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2021 – 2º Semestre
“Você sabe com quem está falando, seu nego metido a besta”?
Para Francisco de Oliveira (Jeitinho e Jeitão), o homem cordial – para quem as relações
pessoais e de afeto – para o bem ou para o mal – que se sobrepõem à impessoalidade da lei e à
norma social é a própria encarnação do jeitinho brasileiro. O jeitinho é um atributo das classes
dominantes brasileiras que se transmitiu às classes dominadas.
No Brasil, a classe dominante burlou de maneira permanente e recorrentemente as leis
vigentes. O drible constante nas soluções formais propiciou a arrancada rumo à informalidade
generalizada e se transformou, ao longo da perpétua formação e deformação nacional, em
predicado dos dominados. A burla foi uma forma de adotar de forma incompleta o capitalismo
no Brasil, pois ao mesmo tempo em que a economia se transformava, se interditavam as
soluções formais da civilidade, ou, a norma e a lei para todos.
As classes dominantes “se viravam”, deram sempre um jeitinho ou um jeitão para
garantir a ordem, a coesão e o sistema de dominação e exploração. O jeitão, no caso dos
cafeicultores, a partir do fim do escravismo, em 1888, foi importar a mão de obra europeia
(transformando São Paulo na maior cidade italiana do mundo – fora da Itália) em vez de
incorporar os ex-escravos à cidadania fornecendo-lhes meios de cultivar a terra e se
incorporarem ao trabalho regular. Malandramente, no jeitinho, contornaram os problemas do
fim do escravismo e se desresponsabilizaram pelos ex-escravos. Surgia o trabalho informal, ou
seja, sem forma. Sem forma continuou mesmo após a Consolidação da Leis do Trabalho em
1943, pois deu-se um jeitinho para deixar trabalhadores rurais e trabalhadoras domésticas de
fora. O jeitão da classe dominante obrigou os dominados a se virarem por meio do jeitinho do
trabalho ambulante, dos camelôs que vendem churrasquinho de gato como almoço, das
empregadas domésticas a migrarem de Minas e do Nordeste para as novas casas burguesas dos
jardins Europa, América, Paulistano, para os apartamentos elegantes de Copacabana, Ipanema
e Leblon.
A informalidade no trato é a forma, o jeitinho de substituir as relações racionais e
obrigatórias pela intimidade. Mas assim que se apresenta o primeiro conflito, essa informalidade
se converte no rigor mais severo, no apelo à arbitrariedade e não raro em exibições de
crueldade. O senhor de engenho que se deitava com sua mucama era o mesmo que a castigava
no tronco quando alguma falta, suposta ou verdadeira, lhe ofendia a propriedade.
Nascido das contradições entre uma ordem econômica formalmente liberal e uma
realidade escravista, o jeitinho transformou-se em código geral de sociabilidade. Parece que
sempre há pessoas “sobrando”, resquícios, restos de um outro tempo, de um outro mundo, que
não pertencem ao universo da civilidade. Assim, o chamado trabalho informal tornou-se
estrutural no capitalismo brasileiro. A partir daí todas as burlas são permitidas e estimuladas. O
jeitinho é a regra não escrita, sem existência legal, mas seguida ao pé da letra nas relações micro
e macrossociais. Está tão estabelecido, é tão natural que estranhá-lo (hoje menos do que ontem,
reconheça-se) pode ser entendido como chatice, pedantismo, arrogância ou ignorância: “nego
metido a besta”, é a sentença.
Simpático, ele é uma das maiores marcas do moderno atraso brasileiro no qual
convivem o jeitinho irmão da iniquidade, como remédio, e o jeitinho filho querido da
cordialidade, como veneno.
O caráter nacional de uma sociedade é endógeno, interno, dela e próprio a dela,
partilhado e decodificável somente por seus membros. A ideia-sentimento nacional não é
espontânea das massas, mas imposta pelos grupos dominantes a partir da construção de mitos
fundadores. O mito fundador do Brasil, a democracia racial, é recente, mas foi e segue sendo,
em novos contextos, eficiente e eficaz na produção de ideias (ideologias) sobre o jeito-de-ser
(individual e coletivo) que naturaliza a estratificação social e os mecanismos de dominação e
exploração e, portanto, papéis e lugares sociais.
Identidade, por outro lado, é multidimensional, relacional, em relação ao externo,
diferente, ao Outro. O sentimento de nacionalidade – positivo ou negativo – é um dos elementos
da identidade individual. No caso do Brasil, o “Outro” foram e são as sociedades tomadas como
desenvolvidas ou “civilizadas”. Por isso parece fazer-se e refazer-se aqui uma identidade
incompleta, lacunar, ressaltada no que parece faltar aos brasileiros, construída na perspectiva
do atraso, do registro negativo, da inexistência dos atributos que nos fariam “como eles” e a
nação, “como lá”.
Uma pessoa pode ser mulher, esposa, jovem, executiva, mãe, branca, carioca, zona sul
e brasileira, enquanto outra, também mulher, jovem, mãe e brasileira, é solteira, diarista
doméstica, negra, favelada. É plausível e provável que ambas se orgulhem, sem
estranhamentos, das mesmas características da brasilidade e suas manifestações. Com relação
à identidade nacional, dificilmente terão a mesma perspectiva. E é improvável que os jeitinhos
de cada uma tenham as mesmas capacidades, possibilidades e alcance.
A moral relativa, os estereótipos, estigmas, preconceitos, a discriminação e a iniquidade
civil e social são tributárias das contradições e tensões geradas nesse registro contraditório do
‘jeitinho’ gestado na interseção entre identidade nacional, classe social e cor da pele. Aí o caráter
nacional brasileiro erigido sobre o mito da democracia racial já não se sustenta, mas a
transmutação do privilégio em direito – adquirido – e deste em graça ou favor segue sã e forte.
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