com sentido, que
PhiliP l. Quinn, «The Meaning of Life According to Christianity», in Klemke, E. D. (org.) The Meaning of Life.
deve ser seguido por todos os cristãos.
Nova Iorque: Oxford University Press, 2000, 2.ª edição, pp. 59-60.
244 Unidade 10
Texto 2
[…] Parece não ser difícil supor que a vida de um imitador […] de Tal como a vida do próprio Jesus, pelo menos as vidas de alguns
Cristo, que deseja e se esforça por fazer o bem, terá significado teleo- imitadores […] de Cristo serão, no seu todo, boas para eles apenas se
lógico positivo, apesar do sofrimento que provavelmente contém. Mas se prolongarem para além da morte nalguma forma de vida futura.
se essa vida acaba na morte do corpo, há problemas em supor que Por isso, a sobrevivência à morte do corpo parece ser necessária para
toda a vida desse tipo tenha também um significado axiológico posi- assegurar um significado axiológico positivo e, assim, um significado
tivo, porque algumas destas vidas, no conjunto, não parecem ser boas positivo completo para as vidas de todos aqueles cujas narrativas
para as pessoas que as vivem. Mas, como é óbvio, a vida terrena de correspondam tanto quanto é humanamente possível […] ao para-
Jesus, que terminou num sofrimento atroz e numa morte ignominiosa, digma ou protótipo apresentado nas narrativas dos Evangelhos da
dá origem exatamente ao mesmo problema. Contudo, faz parte da fé vida de Jesus.
cristã tradicional que a vida de Jesus não terminou com a morte do PhiliP l. Quinn, «The Meaning of Life According to Christianity»,
corpo mas continuou após a sua ressurreição e continuará até ao seu in Klemke, E. D. (org.) The Meaning of Life. Nova Iorque:
regresso em glória; pelo que, no seu todo, é uma vida boa para ele. Oxford University Press, 2000, 2.ª edição, pp. 59-61.
Texto 3
O cristianismo também faz uma narrativa acerca do destino da raça A narrativa da história da salvação revela alguns dos desígnios de
humana por intermédio da metanarrativa cósmica da história da Deus tanto para os indivíduos humanos como a para o conjunto da
salvação. Começa com a criação dos seres humanos à imagem e humanidade. Espera-se que os cristãos estejam de acordo com estes
semelhança de Deus. A Encarnação, na qual o Filho de Deus se desígnios e ajam para promovê-los até onde as suas circunstâncias
torna completamente humano e salva a humanidade pecadora, é permitam. Estes desígnios podem estar assim entre aqueles que dão
um episódio fundamental. Culminará com a vinda prometida do sentido teleológico positivo e, dessa forma, contribuírem para dar
Reino de Deus. [A]s grandes linhas da história tornam claro o amor um sentido positivo completo à vida de um cristão. […]
de Deus pela humanidade e o cuidado providencial com que é PhiliP l. Quinn, «The Meaning of Life According to Christianity»,
expresso. […] in Klemke, E. D. (org.) The Meaning of Life. Nova Iorque:
Oxford University Press, 2000, 2.ª edição, pp. 59-61.
Atividades
3 Segundo Quinn, o que é necessário para que uma vida humana tenha sentido completo?
4 Segundo Quinn, por que razão a imortalidade é necessária para que a vida de um imitador de Cristo tenha sentido axiológico positivo?
Debate
«Se não formos imortais e nada do que fazemos é permanente, a vida não faz sentido.» Concorda? Porquê?
246 Unidade 10
Texto 4
Afirma-se por vezes que nada do que fazemos agora terá importância
daqui a um milhão de anos. Mas, se isso for verdade, então, pela mesma
ordem de ideias, nada do que acontecer daqui a um milhão de anos tem
importância agora. Em particular, não importa agora que daqui a um
milhão de anos nada do que fazemos agora tenha importância. Além disso,
mesmo que tivesse importância daqui a um milhão de anos o que agora
fazemos, como poderia isso impedir que os nossos interesses atuais fossem
absurdos? Se o facto de serem importantes agora não é suficiente para
o conseguir, como poderia fazer alguma diferença se fossem importantes
daqui a um milhão de anos?
A importância que terá daqui a um milhão de anos o que agora fazemos
só poderá fazer toda a diferença se o facto de ter importância daqui a um
milhão de anos depender de ter importância, sem mais qualificações.
Thomas nagel, «O Absurdo», in Viver para Quê? de MuRcho, Desidério (org.)
Lisboa: Dinalivro, 2009 [ed. original 1971], pp. 139-140.
Texto 5
Argumento 3
(1) As cadeias de justificação chegam, muitas vezes, ao fim no seio da
vida — por exemplo, não é preciso qualquer justificação
complementar para que seja razoável tomar uma aspirina contra a dor
de cabeça, visitar uma exposição de um pintor que admiramos ou
impedir uma criança de colocar a sua mão num fogão quente.
(2) Se as cadeias de justificação chegam, muitas vezes, ao fim no seio da
vida, então a vida não é uma sequência de finalidades em que cada
uma delas tem como propósito outro membro qualquer da sequência.
(3) Logo, a vida não é uma sequência de finalidades em que cada uma
delas tem como propósito outro membro qualquer da sequência.
248 Unidade 10
Caso 1
CARLOS — Uma vida mortal não se pode justificar a ela própria, é necessário que
exista qualquer coisa que a justifique a partir do exterior.
JOÃO — Por que razão dizes isso?
CARLOS — Bem, se reparares, nada se justifica a si próprio, todas as coisas precisam
de ser justificadas por algo exterior a si.
JOÃO — Desculpa, mas não concordo com o que acabaste de dizer. Se nada se
justifica a si próprio e todas as coisas precisam de ser justificadas por algo exterior
a si, então nunca poderemos dizer que algo (seja o que for) está justificado.
CARLOS — Como assim?
JOÃO — Repara, se justificarmos A com B, B com C e C com D e por aí em diante,
cairemos numa regressão até ao infinito, sem podermos considerar nunca que A está
justificado, pois essa justificação depende de B, C, D, etc., e estes, por sua vez, exigem
outras justificações. O processo estende-se até ao infinito sem que se encontre
alguma vez uma justificação ou finalidade última que dê sentido a toda a sequência.
CARLOS — Mas uma vida imortal não precisa de ser justificada a partir do exterior,
ela é, em si mesma, a sua própria finalidade.
JOÃO — Pois, aí é que está o problema. Se uma vida mortal não se pode justificar
a si mesma, não vejo por que razão uma vida imortal poderia fazê-lo. Apelar ao facto
de esta ser imortal é argumentar de forma circular, pois isso é justamente o que está
a ser disputado; por isso, não temos melhores razões para abrir uma exceção à regra
do «nada se justifica a si próprio» fora de uma vida mortal do que tínhamos no seu
interior. Parar em qualquer outro momento seria simplesmente arbitrário. Se vamos
escolher um sítio para parar, porque não fazê-lo dentro da própria vida?
Assim, uma vez que a vida pode ter sentido, apesar de ser mortal, podemos
concluir que a imortalidade não é uma condição necessária para o sentido
da existência. É isso que pretende mostrar o argumento que se segue:
Argumento 4
(1) Ou a vida é a sua própria finalidade ou há outra coisa que é
a finalidade da vida.
(2) Se a vida é a sua própria finalidade, tem sentido, apesar de ser mortal.
(3) Nenhuma outra coisa pode ser a finalidade da vida, sob pena
de regressão infinita ou de circularidade.
(4) Logo, a vida tem sentido, apesar de ser mortal.
(5) Se a vida tem sentido, apesar de ser mortal, então a imortalidade não
é uma condição necessária para o sentido da existência.
(6) Logo, a imortalidade não é uma condição necessária para o sentido
da existência.
250 Unidade 10
Texto 6
A mundividência cristã difere realmente da científica a este respeito, que a vida perca um propósito e, portanto, sentido estão a confundir
a um nível fundamental. A última despoja o homem de um propó- as duas aceções de «propósito» acima.
sito nesta [segunda] aceção. Vê o homem como um ser sem qual-
Pensam confusamente que se a mundividência científica for verda-
quer propósito que lhe tenha sido atribuído por seja quem for exceto
deira, então as suas vidas têm de ser fúteis porque essa mundividên-
ele mesmo. Despoja o homem de qualquer objetivo, propósito ou
cia implica que o homem não tem qualquer propósito que lhe tenha
destino que lhe tenha sido atribuído por qualquer força exterior.
sido dado a partir do exterior. Mas isto é uma confusão, pois, como
A mundividência cristã, por outro lado, encara o homem como uma
mostrei, a ausência de sentido só decorre da falta de propósito na
criatura, um artefacto divino, algo a meio caminho entre um robô
outra aceção, que a mundividência científica não implica de maneira
(manufaturado) e um animal (vivo), um homúnculo, ou talvez um
alguma. Estas pessoas concluem erradamente que não pode haver
Frankenstein, feito no laboratório divino, com um propósito, ou
qualquer propósito na vida porque não há propósito da vida; que os
tarefa, que lhe foi atribuído pelo seu Criador.
homens não podem adotar e alcançar por si propósitos porque o
Contudo, a falta de propósito, nesta [segunda] aceção, não impede homem, ao contrário de um robô ou de um cão de guarda, não é
de modo algum que a vida tenha sentido. Suspeito que muitas das uma criatura com um propósito.
pessoas que rejeitam a mundividência científica por esta implicar KuRT BaieR, «O Sentido da Vida», in Viver para Quê? de MuRcho, Desidério (org.)
Lisboa: Dinalivro, 2009 [ed. original 1957], pp. 82-83.
Atividades
1 «Para Nagel, a imortalidade é uma condição necessária e suficiente para o sentido da vida.» Concorda? Porquê?
Debate
«Ter um propósito atribuído a partir do exterior é um obstáculo para uma vida com sentido.» Concorda? Porquê?
Leituras:
Murcho, Desidério (org.) — Viver para Quê? Lisboa: Dinalivro, 2007 [ed. original 2006].
Murcho, Desidério — «Sentido», in Filosofia em Directo. Lisboa: FFMS, 2011.
Nagel, Thomas — «Morte» e «O Sentido da Vida», in Que Quer Dizer Tudo Isto? Lisboa: Gradiva, 1995 [ed. original 1987].
rachels, James — «O Sentido da Vida», in Problemas da Filosofia. Lisboa: Gradiva, 2009 [ed. original 2005].
252 Unidade 10
Objeção ao requisito
Sentido axiológico Sentido teleológico da imortalidade
Filmes:
Uma Casa, Uma Vida (2001), realizado por Irwin Winkler e Mark Andrus.
O Pequeno Buda (1993), realizado por Bernardo Bertolucci.
Página da Internet:
http://criticanarede.com/met_sentidodavida.html (artigo «O Sentido da Vida», de Susan Wolf )
1. O problema do sentido da vida surge do confronto entre dois pontos de vista: o ponto
de vista subjetivo e o ponto de vista objetivo.
2. Para que a nossa vida tenha sentido, basta que tenhamos uma ou mais finalidades.
3. O mito de Sísifo é uma metáfora sombria da existência humana, porque Sísifo não tinha
qualquer finalidade.
4. Uma finalidade última é algo que queremos fazer por si mesmo, sem qualquer outro fim em vista.
5. Trabalhar para ganhar dinheiro é um bom exemplo de uma finalidade última.
9. Ter, pelo menos, uma finalidade última é uma condição suficiente para a nossa vida fazer
sentido.
10. Se nos dedicarmos a uma finalidade última com valor, a nossa vida tem, necessariamente,
sentido.
11. Trabalhar na procura de uma cura para o cancro é, à partida, uma finalidade alcançável.
12. Alguém que procura ativamente curar o cancro colecionando selos tem uma vida com
sentido.
13. Algo tem valor objetivo se tem valor de um ponto de vista impessoal, ou sub specie aeternitatis.
14. Segundo uma perspetiva objetivista, a vida de um ditador megalómano como Hitler pode ser
uma vida com sentido, desde que tenha sentido para o próprio.
15. A ideia de que para que a vida tenha sentido é necessário que tenha uma finalidade última
alcançável e com valor objetivo, ou sub specie aeternitatis, é consensual.
16. A resposta religiosa diz-nos que, se Deus não existe, nenhuma finalidade com valor sub specie
aeternitatis pode ser alcançada.
17. P
hilip L. Quinn considera que, embora as vidas humanas não sejam como um texto ou uma
frase, os eventos que as compõem podem ser narrados, e as narrativas de vidas humanas são
entidades linguísticas suscetíveis de fazer sentido.
18. A
importância das narrativas sobre a vida de Cristo reside no facto de esta ser uma vida
especialmente significativa que todos deveriam seguir e imitar.
19. P
ara Quinn, a diferença entre um simples admirador e um imitador de Cristo é que o imitador
reconhece que aquilo que é admirado lhe impõe o requisito de ser, ou pelo menos tentar ser,
aquilo que se admira, ao passo que o admirador mantém um certo distanciamento pessoal.
20. Segundo Quinn, uma vida humana possui sentido teleológico se, e só, se tem valor intrínseco
positivo e (no seu todo) é boa para a pessoa que a vive.
21. Segundo Quinn, uma vida humana possui sentido completo se, e só, se, possui
cumulativamente sentido teleológico e axiológico.
22. Para Quinn, a vida de um imitador de Cristo tem sentido completo, mesmo que acabe com a morte.
23. Para Quinn, apenas uma vida imortal pode conter as recompensas adequadas, a nível
pessoal, para que se possa considerar que uma existência de autossacrifício e dedicação
aos outros tenha sentido axiológico.
254 Unidade 10
25. Segundo a perspetiva religiosa de Quinn, a existência de Deus confere sentido completo
às nossas vidas.
26. A resposta teísta aceita a ideia de que «se não formos imortais e nada do que fizermos for
permanente, a vida não faz sentido».
27. Segundo Nagel, a importância daquilo que fazemos agora depende essencialmente
da importância que terá daqui um milhão de anos.
28. Nagel sustenta que, embora a imortalidade seja uma condição suficiente para o sentido
da existência, não é uma condição necessária.
29. P
ara Nagel, mesmo uma vida de autossacrifício dedicada a ajudar os outros pode conter em
si mesma a sua própria recompensa, desde que a pessoa que vive esse tipo de vida seja imortal.
30. Para Nagel, se uma vida mortal não tem sentido, não passará a tê-lo só porque se prolonga
indefinidamente; e se uma vida mortal tem sentido, não o perde só porque acabará por
terminar.
31. Segundo Nagel, a nossa vida é uma sequência encadeada de finalidades que se justificam
sucessivamente umas às outras, daí que a morte seja um obstáculo para o sentido da existência.
32. Considerando que a vida pode ter sentido, apesar de ser mortal, podemos concluir
validamente que a imortalidade não é uma condição suficiente para o sentido da existência.
34. Uma das objeções à ideia de que a imortalidade é uma condição necessária para o sentido
da vida baseia-se na ideia de que nenhuma outra coisa pode ser a finalidade da vida, sob
pena de regressão infinita ou de circularidade.
35. O dilema do propósito divino consiste no seguinte: ou o propósito que Deus nos atribui tem
valor pelo simples facto de ter sido atribuído por Deus (o que seria arbitrário) ou existem boas
razões para que se adote esse propósito, independentemente das recomendações divinas.
36. Baier defende que uma vida humana só pode ter sentido se Deus não existir.
37. Baier sustenta que existem pelo menos duas aceções da palavra «propósito».
38. S
egundo Baier, a perspetiva religiosa reduz o ser humano ao estatuto de coisa ou artefacto
divino.
39. B
aier considera que, seja qual for a aceção da palavra, atribuir um propósito a uma vida
humana é sempre neutro.
40. B
aier acredita que, numa dada aceção da palavra, atribuir um propósito a uma vida humana
é ofensivo.
41. S
egundo Baier, a vida humana não pode ter qualquer propósito, em nenhuma aceção
da palavra.
42. P
ara Baier, dizer que Deus nos criou com um propósito é como dizer que um sapateiro criou
um par de sapatos com um propósito.
43. B
aier sustenta que o problema do sentido da existência resulta de uma confusão entre dois
sentidos da palavra «propósito».
33. F; 34. V; 35. V; 36. V; 37. V; 38. V; 39. F; 40. V; 41. F; 42. V; 43. V.
1. V; 2. V; 3. F; 4. V; 5. F; 6. F; 7. V; 8. F; 9. F; 10. F; 11. V; 12. F; 13. V; 14. F; 15. F; 16. V; 17. V; 18. V; 19. V; 20. F; 21. V; 22. F; 23. V; 24. F; 25. V; 26. V; 27. F; 28. F; 29. F; 30. V; 31. F; 32. F;
SOLUÇÕES:
11 Religião, razão e fé
No fim desta unidade, deverá ser capaz de responder Os conceitos seguintes, que são centrais nesta unidade,
às seguintes questões: são definidos no fim do livro:
Em que consiste o problema da existência de Deus? agnosticismo fideísmo
Quais são os principais atributos do Deus teísta? argumento cosmológico filosofia da religião
Em que consiste o fideísmo? argumento do desígnio milagre
Em que consiste a teologia natural? argumento ontológico teísmo
Qual é o alcance e quais são os limites dos principais ateísmo teologia natural
argumentos apresentados a favor e contra a existência Deus
de Deus?
Introdução
Na unidade anterior, vimos que, para alguns autores, a existência de Deus oferecia uma resposta para um problema pessoal da maior
importância: o problema do sentido da existência. Independentemente de concordarmos ou não com essa perspetiva, um outro pro-
blema subsiste: será que temos boas razões para acreditar que Deus existe? Este problema revela-se crucial, porque a crença na existência
de Deus tem um impacto muito significativo na forma como encaramos as nossas vidas e como lidamos uns com os outros.
As religiões oferecem uma explicação do mundo e de tudo o que nele acontece, incluindo o papel que cada um de nós desempenha no
desenrolar dos acontecimentos. Além disso, é frequente vermos, associado a uma religião, um código moral, que nos permite distinguir
o certo do errado, através de um conjunto de instruções sobre como nos devemos comportar e como devemos encarar os outros. Por
fim, quase todas as religiões têm ainda em comum a esperança da vida eterna e uma recompensa em troca da nossa observância das
instruções divinas. Um dos desafios que se colocam às sociedades contemporâneas é o de saber como lidar com a diversidade religiosa.
Algumas religiões convivem pacificamente com outros credos, mas nem todas partilham esta característica — a ideia de que os infiéis
devem ser convertidos ou perseguidos legitimou muitas atrocidades ao longo dos séculos e seguramente continua a fazê-lo no presente.
Compete aos filósofos da religião avaliar criticamente as pretensões religiosas, começando desde logo pela pretensão de que Deus existe.
Que razões temos a favor desta ideia? E contra ela? Nesta unidade, iremos discutir e analisar alguns argumentos tradicionalmente apre-
sentados a favor e contra a existência de Deus, procurando contribuir para uma tomada de posição informada e crítica sobre o assunto.
256 Unidade 11
Deus e o filósofo
Numa manhã cinzenta de inverno, as nuvens abriram- — Bem — respondeu o Senhor —, é bom porque foi
-se e um feixe de luz desceu sobre a terra, iluminando ordenado por mim.
um filósofo que deambulava à beira-mar. Uma voz
— Resposta errada, Vossa grandiosidade. Se algo é
potente ecoou nos céus e Deus disse ao filósofo:
bom apenas porque Vós dizeis que é, isso significa que
— Eu sou o Senhor teu Deus e ordeno-te que sacrifi- Vós poderíeis ter desejado que a tortura de crianças
ques o teu único filho. inocentes fosse boa. Mas isso é um absurdo, não é?
— Um momento, Vossa grandiosidade. Há aqui — Evidentemente! — replicou o Senhor. — Estava
alguma coisa que não me soa nada bem. Os Vossos apenas a testar-te. Diz lá outra vez qual era a outra
mandamentos ordenam muito claramente: «Não hipótese?
matarás!»
— Vós ordenais o que é bom, porque é bom. Mas isso
— Eu sou Deus, sou eu que faço as regras e também mostra que o bem não depende de todo da Vossa
posso desfazê-las. vontade. Portanto, não precisamos de estudar Deus
para estudar a natureza do bem.
— E como é que eu sei que vós sois realmente Deus?
— insistiu o filósofo. — Tanto quanto sei, podeis
muito bem ser um demónio a tentar enganar-me.
— Tens de ter fé! — replicou o Senhor.
— Fé ou insanidade? Se calhar a minha mente está a
pregar-me uma partida. Ou talvez estejais a testar-me
de uma forma astuta, para ver se eu tenho tão pouca
fibra moral, que basta uma voz profunda vinda das
nuvens para eu cometer infanticídio.
— Valha-me Eu! — exclamou o Senhor. — Estás, por
acaso, a sugerir que é razoável um mero mortal como
tu recusar-se a fazer aquilo que eu, o Senhor teu Deus,
ordena?
— Parece que sim — disse o filósofo. — E até agora
não me haveis dado nenhuma razão para mudar de
opinião.
— Mas eu sou o Senhor teu Deus, sou a fonte de tudo
o que é bom. Como pode a tua filosofia moral
ignorar-me?
— Bem, para responder a essa questão, tenho de fazer
primeiro algumas perguntas. Vós sois a fonte de tudo Fig. 1 — Joana d’Arc (1865), de John Everett Millais.
o que é bom e, por isso, tudo o que vós ordenais é Joana d’Arc afirmava ouvir vozes divinas, mas acabou por ser
bom. Mas há uma coisa que não consigo compreen- queimada viva, acusada de bruxaria. Em 1920, foi canonizada
pelo papa Bento XV. Hoje em dia, vários especialistas de saúde
der. O que vós ordenais é bom porque foi ordenado mental não hesitariam em diagnosticá-la como doente mental.
por vós ou é porque é bom que vós o ordenais?
Guião de leitura
Fazer filosofia
258 Unidade 11
Aqueles que acreditam que um tal ser existe designam-se por «teístas» (do
grego «theos» — Deus); aqueles que acreditam que um tal ser não existe
designam-se por «ateus» (do grego «a» — prefixo de negação + «theos»);
há ainda quem tenha decidido suspender a crença em relação à existência
de Deus, subscrevendo uma posição que ficou, por esse motivo, conhecida
por «agnosticismo» (do grego «a» + «gnose» — conhecimento).
Estas são as posições que temos ao nosso dispor, relativamente ao problema
da existência de Deus:
Que argumentos podem ser apresentados a favor e contra cada uma destas
posições? Será que temos boas razões para acreditar na existência de Deus?
É deste problema que nos iremos ocupar em seguida.
Atividades
2 Relativamente ao problema da existência de Deus, qual é a posição dos teístas, dos ateus e dos agnósticos?
Objeção 1
Embora Nicolau de Cusa tenha de facto mostrado que existem vários para-
doxos matemáticos envolvendo o infinito, isso não é suficiente para
demonstrar que nenhum tipo de entendimento, ainda que rudimentar, do
infinito é possível. Afinal de contas, não obstante este tipo de paradoxos, é
possível ter a noção de um conjunto infinito, como o conjunto de todos os
números inteiros maiores do que um. Trata-se apenas de estipular um cri-
tério e prolongar uma série indefinidamente. Pela mesma ordem de ideias,
é possível ter um entendimento, ainda que limitado, de Deus.
Objeção 2
Ter dificuldades em conceber uma coisa não implica que não possamos mos-
trar que ela existe. Podemos ter dificuldades em conceber o que seria ganhar
um prémio de 100 milhões de euros no Euromilhões, mas isso não significa Avaliação crítica
que não temos ao nosso dispor formas de mostrar que esse prémio existe.
Assinale agora a sua avaliação ponderada
da perspetiva de Nicolau de Cusa.
Objeção 3
A — Convincente.
Se a nossa razão é tão limitada que não é capaz de conceber o infinito (Deus), B — Atraente mas não convincente.
então, quando afirmamos que acreditamos na existência de Deus, não sabe-
mos do que estamos a falar, o que se torna difícil de conciliar com uma carac- C — Duvidosa.
terização tão pormenorizada de alguns dos atributos de Deus: único, pessoal, D — Implausível.
omnipotente, omnisciente, sumamente bom e criador de tudo o que existe.
Atividades
2 Qual é o propósito de Nicolau de Cusa ao recorrer a paradoxos matemáticos que envolvem o infinito?
Debate
Será que os paradoxos matemáticos de Nicolau de Cusa provam que a matemática não é uma ciência exata?
Texto 1
Objeção 1
Se a fé é suficiente para justificar as verdades religiosas, então cada religião
está justificada a postular a existência das suas divindades. No entanto, a
existência de certas divindades é incompatível com a existência de outras,
pelo que a fé conduz a inconsistências. Além disso, se algumas religiões
convivem pacificamente com outros credos, nem todas partilham esta
característica. A ideia de que os infiéis devem ser convertidos ou persegui-
dos legitimou muitas atrocidades ao longo dos séculos e seguramente con-
tinuará a fazê-lo no futuro. Se a fé não possibilitar qualquer discussão ou
diálogo racional, não teremos forma de garantir que esse tipo de atrocidades
deixe de existir.
Objeção 2
A ideia de que é mais importante acreditar em Deus do que saber que
Deus existe não colhe uma aceitação pacífica. Afinal de contas, se imaginar-
mos um indivíduo que acredita em Deus sem ter razões para isso e outro
que, além de acreditar em Deus, tem boas razões para o fazer, percebemos
que a única diferença entre eles é que um deles, além de ter tudo o que
outro tem — a crença na existência de Deus —, tem ainda um conjunto de
razões a favor dessa ideia. Torna-se, por isso, difícil perceber por que
motivo se considera que este se encontra numa situação de desvantagem.
262 Unidade 11
Texto 2
Um armador estava prestes a enviar para o mar o seu navio com de modo algum ajudá-lo, porque não tinha o direito a acreditar com
emigrantes. Ele sabia que o navio era velho e que não tinha uma boa base nas provas que tinha à sua disposição. Não adquiriu honesta-
construção; que já tinha visto muitos mares e climas, e que precisava mente a sua crença por meio da investigação paciente, mas por
de reparações constantes. Foi-lhe sugerido que o navio não tinha meio do silenciamento das suas dúvidas. E, apesar de ter talvez aca-
condições de navegabilidade. Estas dúvidas assombravam-lhe o bado por se sentir tão seguro que era incapaz de pensar de outro
espírito e faziam-no infeliz; pensava que talvez devesse inspecionar modo, na medida em que se colocou a si mesmo nesse estado de
e reparar o navio, apesar de isto lhe sair muito caro. Antes de o navio espírito deliberada e voluntariamente tem de ser responsabilizado
zarpar, todavia, conseguiu ultrapassar estas reflexões melancólicas. pela sua crença. Alteremos o caso ligeiramente e suponhamos que o
Disse de si para si que o navio tinha feito já tantas viagens em segu- navio não tinha afinal problemas; que fez a viagem em segurança, e
rança e tinha aguentado tantas tempestades que era uma perda de muitas outras depois dessa. Diminui isso a culpa do seu dono? Nem
tempo supor que não regressaria em segurança de mais esta via- um pouco. Depois de realizada, uma ação é correta ou incorreta para
gem. Confiaria na Providência, que dificilmente deixaria de proteger sempre; nenhuma falha acidental dos seus frutos, bons ou maus,
todas aquelas infelizes famílias que abandonavam a sua terra natal pode alterar isso. A questão do correto e do incorreto tem que ver
para procurar um melhor futuro noutro lado. […] [D]este modo, com a origem da sua crença, e não com a sua matéria; não tem que
adquiriu uma convicção sincera e confortável de que o seu navio era ver com o que ela era, mas com o modo como ele a adquiriu; não
inteiramente seguro e tinha condições de navegabilidade; assistiu à tem que ver com a questão de saber se a crença se revelou verda-
sua partida de coração ligeiro e com votos benevolentes pelo deira ou falsa, mas com a questão de saber se ele tinha o direito de
sucesso dos exilados no que seria o seu novo lar; e recebeu o acreditar com base nas provas que tinha à sua disposição. […]
dinheiro do seguro quando o navio se afundou no meio do oceano
Em suma: é sempre incorreto, em qualquer parte e para qualquer
sem deixar sobreviventes.
pessoa, acreditar seja no que for sem provas suficientes.
Que dizer dele? Isto, sem dúvida: que era muitíssimo culpado da W. K. Clifford, «The Ethics of Belief», in Madigan, T. J. (org),
morte daqueles homens. Aceita-se que acreditava sinceramente na The Ethics of Belief and Other Essays. Amherst, MA: Prometheus,
solidez do seu navio; mas a sinceridade da sua convicção não pode 1999 [ed. original 1877], pp. 70-96.
Atividades
1 Por que razão Kierkegaard acreditava que justificar racionalmente a crença na existência de Deus era uma má opção?
3 Por que motivo se diz que a posição de Kierkegaard entra em choque com o próprio fideísmo?
Debate
«Mais vale acreditar que Deus existe sem ter boas razões para isso do que acreditar que Deus existe porque existem boas razões para o fazer.»
Concorda? Porquê?
Juízo intuitivo
264 Unidade 11
Objeção 2
Não podemos simplesmente decidir acreditar em algo. As nossas crenças estão
causalmente relacionadas umas com as outras e com a nossa experiência do
mundo, não se pode simplesmente decidir passar a acreditar em algo ou dei-
xar de acreditar em algo, sem termos motivos para isso, por muito conve-
niente que fosse. Não passo a acreditar que sou o músico mais talentoso do
mundo só porque decidi fazê-lo, quando todas as evidências de que disponho
apontam no sentido contrário. Do mesmo modo, não passo a acreditar que
Deus existe só porque concluí que poderia ser mais conveniente fazê-lo.
Objeção 3
Por fim, resta acrescentar que a aposta de Pascal, por tentadora que possa
parecer, não deixa de soar a uma decisão interesseira. No entanto, é mais
razoável supor que Deus prefere as pessoas que têm uma vida digna,
mesmo que não acreditem na Sua existência, às pessoas que só têm uma
vida digna por medo do Inferno.
Avaliação crítica
Atividades
1 Por que razão se diz que Pascal defende uma versão mais moderada de fideísmo do que Kierkegaard?
2 Por que razão Pascal considera que é mais razoável apostar que Deus existe do que apostar que Deus não existe?
Debate
«Posso decidir acreditar em algo, mesmo que não tenha boas razões para o fazer, simplesmente por considerar que essa crença é útil. Por
exemplo, numa partida desportiva, posso ter boas razões para acreditar que a equipa adversária vai vencer, porque é mais forte e, ainda assim,
decidir acreditar que isso não vai acontecer, pois isso ajuda-me a ter a motivação necessária para dar o meu máximo na partida.» Concorda? Porquê?
Argumento cosmológico
A primeira versão do argumento cosmológico (ou argumento da causa pri-
meira) foi apresentada por São Tomás de Aquino (1225-1274), na sua obra
Suma Teológica, e baseia-se num argumento semelhante, anteriormente utilizado
por Aristóteles. Na sua obra Diálogos sobre a Religião Natural, David Hume
apresenta uma versão mais simples e bastante fácil de entender deste argumento:
Texto 3
O que existir tem de ter uma causa ou razão da sua existência, uma quanto qualquer objeto particular que comece a existir no tempo.
vez que é absolutamente impossível para qualquer coisa produzir-se É ainda razoável perguntar por que razão esta sucessão particular
a si própria, ou ser a causa da sua própria existência. Remontando, de causas existiu desde sempre, e não qualquer outra sucessão,
portanto, dos efeitos às causas, temos de continuar a percorrer uma ou nenhuma. […] O que foi, então, que determinou que algo existisse,
sucessão infinita, sem qualquer causa final, ou temos finalmente de e não o nada, concedendo ser a uma possibilidade particular, em detri-
recorrer a uma causa última qualquer, que exista necessariamente. mento das outras? Causas externas, estamos a supor que não as há.
Ora, que a primeira suposição é absurda pode demonstrar-se assim: «Acaso» é uma palavra sem significado. Terá sido nada? Mas isso nunca
na cadeia ou sucessão infinita de causas e efeitos, a existência de poderá produzir coisa alguma. Temos, portanto, de recorrer a um
cada efeito é determinada pelo poder e eficácia da causa imediata- Ser necessariamente existente, que tem em si mesmo a razão da sua
mente precedente; mas a totalidade da cadeia ou sucessão eterna, existência; e que não podemos supor não existir sem exprimirmos uma
tomada no seu todo, não é determinada ou causada por coisa contradição. Consequentemente, há um tal Ser — isto é, uma Divindade.
alguma. Todavia, é evidente que exige uma causa ou razão, tanto david Hume, Diálogos sobre a Religião Natural, 1779.
Argumento 1
(1) Tudo o que existe tem uma causa ou razão de ser exterior a si.
(2) Se tudo o que existe tem uma causa ou razão de ser exterior a si,
então ou há uma regressão infinita de causas e efeitos, ou há uma
causa primeira, que existe necessariamente.
(3) Se há uma regressão infinita de causas e efeitos, então não existe algo
de exterior à sucessão infinita das causas e efeitos como um todo que
lhe dê origem.
(4) Logo, há uma causa primeira, que existe necessariamente.
(5) O único ser necessariamente existente que tem em si mesmo a razão
da sua existência é Deus.
Juízo intuitivo (6) Logo, Deus existe.
Avalie o argumento cosmológico de Este argumento parte daquilo que vemos no mundo à nossa volta e constata que
acordo com a sua primeira reação. tudo o que existe é um efeito de uma causa que o antecede. De seguida afirma
A — Convincente. que se quisermos percorrer a totalidade da cadeia causal que compõe o universo,
B — Atraente mas não convincente.
ou regredimos infinitamente, ou teremos forçosamente de parar em algum
ponto. Não podemos regredir infinitamente, porque tem de haver algo que cause
C — Duvidoso. a própria sucessão das causas e dos efeitos. Se não houver uma causa primeira,
D — Implausível. não é possível existir seja o que for, pois sem a causa não há o efeito; logo, há uma
causa primeira que dá origem à totalidade da sucessão de causas e efeitos.
266 Unidade 11
Objeção 2
Que razões temos para aceitar a premissa cinco: «O único ser necessaria- Fig. 5 — A Criação do Mundo (1504),
mente existente que tem em si mesmo a razão da sua existência é Deus.»? de Hieronymus Bosch.
A personagem Démea, do diálogo de Hume, limita-se a considerar que o Será que o mundo tem forçosamente de ter
nada não pode dar origem a coisa alguma e que o acaso é uma palavra sem sido criado? Não poderá existir desde
sempre?
significado, mas isto não é suficientemente exaustivo e certamente não é
esclarecedor. Pode não haver um único ser necessário, mas sim vários seres
necessários. Além disso, esse(s) ser(es) pode(m) não ter os atributos da
omnipotência, omnisciência e da suma bondade, isto é, pode(m) não ser
Deus.
Objeção 3
Avaliação crítica
Que razões temos para acreditar que o universo foi criado e que começou
a existir num determinado momento do passado? Tanto quanto sabemos, Assinale agora a sua avaliação ponderada
o universo pode existir desde sempre. A ideia de um ser necessário que do argumento cosmológico.
justifique a sucessão das causas e dos efeitos a partir do exterior é um pos- A — Convincente.
tulado arbitrário. Por que razão paramos em Deus a nossa busca de justifi- B — Atraente mas não convincente.
cação? Afinal de contas, poderíamos continuar a procurar determinar o que
causou Deus, ou ter parado em qualquer outro momento, dentro do pró- C — Duvidoso.
prio universo físico, por exemplo, e não numa divindade imaterial que está D — Implausível.
para além dele.
Atividades
4 O argumento cosmológico é suficiente para mostrar que a causa primeira é Deus? Porquê?
Debate
1 «Se não houver uma causa primeira, não é possível existir seja o que for.» Concorda? Porquê?
2 «Se tudo o que existe tem uma causa ou razão de ser exterior a si, então Deus não pode ser a sua própria causa, nem conter em si mesmo
a razão da sua existência.» Concorda? Porquê?
Texto 4
Ao atravessar um campo, suponhamos que tropeço numa pedra e Ao observar este mecanismo […], pensamos que a inferência é
me perguntam como foi ela ali parar. Poderia talvez responder que, inevitável: o relógio teve de ter um criador; teve de existir, num ou
tanto quanto me é dado saber, a pedra sempre esteve naquele local. noutro momento, e num ou noutro lugar, um ou mais artífices
Não seria muito fácil, talvez, mostrar o absurdo desta resposta. Mas que o construíram com o propósito que vemos que lhe é apro-
suponha-se que eu tinha encontrado um relógio no chão e que me priado; […]
instavam a responder à questão de saber como apareceu o relógio
Todos os indícios de invenção, toda a manifestação de desígnio, que
naquele lugar. Neste caso, dificilmente consideraria a hipótese de dar
existiam no relógio existem nas obras da natureza — com a dife-
a resposta anterior — que, tanto quanto me era dado a saber, o reló-
rença de, no caso da natureza, serem mais e maiores, num grau que
gio sempre ali estivera. No entanto, porque não pode esta resposta
ultrapassa todo o cálculo. Quero eu dizer que o engenho da natu-
ser apropriada ao relógio, tal como o é no caso da pedra? […] Por
reza ultrapassa o engenho da arte em complexidade, subtileza e
esta e só esta razão: quando inspecionamos o relógio, vemos que as
estranheza do mecanismo; e ultrapassa-o ainda mais, se isso é possí-
suas diversas partes estão organizadas e associadas com um propó-
vel, em termos de número e diversidade; contudo, em muitíssimos
sito (o que não poderia acontecer no caso da pedra); por exemplo,
casos, não é menos evidentemente mecânico, menos engenhoso,
vemos que as suas diversas partes estão configuradas e ajustadas de
menos apropriado ao seu fim ou apropriado à sua tarefa do que as
modo a produzir movimento e que esse movimento está de tal
mais perfeitas produções do engenho humano.
forma regulado que assinala as horas do dia; e vemos que se as suas
diversas partes estivessem configuradas de forma diferente, tivessem William Paley, «Teologia Natural», in Textos e Problemas de
outro tamanho ou estivessem colocadas de forma diferente ou Filosofia, de Almeida, Aires e Murcho, Desidério (org.)
Lisboa: Plátano Editora, 2006 [ed. original 1809].
segundo outra ordem qualquer, então a máquina não originaria
qualquer movimento […]
Para ser eficaz, um argumento por analogia tem de se basear num número
significativo de semelhanças relevantes entre as duas realidades que se
estão a comparar e não podem existir diferenças relevantes entre elas.
A título ilustrativo, considerem-se os seguintes exemplos:
Argumento 2
(1) A Beatriz gosta de debates, de lógica, de pensar sobre questões éticas
e metafísicas e, além disso, gosta de filosofia.
(2) Tal como a Beatriz, a Helena gosta de debates, de lógica e de pensar
sobre questões éticas e metafísicas.
(3) Logo, tal como a Beatriz, a Helena gosta de filosofia.
268 Unidade 11
Argumento 4 (parte 2)
(1) A complexidade e o perfeito ajuste das suas partes é infinitamente
superior na natureza e nos seres vivos do que num relógio.
(2) Se a complexidade e o perfeito ajuste das suas partes é infinitamente
superior na natureza e nos seres vivos do que num relógio, então o
seu criador é um supremo artífice, infinitamente superior a qualquer Juízo intuitivo
artífice humano.
Avalie o argumento do desígnio
(3) Se o criador da natureza é um supremo artífice, infinitamente de acordo com a sua primeira reação.
superior a qualquer artífice humano, então é Deus. A — Convincente.
(4) Logo, Deus existe e é o supremo criador de toda a natureza. B — Atraente mas não convincente.
Será que se trata de uma boa analogia? Será que as premissas tornam a C — Duvidoso.
conclusão provavelmente verdadeira? Vejamos, em seguida, as objeções D — Implausível.
que o argumento enfrenta.
Objeção 1
A analogia na qual se baseia o argumento é muito fraca. As semelhanças
entre os artefactos e a natureza não são suficientemente relevantes para
que a analogia possa ser eficaz.
Temos conhecimento do tipo de coisas que geralmente dá origem a artefac-
tos como os relógios; por isso, se virmos um artefacto semelhante a um
relógio, é de supor que tenha tido uma causa idêntica. Mas não temos
experiência alguma do tipo de coisas que geralmente causa universos físi-
cos completos; por isso, neste caso, não estamos habilitados a fazer o
mesmo tipo de inferência.
Objeção 3
Por fim, a teoria evolucionista proposta por Charles Darwin (1809-1882)
oferece uma explicação alternativa para o aparente desígnio da natureza,
pelo menos tão aceitável quanto a existência de um artífice supremo.
Segundo esta teoria, existem diferenças, ou variações, aleatórias entre os
membros de uma espécie. Algumas dessas diferenças interagem com o
meio envolvente de modo a aumentar ou diminuir as hipóteses de sobrevi-
vência (e, consequentemente, de reprodução) dos seus portadores. As
Fig. 7 — A Venerable Orang-outang, características que favorecem a adaptação são hereditariamente transmiti-
caricatura de Charles Darwin com corpo das à geração seguinte, e assim sucessivamente. Este processo dá origem à
de macaco, publicada na revista satírica
The Hornet.
atual variedade e complexidade de organismos vivos, bem como ao ajuste
perfeito das suas partes para as funções que desempenham. Imaginemos
Caricaturas como esta resultam
frequentemente de uma distorção um nervo ligeiramente sensível à luz que oferece uma pequena vantagem
das perspetivas de Darwin. adaptativa a um determinado organismo. Se repetirmos o processo por
milhares de gerações, poderemos vir a obter um nervo ótico; e assim suces-
sivamente, até acabarmos por ter um olho inteiramente funcional. Nas
palavras de Darwin:
Assinale agora a sua avaliação ponderada Nos corpos vivos, a variação irá causar as ligeiras alterações, a geração multiplicá-las-á
do argumento do desígnio. quase infinitamente, e a seleção natural escolherá cada melhoria com uma perícia infalí-
vel. Deixemos este processo decorrer ao longo de milhões e milhões de anos, e durante
A — Convincente. cada ano em milhões de indivíduos de muitos tipos. Não poderemos acreditar então que
B — Atraente mas não convincente. um instrumento ótico vivo se pode formar assim […] do mesmo modo que as obras do
Criador […]?
C — Duvidoso.
CHarleS darWin, «A Origem das Espécies», in RaCHelS, James, Problemas da Filosofia.
D — Implausível. Lisboa: Gradiva, 2009 [ed. original 1859], p. 43 (adaptado).
Atividades
Debate
«A teoria evolucionista limita-se a adiar o problema levantado pelo desígnio da natureza, não chega a resolvê-lo.» Concorda? Porquê?
270 Unidade 11
Argumento 5
(1) Ou Deus existe apenas no pensamento ou, além de existir no
pensamento, existe na realidade.
(2) Deus existe apenas no pensamento.
(3) Se Deus existe apenas no pensamento, então podemos conceber um
ser maior do que Deus que, além de existir no pensamento, também
existe na realidade.
(4) Podemos conceber um ser maior do que Deus que, além de existir no
pensamento, também existe na realidade.
(5) Mas Deus é, por definição, o ser maior do que o qual nada pode ser Juízo intuitivo
pensado; portanto, não podemos conceber um ser maior do que Ele.
Avalie o argumento ontológico de acordo
(6) É falso que Deus existe apenas no pensamento. com a sua primeira reação.
(7) Logo, além de existir no pensamento, Deus existe na realidade. A — Convincente.
B — Atraente mas não convincente.
O argumento ontológico foi considerado por muitos uma proeza lógica e
C — Duvidoso.
uma prova sedutora da existência de Deus. Contudo, a sua aceitação está
longe de ser pacífica, tendo vários filósofos se dedicado a explorar as suas D — Implausível.
insuficiências. De seguida iremos analisar algumas delas.
Objeção 1
A primeira premissa não contempla a possibilidade de Deus não existir no
entendimento. A posição fideísta sustenta precisamente que não podemos
ter um entendimento da infinitude de Deus, fazendo Dele apenas uma
representação obscura e difusa. Se Deus não existe sequer no pensamento,
parece que todo o argumento cai por terra.
Objeção 2
O argumento trata a existência como um predicado real, que, tal como
todos outros, pode ser usado para definir um conceito, mas não podemos
tratar a existência desse modo. Podemos definir um conceito dizendo que
os elementos a que se aplica têm um determinado conjunto de
características, mas não faz sentido dizer que a existência está entre elas.
Em última análise, podemos acabar por concluir que não existe nada que
tenha as características requeridas, pelo que o conceito não se aplica a coisa
alguma — é o que acontece com os conceitos de «fada» e «Pai Natal», por
exemplo. A definição estabelece as condições de aplicação do conceito, mas
a existência, ou inexistência, depende do facto de essas condições serem,
ou não, satisfeitas, por algo ou alguém.
É óbvio que ninguém nos vai telefonar a dizer que preenche todas as con-
dições menos a última, mas também é óbvio que qualquer pessoa que
respondesse ao segundo anúncio poderia também ter respondido ao pri-
meiro. Ninguém nos iria telefonar a dizer que é alegre, vegetariano, fã de
futebol, toca banjo e não fuma, mas não existe. O facto de acrescentar «e
que exista» à nossa descrição não altera em nada as hipóteses de alguém
responder ao nosso anúncio. Acrescentar esta última condição foi um des-
perdício de dinheiro.
Com efeito, se reconstruirmos o argumento ontológico para mostrar que
o(a) companheiro(a) ideal — o(a) companheiro(a) melhor do que o(a) qual
nada pode ser pensado — existe, obtemos o seguinte argumento:
Argumento 6
(1) Ou o(a) companheiro(a) perfeito(a) existe apenas no pensamento, ou,
além de existir no pensamento, existe na realidade.
(2) O(A) companheiro(a) perfeito(a) existe apenas no pensamento.
(3) Se existe apenas no pensamento, então podemos conceber um
companheiro(a) mais perfeito(a), que, além de existir no pensamento,
também existe na realidade.
(4) Podemos conceber um companheiro(a) mais perfeito(a), que, além de
existir no pensamento, também existe na realidade.
(5) Mas o(a) companheiro(a) perfeito(a) é, por definição, o(a)
companheiro(a) perfeito(a) melhor que o(a) qual nada pode ser pen-
sado, portanto, não podemos conceber um(a) companheiro(a) melhor
do que o(a) companheiro(a) perfeito(a).
(6) É falso que o(a) companheiro(a) perfeito(a) existe apenas no pensa-
mento.
(7) Logo, além de existir no pensamento, o(a) companheiro(a) perfeito(a)
existe na realidade.
272 Unidade 11
Objeção 3
Outra forma de encarar os problemas do argumento ontológico é conside-
rar que este se baseia numa comparação ilegítima entre pensamento e rea-
Fig. 8 — Ceci n’est pas une pomme (1964),
lidade. Pense numa maçã com 5 quilos e compare-a com uma maçã real de René Magritte.
com meio quilo. Qual delas é mais pesada? Bem, por um lado, diríamos
Também esta obra irónica de Magritte joga
que a maçã imaginada tem mais 4,5 quilos do que a maçã real, mas, por com a diferença entre maçãs reais e
outro lado, maçãs imaginadas não têm peso; por isso, por muito leve que imaginárias.
uma maçã real possa ser, será sempre mais pesada do que uma maçã ima-
ginada.
O argumento ontológico comete um erro semelhante ao comparar a exten-
são de um ser que existe apenas no pensamento com a extensão de um ser
que, além de existir no pensamento, também existe na realidade. É como
se pudéssemos medir a área ocupada por um ser que existe apenas no pen-
samento e acrescentar-lhe a área do universo físico, mas um ser imaginado
não tem área no mesmo sentido que, digamos, um estádio de futebol, por
isso a comparação não faz sentido.
Juízo intuitivo
Atividades
1 Segundo o argumento ontológico, por que razão Deus existe por definição?
2 Por que razão se diz que a existência não pode ser tratada como um predicado real?
3 Em que medida se pode afirmar que, se o argumento ontológico demonstrasse a existência de Deus, então a ilha perfeita existiria?
4 Por que razão se diz que o argumento ontológico se baseia numa comparação ilegítima?
Debate
«Deus é o único ser cuja essência implica a existência.» Concorda com esta afirmação? Porquê?
Objeções
Segundo David Hume, a probabilidade de qualquer instância da primeira
premissa ser verdadeira é bastante reduzida, pois existem várias explicações
possíveis para um acontecimento aparentemente milagroso (x), todas elas
mais prováveis do que a hipótese de x ser, de facto, um milagre.
Por exemplo:
a) pode haver uma causa natural desconhecida;
b) a pessoa que afirma ter presenciado o milagre pode estar enganada;
os sentidos iludem-nos frequentemente e, além disso, certos estados
psicológicos alterados podem sempre toldar as nossas perceções
dos acontecimentos;
c) a pessoa que afirma ter presenciado o milagre pode estar a tentar
enganar-nos por qualquer motivo — para gozar connosco, para ganhar
fama ou adquirir privilégios, etc.
Comparem-se as seguintes afirmações:
1. Existe uma causa natural desconhecida para x, OU a pessoa que afirma
ter presenciado x está enganada, OU a pessoa que afirma ter presenciado
x está a tentar enganar-nos.
2. x é um milagre.
A afirmação 1 traduz a junção de todas as possibilidades alternativas à
ocorrência de um milagre genuíno. Ora, se isoladamente elas já eram mais
prováveis do que tal ocorrência, tomadas em conjunto tornam essa possi-
bilidade ainda mais remota, visto que as circunstâncias que tornariam a
Fig. 9 — A Ressurreição de Cristo (c. 1612),
afirmação 1 verdadeira são muito mais numerosas do que as circunstâncias
de Peter Paul Rubens. que tornariam verdadeira a afirmação 2. Logo, quando estamos perante o
Os milagres são intervenções divinas que testemunho de um milagre, é mais razoável supor que uma das alternativas
consistem na violação de uma lei da natureza, propostas em 1 é verdadeira do que supor a existência de um aconteci-
como ressuscitar os mortos, por exemplo. mento milagroso.
274 Unidade 11
Texto 6
A consequência direta disto tudo […] é «que nenhum testemunho é suficiente para esta-
belecer um milagre, a não ser que o testemunho seja de um tal cariz que a sua falsidade
fosse ainda mais milagrosa do que o facto que pretende estabelecer […]». Quando
alguém me diz que viu um morto ser trazido de volta à vida, imediatamente pondero
comigo mesmo se é mais provável que essa pessoa me esteja a enganar ou que se esteja
a enganar a ela própria, ou que o facto que ela relata tenha realmente acontecido. Peso
um milagre contra o outro e, conforme a superioridade que descubro, tomo a minha
decisão, rejeitando sempre o maior milagre.
David Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano.
Lisboa: INCM, 2002 [ed. original 1748], p. 127.
Juízo intuitivo
Atividades
3 Por que razão Hume desconfia da veracidade dos testemunhos da ocorrência de milagres?
Debate
«Os relatos de milagres conduzem a conclusões inconsistentes; logo, não podem ser uma condição suficiente para provar a existência de
uma determinada divindade.» Concorda? Porquê?
Argumento 8
(1) Se Deus existe, é omnipotente, omnisciente e sumamente bom.
Juízo intuitivo (2) Se Deus é omnipotente, pode acabar com o mal no mundo.
(3) Se Deus é omnisciente, sabe que existe mal no mundo.
Avalie a objeção do problema do mal
de acordo com a sua primeira reação. (4) Se Deus é sumamente bom, então quer acabar com o mal no mundo.
A — Convincente. (5) Se existe mal no mundo, então ou Deus não pode acabar com o mal
B — Atraente mas não convincente. no mundo, ou Deus não sabe que existe mal no mundo, ou Deus não
quer acabar com o mal no mundo.
C — Duvidosa.
D — Implausível.
(6) Existe mal no mundo.
(7) Logo, Deus não existe.
Resposta fideísta
Se aceitarmos, tal como sustentam os fideístas, que Deus é infinitamente
incompreensível, então não podemos supor que dizer «Deus é bom.» é o
mesmo que dizer que alguém é bom. A bondade de uma entidade divina
que tem um acesso privilegiado aos acontecimentos, desde a eternidade,
pode muito bem nunca chegar a ser inteiramente compreendida por meros
intelectos mortais.
Resposta do livre-arbítrio
Alguns filósofos consideram que um Deus cuja bon-
dade é compatível com o que nos parecem ser as
mais profundas atrocidades e injustiças não nos serve
de muito. De entre estes autores destaca-se a figura
de Agostinho de Hipona (ou Santo Agostinho), que
se dedicou a procurar uma explicação alternativa
para o mal do mundo que pudesse simultaneamente
ser articulada com a ideia de um Deus benevolente,
aos nossos olhos. A explicação que encontrou baseia-
Fig. 10 — Queda e Expulsão de Adão e Eva (c. 1515), de Miguel Ângelo. -se no seguinte: por bondade, Deus criou os seres
Santo Agostinho acreditava que o mal era, em parte, responsabilidade das humanos com livre-arbítrio. Esta estratégia é tão
escolhas de Adão e Eva, que, por terem atraiçoado a vontade de Deus, famosa quanto o próprio problema do mal e ficou
foram expulsos do Paraíso. conhecida como a «resposta do livre-arbítrio».
276 Unidade 11
Atividades
Debate
«Mesmo num mundo com livre-arbítrio, Deus poderia diminuir consideravelmente a quantidade de mal no mundo.» Concorda? Porquê?
Religião, razão e fé
• O teísmo é uma conceção de Deus, comum a várias religiões, • Segundo o argumento cosmológico, tudo o que existe tem
segundo a qual Deus é um ser único, pessoal, omnisciente, uma causa exterior a si, exceto Deus, que existe necessaria-
omnipotente, que é sumamente bom e que criou o mundo. mente e é a causa primeira de tudo o que existe.
• Os teístas acreditam que Deus existe, os ateus acreditam que • Objeções ao argumento cosmológico: se tudo o que existe
Deus não existe e os agnósticos suspendem a crença em tem uma causa exterior a si, então Deus também não pode
relação à existência de Deus. ser a sua própria causa; pode não haver um único mas vários
• O fideísmo é uma perspetiva segundo a qual não é possível seres necessários e esse(s) ser(es) pode(m) não ter os atribu-
justificar a crença em Deus através de dados ou argumentos tos de Deus; a ideia de um ser necessário que justifique a
de caráter racional, apenas através da fé. sucessão das causas e efeitos a partir do exterior é um postu-
lado arbitrário.
• Nicolau de Cusa usa paradoxos matemáticos que envolvem
o infinito para mostrar que a razão humana não é capaz de • Segundo o argumento do desígnio, tal como os relógios, os
compreender o infinito — Deus. seres vivos possuem uma estrutura complexa, e as suas par-
tes apresentam um ajuste perfeito; por isso, também têm de
• Objeções à perspetiva de Cusa: é possível ter uma noção de ter um criador inteligente.
infinito; ter dificuldades em conceber uma coisa não implica
que não possamos mostrar que ela existe; se a nossa razão é • Objeções ao argumento do desígnio: as semelhanças entre
tão limitada que não é capaz de conceber o infinito (Deus), os artefactos e a natureza não são suficientemente relevan-
então, quando afirmamos que acreditamos na existência de tes para a analogia ser eficaz; a conceção e a criação do uni-
Deus, não sabemos do que estamos a falar. verso podem ser obra de várias entidades; o mundo tem
algumas falhas, pelo que não pode ser obra de um ser per-
• Søren Kierkegaard acreditava que justificar a nossa crença feito; a teoria evolucionista de Darwin oferece uma explica-
em Deus é uma má opção, pois ao fazê-lo estamos a retirar o ção alternativa para o aparente desígnio da natureza.
que há de essencial à própria fé: o seu caráter incerto.
• O argumento ontológico baseia-se na ideia de que Deus é
• Objeções à perspetiva de Kierkegaard: se a fé é suficiente um ser perfeito (maior do que o qual nada pode ser pensado)
para justificar as verdades religiosas, então cada religião está para concluir que Deus é um ser que existe por definição.
justificada a acreditar na existência das suas divindades; não
explica por que motivo é melhor crer na ausência de razões; • Objeções ao argumento ontológico: Deus pode nem sequer
pode até ser irresponsável acreditar em algo quando não se existir no entendimento; a existência não é um predicado
tem boas razões para o fazer; Deus pode ter-nos concedido real que possa ser usado para definir um conceito; a compa-
a razão precisamente para que fôssemos, entre outras coisas, ração entre pensamento e realidade é ilegítima.
capazes de reconhecer a necessidade da Sua existência; se • O argumento baseado na ocorrência de milagres afirma que,
Deus é infinitamente incompreensível, nem sequer pode- dado que os milagres são intervenções divinas, a sua ocor-
mos saber que tipo de crença seria mais valorizado por Ele. rência prova a existência de Deus.
• Blaise Pascal conclui que temos boas razões para apostar em • Objeções ao argumento baseado na ocorrência de milagres:
acreditar que Deus existe, porque ir parar ao Inferno é muito existem várias explicações mais prováveis para um aconteci-
pior do que ter algumas restrições em vão. mento aparentemente milagroso; existem relatos de mila-
• Objeções à perspetiva de Pascal: se Deus é infinitamente gres de várias religiões, pelo que cada religião estaria justifi-
incompreensível, não sabemos qual é a Sua atitude se apos- cada a acreditar na existência do seu Deus.
tarmos em acreditar que Ele não existe; é mais razoável supor • O problema do mal consiste em saber como conciliar a exis-
que Deus prefira as pessoas que têm uma vida digna, mesmo tência de um Deus com a existência de mal no mundo.
que não acreditem na Sua existência, às pessoas que só o • Respostas ao problema do mal: dizer que Deus é bom não é
fazem por medo do Inferno. o mesmo que dizer que alguém é bom; o mal é uma conse-
• A teologia natural sustenta que é possível encontrar uma quência do livre-arbítrio; o mal natural promove o nosso
justificação racional para a crença na existência de Deus. aperfeiçoamento moral.
Leituras:
BlackBurn, Simon — «Deus», in Pense. Lisboa: Gradiva, 2001 [ed. original 1999].
rachels, James — «Deus e a Origem do Universo» e «O Problema do Mal», in Problemas da Filosofia. Lisboa: Gradiva, 2009
[ed. original 2005].
swinBurne, richard — Será Que Deus existe? Lisboa: Gradiva, 1998 [ed. original 1996].
warBurton, Nigel — «Deus», in Elementos Básicos de Filosofia. Lisboa: Gradiva, 2.ª ed., 2007 [ed. original 1995].
278 Unidade 11
Religião, razão e fé
Porque não temos melhores
razões para acreditar que Deus
Agnosticismo Não
existe do que temos para
acreditar que não existe.
O problema do mal.
• Argumento cosmológico
• Argumento do desígnio
• Argumento ontológico
• Argumento baseado na
ocorrência de milagres
Filmes:
O Nome da Rosa (1986), realizado por Jean-Jacques Annaud.
Ágora (2009), realizado por Alejandro Amenábar.
Páginas da Internet:
http://criticanarede.com/deus.html (artigo «A Ideia de Deus», de William L. Rowe)
http://www.filedu.com/anunesseraquedeusexiste.html (artigo «Será Que Deus Existe», de Álvaro Nunes)
1. A filosofia da religião é a área da filosofia que se dedica a investigar e analisar racionalmente
os fundamentos das crenças religiosas.
2. Segundo o teísmo, Deus não é um ser pessoal, é um ser omnisciente (que tudo sabe),
omnipotente (que tudo pode), que é sumamente bom (ou moralmente perfeito).
6. O fideísmo caracteriza-se por sustentar que a razão conduz à fé, e vice-versa.
7. O fideísmo caracteriza-se por sustentar que a crença em Deus não pode ser provada através
de argumentos racionais.
8. Nicolau de Cusa usa paradoxos matemáticos que envolvem o infinito para mostrar que
a razão humana não é capaz de compreender Deus.
9. Nicolau de Cusa usa paradoxos matemáticos para demonstrar que Deus é infinito.
10. Os paradoxos de Nicolau de Cusa mostram que no infinito se dá a coincidência dos opostos.
11. Uma das objeções que a perspetiva de Nicolau de Cusa enfrenta é o facto de os seus
paradoxos não terem aplicação no domínio do finito.
12. A perspetiva de Nicolau de Cusa não demostra que é impossível conceber Deus, porque
é possível termos algum conhecimento do infinito, como acontece, por exemplo, com o
conjunto dos números inteiros maiores do que um.
13. Uma das críticas à perspetiva de Nicolau de Cusa baseia-se na ideia de que ter dificuldades
em conceber uma coisa implica que não podemos mostrar que ela existe.
17. Para Kierkegaard, o verdadeiro valor da fé advém justamente do facto de esta ser uma
escolha que se reveste de alguma incerteza.
18. O fideísmo de Kierkegaard é uma versão moderada de fideísmo, pois para este autor não
há oposição entre fé e razão.
19. O fideísmo de Kierkegaard não é uma versão moderada de fideísmo, pois para este autor não
há oposição entre fé e razão.
20. Uma objeção que a perspetiva de Kierkegaard enfrenta é o facto de, por vezes, ser
irresponsável acreditar em algo quando não se tem boas razões para o fazer.
21. Uma das críticas que se apresenta à perspetiva de Kierkegaard é o facto de ser impossível saber
que tipo de crença seria mais valorizado por Deus, se este for infinitamente incompreensível.
22. Blaise Pascal sustenta o fideísmo, porque para ele Deus é infinitamente incompreensível.
23. O fideísmo de Pascal é radical, porque advoga uma oposição entre a fé e a razão.
24. O fideísmo de Pascal não é radical, porque não advoga uma oposição entre a fé e a razão.
280 Unidade 11
27. O princípio maximin sustenta que, perante uma situação de incerteza, devemos tomar
as nossas decisões como se o pior nos fosse acontecer.
28. Pascal conclui que é melhor apostar na existência de Deus, porque ir parar ao Inferno é muito
pior do que perder algumas horas a rezar e a ir à missa e ter algumas restrições em vão.
30. Uma das objeções que a perspetiva de Pascal enfrenta é que é mais razoável supor que Deus
prefira as pessoas que têm uma vida digna, mesmo que não acreditem na Sua existência,
às pessoas que só têm uma vida digna por medo do Inferno.
31. Uma das objeções à perspetiva de Pascal baseia-se no processo de origem e formação das crenças.
33. Segundo o argumento cosmológico, tudo o que existe tem uma causa ou razão de ser exterior
a si, exceto Deus, que existe necessariamente e é a causa primeira de tudo quanto existe.
35. Uma das objeções ao argumento ontológico é o facto de podermos parar arbitrariamente a
nossa procura pela causa primeira em qualquer ponto da sequência das causas e dos efeitos.
36. Segundo o argumento do desígnio, tal como os relógios, os seres vivos possuem uma
estrutura complexa, e as suas partes apresentam um ajuste perfeito; por isso, também têm
de ter um criador inteligente.
38. Uma das objeções que o argumento do desígnio enfrenta é o facto de a teoria evolucionista
de Darwin oferecer uma explicação alternativa para o aparente desígnio da natureza.
39. O argumento ontológico baseia-se na ideia de que o mundo é perfeito para concluir que
Deus é perfeito.
40. O argumento ontológico apoia-se na ideia de que, se Deus não existir, não é perfeito.
41. Uma das objeções que o argumento ontológico enfrenta é o facto de a existência não ser um
predicado real, que se possa usar para definir conceitos.
42. O argumento baseado na ocorrência de milagres pretende concluir que os milagres são fruto
da intervenção divina.
45. O problema do mal consiste em saber como conciliar a existência de um Deus criador,
omnipotente, omnisciente e sumamente bom com a existência de mal no mundo.
46. Uma resposta possível para o problema do mal é considerar que, embora o livre-arbítrio
não permita explicar o mal moral, oferece uma explicação para o mal natural.
33. V; 34. V; 35. F; 36. V; 37. V; 38. V; 39. F; 40. V; 41. V; 42. F; 43. F; 44. V; 45. V; 46. F.
1. V; 2. F; 3. F; 4. V; 5. V; 6. F; 7. V; 8. V; 9. F; 10. V; 11. F; 12. V; 13. F; 14. F; 15. F; 16. V; 17. V; 18. F; 19. F; 20. V; 21. V; 22. V; 23. F; 24. V; 25. V; 26. F; 27. V; 28. V; 29. F; 30. V; 31. V; 32. F;
SOLUÇÕES:
VI PROBLEMAS DO MUNDO
CONTEMPORÂNEO
Introdução
A ética do incremento, seja ele reprodutivo ou não, é o assunto deste capítulo. Em primeiro lugar, serão apresentados e discutidos os
argumentos a favor do incremento; em seguida, será a vez de submeter à avaliação crítica os argumentos contra o incremento. A finali-
dade do debate é apresentar imparcialmente estas duas posições substantivas. Caberá depois a cada um, através da elaboração de um
ensaio filosófico, fazer um juízo eticamente informado sobre o problema.
Atividade prática
1 Depois da leitura deste capítulo, elabore um ensaio filosófico sobre o seguinte problema: até onde é permissível incrementar
seres humanos?
284 Problema 1
Argumento da incapacidade
A incapacidade é uma condição em que há dano para a pessoa, que pode
ser de natureza física ou mental. Uma incapacidade é uma desvantagem.
Mas, como se poderia pensar, não é uma desvantagem em relação às
condições do ser humano típico — é antes uma desvantagem em relação
a qualquer alternativa relevante. Esta é assim uma noção lata, e não estrita,
de incapacidade.
Segundo esta noção, as condições típicas da nossa espécie podem conver-
ter-se em incapacidades. Isso sucede, por exemplo, quando há mudanças
relevantes nos fatores ambientais ou se descobre a causa de uma doença.
O dano impede as pessoas de terem experiências valiosas, reduz as suas
oportunidades, implica riscos ou prejudica a qualidade do que fazem.
As suas causas são diversas: médicas, cognitivas, genéticas, ambientais ou
sociais. É por isso errada uma conceção social de incapacidade. Mesmo
a sociedade mais inclusiva e livre de preconceitos que se possa imaginar
não remove muitas características que geram incapacidade.
De uma noção lata de incapacidade segue-se uma noção igualmente lata
de dano. Há dano quando o bem-estar individual é significativamente
afetado. Isso sucede sempre que há um entrave dos interesses e preferên-
cias por certos estados de coisas agradáveis. Um deficiente motor sofre
dano se vive numa cidade sem rampas de acesso a passeios ou edifícios.
O seu interesse em circular com autonomia fica sujeito a um entrave que
afeta significativamente o seu bem-estar. Uma mulher sofre também dano
pelo simples facto de nascer em países que entravam o seu interesse em
educar-se ou participar na vida pública.
Se certas condições causam dano, há razões morais para as impedir ou para
reduzir os seus efeitos negativos. É isso o que determina o princípio moral
da beneficência. Mas dessas razões morais, como é óbvio, não se segue
a escolha de uma estratégia ou método que promova a redução do dano.
Essa é uma escolha que pode depender de uma análise cuidadosa da
relação custo-benefício, da força das razões morais naquele contexto parti-
cular ou do grau de dano. Este último fator, por exemplo, pesa frequente-
mente, e é razoável que assim seja: a força da obrigação moral depende do
grau de incapacidade. Num caso em que é provável apenas uma incapaci-
dade ligeira, poderá não haver qualquer obrigação moral de impedir
o dano ou de reduzir os seus efeitos.
286 Problema 1
Razões morais para não incrementar
Apresentaremos e discutiremos agora os principais argumentos contra
incrementar: o argumento da segurança, o argumento da distribuição
injusta, o argumento do mundo sem agentes dignos de admiração e o argu-
mento da criança feita mercadoria.
Argumento da segurança
É conhecida a preocupação com a segurança dos procedimentos envolvi-
dos no incremento, mas é ainda maior a preocupação suscitada por um
caso particular de incremento — a manipulação genética. O conhecimento
das consequências deste método de incremento é, na verdade, muito limi-
tado. As modificações genéticas, dada a sua natureza, têm implicações
muito sérias. A avaliação que exigem é especialmente complexa. Pode suce-
der que não melhorem realmente a qualidade de vida das pessoas. Em todo
o caso, alguns pensam que a manipulação genética de embriões é uma
condição necessária para incrementar o desempenho de uma capacidade,
mas não deixa de haver uma razão muito forte para duvidar que produza
uma descendência globalmente melhor.
Há estudos que apoiam as preocupações geradas por esta dúvida. É o caso
de um estudo sobre os efeitos da manipulação genética em ratos para
melhorar a memória de curto prazo e a aprendizagem destes animais, um
estudo conduzido pela universidade da Pensilvânia. Os resultados não
foram animadores. Os ratos revelaram uma invulgar sensibilidade à dor.
Este efeito, que não foi previsto, mostra que a qualidade de vida dos ratos
não melhorou, embora as competências cognitivas em questão tenham sido
incrementadas.
288 Problema 1
Argumento da distribuição injusta
Algumas estratégias de incremento poderão ser muito dispendiosas. É esse
o caso da manipulação genética. É muito provável que apenas as classes
favorecidas estejam em condições de usufruir delas. É de admitir, portanto,
que essas estratégias de incremento serão injustamente distribuídas. Uma
nova desigualdade será estabelecida — a desigualdade entre pessoas gene-
ticamente incrementadas e pessoas que o não são.
Parece justificado o receio de que esta importante desigualdade aumente os
já acentuados desníveis da sociedade atual. E se, pelo menos até agora,
estes desníveis da sociedade atual não têm sido corrigidos, essa é uma razão
muito forte para que não sejam permissíveis os incrementos dispendiosos.
Os defensores do incremento genético dizem que esta razão, ao invés
de forte, é claramente fraca. Admitindo que o problema do incremento
genético está na sua distribuição, reconhecem tacitamente que esse tipo
de incremento é bom em si. Logo, o argumento da distribuição injusta não
é uma objeção ética ao incremento genético. Levanta antes um problema
de distribuição, sem dúvida urgente, mas não específico do incremento
cognitivo, seja genético ou outro igualmente dispendioso.
Muitos outros recursos benéficos, como a educação, os alimentos ou as
terapias, estão também injustamente distribuídos. Não há nisso, porém,
uma razão para defender que o uso desses recursos é moralmente incor-
reto. E seria obviamente absurdo que houvesse. Uma coisa é o problema
ético do incremento, outra bem diferente é o problema ético da distribui-
ção. Que fazer perante o problema ético da distribuição dos incrementos
dispendiosos? Supondo que a sociedade ganharia com os benefícios produ-
zidos pelos incrementos cognitivos, talvez a regulação do mercado e o
acesso subsidiado pelo Estado para os mais desfavorecidos fossem a solução
mais razoável. Mas este é outro debate.
290 Problema 1
Introdução
Será que há boas razões para defender um direito público de morrer? Este é o problema que será debatido neste capítulo. Apresentaremos
razões a favor e razões contrárias a esse direito, de um modo que pretendemos imparcial. Caberá depois a cada um, através da elaboração
de um ensaio filosófico, fazer um juízo eticamente informado sobre o problema.
Atividade prática
1 Depois da leitura deste capítulo, elabore um ensaio filosófico sobre o seguinte problema: há boas razões para que a ética do fim
de vida particularmente vulnerável inclua o direito de morrer?
292 Problema 2
O direito de morrer
O direito de morrer de que iremos falar é um direito público estabelecido
na lei e nas regras que orientam a prática médica. Define-se por incluir uma
regra que requer dos médicos, em circunstâncias devidamente especifica-
das, uma resposta ao pedido dos pacientes que desejam morrer. Essa res-
posta pode consistir simplesmente em permitir que os pacientes morram
ou mesmo em ajudá-los a morrer. Saber se temos este direito de morrer é
uma questão central na ética do fim de vida.
Apresentaremos primeiro razões a favor do direito de morrer e depois
razões para o recusarmos.
O mal que devemos remover
Há processos de morte prolongados. Pessoas muito vulneráveis podem
passar por processos de morrer que se estendem para além do que consi-
deram suportável. As dores extremas e incessantes, a perda irremediável
das capacidades funcionais, a perda progressiva e igualmente irremediável
das capacidades cognitivas, a inaptidão para estabelecer relações afetivas
e para ter os prazeres mais simples — tudo isto faz com que uma vida
assim seja, na perspetiva de algumas pessoas, insuportável. Conscientes da
sua condição sem esperança, estas pessoas concluem que não se justifica
viver. Desejam, por isso, que a sua morte seja apressada por meios não
dolorosos.
Para essas pessoas, a existência descrita não se justifica porque não é um
bem. Sendo, na sua perspetiva, uma existência desumanizada, e portanto
um mal, defendem que é do seu melhor interesse que a morte chegue
depressa e sem dor. Gostariam, por isso, de ser ajudadas a morrer pelos
médicos que cuidam delas.
Ajudar a morrer não contraria a prática da medicina, que na opinião dos
defensores do direito de morrer não se confina a tratar lesões e a curar
doenças. Essa seria uma conceção inadequadamente restrita de medicina.
Quando os benefícios prováveis das tentativas de curar e tratar são suplan-
tados pelo fardo do tratamento, os médicos devem ocupar-se
primariamente do alívio da dor e do sofrimento. É, por isso, um imperativo
desenvolver os cuidados paliativos para melhorar o controlo da dor
e do sofrimento.
É verdade que os cuidados paliativos, recorrendo a analgésicos cada vez
mais eficazes, são suficientes para aliviar a dor em muitos casos. No
entanto, subsistem situações de dor
intolerável que resistem aos meios de
que dispõem os cuidados paliativos.
Só ajudando a morrer, portanto, é que
os médicos podem aliviar a dor,
respondendo assim ao dever de cuidar
dos seus pacientes.
Se o fazem com uma disposição genuína
de cuidar, o sentimento que os motiva
é de benevolência. Isto sugere que a
condição de vulnerabilidade extrema
dos seus pacientes gerou neles com-
paixão. A morte que proporcionam
é conhecida por eutanásia justamente
por ser compassiva. Removendo o mal
de uma existência desumanizada,
cumprem o dever de beneficência a
Fig. 2 — Fotograma do filme Mar Adentro (2004), realizado por Alejandro Amenábar. que, como médicos, não podem deixar
Neste filme, o protagonista luta com abnegação e lucidez pelo direito a pôr um fim de atender.
à sua vida.
294 Problema 2
Razões contrárias ao direito de morrer
As razões que iremos apresentar podem ser desaprovadas por algumas das
intuições morais que hoje são muito fortes. Não é por isso, como é óbvio,
que deixam de ser interessantes. No entanto, talvez peçam de nós uma
abertura maior para as considerarmos imparcialmente.
Uma opção indesejável
Partilhamos a intuição de que ter opções é sempre desejável. Sucede, no
entanto, que esta intuição sobre o valor das opções está errada. Há casos
em que ter certas opções é pior do que simplesmente não as ter. Vejamos
alguns casos que o comprovam.
O líder sindical que vê os membros do seu sindicato aprovarem um corte
de salários irá inevitavelmente negociar com os patrões numa posição
de fraqueza. Por possuir mais esta opção, ele ficará mais permeável a ter de
exercê-la. Mas, se a não tivesse, ele poderia mais facilmente chegar a um
acordo sem precisar de a exercer — sem precisar, na verdade, de aceitar
um corte de salários. Seja qual for o resultado da negociação, o simples
facto de ter mais uma opção é indesejável para o líder sindical.
296 Problema 2
Vidas com igual dignidade
Há vidas piores do que outras e até, como sabemos, vidas muito piores do
que outras. É provável que a vida de um deficiente ou de uma pessoa debi-
litada por uma doença grave seja pior do que a vida de uma pessoa normal
e saudável. Mas não é por uma vida ser bastante pior do que outras que se
pode afirmar que é desprovida de valor. É um erro confundir a ideia de que
uma vida é pior do que outras com a ideia de uma vida que não vale a pena
viver. Para saber se uma vida é digna de ser vivida ou não, teríamos de
determinar o limiar de uma vida digna que nos permitisse concluir se uma
vida se encontra abaixo do limiar, não merecendo ser vivida, ou se, pelo
contrário, está acima do limiar e merece ser vivida.
298 Problema 2
300 Glossário
302 Glossário
Filosofia 303
©René Magritte, ADAGP, Paris et SPA 2013 A cópia ilegal viola os direitos dos autores.
P. 24 Clarividência, 1936 Os prejudicados somos todos nós.