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Revista

Ñanduty
PPGAnt- Programa de Pós-Graduação em Antropologia
UFGD - Universidade Federal da Grande Dourados

ISSN: 2317-8590
Dourados - MS - Brasil
www.ufgd.edu.br/nanduty
PPGAnt - UFGD

A Construção da Imagem Indígena no Jornal O Progresso


Lélio Loureiro da Silva*

Resumo O setor jornalístico, com destaque para os


Este artigo faz uma análise do jornal O Progresso, jornais diários, sempre teve e tem uma influência
sediado no município de Dourados em Mato muito grande na formação da opinião pública
Grosso do Sul, e de suas estratégias utilizadas na nos diversos setores da sociedade. Ao contrário
formação da identidade local e na construção das do que prega a própria imprensa jornalística, esse
imagens sobre os indígenas dessa região. O trabalho setor não é totalmente isento ideologicamente e
apresenta a origem desse diário e o contexto da sua suas publicações são elaboradas e construídas
criação, influenciado pela disputa política entre as a partir de interesses políticos, econômicos e
elites do norte e do sul do antigo Mato Grosso e sociais.
pela formação da identidade sul-mato-grossense,
bem como qual a postura editorial adotada para a Este artigo faz uma análise crítica dos
formação do público leitor tendo como referência a discursos empregados pelo jornal O Progresso,
construção da imagem indígena. sediado no município de Dourados-MS, durante
a década de 1980, com destaque para os discursos
Abstract relacionados aos povos indígenas locais. A
This article is an analysis of The Progress escolha desse diário se deu pelo fato desse
Newspaper, based in the city of Golden in periódico ser o primeiro a circular nessa região,
Mato Grosso do Sul, and strategies used in the quando ainda pertencia ao então estado de Mato
formation of local identity and the construction of Grosso, sendo que nos dias atuais sua circulação
the images on the indigenous of this region. The atinge praticamente todos os municípios de Mato
paper presents the origin of the log and the context Grosso do Sul.
of its creation, influenced by the political dispute
between the elites of the north and south of the Para entender o papel e a postura que
former Mato Grosso and the identity formation o jornal O Progresso assumiu no decorrer
of South Mato Grosso, and which the editorial do espaço temporal delimitado, utilizou-
stance adopted for the formation readership with se metodologicamente de dois caminhos: a
reference image building indigenous. análise do discurso empregado nas notícias e
a análise da postura editorial, pois esta postura
Resumen definiu o caminho que o discurso apresentado
Este artículo es un análisis del periódico el irá percorrer para atingir o seu objetivo, que é
Progreso, con sede en la ciudad de oro en Mato criar uma opinião pública com fins políticos e
Grosso do Sul, y las estrategias utilizadas en la ideológicos em conformidade com o ideário de
formación de la identidad local y la construcción seus articulistas. Para tanto, o artigo inicia com
de las imágenes de los indígenas de esta región. El um histórico desse periódico, enfatizando o
artículo presenta el origen de la leña y el contexto contexto político, social e econômico em que se
de su creación, la influencia de la disputa política deu sua criação. Em seguida há uma análise dos
entre las elites del norte y sur de la antigua Mato principais articulistas e a sua postura editorial
Grosso y de la formación de la identidad del sur durante o período estudado, finalizando com as
de Mato Grosso, y que la línea editorial adoptada matérias publicadas em relação especialmente
para la formación lectores con referencia imagen aos povos guarani que habitam o sul de Mato
indígena edificio. Grosso do Sul. (Silva, 2007, p. 19).

* Possui Formação em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP e mestrado em
História Indígena pela Universidade Federal da Grande Dourados - UFGD.

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Histórico Do O Progresso Nesse período inicial, duas conjunturas,
em nível nacional, estavam em andamento e
O jornal O Progresso é considerado o mais influenciaram decisivamente a postura do jornal:
antigo de Mato Grosso do Sul, fundado ainda no a primeira refere-se aos projetos nacionalistas
então estado de Mato Grosso, e tem sua história desenvolvidos por Getúlio Vargas, com destaque
marcada por dois períodos bem distintos. O para a implantação das Colônias Agrícolas
primeiro é datado em 1920, no município de Ponta Federais e Municipais, a partir de 1940. A segunda,
Porã, onde foi fundado pelo advogado José dos são os projetos desenvolvimentistas do governo de
Passos Rangel Torres. Após um breve período Juscelino Kubitschek, nos anos iniciais da década
de circulação teve sua veiculação encerrada com de 1950, que ficaram conhecidos nacionalmente
a nomeação do seu fundador para o cargo de pelo bordão 50 anos em 5.
promotor público. Depois de três décadas do seu Associados a essas duas conjunturas,
fechamento, o filho do primeiro fundador, Weimar encontram-se os processos de formação da
Gonçalves Torres, retoma o ideal de seu pai e, identidade mato-grossense, iniciado nos
em 1951, reiniciou a publicação de O Progresso, primórdios do século XX, e da identidade sul-
desta vez no recém-criado município de Dourados mato-grossense. O início do processo de formação
onde permanece até os dias atuais. da identidade sul-mato-grossense ocorreu a partir
A análise proposta se restringe ao segundo de 1920 e foi introduzido por pressões políticas,
momento, uma vez que é a partir desse período promovidas pelas elites que habitavam a parte sul
que o jornal se firma como formador de opinião. do estado, que queriam desvincular-se dos ideais,
Também é nesse período que a sua publicação propostos pelas elites do norte, que promoviam
atinge uma veiculação diária, que abrange quase a formação da identidade mato-grossense. Esse
todos os municípios sul-mato-grossenses. processo, das elites do sul, encontrava-se em
A primeira reedição de O Progresso circulou pleno desenvolvimento na época da fundação do
no dia 21 de abril de 1951, e em sua capa já jornal, em Dourados.
demonstrou, em conformidade com o seu nome, Os projetos governamentais tinham sua
qual o caminho editorial escolhido, já que o título base no ideário positivista e pretendiam construir
trouxe em letras garrafais no alto da página a o Estado Nacional Brasileiro por meio de um
manchete: Vertiginosa! A marcha de Dourados processo de homogeneização, concebido na
para o progresso. O texto dessa notícia é repleto de unidade física, política e cultural do país.
elogios a Dourados e enfatiza o desenvolvimento Com a chegada de novos habitantes era
econômico, urbano e demográfico alcançado em preciso criar uma identidade comum e tradições
poucos anos, como podemos observar a seguir: que estabeleceriam ou simbolizariam as condições
de aceitação de um grupo ou de comunidades
“De uma terra inexpressiva e esquecida por meio da inculcação de ideias, sistemas de
passa Dourados a ser uma das regiões mais valores e padrões de comportamento (Hobsbawn,
famosas da pátria [...] grande venda de terra, 2002: 17), representados nos ideais do processo
cinema, luz elétrica, linha de aviões diários, identitário em andamento.
loteamento em massa, mais e mais casas de A instalação das Colônias Agrícolas e a
comércio, valorização acelerada dos imóveis, chegada da estrada de ferro Noroeste do Brasil
cafezais, produção imensa de algodão e cereais, que atravessou o estado no sentido leste-oeste,
instalação de grandes serrarias: um instantâneo ligando o sul do antigo estado de Mato Grosso
polimórfico de uma explêndida [sic] realidade.” com os municípios mais desenvolvidos do país,
(parágrafo 1). fortaleceram os ideais que norteavam a formação
da identidade sul-mato-grossense através da
“Quem conheceu este imenso município a [sic] propagação de imagens de uma região moderna
pouco mais de 5 anos não se atreveria prever o e desenvolvida economicamente. A criação do
grande progresso que tomaria esta terra [...] o ramal ferroviário, ligando Campo Grande a Ponta
esplendor e a magnifitude da terra dadivosa e Porã, fortaleceu os ideais de uma região com uma
fecunda que possue [sic].” (parágrafo 2). forte tendência ao progresso, ao desenvolvimento
econômico e populacional.
O caráter desenvolvimentista empregado Com relação ao processo de formação da
tanto no nome do jornal como na sua capa inicial identidade mato-grossense, os estudos realizados
está em perfeita consonância com os projetos por Zorzato (1998) e Galetti (2000) demonstram
federais de ocupação e desenvolvimento da região, que a construção do mesmo começou com as
bem como dos ideais que sustentam a formação da elites radicadas nas redondezas da capital Cuiabá,
identidade sul-mato-grossense. então dominantes no estado de Mato-Grosso. Essa

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construção, de um conjunto de representações do sul começaram a reforçar as imagens de que os
visando à propagação de uma imagem positiva sul-mato-grossenses seriam pioneiros, guardiões
da região, foi pensada com base em dois fatores das fronteiras, civilizados e economicamente
preponderantes: apagar as imagens negativas desenvolvidos e modernos.
associadas a Mato Grosso e manter essas elites no Essa forma de classificação se estrutura
poder. em torno de posições binárias, de duas classes
Segundo Galetti, foi a partir de uma polarizadas, em que “[...] um dos termos é sempre
reação ao estigma da barbárie, elaborado e privilegiado, recebendo um valor positivo,
transmitido por viajantes nacionais e estrangeiros, enquanto o outro recebe uma carga negativa.”
que esse grupo social dominante decidiu construir (Silva, 2000, p. 83). Essa classificação foi
um universo identitário, através de inúmeras estendida aos povos indígenas, sendo destinada a
manifestações culturais, que se distinguisse pela parte negativa para os mesmos.
exaltação a terra e ao homem mato-grossense. Nessa busca para desmitificar o estigma
As imagens negativas associadas a Mato ao qual estavam vinculadas, as elites sulistas,
Grosso destacavam que o mesmo é um estado identificadas com os progressos da civilização,
atrasado, incivilizado e selvagem, habitado por fizeram uma “[...] negação sistemática do natural,
pessoas ignorantes, preguiçosas, vingativas e pois isto é visto como atraso.” (Zorzato, 1998:
sanguinárias, reforçando a imagem, propagada 89). Assim, as populações indígenas serão
nos grandes centros populacionais do país, que o identificadas como parte integrante desse natural,
estado era terra de índio. Para contrapor a essas sendo necessário, nessa construção, silenciar o
imagens negativas, as elites cuiabanas construíram índio e estigmatizá-lo.
para os mato-grossenses uma nova identidade que Essa representação do índio, ligado ao
combateu o estigma da barbárie. Associado a esse natural, começou a ser construída na carta que
combate estava a inclusão de valores que visava Pero Vaz de Caminha enviou ao Rei de Portugal,
garantir a primazia do mando no Estado para contendo notícias sobre o descobrimento de novas
esse grupo dominante, com representações que Terras. Nessa carta, o índio foi visto como gente
enalteceram a figura do pioneiro, do desbravador bestial e de pouco saber, sendo reforçada essa
do sertão, do guardião das fronteiras (Zorzato, imagem pelos adjetivos selvagem, incivilizado e
1998: 80-87). indolente (Limberti, 2003: 28-42).
A partir de 1920, o predomínio político das Sabemos que é essa representação
elites cuiabanas começou a enfrentar pressões negativa, associada ao índio, que as elites mato-
das elites sulistas, principalmente as campo- grossenses querem combater por meio da sua
grandenses, que passavam por um forte crescimento proposta de formação identitária, buscando
econômico e populacional proporcionado pela eliminar o estigma da barbárie e a alcunha de
chegada da estrada de ferro Noroeste do Brasil. terra de índio aos quais estavam vinculadas.
É nesse momento que a identidade sul-mato- A tentativa de trazer os índios à civilização, já
grossense começa a ser traçada, objetivando um que há forte interesse econômico sobre sua mão de
distanciamento das imagens elaboradas pelas obra, transformando-os em trabalhadores braçais
elites do norte. (Lima, 1995), não estava no ideário das elites
Com esse objetivo foi fundada, nos fins de mato-grossenses. Sua inclusão na composição
1932, a Liga Sul-Mato-Grossense que passou a étnica do estado implicaria numa redefinição
atuar decisivamente na formação da identidade quanto a sua origem, que estava vinculada à figura
sul-mato-grossense, publicando vários manifestos do bandeirante paulista, e, consequentemente,
e promovendo a coleta de um abaixo-assinado, em uma suposta origem europeia. Essa origem
contendo milhares de assinaturas, solicitando a tem grande importância no processo de formação
separação. Esses manifestos são considerados que estava em andamento, pois a sua utilização
o “[...] primeiro esboço de uma identidade justificaria um amplo processo de exclusão social
especificamente sul-mato-grossense, como reação garantindo dessa maneira a primazia do mando
a identidade mato-grossense oficial.” (Queiroz, (Zorzato, 1998).
2005: 9) [grifo do autor]. Dentro dessa perspectiva econômica e de
Para consolidar a separação, as elites manutenção do mando, os povos indígenas não
sulistas passaram a veicular a imagem do sul encontraram espaço adequado nas representações
como uma região com grande pujança econômica criadas para dar sustentação aos ideários nortista
e modernidade. Seus habitantes se diferenciariam e sulista, ocorrendo uma notável “[...] negação do
por possuir uma grande dedicação ao trabalho papel indígena na formação histórica da região.”
associada a um senso de cidadania e de iniciativa (Queiroz, 2005, p. 10).
progressista. Para atingir o seu objetivo, as elites Dessa forma, fica claro o porquê do nome

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e do discurso inaugural nessa segunda fase do Porém, mesmo com o ingresso de suas filhas, a
O Progresso, como também qual será a postura principal diretora continuou sendo Adiles que se
editorial adotada a partir de então. Inaugurado encontra no comando do jornal até os dias atuais.
no auge da rivalidade entre o norte e o sul do Weimar Torres chegou a Dourados, em
estado e em meio aos projetos governamentais 1948, com a meta de exercer a profissão de
desenvolvimentistas, o jornal terá um papel advogado. Logo se elegeu vereador pelo Partido
decisivo na formação e divulgação do ideário Social Democrático – PSD – e, posteriormente,
sulista e promoverá de forma sistemática o ideário deputado estadual e federal pelo mesmo partido.
desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek. O PSD foi criado por Getúlio Vargas durante o seu
primeiro governo e congregava em seus quadros
Os Principais Articulistas tanto grandes proprietários rurais como também
elementos da burguesia urbana: industriais,
Durante várias décadas, as notícias comerciantes e banqueiros. Em 1951, a cidade de
publicadas pelo jornal “O Progresso” tinham como Dourados era o centro das atenções das autoridades
fonte a Empresa Brasileira de Noticias – EBN, em sintonia com o poder; já que a implantação da
Agência Boa Imprensa – ABIM, RADIOBRÁS e Colônia Agrícola Nacional de Dourados – CAND,
de colaboradores sem vínculo empregatício. iniciada em 1943 pelo presidente Getúlio Vargas,
A postura editorial adotada pelo O era o exemplo de sucesso da política de ocupação
Progresso, na maioria das notícias veiculadas, não ordenada e o modelo de projeto de colonização.
identificava quem eram os articulistas, exceto nas Desde a implantação da Colônia, que era a menina
matérias produzidas pelas empresas jornalísticas dos olhos daquele presidente, o local despontou
que são devidamente identificadas: para o roteiro político nacional (Schwerngber,
2005, p. 48-49).
“Campo Grande (EBN) – ‘Nossa esperança No seu primeiro ano como vereador surge O
sempre foi recuperar o que é nosso, sem Progresso, evidenciando que o mesmo não teria
violência”. (Kadiwéus, os novos fazendeiros do somente pretensões jornalísticas e econômicas,
pantanal. O Progresso, p. 2, 01 dez.1983, grifo mas também exerceria uma forte influência
do jornal). política e eleitoral, apesar da negação deste intuito
pela família que sustenta a versão de que foram
“Campo Grande (Radiobras) – A Fundação os dotes literários de Weimar que influenciaram
Nacional do Índio e a Secretaria de [...]” no ressurgimento do jornal. Porém, quando esteve
(Índios: Terras demarcadas. O Progresso, 09 à frente de O Progresso, Weimar sempre “[...]
jul. 1988, capa). utilizou-o mais para embates políticos do que para
informar.” (Schwerngber, 2005, p. 49).
A permanência dessa postura editorial, no A trajetória política de Weimar, que foi
decorrer da década analisada, pode ser explicada o primeiro deputado federal eleito na porção
pela centralização das decisões editoriais nos sul do Estado, em 1966, só vem reforçar o seu
proprietários. A contratação e formação de posicionamento em relação à postura editorial
uma equipe de jornalistas, fato que começou adotada pelo O Progresso e o seu compromisso
em 1976, não mudou essa prática. No período com o processo de formação de uma identidade
analisado, ainda é grande o número de matérias para o sul do antigo estado de Mato-Grosso.
que não identificam o seu articulista, numa clara Foi durante o mandato de deputado federal
demonstração que a responsabilidade editorial é que “[...] Weimar Torres morreu aos 47 anos em
do proprietário, na figura de diretor da empresa. serviço quando retornava à [sic] Brasília no dia
A propriedade dessa empresa jornalística 14 de setembro de 1969, vítima de um acidente de
sempre se manteve nas mãos de uma única avião.” (Adiles conta história d’O Progresso. O
família. Durante um período de 18 anos, de Progresso, 07 jun. 2006. Caderno Dia a Dia, p. 1).
1951 a 1969, o comando do matutino esteve Após a morte de Weimar, o comando
nas mãos do seu fundador, Weimar Gonçalves do jornal passou a ser exercido por seu sogro
Torres. Após esse intervalo, o diário douradense Vlademiro do Amaral, que era formado em
passou a ser dirigido por seu sogro, Wlademiro engenharia agronômica e residia em Dourados
do Amaral, que se manteve no cargo até 1985. desde outubro de 1932. A formação em engenharia
Depois desse período, assume a direção Adiles do agronômica permitiu que Vlademiro exercesse
Amaral Torres, viúva de Weimar. Em 1993, suas a atividade de agrimensor, e assim ele veio para
duas filhas, June e Blanche Torres, se integram à o município mato-grossense com a pretensão de
direção do jornal. Após um breve período, June trabalhar na medição e na demarcação dos lotes
se afasta da empresa (Schwerngber, 2005, p. 48). da CAND e da Colônia Agrícola Municipal de

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Dourados – CAMD, hoje município de Itaporã. apresentação criando várias seções e o editorial.
Vlademiro também era político tendo sido O histórico político e social dos dirigentes de
eleito vereador, em 1947, pela União Democrática O Progresso demonstram um comprometimento
Nacional – UDN –, mas por influência de seu com os ideais do processo de formação da
genro trocou a UDN pelo PSD na década de identidade sul-mato-grossense, propagando as
1950. Posteriormente, foi nomeado diretor do representações vinculadas a ele, e com os projetos
Departamento de Terras do estado na década de governamentais desenvolvidos na região, pois tais
1960. projetos vislumbravam o desenvolvimento e o
O histórico profissional e político de progresso.
Vlademiro, assim como o de Weimar, colaborou Dessa forma, a postura editorial do jornal
para a propagação dos ideários promovidos em relação aos Guarani, Kaiowa e Ñandeva, se
pelas elites do Sul e das propostas contidas nos apresentou de forma dúbia, oscilando, em alguns
projetos governamentais. Esse histórico também momentos, entre o silêncio e a exclusão desses
contribuiu para a boa relação que o jornal manteve povos de suas páginas, não admitindo a existência
com os militares durante o período de vigência do dos índios na formação histórica da região e, em
Ato Institucional nº. 5, mais conhecido por AI-5. outros, adotando uma atitude de isenção, publicou
Foi durante o comando de Vlademiro que notícias que destacavam a causa indígena, em
o jornal O Progresso começou a se modernizar que faz questão de deixar claro para o leitor
tanto no que diz respeito aos equipamentos que as informações apresentadas não são de sua
quanto à contratação de jornalistas, fato este que responsabilidade mas sim dos informantes, como
possibilitou a tornar-se diário no ano de 1976. Essa pode ser percebido nas manchetes abaixo:
modernização aconteceu devido à disputa pelos
leitores, que se travou naquele ano, com a Folha Orro: “problema indígena não é caso de
de Dourados, já que este periódico foi o primeiro polícia”. (O Progresso, 15 set. 1983, capa).
no município a implantar edições diárias, prática
reproduzida por O Progresso um mês depois e Presidente da FUNAI: “Reserva é que tem que
que se mantém até hoje. Sua periodicidade diária resolver seus problemas”. (O Progresso, 04
apenas é interrompida aos domingos e feriados. A fev. 1984, capa).
fase de Vlademiro termina com a sua morte em
1985. “PKN está instigando a invasão de terras”,
Após a morte de Vlademiro, o jornal passou denuncia produtor. (O Progresso, p. 3, 29 abr.
a ser dirigido por Adiles do Amaral Torres, função 1987).
que continua mantendo até o momento. Formada
em direito, o envolvimento de Adiles com o jornal A negação da presença do elemento indígena
até a sua posse se restringia à produção de uma vai de encontro ao discurso, promovido pelas elites
coluna social, que permanece nas páginas do sulistas, que representam a região como moderna
jornal até os dias atuais, com pouco envolvimento e desenvolvida economicamente, habitada por
na administração do jornal (Schwerngber, 2005, gente com capacidade de iniciativa progressista,
p.62). devotada ao trabalho e com senso de cidadania
Mesmo sem experiência administrativa, (Queiroz, 2005, p. 13). É em meio a esses discursos
Adiles assumiu a empresa da família e investiu na que os Guarani foram silenciados e representados
modernização do periódico, mas sem abandonar de forma negativa no processo histórico dessa
a ideologia construída na época de sua fundação, região. Eram vistos como acessórios, sem
descrita em seu nome e slogan: O PROGRESSO: interesse próprio e inferiores, além de serem rudes
pensamento e ação por uma vida melhor. Esta e vingativos. As várias matérias jornalísticas
frase revela uma característica militante que vai veiculadas pelo O Progresso, na década 1980,
muito além de informar. Porém, o caráter militante que serão analisadas no decorrer desse trabalho,
presente no jornal sob direção de Adiles não é confirmam essa visão.
político-partidário, como era no tempo de Weimar, Porém, ao mesmo tempo em que O
mas sim de direcionar ações e emitir opiniões em Progresso silencia e exclui os Guarani do processo
função das ideias que ela defende. Adiles manteve histórico sul-mato-grossense, sua presença, como
a mesma postura editorial adotada por seu marido trabalhador em vários ofícios, é constante e de
e seu pai, porém com novas práticas comerciais grande importância durante toda a ocupação e
frente à nova economia, que se apresentava com posse do sul do antigo estado de Mato Grosso e do
a abertura política, e aos avanços tecnológicos da atual estado de Mato Grosso do Sul.
mídia. Já nos primeiros anos sob seu comando,
o jornal passou por reformulações na sua

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O Progresso Da Década De 1980 da página 2, no qual passou a se posicionar sobre
vários assuntos: trânsito, política, cultura, etc.
Com a modernização, ocorrida no final No editorial Ornamentação é importante,
da década de 1970, com a compra de novos publicado em 13 de dezembro de 1988, O
equipamentos e com a contração de jornalistas, Progresso fez críticas ao então prefeito, em
que possibilitou a publicação de edições diárias, final de mandato, que não está nem aí com as
o jornal O Progresso iniciou os anos de 1980 festividades alusivas ao aniversário do município,
com perspectiva de crescimento, abrangendo um que completava 53 anos de emancipação. Refere-
número maior de leitores. se a reportagem:
No período da década de 1980, O Progresso
se apresenta com um único caderno contendo em “É que o prefeito Luis Antônio Gonçalves,
média 12 páginas. Algumas edições extrapolavam alegando falta de recursos financeiros resolveu
esse número, atingindo até 16 páginas. Essa cancelar toda a programação alusiva à data,
variação no número de páginas ocorria de acordo inclusive, os Jogos Abertos. A cidade, nem
com os contratos comerciais para divulgação de mesmo recebeu a devida ornamentação na
atos oficiais do judiciário, das prefeituras1, além avenida Marcelino Pires, como sempre ocorreu,
das propagandas de empresas privadas. visando às festas de fim de ano.” (parágrafo 1).
Em abril de 1984, o matutino foi ampliado
com o início da publicação do 2º Caderno, que A alegação de falta de verbas municipais
passou a circular aos sábados com ênfase nas para a realização da ornamentação não é aceita
programações culturais, visando à ampliação do pelos editores que apontam a despreocupação do
número de leitores nos finais de semana. Apesar prefeito em relação ao assunto e o desrespeito do
do breve período de circulação, somente alguns mesmo para com os douradenses, já que o custo é
meses, o 2º Caderno dedicou, no dia 12 de maio relativamente pequeno:
de 1984, amplos espaços à questão indígena:
“O prefeito Luiz Antonio deveria ter se
PI Dourados: Mesmo sob ameaças, o índio preocupado com isso. Sabemos que o ‘caixa’
ainda resiste. (O Progresso, 12 mai. 1984. 2º está zerado. Mas a ornamentação da cidade não
Caderno, manchete de capa). é tão onerosa assim, aliás, os equipamentos
são sempre reutilizados. O povo douradense
Depoimento: Índio, “caso” de Polícia? merece comemorar as festas de fim de ano,
(Pizzini, Joel. O Progresso, 12 mai. 1984. 2º com todo o respeito, e também, o aniversário
Caderno, capa). do município.” (parágrafo 4, grifo do jornal).

Vítima do Sistema. (Galeano, Margarida. O Fica latente que essa preocupação com a
Progresso, 12 mai. 1985. 2º Caderno, p. 5). ornamentação está relacionada com a imagem
de atraso, de decadência, sendo que a falta dos
O índio e o novo código civil. (O Progresso, 12 ornamentos acarreta uma estagnação econômica
mai. 1984. 2º Caderno, p. 7). que mancha o progresso da cidade e da região
como um todo, uma vez que Dourados tornou-se
A primeira manchete de capa, citada acima, o polo comercial regional.
faz chamada para a página 5, que é dedicada Nesse final de década, O Progresso do dia
somente para a questão indígena. Ali se encontra 01 de dezembro de 1988, traz o editorial O dever
uma grande matéria, com o mesmo título, que cumprido! em que o matutino faz um balanço do
contém três fotos e ocupa quase 70% da página. trabalho desenvolvido durante o ano. O mesmo
Completando a página, no canto direito inferior, confirmou que a responsabilidade pelas escolhas
está o artigo Vítima do Sistema. editoriais segue a razão e a consciência da
Na segunda metade de 1988, o jornal passou a diretoria:
dividir o seu caderno em seções: política, regional,
geral, rural, esporte, etc. Essas seções apareciam “O trabalho foi árduo e a luta incessante.
conforme o número de matérias, ocorrendo casos Criticados por uns, elogiados por outros. Mas
em que uma página dividia-se em duas seções. temos a certeza que seguimos a nossa razão e
A partir dessa data, o jornal também passou a o que ditou a nossa consciência. Procuramos
estampar um editorial, no canto esquerdo superior acertar e sabemos que colaboramos em
1.  O setor público representava a maior fonte de verba muito, através de alertas, críticas, elogios
publicitária do jornal, o governo estadual, várias e reivindicações em prol das boas causas”.
prefeituras e poder judiciário, possuíam contratos (parágrafo 2, o grifo é meu).
publicitários entre atos oficiais e anúncios publicitários.
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Os editores demonstraram conhecer Os Guarani Nas Páginas Do O Progresso
a impossibilidade de agradar a todos, mas
acreditavam que estavam satisfazendo a maioria No levantamento, realizado com as matérias
dos leitores. Essa crença teve como base o publicadas na primeira metade da década de 1980,
aumento na tiragem e nos anúncios publicitários: foram identificadas duas situações em relação
aos Guarani: a primeira está relacionada a um
“Afinal, nunca jamais [sic] é possível agradar enorme silêncio sobre as populações indígenas
a todos, mas temos certeza que satisfazemos locais, já que a maioria das notícias veiculadas
a maioria. Prova disto, é o crescimento deste enfocava os povos indígenas de outras regiões
jornal que está a cada dia, crescendo mais, tanto do País, com destaque para os que habitam a
em tiragem, como em publicidade, e no apoio região norte. As poucas notícias que retratavam a
de nossa gente. Recebemos visitas de pessoas população indígena local enfatizaram os trabalhos
valorosas que sempre apóiam e elogiam nosso desenvolvidos por instituições governamentais e
trabalho.” (parágrafo 3, o grifo é meu). não governamentais que passaram a representar o
índio. A segunda fez referência à entrada do índio
O grifo no final do parágrafo é para ressaltar local nas matérias do jornal e teve o seu enfoque
a relação que os editores mantiveram com o grupo direcionado em duas direções: na divulgação
de pessoas valorosas, que apoiavam e elogiavam da violência existente entre os habitantes da
o trabalho desenvolvido pelo jornal, uma vez que RID, em que sobressaiu a figura do Capitão
estas pessoas faziam parte da categoria nossa Ramão Machado, e na morte do líder indígena
gente. O termo visita demonstra que esse grupo ñandeva, Marçal de Souza – Tupã’i, liderança
possui uma afeição, um dever ou uma cortesia de reconhecimento internacional e a primeira a
em relação aos diretores, o que os leva a uma ser assassinada no processo de reocupação dos
associação de interesses. territórios tradicionais.
Mesmo com uma grande variedade de Na segunda metade da década de 1980, com
assuntos abordados pelo editorial, o jornal O a crescente ocupação de áreas pelos Kaiowa e
Progresso, durante o período analisado, não Ñandeva, o jornal O Progresso passou a publicar
dedicou nenhum à questão indígena, excluindo um número cada vez maior de notícias envolvendo
o elemento indígena dos assuntos de interesse do o conflito territorial indígena local. Com esse
matutino douradense. Essa exclusão estava em aumento, as notícias relacionadas aos povos
concordância com os ideais que visavam construir indígenas, habitantes de outras localidades do
uma identidade sul-mato-grossense, num processo país, sofreram uma queda significativa, invertendo
marcado pela diferença entre nós e eles, já que: a posição de destaque a favor dos Guarani.
Em conformidade com Limberti (2003),
“A afirmação da identidade e a marcação da na década de 1980, o índio já possuía um lugar
diferença implicam, sempre, as operações estabilizado junto aos assuntos abordados pelo
de incluir e de excluir. Como vimos, dizer ‘o jornal O Progresso. A palavra índio apareceu
que somos’ significa também dizer ‘o que não como indicador do tópico em várias manchetes,
somos’. A identidade e a diferença se traduzem, demonstrando que o tema chamava a atenção dos
assim, em declarações sobre quem pertence e leitores e dos editores.
sobre quem não pertence, sobre quem está Porém, essa estabilidade não atingiu os
incluído e quem está excluído.” (Silva, 2000, p. Kaiowa e Ñandeva que, no início da década,
82, grifo do autor). poucas vezes apareceram no noticiário em relação
à quantidade de notícias envolvendo outros
A exclusão da questão indígena no editorial povos indígenas e, preferencialmente, de outros
do jornal demonstra o envolvimento que os estados da Federação. Nos três primeiros anos
proprietários do periódico têm com os ideais da década, as etnias locais são apresentadas em
promovidos pelas pessoas valorosas, numa clara 18% das matérias publicadas em relação à questão
demonstração de pertencimento a qual sugere indígena. Em grande parte das notícias as etnias
que a questão indígena não pertence aos assuntos locais são identificadas com os termos índios,
relevantes da sociedade e, ao mesmo tempo, que silvícolas; como o observado nas manchetes e
os Guarani, no nosso caso, não são incluídos à textos a seguir:
categoria de nossa gente, demarcando a fronteira
entre o nós e o eles, o que somos e o que não
queremos ser. “Índios denunciam injustiças na Reserva.” (O
Progresso, 19 abr. 1983, capa).

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“Revoltados com os maus tratos, colocando a responsabilidade das informações
aproximadamente sessenta índios no denunciante, porém, o matutino não procura
compareceram ontem à tarde, na Delegacia de confirmar a denúncia, limitando-se em publicá-la
Polícia de Dourados, [...]” (parágrafo 1, o grifo como manchete de capa.
é meu). O jornal demonstrou um total
desconhecimento sobre a localização da RID,
“De acordo com os silvícolas, Ramão, apesar identificando-a como Missão Evangélica Caiuá,
de não ser índio, tem sido responsável direto que, na realidade, se localiza vizinha a Reserva:
por diversos espancamentos.” (parágrafo 2, o
grifo é meu). “Esteve ontem à tarde na redação de ‘O
Progresso’, o indígena Felipe Fernande (foto),
“Os aproximadamente 60 índios que estiveram para denunciar certas ‘arbitrariedades’ – disse
ontem à tarde na Delegacia de Polícia, ele – que vêm ocorrendo na Missão Evangélica
que se dizem representantes dos cerca de Caiuá, envolvendo problemas de terra.”
4.400 silvícolas que formam a aldeia local.” (Parágrafo 1, grifo do jornal).
(parágrafo 8, o grifo é meu).
Também demonstrou o desconhecimento
Essas formas de classificação estão do interior da RID e de seus problemas ao trocar
estreitamente relacionadas à marcação da o nome das Aldeias, Jaguapiru e Bororo, pelo
diferença e a formação da identidade, com um nome da etnia Caiuá, como pode ser observado
evidente indicador de posição-de-sujeito, marcadas no trecho abaixo: “Meu padrasto – continuou ele
por relações de poder, já que: “As classificações – juntamente com o meu irmão (respectivamente
são sempre feitas a partir do ponto de vista da Severiano Rodriguez e Milando Fernande), são
identidade. Isto é, as classes nas quais o mundo donos de uma terra na aldeia Caiuá.” (parágrafo
social é dividido não são simples agrupamentos 2, o grifo é meu).
simétricos. Dividir e classificar significa, nesse Essa troca de nomes não mostra só
caso, também hierarquizar.” (Silva, 2000, p. 82). desconhecimento que o diário douradense tem da
O texto foi todo apresentado por meio do realidade da RID, mas também o total desinteresse
discurso indireto, no qual fica claro para o leitor pelo fato, que é tratado com curiosidade pelo
que a responsabilidade das informações é dos matutino, pelo aspecto inusitado da situação: a ida
denunciantes e a posição do jornal se restringe a de um índio à redação para fazer uma denúncia.
sua publicação. Essa postura editorial evidencia o Associado a esse fato está a contenção de despesas
pouco interesse, dos editores, em investigar ou em e falta de estrutura do jornal, o que proporciona
checar a veracidade das acusações. uma notícia fundamentada somente em denúncias,
Essa falta de interesse, apesar da gravidade sem checar a veracidade das mesmas. Ao atribuir a
da denúncia, mostra que o jornal O Progresso responsabilidade das informações ao denunciante,
trata o assunto com descaso posto que nem mesmo o periódico passa para o leitor uma postura
o Chefe do Posto local da FUNAI, citado mais de editorial de isenção.
uma vez como omisso, foi procurado pelo repórter Ao mesmo tempo, O Progresso deslegitima
responsável para dar a sua versão dos fatos: “[...] o autor indígena, colocando em dúvida a fala deste:
denunciaram para as autoridades todo tipo de “[...] para denunciar certas ‘arbitrariedades’ – disse
irregularidades e injustiças, que segundo ele, vêm ele [...]”. Essa dúvida acarreta uma descrença na
sendo praticadas pelo capitão Ramão Machado versão contada, levantando uma suspeita sobre
que, para isto conta com a omissão do Chefe do o fato e sobre o denunciante, que provavelmente
Posto Indígena.” (parágrafo 1). estaria mentindo.
Aliado a esse descaso, o matutino Em ambas as notícias ocorre a classificação
deslegitima os denunciantes, “[...] que se dizem genérica das etnias envolvidas. Ao deter o
representantes dos cerca de 4.400 silvícolas privilégio de classificá-los, como índios ou
que formam a aldeia local [...]”, colocando em silvícolas, o jornal O Progresso passa a deter
dúvida a representatividade que eles dizem ter também o privilégio de atribuir diferentes
da população indígena. Dessa forma, o jornal valores a esse grupo social que é representado
transforma a denúncia em um ato de mentirosos como desordeiro, sem representatividade junto
e de desordeiros. à população indígena local, mentirosos e sem
Em outra notícia publicada no dia 15 de credibilidade nas suas informações.
julho de 1980, com o título “Estão querendo Também é evidente, nesse período, a
tirar a terra de meu padrasto à força, denúncia utilização do indicador do tópico índios para
indígena”, se repete a postura de isenção do jornal, noticiar ações de entidades religiosas e dos

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órgãos governamentais que trabalham junto legítima de direitos [...]” (Matos, 2001, p. 89).
às populações indígenas. Entre as entidades Essas representações da imprensa nacional
religiosas o maior destaque foi para o Conselho são acompanhadas pelo O Progresso, pois grande
Indigenista Missionário – CIMI; a Missão parte das notícias, envolvendo a questão indígena,
Evangélica Caiuás vem a seguir com poucas tinha origem nas agências e enfocavam a violação
aparições nas páginas do matutino. Com relação dos direitos indígenas ou a promoção das
aos órgãos governamentais, a Fundação Nacional comunidades, por meio de projetos agropecuários,
do Índio – FUNAI foi a que apareceu na maioria justificando o lugar estabilizado do índio em suas
das notícias, sendo que a Universidade Federal de páginas nesse período, mas com uma preferência
Mato Grosso do Sul – UFMS ganha um pequeno para o de outras localidades do país.
destaque, principalmente nos meses de abril no Um exemplo dessa preferência, do jornal O
qual se comemora o Dia do Índio, promovendo Progresso, em destacar índios de outras localidades
encontros e debates sobre a questão indígena. foi encontrado na coluna social Rotatividade,
Como não poderia faltar, há também várias escrita por Adiles do Amaral, em 05 de novembro
notícias envolvendo políticos e suas atividades de 1980, que tem como título: Índios brasileiros
relacionadas com a questão indígena. são 187.801, segundo o CIMI. A notícia apresenta
Quanto ao lugar estabilizado, nas páginas do um levantamento populacional realizado junto aos
diário douradense, costatamos que tal espaço não é povos indígenas de todas as regiões brasileiras.
uma conquista dos Guarani, como também não é uma Essas regiões estão divididas e apresentadas,
exclusividade do jornal em questão, mas sim uma no corpo da matéria, na seguinte ordem: região
estratégia usada, nesse período, por toda a imprensa Norte-1, setor Acre-Rondônia; região Norte-2
nacional, para driblar a censura militar, provocada (Amapá e Pará), região formada por Maranhão-
pelo AI-5, durante o período ditatorial. Essa estratégia Goiás; região leste-nordeste; região sul (São
consistia em utilizar a questão indígena como válvula Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do
de escape por aqueles que discordavam do regime Sul) e Mato Grosso.
militar (Matos, 2001, p. 88). Assim, notamos que o Os parágrafos do texto estão divididos pelas
jornal O Progresso, ao promover esse lugar, estava regiões e se apresentam com pequenas variações
em consonância com o ideário proposto pela classe na apresentação das palavras como pode ser
jornalística. observado abaixo:
Segundo Matos (2001), a imprensa brasileira,
principal alvo da censura, mudou o enfoque relacionado “A região Norte-1 também apresenta o maior
à questão indígena durante o regime militar, deixando número de grupos indígenas – 58. O grupo
de explorar a imagem exótica do índio para criar uma Tucuna, em São Paulo de Olivença-Tefé
nova imagem: a do índio político. Para isso acontecer, (AM) é o que possui a maior população – 15
os jornais deixaram de publicar reportagens culturais mil índios – vindo a seguir a tribo Macuxi de
e passaram a dar ênfase às questões sociais indígenas, Boa Vista (Roraima) com 12.740 membros.”
transferindo sua apresentação para junto dos assuntos (parágrafo 2);
políticos.
Essa transformação, de índio exótico para “No setor Acre-Rondônia estão concentrados
ator político, foi usada para expressar os direitos 24 grupos e o que possui a maior população é a
civis dos cidadãos brasileiros durante a repressão tribo Caxinauá, localizada em Sena Madureira
do regime militar. Para tanto, a imprensa nacional com 2.035 indígenas do tronco lingüístico
passou a retratar o índio como integrante da sociedade Pano.” (parágrafo 3).
brasileira, com direitos legítimos e, sobretudo, “[...]
como uma parte exemplar dessa sociedade, capaz de “A região Norte-2 (Amapá e Pará) apresenta
representar a realidade vivida naquele momento pelos 26 grupos. O maior deles e o Mundurucu, com
brasileiros de uma maneira geral.” (Matos, 2001, p. 3.637 indígenas, no trecho Maués (Amazonas)
89). – Itaituba (Pará).” (parágrafo 4).
Para levar adiante a sua estratégia, a imprensa
nacional recorreu à imagem romântica do bom Os dados relativos à região estudada só
selvagem, do nobre selvagem cuja essência foi apareceram no último parágrafo, que informa:
utilizada para expressar o ser brasileiro e, nesse
momento, para expressar a essência política, isto é “Finalmente, no Mato Grosso, há 37 grupos.
“[...] o índio foi usado para expressar os direitos civis A maior população é a da tribo Terena com
dos cidadãos brasileiros, ameaçados pela ditadura 10.300 membros, no distrito de Miranda,
militar. Como conseqüência ideológica, a questão município de Aquidauana, no Mato Grosso do
indígena destacou-se, na imprensa, como uma questão Sul.” (parágrafo 8).

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Para encerrar a notícia é apresentada a com a posição editorial adotada pelos proprietários
seguinte tabela: do jornal, que estão compromissados com os
ideais propostos pelas elites e com os projetos
“De acordo com o levantamento do CIMI, a desenvolvimentistas empregados pelo governo.
população indígena está assim distribuída: Na identidade que estava sendo criada para o
Mato Grosso do Sul, a população indígena não
1 – Acre-Rondônia. .. . . . . . . . . . . . . . . . . 10.490 encontrava espaços, uma vez que sua imagem,
2 – Roraima-Amazonas (parte do Estado). .. 72.026 associada ao primitivismo, ao atraso, não
3 – Pará-Amapá. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10.716 combinava com a representação de progresso
4 – Maranhão-Norte de Goiás. . . . . . . . . .. 9.578 associado à região.
5 – Mato Grosso (Norte e Sul). .. . . . . . . . 33.052 A partir de 1983 até o final da década, os
6 – Leste-Nordeste. . . . . .. . . . . . . . . . . 32.554 Kaiowa e Ñandeva ganharam mais destaque
7 – Sul. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14.405 nas páginas do jornal O Progresso. Os 18%
Total. . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 182.801 dos três primeiros anos passaram para 70% das
Grupos arredios. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15.000 notícias veiculadas nesse período. Esse aumento
Destribalizados. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30.000 estava relacionado a dois fatores: o primeiro
Total Geral. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 227.801” dizia respeito ao elevado índice de violência que
ocorria no interior da RID. Essa violência chegava
Em uma análise mais detalhada do artigo, ao jornal, como vimos anteriormente, por meio de
notar-se-á a existência de uma divergência nos denúncias dos próprios índios e de pessoas ligadas
números apresentados. Enquanto a manchete, à causa indígena. As acusações, na sua maioria,
o principal atrativo para o leitor, estampa a estavam relacionadas aos abusos praticados pelo
frase Índios brasileiros são 187.801, a tabela órgão tutor e pelo capitão Ramão Machado.
encontrada no final do texto apresenta um total Permanecia o enfoque dado pelo jornal, nas
diferente: 227.801. Em sua manchete Adiles não matérias envolvendo a violência, de deslegitimar
contabiliza os índios arredios e os destribalizados, as denúncias e enfatizar que estas têm fins
induzindo o leitor ao não pertencimento deles na políticos, estando relacionadas com a disputa pelo
categoria índio. cargo de Capitão da Aldeia.
A reportagem evidencia o quanto a população O segundo referia-se ao assassinato do líder
indígena sul-mato-grossense é preterida. Somente ñandeva Marçal de Souza – Tupã’i, ocorrido
no último parágrafo do texto ela é apresentada, em novembro de 1983, na Aldeia Campestre,
divergindo da tabela apresentada onde se encontra município de Antonio João-MS. As repercussões
na quinta posição. Em sua nota, a colunista faz do assassinato de Marçal e do processo penal,
referência à tribo Terena, com 10.300 membros, que nunca chegou a penalizar os culpados, foram
como sendo a maior população do estado. Porém, responsáveis pelo grande número de notícias,
um comunicado da CNBB, com o título: Apelo envolvendo este atentado, publicadas até o final
da igreja do MT e MS em favor dos índios, da década de 1980. O foco dessas notícias era
publicado em O Progresso, na edição do dia 28 de a valorização da imagem do líder assassinado,
outubro de 1980, aponta somente na “[...] região apresentando suas qualidades, destacando sua
da Grande Dourados, cerca de 10.000 índios oratória e a sua luta em defesa da causa indígena.
Guarani-Kaiowá sobrevivem [...]” (parágrafo 2), Além desses dois fatos, ocorreu também um
dados comparáveis à população Terena do texto e aumento nas notícias relacionadas ao movimento
silenciado por Adiles em sua coluna. Mesmo com social de retomada dos antigos territórios de
um número populacional semelhante aos Terena e ocupação Kaiowa-Guarani. Esse movimento, que
habitando a região de maior circulação do jornal, nos cinco primeiros anos da década de 1980, vinha
a autora não fez menção, em momento algum, aos sendo silenciado pelo O Progresso começou,
Kaiowa e Ñandeva. a partir da segunda metade da década, a ocupar
Associado a esse silêncio, o parágrafo cada vez mais as páginas do diário douradense.
confunde o leitor já que inicia a apresentação dos A divulgação desse movimento trouxe consigo
dados da região com referência “[...] no Mato uma mudança na postura editorial do jornal que
Grosso, onde há 37 grupos. A maior população é passa a identificar, cada vez mais, os agentes desse
da tribo Terena [...]”, dando a entender que a tribo movimento pela etnia; em detrimento da utilização
em questão pertence a Mato Grosso, para só nas de termos genéricos. Essa mudança editorial pode
últimas palavras, esclarecer que sua ocupação ser observada nas publicações abaixo destacadas:
ocorre no “[...] município de Aquidauana, no
Mato Grosso do Sul”. “Caiuás invadem posto agrícola.” (O
Essa exclusão dos Guarani está de acordo Progresso, 03 jun. 1986, p. 03).

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“Um grupo de aproximadamente 80 índios “A Polícia Militar de Dourados realizou
caiuás retornou a uma área [...]” (Parágrafo 1, na manhã do último dia 13, uma ação de
o grifo é meu). reintegração de posse [...] despejando cerca
de 100 indígenas da tribo caiuás.” (Índios são
“Caiuás retornam à Jarara e têm apoio dos despejados de fazenda (de novo). O Progresso,
terenas” (O Progresso, 27 fev. 1987, capa). 15 mai. 1987, manchete de capa, parágrafo 1).

“Os duzentos indígenas da tribo caiuás que O jornal destacou que as ações de
foram expulsos [...] estão retomando a área, reintegração de posse ocorreram de forma ordeira
agora, com apoio dos Terena”. (Parágrafo 1, o e pacífica sem a necessidade do emprego de força
grifo é meu). física, tendo o acompanhamento do juiz e de
funcionários da FUNAI:
Essa mudança editorial tem como foco a
coletividade, mencionando sempre um grupo “[...] ‘a ação policial militar foi acompanhada
enquanto para os casos individuais utilizam os pelo juiz Paulo Afonso de Almeida e por
termos genéricos, como se pode observar nos dois representantes da Fundação Nacional do
trechos a seguir: Índio, dando-se de forma ordeira e pacífica’.”
(Índios são despejados de fazenda (de novo).
Indígena estupra enteada. (O Progresso, 06-07 O Progresso, 15 mai. 1987, parágrafo 4, grifo
set. 1986, capa). do jornal).
“O índio Getúlio Barroso, 29 anos, lavrador.”
[...] Fora as ações de cumprimento de ordens
“Em seu depoimento, o índio disse que é judiciais, a Polícia Militar também foi citada em
amasiado com [...]” (Parágrafos 1 e 3, o grifo ocorrências extrajudiciais, aliada a fazendeiros e
é meu). jagunços para expulsar comunidades indígenas
Índio pratica suicídio. (O Progresso, 20 abr. por conta própria e de forma violenta:
1988, p. 03).
“O proprietário da Fazenda Redenção [...]
“Por motivos ainda não esclarecidos, o expulsou no último sábado à tarde (dia 2),
silvícola, Mariano Cabreira, 25 anos, da aldeia 16 famílias de índios guarani-caiwá, da
Bororó.” Aldeia de Jaguapire, numa área excedente da
[...] fazenda, acompanhada [sic] de 23 jagunços
“O índio foi encontrado por seus companheiros e três soldados da PM de Tacuru.” (Tacuru:
[...] chegando eles avistaram o corpo do Índios estão decididos em retornar à aldeia. O
silvícola.” (Parágrafo 1 e 2, o grifo é meu). Progresso, 08 mar. 1985, p. 3, parágrafo 1).

Fica evidente que essa nova postura editorial “Os índios foram humilhados e violentados
do jornal, classificando a coletividade, estava pelos fazendeiros que, num grupo de 27 homens
totalmente relacionada com o movimento de e três soldados da Policia Militar, derrubaram
reocupação dos territórios tradicionais, uma vez casas e destruíram.” (Índios retornam à Tacuru
que as nomeações genéricas continuaram para as sem violência. O Progresso, 26 mar. 1985,
questões individuais. manchete de capa, parágrafo 3).
Também em relação a esse movimento
social, o jornal O Progresso demonstrava que Nesses casos de expulsões, praticados pelos
este era tratado, nesse período, como caso de fazendeiros com auxílio de jagunços e policiais
polícia. Os militantes desse grupamento social militares, o jornal destacou a violência praticada
eram invasores, condenados pela justiça por contra os indígenas, enfatizando a violação dos
desrespeitarem a propriedade privada: direitos e da lei:

“A retirada de mais de 100 indígenas da “[...] 23 jagunços e três soldados da PM de


Estância São Miguel Arcanjo, em Caarapó, Tacuru, entre eles o cabo Alivio Cyles Pereira,
efetuada pela Polícia Militar cumprindo que espancaram brutalmente diversos índios.”
mandato de reintegração de posse.” (Caiuás [...]
despejados de fazenda. Indígenas não querem “Enquanto os jagunços do fazendeiro batiam
famílias. O Progresso, 02 dez. 1986, p. 03, nos patrícios, os soldados cutucavam com as
paragrafo1). metralhadoras e um deles rodeou as casas com
um revólver e catou as crianças para botar no

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caminhão’, explicou o índio Silvio Gimenes, cinco indígenas, completamente bêbados,
filho do capitão da Aldeia.” (Tacuru: Índios tentou evitar que a mudança dos caiuás fosse
estão decididos em retornar à aldeia. O descarregada [...] obrigando a detenção de todos
Progresso, 08 mar. 1985, p. 3, parágrafos 1 e 3). por 30 minutos, já que muitos estavam armados
de espingardas, facas, estiletas e punhais,
Nota-se que na postura editorial, a armamento apreendido pelos soldados.”
apresentação da denúncia por meio do discurso (Caiuás despejados de fazenda. Indígenas não
indireto permanece, porém, nesse caso o jornal querem famílias. O Progresso, 02 dez. 1986, p.
não desqualificou o denunciante como ocorreu 3, parágrafos 3 e 6, grifo do jornal).
em outras notícias. Nessa matéria, o matutino
douradense deu credibilidade às denúncias já que A análise da postura editorial do jornal O
o índio explicou o acontecido, enfatizando a sua Progresso, em relação ao processo de retomada
posição hierárquica: filho do capitão da Aldeia. dos antigos Tekoha, demonstrou uma dualidade
Ao contrário do que possa parecer, essa nas representações que envolvem esse movimento.
postura editorial, de apoio à causa indígena, foi Por um lado, ocorreu uma defesa do movimento
de encontro às representações criadas para a dos Guarani, principalmente nas notícias que
região, por meio da propagação de imagens de retrataram a desocupação ilegal das áreas
gente ordeira, civilizada, já que o ato praticado ocupadas. Essa defesa esta em consonância com
pelo fazendeiro se iguala ao de selvageria, o ideário propagado pelo matutino, que abomina
estando em desacordo com o ideário das elites os atos de violência e de desrespeito à lei, atos
locais, e foi praticado por gente de fora uma vez esses que reportam ao estigma da barbárie e não
que o fazendeiro “[...] viajou para Umuarama, condizem com a imagem de gente ordeira. Por
no Paraná, onde possui outra propriedade [...]” outro lado, desqualifica o movimento ao publicar
(Tacuru: Índios estão decididos em retornar à as retiradas por ordem judicial e ao afirmar que os
aldeia. O Progresso, 08 mar. 1985, p. 3, parágrafo envolvidos na ocupação não possuíam o apoio da
18). comunidade, pois, os mesmos são rejeitados pelos
Em momento algum as reportagens de habitantes e pelo capitão da Reserva à qual foram
expulsão citaram a postura FUNAI ou se quer enviados. Essa rejeição da comunidade demonstra
fizeram menção ao seu posicionamento frente que os envolvidos na ocupação não passam de
às ações de retirada dos índios sem sentenças desordeiros, desocupados e violentos.
judiciais, excluindo a responsabilidade do órgão A partir da segunda metade da década
tutor desses casos, pelo silêncio. Porém, o jornal analisada, o diário douradense começou a
fez menção às críticas do CIMI, por meio do seu publicar os casos de suicídio entre os Guarani. A
advogado, em relação à postura adotada pelo primeira notícia sobre o suicídio ocorreu em 13 de
órgão tutor: novembro de 1985, com o título Indígena suicida-
se e menor morre atropelado, em chamada de
“Segundo, ainda, o advogado (do CIMI), a capa para a página três. Na matéria publicada,
FUNAI regional Mato Grosso do Sul nada o jornal mistura duas notícias, há também um
faz: não procura agilizar o processo para a atropelamento ocorrido na cidade, sendo que
demarcação da área; não garante a posse da o caso de suicídio não é confirmado. O indício
terra para os índios; e não faz nada quando de suicídio foi relatado em um parágrafo e a
ocorre uma desocupação.” (Tacuru: Índios responsabilidade das informações coube a fontes
estão decididos em retornar à aldeia. O policiais:
Progresso, 08 mar. 1985, p. 3, parágrafo 11).
“Na segunda-feira pela manhã, o chefe do Posto
Apesar das denúncias de violação dos direitos Indígena de Dourados, Júlio Matsuharo Oshiro,
adquiridos pelos indígenas, o jornal O Progresso comunicou a Delegacia Central de Polícia,
desqualificava o movimento social dos Guarani, que havia sido localizado em um matagal na
mostrando a desunião entre seus membros e reserva, o corpo de uma menor, com 15 anos,
enfatizando as representações negativas. Eles D.D., com uma corda no pescoço e sentada no
seriam violentos, bêbados e selvagens: galho de uma árvore. Conforme informações
de fontes policiais, o corpo mostrava sinais
“[...] o ‘capitão’ da reserva de Caarapó negou- de estar no local há mais de um dia, embora
se a receber as famílias caiuás.” somente hoje os médicos legistas vão terminar
[...] a autópsia. Há indícios de que a morte ocorreu
“[...] um início de tumulto foi registrado por suicídio.” (parágrafo 3).
na chegada à reserva, onde um grupo de

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No ano de 1986, o jornal O Progresso um suicídio, por enforcamento, cujo motivo foi
publicou, nos meses de abril e maio três notícias uma briga conjugal: “Mais um índio da reserva
sobre o suicídio: de Dourados pôs fim a vida: Odemar da Silva, 21
anos, casado, na noite de domingo se enforcou,
Mais um índio suicida-se. É o quarto caso este após discussão com sua esposa, Aparecida Rosa.”
ano. (O Progresso, 01 abr. 1986, manchete de (Parágrafo 1).
capa). O assunto suicídio só voltou às páginas do
jornal O Progresso no ano de 1988. Na notícia
Aumenta o número de suicídios entre índios. (O Proibida a entrada de estranhos na Reserva,
Progresso, 17 abr. 1986, manchete de capa). publicada no dia 15 de abril de 1988, o diário
douradense dedicou um amplo artigo, com
Outro índio pratica suicídio. (O Progresso, 20 discursos diretos e indiretos do chefe do Posto da
mai. 1986, manchete de capa). FUNAI, nos quais ele opina sobre as causas dos
suicídios praticados pelos Guarani:
Na primeira manchete, a postura editorial e o
espaço dedicado ao caso permaneceram o mesmo “O problema do suicídio entre os índios
da notícia relatada acima. Mesmo sem saber o continua existindo. ‘Isso é quase natural entre
motivo do gesto, o diário douradense enfatizou eles devido sua mentalidade e raciocínio lento e
que o ato praticado pelo índio é uma tendência são muitos sensíveis, não suportando emoções
natural de se matar: “A Delegacia Regional de mais fortes’ esclareceu Joel.”
Polícia não conseguiu ainda levantar o motivo do [...]
gesto, muito embora haja uma tendência natural “A maioria dos suicídios ocorre justamente
entre os membros de algumas tribos de se matar.” depois uma briga entre casais e quando há
(parágrafo 1). morte de um membro mais velho da família.
Embora o matutino anuncie que esse foi o ‘Os índios não estão preparados para reagir
quarto caso ocorrido no ano, em nenhuma edição perante algum problema de ordem sentimental’
anterior foi encontrada qualquer referência a eles. [...] existe ainda aquela crença de que o espírito
Essa postura editorial demonstra que os casos de do morto fica rondando o índio e ele pensa que
suicídio, nesse momento, não mereceram destaque tem que morrer também.” (parágrafos 13 e 14,
por parte do periódico, pois são corriqueiros e sem grifo do jornal).
importância.
Na segunda, publicada sobre um fundo preto, A última notícia, no período estudado,
o matutino relata que os motivos, dos sete casos envolvendo os suicídios foi publicada no dia 25
ocorridos até aquele momento, não foram bem de abril de 1989, na última página, no Caderno
explicados pelos familiares e pelas autoridades. Polícia, com a manchete Casal de índios separa-
Porém, o jornal volta a enfatizar que os motivos se e depois praticam [sic] suicídio, onde relatou:
culturais acarretaram os suicídios: “Um casal de silvícolas, ambos menores de idade,
morreram [sic] no final de semana que passou,
“Uma versão que pode explicar as tentativas e depois de praticarem suicídio.” (Parágrafo 1).
os suicídios é sobre o ‘feitiço’ que cairia sobre os O jornal O Progresso constrói a imagem
casais de namorados. Dizem que se o cônjuge ou do indígena a partir de uma visão fóbica, ou seja,
o parceiro morre, o outro deve seguir o mesmo a de um povo selvagem, cruel, rústico, natural
caminho caso contrário ficaria ‘enfeitiçado’ se e ingênuo. Revela, dessa forma, uma visão
continuasse vivo. Isso justificaria a morte do etnocêntrica, onde a cultura do outro é inferior a
rapaz em Dourados, depois que sua namorada e cultura do nós. Os não índios seriam superiores
a cunhada cometeram suicídio.” e civilizados e os indígenas inferiores e não
[...] integrados à nacionalidade. Seu exotismo deve-
“Apesar destes inúmeros casos na área do se ao real estado de selvagens e do seu acelerado
posto da FUNAI em dourados [sic], não se tem processo de marginalização. Essa visão é fundada
conhecimentos de estudos de avaliação deste no desconhecimento do outro ou no conhecimento
comportamento, quase um instinto de auto- superficial daquilo que o outro tem de diferente,
destruição, que prevalece em muitas tribos como sua pele e a sua selvageria (Todorov, 1993,
indígenas.” (parágrafos 9 e 12, grifo do jornal). p. 142-148). A RID é representada como um lugar
longínquo, isolado, marcado pela violência e
Na terceira reportagem, o jornal O habitado por selvagens.
Progresso limitou-se, em dois parágrafos, a Em todas as matérias publicadas sobre
publicar a informação sobre a ocorrência de mais o suicídio, na década de 1980, o jornal O

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Progresso deixou claro para o seu leitor que a Quando os indígenas falam por si mesmo
prática do suicídio é uma tendência natural na são vistos com desconfianças, como agitadores
cultura indígena, pois é movida pelo instinto de que querem criar dificuldades às autoridades e
autodestruição e pela incapacidade mental de seus aos órgãos governamentais. Nesse sentido, o
membros que possuem mentalidade e raciocínio discurso jornalístico, empregado pelo jornal,
lento, aspectos que comprovam sua inferioridade defendia a ininterrupta e onipresente tutelagem
e selvageria. Essa desqualificação do indígena, das populações indígenas, que seriam incapazes,
atribuindo-lhe um estado selvagem em que não portanto deveriam ser submetidos, disciplinados,
consegue controlar o seu instinto primitivo de se julgados e governados. No entanto, embora os
matar, se baseia nas representações que ligam o indígenas constantemente estivessem apagados
índio com o natural, portanto com o atraso, com enquanto notícias, eles estavam ali. Às vezes,
o estigma da barbárie, reforçando a imagem de sem a intenção de dar voz e vez, por serem
gente bestial, de pouco saber (Zorzato, 1998), irrepresentáveis, o jornal O Progresso acabava
(Galetti, 2000) e (Limberti, 2003). apresentando a fala dos indígenas. A resistência
As representações dos indígenas reforçam dos indígenas falava aí. Ou seja, é no interior do
a autoridade do órgão tutor, dos políticos, da discurso jornalístico que as vozes dos indígenas
imprensa, da justiça, da polícia e dos proprietários irrompem e o matutino publicava uma fala que
de terras sobre essas populações. Said, ao analisar não era sua: o discurso do outro, tirando-o do
a autoridade do Ocidente sobre o Oriente, afirmou silenciamento.
que ela Ao representar o outro com tons negativos
cria-se uma representação positiva dos não índios.
“[...] é formada, irradiada, disseminada; é Se o índio é selvagem, irracional, infantil, suicida,
instrumental; é persuasiva; tem posição, preguiçoso, vagabundo, anormal, doente; os não
estabelece padrões de gosto e valores; é índios seriam civilizados, racionais, maduros,
virtualmente indistinguível de outras idéias virtuosos, trabalhadores, normais e sadios.
que dignifica como verdadeiras e das tradições,
percepções e juízos que forma, transmite, Considerações FinaiS
reproduz.” (Said, 1990, p. 31).
Ao analisar o histórico da implantação
A premissa da descrição é a exterioridade do jornal O Progresso, os seus articulistas e as
moral e existencial com relação ao outro que notícias que retratam os Guarani, veiculadas na
descreve. Um outro distante, diferente moral e década de 1980, detectamos várias representações
culturalmente, amorfo, ameaçador, desprovido associadas ao ideário editorial proposto para
de energia e iniciativa. Ao representá-lo o esse diário douradense. Apesar dos discursos
silencia, evidenciando as relações de poder jornalísticos autorrepresentarem-se imparciais e
que permeiam esse campo: como os índios não neutros, é notória a sua construção.
podem representar a si mesmos, a imprensa e A análise da postura editorial desse
a FUNAI falam em seu lugar. Por outro lado, o matutino e de seus articulistas constatou um
olhar do jornal O Progresso é sempre exógeno, comprometimento com a propagação dos ideais
superficial e exótico. O matutino ao divulgar que nortearam o processo de formação da
um conjunto de discursos (políticos, religiosos, identidade sul-mato-grossense, com ênfase para
etnológicos, literários, policiais, etc.), produz o silenciamento das populações indígenas locais.
sentido e instaura uma memória. Ao não dar voz Associado a à propagação desses ideais está o
e vez aos indígenas, o diário douradense reforçou reforço das imagens negativas dos Guarani, bem
os preconceitos, a exclusão social e cultural e uma como do movimento social de retomada dos antigos
abertura incondicional com relação ao diferente, territórios, representando-os como dependentes,
ou seja, do contexto multiétnico, plurilíngue e violentos, atrasados, mentirosos, baderneiros,
culturalmente heterogêneo de Dourados. alcoólatras, traiçoeiros e que desprezam o trabalho.
O discurso jornalístico, enquanto prática A utilização do termo silvícola, em várias notícias,
social, capta, transforma e divulga acontecimentos, demonstra que o matutino os reconhece como
opiniões e ideias. Ao selecionar os acontecimentos, selvagens, inferiores e, portanto, não integrados à
o discurso jornalístico toma parte do que será civilização, à nacionalidade e ao progresso. (Silva,
lembrado no futuro e constrói, simultaneamente, 2007, p. 114).
um modo possível de recordação do passado. Porém, esse estudo não pode ser considerado
Ao produzir sentidos, auxilia na criação do conclusivo já que retratou um período determinado
imaginário, pois, os processos discursivos tecem e e nas décadas posteriores os conflitos envolvendo
homogeneízam a memória de uma época. os Guarani se intensificaram.

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