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A Verdadeira Venda de Esposas: uma História do “povo comum”.

Aluno: Luiz Gustavo Santos Martins.

A Venda de Esposas. In: Thompson, Edward Palmer, and Rosaura Eichemberg.


Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

O capítulo “A Venda de Esposas”, presente no livro “Costumes Em Comum”, do


historiador Edward Palmer Thompson (1924-1993), é fruto de sua pesquisa a respeito da
cultura popular dos ingleses. Se insere no conceito, criado pelo próprio autor, da História vista
de baixo. Dessa forma, Thompson vai esmiuçar a história do “povo comum” em busca de
tapar antigas lacunas que foram deixas pela “História Inglesa Oficialmente Correta.”.
Edward Palmer Thompson nasceu em Oxford, no dia 3 de fevereiro de 1924, filho de
pais militantes ligados à Igreja Metodista. Desde a infância foi influenciado pelas ideias anti-
imperialista principalmente por sua mãe, Theodosia Jessup Thompson, que era contra as
intenções da Grã Bretanha em ocidentalizar os países do Oriente. Neste momento já estava
presente o embrião de uma das suas principais características, sua faceta militante.
Em 1942, durante sua graduação em História, Thompson aderiu ao Partido Comunista
da Grã-Bretanha (PCGB). É justamente nesse período que ele vai participar da criação do
grupo de estudos Marxistas Humanistas, com colaboração de importantes historiadores como
Maurice Dobb, Christopher Hill, John Saville, Eric Hobsbawm, Dorothy Thompson, e outros.
Nesse núcleo de estudos testemunhamos o futuro da Escola Neomarxista Inglesa. Após a
publicação de um artigo que criticava a ocupação de Budapeste pelas forças do Pacto de
Varsóvia, invasão que era apoiada pelo PCGB, Thompson se desliga do partido.
Thompson e John Saville, que também é desligado do PCGB, juntos criam a revista
New Reasoner, em 1957. No entanto, em 1959, essa revista se funde com a Universities and
Left Review, formando a conhecida New Left Review. Nos artigos publicados em ambas as
revistas o autor evidencia sua crítica a interpretação estruturalista da história, defendida pela
concepção althusseriana. Segundo ele, esse modelo estrutura/superestrutura, focado no
determinismo econômico, era algo estático e simplista para explicar a formação das classes
socias. Thompson acreditava que ações humanas estavam inseridas na complexidade das
relações culturais, sociais, econômicas e políticas. Essas ideias fundamentavam o marxismo
revisionista do autor.

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Outra característica que vai ser marcante na trajetória de E. P. Thompson é seu gosto
por literatura, principalmente pelo poeta William Morris, a influência era tanta que ele se
considerava morrissiano-marxista. Por sua vocação militante e seu gosto pela cultura,
principalmente popular, suas obras vão retratar as culturas populares sendo inerentes as ações
de resistência.
É nesse contexto que Thompson procurou resgatar a formação de ações coletivas
originarias de movimentos sociais e populares da Inglaterra do século XVIII. O historiador,
desvinculando-se de um processo de formação tão somente mecânico e estrutural, utilizava de
uma metodologia diferente compreendendo que esse processo de formação era consequência
do contexto histórico e social que os homens e mulheres estavam inseridos. Ou seja, a
importância estava também nas manifestações culturais populares e no caráter radical dos
grupos desfavorecidos, não só no desenvolvimento estrutural das forças produtivas. Origina-
se desses estudos sobre a cultura popular inglesa do século XVIII, com o intuito de produzir
sua principal obra “A Formação da Classe Operária Inglesa”, o conhecimento do singular
costume da venda de esposas.
O capítulo inicia com uma indagação do autor: “quem iria querer lembrar práticas tão
bárbaras?” (p.305). Este questionamento dialoga com o contexto vigente na época, entre
século XVIII e XIX, de tratar esse costume como um ato bárbaro praticado por uma
população miserável. As principais fontes utilizadas por Thompson são os relatos de jornais
do período, o The Book os Days é um desses. A imprensa começa a noticiar de forma mais
assídua matérias sobre a prática da venda de esposas após o século XIX, que foi marcado por
intensas restrições sexuais ocasionadas pela moral evangélica. O autor vai enunciar, salvo
alguns casos estrepitosos, que antes desse contexto o costume “não era considerado digno de
registro” (p. 310).
Ao todo o historiador utilizou 218 relatos, considerados autênticos, estas fontes estão
presentes em, como citado acima, notícias de jornais, registros paroquiais, narrativas de
folcloristas, documentos de consolidação da venda, antiquários e documentos produzidos por
tribunais de pequenas contradições. Thompson utiliza-se também, em consonância com sua
trajetória, das narrativas literárias do período, um dos livros utilizados é o The Mayor of
Casterbradge, do autor Thomas Hardy. Neste romance um dos personagens, Michel
Henchard, vende sua esposa numa feira para um marinheiro que estava de passagem.
Debruçando-se sobre a venda de esposas, o historiador observa que essas fontes possuem uma
visão deturpada, retratam a prática de forma pouco precisa e estereotipada, como se fosse

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apenas um ato de ignorância popular. Por tanto, Thompson vai deixar definido que as
evidências quantitativas não possuem tanto valor.
O autor vai diferenciar essa prática que seguia todo um processo ritualístico
denominada, por ele, de “a verdadeira venda de esposas” (p. 315), das outras vendas de
mulheres, que ocorrem até os dias de hoje. O ritual precisava seguir algumas etapas são elas:
o comércio, a publicidade, a corda, a forma do leilão, alguma troca de dinheiro, transferência
solene, consentimento da esposa e as vezes a produção de um documento.
Normalmente os que exerciam esse costume eram pertencentes aos grupos mais
pobres: operários, ferreiros, barqueiros, viajantes desfavorecidos, dentre outros. Havia a
existência de pessoas mais ricas nessas vendas, mas de forma atípica, as fontes demonstram
raros casos da participação de um duque e um cavaleiro. Os vendedores teriam que buscar um
lugar comercial para fazer a venda seja na praça do mercado, uma taberna, porto ou feira.
Buscavam normalmente ficar próximos de um edifício ou construção importante. Anúncios
públicos também eram feitos, os negociantes distribuíam panfletos e colocavam cartazes em
alguns pontos da cidade, além de utilizar o sineiro. Sendo assim, o ambiente da venda deveria
ser montado de acordo com um leilão público, por vezes era o marido que executava a função
de leiloeiro anunciando as características boas ou ruins da esposa. Não era incomum também
o fato de os maridos pagarem taxas para utilizarem o espaço, colocando suas esposas em
ambientes reservados para animais.
A corda é fundamental para realização do ritual, normalmente amarrada no pescoço da
mulher, ou na cintura, podia ficar amostra ou escondida embaixo das roupas. Muito mais do
que uma animalização da mulher, como apontavam os relatos, a corda era utilizada para que o
processo de “entrega” fosse feito. Esse ato da entrega, diferente de uma simples transmissão
de bens, consistia numa declaração pública feita pelo marido cedendo sua esposa ao novo
comprador, cortando assim, a antiga ligação matrimonial. A entrega da corda era
acompanhada de juramentos semelhantes as cerimônias de casamento, é nesse momento que o
comprador e a mulher trocavam suas legitimações para se tornar esposo e esposa. Para ocorrer
essa transferência solene se fazia necessário o consentimento da mulher, E. P. Thompson
demonstra, com base nas fontes, que quase todas as vendas tiverem esse consentimento. Não
era incomum que os três, após a finalização das negociações, fossem para uma taberna
comemorar.
Por fim, para analisar a produção de um documento que objetivava validar essa venda
ritual de esposas é necessário antes analisar como era dado o processo de divórcio na época.

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Antes da lei das Causas Matrimoniais, de 1857, o divórcio era monopólio do Tribunal
Eclesiástico, tendo acesso a esse processo apenas aqueles que possuíam mais recursos. Os
pobres, nesse cenário, estavam excluídos de conseguir uma separação legitimada pelo Estado.
Toda essa ritualização, em um ambiente público, era empreendida em busca de validar o
divórcio e substituir os rituais “legais”. Desse modo, o documento de venda, consistia
praticamente em uma certidão de casamento, já que, comprovara que a mulher, no ato da
venda, se casou com o comprador.
À vista disso, o historiador vai alertar “que temos de retirar a venda das esposas da
categoria de uma brutal venda de gado e colocá-la na do divórcio seguido de novo casamento.
(p. 323). A venda de esposa, muitas vezes, era o jeito formal, para os plebeus, de se
divorciarem e estava de acordo com suas necessidades e vontades, uma vez que, o Estado não
conseguia suprir essa função. Seja um divórcio arranjado, a venda da esposa para algum
familiar, ou a venda para o amante, as fontes demonstram que em muitas transações o
comprador fora predeterminado e já era amante da esposa.
Utilizando da analogia ao iceberg, a menor parte do bloco de gelo, que fica visível sob
a linha da água, representa essas interpretações primárias desses relatos. Já a maior parte
do iceberg, que fica abaixo da linha da água, é trazida por Thompson ao observar que esse
costume possuía relações mais complexas e que concatenavam com o contexto da época.
Para tal, não se pode negar que nessas vendas “o que está envolvido é a troca de uma mulher
entre dois homens num ritual que humilha a mulher tratando-a como um animal” (p. 323). No
entanto, utilizar-se de uma visão reducionista que justifica esse costume apenas como um
simples ato de brutalidade popular não é o caminho. A maior contribuição desse capítulo é o
ensinamento de como um historiador deve trabalhar com as fontes e o seu tema, evitando
interpretações, que por comodidade, relatam apenas a ponta do iceberg dos acontecimentos.
Ao ler esse capítulo percebemos que não é fácil produzir estudos sobre temas que são
considerados polémicos, o próprio Thompson vai dizer que essa temática “levara o público a
esperar uma pesquisa erudita sobre mais um exemplo da miserável opressão das mulheres” (p.
344). Além, de relatar os infortúnios que presenciou durante as palestras que ofertou acerca da
temática desse capítulo. Tratar sobre a venda de mulheres, ainda mais sendo um homem,
acredito que seja a mesma experiência que pisar em ovos, percebemos o cuidado e o tempo
que E. P. Thompson se decida ao falar sobre a existência do consentimento das mulheres
nesse processo. O autor é muito assertivo ao falar que “Ler a história das mulheres como uma
história de vítimas absolutas, como se qualquer coisa antes de 1970 fosse pré-história

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feminina, pode dar uma boa polêmica. Mas não é elogio para as mulheres.” (p. 346). Sendo
assim, o capítulo é demonstra que devemos considerar, ao tratar dos oprimidos da História,
formas de resistências distintas, que normalmente são estratégicas, mas quase nunca
consideradas “glamurosas”.

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