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THIAGO DE MELO GOMES

A LOVE SUPREME, DE JOHN COLTRANE:


AS DIFERENÇAS E SEMELHANÇAS ENTRE
O ÁLBUM DE ESTÚDIO E SUA
PERFORMANCE AO VIVO NA FRANÇA

Monografia apresentada do Curso de Música da


Faculdade Santa Marcelina, em cumprimento
parcial às exigências para obtenção do título de
Bacharel em Música (Guitarra).

Orientador: Prof. Maurício Oliveira Santos

São Paulo
Outubro/2009
2

Aos meus pais por toda a dedicação, amor e apoio incondicional.


3

SUMÁRIO

Resumo ..................................................................................................................... 8

Introdução ................................................................................................................ 9

Capítulo I – Introdução biográfica ........................................................................... 13

Capítulo II – Estrutura composicional e arranjos do álbum gravado em estúdio ...... 21

2.1 Acknowledgement ............................................................................................ 22

2.2 Resolution ......................................................................................................... 25

2.3 Pursuance ......................................................................................................... 28

2.4 Psalm ................................................................................................................ 34

Capítulo III – Estrutura composicional e arranjos do álbum ao vivo durante o Antibes

Jazz Festival em 26 de julho na França ................................................................... 39

3.1 Acknowledgement ............................................................................................ 40

3.2 Resolution ......................................................................................................... 42

3.3 Pusuance ........................................................................................................... 43

3.4 Psalm ................................................................................................................ 45

Capítulo IV – Linha do tempo dos arranjos dos dois álbuns .................................... 47

Capítulo V – Conclusão .......................................................................................... 52

Bibliografia ............................................................................................................ 57

Discografia ............................................................................................................. 58
4

LISTA DE FIGURAS

FIG. 1 – Capa do álbum A Love Supreme de John Coltrane ..................................... 21

FIG. 2 – Riff tema do álbum tocado pelo baixo inicialmente na primeira faixa ......... 22

FIG. 3 – Os dois primeiros compassos (pergunta) do tema de “Acknowledgement” . 23

FIG. 4 – Resposta aos dois primeiros compassos do tema de “Acknowledgment” .... 23

FIG. 5 – Exemplos de acordes abertos em quartas usados por McCoy para

acompanhar o solo de Coltrane (transcrição deste Autor) ......................................... 24

FIG. 6 – Ostinato (riff) com a letra adicionada. Adição de letra por esse Autor. ....... 24

FIG. 7 – Exemplo da melodia tocada por Garrison na introdução de “Resolution”

usando a técnica de doublestops. (transcrição deste Autor) ....................................... 25

FIG. 8 – Oito primeiros compassos do tema de “Resolution” com harmonização

sugerida (a harmonia, tirada do livro Artist Transcriptions, tenor saxofone – John

Coltrane: Acknowledgemente, Resolution, Pursuance/Psalm, Hal Leonard, p.9;

melodia transcrita por esse Autor.) ........................................................................... 26

FIG. 9 – Exemplo do primeiro solo de Coltrane da música “Resolution” no qual o

saxofonista utilizada notas fora da escala de Ebm. (transcrição deste Autor) ............. 27

FIG. 10 – Exemplo do solo de Tyner da música “Resolution” no qual o pianista faz

uso de acordes quartais com dissonâncias fora da escala de Ebm. (transcrição deste

Autor) ....................................................................................................................... 27
5
FIG. 11 – Clímax do segundo solo de Coltrane da música “Resolution” (transcrição

deste Autor) .............................................................................................................. 28

FIG. 12 – Transcrição do tema com notas da escala sinalizadas e harmonia da terceira

faixa do disco (Artist Transcriptions, tenor saxofone – John Coltrane:

Acknowledgemente, Resolution, Pursuance/Psalm, Hal Leonard, p.14; sinalização das

notas feita por esse Autor) ........................................................................................ 29

FIG. 13 – Exemplo de motivo rítmico e acordes de apoio retirados do solo de Tyner

da música “Pursuance” (transcrição deste Autor) ...................................................... 30

FIG. 14 – Exemplo de acordes quartais com baixo pedal utilizados por Tyner no final

de seu solo em “Pursuance” (transcrição deste Autor) ............................................... 31

FIG. 15 – Início do solo de Coltrane da música “Pursuance”

(transcrição deste Autor) ........................................................................................... 31

FIG. 16 – Exemplo de citação da melodia de “Pursuance” retirado do solo de

Coltrane. As notas correspondentes à citação se encontram assinaladas (transcrição

deste Autor) ............................................................................................................. 31

FIG. 17 – Exemplo de citação da melodia de “Pursuance” retirado do solo de

Coltrane. As notas correspondentes à citação se encontram assinaladas (transcrição

deste Autor) .............................................................................................................. 32

FIG. 18 – Exemplo de citação 1 da melodia de “Pursuance” retirado do solo de

Coltrane. As notas correspondentes à citação se encontram assinaladas (transcrição

deste Autor) .............................................................................................................. 32

FIG. 19 – Exemplo de frase de extensa tessitura e de longo período sem respirar que

Coltrane executa no solo de “Pursuance” (Transcrição deste Autor) .......................... 32

1
Nesta citação em especial, Coltrane não utiliza as mesmas notas do tema para citá-lo, ele
transpões o primeiro compasso da melodia de “Pursuance” para um tom acima.
6
FIG. 20 – Exemplo do solo de Coltrane em “Pursuance”, frase utilizando notas fora

da escala de Bbm (Transcrição deste Autor).............................................................. 33

FIG. 21 – Final do solo de Coltrane da música “Pursuance” no qual o saxofonista faz a

transição para o solo de baixo que é realizado sem fórmula de compasso (Transcrição

retirada do livro Artist Transcriptions, tenor saxofone – John Coltrane:

Acknowledgemente, Resolution, Pursuance/Psalm, Hal Leonard, p.19) .................... 33

FIG. 22 – Transcrição das notas usadas para o verso “Thank you God” do Poema de

John Coltrane recitado na faixa “Psalm”. Adaptação da letra e transcrição deste

Autor ........................................................................................................................ 37

FIG. 23 – Motivo-tema executado na gravação ao vivo pelo baixista Garrison sem a

nota de antecipação ................................................................................................... 40

FIG. 24 – Frase retirada do início do solo de Coltrane da música “Acknowledgement”

para exemplificar o uso exclusivo 2 da pentatônica de Fm. (Transcrição por este

Autor) ....................................................................................................................... 41

FIG. 25 – Exemplo de frases rápidas retirado do solo de Coltrane da música

“Acknowledgement” versão ao vivo. (Transcrição deste Autor) ................................ 41

FIG. 26 – Exemplo de frase utilizando notas fora (notas em destaque) da pentatônica

de Fm, frase retirada do solo de Coltrane da música “Acknowledgement” versão ao

vivo. (Transcrição deste Autor) ................................................................................. 41

FIG. 27 – Motivo inicial do solo de Tyner na versão ao vivo da música “Resolution”.

(Transcrição deste Autor) ......................................................................................... 42

FIG. 28 – Exemplo de uso da região aguda do saxofone retirado do solo de Coltrane

da música “Resolution” (Transcrição deste Autor) .................................................... 43

FIG. 29 – Linha do Tempo da música “Acknowledgement” ...................................... 48

2
Neste exemplo Coltrane utiliza apenas uma nota fora da pentatônica de Fm, a nota sol.
7
FIG. 30 – Linha do Tempo da música “Resolution” .................................................. 49

FIG. 31 – Linha do Tempo da música “Pursuance” ................................................... 50

FIG. 32 – Linha do Tempo da música “Psalm” ......................................................... 51


8

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo comparar e analisar as duas gravações do

álbum A Love Supreme do grande e mundialmente respeitado saxofonista John

Coltrane. A partir das duas gravações – em estúdio de 1964 e a performance ao vivo

durante o Antibes Jazz Festival de 26 de julho de 1965 –, serão apresentados e

comparados em ambos os álbuns: estrutura das composições, acontecimentos

musicais, as diferenças e semelhanças eventualmente ocorrentes nos arranjos,

estrutura e estética dos solos (dando maior ênfase e detalhamento aos solos do

saxofonista) e contexto histórico no qual Coltrane realizou as duas gravações. Serão

usadas algumas transcrições quando necessário para enfatizar tais semelhanças ou

diferenças e será abordada a influência da religião na vida de Coltrane para a

composição e elaboração do álbum.


9

INTRODUÇÃO

Com mais de 143 álbuns gravados (contando álbuns ao vivo e em estúdio),

Coltrane adquiriu grande experiência e liberdade com trabalhos em estúdio, tanto

como sideman3 ou como líder. Em 1961 o produtor musical Creed Taylor convida

Coltrane para trabalhar para o selo IMPULSE!. Na nova 4 gravadora Coltrane teve

muito mais liberdade de opinião, o selo lançava ao menos dois discos por ano (o que o

satisfazia, mas mesmo assim, se fosse de seu desejo lançar mais algum, a gravadora o

apoiava) em seu nome, e deixou que o saxofonista escolhesse o estúdio e o engenheiro

de som que desejasse. O escolhido foi Rudy Van Gelder e seu estúdio em Nova

Jersey.

Enquanto [Coltrane] estava [contratado pelo Atlantic], eu construía o novo


estúdio em Englewood Cliffs, entre o final de 1958, 1959 e 1960 – muito
diferente de Hackensack5: pé-direito alto, vigas de madeira com ângulo
para cima e arcos fechando no topo, com paredes de alvenaria. Criava a
sensação que parecia se encaixar à direção espiritual que sua música vinha
tomando... (Kahn, 2002, p. 77)

No final do ano de 1961, Bob Thiele, produtor de discos, amante do jazz e um

dos responsáveis por lançar a revista americana Jazz (em 1961), assumiu a gravadora

IMPULSE! no lugar de Creed Taylor, que foi dirigir a Verve Records na MGM.

Thiele apresentou um plano de venda de discos para Coltrane que consistia em um

revezamento de discos. Coltrane, para alavancar as vendas, revezaria entre álbuns

gravados com material inteiramente do interesse do saxofonista e outros com um

3
Sideman é um músico que faz parte do grupo ou banda mas não é o líder.
4
Antes da IMPULSE! Coltrane trabalhava para a gravadora Atlantic. Apesar de ser a primeira
gravadora que apoiou os trabalhos de Coltrane como líder, não lhe dava muita liberdade para opinar,
John não decidia quantos álbuns lançaria por ano e coisas do tipo.
5
Hanckensack era onde ficava a casa dos pais de Gelder, lá o engenheiro realizou várias
gravações na sala de visitas.
10
material mais acessível ao público (como parcerias com Duke Ellington (1899-

1974) e Johnny Hartman (1923-1983)). Com o prestígio adquirido pelo sucesso do

plano de Thiele (ao qual Coltranei obviamente aderiu), o saxofonista ganhou um

grande público dentro e fora dos EUA. Depois de seguir lançando grandes sucessos

através da gravadora IMPULSE!, em dezembro de 1964 Coltrane entra em estúdio

com o quarteto para gravar um dos álbuns mais famosos da história do jazz e tema

principal desta monografia: A Love Supreme.

Durante o primeiro capítulo desta monografia será traçada uma pequena

biografia que envolverá os trabalhos e acontecimentos mais importantes da vida de

Coltrane até a gravação do álbum A Love Supreme. A resumida biografia servirá para

contextualizar o álbum ressaltando as condições em que foi criado para assim

enfatizar a importância histórica do disco em questão. Já no segundo será feita uma

análise faixa por faixa do disco. Os arranjos e a forma das músicas serão explicados e

comparados entre si. Além disso, será apresentada uma breve análise sobre o material

usado para a improvisação (em especial nos solos de Coltrane) e a apresentação em

partitura dos temas e das frases e motivos mais importantes para auxiliar na

compreensão do álbum.

O quarteto clássico de John Coltrane, McCoy Tyner (1938), Jimmy Garrison

(1933-1976) e Elvin Jones (1927-2004), excursionou pela primeira vez na Europa em

1962. Lá, o grupo foi recebido com a devida reverência: aclamados como heróis e

vencendo nas votações abertas ao público das revistas de música. A prima de Elvin

Jones – o baterista do quarteto – conta qual foi a reação do saxofonista diante do

louvor dos seus ouvintes:

Quanto eu dizia para John – tentando ser moderna – “Rapaz! John, você
botou fogo naquele último show!”, ele olhava para mim demoradamente e
respondia: “O que você quer dizer com isso? O que você ouviu de
diferente? O que impressionou tanto?”. Como eu não conseguia explicar,
11
ele falava: “Não seja como tanta gente que conhecemos. Se você não
consegue explicar o que ouviu de diferente, o que impressionou, não diga
nada”. Ele realmente era um professor, na minha opinião. Ele me ensinou
como ouvir jazz, o que ouvir, como ser humilde e não fazer música de
fachada. (Kahn, 2002, p. 93 adaptação deste Autor)

Em julho de 1964 o quarteto volta à Europa para uma turnê muito bem sucedida

e comentada. Em uma passagem pela França, Coltrane recebe novamente o convite

para tocar no Antibes Jazz Festival (o saxofonista já tinha participado do festival em

outras ocasiões), evento de muito renome, do qual participavam grandes músicos de

todo o mundo. Além de executar alguns conhecidos standards de jazz, Coltrane, nas

diversas vezes em que tocou no festival em questão, sempre tocou músicas de sua

autoria. No dia 26 de julho daquele ano, o quarteto realizou uma histórica

apresentação. Aproveitando o sucesso que o álbum recém-lançado6 vinha alcançando,

o quarteto executou na íntegra – pela segunda e última vez – a suíte de A Love

Supreme.

No segundo capítulo desta monografia, a gravação ao vivo do álbum acima será

comentada e analisada assim como feito com a versão em estúdio, sempre com

destaque aos solos e a participação de Coltrane.

O quarto capítulo trará uma série de figuras que são compostas por “linhas do

tempo” que representam os arranjos de cada faixa. Serão duas linhas por figura, cada

uma representando a mesma faixa só que de gravações diferentes (a versão ao vivo e a

versão em estúdio). Dessa maneira, a comparação entre os arranjos das duas versões

de A Love Supreme aqui analisadas ficará mais clara.

A conclusão virá no quinto e último capítulo, onde serão apontados as principais

diferenças entre os arranjos e a estética entre os dois álbuns. Também será exposta

uma breve continuação da história musical de Coltrane até sua morte.

6
A Love Supreme havia sido lançado seis meses antes da turnê do quarteto pela Europa e fazia
grande sucesso por todo o continente.
12
13

CAPÍTULO I

INTRODUÇÃO BIOGRÁFICA

John William Coltrane nasceu no dia 23 de setembro de 1926, em Hamlet, na

Carolina do Norte (EUA). Saxofonista, compositor, improvisador, arranjador e

bandleader, Coltrane é considerado um dos grandes nomes da música popular norte-

americana e difundiu sua música pelo mundo através do jazz e suas vertentes (free

jazz, bebop, hard bop, etc.).

Tendo a música presente em sua vida desde o berço – apesar de seu pai ser

alfaiate também tocava violão e violino e sua mãe cantava na igreja (porém, ambos

amadores) – não foi um espanto que Coltrane logo se interessasse. Começa a estudar

clarinete na banda da escola, mas logo se interessa pelo saxofone, quando na

primavera de 1940 teve contato com a música de Lester Young (1909-1959), e acaba

iniciando seus estudos no sax alto. “No começo eu tocava saxofone alto – Eu não sei

bem por que, já que naquele tempo eu admirava o Lester Young (saxofonista tenor)”

(Porter, 1999, p. 30; tradução deste Autor). Já nessa época, Coltrane mostrava sua

legendária compulsividade pelos estudos de música e, influenciado pelo som de

Johnny Hodges (1906-1970) (saxofonista alto da big band de Duke Ellington),

passava madrugadas estudando na escola, no jardim e no quarto que dividia com sua
14
mãe7. Rosetta Haywood, uma colega de classe, conta: “Ele estava sempre com o

saxofone, era possível ouvi-lo o tempo todo (depois da escola), de qualquer parte do

prédio”. Sua prima Mary também relata: “Mesmo quando era criança, ele sentava-se à

mesa de jantar e praticava o tempo todo. Ele praticava o tempo todo”. (Porter, 1999, p.

33; tradução deste Autor).

Coltrane continua seus intensos estudos no saxofone, até que em agosto de 1945,

aos dezoito anos, enquanto trabalhava na Campbell Soup Company (empresa que

produzia sopas enlatadas), é chamado para servir a Marinha, em decorrência da

Segunda Guerra Mundial, que estava em pleno curso. Lá tem contato com alguns

músicos e acaba entrando para um grupo chamado The Melody Masters com o qual

faz alguns shows pelo Havaí (onde situava a base militar na qual estava servindo).

Quando recebe a dispensa da Marinha em agosto de 1946, Coltrane volta para a

Filadélfia, já que sua família pra lá se mudara quando a guerra começou.

Juntamente com a Segunda Guerra veio o Bebop. Era um novo estilo jazz que

vinha tomando de assalto os bares dos Estados Unidos, principalmente os de Nova

Iorque, tendo como líderes o saxofone alto de Charlie Parker (1920-1955) e o

trompete de Dizzy Gillespie (1917-1993). Mesmo a muitos quilômetros de distância,

quando ainda estava na Marinha, Coltrane já seguia o novo movimento e estava

atordoado pelo jeito lírico, veloz e inovador de Parker.

Na volta para casa e aos estudos, ouvindo discos dos novos grandes nomes do

Bebop, Coltrane encontra a possibilidade de explorar novas estruturas e teorias

musicais. Em 1949 Coltrane recebe o convite para entrar na big band de Gillespie,

com a qual faz alguns shows, mas a banda dura apenas um ano. Mesmo com o final da
7
Quando seu pai, seu tio e seus avós morreram em 1939, a situação financeira da família ficou
complicada, a mãe de John, Alice, vai trabalhar como doméstica para manter o filho estudando, aluga
os quartos da casa para ajudar na renda e acaba tendo que ficar no mesmo cômodo de John.
15
big band, Gillespie mantém um sexteto do qual Coltrane fazia parte, realizando

shows e gravações até 1951.

Tendo estabelecido sua carreira na Filadélfia, a partir desse ponto a vida de

Coltrane gira em torno apenas da música e até certo ponto do álcool e heroína,

gravando e fazendo shows com músicos cada vez mais influentes e importantes. Seu

trabalho e talento começam a se espalhar, até que no final de setembro de 1955, um

trompetista já renomado por suas gravações com Parker, o contrata. Como integrante

da banda de Miles Davis, a sua fama aumenta, assim como sua reputação de solista.

Foi ao lado do trompetista que Coltrane lançou diversos discos que consolidaram sua

carreira e abriram as portas para seu maior desejo: realizar seu trabalho solo.

Em 1957 Coltrane grava seu primeiro trabalho como líder, um álbum cujo título

era apenas Coltrane, mas que ficou conhecido como “First Trane”. Coltrane segue em

paralelo mantendo seus próprios trabalhos e realizando gravações com Red Garland,

Miles Davis, Milt Jackson e com o pianista Thelonious Monk. Coltrane diz que foi

com ele que refinou sua técnica, senso melódico e obteve uma liberdade muito maior

para solar em formas blues e changes mais complexos. Davis inicia uma fase em seu

trabalho que é conhecida como jazz modal, utilizando poucos e esparsos acordes, com

escalas específicas, dando liberdade e tempo para o solista se concentrar em

desenvolver melodias e não em rápidas mudanças de acordes. Com isso, em 1959

Miles, com um time de peso – ele mesmo no trompete, Coltrane no sax tenor,

Cannonball Adderley no sax alto, Wynton Kelly ocasionalmente ao piano, Bill Evans

no piano, Paul Chambers no baixo acústico e Jimmy Cobb no bateria –, lança o

famoso e um dos mais influentes álbuns do jazz, o Kind of Blue8. Entre as sessões do

novo disco de Miles, Coltrane estava fazendo algumas gravações como líder com um
8
Gravado em 2 de março e 22 de abril de 1959 e lançado em 17 de agosto de 1959, Kind of Blue
é um dos álbuns mais vendidos da história do jazz.
16
conceito completamente avesso ao do Kind of Blue, o também famoso Giant Steps.

O conceito do álbum consistia no que depois foi chamado de “Coltrane Changes”. Era

um pensamento harmônico que tratava os acordes de tal maneira que a composição

soava como tendo três centros tonais, ou seja, na maioria das vezes dois acordes por

compasso9 em uma velocidade desafiadora até mesmo para ele, que tinha uma técnica

apuradíssima.

É importante salientar que John Coltrane travou grandes lutas pessoais, ao longo

de parte importante de sua carreira, com o álcool e as drogas (a heroína em especial) e

que buscou na religião um apoio para sua vida e sua carreira. Coltrane chegou a perder

vários trabalhos devido ao seu estado de dependência química que lhe impedia de

tocar devidamente, o que acabou por consumir todo seu dinheiro e saúde.

A religião foi o suporte que ele encontrou para manter a decisão de parar com o

álcool e as drogas (sem auxílio profissional e por conta própria, trancado em casa

sozinho para se desintoxicar) e para atingir o nível de meditação e/ou concentração

necessário para compor grandes obras. Depois de algumas tentativas de largar os

vícios, sempre contando com o apoio da sua mulher Naima 10, Coltrane consegue,

enfim, se livrar das drogas a partir de 1957 e se torna grato, eternamente, à religião

pelos benefícios que esta lhe trouxera.

Coltrane deixa o quarteto de Miles em 1960 e mantém sua concentração em sua

carreira como líder. Em outubro do mesmo ano, o saxofonista grava algumas faixas

que iriam ser utilizadas posteriormente em alguns de seus álbuns de maior renome,

Coltrane Plays the Blues, Coltrane’s Sound e My Favourite Things. Acompanhado

9
Coltrane gravou seus famosos changes, apenas em compassos 4/4 (quatro por quatro).
10
Coltrane casou-se com Naima em outubro de 1955 e se separou em 1963. Esposa dedicada,
Naima foi fundamental para que Coltrane deixasse os vícios e o apresentou ao Islã. (Informações
retiradas da enciclopédia on-line Wikipédia, http://pt.wikipedia.org/wiki/John_Coltrane, visitado em
16/09/2009)
17
nessas gravações a maioria das vezes por McCoy Tyner ao piano, Steve Davis no

baixo acústico e Elvin Jones na bateria. Algum tempo e alguns discos se passaram

com Coltrane mantendo quase sempre a mesma formação, mas, com frequência

testando o quarteto com diferentes baixistas. Em 1961, Reggie Workman entra no

lugar de Steve e o saxofonista, flautista, claronista e grande amigo pessoal de Coltrane

Eric Dolphy11 também é convidado, formando o quinteto que gravou o álbum Live at

the Village Vanguard em 1961. Por volta de 1959 e 1960, Coltrane, muito

influenciado por Sidney Bechet (1897-1959) (clarinetista e sopranista), começa a

utilizar com pioneirismo o saxofone soprano e imortaliza músicas como:

“Summertime” (George Gershwin) e “My Favourite Things” (Richard Rodgers Oscar

Hammerstein II), que será um marco em sua carreira. Este último tema é uma

composição conhecida por ser parte do filme The Sound of Music (A Noviça Rebelde,

em português), o que o auxilia a atingir grande sucesso devido à melodia já

popularizada. Coltrane tocará “My Favourite Things” até o final de sua vida, ela irá

acompanhar o desenvolvimento, o pensamento musical e a concepção estilística do

seu grupo.

Após ter “assustado” de maneira marcante o público, pois trouxe – com seu

quinteto com Eric Dolphy – um fraseado moderno e não convencional às suas

composições, que passa a explorar texturas e não mais a se apegar a ideias técnicas

para suas composições, arranjos e principalmente improvisos, Coltrane ingressa numa

nova fase, que já vinha sendo explorada pelo amigo e saxofonista Ornette Coleman e

que foi rotulada pelos críticos de música da época como free jazz, ou “the new thing”

(em português, “a coisa nova”).

11
Viria a falecer em junho de 1964 causando um forte impacto na vida de John, há inclusive
fotos de Coltrane fazendo “serenatas” para uma foto de Dolphy que ele carregava junto a si,
obviamente como forma de homenagem ao amigo.
18
Era sobretudo um conceito de visão musical, com mais liberdade,

“importando” ideias inclusive do universo erudito, como a música atonal e aleatória.

Tudo isso, claro, com ênfase na improvisação.

Em 1962, Coltrane despediu Eric Dolphy alegando que com o ele o quinteto

soava mais como “um quarteto mais um” do que como um quinteto. Na mesma época,

Reggie Workman saiu do grupo. A saída de Workman fez com que Coltrane tivesse

que procurar outro baixista à altura para suprir o posto e sobretudo ter bom

entrosamento com o então baterista do quarteto, Elvin Jones. O baixista Jimmy

Garrison tinha saído recentemente da banda de Coleman por motivos estritamente

econômicos (Kahn, 2002, p. 89) e logo recebeu o convite para integrar o quarteto.

Agora consolidado com Tyner, Jones e Garrison, o quarteto clássico de Coltrane (que

duraria apenas três anos, de 1962 a 1965) iria atingir o status de atração principal dos

grandes bares e festivais da cena de jazz norte-americana, assim como no resto do

mundo, gravar importantes álbuns para a história da música e ajudar a desenvolver um

estilo que rapidamente se popularizaria pelo mundo todo com diversos seguidores.

A solidez de um grupo fixo – ensaiando, se apresentando constantemente e

executando suas próprias ideias – foram algumas das razões que ajudaram a levar

Coltrane para seu lado mais experimental. As inúmeras regras e pensamentos

harmônicos que ele tinha estudado à exaustão não eram mais o seu foco. A busca

agora era outra, como ele mesmo dizia: “Eu gostaria de chamar a atenção das pessoas

para o divino utilizando uma linguagem musical que transcende as palavras, eu quero

falar com a suas almas” (Porter, 1999, p. 232; tradução deste Autor). Era um busca

espiritual, não mais com uma ênfase matemática. Portanto, nada mais normal do que

voltar ao estudo de harmonias mais simples e aproveitar o entrosamento que o grupo

tinha conquistado para se concentrar em outros aspectos musicais.


19
Em 26 de agosto de 1964, nasce o primeiro filho de John e Alice, John Jr., e a

família aproveita a ocasião para descansar em sua casa em Long Island. Em vez de

aproveitar o descanso, Coltrane se tranca no sótão por cinco dias com seu instrumento,

onde meditava e estudava. Alice, sua esposa na época, conta como foi o regresso da

meditação:

Parecia Moisés descendo da montanha, foi lindo. Ele desceu, e havia uma alegria, uma
paz em seu rosto, uma tranquilidade. Eu disse: “Conte-me tudo, faz uns quatro ou cinco
dias que a gente nem se vê...”. Ele respondeu: “Esta é a primeira vez em que me veio toda
a música que quero gravar, como uma suíte. Pela primeira vez, tenho tudo, tudo pronto.
(Kahn, 2002, p. 16).

Derivado desse tipo de pensamento, surge um dos mais vendidos e aclamados

álbuns de sua carreira, A Love Supreme, gravado no estúdio de Rudy Van Gelder em

dezembro de 1964, em Nova Jersey, e lançado em fevereiro de 1965 pela gravadora

IMPULSE!

A Love Supreme foi sem dúvida nenhuma um grande divisor de águas para sua

carreira. A partir desse disco, Coltrane se libertaria cada vez mais dos padrões

musicais da época, experimentando e levando à frente os novos conceitos aplicados no

chamado free jazz.

O álbum consiste de três músicas, a terceira faixa seguimentada em dois trechos,

dispostas de maneira a formarem uma suíte. Apesar de ser um dos primeiros trabalhos

que Coltrane preparou antes de entrar em estúdio (muitas vezes o saxofonista só sabia

o que iria gravar quando pisava na sala de gravação), mesmo tendo partes pré-escritas

e pensadas, são quatro faixas que, como a grande maioria do trabalho de Coltrane, são

basicamente improvisadas, tendo estruturas pré-definidas, porém com largos espaços

para a criatividade espontânea.


20
Já em 1963, em uma entrevista em Paris, Coltrane dizia que estava exausto de

tocar sempre as mesmas músicas. Ele diz que escrever para o grupo estava começando

a se tornar um problema (provavelmente porque não era mais sua intenção tocar

arranjos complexos que acabavam por definir demais como a música iria soar) e que

uma das soluções possíveis para isso seria deixar a natureza de cada música guiar o

seu jeito de tocar, fosse ela modal, tonal ou até mesmo uma progressão de acordes não

específicos. Um bom exemplo seria como improvisar sobre Lá, não Lá maior ou Lá

menor, nem um modo particular em Lá, apenas, Lá (Porter, 1999 p. 231; tradução e

adaptação deste Autor). Esse pensamento que passeia entra o modal e o tonal se faz

muito presente em todas as quatro músicas do disco. Essa abordagem fez com que o

material pré-concebido que trouxera para a gravação fosse apenas uma guia.

McCoy Tyner cita como Coltrane se expressara sobre a música:

Ele escrevia as cifras para um grupo de acordes bem básicos – si bemol, si natural, mi,
apenas acordes comuns – e dava para ouvir a relação entre os acordes e como eles se
encaixavam. Mas não era como se ele dissesse: “Quero que você toque assim, quero que
toque assado”. Tocávamos juntos havia tanto tempo àquela altura que a banda tinha um
som, por isso não ficávamos nos prendendo aos acordes. Em outras palavras, você podia
fazer o que quisesse, tendo o formato em mente. A Love Supreme foi assim. (Kahn, 2002,
p. 119).

Com harmonias relativamente simples, porém com improvisos elaborados de

forma composicional, utilizando técnicas usadas até para a composição de música

erudita (como espelhamento e inversão de melodias), as portas para a improvisação

livre e coletiva (que seria o futuro trabalho do saxofonista) são abertas por esse álbum.

Tyner:

John falava bem pouco sobre o que queria. Se tivesse algo bem específico que quisesse
acrescentar à música ou sobre como queria que fosse tocada, aí falava. Acho isso muito
importante porque era improviso na hora, música feita com honestidade, sem nenhuma
pretensão. No caso de A Love Supreme, eram canções de verdade, mas a estrutura era
muito limitada. Uma linha melódica simples e não muito prolongada. Lembro que ele
treinou uma linha de baixo com Jimmy e disse a Elvin “isso é o que eu queria”, e,
basicamente, foi assim que saiu. (Kahn, 2002, p. 118-9).
21

CAPÍTULO II

ESTRUTURA COMPOSICIONAL E ARRANJOS DO ÁLBUM GRAVADO

EM ESTÚDIO

Como já mencionado nesta monografia, A Love Supreme foi sem dúvida um dos

trabalhos mais importantes da história do jazz, não só por ter influenciado muitos

músicos devido à qualidade da obra, mas também porque abriu as portas para um

estilo que misturava o pós-bop com uma estética free jazz, introduzindo uma liberdade

infinitamente maior aos que faziam música para que pudessem experimentar e

descobrir novas maneiras de expressar-se.

FIG. 1 – Capa do álbum A Love Supreme de John Coltrane

A gravação analisada é a de 9 de dezembro de 1964 e lançada em 1965, feita no

estúdio e na presença do engenheiro de som Rudy Van Gelder. Foi realizada uma
22
segunda gravação do quarteto no dia 10 de dezembro de 1964 – juntamente com

Arthur Davis (baixista) e Archie Shepp (saxofone tenor) – com uma formação

inusitada (dois saxofones tenores, dois contrabaixos acústicos, piano e bateria). Nesta

segunda sessão, foram gravadas apenas duas versões da primeira faixa

(“Acknowledgement”) que não foram lançadas junto com o álbum em 1965, mas

apenas posteriormente em uma reedição do álbum com takes alternativos. Não iremos

levá-la em consideração devido a sua baixa repercussão e importância no contexto

musical.

Analisaremos as quatro inéditas faixas do famoso álbum sem esquecer que as

duas primeiras já vinham sendo executadas ao vivo por Coltrane com seu quarteto,

pois foi por meio dessa gravação que elas tomaram forma e se popularizaram.

2.1 – Acknowledgement

O álbum é iniciado com um golpe em um sonoro gongo chinês executado pelo

baterista Elvin Jones. Assim que o som se dissipa, o baterista começa a atacar os

pratos levemente, criando o clima para a entrada dos outros três integrantes: Coltrane

tocando uma melodia sobre a tonalidade de Mi maior, Tyner, acordes sobre a mesma

tonalidade e Garrison, um pedal crescente em Mi. Como não há unidade de compasso

definida para essa introdução, Coltrane finaliza a melodia e simplesmente sai de cena,

deixando os outros dissolverem o som para chegarem a uma pequena melodia.

FIG. 2 – Motivo-tema do álbum tocado pelo baixo inicialmente na primeira faixa


23

Em seguida, um motivo de quatro notas é tocado inicialmente apenas pelo

baixista, que será umas das partes mais características e lembradas de todo o disco.

Depois de quatro compassos de Garrison executando o motivo (na tonalidade de Fá

menor) sozinho, Tyner e Jones entram fazendo a cama para que Coltrane, 16

compassos após o início do motivo, apresente o tema da faixa. Assim como todo o

conceito do álbum está diretamente relacionado com a improvisação, o tema da

primeira parte da suíte também é apenas uma idéia melódica simples de dois

compassos repetida três vezes, que é trabalhada com diversos tipos de ritmos

diferentes, inclusive com inclusão de notas, porém sempre mantendo a mesma

intenção. A resposta vindo por meio de outra idéia melódica concluindo a sentença.

FIG. 3 – Os dois primeiros compassos (pergunta) do tema de “Acknowledgement”

FIG. 4 – Resposta aos dois primeiros compassos do tema de “Acknowledgment”

Depois que o tema é executado duas vezes (três vezes a pergunta e uma vez a

resposta), já podemos considerar que aquilo que Coltrane toca a partir dali é

improviso. Tendo como base a pentatônica de Fá menor e sempre o tema recém-

tocado em mente, o saxofonista toca 124 compassos de improviso utilizando


24
pouquíssimas notas fora da pentatônica de Fá e das escalas de Fá menor Dórico e

Fá menor Eólio. Durante seu improviso, o pianista e o baixista (responsáveis pela

harmonia) seguem o líder, McCoy utilizando acordes abertos em quartas e Garrison

hora fazendo variações do motivo-tema inicial, hora preenchendo com melodias que

ajudam a criar a sensação modal sentida durante o improviso.

FIG. 5 – Exemplos de acordes abertos em quartas usados por McCoy para acompanhar o solo

de Coltrane (transcrição deste Autor)

Quando a faixa alcança 4’55”, o foco do improviso de Coltrane muda

bruscamente, ele começa a executar o motivo-tema em ostinato, ciclicamente,

modulando a cada vez, até passar pelos 12 tons. Logo em seguida, Coltrane resgata o

tom inicial do ostinato e sem mais a presença do seu saxofone, começa a cantar o

motivo-tema com as palavras do título do álbum.

FIG. 6 – Motivo-tema com a letra adicionada.


25
Após cantar 16 vezes no tom original (Fá menor), ele desce um tom indo para

Eb menor e, depois de cantar quatro vezes no novo tom, deixa que a música seja

finalizada por Garrison e Jones, até que Jones também sai e o baixista termina a faixa.

2.2 – Resolution

Não foi sem propósito que Coltrane acabou a primeira faixa do álbum em Eb

menor. “Resolution” começa apenas com o baixista fazendo uma melodia utilizando a

técnica doublestops12, novamente iniciando sem compasso definido, de forma livre.

FIG. 7 – Exemplo da melodia tocada por Garrison na introdução de “Resolution” usando a

técnica de doublestops. (Transcrição deste Autor)

Quando Jimmy acaba a introdução na tônica importada da música anterior (Eb),

Coltrane juntamente com os demais ataca a melodia.

O tema, assim como toda a faixa, está na tonalidade de Eb menor e é curioso

perceber como a agressividade atenuada e o uso de notas fora da escala criam um

contraste muito grande com a faixa anterior, “Acknowledgement”.

Já no tema, que é dividido em três partes de oito compassos, o saxofonista usa

como repouso a quarta aumentada do tom, Lá natural, porém, como o tema é

construído sobre a escala pentatônica de Eb menor, Lá natural nada mais é que a

chamada blue note (nota fora da escala que normalmente é usada como aproximação

cromática entre a quarta justa e a quinta do tom, que foi popularizada pelo seu uso

12
Nesse caso, Garrison faz uso dessa técnica da seguinte maneira: em vez de tocar uma nota de
cada vez – como é mais comum no baixo acústico – ele descreve uma melodia improvisada tocando
sempre duas notas ao mesmo tempo, quase que todas as vezes em intervalos de quartas, devido à
sonoridade e facilidade de execução.
26
principalmente em improvisações de blues, estilo no qual se usa muito as

pentatônicas), fazendo com que mesmo a nota Lá natural, que, tecnicamente sendo

uma nota fora, passa a fazer parte escala mediante seu uso repetido como nota de

passagem e repouso.

Na transcrição nota por nota da Artist Transcriptions – Tenor Saxophone pela

editora Hal Leonard, há uma sugestão de harmonia para ser executada sobre o tema,

no qual poderemos ver os acordes usados para harmonizar as notas dentro e fora da

tonalidade:

FIG. 8 – Oito primeiros compassos do tema de “Resolution” com harmonização13 sugerida (a harmonia,

tirada do livro Artist Transcriptions, tenor saxofone – John Coltrane: Acknowledgemente, Resolution,

Pursuance/Psalm, Hal Leonard, p.9; melodia transcrita por esse Autor.)

“Resolution” foi a única faixa do álbum que já existia antes da gravação.

Coltrane com seu quarteto a vinha executando há algum tempo, o que nos leva a

concluir que, provavelmente, a harmonia que anda em paralelo ao tema tenha nascido

a partir das execuções ao vivo.

Coltrane faz três finais diferentes para cada uma das três vezes em que a melodia

é exposta e segue com o primeiro improviso da música. Tendo por trás uma harmonia
13
A harmonia sugerida da figura 8 foi transposta para o tom original, pois a transcrição foi
realizada para leitura em saxofone tenor. Transposição feita por esse Autor.
27
em vamp na tonalidade de Ebm, o improviso de 16 compassos segue sobre

pentatônicas, até que Coltrane instiga Tyner a segui-lo, fazendo uso de notas fora da

tonalidade, ao fim do solo, quando o tema é retomado e executado mais três vezes e

cria-se a abertura para o solo de piano.

FIG. 9 – Exemplo do primeiro solo de Coltrane da música “Resolution” no qual o saxofonista utilizada

notas fora da escala de Ebm. (Transcrição deste Autor)

Cheio de acordes e frases rápidas, o solo de piano se desenvolve por 92

compassos e contrasta com o solo antes feito por John. McCoy, no fim de seu solo,

explora acordes quartais com baixo estático. O pianista desenvolveu uma técnica para

realçar os acordes e suas dissonâncias tocando a fundamental em uma região grave do

piano – mesmo que a nota choque com o que está sendo tocado pelo baixista devido à

proximidade de região – com a mão esquerda e com a direita, ou mesmo as duas,

abrindo o acorde que lhe pareceu conveniente. Deste modo, traz tensões que ainda não

tinham sido ouvidas – criando assim, uma sensação de afastamento da tonalidade – e

dá a deixa para que o líder retome e sole com um discurso mais longo.

FIG. 10 – Exemplo do solo de Tyner da música “Resolution” no qual o pianista faz uso de

acordes quartais com dissonâncias fora da escala de Ebm. (Transcrição deste Autor)
28

Em seguida, aparece o piano ao fundo ainda trabalhando novas tensões e

aberturas de acordes, enquanto o saxofonista sola por aproximadamente 120

compassos. Em torno dos 5’32” o solo chega a seu clímax com Coltrane tocando em

uma região muito aguda, atingindo as notas mais altas de toda a faixa (inclusive um si

bemol 5), fazendo toda a dinâmica da música crescer. Apesar de conter todas as 12

notas, o solo inteiro passa ao ouvinte uma grande sensação de estabilidade devido à

polarização que Coltrane faz com as notas da tétrade de Ebm.

FIG. 11 – Clímax do segundo solo de Coltrane da música “Resolution”. (Transcrição deste

Autor)

Aos 6’17”, Coltrane toca a última frase do solo e retorna ao tema. Como no

início, após repetir a melodia três vezes, o quarteto encerra a segunda faixa do álbum.

2.3 – Pursuance

A quarta e mais longa de todas as faixas, com aproximadamente 10 minutos e

quarenta segundos de música, inicia-se com um solo de bateria de Elvin Jones.

Novamente sem fórmula de compasso, o baterista sola livremente durante um minuto

e meio, quando subitamente marca dois compassos no andamento que a música será

tocada, dando espaço para que Coltrane ataque o tema, com McCoy e Garrison

fazendo a cama harmônica.


29
Seguindo as mesmas ideias de harmonização da faixa anterior, o tema é

construído sobre a pentatônica de Bbm com a adição da nota dó. Abaixo segue o tema

de Pursuance com todas as notas fora da pentatônica de Bbm sinalizadas.

FIG. 12 – Transcrição do tema14 com notas da escala sinalizadas e harmonia15 da terceira faixa do disco

(Artist Transcriptions, tenor saxofone – John Coltrane: Acknowledgemente, Resolution,

Pursuance/Psalm, Hal Leonard, p.14; sinalização das notas feita por esse Autor.)

Podemos perceber com facilidade que Coltrane utiliza apenas as notas dó e a

nota sol bemol não pertencentes à escala pentatônica16 de Bbm.

Assim que o tema é executado (apenas uma vez, como consta na figura) McCoy

inicia o mais longo solo de piano no disco. Utilizando motivos rítmicos diferentes dos
14
O tema transcrito da figura 12 foi transposto para o tom original, pois a transcrição foi
realizada para leitura em saxofone tenor. Transposição por esse Autor.
15
A harmonia sugerida da figura 12 foi transposta para o tom original pois a transcrição foi
realizada para leitura em saxofone tenor. Transposição por esse Autor.
16
Pentatônica de Bbm – Bb, Db, Eb, F, e Ab.
30
até então apresentados, Tyner dialoga de maneira muito fluente e concisa com a

bateria e o walking bass realizado por Garrison.

FIG. 13 – Exemplo de motivo rítmico e acordes de apoio retirados do solo de Tyner da música

“Pursuance” (transcrição deste Autor)

Solando sobre a tonalidade de Bbm, são 163 compassos apenas de piano, baixo e

bateria. Durante esse momento em formação de trio, o pianista utiliza de forma

abundante acordes de apoio, variando suas aberturas e tensões para dar movimento à

já conhecida harmonia estática escolhida para os solos.

Tyner novamente faz uso dos acordes quartais com baixo pedal e passa a vez

para que o líder realize seu solo. De forma enérgica Coltrane, assim como no tema,

inicia seu solo com a nota dó. Motivado também pela alta velocidade com que Jones

conduz a música, Coltrane realiza um solo extenso e cheio de citações ao tema inicial.
31

FIG. 14 – Exemplo de acordes quartais com baixo pedal utilizados por Tyner no final de seu solo em

“Pursuance”. (Transcrição deste Autor)

FIG. 15 – Início do solo de Coltrane da música “Pursuance”. (Transcrição deste Autor)

FIG. 16 – Exemplo de citação da melodia de “Pursuance” retirado do solo de Coltrane. As notas

correspondentes à citação se encontram assinaladas. (Transcrição deste Autor)


32

FIG. 17 – Exemplo de citação da melodia de “Pursuance” retirado do solo de Coltrane. As

notas correspondentes à citação se encontram assinaladas. (Transcrição deste Autor)

FIG. 18 – Exemplo de citação17 da melodia de “Pursuance” retirado do solo de Coltrane. As

notas correspondentes à citação se encontram assinaladas. (Transcrição deste Autor)

Com sua enorme extensão melódica (alcançando o si bemol 5 novamente),

Coltrane executa 193 compassos de solo com respirações curtas e frases longas de

tessitura extensa.

FIG. 19 – Exemplo de frase de extensa tessitura e de longo período sem respirar que Coltrane

executa no solo de “Pursuance”. (Transcrição deste Autor)

17
Nesta citação em especial, Coltrane não utiliza as mesmas notas do tema para citá-lo, ele
transpões o primeiro compasso da melodia de “Pursuance” para um tom acima.
33
Depois do regresso ao tema, logo após ter tocado por um bom tempo bem

distante da tonalidade proposta, Coltrane ajuda a dissolver a fórmula de compasso

com uma frase de seis compassos, indicando o fim de seu solo e o início do solo de

Jimmy.

FIG. 20 – Exemplo do solo de Coltrane em “Pursuance”, frase utilizando notas fora da escala

de Bbm. (Transcrição deste Autor)

FIG. 21 – Final do solo de Coltrane da música “Pursuance” no qual o saxofonista faz a

transição para o solo de baixo que é realizado sem fórmula de compasso (Transcrição retirada do livro

Artist Transcriptions, tenor saxofone – John Coltrane: Acknowledgemente, Resolution,

Pursuance/Psalm, Hal Leonard, p.19)

Jones se responsabiliza para que a transição entre o solo de Coltrane e o de

Jimmy seja a menos brusca possível. Solando sem fórmula de compasso, Garrison

utiliza novamente a técnica de double stops e cita o tema, remetendo ao que o

saxofonista fez em seu solo.

Esse momento trás a execução traz à lembrança o outro solo de Jimmy

executado no início da faixa “Resolution” – pois a estética é muito semelhante apesar

de ter mais notas – que é tocado sem a intenção de abrir uma faixa enérgica e “ácida”

como “Resolution”, mas fechando e desconstruindo “Pursuance” e preparando a

próxima e última faixa do disco.


34

2.4 – Psalm (Salmo) 18

Essa faixa é com certeza um dos momentos mais curiosos e inesperados do

disco, pois não tem um tema específico, não tem fórmula de compasso, não tem forma

ou harmonia definida.

Solando durante a música inteira na tonalidade de Cm, Coltrane desenvolve não

um improviso comum, mas o que seria para ele a tradução em notas de seu poema

escrito em agradecimento a Deus, guiando seus músicos através de uma jornada

espiritual. Isso se depreende do que está escrito no encarte lançado junto com o

álbum:

Will do all I can to be worthy of Thee O Lord.

It all has to do with it.

Thank you God.

Peace.

There is no other.

God is. It is so beautiful.

Thank you God. God is all.

Help us to resolve our fears and weakness.

Thank you God.

In You all things are possible.

We know. God made us so.

Keep you eye on God.

God is. He always was. He always will be.

18
Salmo é a tradução para o português de Psalm.
35
No matter what... it is God.

He is gracious and merciful.

It is most important that I know Thee.

Words, sounds, speech, men, memory, thoughts,

fears and emotions – time – all related...

all made from one... all made in one.

Blessed be His name.

Thought waves – heat waves – all vibrations –

all paths lead to God. Thank you God.

His way... it is so lovely... it’s gracious.

It is merciful. Thank you God.

One thought can produce millions of vibrations

and they all go back to God... everything does.

Thank you God.

Have no fear... believe... Thank you God.

The universe hás many wonders. God is all.

His way... it is so wonderful.

Thoughts – deeds – vibrations, etc.

They all go back to God. He cleanses all.

He is gracious and merciful... Thank you God.

Glory to God. God is so alive.

God is.

God loves.

May I be acceptable in Thy sight.

We are all in His grace.


36
The fact that we do exist is acknowlodgement

of Thee O Lord.

Thank you God.

God will wash way all our tears...

He always has...

His always will.

Seek His everyday. In all ways seek God everyday.

Let us sing all songs to God.

To whom all praise is due... praise God.

No road is an easy one, but they all

go backto God.

With all we share God.

It is all with God.

It is all with Thee.

Obey the Lord.

Blessed is He.

We are from one thing... the will of God...

Thank you God.

I have seen God – I have seen ungodly –

none can be greater – none can compare to God

Thank you God.

He will remake us... He always has and He

always will.

It is true – blessed be His name – Thank you God.

God breathes through us so completely...


37
so gently we hardly fell it... yet.

it is our everything.

Thank you God.

ELATION – ELEGANCE – EXALATION –

All from God.

Thank you God. Amen.

Coltrane segue executando a melodia improvisada, que é executada de uma

forma tão clara que é possível acompanhar com o poema escrito. Isso se deve à

entonação e respiração da palavra falada que Coltrane passa para a linguagem

musical.

Nota-se a presença de uma frase que se repete com freqüência no texto. Assim

como foi repetida no poema, “Thank you God”, que aparece na música sempre com a

mesma célula rítmica e melódica para recitar a frase:

FIG. 22 – Transcrição das notas usadas para o verso “Thank you God” do Poema de John Coltrane

recitado na faixa “Psalm”. Adaptação da letra e transcrição deste Autor

Durante toda a faixa, que não tem pulso, Jones toca os pratos e os tambores com

um ataque crescente e em divisões rápidas, como semicolcheias ou fusas, para dar a

sensação de preenchimento gradual enquanto McCoy e Garrison fazem a cama


38
harmônica utilizando os acordes para construir diferentes tipos de texturas. Toda a

música se desenrola com Coltrane executando o poema ao saxofone e o restante da

banda criando um tipo de clima que dá ênfase ao fato de que o solista recita um poema

para Deus.

Como já foi dito, é possível acompanhar a faixa com o poema escrito, mas como

é um improviso, apesar de Coltrane ser muito fiel ao poema (utilizando os mesmos

motivos para as frases iguais e fazendo respirações em lugares de maneira semelhante

a um leitor), o solista aproveita para, às vezes, enfatizar algum pedaço específico com

uma dinâmica mais forte ou pular uma linha e retornar a ela depois, talvez porque lhe

era conveniente solar sobre aquela frase específica, ou aquelas palavras lhe remetiam

a um novo interesse melódico que acabaria enriquecendo o solo.

Nos últimos 30 segundos de faixa podemos ouvir que Coltrane soma à gravação

mais um saxofone para ornamentar ainda mais o final e, com Jones atacando

repetidamente e com muita força um dos tambores, chegam ao final do álbum.


39

CAPÍTULO III

ESTRUTURA COMPOSICIONAL E ARRANJOS DO ÁLBUM AO VIVO

DURANTE O ANTIVES JAZZ FESTIVAL EM 26 DE JULHO NA FRANÇA

O ano de 1965 foi um período muito atarefado para Coltrane, que era requisitado

em muitos dos clubes e festivais, dentro e fora dos Estados Unidos. Um grande evento

que sempre atraía muitos músicos do mundo inteiro era o Antibes Jazz Festival,

realizado em Juan-les-Pins na França, no qual Coltrane se fez presente em 1961, 1962

e 1965. Em 1961, compareceu com seu quinteto com Eric Dolphy e Reggie Workman

e em 1962 e 1965 com a formação clássica do quarteto.

Durante sua apresentação em 1965, o quarteto de Coltrane executou,

inusitadamente e na íntegra, a suíte de A Love Supreme. Inusitadamente porque essa

foi a primeira e última vez que A Love Supreme foi executada inteira, depois da

gravação em estúdio. Existem registros e depoimentos que comprovam que Coltrane

tocou com seu quarteto em diferentes apresentações “Psalm”, “Acknowledgement” e

“Resolution”, mas nunca as quatro músicas no mesmo show.

Passamos a analisar a gravação de 1965.


40
3.1 – Acknowledgement

Iniciando de maneira muito semelhante à versão gravada em estúdio, porém sem

o gongo chinês, temos os mesmos elementos executados da mesma forma, com

Coltrane descrevendo a melodia inicial em Mi maior, Tyner acompanhando com

acordes esparsos e o mesmo pedal crescente em Mi do baixista Garrison.

A primeira diferença se dá no motivo-tema – que anteriormente foi executado

pelo baixo –, pois na gravação ao vivo, após um rápido silêncio criado pela banda,

Coltrane toma à frente na execução do ostinato. O curioso é que Coltrane toca o

motivo da mesma maneira que no estúdio, com a primeira nota Fá antecipada (ver

figura 2), mas quando Garrison vai dobrá-lo com o líder, o baixista o executa de forma

diferente, com a nota na cabeça do compasso e não antecipada.

FIG. 23 – Motivo-tema executado na gravação ao vivo pelo baixista Garrison sem a nota de

antecipação.

Coltrane percebendo que o ostinato está deslocado, o concerta tocando da

mesma forma que o baixista. A frase permanece deslocada por pouco tempo, alguns

compassos adiante Garrison a executa na divisão original. A seguir, o solo de Coltrane

se inicia seguindo a intenção com a versão em estúdio, utilizando pentatônicas e às

vezes adicionando uma nota ou outra fora dessa escala.


41

FIG. 24 – Frase retirada do início do solo de Coltrane da música “Acknowledgement” para

exemplificar o uso exclusivo19 da pentatônica de Fm. (Transcrição por este Autor)

Com o desenvolvimento do solo, o solista foge um pouco da estética do solo do

primeiro álbum. Nesta gravação, Coltrane toca de maneira muito mais agressiva, com

frases mais rápidas, usando muitas notas fora da escala e, inclusive, tocando urros e

guinchos ao instrumento.

FIG. 25– Exemplo de frases rápidas retirado do solo de Coltrane da música

“Acknowledgement” versão ao vivo. (Transcrição deste Autor)

FIG. 26 – Exemplo de frase utilizando notas fora (notas em destaque) da pentatônica de Fm,

frase retirada do solo de Coltrane da música “Acknowledgement” versão ao vivo. (Transcrição deste

Autor)

Ao final da música, chega o momento no qual se esperava que Coltrane tocasse

o ostinato do começo passeando por várias tonalidades. De fato ele toca o ostinato, da

maneira como ele tocou no estúdio (com a nota antecipada), porém não passa por

19
Neste exemplo Coltrane utiliza apenas uma nota fora da pentatônica de Fm, a nota sol.
42
todos os tons como antes, pois após executar o ostinato 17 vezes se afasta do

microfone e deixa o restante do quarteto finalizar a música.

O quarteto não dissolve gradualmente o final da música como feito em estúdio,

na verdade, o final pode ser considerado brusco. Também não há o solo de baixo que

faz a transição da primeira para a segunda faixa, em vez disso, nos últimos segundos

em que Jones finaliza “Acknowledgement”, Coltrane já une as duas faixas iniciando o

tema de “Resolution”.

3.2 Resolution

A faixa é iniciada com o já conhecido e enérgico tema em Eb menor. Seguindo o

arranjo antes feito, o quarteto executa o tema três vezes, Coltrane faz seu improviso de

16 compassos e todos voltam à melodia que, como antes, é tocada mais três vezes.

Segue um longo solo de piano de Tyner, começando com a mesma frase que

começa seu solo no álbum em estúdio. O solo dura cinco minutos, recheado de

acordes quartais e muitas vezes andando em progressões cromáticas, assim como na

outra versão antes analisada. Tocando com uma estética muito parecida com o solo de

Coltrane na música anterior, Tyner também usa de muita agressividade, atacando os

acordes ao piano com muita força e com muitas dissonâncias, quando a faixa atinge

6’30”, o pianista encerra o que é um dos solos mais longos de todo o disco.

FIG. 27 – Motivo inicial do solo de Tyner na versão ao vivo da música “Resolution”.

(Transcrição deste Autor)


43

Coltrane aproveita a energia do solo antes feito pelo pianista para já sair

utilizando o registro agudo do sax e, entre guinchos agudíssimos, tocar frases com a

mesma estética que tinha tocado em “Acknowledgement”, de grande intensidade,

tessitura e velocidade. Ao final de seu solo, de forma completamente gutural e usando

técnicas para tocar duas notas ao mesmo tempo, Coltrane retorna ao tema e depois de

uma série de urros e notas extremamente agudas, tocadas de forma muita intensa,

finaliza a faixa.

FIG. 28 – Exemplo de uso da região aguda do saxofone retirado do solo de Coltrane da música

“Resolution” (Transcrição deste Autor)

3.3 Pursuance

A faixa começa20 com um longo solo de bateria (ainda mais longo que o da

versão em estúdio) de Elvin Jones de pouco mais de 2’30”, quando Coltrane

subitamente entra com o tema trazendo McCoy Tyner e Jimmy Garrison fazendo a

harmonia e baixos respectivamente.

20
O solo de bateria está situado no final da faixa anterior (“Resolution”), provavelmente o
responsável por dividir as faixas imaginou que seria melhor deixar o solo na faixa “Resolution” porque
Jones o emenda logo após a última execução do tema. Como Coltrane também emenda o tema de
“Pursuance” logo após o solo, fica claro que o arranjo nessa parte permanece o mesmo, foi apenas uma
escolha na hora de dividir as faixas.
44
Nesta versão o andamento é mais rápido e claramente perceptível a diferença

no arranjo da versão gravada com Van Gelder, pois ao finalizar o tema, Coltrane não

deixa espaço e inicia seu solo no lugar do solo do piano.

Desde o início das primeiras temporadas de shows do quarteto, sempre foi muito

comentada a interação especial que Jones tinha com Coltrane, sendo possível perceber

essa interação (diálogo) quando o pianista e o baixista saem de cena para que Coltrane

desenvolva seu solo apenas com o acompanhamento do baterista.

O saxofonista começa o solo com um fraseado muito parecido com a do álbum

em estúdio, porém, com o desenrolar do improviso e sempre “comprando” as idéias de

Jones, o solo atinge seu clímax com muitos guinchos e agudíssimos.

Depois de solar 5 minutos (de seu solo de 7 minutos) apenas com o

acompanhamento da bateria, Coltrane puxa novamente a melodia e, após a execução

da mesma, o quarteto realiza uma passagem totalmente nova: a partir da base de um

grande pedal em Bb tocado pelo baixista, com Coltrane tocando também uma nota

pedal que varia de Ab para Bb na região mais grave do saxofone tenor, o quarteto faz

o que se pode chamar de uma “ponte” que liga a última execução do tema com o

segundo solo do baterista.

Além das duas notas pedais tocadas pelo baixista e pelo saxofonista, aparece

Tyner tocando repetidamente o acorde de Bbm e Jones utilizando praticamente só os

tambores da bateria. Após a ponte, aplausos, o público ovaciona o grande solo de

Coltrane e os dois solos de Jones (tendo o segundo duração de pouco mais que 3

minutos).
45
A seguir 21, o quarteto mantém o arranjo e Garrison entra em cena solando

com a técnica de doublestops. Durante o longo solo, Garrison aproveita para explorar

vários tipos de texturas e sonoridades, tocando ora de maneira melódica ora de

maneira muito percussiva, aproveitando esse momento até para fazer uso do arco, com

o qual também utiliza a técnica de doublestop. Garrison faz a deixa para “Psalm”,

atacando e deixando soar, ao final de seu solo, a tônica da próxima música,

finalizando, assim, um dos mais longos solos do disco com mais de oito minutos.

3.4 Psalm (Salmo)

Um ataque conjunto de bateria (pratos e bumbo) piano (acorde de Cm) e baixo

(C) é a abertura dessa faixa. Poucos segundos depois, Coltrane começa a recitar o

poema. Mantendo a mesma tonalidade da versão em estúdio, o líder toca de maneira

mais enérgica e não mais com uma nota por sílaba, como fez em 1964.

Nesta versão ao vivo fica muito mais difícil acompanhar o poema paralelamente

ao solo. Não se sabe se Coltrane tocou lendo o poema escrito, talvez por isso tenha

tocado de forma mais livre, não tão literal como fez na primeira gravação.

No início, o saxofonista mantém muitas das idéias melódicas que ele usou na

gravação em estúdio, as notas usadas para a primeira frase do poema são as mesmas,

assim como as notas usadas para a frase “thank you God” (FIG. 8).

21
A mesma situação ocorrida com o solo de Jones acontece com o solo de Garrison, o solo
deveria estar no final da faixa “Pursuance”, porém novamente o responsável por separar as faixas do
disco o colocou no início da próxima música, “Psalm”. Foi preferível analisar o arranjo considerando o
solo de Garrison como parte integrante de “Pursuance”, porque assim o arranjo é mais próximo da
versão original gravada em estúdio.
46
É possível acompanhar o solo com o poema até a parte: “One thought can

produce millions of vibrations and they all go back to God... everything does...”. A

partir daí, Coltrane não segue mais o poema e passa a solar de maneira livre.

Por já vir se interessando por outros tipos de sonoridades e com isso procurando

novas maneiras de se expressar musicalmente, Coltrane demonstra desapego a uma

forma única de estética musical, permitindo-se usar uma nova para seus solos nesse

disco. Como nas músicas anteriores, em “Psalm”, o solo do líder é totalmente

outside22, com guinchos e notas agudíssimas tocadas repetidamente até o fim do

fôlego, mesmo que às vezes intercale com frases já executadas no solo da versão em

estúdio, trazendo assim uma memória da primeira gravação.

A sensação que se tem ao ouvir o solo ao vivo em “Psalm” é de que o

saxofonista intercala períodos de improviso com frases recitativas do poema, deixando

de seguir a linha recitativa constante do primeiro álbum. Coltrane improvisa ainda por

volta de um minuto e em seguida toca a frase correspondente a “Thank you God”,

mantendo a idéia de que, mesmo o seu solo não seguindo os versos do poema, ele o

mantém em mente.

Depois de solar por quase seis minutos Coltrane volta a recitar o poema, mas de

uma maneira que não é possível saber de qual verso partiu. O líder após oito minutos

de solo entrega para o restante do quarteto a responsabilidade por dissolver a música

até o silêncio.

22
Outside é o contraste de notas ou acordes não previstos no contexto harmônico.
47

CAPÍTULO IV

LINHA DO TEMPO DOS ARRANJOS DOS DOIS ÁLBUNS

A série de figuras a seguir, representa a linha do tempo dos arranjos dos dois

álbuns, paralelas para melhor comparação. Nessa exposição dos arranjos, foi

respeitado o “corte” de cada faixa - mesmo já tendo comentado sobre os erros (ou

preferência) do responsável pela divisão de cada música nos capítulos acima – e, os

acontecimentos musicais como: solos e exposição de tema (melodias) foram separados

por minutagem.

LEGENDA: J.C. – John Coltrane

Bx – Baixo

Pn – Piano

Bt - Bateria
48

FIG. 29 – Linha do Tempo da música “Acknowledgement”.


49

FIG.30 – Linha do tempo da música “Resolution”.


50

FIG. 31 – Linha do Tempo da música “Pursuance”.


51

FIG. 32 – Linha do Tempo da música “Psalm”.


52

CAPÍTULO V

CONCLUSÃO

Sem dúvida alguma o envolvimento religioso de Coltrane o ajudou a realizar

grandes conquistas. Após ter saído (com auxilia da fé) de seu envolvimento com

álcool e drogas, a carreira do saxofonista se tornou mais saudável e produtiva. Não é

de se estranhar, portanto, que Coltrane tenha disposto de tanto energia para gravar um

álbum que reflete seu âmbito religioso e serve de agradecimento ao equilíbrio que a

devoção à Deus lhe trouxe.

A Love Supreme diferencia-se de todo o resto da obra de Coltrane. Foi um

divisor de águas na sua carreira e na sua vida pessoal, pois foi a partir dessa suíte que

Coltrane foi a busca de outras inspirações e idéias para compor e improvisar, deixando

de lado as antigas e complexas harmonias e se interessando por acordes e progressões

mais simples que pudessem dar mais liberdade para si e para o resto da banda.

O quarteto clássico de John Coltrane durou apenas 3 anos. Em 1965 Tyner

deixou a banda para seguir em carreira solo e desenvolver seus próprios projetos. No

final do mesmo ano - devido a algumas experiências que Coltrane vinha fazendo com

o uso de dois bateristas – Jones também deixa o grupo alegando que o som estava tão

denso e complexo que mal conseguia ouvir a si próprio.

A partir desse ponto, a carreira de Coltrane rumou cada vez mais para a

experimentação e improvisação coletiva. Juntamente com o novo approach, Coltrane


53
continuou tocando músicas como: “My favourite things” e “Mr. P.C.” que

ganhavam, a cada apresentação, uma face diferente com grandes sessões de

improvisos sem harmonia e forma definida e uma estética muito próxima da música

atonal.

Apesar de Coltrane ter refeito todo seu repertório devido à nova estética

utilizada, o fato do saxofonista ter mantido algumas de suas peças mais famosas talvez

se deva à preocupação de Coltrane em manter um elo, para facilitar a aceitação do

som pelo seu público e fazer a ligação dos sucessos do quarteto às novas experiências

feitas pela banda recém montada.

Em 1965 (restando apenas o baixista Jimmy Garrison do antigo quarteto),

Alice23 (sua última esposa) realiza as primeiras gravações com o marido ampliando

ainda mais o seu interesse pelas influências da música oriental que já vinha sendo

pesquisada pelo saxofonista. A partir de 1966, o saxofonista refaz a formação de

quando tocava com Eric Dolphy, mas desta vez com a participação do sax-tenorista

Pharoah Sanders e do baterista Rashied Ali e continua a sua pesquisa com ritmos -

muitas vezes convidando percussionistas para acompanhar a banda - que se iniciou

quando o saxofonista fazia experiências com Rashied e Jones ao mesmo tempo, no

final de 1965.

É perceptível a drástica mudança nos conceitos de John, alicerçada pelas novas

idéias e pela estética de A love Supreme. O período que compreende a gravação do

álbum em estúdio e a performance ao vivo foi de grande estudo e pesquisa do artista e

isso permite relacionar as diferenças estéticas entre os materiais em questão como

sendo resultado desse esforço e experiência.

23
Alice, pianista e compositora, realiza sua primeira gravação com Coltrane em 1965 e ingressa
a banda como membro regular em 1966.
54
Ao ouvirmos com atenção os dois álbuns, é possível captar a grande diferença

estilística entre eles. A primeira, sem dúvida alguma, é a agressividade. Apesar das

gravações em estúdio já indicarem o futuro caminho a ser explorado por Coltrane -

por ter sido realizada em um ambiente com a possibilidade de gravar “takes”

alternativos e avaliar a melhor execução - é durante a performance ao vivo que essa

agressividade, até hoje comentada, é percebida com mais facilidade.

Os solos antes construídos com um pensamento quase que composicional

durante as sessões de dezembro, acabam dando espaço - durante a performance ao

vivo - às expressões viscerais a partir do uso de notas extremamente agudas tocadas de

forma muito intensa. A adoção desses sons 24 e a utilização de multifônicos25

representam um frenesi muito mais interior e selvagem que emergem na apresentação

ao vivo.

Mesmo mantendo muitas características da versão em estúdio (como a ordem e

tonalidade das músicas) Coltrane tomou ao vivo a liberdade de mudar partes do

arranjo. Em “Resolution”, o solo de baixo que antes era responsável pela introdução

da música é suspenso e o líder ataca o tema logo após o final da faixa anterior.

Já em “Pursuance”, o solo de piano de Tyner é substituído por um longo solo de

saxofone acompanhado apenas pelo baterista Elvin Jones que, juntamente com

Coltrane, explora essa sessão de uma forma muito diferente dos outros solos dos dois

discos e marca a evidência da grande interação entre os dois músicos.

A faixa “Psalm” é um caso especial. Do mesmo modo que ocorre na versão em

estúdio, a banda ao vivo acompanha Coltrane enquanto o saxofonista executa o solo

(poema). Entretanto, Coltrane não segue linearmente a leitura do poema. Na sessão da


24
Como comentado durante a análise estética do álbum ao vivo, Coltarne utiliza guinchos e
urros agudíssimos como recurso de expressão.
25
Recurso técnico utilizado por músicos que tocam instrumentos de sopro para executar duas ou
mais notas ao mesmo tempo.
55
França, o saxofonista toca na mesma tonalidade (Cm) da versão em estúdio, mas de

uma maneira muito diferente. Ele não toca uma nota para cada sílaba como antes,

fazendo com que a sensação de ouvir essa faixa seja a de um solo do saxofonista que

traduz para a forma sonora o significado e entendimento pessoal do poema, sem se

prender à antiga estética que era extremamente regular 26.

Entre todas as faixas “Acknowledgement” é a execução que guarda maior

semelhança com a gravada em julho. Coltrane parece dedicar uma atenção especial a

ela e decide manter uma linha de desenvolvimento muito parecida com a sua versão

original. Coltrane preserva a antiga idéia de explorar a pentatônica como principal

recurso para seus solos, e, apesar da voz do saxofonista cantando o famoso ostinato

(com a frase que leva o título do álbum) não se fazer presente, a ordem dos solos e

mesmo a melodia, que é em grande parte improvisada, preservam suas características.

“Resolution” ganha solos mais longos na versão ao vivo, Tyner (o responsável

pelo primeiro solo) trabalha de uma maneira muito parecida com a versão em estúdio,

inclusive começando o solo da mesma maneira. Coltrane aproveita a dinâmica

alcançada pelo solo de piano e a extrapola fazendo novamente uso de grandes saltos

melódicos e explorando notas na região aguda do sax tenor.

A mais longa faixa do álbum ao vivo, “Pursuance”, também é regida pela nova

estética agressiva. A versão ao vivo é mais longa do que a versão gravada em estúdio

e, praticamente atonal. A maior parte da faixa se dá com o solo do saxofonista. O solo

de piano que seguia logo após a apresentação do tema é substituído por um longo solo

de saxofone. Coltrane sola com o acompanhamento de toda a banda por dois minutos,

e quando a faixa atinge 2:30 o pianista e o baixista dão espaço para que o saxofonista

desenvolva seu solo acompanhado apenas pelo baterista Elvin Jones. Solando sem
26
Como antes comentado, o poema recitado na versão em estúdio é tão metricamente regular que
é possível acompanhar linha por linha do texto.
56
harmonia, Coltrane e Jones aproveitam esse momento único entre todas as faixas

analisadas para dialogar e criar diversas texturas rítmicas. Depois do solo do líder e da

nova exposição do tema, o quarteto executa uma “ponte” – que não se faz presente na

versão em estúdio - que serve para dissolver a passagem da execução do tema para o

solo de bateria que antecede “Psalm”.

Durante o primeiro semestre de 1967, Coltrane realizou uma série de gravações

em estúdio seguindo a nova estética e extrapolando-a ainda mais. Com diferentes

formações, porém, utilizando os integrantes da nova banda experimental, as gravações

são até hoje ouvidas e estudadas e mantém sempre o alto nível de qualidade e idéias

vanguardistas. O saxofonista fez experiências tocando flauta transversal e até

gravando em duo com o baterista Rashied Ali.

Em 17 de julho de 1967, John William Coltrane morreu de câncer no fígado.

Velado em 21 de julho na igreja de St. Peter’s em Manhattan, mil pessoas tiveram a

chance de se despedir de um dos maiores gênios da música e grande exemplo

inspirador para jovens músicos em todo o mundo.


57
Bibliografia

JOWCOL MUSIC. John Coltrane – Acknowledgement, Resolution, Pursuance/Plsam,

transcriptions Tenor Saxofone, Hal Leonard.

KAHN, Ashley. A LOVE SUPREME, A Criação do Álbum Clássico de John Coltrane.

Barracuda, 2007.

KOFSKY, Frank. John Coltrane and the Jazz Revolution of the 1960s. Pathfinder

Press, 1998.

POTTER, Lewis. John Coltrane, his life and music. Michigan: The University of

Michigan Press, 1998.

RATLIFF, Ben. Coltrane, the story of a sound. New York: Farrar Straus Giroux,

2007.
58
Discografia
COLTRANE, John. A Love Supreme. Impulse! Records, 1964
COLTRANE, John. John Coltrane in europe, cd-3. Charly Licensing Aps, Snapper
Music plc, 1965.

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