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O PRÓXIMO E A COMUNIDADE

Breve leitura da Fratelli Tutti

João Manuel Duque

Introdução
“As páginas seguintes não pretendem resumir a doutrina sobre o amor fraterno,
mas detêm-se na sua dimensão universal, na sua abertura a todos” (FT nº 6). Assim
formula o Papa Francisco o objetivo da sua Encíclica Fratelli Tutti, que é considerada por
muitos como o seu testamento, já que recolhe o essencial dos seus ensinamentos, antes e
depois de ser nomeado Bispo de Roma.
O modo como esta abertura sem fronteiras se aplica, por seu turno, à questão da
fraternidade universal, leva à afirmação de que essa fraternidade não pode estar
condicionada sequer pela proximidade física. Aliás, é precisamente assim que começa a
Encíclica: “‘Fratelli tutti’, escrevia São Francisco de Assis... Com poucas e simples
palavras, explicou o essencial duma fraternidade aberta, que permite reconhecer,
valorizar e amar todas as pessoas independentemente da sua proximidade física, do ponto
da terra onde cada uma nasceu ou habita” (FT nº1).
No entanto, esta afirmação inicial pode originar um mal-entendido, na medida em
que for interpretada como proposta de uma abertura indefinida e abstrata, que
compreende a universalidade como simples possibilidade, sem apresentar a sua forma de
realização concreta, precisamente na proximidade da relação inter-humana particular.
Ora, a relação entre universalidade e particularidade do amor fraterno percorre
precisamente toda a Encíclica. E se o início está marcado pela referência a Francisco de
Assis, o final está marcado pela referência a Charles de Foucault, terminando com uma
afirmação que pode ser colocada como esclarecimento final da afirmação inicial: “Queria
ser ‘o irmão universal’. Mas somente identificando-se com os últimos é que chegou a ser
irmão de todos” (FT nº 287).
O presente volume não pretende ser um comentário global da Fratelli Tutti, o que
implicaria um trabalho de outra envergadura, mas propõe-se trabalhar, precisamente, no
intervalo desta relação entre universalidade e particularidade, para tentar compreender a
determinação mais precisa do conceito de fraternidade universal.
1. Do povo ao populismo: patologias da comunhão
“O desprezo pelos vulneráveis pode esconder-se em formas populistas que,
demagogicamente, se servem deles para os seus fins, ou em formas liberais ao serviço
dos interesses económicos dos poderosos” (FT nº 155).
É assim que a Encíclica se refere a certas patologias que não permitem a dimensão
universal da fraternidade. Trata-se de patologias que, para além da sua configuração como
egoísmo individual, assumem formas sociais estruturadas como sistemas. São, portanto,
patologias comunitárias, assentes num paradigma de totalidade fechada, por
contraposição a um paradigma aberto, porque anterior, posterior e exterior a essa
totalidade. É precisamente nesse sentido que elas são interpretadas por Enrique Dussel
(cf. DUSSEL E GUILLOT, 1975: 21), filósofo argentino muito influente na elaboração de
um pensamento latino-americano sobre a Teologia da Libertação e a Teologia do Povo,
que muito marcam o atual Papa.
Qualquer patologia populista pressupõe, contudo, uma incontornável referência à
categoria de “povo”, que é uma categoria fundamental na teologia do Papa Francisco.
Dessa categoria, enquanto categoria humana e social fundamental, depende mesmo a
sobrevivência da democracia. É nesse âmbito que se articulam as aspirações
comunitárias, os objetivos comuns e as realizações a longo prazo. “Tudo isso está
expresso no substantivo ‘povo’ e no adjetivo ‘popular’” (FT nº 157). No entanto, o
conceito de povo é um conceito complexo, que não coincide com a totalidade de uma
determinada população, muito menos com a soma dos indivíduos que vivem em
determinado território. Ao mesmo tempo, não se trata de uma categoria “mística” ou
“angelical” (FT nº 158). Trata-se de uma “categoria mítica”, no sentido de que representa
uma “identidade comum, formada por vínculos sociais e culturais” (FT nº 158),
originando um sentido de pertença essencial para a constituição dos sujeitos individuais.
Segundo Dussel, “o ‘povo’ não deve confundir-se com a mera ‘comunidade
política’, como o todo indiferenciado da população ou dos cidadãos de um Estado (a
potestas como estrutura institucional num determinado território)” (DUSSEL, 2017: cap. 8;
cf. LACLAU, 2005). Pelo contrário, este conceito está relacionado com um processo de
tomada de consciência de si, normalmente em momentos de crise, precisamente quando
uma classe dirigente deixa de ser consensual e, de dirigente, passa a ser dominadora. É
uma categoria política, mais do que económica (classe). Nesse sentido, pode transformar-
se também numa categoria cultural, o que conduz às noções de identidade coletiva e de
pertença. É aí que a tomada de consciência de si, como referência identitária, se torna
importante. O conceito de povo opõe-se, por isso, a uma leitura individualista do político
e do social (mesmo do económico, como no liberalismo), assim como a uma conceção
massificada da multidão (em rigor, apenas destinada à manipulação dominadora,
nomeadamente por certas configurações do populismo).
Se os populismos se podem servir da sua referência ao conceito de povo e de
popular, para os perverter em versões patológicas – que são, ou utilizações interesseiras
individuais, ou configurações coletivas fechadas – os liberalismos não chegam a
reconhecer o conceito de povo, em sentido estrito, pois “falam de respeito pelas
liberdades, mas sem a raiz de uma narrativa comum” (FT nº 163). Como entender, então,
certos populismos neoliberais contemporâneos, nomeadamente na América Latina, mas
não só?
Dussel explora algumas nuances esclarecedoras do conceito de populismo, tal
como se tem desenvolvido na América Latina. No início do século XX, no contexto de
diversas revoluções orientadas contra os poderes coloniais, verificou-se o nascimento de
certo consenso popular que reúne vários grupos e que, sob orientação de alguns “líderes
populares, capazes de interpretar sentir de um povo” (FT nº 159), constituíram um
movimento com objetivos comuns. “Confederações gerais de empresários, operários ou
agricultores manifestaram a irrupção organizada de una nova constelação política,
económica, social, cultural que se denominou ‘populismo’” (DUSSEL, 2017: cap. 8).
Trata-se, portanto, da articulação da vida sociopolítica de uma determinada comunidade
com o conceito de povo, enquanto consenso comunitário possível, na pertença a
determinada identidade coletiva.
Assim chega Dussel à possibilidade de distinguir melhor entre os conceitos de
povo, de popular e de populismo: “Desta maneira, o ‘popular’ é o próprio do ‘povo’ como
plebs, como ator coletivo... Enquanto que o ‘populista’... é la confusão entre o próprio do
‘povo’ tal como o começámos a definir (‘bloco social dos oprimidos’) e a mera
‘comunidade política’ como um todo... O ‘povo’ confunde-se, assim, com a ‘nação’... O
‘popular’ e o ‘povo’, ao contrário, não são a totalidade da comunidade política, mas sim
um sector da população que Giorgio Agamben, na sua sugestiva obra O tempo que resta,
denomina semiticamente como ‘o resto’ (cf. AGAMBEN, 2000: 55s). O ‘povo’ resgatará,
redimirá toda a comunidade (confundida e dividida), salvará a ‘pátria’, o populus como
projeto futuro (no nível simbólico de Lacan), mesmo contra a vontade de los
dominadores” (DUSSEL, 2017, cap. 8).
Historicamente, a uma noção de populismo mais próxima ao conceito positivo de
povo sucedeu um populismo de esquerda, por oposição às intromissões do neoliberalismo
americano nos diversos países da América Latina. Esse populismo foi avaliado
negativamente pelo próprio neoliberalismo, o que originou uma noção pejorativa do
conceito. A mesma noção pejorativa – que não é completamente assumida pelo Papa
Francisco, apesar de a referir (FT nº 156) – perdura, embora em sentido inverso, em certos
populismos mais recentes, que Dussel não analisa, e que estão mais relacionados com
extremismos neoliberais, condizendo mais com o conceito de populismo enquanto
aproveitamento do povo para certos interesses pessoais ou de grupo, e aliando-se a
perspetivas normalmente xenófobas e fundamentalistas. A sua raiz pode encontrar-se
numa certa identificação neutra de “povo” com nação, com habitantes de certo território,
ou com outros elementos identitários que contribuem à exclusão e ao encerramento. No
fundo, este nível do populismo incarna o paradigma da totalidade fechada, que não é o
paradigma do verdadeiro conceito de povo: “Os grupos populistas fechados deformam a
palavra ‘povo’, porque aquilo de que falam não é um verdadeiro povo. De facto, a
categoria ‘povo’ é aberta” (FT nº 160).
O paradigma da totalidade fechada, inerente aos populismos excludentes, origina
um mecanismo complexo na relação inter-humana, que acaba por dividir o mundo entre
amigos e inimigos. Uma visão do mundo segundo a ontologia da totalidade só pode
considerar o exterior – e o estrangeiro, enquanto seu habitante – como inimigo. Ora, o
inimigo provoca medo, pelo simples facto de ser diferente. “E assim o medo priva-nos do
desejo e da capacidade de encontrar o outro” (FT nº 41). Nesse sentido, a superação do
paradigma da totalidade e a passagem para o paradigma da alteridade implica a superação
do medo, que equivale à superação da compreensão do outro como inimigo. É neste
contexto que pode ser enquadrado o medo aos pobres, a “aporofobia”, precisamente pelo
facto de o pobre colocar em questão a totalidade do sistema, nomeadamente do sistema
capitalista baseado na rentabilidade e fechado à gratuidade (cf. CORTINA, 2017; DERRIDA,
1991).
Ora, parece ser no contexto desses populismos mais recentes, tendencialmente
excludentes devido ao medo do outro diferente, que é mais fácil estabelecer uma relação
quase direta com manifestações do fundamentalismo religioso. O problema coincide com
certa conceção do religioso, enquadrado precisamente no paradigma da totalidade
excludente, que pode afetar comunidades inteiras, e não apenas alguns dos seus líderes.
Neste nível, de facto, o problema religioso cruza-se com o problema político. Não será
por acaso que, na parábola de referência da Encíclica, os que passam e não ligam ao
homem caído são um sacerdote e um levita. Pode ser por egoísmo ou por insensibilidade
pessoal. Mas talvez seja sobretudo devido à sua pertença comunitária, cuja sacralidade se
sobrepõe à santidade do acontecimento da pessoa desvalida. Neste sentido, não admira
que certos populismos contemporâneos encontrem explícitas aliadas em certas
manifestações do fundamentalismo religioso. A estrutura fundamental das patologias
comunitárias é semelhante, já que assentam num paradigma de totalidade fechada e
excludente, essencialmente por medo.
Esse paradigma pode ser descrito em duas dimensões fundamentais: a
incapacidade de dar, pelo menos no sentido mais básico de “dar lugar” ou de conceder
cidadania ao outro diferente, o que resulta na recusa de o acolher como outro e, nesse
sentido, na sua exclusão; mas também, e talvez de modo ainda mais fundamental, a
incapacidade de receber, na medida em que se recusa a aprender com o outro ou, de forma
mais fundamental ainda, se recusa a receber-se a si mesmo, como sujeito e como povo, a
partir do outro diferente de si. Daí resulta o modelo do indivíduo e mesmo da comunidade
como autossuficiência absoluta, que não reconhece o exterior de si, nem como origem
nem como destino. O que está em jogo, de facto, é a própria noção de constituição do
sujeito, no cruzamento com a comunidade.

2. Comunidades abertas
Se o conceito de povo aponta para uma comunidade, com suficiente consciência
de si enquanto tal, isso implica uma identidade específica, que poderia considerar-se um
ethos particular. Esse ethos poderá ser definido como aquilo que é comum e, desse modo,
unifica a comunidade.
Somos, contudo, confrontados de imediato com a questão da definição, mesmo já
do ponto de vista formal, do que significa aquilo que é comum. Trata-se, em princípio,
de algo partilhado por todos aqueles que constituem o respetivo grupo. Mas não será
precisamente esse ethos comum que, ao distingui-los, pode dividir os povos, conduzindo
precisamente ao seu encerramento? É evidente que não é possível identidade pessoal –
nem a própria constituição do sujeito, enquanto tal – sem a pertença a um conjunto de
mediações simbólicas, que constituem uma comunidade ou mesmo um povo. No entanto,
a modalidade dessa pertença tem que ser compreendida cautelosamente, para evitar que
se trate de pura absorção numa totalidade previamente estabelecida. Uma compreensão
simplesmente corporativista ou coletivista acaba por constituir blocos fechados,
contrapostos, como totalidades inevitavelmente inimigas.
Mas será essa uma correta forma de aproximação ao fenómeno comunitário,
nomeadamente àquele que constitui um povo? Existirá, no processo que o constitui, uma
precedência daquilo que é comum – como um ethos prévio, enquanto aquilo que lhe é
próprio ou a sua propriedade – sobre as relações entre os sujeitos, ou deveremos
aproximar-nos de forma inversa a esse fenómeno? Caso contrário, não se passaria de um
subjetivismo absoluto – baseado na pretensa autossuficiência do indivíduo, várias vezes
denunciada na Encíclica – para um coletivismo absoluto, igualmente marcado por
pretensões de autossuficiência comunitária?
Michel de Certeau – jesuíta francês que trabalhou como ninguém a questão do
quotidiano das relações – propõe uma aproximação diferente à modalidade de instauração
da relação comunitária. O princípio da sua constituição é, precisamente, aquilo que falta
e não aquilo que se tem, como propriedade. Assim, o vínculo comunitário não
corresponde, originariamente, ao que lhe é próprio e a distingue – eventualmente com
violência – do diferente, porque possuidor de outra propriedade. O vínculo comunitário
constitui-se no reconhecimento de que o outro nos falta: “’Tu fazes-me falta’. Duas
palavras, uma dupla negação, indicam l força desta experiência: ‘Não sem’. É impossível
sem ti” (CERTEAU, 1987: 112). O que origina o comum não é, portanto, um conjunto de
qualidades partilhadas, mas precisamente o reconhecimento de uma insuficiência
fundamental.
O filósofo italiano Roberto Esposito usa uma formulação talvez ainda mais
incisiva que a de Certeau, pelo menos neste contexto: a comunidade surge de uma
permanente exposição ao outro, como sujeito, mas também como grupo (cf. ESPOSITO,
2006). Supera-se, assim, o desejo (moderno) de imunidade como auto-constituição do
sujeito na totalidade fechada da sua mesmidade – ainda que seja uma mesmidade coletiva,
como acontece explicitamente nas estratégias de imunização em relação à migração – e
propõe-se um outro paradigma, que é precisamente aquele que rompe com a
autossuficiência como imunidade, mas de um modo positivo, pois é precisamente essa
rutura que instaura o sujeito – e o vínculo comunitário – enquanto tal. “A essência da
subjetividade não reside na identidade do sujeito, mas sim na sua radical exposição ao
outro” (ROSITO, 2015: 146). A exposição ao diferente não anula propriamente a
identidade, mas é precisamente a sua origem.
Contudo, é preciso dar um passo mais (cf. ESPOSITO, 2007). De facto, aquilo que
permite que o vínculo comunitário não transforme a relação “eu-tu” em puro binarismo
– que terminará por ser, ou mutuamente excludente, ou includente de um e de outro na
mesma totalidade que os abrange a ambos, excluindo o seu exterior – é a referência ao
terceiro, verdadeiro fundamento da dinâmica de exposição como instauração do vínculo
comunitário. Esta noção de uma exterioridade terceira, como instaurante do vínculo inter-
humano, corresponde à noção de “trace” proposta quer por Derrida como por Levinas,
tendo sido precisada por este como “illeité” ou, noutra nomenclatura, como “glória do
infinito” (LEVINAS, 1972: 83ss; LEVINAS, 1974: 220ss; cf. DERRIDA, 1967: 104). Esta
impede que um e o outro sejam diretamente o fundamento um do outro, pois isso fechá-
los-ia num circuito binário, o que acabaria por os destruir por absorção na mesmidade de
um deles ou da própria relação bipolar. O terceiro, presente como “trace” na relação de
exposição de um ao outro, é o próprio índice fundamental de abertura que impede não só
o encerramento subjetivo, mas também o encerramento tribal do grupo. Por isso, o
terceiro surge como fundamento da identidade, enquanto propriedade – que não é do
próprio, mas que é sempre dada pelo outro – pelo Outro (Ele), na presença do outro (tu).
No entanto, este esquema parece ainda demasiado formal.
O filósofo alemão Jörg Splett considera que o “terceiro” transcendente à pura
relação binária não significa apenas a impossibilidade de posse ou propriedade da origem,
mas também a possibilidade e mesmo a irrupção de uma exigência positiva, que orienta
para a segunda pessoa (cf. SPLETT, 1996: 108ss). Exigência que conduz, sempre, ao
princípio da responsabilidade. Eu, perante ti, sou interpelado por ele, ao respeito e à
responsabilidade por ti. E este acontecimento ternário dá-se, precisamente, no evento da
exposição ao outro concreto – como sujeito ou como comunidade exterior. Ora, se a
exposição ao outro que nos falta, seja no dinamismo da dádiva seja, mesmo antes de tudo,
no dinamismo da receção, é precisamente aquilo que origina os vínculos comunitários,
então uma comunidade é um processo de permanente abertura ao exterior, ao que
transcende – mesmo ao Transcendente, enquanto Deus único, única origem e único “Pai”
de todos os irmãos humanos.
Mas de que tipo de abertura estamos a falar, quando falamos de uma comunidade
aberta, a partir de sujeitos abertos? Tratar-se-á de uma apertura em aberto, no sentido de
ser indefinita, indeterminada, simplesmente formal? Ou é possível determinar essa
apertura? Mas quais os conteúdos dessa determinação? O perigo de uma abertura abstrata
parece evocar a necessidade de uma abertura concreta que, no caso da leitura judaico-
cristã, correspondente a um monoteísmo concreto, o qual exige uma concreta abertura ao
próximo debilitado – precisamente ao pobre que se revela como inimigo da totalidade
sistémica (cf. DUQUE, 2020).
Na concretização deste processo de abertura da dinâmica comunitária, há a
considerar, antes de tudo, o “lugar” – não propriamente físico, mas sobretudo simbólico
– onde ela se dá. O texto bíblico paradigmático da Encíclica refere-se à “estrada” ou ao
“caminho”, como lugar do acontecimento, que neste caso se assume como acontecimento
instaurador do vínculo interpessoal e comunitário como proximidade. A estrada é, por um
lado, o lugar exterior à comunidade, que rompe com a sua totalidade fechada; essa
exterioridade é, por outro lado, aquilo que possibilita a relação entre as comunidades. O
cerne constituinte da comunidade – que é precisamente o outro débil, o pobre – não está
no seu centro, mas sim no exterior, na periferia, como condição de qualquer relação. O
acontecimento fundacional – o ferido perante o sujeito – supera os limites da tribo e
permite uma configuração universal, que poderá unir as diferentes comunidades. Isso tem
um impacto imediato sobre o próprio da comunidade, que já não é pensado a partir do
seu interior fechado, mas da sua margem.
Podemos interpretar este modelo de constituição dos vínculos comunitários e dos
vínculos entre comunidades como hospitalidade. Contudo, está em causa uma
hospitalidade não apenas normativa, fruto de uma regra comportamental em relação ao
forasteiro, mas uma hospitalidade constituinte, enquanto determinante da própria
identidade pessoal e comunitária. Isso torna-a, por um lado, uma hospitalidade
incondicional – nem sequer condicionada por uma lei própria de uma comunidade, que
assentaria sempre na distinção em relação ao estrangeiro (cf. DERRIDA, 1999; BAHR, 1994
e 2012) – e, por outro lado, uma hospitalidade generativa, pois origina vida humanizada.
Neste segundo sentido, o acolhimento que a comunidade presta ao que, no seu seio,
representa o seu exterior, a estrada que atravessa a periferia e relaciona, gera o diferente
na sua diferença, o outro, na sua alteridade. “Só o homem que aceita aproximar-se das
outras pessoas com o seu próprio movimento, não para retê-las no que é seu, mas para
ajudá-las a serem mais elas mesmas, é que se torna realmente pai” (FT nº 4) (Cit. de
LECLERC, 1987: 205). Mas esta geração do diferente no seu próprio dá-se também no
sentido inverso (cf. SEQUERI, 2020). O que acolhe é gerado pelo hóspede, na medida em
que acolhe o que lhe é mais próprio, no próprio ato de acolher o outro – na hospitalidade.
Isto aplica-se, evidentemente, à constituição de cada sujeito enquanto tal. Mas, a
dinâmica da hospitalidade não se limita à relação interpessoal, em que todos somos
hóspedes e hospedeiros de todos. Articulando-se esse estatuto do humano precisamente
em estruturas sociais – em grupos de pertença, comunidades ou povos – a relação de
hospitalidade deve determinar os próprios grupos, na sua estrutura, não apenas como
legislação parcial, mas mesmo anteriormente a qualquer legislação, no sentido de uma
originária abertura incondicional.
A necessidade de vínculos configura-se, precisamente, nas estruturas
comunitárias e sociais, com maior ou menor institucionalização. Mas, evidentemente e
como se viu, uma possibilidade dessa articulação necessária ao humano é precisamente o
encerramento das comunidades em si mesmas ou o mero enquadramento do humano nas
estruturas sociais. Voltamos, de novo, à questão circular: como conjugar a necessidade
da comunidade – e mesmo da pertença a um povo – com a superação da sua tendência
para se fechar sobre si mesma?
O caminho proposto pela Encíclica implica a consideração de diversas
modalidades de abertura, na sequência da crítica a uma abertura abstrata, porque
simplesmente formal, sem conteúdo identificável – abrir-se a tudo é equivalente a não se
abrir a nada.
Muito próxima desta abertura sem conteúdo, que coincide com uma abertura
meramente negativa, pode considerar-se uma abertura como mera “tolerância” do outro,
que apenas suporta e permite a sua existência, sem propriamente a promover, gerando-a
e sendo gerado por ela.
Para além disso, podemos considerar uma abertura segundo o modelo da
globalização económico financeira, que é claramente criticada pelo Papa Francisco:
““«Abrir-se ao mundo» é uma expressão de que, hoje, se apropriaram a economia e as
finanças. Refere-se exclusivamente à abertura aos interesses estrangeiros ou à liberdade
dos poderes económicos para investir sem entraves nem complicações em todos os
países... O avanço deste globalismo favorece normalmente a identidade dos mais fortes
que se protegem a si mesmos, mas procura dissolver as identidades das regiões mais
frágeis e pobres, tornando-as mais vulneráveis e dependentes” (FT nº 12).
Depois, podemos pensar numa abertura com efeitos verdadeiramente positivos,
na medida em que permite, como se viu antes, a constituição das próprias identidades
pessoais e comunitárias. A Encíclica insiste no valor dessa modalidade: “Ao olhar para si
mesmo do ponto de vista do outro, de quem é diferente, cada um pode reconhecer melhor
as peculiaridades da sua própria pessoa e cultura: as suas riquezas, possibilidades e
limites. A experiência que se realiza num lugar deve desenvolver-se ora ‘em contraste’
ora ‘em sintonia’ com as experiências doutras pessoas que vivem em contextos culturais
diversos (FT nº 147). O que vale para a relação entre as pessoas, pode valer para a relação
entre comunidades – que não deixa de ser, sempre, uma relação entre pessoas. Mas,
também este paradigma poderia ser problemático, se significasse simplesmente uma
abertura em nome da complementação. A ser assim, a abertura estaria sempre marcada
por um interesse identitário, que nunca poderia significa verdadeira exposição ao outro,
com a perda do próprio, com a “morte” que isso sempre implica.
Para superar esta abertura potencialmente – não necessariamente – “interesseira”,
poder-se-ia então falar numa abertura dos sujeitos e das comunidades ao diferente de si,
em nome de um “bem comum” que a todos pudesse unir, porque correspondente a um
desejo partilhado por todos. Mas não será esse bem comum, de novo, uma ideia, uma
abstração formal? Ou então, não acaba por se concretizar numa estrutura governamental
comum do globo, ou em instituições internacionais fortes, que podem ser eficazes para
resolver muitos problemas que a todos dizem respeito, mas que acabam por ainda reforçar
a ideia de mundo como totalidade uniforme, à qual a Encíclica se opõe expressamente?
Ou estaremos a pensar, não em instituições, mas num ethos mundial comum? Mas tratar-
se-á, então, de um mínimo denominador comum – tão minimalista, que chega a ser de
novo abstrato, sem conteúdo nenhum? Isso leva-nos a ter alguma cautela com o que possa
significa o “bem comum” entendido como “meta-narrativa” global.
Parece ser necessário procurar um fator mais profundo ainda, que permita
conjugar a necessidade de vínculos comunitários – de ser gerado pelo outro e de gerar o
outro, na sua diferença – com a necessidade de superar o perigo de absolutização desses
vínculos. A chave apresentada pela Encíclica para esta resposta encontra-se num fator
que é, ao mesmo tempo, plenamente particular e plenamente universal, porque coloca o
centro na periferia, o próprio no exterior – esse fator e a relação ao próximo. A esse
propósito, as questões fundamentais da Encíclica concentram-se nas perguntas bíblicas
originárias: “Onde está o teu irmão?” “Quem é o teu próximo? A resposta a essas questões
é sempre responsabilidade por qualquer um concreto. O horizonte do povo, por mais
imprescindível que seja, encontra um fundamento anterior na pessoa fora de lugar – u-
tópica. Está, pois, estabelecido o contexto para compreender o recurso central ao texto de
Lc 10, 25-37.
3. O próximo como particularidade universal
Viu-se que a Encíclica se propõe discorrer sobre a universalidade do amor, da
fraternidade, independentemente da proximidade física. Implica esta noção de
fraternidade universal, contudo, que o conceito de proximidade – ou melhor, a realidade
concreta do próximo – não pode ser assumida como chave da fraternidade universal? A
tese aqui proposta sugere precisamente o contrário; e sugere que esse seja, precisamente,
o núcleo de todo o documento, que determina até a escolha do texto bíblico de referência.
Nesta Encíclica acontece algo muito raro neste tipo de documento: é citado, de
forma estruturante – não apenas decorativa – um filósofo contemporâneo, por sinal
calvinista, Paul Ricoeur (cf. RICOEUR, 1967). E este recurso algo inédito acontece,
precisamente, no contexto da reflexão sobre os diversos significados da parábola do bom
samaritano.
Segundo Ricoeur, a categoria do próximo não se refere a um sujeito – que poderia
ser “qualquer um” (cf. AGAMBEN, 2001) – que pudesse ser entendido como objeto social,
mas a um acontecimento, que é precisamente o evento de tornar-se próximo, ou de
assumir alguém como próximo, a partir do que imprevisivelmente acontece e não do que
se prevê que suceda. À exterioridade do “lugar”, referida anteriormente, corresponde aqui
uma espécie de exterioridade do “momento”, na medida em que não pode ser enquadrado
na sequência dos momentos cronológicos, previsíveis. O espaço e o tempo do próximo,
como exterioridade, evocam um modo próprio da presença. “O próximo é a própria
conduta de se tornar presente… Não se tem um próximo; eu faço-me o próximo de
alguém [quelqu’un / qualquer um]” (RICOEUR, 1967: 114).
Também não se trata de uma categoria social, definida pela mediação social, pelo
seu enquadramento em determinada estrutura ou por uma determinada pertença. O
Samaritano – enquanto aquele que se faz próximo, na dimensão da ação - “è a categoria
da não-categoria… E a conduta que inventa é a relação direta ‘homem a homem’. Ela
própria é da ordem do evento, porque existe sem a mediação de uma instituição… inova
uma mutualidade hipersociológica da pessoa e do seu frente a frente” (RICOEUR, 1967:
114-115).
Próximo é, antes de tudo, uma categoria de excesso. Esse excesso pode ser
entendido na dimensão pessoal, em relação à instituição, ou na dimensão escatológica,
em relação à história, uma vez que não pode reduzir-se ao seu encerramento no âmbito
fechado da totalidade de uma ou de outra. Nesse sentido, precisamente, abre a instituição
– nomeadamente a comunidade – e abre a história para uma exterioridade que lhes marca
a dimensão transcendência.
Tal como o Papa Francisco reconhece explicitamente, através de abundantes
referências entre os números 57 e 63, esta perspetiva coincide com uma leitura hebraica
da relação inter-humana e dos vínculos comunitários. É precisamente nessa tradição que
o filósofo judeu Emmanuel Levinas (cf. LEVINAS, 1974:129-155), numa passagem central
de uma das suas obras mais emblemáticas, aborda a proximidade como categoria que
supera, de longe, a proximidade física ou territorial, mas também as possibilidades da
consciência intencional. A proximidade pressupõe uma certa articulação da distância,
nomeadamente a distância em relação ao seu enquadramento na consciência, que
representa precisamente a mesmidade fechada da totalidade – subjetiva ou ontológica.
Esta relação específica entre proximidade e distância pode estender-se à própria dinâmica
comunitária, seja na relação a sujeitos – internos ou externos – seja na relação a outras
comunidades.
A perspetiva de Levinas não está longe da leitura apresentada, antes dele e na
mesma tradição, por Hermann Cohen e por Martin Buber (cf. COHEN, 1935). Cohen
considera a ideia do amor ao próximo precisamente a grande ideia do judaísmo, que é ao
mesmo tempo a origem do próprio conceito de ser humano, como membro de uma
humanidade única, a que ele chama “humanidade messiânica” (COHEN, 1924: 188).
Interessantemente, essa ideia surge precisamente da relação ao estrangeiro: “O forasteiro
[Fremdling] é a causa de ter surgido o mandamento do amor” (COHEN, 1924: 188).
Se a ideia de amor ao próximo se fundamenta – e a fundamenta, circularmente -
na relação ao forasteiro, ao estranho, então é dela que brota, precisamente, a dimensão
universal da humanidade: “O ser humano foi conhecido no estrangeiro” (COHEN, 1924:
188). A universalidade do amor, como fundamento do próprio conceito de humano, não
é por isso abstrata, deduzida a partir de uma essência humana metafísica, mas concreta, a
partir de uma experiência particular do humano: precisamente a da relação ao estrangeiro.
Isso obriga a conjugar a universalidade da “humanidade messiânica”, expressa na
“unidade messiânica da humanidade”, com o amor ao próximo enquanto incarnado no
presente real do frente a frente. No dizer de Buber, o próximo é o ser humano “com o
qual me encontro precisamente aqui e agora, o ser humano, portanto, que neste momento
me ‘diz respeito’, sem importar que seja do meu próprio povo ou de outro qualquer”
(COHEN, 1935: XXI).
Para Dussel, é esta experiência “cara-a-cara” – fora (na estrada) de uma totalidade
ontológica ou política, ainda que fraterna, mas também fora dos sistemas que determinam
a diferença entre amigos e inimigos – que determina a experiência da
proximidade: “Quem é o que está perante o Outro no cara-a-cara?”, ou então: “Quem
estabelece a relação sujeito-sujeito como proximidade?” (DUSSEL, 2017: cap. 8). É por
isso que Dussel propõe traduzir o termo grego ágape pelo conceito de solidariedade para
com o próximo, mais fundamental e mais universal do que os conceitos de fraternidade e
de amizade. A máxima particularidade ou mesmo unicidade do evento da proximidade é
que fundamenta a abertura do sujeito e das comunidades. Porque essa abertura
corresponde, a nível sociopolítico, à rutura da ontologia como totalidade e à instauração
da experiência como “meta-física”. É assim, precisamente, que Dussel lê a
fenomenologia da proximidade de Emmanuel Levinas (cf. DUSSEL, 1975: 28-29).
A ideia de uma humanidade una, por correspondência à ideia de um Deus único,
que se afirma com o monoteísmo moisaico (cf. COHEN, 1924: 176), pode conduzir a uma
afirmação ainda equívoca de universalidade, confundida com a totalidade da
uniformidade, que não reconhece a diferença. Mas a relação particular ao próximo radica,
precisamente, no reconhecimento dessa diferença, que por isso mesmo coincide com a
não-indiferença (cf. LEVINAS, 1974). Nesse sentido, não basta desenvolver a ideia geral e
abstrata de uma humanidade – mesmo que seja a “humanidade messiânica” – como
horizonte de sentido da história, na qual se insere cada humano, por igual. É preciso
salvaguardar que a unicidade dessa história possa ter no seu centro a particularidade de
cada diferença, seja pessoal seja comunitária, enquanto conjuntos das “pequenas
narrativas” plurais e nunca uniformes.
Se Derrida, como se viu antes, confirma o significado da prática da hospitalidade
– na linha precisamente do amor ao próximo como exterior ao sistema – no contexto da
tradição hebraica (cf. DERRIDA, 1999), Christoph Theobald identifica na atitude
hospitaleira precisamente o núcleo do “estilo cristão” (THEOBALD, 2007: 68), no
seguimento do estilo de Jesus, o que nos leva de novo à parábola. Segundo Ricoeur, o
Samaritano representa aí precisamente o “estrangeiro” (RICOEUR, 1967: 114). O que é
revelador da universalidade (enquanto incondicionalidade) da exigência de amor ao
próximo: é universal quanto ao seu “objeto” (qualquer um deve ser amado, seja qual for
a sua pertença, pois só assim é gerado para a vida) e é universal quanto ao seu sujeito
(qualquer um deve amar, pois só assim gera o outro e é gerado por ele). A única condição
desta exigência é a proximidade do “face-a-face”, que interrompe a totalidade do tempo
e do espaço a que pertenço – ou até a totalidade de mim mesmo. Só na libertação em
relação à estrutura prévia é que a universalidade do amor ao próximo se torna real, sempre
na particularidade de uma situação.
Mas o nosso percurso começou, precisamente, pela afirmação da necessidade de
pertença ao um povo, onde se estabelecem vínculos comunitários essenciais à existência
de cada. E essa é uma perspetiva forte da Encíclica, devido à relação especial que o Papa
Francisco mantém com a denominada Teologia do Povo (CF. ANELLI, 2019). Agora,
parece termos chegado ao seu oposto, na medida em que esta perspetiva do amor
incondicional ao próximo, enquanto marginalizado do sistema e, por isso, enquanto
evento que parece liberto dos entraves da pertença, questiona precisamente a pertença
como horizonte. E esta perspetiva, até pelo longo comentário da parábola, é também
muito forte ao longo da Encíclica. Estaremos perante uma contradição interna?
Ricoeur utiliza a categoria de socius para referir uma modalidade de relação
mediada institucionalmente e, por isso, enquadrável historicamente nos pressupostos de
pertença. É a distinção entre socius e próximo que vai inspirar diretamente o Papa
Francisco, na sua primeira referência a Ricoeur.
Mas, o que Ricoeur pretende, no texto apresentado, não é apenas trabalhar a
diferença, aparentemente radical e alternativa, entre próximo e socius, senão procurar
uma articulação de ambas as categorias, que se condicionam mutuamente. É a esse nível
que se conjuga uma fundamental necessidade de pertença a um grupo, a uma comunidade,
a uma instituição, com uma permanente exigência de excesso em relação a essa pertença.
As dimensões escatológica e pessoal incarnam sempre na história e em instituições – mas
não se lhe reduzem.
Ora, é precisamente esta tensão entre pertença local e abertura universal que
atravessa todo o texto da Encíclica. A irredutibilidade do próximo ao socius não implica
a recusa da pertença, em quadros institucionais. O discurso, ao longo de todo o texto,
circula sempre nesta tensão entre universalidade e particularidade, entre o global e o local.
“Portanto, a fraternidade universal e a amizade social dentro de cada sociedade são dois
polos inseparáveis e ambos essenciais. Separá-los leva a uma deformação e a uma
polarização nociva” (FT nº 142).
Sem dúvida que assim é. No entanto, regressamos à questão levantada acima, a
propósito das modalidades de abertura e do respetivo fundamento. Bastará a afirmação
da necessária conjugação do global e do local, como se fossem duas dimensões
separadas? Não terá a questão que ser pensada, de novo, mais profundamente, no sentido
de que a dimensão universal, ela mesma, só possa ser vivida particularmente, e que, por
outro lado, o local só tenha significado se for universal na sua atuação concreta? Bastará,
para isso e de novo, o recurso à ideia de bem comum? Ou bastará uma simples conjugação
de identidades particulares em relação? Não haverá necessidade de encontrar algo comum
(universal), apenas experimentável local e concretamente? No horizonte de uma tentativa
de resposta a estas questões surge de novo o símbolo da “estrada”, como o lugar em que
se encontra o comum, porque é aí onde se experimenta a relação ao outro,
independentemente da sua e da nossa pertença – mesmo que todos sejamos o que somos
no âmbito de uma pertença. Esse encontro exige sempre uma certa “suspensão” da
pertença – a qual tem que se pressupor.
O significado desta articulação do universal concreto que funda a “humanidade
messiânica” poderá compreender-se melhor se voltarmos a colocar a questão: O que é o
“bem comum”? Será uma grandeza em si, inevitavelmente institucionalizada e, por isso,
dependente do sistema (socius)? Não poderá alguém passar ao lado de alguém,
precisamente em nome de um “bem comum” entendido tribalmente? Não exige a relação
interpessoal uma forma de ação que leva em conta o bem do próximo concreto, antes e
depois do bem comum e mesmo do bem do sujeito fechado em si mesmo?
Mas a noção de bem comum pode basear-se, ante de mais, no cuidado do outro
débil, concreto e personalizado. E isso implica a superação dos limites tribais, porque a
relação ao outro concreto debilitado não pode obedecer a esses limites. Esse seria o
princípio pessoal, que exige comunidades abertas – a relação ao próximo, mesmo que se
articule institucionalmente, excede a sua configuração institucional, transformando as
comunidades num lugar escatológico – se falarmos numa escatologia incarnada no corpo
do outro que incondicionalmente me exige, e não numa escatologia que adia a decisão
para um futuro indefinido.
Sendo assim, é mais adequado pensar que o bem comum resulta do cuidado
personalizado, de qualquer um(a) a qualquer um(a), mas sempre um(a) a um(a), do que
pensar que o bem comum pudesse ser uma grandeza prévia, eventualmente ideológica,
étnica, racial, territorial, etc. com a respetiva aplicação concreta nos casos particulares. É
evidente que os caminhos – do particular para o universal ou do universal para o particular
– não são propriamente alternativos, porque não se trata de lugares ou tempos diversos;
mas é preciso deixar claro, como acontece com a parábola, qual é o verdadeiro
fundamento e mesmo o conteúdo do bem comum: “A inclusão ou exclusão da pessoa que
sofre na margem da estrada define todos os projetos económicos, políticos, sociais e
religiosos” (FT nº 69).
Para tornar mais claro o argumento, pode ser de grande ajuda o regresso à relação
entre próximo e socius, à luz da parábola. Segundo o texto de Paul Ricoeur, há duas
formas de encarar a oposição entre próximo e socius, sem os conjugar. O que nos interessa
aqui é que o efeito de ambas é semelhante, indo precisamente no sentido oposto à
conclusão da parábola: “Ide e fazei o mesmo”.
De facto, uma primeira reação assume-se como crítica radical ao mundo moderno,
considerado desumanizante, em nome de “certo escatologismo cristão”, que origina o
refúgio “em pequenas comunidades não técnicas e ‘proféticas’” (RICOEUR, 1967:118). A
relação inter-humana passa assim a ser determinada tribalmente e mesmo sectariamente.
A segunda, em nome de uma racionalidade social propriamente moderna,
considera que a relação pessoal ao próximo é um mito que deve ser superado na relação
ao socius, precisamente enquanto determinado pelo enquadramento das estruturas sociais
que devem ser, essas sim, transformadas, por exemplo eliminando as causas da pobreza.
Nesta perspetiva, as relações inter-humanas passam a estar enquadradas em estruturas
sociais, que determinam sempre papéis e funções. Na conclusão de Ricoeur, “Estas duas
leituras encontram-se num ponto essencial: o socius é o homem da história, o próximo é
o homem da rutura, do sonho, do mito” (RICOEUR, 1967: 119). O segundo pode originar
grupos sectários, alheios à história e fechado sobre si mesmos; o primeiro origina
humanos predeterminados por estruturas sociais, igualmente fechados sobre si mesmos.
Mas o Samaritano é, por um lado, o símbolo da não pertença – o estrangeiro ou o nómada
por antonomásia – e, por outro lado, o símbolo da não predeterminação por parte da
função social – ao contrário do sacerdote e do levita.

Epílogo
A parábola nuclear da Encíclica Fratelli Tutti – talvez a parábola central do
judaísmo e do cristianismo – convoca a uma relação ao outro não predeterminada por
condições. A sua base é a relação interpessoal, um a um, segundo a modalidade do
próximo. Mas poderá essa modalidade fundar uma comunidade igualmente aberta – que
supera, por um lado, o tribalismo escatologista e, por outro lado, o sociologismo
estruturalista? Esse é o desafio que a Encíclica coloca, precisamente como possibilidade
de conjugar a relação ao próximo com a relação ao socius – ou seja, como possibilidade
de uma institucionalização comunitária da relação ao próximo, enquanto relação aberta,
incondicional.
A conjugação da máxima universalidade – porque incondicional e, por isso, nem
sequer condicionada pela totalidade do género humano, enquanto algo fechado sobre si –
com a máxima particularidade – porque mais particular, no tempo e no espaço, do que
qualquer estrutura humana prévia – tornam o mandamento do amor ao próximo o
fundamento de uma nova forma de ser humano – ou melhor, da única forma
verdadeiramente humana de ser humano, para além dos sistemas.
O modelo que aqui se revela é o de uma abertura da comunidade para o seu centro,
mas apenas na medida em que se coloca no centro precisamente o periférico, o outro
vulnerável. Trazendo a estrada para o centro, possibilita-se uma abertura concreta e não
apenas abstrata, em nome de uma totalidade fechada. É precisamente nesta alternativa
entre inclusão ou exclusão do periférico – como pobre vulnerável – que se originam ou
se evitam as patologias comunitárias – mas também as patologias individualistas.

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