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SER
Transcrito do Livro Nada de Atuação, Por Favor! De Eric Morris
SOBRE SER
Atuar é a arte de criar uma realidade genuína no palco. Seja Não importa que material
seja, a pergunta fundamental do ator é: Qual é a realidade e como posso fazê-la real
para mim? Neste tipo de treinamento o ator se descobre por inteiro, tanto no palco
quanto fora dele, já que os exercícios deste livro exigem, repetidamente, uma integração
entre viver e atuar. É uma maneira de viver, não apenas outra forma de trabalho.
Nos primeiros anos eu ensinei atuação ao pé-da-letra. Fui fiel às técnicas derivadas de
Stanislawski e minha abordagem para criar realidades no palco cercava a memória
sensitiva e afetiva, a escolha de deveres, etc. Durante este período, foi crescendo em
mim a consciência de que alguns atores conseguiam usar o método muito bem, e outros,
também talentosos, não conseguiam usá-lo: não funcionava para eles. Mesmo para os
atores que o usavam muito bem, sobravam enormes áreas inatingíveis e seu trabalho
acabava por parecer clínico e acadêmico. Fiquei frustrado. Comecei a duvidar do
“Método” como abordagem total, passei a acreditar nas palavras pessimistas de Mestres
de Atuação, que diziam que só dois por cento dos atores, são capazes de usar o
“Método”, e até em meu próprio trabalho como ator, me senti frustrado, decepcionado
com os resultados que estava conseguindo. Foi neste momento que comecei a me fazer
alguns questionamentos, tais como o que fazer para a mesma técnica funcionar para
todos. Ninguém é igual. Todos têm medos diferentes, diferentes inibições, uma escala
de preocupações diversas e certamente, formações também diversas. Por que os atores
têm medo de falar de si mesmos, de forma pessoal? Por que os professores de
interpretação se intimidam ao discutir os elementos pessoais na atuação? Por que todos
guardam tantos segredos?
Acabei concluindo que, enquanto houver apenas murmúrios quanto ao uso de sua vida
pessoal e ao aprofundamento em suas próprias emoções, poucos atores terão coragem
de fazê-lo e a maior parte dos professores não terá sequer consciência da necessidade
deste tipo de busca. Não se ensina um homem a correr se ele não tiver pernas. Não se
pode ensinar alguém a atuar, se ele não estiver conectado ao seu eu interior. Comecei a
desenvolver uma abordagem da atuação que embarcava em uma busca da
personalidade e levava ao uso desta mesma personalidade no palco. Ao redor desta
abordagem, apareceu um completo sistema de trabalho que incluía algumas das práticas
do “Método”, mas estas práticas, agora, se tornavam realmente aplicáveis porque
emanavam diretamente de um núcleo pessoal. Descobri que, uma das razões pelas quais
muitos artistas não conseguiam usar o sistema de Stanislawski, era por causa da
separação entre técnica e realidade pessoal. Como pode funcionar um sistema criado
para ser um trabalho pessoal, com atores que não são pessoais e nem sequer sabem
o que sentem?
Inventei exercícios que exigiam que os atores buscassem e expressassem seus próprios
pontos de vista sobre tudo. Centenas de exercícios evoluíram a partir do trabalho com
atores que estavam lutando contra problemas pessoais. Alguns destes exercícios foram
batizados em homenagem a esses atores para quem eles foram criados, apesar de, mais
tarde, terem funcionado para outros. Nasceram as Rodas. Exigi que os atores se
“encontrassem” nos Exercícios de Relutância, em Torrente de Honestidade da
Consciência, em Reconstrução do Ego e outros Exercícios de Roda (descreveremos
todos estes exercícios mais tarde). Encorajei-os a serem extremamente pessoais uns com
os outros, a exorcizar suas vidas sociais impostas, para experimentar o “Momento da
Verdade”, sem se importar com conseqüências imaginárias.
No começo foi uma desordem: as pessoas se ofendiam, saíam das aulas, se
arrebentavam e gritavam, ficavam histéricas. Mas começou a acontecer com aqueles
atores algo importante que jamais havia acontecido antes em seus trabalhos: um tipo de
realidade visceral tomou o lugar de suas preocupações com sua aparência, com o som
de sua voz ou como a cena deveria fluir. Comecei a ver pessoas de verdade em cena,
como eram antes de estar atuando. As pessoas estavam começando a SER! A princípio
apenas em breves momentos aqui e ali, mas a diferença entre SER e ATUAR era
brilhantemente óbvia para todos nós. Uma vez que estes atores haviam experimentado
este momento de SER, seus apetites haviam sido estimulados a querer mais. Tanto os
atores, quanto o público se viram insatisfeitos com menos do que a verdade.
Em minhas aulas, incitei cada ator a fazer primeiro a coisa mais difícil, pois então todos
os problemas menos difíceis se extinguiriam com um golpe cruel. Por exemplo, uma
moça veio à aula, tensa, possivelmente com uma formação de escola paroquial,
querendo atuar desesperadamente, mas paralisada com sua preocupação em ser boa
moça. O primeiro exercício que eu lhe daria deveria ser um “Vulgaridade”, ou talvez,
“Sensualidade”, ou até um “Anti-social”. Se fosse Vulgaridade, eu pediria a ela que se
levantasse diante de toda a classe e fosse rude, baixa, colocasse a mão no nariz,
cutucasse as orelhas, arrotasse, praguejasse e colocasse a mão na virilha. Todas estas
coisas poderiam ser opressivamente difíceis para ela fazer. Mas, ainda que ela fizesse
apenas uma parte disso, o gelo seria quebrado: a classe aceitaria e a encorajaria e assim,
a atmosfera seria permissiva, apoiando sua consciência de ter o direito de fazer aquelas
coisas e tudo estaria correto. Depois deste único exercício, a atriz estaria liberta de todo
um aglomerado de maneirismos sociais que se postariam entre ela e seus verdadeiros
sentimentos.
Os resultados destes “Exercícios-terapia” foram impressionantes. O que persistiu como
um problema para o aluno em meus primeiros cinco anos como professor, foi atenuado
e em alguns meses, desapareceu. A resolução de problemas como este nos permitiu
chegar mais fundo na vida rica que jaz sob a pele. No processo de se descobrirem, os
atores tomavam consciência não apenas do que sentiam numa base de momento-a-
momento, aqui e agora, mas também da trilha de coisas que os afetaram durante toda a
sua vida. Agora, eles já não estavam usando apenas as escolhas sensoriais que soavam
bem e eram usáveis em cena. As escolhas sensoriais se tornaram mais pessoais,
particulares e comoventes. Estávamos começando a tocar o núcleo da personalidade
individual. Uma realidade mais pessoal e excitante começou a existir no palco, na
moldura de uma cena, não consistentemente de primeira, porém com cada vez mais
trabalho contínuo. Durante as aulas, eu sempre deixei para os atores uma dica, um
“Docinho”, que contém uma declaração, um pensamento ou um conceito criado para
atingir algo específico ou inspirar o ator a pensar em uma área de perícia ou em uma
preocupação pessoal. Algumas vezes, uma simples dica de poucas palavras pode tomar
o lugar de uma crítica longa e zerar tudo perante a visão superior de todo o problema.
Docinho (DICA):
O exercício de SER, seja sozinho ou em grupo, muda a cada vez por causa do
verdadeiro estado de SER de cada ator. As coisas que ele faz para evitar SER são
únicas. O sucesso do exercício, depende da perícia do professor, ou diretor. O exercício
de SER pode se tornar uma ferramenta de manipulação da mente, nas mãos de um
diretor ou professor que não compreenda totalmente ou não que não tenha
experimentado isso consigo mesmo. Cabe a mim ser responsável por manipulá-los
conscientemente, por presumir suas reações e levá-los a certas áreas. Preciso reconhecer
a diferença entre manipulação criativa e manipulação destrutiva. As motivações do
professor e sua percepção de saber o que dizer e quando dizer, são fatores cruciais e
fazem toda a diferença.
A Perícia para atuar é a arte de SER e existem muitas técnicas e centenas de exercícios
para ajudá-lo a realizar este estado! Eu espero que nas próximos aulas, você seja capaz
de aprender e usar estes exercícios e incluí-los em sua própria abordagem. Não se trata
de algo que acontece da noite para o dia. É preciso praticar diariamente. Você precisa
achar um sistema que funcione para você. E isso vai acontecer por experimentação, com
você olhando ao seu redor, indo a professores diferentes e testando as técnicas consigo
mesmo.
A maior parte dos atores aprende a atuar imitando outros atores. Quando chega a hora
em que você já passou quinze ou vinte anos observando atores em uma tela ou no palco,
você já adquiriu um repertório inconsciente completo de maneirismos e coisas a fazer.
Estas imitações o desviam de descobrir quem você é e qual é a sua contribuição. Você é
tão individual quanto suas impressões digitais e a sua individualidade é o que você tem
para contribuir. Você não é apenas a melhor coisa que tem; é a única coisa que tem! É
preciso cuidado para fazer uma ótima interpretação de si mesmo e não uma má
versão de outro qualquer!
O ator precisa tomar uma posição em algum lugar. Ele precisa decidir em que nível de
criatividade ele quer funcionar e então usar seu tempo a custo de sucesso, se for o caso,
encarar o ridículo. Ele deve encontrar e aplicar uma prática até que a transforme em um
hábito e que lhe seja absolutamente fidedigna. A maior parte dos exercícios que
veremos se tornaram técnicas vitais para terapia da atuação.
As pessoas vêm para a profissão de atores, mutiladas por todos os tabus da nossa
sociedade, regras impostas por pais, amigos, escolas e religiões. Todas estas restrições
são anti-SER. “Crianças são para ver, não para ouvir...Não responda...Pare de sonhar
acordado, é perda de tempo...Seja bonzinho...Homem não chora...Moça boa não faz
isso...” E milhares de outras instruções que corroem insidiosamente sua liberdade.
Como ator, você precisa passar a maior parte de seu tempo em um processo de
treinamento, descobrindo e liberando a si mesmo!
Mas, por causa das pressões sociais, nós, como atores, aprendemos a aceitar apenas os
elementos positivos de nosso talento e a recusar os elementos negativos. E você não
deve fazer isso. Como um instrumento de criatividade, você não pode dizer “Isto está
certo e está tudo bem para mim, sentir e expor aquilo. Mas, esta outra coisa não está
certa e não é bom para mim expor aquilo”. Você não pode fazer isso porque o que
acontece é que você dá um curto-circuito em seu instrumento. Se você se senta e diz a si
mesmo “Eu não vou mostrar a ninguém o que está acontecendo por baixo”, está pondo
uma tampa em tudo o que faz. Uma expressão conduz à outra e no instante em que cessa
qualquer impulso, o fluxo do seu SER também cessa. A maior parte dos atores está em
apuros no exato momento em que começam. O conceito inteiro de SER – SER ANTES
DE FAZER – SER ANTES DE ATUAR – é baseado em reconhecer, admitir, aceitar e
expressar tudo o que você sente.
Muitos pensam nas emoções como negativas ou positivas. Eles põem um julgamento de
valor em emoções Ótimas e Péssimas, sentimentos Bons e Maus. Eu não creio que
exista nada de negativo ou positivo em tudo o que se sente. Em audições, a maior parte
dos atores escolhe materiais altamente explosivos, através dos quais possam demonstrar
seu potencial. Pouquíssimos atores escolhem cenas simples. A razão para isso é a
concepção errônea que emoções fortes são mais importantes. Eu sou um ser humano
sensível, vulnerável e muito volúvel. Estes são os elementos positivos do meu talento.
As mesmas coisas que me fazem sensível, vulnerável e volúvel, também me deixam
inseguro, ansioso, deprimido, tenso e hostil. Os mesmos elementos que me afetam
positivamente também me afetam negativamente. Então, eu chego ao escritório do
produtor, e ele está compondo o elenco para um filme. Eu digo a ele “eu sou um
instrumento sensível, vulnerável e volúvel, mas também sou deprimido, inseguro e
ansioso? Não, eu não posso dizer isso a ele. Eu não quero que ele veja a minha
depressão e o meu medo. Então eu os escondo. E, no minuto em que eu escondo algo,
suprimo qualquer coisa, escondo tudo. E daí, não funciono.
Sendo assim, ao contrário disso, o que é que eu faço? Eu entro, me sento e ao invés de
“Oba! Que tempo lindo está fazendo hoje e como estava pesado o trânsito enquanto eu
vinha do interior”, o produtor vai me perguntar: Como vai? Eu deveria dizer “Bem eu
estou um pouco tenso porque não tenho trabalhado por um longo tempo e gostaria de
pegar este trabalho, mas tenho até medo de lhe dizer isso, porque você pode pensar que
eu sou inseguro para fazer o papel, mesmo que você me contrate. Mas, para mostrar
quem realmente eu sou, e assim você possa ver o meu talento, eu preciso começar a
partir de como estou me sentindo neste momento”.
Com esta abordagem, você pode espantar cinqüenta por cento de seus possíveis
empregadores, mas, os outros cinqüenta por cento, os amantes da verdade, vão
responder afirmativamente a você porque, fora das entrevistas quase sempre mentirosas,
você terá criado um momento significativo. Neste sentido, os estropiados poderão ser os
corredores de longa distância, vencedores de verdade. Se você expõe suas limitações e
deixa com que as pessoas as vejam não precisa mais escondê-las. Você está
funcionando em um nível de realidade e a partir de um nível de realidade em que pode
ser criativo. Uma vez que estabeleceu o seu estado de SER e está funcionando em
termos do que É, está pronto para lidar com a intenção do autor e as obrigações do
material. Você encontrará e executará uma escolha para lhe trazer o estado de vida que
o material exige. Em outras palavras, você parte de seu estado de SER existente para o
estado de SER exigido pelo material.
Docinho:
Quando você atinge um estado de SER - o que significa SER e estar, neste exato
momento, aqui e agora - incluindo tudo o que está acontecendo com você, então, está
preparado para atuar. O que se quer dizer, com a palavra “atuar”, é ir do seu estado
presente de SER, para o estado de SER, que o material exige. Por exemplo, seu estado
presente de SER é: “Estou meio relaxado agora, meio deprimido e pesado, olhando pela
janela, cansado e um pouco desanimado”, mas a obrigação emocional do seu material
precisa ser um estado de excitação e alegria, quase eufórico. O personagem na peça,
acaba de ser premiado com algo, ou conseguiu alguma coisa pela qual se sente muito
exaltado. Assim, você precisa encontrar um caminho para ir deste estado de SER em
que está, para aquele estado de SER. Algumas vezes, as exigências emocionais de seu
material são totalmente opostas ao que você está sentindo, o que lhe dá uma enorme
obrigação. Muitos atores falham porque tentam pular daqui, para lá, em um único
passo. Você pode precisar caminhar através de passos intermediários, com o fim de ir da
depressão até a alegria.
Quando você realmente esta SENDO, um estado leva para o próximo e o influencia
como várias cores diferentes correndo juntas, e se misturando, até que o próximo estado
de SER, se torna a cor dominante. Vimos atores que “pintam por números”, que estão
gargalhando em um momento, de repente, cessa a gargalhada e aparece a raiva.
Chamamos isto de técnica impositiva, um sintoma do ator anti-realidade. Na vida real,
um momento leva ao outro e se mistura com o próximo. E você vê as sutilezas
emocionais da mudança. Isto não acontece, a não ser que você esteja SENDO. Você
precisa começar da totalidade do estado de SER, porque não pode criar nenhuma vida
no palco, ou satisfazer qualquer obrigação, até que tenha vida acontecendo. Você não
pode criar vida, da ausência dela.
Quando você se pergunta: “Eu estou exprimindo como me sinto? E se não estiver, por
que não?” O “PORQUE” é a palavra mais importante. O “PORQUE” vai abrir você
para o reconhecimento das coisas que o impedem de ser você mesmo. “Porque tenho
medo do que eles vão pensar de mim”. Se esta resposta continuar aparecendo, você
precisa lidar com ela, como a constatação de um problema. “Porque eu não quero que os
outros pensem que eu quero que eles pensem que eu sou menos que realmente sou”.
Uma vez que você descobriu a razão real para o seu “PORQUE”, então tente expressar
tanto quanto possa. Você tem o direito a exercer todas as suas emoções. Ninguém, em
lugar nenhum, em nenhuma posição, tem o direito de negar o que você sente. Você tem
o direito à soma total de tudo o que você é. E não é sempre ótimo. Não é sempre bom,
ou social, ou polido, ou preocupado com os outros. Algumas vezes você é amoroso,
generoso, e ama alguém que não é amoroso e generoso, e se decepciona. Você tem
direito a esta decepção assim como a pessoa tem o direito de não amá-lo.
No momento em que você impõe, ou aceita regras para o que você deve sentir, estas
regras se transportam para o palco, ou para a câmera. Elas se transportam porque são
as regras e condições com as quais você vive. Isso não quer dizer que você deveria se
tornar um animal, bater na cabeça dos outros e roubar nos supermercados. Não é isso,
de jeito nenhum, o que queremos dizer. Há um certo nível de moralidade, no qual as
pessoas vivem. Mas, todas as pessoas têm a licença para serem elas mesmas, e
acreditamos que nós, atores, temos uma licença especial, por que nossos sentimentos
são o nosso estoque de produtos para o mercado.
LIÇÃO DE CASA!!!
Se você usar o trabalho prescrito aqui, praticar estes exercícios diariamente e fizer desta
abordagem parte de sua vida, irá experimentar este estado mágico de SER. Os
resultados com este trabalho são cheios de recompensas e maravilhosas surpresas.