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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS

FACULDADE DE LETRAS
Disciplina: Leitura e produção de texto
Prof. Wilton Divino da Silva Junior
Discente: Ana Belén Vera

Dia de missa: dia de resistência

O curta-metragem "Dia de missa", produzido em 2013 sob o roteiro e direção


de Polly Di, é uma obra realizada como resposta à pergunta: como seria um mundo
sem regras? São 7 minutos sem diálogo (verbal, ao menos); através duma única
atriz, Luísa Guimarães, em que o espectador é transportado para uma realidade
onde o único mandato é fazer o que se tem vontade. A cineasta goiana, por sinal, é
a primeira em quebrar a regra ao não entrar no circuito comercial, já que o filme
pode ser assistido online de forma gratuita.
O curta começa com o despertar da protagonista, que encontra uma casa
solitária ao abrir os olhos. Quando se levanta, observa um bilhete na geladeira, onde
uma personagem que parece ser sua mãe avisa que foi à missa e depois à feira. O
dia da adolescente continua devagar, mostrando diferentes atividades singelas: bebe
leite diretamente da caixa, sorve com desgosto um pouco de uísque embaixo do
chuveiro e sai molhada pela casa, dançando pela sala. Atos inocentes mas
desconexos e ilógicos, que possivelmente deixem o telespectador um tanto
desnorteado no começo e um pouquinho desconfortável à medida que o roteiro
avança.
Um dos aspectos que faz este curta-metragem envolvente é a ocorrência de
detalhes sutis espalhados pelo filme inteiro. O título referido ao rito cristão leva
necessariamente o espectador a procurar a relação com a presença ubíqua de
imagens religiosas que são caprichadamente focadas em diversas cenas. O outro
olhar que não descansa é o da mãe da adolescente desde uma grande fotografia na
sala, que também é destacada em vários momentos, como se a vigilância dessas
duas figuras -a religião e a família- estivessem permanentemente monitorando o
comportamento da protagonista. São as representações de presenças
tradicionalmente prescritivas, em contraste com a liberdade da qual a protagonista
está fazendo uso nesse dia.
O tema do curta-metragem é de fato a transgressão. Mas aqui ela é mostrada
desde uma ótica diferente: parece que o objetivo fosse afastar-se da noção resseca
de subversão que a apresenta como obscura, grosseira e caótica, para mostrar que
existem gradientes, variações, e que podemos realizar motins miúdos no nosso dia a
dia.
A fotografia desta obra, realizada por Rê Barbosa, esmera-se em mostrar que
a rebelião também pode surgir envolta de luminosidade e cria para isso uma
atmosfera de sonho, quase angelical. O cenário é construído da mesma forma, com
a imagem duma casa limpa e clara que é, ainda assim, o palco para a revolta. A
manifestação da liberdade da protagonista não parece nascer duma opressão
sufocante que talvez explodisse num descontrole mais parecido com a imagem
geralmente difundida de transgressão. Aqui surge desde a ordem, de forma serena e
doce, para uma sucessão de ações não planejadas. Ela simplesmente se deixa levar
pelo desejo, parece ir pela casa improvisando, como um músico que abandona a
partitura e é sugado pelo seu instrumento. Talvez a maior transgressão aconteça
quando a adolescente decide não fazer nada e fica simplesmente deitada no chão
contemplando um copo de chá, porque esse estado de ócio total subverte o
mandato social de produtividade continua e lógica que deve supostamente reger
todas nossas ações.
Nesta narrativa, como falamos anteriormente, não há comunicação verbal. Ela
é construída a partir duma sequencia de imagens cuidadosamente selecionadas,
das quais o espectador deve depreender o texto. A diretora, subvertendo por sua vez
a tradição cinematográfica, oferece um final aberto, só ouvimos um barulho que
quebra de repente a dinâmica. Mas são todos elementos que a cineasta deixa nas
mãos do espectador para ele criar seu próprio desfecho.
Ao som de “Beta” de Rafa Carvalho, somos todos docemente convidados a
“desregrar a regra”, a imaginar, através da metonímia que é o domingo desta
adolescente, como seria viver num mundo em que as normas que dirigem a vida
cotidiana não estivessem o tempo todo maçando as nossas cabeças.
Esta missa é especial. Frente do mandamento de vestir as melhores roupas,
há a insinuação da nudez. Frente do mandamento de planificação de cada passo, de
seguir uma série de rituais estabelecidos, há a improvisação. Frente do mandamento
de não perder o tempo, há o tempo que se deixa escorregar. Enfim, frente do
mandamento, há a heresia da liberdade.

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