Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
4 - Novembro 2014
ISSN 2318-0277
REVISTA TRANSGRESSÕES
Natal - vol.4 - n. 4 - Novembro 2014
Diretor Geral:
Fábio Wellington Ataíde Alves
Editores:
Alyne Hayanne da Silva
Bárbara Bruna Araújo Bezerra
Heloisa Bezerra Lima
João Pedro Laurentino Gomes
Luiz Stefano Giovanne Lima D’Albuquerque
Mesquita de Medeiros Bezerra
Maria Beatriz Maciel de Farias
Pedro Palmeira Queiroz
Raíssa Freire de Aquino
www.revistatransgressoes.com.br
Raul Victor Rodrigues do Nascimento
Sabrina de Lima Silva
Sânzia Saldanha de Macedo
Yasmin Nóbrega da Silva
Colaboradores:
Alvino Augusto de Sá
Juliano Homem de Siqueira
Juliana Melo
Keity Mara Ferreira de Souza e Saboya
Maíra Rocha Machado
Nelson Gomes de Sant’Ana e Silva Junior
Walter Nunes da Silva Junior
EDITORIAL
Refletir criminologia sempre foi uma forte necessidade dentro das sociedades
humanas, fato notável especialmente nas sociedades contemporâneas, tendo em
vista que, de uma forma ou de outra, o crime é fenômeno social inerente ao convívio
das populações humanas, seja em que tempo ou espaço for.
Diz a locução romana: Ubi homo, ibi societas. Ubi societas, ibi ius. Ergo ubi homo,
ibi ius - Onde há homem, há sociedade. Onde há sociedade, há Direito. Consequente,
onde há homem, há Direito. Propomos um arranjo diferente das palavras, num sentido
mais crítico e reflexivo que vai além da antiga construção dos romanos. Portanto, será
dito nessa locução criminológica que: Ubi homo, ibi societas. Ubi societas, ibi crimen.
Ergo ubi homo, ibi crimen - Onde há homem, há sociedade. Onde há sociedade, há
crime. Consequentemente, onde há homem, há crime.
Admiti-lo, assim amplamente, não é tarefa fácil nem simples: ainda existem, e
em grande número, certos tabus e convenções sociais solidamente alicerçadas nos
ideários que povoam e norteiam as concepções populares, tão impregnadas com os
antigos valores apregoados pela moralidade ocidental: o puro versus o imundo; o
sacro versus o profano; o angélico versus o demoníaco. Outrora – numa época
relativamente recente – crime e moral percorrem o mesmo trajeto, em direções
opostas, entre dois polos extremos distintos e, na teoria, facilmente discerníveis:
ultrapassar a linha que assinalava o fim do que é certo e o começo do que é errado
representava trazer sobre si nada mais, nada menos que a própria danação eterna,
pena irrecorrível, insolvível e inevitável. O crime era ato monstruoso, e o criminoso era
um monstro.
A civilização ocidental vivenciou uma época em que o crime, necessariamente,
atrelava a feiura, a imperfeição e o teor grotesco natural das “aberrações”; são esses
os elementos de onde vieram, por exemplo, personagens clássicas como Frankenstein
e Quasimodo, o célebre corcunda de Notre-Dame de Paris. Se esses eram tidos como
criminosos natos, pela “transgressão” aos padrões aceitáveis da natureza, desde o
ventre, com eles concorriam outros tipos: os socialmente desajustados, mulheres
solteiras jamais casadas, os feios não-deformados, as bruxas e as curandeiras,
homossexuais, pagãos, ciganos, judeus, doentes, vadios, mestiços e negros tornavam-
se bodes-expiatórios frequentes; eram também “criminosos por excelência”,
plenamente culpáveis pelas agruras da comunidade, mesmo aquelas que não se
subordinavam de forma alguma ao controle humano.
A compreensão do crime e do criminoso sofreu intensos reveses com o passar
dos séculos. As luzes do humanismo se encarregaram de construir uma compreensão
quase que totalmente nova, por cima das concepções mais arcaicas que existiam até
REVISTA ~
TRANSGRESSOES
Ciências Criminais em Debate
www.revistatransgressoes.com.br
EDITORIAL
REVISTA ~
TRANSGRESSOES
Ciências Criminais em Debate
www.revistatransgressoes.com.br
EDITORIAL
público, todos os dias (as vezes em duas edições diárias), uma imensa quantidade de
informações criminalísticas nos mínimos e mais cruentos detalhes, principalmente
quando o crime em questão é de sangue. Essas atrações televisivas avolumam
extraordinária audiência e geram um lucro a ela proporcional. Vê-se que os circos de
aberrações ficaram para trás: os noticiários policiais os superaram e substituíram de
forma exemplar.
E a quem pertence os rostos exibidos por esses noticiários? Aos criminosos da
sociedade contemporânea. O grotesco e o monstruoso adquiriram um caráter menos
ostentoso, embora persistam firmes. É para os socialmente desajustados que a
punição se volta, ainda com certa exclusividade; mas agora, de acordo com os ditames
do capitalismo, a ordem vigente. O crime não é mais demoníaco. A marginalização
social e seus excluídos tornaram-se terreno fértil para a atividade criminosa
ostentosamente punida, com algumas exceções. Assentir que o crime tem cor e classe
social, numa sociedade erigida em torno dos valores capitalistas, por cima do velho
dualismo bem versus mal, não é uma afirmação de todo errada, ainda que não seja de
todo certa.
Por que, portanto, expor e mencionar show de aberrações, escritores policias e
a indústria do entretenimento do crime? Simples. Para argumentar sobre o quanto o
crime se relaciona intimamente com a sociedade humana; para demonstrar o quanto o
crime é um elemento indissociável ao convívio social; para comprovar os laços quase
simbióticos entre um e outro; para basilar a grande importância que reveste e sempre
revestiu a reflexão criminológica.
Para induzir o quanto a pesquisa, o estudo, a compreensão e a análise da
sociedade num anteparo criminológico tem precedência: é possível pensar diferente,
mas o crime, de uma forma ou de outra, mantém contato e influências permanentes
sobre todos nós, a todo tempo, em todo lugar. Afinal... O que é o crime? Quem é o
criminoso? O que é o criminoso? Quem é o crime? Quem e o que é vítima? E quem será a
próxima?
A Revista Transgressões chega agora ao seu quarto número sem que possa
divisar respostas concretas para muitas das perguntas que movem a criminologia.
Importa reconhece-lo. Contudo, é ainda mais importante reconhecer o valor de sua
iniciativa enquanto pioneira no Rio Grande do Norte. Estudar e refletir criminologia é
uma necessidade, já se sabe. A Transgressões percebe, contente, ao olhar para trás,
que tem-na satisfeito. O diálogo de crime, criminoso, vítima e sociedade persiste e vai
persistir como um dos principais temas da Psicologia, do Serviço Social, do Direito, da
Pedagogia, da Medicina e de tantas outras. E a Transgressões persistirá com eles.
Conselho Editorial
REVISTA ~
TRANSGRESSOES
Ciências Criminais em Debate
www.revistatransgressoes.com.br
AGRADECIMENTOS
Agradecemos:
A todos e a todas que estiveram ao nosso lado, contribuindo para o lançamento da 4ª edição
desta revista.
À Juliana Melo, Rochester Araújo e Nelson Gomes Júnior, os quais são exemplos para nós e
norteiam nosso trabalho de forma essencial.
Ao Professor Fábio Ataíde, cujas grandes contribuições tornam possível a concretização deste
projeto.
Ao programa Motyrum pelo apoio que sempre nos deu, caminhando de forma conjunta para a
construção de conhecimentos emancipadores.
Comissão Editorial
REVISTA ~
TRANSGRESSOES
Ciências Criminais em Debate
www.revistatransgressoes.com.br
REVISTA ~
TRANSGRESSOES
Ciências Criminais em Debate
www.revistatransgressoes.com.br
SUMÁRIO
POESIAS 11
PARA QUEM? 12
Felipe Peixoto de Brito
RESSOCIALIZAR É O JEITO 13
Juliana Silva Dunder
VEXATÓRIA À (RE)VISTA 14
Luís Alfredo Macedo Soares
A BALA 16
Jair Soares de Oliveira Segundo
O SILÊNCIO É A RESPOSTA? 18
Telânio Dalvan de Queiroz
RESENHAS 21
REVISTA ~
TRANSGRESSOES
Ciências Criminais em Debate
www.revistatransgressoes.com.br
12
PARA QUEM?
*
Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
13
RESSOCIALIZAR É O JEITO
E a vida continua
No ponto que parou
Apagando da memória
O mau tempo que passou
Pena cumprida
Pagamento feito
Não apaga o crime
Mas corrige o erro
*
Pós-Graduanda em Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça - GPPGeR do Núcleo Interdisciplinar de
Pesquisa e Ação sobre Mulher e Relações de Sexo e Gênero da Universidade Federal da Paraíba – UFPB.
14
VEXATÓRIA À (RE)VISTA
*
Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
15
A BALA
A bala
Abole
Abala
A bela
Borboleta
Aboletando
Abissal
Abatimento
Não é?
∗
Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Integrante dos Grupos de
Pesquisa “Direito, Estado e Sociedade” e “Constituição Federal e sua Concretização pela Justiça Constitucional”,
ambos da UFRN.
17
--------------------------------------------------------------
*
Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
18
O SILÊNCIO É A RESPOSTA?
*
Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
19
Já desolado no chão
Minha única reação
Foi não parar de questionar:
Por que o senhor atirou em mim?
REVISTA ~
TRANSGRESSOES
Ciências Criminais em Debate
www.revistatransgressoes.com.br
22
*
Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
23
Juiz precisa ser mais que um homem. Ao julgar um processo, o Juiz define quem dali é
detentor da razão, ou seja, onde a verdade se encontra. Mas para que isso ocorra há a figura do
Defensor, de suma importância, embora de certa forma perigoso, devido a sua parcialidade
em contraposição a figura do Ministério Público, não necessariamente um acusador, mas
ainda assim antagonista do defensor. Essa dualidade forma o chamado contraditório, o qual
fará o juiz tomar posição definitiva a cerca do assunto e proferir a sentença.
Para concluir, no entanto, se um acusado é culpado ou não, necessita-se averiguar os
fatos ocorridos. E para tal, volta-se na história, aos acontecimentos, tentando reconstruí-los e
investigá-los. Para isso, buscam-se as provas, de qualquer tipo e espécie, mas que
proporcionem, ao fim, prover maior certeza, seja acusando-o ou inocentando-o. A coleta e
pericia das provas exigem extrema cautela e profissionalismos por parte do perito e demais
envolvidos, o resultado incorreto ou alterado devido contaminação da evidencia pode arruinar
com uma vida. Sabemos a dureza do âmbito penal, por sua rigidez e penas mais severas
quando comparados a outras áreas, justamente por restringirem direitos e privar liberdades,
além de considerar o trauma desenvolvido ao adentrar em um regime carcerário detentor de
tantas mazelas, como já discutido anteriormente.
Porém, não só as evidencias mal examinadas podem desencadear tamanhos
desastres, como também a especulação e manipulação midiática. Basta um individuo tornar-se
suspeito de um crime para já ser julgado, não por órgão apto para tal, mas por terceiros
alheios ao processo que almejam somente uma polêmica notícia e alienados crentes em
qualquer coisa veiculada nos meios de comunicação, nesse sentido Carnelutti aduz ‘‘O artigo
da Constituição, que se ilude de garantir a incolumidade do acusado, é praticamente
inconciliável com aquele outro sanciona a liberdade de imprensa.’’ (CARNELUTTI, 1995,
p.46.). Quantos e quantos casos são presenciados cotidianamente, já sabendo como se dará o
desfecho, ou melhor, já sabendo como tem que se dar o desfecho, por ser extremamente
inviável que o acusado seja inocentado, devido à extrema comoção popular já existente e
notícias tendenciosas entupindo noticiários e afins.
Além do acusado e dos alheios, há a testemunha. Trata-se da mais infiel de todas as
provas, afinal, como a de se fazer seu processo? Periciando-a, examinando-a? Não se pode
equiparar a testemunha aos demais tipos de prova, apesar de também ser evidência, não é um
objeto passível de perícia como os demais. A testemunha é um ser humano em primeiro lugar,
as informações relevantes que possam vir a ser por ela apresentadas estão em seu interior, no
plano subjetivo de sua existência. Como externá-lo enquanto é perseguida por fotógrafos,
cercada por pessoas que almejam influenciá-la e pressionada por advogados? Apresentar-se
25
como testemunha significa contribuir para a realização da justiça, no entanto o risco que se
corre não abrange tal idéia, por isso grande parte das pessoas mudam seus nomes após
participarem de tal processo, por medo das consequências que possam vir a sofrer.
O autor expõe na continuidade, a necessidade e importância da avaliação do aspecto
subjetivo do réu. Apresenta um importante artigo do Código Penal Italiano – seu país de
origem - ilustrando tal pensamento: “A conduta e a vida do réu, antecedentes ao delito; a
conduta contemporânea e subseqüente ao delito; as condições de vida individual, familiar e
social do réu.” (CARNELUTTI, 1995, p.50.), tal artigo pode equiparar-se às inúmeras vezes
em que nosso Código apresenta a importância da subjetividade do acusado, nos casos de
determinação de dolo ou culpa, por exemplo.
Para Francesco, todas as sentenças de absolvição, com exceção daquelas por
insuficiência de provas, implicam a existência de um erro judiciário. Quando se fala em erro
judiciário, não nos referimos somente àqueles que são condenados injustamente, por mais
grave que isto seja. Há de se destacar que, para Carnelutti, tais erros, não englobando os
acusados erroneamente, são atribuídos às limitações humanas, não cabendo responsabilizar a
este ou aquele pelo ocorrido. Mas ainda assim é de se questionar os terríveis danos que tal
limitação causa, basta perceber a terrível exposição que um homem sofre ao ser acusado de
algo, tendo sua imagem manipulada e até mesmo manchada perante a opinião pública,
alterando sua rotina, seus afazeres, dando-lhe tantas preocupações.
Para o absolvido o processo termina quando juiz profere tal sentença, mas não para
aquele que é condenado, o proferimento da sentença passa longe de ser o fim do processo,
talvez seja ainda uma parte do começo, analisando que o cumprimento da pena ainda estará
por vir. Ao fazer um paralelo entre hospital e penitenciaria, o autor traz a ideia de que esta
deveria se equiparar aquele no que tange a sua função, obviamente que de modo análogo. Ou
seja, deveria curar a enfermidade presente na mente do apenado, tratar-lhe de acordo com sua
necessidade. Além de a pena servir para intimidar os outros, deveria também servir para curá-
lo de sua problemática espiritual.
Ao chegar o dia da liberdade, o apenado acredita ter findado sua divida com a
sociedade, tem em si a esperança e ansiedade de retornar ao convívio social, em suma, foi
essa esperança que o manteve desde o primeiro momento que entrou em cárcere. Porém, tal
crença logo se desfaz, “O processo sim, com a saída do cárcere está terminado; mas a pena
não: quero dizer o sofrimento e o castigo” (CARNELUTTI, 1995, p. 75).
Logo, pode-se concluir o quão forte é a crença que se mantém na sociedade com
relação ao individuo que tenta se ressocializar, ainda o enxergando como encarcerado,
26
5 REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
GRECCO, Rogério. Curso de Direito Penal. 12. Rio de Janeiro: Impetus, 2013.
27
O ILUMINADO. Direção, produção e roteiro de Stanley Kubrick. Reino Unido: Hawk Films,
Peregrine, Warner Bros., 1980, 144 minutos. Cor. 2 DVDs.
2 APRESENTAÇÃO DO DIRETOR
*
Graduando em Ciências Jurídicas e Sociais da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Cajazeiras.
28
Anthony Burgess. A seguir, lança o longa metragem “Barry Lyndon”, de 1975, que resultou
em indicações e premiações ao Oscar, inclusive como o de Melhor Fotografia.
Em algum momento, Kubrick afirmou que gostava de adaptar livros medíocres,
porque geralmente culminavam em bons filmes. Assim, em 1980 gerou “O Iluminado” (The
Shining) considerado uma obra prima do terror moderno, sendo adaptado do livro homônimo
do respeitado escritor Stephen King. Aprovado por muitos e renegado por tantos outros, não
se pode desconsiderar a relevância dessa obra fantasmagórica como legado de Kubrick. Em
suma, “O Iluminado” requer um olhar social, psicológico e filosófico em torno das questões
suscitadas ao longo da película, bem como representa um período de amadurecimento
artístico e técnico de seu idealizador.
Por fim, Kubrick vem à óbito em Londres, em março de 1999, quando já havia
concluído sua última produção “De Olhos Bem Fechados” (Eyes Wide Shut), com Tom Cruise
e Nicole Kidman. Conquanto, deixou outros projetos inacabados, como a ficção científica “A.
I. Inteligência Artificial” (A. I. Antificial Intelligence) e o drama sobre a Segunda Guerra
Mundial, Wartine Lies.
da sua mulher, Wendy, e do seu filho, Danny. Isso permite discutir a moralidade, representada
por Wendy, e a amoralidade e irracionalidade, incorporada por Jack.
Sr. Ullman: “O pessoal lhe deu uma ideia em Denver sobre o trabalho a fazer?”
Jack: “De forma bem superficial.” Sr. Ullman: “Ah, bem... O inverno pode ser
fantasticamente cruel e a ideia básica é evitar os danos e depreciações que podem
ocorrer (...).” Jack: “Pois está ótimo pra mim.” Sr. Ullman: “Fisicamente não é um
trabalho que exija muito. A única coisa que pode tornar-se um pouco difícil é a
tremenda sensação de isolamento.” Jack: “Bom... Isso é exatamente o que estou
procurando... Estou desenvolvendo um projeto literário (...).”
trabalho compreende a capacidade de uma pessoa labutar com o intuito de produzir um valor
de uso. Assim, a relação estabelecida entre Jack e o Sr. Ullman é tipicamente capitalista.
Momentos depois, a temática capitalista novamente se manifesta. Trata-se da cena na
qual Jack, Wendy e Danny chegam para manter domicílio no hotel. Nessa ocasião, o Sr.
Ullman os levam para conhecer as dependências do Overlook, contando acerca da construção
deste.
6 REFERÊNCIAS
HOBSBAWM, Eric. A Era dos Impérios – 1875-1914. 7ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
apud SAÇASHIMA, Edilson Atsuo. A Questão da “Violência” no Cinema de Stanley
32
MARX, Karl. O Capital. São Paulo: Editora Nova Cultura Ltda., 1996.
FROZEN: uma aventura congelante. Direção de Chris Buck, Jennifer Lee. Manaus,
RIMO INDÚSTRIA E COMÉRCIO FONOGRÁFICA S.A., 2014. 1 DVD (102 min.); Filme-
vídeo; NTSC, son., color. Legendado. Port.
∗
Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
34
Hans Christian Andersen, A Rainha da Neve, que narra uma batalha entre o bem e o mal
travada por duas crianças contra uma feiticeira de más intenções (ANDERSEN, 2013).
Segundo os autores, a produção do roteiro – e, consequentemente, do enredo – era
voltada para uma história sendo contada de forma mais sombria, tendo Elsa como a rainha má
que desejava congelar o coração das pessoas enquanto Anna seria a heroína propriamente dita
durante toda a película. O foco da história mudou, no entanto, quando decidiram que as duas
personagens seriam irmãs, concedendo uma personalidade mais branda a Elsa. Ainda assim,
de acordo com Lee, havia uma necessidade de manter certos pontos da história original:
That was a part of the original Snow Queen story that we wanted to hold onto - it's a
story about love conquering negativity, in a society ruled by fear. Elsa represents
fear, and other characters represent aspects of that too, and Anna represents love - in
that story, that's all she's armed with. I think that's where we get that very timely, but
timeless feeling, with that theme. (LEE, 2013, p. de internet, entrevista concedida a
Mark Harrison)
A história do filme, por retratar primordialmente uma relação de amor não romântico
entre membros da família, em vez da fórmula habitual de um casal apaixonado, ainda inspirou
debates acerca da nova era de produções cinemáticas da Disney, mais voltadas para um
público amplo e genérico de pessoas, o que implicaria na busca por mensagens universais de
mais fácil alcance a estas (BUCK; LEE, 2014, entrevista concedida a Aline Brosh McKenna e
John August).
A história gira em torno de duas irmãs, Anna e Elsa, princesas do reino fictício de
Arendelle. A trama se desenvolve tendo como plano de fundo o distanciamento entre as duas,
gerado por um acidente na infância envolvendo habilidades de manipulação mágica de gelo
por Elsa, a mais velha. Anos depois, Anna descobre que o afastamento da irmã teve relação
com tais poderes sobrenaturais – e com a incapacidade de lidar propriamente com essa
situação.
Nos primeiros minutos do longa, somos apresentados à versão infantil das
personagens principais, na época em que ocorreu o acidente. O tempo da história vai
evoluindo rapidamente, pontuando apenas alguns acontecimentos (como o isolamento de Elsa
após ter involuntariamente ferido a irmã, a morte de seus pais em um naufrágio durante a
35
O mais novo longa de animação da Disney aborda temas mais sérios do que aparenta
à primeira vista – e, dado o seu alcance e é uma ótima oportunidade de conversar sobre
criminologia com o público infantil. O filme é rico, ainda, em exemplos e cenários factíveis
36
na realidade, podendo ser mencionados pontos como reparação civil de dano a bens móveis,
leis econômicas de oferta e procura no mercado, sanções internacionais através da quebra de
relações diplomáticas e diversas convenções políticas e jurídicas sobre o modo de governo no
contexto de Monarquia explorado na história.
O que aparenta ser, portanto, durante as quase duas horas de filme, apenas mais uma
história de superação das forças sobrenaturais através do amor, sob um olhar mais atento pode
se revelar um verdadeiro retrato da natureza humana quando submetida à vida em sociedade.
Mais que isso, a história usa cenários bastante interessantes ao estudo do próprio Direito.
Estes integraram o longa de forma tão natural que chegam a passar despercebidos
isoladamente – o que pode fazer de Frozen um precioso instrumento lúdico-didático de
reflexão sobre questões sociais, indo além de seu uso como mero objeto de entretenimento.
Chamaremos normais aos fatos que apresentam as formas mais gerais e daremos aos
outros o nome de mórbidos ou de patológicos. Se convencionarmos chamar tipo
médio ao ser esquemático que resultaria da reunião num todo, numa espécie de
individualidade abstrata, das características mais freqüentes na espécie com as suas
formas mais freqüentes, poder-se-á dizer que o tipo normal se confunde com o tipo
37
A reclusão de Elsa, tanto em seu quarto quanto em seu castelo de gelo, e seu
afastamento da sociedade, como tentativa de não gerar mais tumulto em relação a seus
poderes, é apenas um reflexo da penitência do indivíduo contra ele mesmo, ao reconhecer um
estado “doentio” dentro de si, mesmo que reconheça ser algo inevitável e além de sua
capacidade de controle ou contenção. Está presente de forma clara, nesse exemplo, a forma
com que o medo, o preconceito e o desconhecimento atribuem caráter patológico a toda
situação excepcional que pareça ameaçadora.
O ponto positivo em relação a este tema, no filme, é o reconhecimento público, ao
final, de que as habilidades especiais de Elsa não eram inerentemente negativas, sendo apenas
direcionadas para finalidades diversas de acordo com o estado de hostilidade em que a
detentora de tais poderes se encontrava. Em paralelo às questões da não-ficção, é possível
propiciar uma nova perspectiva na sociedade em relação aos taxados de doentes ou
amaldiçoados quando se vislumbra a possibilidade de reversão das consequências de tais
características especiais.
O que fica patente, pela observação dos acontecimentos narrados, é que a punição
pela responsabilidade atribuída à deuteragonista 1 se mostrou desmedida, por não buscar
minimamente outros indícios que pudessem corroborar ou elidir as alegações do julgador em
questão. Isto é, caso se buscasse antecipadamente verificar, sob a presunção de inocência ou
neutralidade do indivíduo acusado, se a narrativa do acusador era verossímil, poder-se-ia
chegar a uma conclusão mais acertada – e próxima da realidade – sobre os supostos delitos.
A evolução do Processo Penal, bem como o Direito num todo, vem se afastando
dessas arbitrariedades, na medida em que garante cada vez mais o acesso do indivíduo a
condições iguais de defesa e presunção de inocência. Nesse sentido, Giacomolli (2008, p.
331-344) sintetiza o anseio da nova fase do Processo Penal como uma necessidade de
assegurar a dignidade do processado, em detrimento da rotulação social como escória e de seu
reflexo voluntário ou involuntário no tratamento dos acusados.
Na narrativa do filme, são retratadas duas realidades distintas sobre o passado dos
personagens. A primeira linha narrativa faz o expectador acompanhar a trajetória de Elsa
desde sua infância até sua idade adulta, expondo todos os fatores relevantes para a construção
da personalidade da rainha, bem como os antecedentes que motivam a sua tomada de
decisões. Por outro lado, há o personagem de Hans, que aparece apenas na linha de tempo
presente e é desenvolvido através do olhar de terceiros, nunca inserindo o observador na
intimidade ou no passado do príncipe.
A descoberta, no final do longa, dos planos escusos do personagem contra as duas
irmãs, leva a duas análises distintas: ao mesmo tempo em que causa espanto a reviravolta no
caráter do personagem, levando as outras pessoas a mudarem sua opinião quanto a ele, faz-se
necessário questionar como seria desenvolvido esse juízo de valor caso o filme também
retratasse seu passado, sua infância e seus conflitos internos – assim como fez com Elsa.
A resposta parece estar na observação dos personagens coadjuvantes da história, pois
estes sim estão alheios à intimidade de Elsa. Da mesma forma em que, de uma hora para
outra, a opinião positiva quanto a Hans se desfaz, a impressão da rainha Elsa também é posta
em cheque durante a cena da festa de coroação, no início do filme.
1
Expressão com origem no teatro da Grécia Antiga, é o personagem que desempenha um papel secundário,
porém mais relevante que um mero coadjuvante.
39
Não quer dizer que vai mudá-lo? / Porque não vai acontecer / Mas conte com o
poder do amor / Que pode surpreender / O medo faz escolhas onde o risco é menor /
Mas ponha um pouco de amor [...] E vai ter o melhor! [...] Todos necessitam de uns
reparos / Essa é a questão / Pai, irmã, irmão / A gente cresce, vai melhorando em
união / Todos necessitam de uns reparos / Mas seja como for / O único jeito de dar
jeito no sujeito é com o jeito [...] do amor.
40
REFERÊNCIAS
ANDERSEN, Hans Christian. A rainha da neve. Traduzido por Per Johns. Belo Horizonte:
Tessitura, 2013.
BUCK, Chris; LEE, Jennifer. Chris Buck and Jennifer Lee interview: on making Frozen.
Entrevista concedida a Mark Harrison. Disponível em:
<http://www.denofgeek.com/movies/frozen/28495/chris-buck-and-jennifer-lee-interview-on-
making-frozen>. Acesso em: 13 ago. 2014.
DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. Traduzido por Pietro Nassetti. São
Paulo: Martin Claret, 2007.
LEE, Jennifer. Frozen with Jennifer Lee. Entrevista concedida a Aline Brosh McKenna e
John August. Disponível em: <http://johnaugust.com/2014/frozen-with-jennifer-lee>. Acesso
em: 14 ago. 2014.
PAIXÃO, Antônio Luiz. Recuperar ou punir?: como o Estado trata o criminoso. São Paulo:
Cortez, 1987.
SOLOMON, Charles. The Art of Frozen. São Francisco: Chronicle Books, 2013.
WOLFE, Jennifer. Disney names Jennifer Lee director of “Frozen”. Disponível em:
<http://www.awn.com/news/disney-names-jennifer-lee-director-frozen>. Acesso em: 18 ago.
2014.
TRABALHOS
CONVIDADOS
REVISTA ~
TRANSGRESSOES
Ciências Criminais em Debate
www.revistatransgressoes.com.br
42
RESUMO
Este artigo trata da questão do estupro carcerário de mulheres no
contexto do sistema carcerário: isto é, de todos os indivíduos do sexo
feminino que são afetados diretamente pela pena privativa de
liberdade, sejam apenadas, familiares, companheiras de apenados, etc.
O trabalho empreende a compreensão e o estudo da prática por um
viés denunciatório voltado para os direitos humanos, através da
pesquisa bibliográfica e de depoimentos com pessoas que entraram em
contato com a prática. Por fim, delineou-se como e onde os estupros
carcerários de mulheres no contexto ocorre, bem como quem são os
sujeitos (vítima e agressor) em questão, apontando medidas que
poderiam dar resolução ao problema, mas ainda assim denotando o
quanto a prática está enraizada no próprio sistema carcerário, sendo
dele derivada.
1. INTRODUÇÃO
Das diversas formas de violência, o estupro é reconhecidamente uma das mais atrozes
e desumanas, tendo em vista que inflige danos imensamente graves – muitas vezes
irreversíveis – às integridades física, moral e psicológica da vítima. Neste sentido, é
extremamente preocupante aperceber-se de que o estupro no interior do ambiente carcerário
tem sido uma prática rotineiramente perpetrada e facilmente verificável, tendo sido
especialmente voltada para a vitimização de parcelas muito vulneráveis dentro do ambiente
prisional: homossexuais, travestis e mulheres.
*
Membro do Núcleo Penitenciário do Programa Motyrum de Educação Popular em Direitos Humanos,
graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
43
É importante reconhecer que o próprio Estado tem responsabilidade pela prática, pois
tem permitido sua perpetuação por meio do descaso das autoridades competentes, da não-
responsabilização dos sujeitos envolvidos e, numa última análise, pela manutenção da
decrepitude do sistema carcerário do Brasil. Por sua vez, a sociedade brasileira, de modo
geral, vem demonstrando conivência e desinteresse junto ao fato, embora casos dessa
violência especificada sejam constantemente noticiados pelos meios midiáticos e pelas redes
sociais.
Neste sentido, até mesmo as pesquisas acadêmicas acerca do fato são caracterizadas
por certo grau de obliteração: identifica-se uma grande escassez de literatura específica
nacional, especialmente em se tratando do estupro carcerário vitimador de mulheres. É
possível vislumbrar referências pontuais em algumas obras; nada de montante considerável ou
específico para a compreensão total e a análise crítica e completa dessa prática extremamente
desumana e danosa para os indivíduos envolvidos.
Daí parte a grande importância deste estudo, pois ele significa a compreensão de uma
prática rotineiramente perpetuada que gera graves consequências para suas vítimas – e em
certa medida, também para o agressor (por exemplo o contágio de doenças venéreas). Este
trabalho, portanto, empreende o estudo do estupro carcerário de mulheres através de um
anteparo crítico que busca apontar suas origens (por que e como ocorre), seus sujeitos (vítima
– a mulher em situação de privação de liberdade – e agressor), seu cenário (o ambiente
carcerário) e as razões que proporcionam a perpetuidade da prática.
O objetivo geral, portanto, é apresentar uma análise de cunho predominantemente
crítico e denunciatório acerca do estupro carcerário que tem mulheres em situação de privação
de liberdade na posição de sujeito passivo ou vítima, relatando e descrevendo como e onde
ocorre, mencionando e empreendendo o estudo dos sujeitos. Tratar-se-á de uma pesquisa
bibliográfica na literatura específica nacional e internacional, recorrendo para isso aos dados
contidos em relatórios de entidades como o Centro Pela Justiça e pelo Direito Internacional
(CEJIL), a Pastoral Carcerária e a Human Rights Watch (HRW).
O estudo também trará depoimentos de pessoas que entraram em contato com o
ambiente carcerário (geralmente familiares de apenados) e de uma ex-apenada, em via de que
se invoquem as vozes das mulheres que presenciaram ou conheceram essa realidade,
realizando uma aproximação maior com o objeto de estudo do trabalho que, de outro modo,
seria praticamente impossível. Vale salientar novamente o fato de que o presente trabalho
enfrentou uma lamentável escassez de fontes nacionais sobre o tema, o que demonstra de
forma cabal a importância política do estudo e seu ineditismo.
44
1
Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou
permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.
45
In passing this law […] Congress belatedly acknowledged what researchers had long
been insisting: that sexual abuse of inmates by other inmates and by correctional
staff was rampant in U.S. prisons. PREA changed how Americans thought about
prison rape. What had been mainly a bad punchline (“Don’t pick up the soap in the
showers”) came to be seen as a human rights violation that public officials have a
duty to prevent. “Zero tolerance” toward prison rape is now national policy.
(FELLNER, Jamie. 2013. Disponível em: <www.hrw.org/news/2013/09/04/stop-
prison-rape-now>. Acesso em: 28 ago. 2014).
The commission’s work built on a core realization behind PREA: that pervasive
sexual violence in prison happens because of poor management, bad policies, and a
lack of commitment to preventing it. The history of prison rape is one of officials
who refused to admit that the problem existed or tolerated it or thought nothing be
done to stop it. All too often, prison authorities ignored inmates who reported sexual
abuse or failed to protect them from retaliation; investigations were shoddy, and
punishment was negligible. (FELLNER, Jamie. 2013. Disponível em:
<www.hrw.org/news/2013/09/04/stop-prison-rape-now>. Acesso em: 28 ago. 2014).
Ao se analisar a forma com que o estupro carcerário se perpetua e persiste, vê-se que
ele se tornou uma forma de violência “institucionalizada” dentro do sistema penitenciário,
sendo, em suma, mais uma das partes do aparato punitivo – especialmente em se tratando do
estupro carcerário voltado contra os apenados condenados pelo crime de estupro. Essa forma
de violência, como fizeram notar Nascimento e Guimarães (2013), é cometida sob uma
pretensa legitimidade baseada na expectativa de aplicação de justiça, mais consoante com a
lei de talião do que com a racionalidade dos direitos humanos: “se estuprou, deve ser
estuprado”.
Em pesquisa elaborada sobre o tema do estupro carcerário de estupradores, Gessé
Marques Júnior (2007, p. 105) contabilizou a opinião de 37 magistrados e promotores acerca
47
2
The Prison Rape Elimination Act of 2003 ou Lei de Eliminação do Estupro Carcerário de 2003.
48
humanizada que o suplício público ainda persiste, estando profundamente arraigada nas
concepções gerais da sociedade. Qualquer visita à um estabelecimento prisional, porém, é
mais que suficiente para desmistificar essas concepções: o cárcere é o ato de supliciar
discretamente e em longo prazo.
O cárcere cria estigmas. Ele quebra e deturba relações afetivas, sociais e familiares,
desumaniza o encarcerado e faz com que a pena transcenda de sua esfera pessoal rumo a sua
esfera afetivo-familiar. Finalmente, a prisão decreta, em certa maneira, a “morte social” do
ínvido. Beccaria (2011), ao defender o fim da pena de morte e dos suplícios, veria nulificados
os seus esforços quando do surgimento dessa nova modalidade de pena, em que o corpo físico
persiste, mas o indivíduo em sua faceta social torna-se, após a prisão, quase sempre num pária
social – isto quando já não o era antes da prisão.
Foucault (1997) ainda assenta que, no suplício, o principal sujeito é o povo, que assiste
e depreende a mensagem da pena, bem como por meio dela se deleita e entretém. Entretanto,
os antigos espetáculos do cadafalso acabaram e as multidões espectadoras também. O que não
significa que o povo deixou de ser sujeito principal no suplício carcerário: a grande diferença
é que há uma sutileza maior envolvendo a interação dos suplícios contemporâneos com o
povo; as multidões de outrora foram substituídas por toda a segurança e pelas comodidades
proporcionadas pelos meios midiáticos de difusão de notícias, que fizeram cair por terra toda
a descrição e o ocultamento que a prisão deveria ter.
Prova disso são os telejornais criminalísticos que, ao noticiar os crimes recentes nos
mais mínimos e grotescos detalhes, obtém uma escala astronômica de lucros e audiência,
suficientes para proporcionar ao famigerado apresentador do telejornal o status de verdadeira
celebridade – vale salientar que esses programas são sempre levados ao ar no horário das
refeições, em que atingem o maior público. Isso se observa igualmente na leitura dos
comentários feitos sob notícias criminalísticas publicadas em sites e redes sociais; é muito
errôneo admitir que os suplícios desapareceram e que algo realmente substancial mudou para
a figura do criminoso com a ascensão da pena de privação de liberdade – os papéis continuam
os mesmos.
O fato é que o povo, como um todo, conhece bem o que ocorre no interior do cárcere,
mas acaba não sentindo a necessidade de pedir ou pressionar pelas mudanças necessárias. A
estrutura do sistema carcerário contemporâneo é conveniente para aqueles que dela se
beneficiam; como bem assinalou Foucault (1997), com exceção de alguns momentos
históricos específicos, será o sujeito marginalizado da sociedade aquele quem deverá pagar
integralmente por seus crimes segundo os rigores da lei positivada. A justiça do período
49
feudal discernia perfeitamente entre servo e senhor, o que não é motivo de inveja alguma para
o aparato judicial brasileiro: a justiça do capital continua discernindo perfeitamente entre o
pobre e o rico; o senhor e o escravo de outrora; o negro e o branco.
Onde fica, porém, o estupro carcerário? Ora, o estupro carcerário – como a fogueira,
os tenazes, a forca, a roda e o açoite – é mais um dos aparatos punitivos do suplício
contemporâneo. É, sobretudo, uma forma muitíssimo cômoda de supliciar, pois é cometida,
na maioria das vezes, pelas mãos dos próprios encarcerados, que se violam entre si; é,
também, extremamente eficaz no seu propósito: o estupro diminui e anula a “alma” da vítima;
invade e quebra a integridade de seu corpo; e, ao mesmo tempo, macula profundamente os
dois. Como concebe Erich Fromm (1973), o estuprado é transformado numa coisa ao mero
deleito do estuprador; e conjuntamente, vítima e agressor se desumanizam.
As consequências dessa crueldade vitimam apenas aqueles que estão no interior do
cárcere; não geram comoção popular, nem atraem o interesse geral, porque as vítimas não são
“dignas” desses sentimentos – pelo contrário, merecem todo tipo de agressão. Se, nos
suplícios públicos, havia uma confusão entre o criminoso-vilão e o criminoso-herói, a atual
distância entre o povo e o supliciado fez com que o suplício encarcerado separasse bem as
duas concepções: os papéis são muito bem delineados e o crime é, quase sempre, sinônimo
para vilania.
Há exceções em se tratando do protagonismo do povo na “caracterização” do
criminoso; entretanto, a grande pressão popular, influenciada principalmente pela mídia, se
volta quase sempre para demandar punições rigorosas em casos que adquirem grande
notoriedade. Muitas sequer percebem que a manipulação midiática faz com que essas
camadas da população se voltem contra si mesmas, enquanto o manipulador desponta numa
condição superior, quase que heroica.
Portanto, de dentro da sociedade que deseja e mantém o cárcere, quem irá se importar
com a punição de mais um vilão? Na verdade, o estupro carcerário cumpre perfeitamente o
dever para que foi designado, de forma rápida, tempestiva e imediata, satisfazendo-o desde
sua simples existência, pois minimiza, coisifica, viola e, sobretudo, desumaniza; em última
análise, faz reproduzir numa microescala o que os efeitos do próprio cárcere.
Caso ocorrido com a adolescente L.M., presa por furto na Delegacia de Abaetetuba.
Ela foi presa numa delegacia comum, dividindo a cela com outros vinte presos
homens. A adolescente L.M. passou quase trinta dias sofrendo sucessivos estupros e
atentados violentos ao pudor, que resultaram em lesões corporais e queimaduras
pelo corpo. [...] Era de conhecimento de todos, inclusive da juíza e do conselho
tutelar, de que a adolescente estava detida naquela delegacia. No entanto, nada
haviam feito para protegê-la. [...] Ela também teria sido torturada pelo policial que a
capturou. (PASTORAL CARCERÁRIA, 2008, p.63-64).
lenocínio (cafetinagem), previsto do artigo 227 até o 230 do Código Penal 3, do que à
atividade da prostituição.
O estupro carcerário voltado para mulheres possui distinções muito relevantes do
estupro voltado para homens. Primeiramente, na maior parte dos casos documentados o
estuprador possui sexo diferente do da vítima – enquanto a maioria absoluta dos estupros de
homens é cometida por outros homens. Por isso, é concebível que estupros carcerários de
mulheres cometidos por homens são noticiados numa escala muito menor, tendo em vista que
as vítimas não têm (na situação ideal) contato constante com indivíduos do sexo masculino no
interior dos estabelecimentos prisionais. Por outro lado, a população carcerária feminina
compunha apenas 7% da população total brasileira em 2013 (CORDEIRO, 2013), o que
contribui para que a escala da prática seja visualizada como menor ao se tomar em
consideração o número de estupros carcerários masculinos.
Mencionando as estimativas dos Estados Unidos, 6,9% das apenadas norte-americanas
do sexo feminino relataram ter sofrido algum tipo de violência sexual de suas companheiras
de cela, enquanto 2,3% admitiram ter sofrido abusos cometidos por parte dos agentes
penitenciários (U.S. DEPARTMENT OF JUSTICE, 2013, p.17), numa população de 96000
mulheres entre os anos de 2011 e 2012. No sistema penitenciário do Brasil, caracterizado por
uma infinidade de deficiências estruturais, é de se estimar, com grande possibilidade de
acerto, que os números brasileiros sejam similares aos estadunidenses – também não é
exagero admitir que provavelmente são superiores.
Noutro sentido, o estupro carcerário de mulheres não é motivado por uma falsa
pretensão de aplicação da justiça (como o dos estupradores, por exemplo), nem está atrelado
ao ódio e ao preconceito voltado aos grupos vulneráveis, como homossexuais e travestis. Isso
significa dizer que toda mulher em situação de privação de liberdade é uma vítima em
potencial do crime – enquanto no estupro de homens existem diversos grupos de apenados
que estão praticamente imunes ao estupro, principalmente quando estes se beneficiam de
relações de poder. O estupro carcerário feminino, portanto, se motiva principalmente pelo
desejo de satisfação das necessidades sexuais, já que, normalmente, não pode haver aqui uma
pretensão lógica de justiça neste fato.
3
Art. 227 - Induzir alguém a satisfazer a lascívia de outrem. [...]
Art. 228. Induzir ou atrair alguém à prostituição ou outra forma de exploração sexual, facilitá-la, impedir ou
dificultar que alguém a abandone. [...]
Art. 229. Manter, por conta própria ou de terceiro, estabelecimento em que ocorra exploração sexual, haja, ou
não, intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente. [...]
Art. 230 - Tirar proveito da prostituição alheia, participando diretamente de seus lucros ou fazendo-se sustentar,
no todo ou em parte, por quem a exerça.
53
4
Termo popular empregado para denotar relação sexual entre duas mulheres.
54
a sexual), surge a atmosfera propícia para a prática do estupro carcerário feminino em que o
agressor é igualmente uma mulher. O seguinte depoimento corrobora com o presente
entendimento:
Lá nas [prisões de] mulheres o sabão é comum demais, muito comum mesmo. Mas
também o homem delas, o namorado, o marido, ele não vai, porque não quer fazer
revista, ou porque não liga mesmo, né? Enquanto ele tá lá dentro, a mulher tem que
ir todo dia de visita senão ele morre, passa mal, fica com ódio, bate... Quando é a
gente, meu filho... Aí não tem o que fazer. Só o sabão e elas lá fazem muito, porque
é só o que tem pra fazer. A mulher estando sozinha, abandonada, vai ficar sofrendo
não, né?
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Foi identificado que a prática ocorre motivada pelo desejo sexual, em primeiro lugar, e
acessoriamente pela estruturação das relações de poder dentro do cárcere. Viu-se também que
a prática ocorre atrelada à deficiência da infraestrutura dos estabelecimentos prisionais, em
especial a falta de estrutura física adequada e a prevalência de agentes penitenciários do sexo
masculino. Por fim, apontou-se que a perpetuação da forma específica de violência sexual
55
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e Das Penas. São Paulo: Martin Claret, 2011.
CORDEIRO, Edilene. Do total de 580 mil presos, população carcerária feminina no Brasil é
de quase 37 mil. Portal CNJ, Brasília, 22 ago. 2013. Disponível em:
<http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/26021-do-total-de-580-mil-presos-populacao-cerceraria-
feminina-no-brasil-e-de-quase-37-mil>. Acesso em: 13. Jul. 2014.
56
COSSI, Juliana. ‘Visita íntima’ ocorre diante de todos em presídio do MA, diz CNJ. Folha de
São Paulo, São Paulo, 28 dez. 2013. Disponível em: <
http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/12/1391028-visita-intima-ocorre-diante-de-
todos-em-presidio-do-ma-diz-cnj.shtml>. Acesso em: 15 jul. 2014.
FELLNER, Jamie. Stop Prison Rape Now. The Daily Beast, Nova York, 4 set. 2013.
Disponível em: <www.hrw.org/news/2013/09/04/stop-prison-rape-now>. Acesso em: 28 ago.
2014.
FROMM, Erich. Anatomy of Human Destructiveness. Nova York: Holt, Rinehart and
Winston, 1973.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 30. ed. Petrópolis,
RJ: Vozes, 1997.
LEITE, Gabriela. Filha, Mãe, Avó e Puta. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
NASCIMENTO, Raul Victor Rodrigues do; GUIMARÃES, Ryanny Bezerra. A Violação dos
Violadores: Um Estudo Acerca das Causas e Consequências do Estupro Carcerário de
Estupradores no Brasil. Revista Transgressões: Ciências Criminais em Debate, Natal, v. 2,
57
PRISON RAPE AND THE WOMEN OF THE PRISON: NA STUDY ABOUT THE
PRACTICE AROUND WOMEN IN THE CONTEXT OF THE PENITENTIARY
SYSTEM
ABSTRACT
This work involves the prison rape of women in the context of
penitentiary system, which denotes every female individual direct or
affected by the deprivation of liberty – inmates, familiars, mates of
sentenced ones, etc. The article aims to comprehend and study this
practice under a denunciatory point of view based on human rights,
making use of bibliographic research allied with personal testimonials
of subjects that maintained contact with the practice. At the end, it was
showed where and how women prison rape happens, as well who are
the subjects (victim and aggressor), pointing out measures that would
resolve the problem, but either indicating that this practice is very
rooted inside penitentiary system itself.
RESUMO
“Eu nunca quis ser igual às mulheres que conheci. Então, em vez de
ser mulher, escolhi ser gente.”
Elke Maravilha
1 INTRODUÇÃO
O sistema penal se erige partindo de uma lógica binária de separação por gênero, posta
à prova por aquelas pessoas que não se enquadram nas sectorizações que lhes são impostas.
Nesse desiderato, o sistema, em suas práticas de neutralização, vitimiza as individualidades
em prol de uma padronização. Em tal contexto, as mulheres trans sofrem violações de ordem
profunda, constituindo-se num grupo de alta vulnerabilidade que tem seus direitos cerceados
de diversas formas, numa amplitude que supera a das violências convencionais no interior do
cárcere, as quais se somam ao preconceito transfóbico e à transmisoginia.
A abordagem de tais questões no presente artigo será feita tomando por base o estudo
*
Membra do Núcleo Penitenciário do Programa Motyrum de Educação Popular em Direitos Humanos,
graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
**
Membro do Núcleo Penitenciário do Programa Motyrum de Educação Popular em Direitos Humanos,
graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
59
2
TRANSRESPECT VERSUS TRANSPHOBIA. Trans Murder Monitoring results: TMM IDAHOT 2014
Update. Disponível em: http://www.transrespect-transphobia.org/en/tvt-project/tmm-results/idahot-2014.htm.
Acesso em: 03 set. 2014.
3
LEITE, Gabriela. Filha, Mãe, Avó e Puta. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
4
GREEN, James N. A Homossexualidade Masculino no Brasil do Século XX. São Paulo: Editora UNESP,
1999.
5
CHICO BUARQUE. Ópera do Malandro. Rio de Janeiro: Philips: 1979. 1 LP (55 min).
61
Basta uma rápida olhada nos anúncios de emprego para deixar claro que o mercado
de trabalho possui uma estrutura segmentada pelo gênero-definido pela dicotomia
convencional homem/mulher. Muitos valores subjetivos e avaliações estão
embutidos nesta divisão - sobre aquilo que um homem ou uma mulher pode ou deve
fazer. Pessoas com uma ambigüidade de gênero poderiam causar confusão e sentir
rejeição, por não se encaixarem facilmente nos nichos que existem no mercado de
trabalho. A mesma ambigüidade pode ser vista como algo capaz de perturbar o
desempenho da função, principalmente num mundo onde muitas ocupações se
exercem vinculadas à apresentação e conservação da imagem. 7
6
VANESSÃO JI-PARANÁ/RO. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=OjdFsDo3hjY>. Acesso
em: 18 set. 2014.
7
CARVALHO, Everlyn Raquel. “Eu quero viver de dia”-Uma análise da inserção das transgêneros- no mercado
de trabalho. Anais do VII Seminário Fazendo Gênero 28, 29 e 30 de 2006. Disponível em:
<http://www.fazendogenero.ufsc.br/7/artigos/E/Evelyn_Carvalho_16.pdf>. Acesso em: 03 set. 2014.
62
provenientes de argumentos puramente morais não podem nem devem legitimar violações de
direitos constantemente perpetradas.
Desde a análise do que até então foi demonstrado, é muito importar reforçar a situação
já notável de profunda ofensa aos direitos fundamentais desse grupo de pessoas. O ponto
principal é a ser abordado diante disso é a tomada de medidas urgentes e específicas que a
situação exige, em prol da reversão do panorama atual.
Se essa é uma realidade disseminada em toda a sociedade, esses processos de
marginalização e exclusão social não poderiam deixar de ter um reflexo no sistema prisional,
levando-se em conta que a clientela desse sistema é constituída desde sua origem pelos grupos
excluídos, sendo ele responsável por aprofundar os processos de segregação através de seu
funcionamento em prol da manutenção do status quo da sociedade 8. Diante disso,
vislumbrando-se as múltiplas origens do processo de exclusão da população transgênera, que
é diferenciado pelo seu atrelamento ao preconceito de gênero, o contexto requer atenção
especial, e os estudos, infelizmente, ainda são muito incipientes.
Para compreensão dessa questão um tanto complexa faz-se necessário realizar um
apanhado teórico das funções exercidas pelo sistema penal, além da análise de sua estrutura
binarista, e, diante disso, dos seus efeitos observados no grupo da população transgênera.
O cárcere enquanto instituição total foi assim definido em razão do seu isolamento
com relação ao mundo exterior, o que pode ser constatado ainda em instituições como
manicômios e conventos. Através do funcionamento de tais instituições, leva-se a efeito um
processo de desculturação daqueles que ali se inserem, gerando a gradual incapacitação para o
mundo exterior, fato fundamental para o controle pelo cárcere daqueles sujeitos. Destarte,
notáveis no funcionamento da prisão a série de processos de mortificação da individualidade
construída nos momentos anteriores à inserção na instituição, que podem se dar não só através
de ações físicas diretas mas principalmente devido a própria estruturação da cadeia 9. Há ainda
8
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e a Crítica do Direito Penal. 3ª ed. v. 1. Rio de Janeiro:
Revan, 2002.
9
GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. Ed. Perspectiva. São Paulo: 1974.
63
[...] na sua estrutura mais elementar elas não são mais do que a ampliação, em sua
forma menos mistificada e "pura", das características títpicas da sociedade
capitalista: são relações sociais baseadas no egoísmo e na violência ilegal, no
interior das quais os indivíduos socialmente mais débeis são constrangidos a papéis
de submissão e de exploração 14.
10
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e a Crítica do Direito Penal. 3ª ed. v. 1. Rio de Janeiro:
Revan, 2002.
11
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 30. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997
p.149.
12
Idem., p. 151.
13
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e a Crítica do Direito Penal. 3ª ed. v. 1. Rio de Janeiro:
Revan, 2002. p. 176.
14
Idem., p. 186.
15
Ibidem., p. 177.
64
realizada pelo mencionado autor. Essencial, portanto, o incentivo da visibilidade trans, como
uma das formas de enfrentamento do preconceito presente em toda sociedade, bem como que
é reproduzido pelo judiciário no momento da jurisdição e pelas demais instituições do Estado
em seu funcionamento.
O surgimento da instituição prisão voltada para as mulheres no Brasil só se deu depois
de longo período sem distinção no sistema prisional, em que as mulheres ocupavam as
mesmas celas que os homens. Diante de casos de violência sexual e de comportamentos vistos
como promíscuos, realizou-se a instituição de unidades penais exclusivamente femininas.
Observe-se que nessas unidades se encontravam diversas mulheres que não se encaixavam
nos padrões sociais da época, dentre tais mulheres as prostitutas e as vistas como “desonestas”
em razão do seu comportamento social. Fonte importante de pesquisa para tais observações
são os relatórios dos Conselhos Penitenciários dos Estados, à época da criação de tais
unidades, que denotam o posicionamento discriminatório adotado, uma vez que:
Muitas das presidiárias eram prostitutas que eram recolhidas aos presídios, e não se
tem registros se estas mulheres eram julgadas e condenadas ou simplesmente presas
pelos policiais e soltas conforme duas vontades. Vale lembrar que prostituição nunca
foi considerada crime no Brasil, portanto estas mulheres eram enquadradas em crime
de "vadiagem". É recorrente ler-se nos relatórios as críticas feitas ao fato de "moças
de família", que praticaram aborto ou infanticídio devido a um devaneio
momentâneo, ficarem juntas às "prostitutas do mais baixo meretrício". Assim,
notamos que o próprio Conselho Penitenciário discriminava as "mais sujas" dentre
as "mais sujas" da sociedade. E quem são elas? São justamente as que não comprem
seu papel de mulher, que não possuem sua sexualidade voltada para a satisfação do
marido e para a procriação dos filhos. As prostitutas eram, desta forma, as piores
criminosas aos olhos da sociedade, sem, contudo, terem cometido crime algum 16.
16
HELPS, Sintia Soares. Mulheres na prisão: Uma reflexão sobre a relação do Estado brasileiro com a
criminalidade feminina. Revista Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, v.2, n.3, jan-jul/2013. p. 170.
65
uma resposta às opressões e violações de direito constatadas. Essas respostas, porém, não
parecem ser de fácil obtenção.
Importa salientar, por fim, que todos aqueles presentes na estrutura social do cárcere
(apenadas e apenados, agentes, administradores, familiares de pessoas em situação de
privação de liberdade, etc.) estão imbuídos com determinada carga social de pressupostos e
preconceitos em torno das questões de gênero; e é justamente a “intensidade” dessa carga
quem legitima ou proporciona graves violações e desrespeitos a população transgênera do
cárcere. Se na sociedade de fora esses sujeitos já possuem grande marginalização, na
sociedade do interior do cárcere essa marginalização adquire proporções astronômicas.
17
HEIDENSHN; GELSTHORPE apud ALIMENA, Carla Marrone. A Tentativa do (Im)Possível: Feminismos
e Criminologia. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris. 2010. p. 37.
66
observando nos estabelecimentos prisionais diversos vícios por ela denunciados, por uma
série de razões estruturais. No entanto, sua contribuição para o embasamento de toda e
qualquer melhoria para a situação das mulheres é inegável.
Pensando-se numa perspectiva de contrainteligência criminológica, superando o mero
denuncismo dessas mazelas 18 como forma de resposta revolucionária e inovadora aos
desmandos do sistema penal, e como imperativo para alteração da realidade das mulheres
trans, o grupo afetado com as maiores violações dentro do cárcere (que ocorrem, por exemplo,
diante da imposição às mulheres trans de dividir celas com homens, de desrespeitá-las na
expressão de sua individualidade, cortando seu cabelo ou reprimindo-as de forma ilegal), vê-
se na construção de uma criminologia transfeminista um caminho necessário.
É fundamental para a criminologia a incorporação de estudos aprofundados sobre
gênero, trazendo para si a multiplicidade de aspectos que estão contidas em suas teorizações e
que muito tem a contribuir para a crítica as práticas discriminatórias perpetuadas e alternativas
errôneas encampadas no âmbito das ciências criminais para lidar com a criminalidade.
Em passagem irretocável, crítica e questionadora do posicionamento do âmbito do
direito acerca das mulheres trans, nas palavras de Carla Marrone Alimena:
Retirar essas mulheres dessa posição marginal do campo das ciências criminais é um
pressuposto necessário para lidar de forma adequada com as situações tão gravosas que
presenciamos tanto no âmbito da vitimologia, rememorando-se nesse ponto os índices
assustadores trazidos na presente pesquisa em seu primeiro capítulo, quanto do fenômeno
criminoso em si e dos aspectos específicos da conflitualidade desses grupos. É preciso que os
estudiosos da criminologia se voltem a essa realidade na contribuição para as multiplicidades
de suas vertentes feministas, e, finalmente, para a construção de estratégias alternativas às
práticas atuais e ineficazes do Estado.
18
ATAÍDE, Fábio W. A. Viver a teoria: o ensaio de criminologia cautelar. Revista Transgressões: Ciências
Criminais em Debate. N.3. V.3. 2010. Disponível em:
http://www.revistatransgressoes.com.br/downloads/ed_03.pdf. Acesso em: 5 set. 2014. p. 55.
19
Agrado e Geni são, respectivamente, personagens em um filme de Almodóvar, denominado “Tudo sobre
minha mãe”, e de uma canção de Chico Buarque, denominada “Geni e o Zepelim”, ambas abordando uma
perspectiva trans em sua constituição.
20
ALIMENA, Carla Marrone. A Tentativa do (Im)Possível: Feminismos e Criminologia. Rio de Janeiro: Ed.
Lumen Juris. 2010. p. 197.
67
Diante disso, cabe uma reflexão acerca da patologização da população trans: será que
rejeitar o órgão masculino é de fato uma necessidade para que psicologicamente o indivíduo
tenha a identificação noutro sexo? Tal noção coaduna com a compreensão patologizada da
transexualidade, que impõe em diversos âmbitos a existência de um laudo médico que ateste a
presença do transtorno psicopatológico, ou seja, um distúrbio mental, para que a população
transexual possa ter a garantia de seus direitos. Há um conflito evidente entre a objetividade e
a subjetividade da própria sexualidade.
Esse conflito surge quando se tenta colocar o auto reconhecimento do gênero, algo
muito particular e íntimo, numa ótica objetiva que se contrapõe abertamente à subjetividade
dos indivíduos, tão necessária e marcante em torno do tema. Ocorre que é praticamente
impossível e – quase sempre – errôneo objetivar algo que, em essência, é amplamente
subjetivo; não há como fazer apontamentos lógicos quando o assunto em questão é
imensamente mais complexo do que a própria lógica permite ser. A questão do gênero é,
sobretudo, uma questão pessoal, quando não personalíssima, que não se deve impor por uma
legislação, ou muito menos por uma classificação estrita, ainda que o objetivo provável da
legislação fosse propiciar um suposto manejo adequado da população carcerária.
O fato é que a civilização ocidental/europeia tem iniciado só agora um processo maior
de compreensão e aceitação de sujeitos que possuem um auto reconhecimento de gêneros para
além do binarismo proposto pelo homem e pela mulher. A lógica tradicional de
homem/mulher está profundamente enraizada nos pressupostos e conceitos sociais que
68
alicerçam a sociedade, razão pela qual o legislador acabou por entender, erroneamente, que há
uma diferença objetiva entre travestis e transexuais passando necessariamente pela dicotomia
aceitação/rejeição do órgão genital masculino. Consoante o entendimento de Teresa Levy, é
possível compreender, através de seus ensinamentos, que:
21
LEVY, Teresa. Crueldade e Crueza do Binarismo. In: CASCAIS, António Fernando (Org.). Estudos Gays,
Lésbicos e Queer. Lisboa: Fenda, 2004. p. 187.
22
JAMI, Humaira. Condition and Status of Hijras (Transgender, Transvestites etc.) in Pakistan. Islamabad:
National Institute of Psychology, 2005. Disponível em:
<https://digitalcollections.anu.edu.au/bitstream/1885/8669/1/Jami_ConditionPakistan2005.pdf>. Acesso em: 18
set. 2014.
69
dois-espíritos”, que, como os hijras, desempenham papéis dos dois gêneros e se imbuem
igualmente de uma noção sacra 23.
Ocorre que a prisão, enquanto instituição tradicional, existe e é formulada de acordo
com esse binarismo, já que é fruto da sociedade brasileira/ocidental e, portanto, ostenta as
mesmas configurações de toda a conjuntura social de onde se originou, o que acaba por
colidir necessariamente com o valor de justiça e os princípios constitucionais que devem
basilar a execução da pena. A referida resolução, portanto, incorre em erro quando tenta
classificar sob ditames relativamente rígidos uma identidade que é fluida; ela simplesmente
desconsidera que existem transexuais que não rejeitam a genitália masculina, bem como
travestis que não necessariamente identifiquem-se como mulheres.
O ambiente prisional, em si, é caracterizado por uma notória fluidez nas questões
sexuais e de gênero. No interior do cárcere, um ambiente que muitas vezes comporta
privações afetivo-sexuais, há a ocorrência muito comum de relações homoafetivas, mesmo
quando os sujeitos consideravam (e continuam se considerando) heterossexuais. Por outro
lado, essa fluidez pode representar extremos: o estupro carcerário de estupradores (que, via de
regra, vitima homens) é um fruto da grande volatilidade das identidades de gênero
instabilizadas pelo fenômeno do encarceramento, mas pretensamente imbuída de uma noção
de justiça 24.
Para a população transgênera no interior do cárcere, incontinenti, reserva-se também
um outro submundo, um “submundo do cárcere”: a marginalização no contexto da população
marginalizada dos próprios marginalizados. Dráuzio Varella 25, no best-seller Estação
Carandiru, relata as condições de existência desses sujeitos, atrelada à prostituição, à
cafetinagem, à utilização do próprio corpo para obtenção de favores, para o sustento dos
vícios em drogas, o preconceito institucionalizado, as violências (morais, físicas e espirituais)
constantes, aos abusos e desumanidades de toda sorte.
Como, portanto, reconhecer, compreender, analisar e depreender uma solução para
essa situação de violação de direitos? A questão – de grande relevância – permanece aberta.
Pode-se saber, contudo, que qualquer legislação só terá eficácia e será justa quando
compreender de forma adequada os conflitos de gênero, partindo de uma dimensão que
23
JACOBS, Sue-Ellen; THOMAS, Wesley; LANG, Sabine. Two Spirit People: Native American Gender
Identity, Sexuality and Spirituality. Urbana: University of Illinois Press, 1997.
24
MARQUES JUNIOR, Gessé. “Quem entra com estupro é estuprado”: avaliações e representações de juízes
e promotores frente à violência no cárcere. 2007. 188f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-
Graduação em Direito – Universidade Metodista de Piracicaba, Piracicaba, 2007. Disponível em:
<http://www.observatoriodeseguranca.org/files/cp037977.pdf>. Acesso em: 29 ago. 2014.
25
VARELLA, Dráuzio. Estação Carandiru. São Paulo: Schwarcz LTDA – Companhia das Letras, 1999.
70
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
CARVALHO, Everlyn Raquel. “Eu quero viver de dia”-Uma análise da inserção das
transgêneros- no mercado de trabalho. Anais do VII Seminário Fazendo Gênero 28, 29 e 30
de 2006. Disponível em:
<http://www.fazendogenero.ufsc.br/7/artigos/E/Evelyn_Carvalho_16.pdf>. Acesso em: 03
set. 2014.
CHICO BUARQUE. Ópera do Malandro. Rio de Janeiro: Philips: 1979. 1 LP (55 min).
GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. Ed. Perspectiva. São Paulo: 1974.
HELPS, Sintia Soares. Mulheres na prisão: Uma reflexão sobre a relação do Estado brasileiro
com a criminalidade feminina. Revista Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, v.2, n.3,
jan-jul/2013.
JACOBS, Sue-Ellen; THOMAS, Wesley; LANG, Sabine. Two Spirit People: Native
American Gender Identity, Sexuality and Spirituality. Urbana: University of Illinois Press,
1997.
72
LEITE, Gabriela. Filha, Mãe, Avó e Puta. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
LEVY, Teresa. Crueldade e Crueza do Binarismo. In: CASCAIS, António Fernando (Org.).
Estudos Gays, Lésbicos e Queer. Lisboa: Fenda, 2004. p. 183-214.
VARELLA, Dráuzio. Estação Carandiru. São Paulo: Schwarcz LTDA – Companhia das
Letras, 1999.
ABSTRACT
marginalization, which can be seen further from the prisons walls, but
in an amplified way. The violations of this population’s rights will be
analyzed in the penitentiary ambit, as well state measures takin to
protect it and avoid arbitrariness. For this deepening in protective
measures, the present work will treat the resolution recently passed by
the Conselho Nacional de Combate à Discriminação and Conselho
Nacional de Política Criminal, which provides for a series of measures
whose effectiveness will be analyzed.
1 INTRODUÇÃO:
1
II ENADIR, GT 08, A antropologia em espaços de ensino do direito e o direito em espaços de ensino da
antropologia.
∗
Doutora em Antropologia Social pela Universidade de Brasília (2009), mestre em Antropologia Social pela
Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC (2004) e graduada em Ciências Sociais/ Habilitação em
Antropologia pela Universidade de Brasília (1999). Professora Adjunta do Departamento de Antropologia e do
Programa de Pós Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, UFRN
1
75
nacional, para que tenhamos uma concepção de justiça mais engajada socialmente e menos
assimétrica.
2
O fato de Berman ser um jurista renomado é outro aspecto relevante, em diferentes sentidos.
3
Nesse sentido, por exemplo, a Rússia faz parte do Ocidente, ao passo que a Inglaterra, nos século XI e XII,
adotou um outro modelo ao opor-se à noção de tradição jurídica formulada na Revolução Papal.
4
No século X, a reforma de Cluny, iniciada por monges, criou uma forma de governo hierárquico, translocal e
corporativo e que buscou apoiar o primeiro movimento de paz na Europa. Até este momento a Igreja era pensada
como eclesia, como o povo cristão e não como uma estrutura jurídica visível, corporificada em oposição à
autoridade política. Os monges faziam uma crítica profunda ao simonismo e nicolaísmo e buscavam a
emancipação política da Igreja. Este movimento, mais tarde, acabaria culminando na elaboração das Bulas
Papais ou Dictatus Papae nos anos de 1070-1075. Nesse contexto, nomeado como Papa Gregório, Hildebrand
elaborou o Dictatus Papae e ordenou que todos boicotassem padres que viviam em concubinato e os fez escolher
entre a dedicação à Igreja ou às suas famílias. Como não havia um exército da Igreja, o Direito foi fundamental
para que suas regras fossem cumpridas. Através de sua agência, o Papado iniciou um movimento de análise de
textos antigos e encorajou os estudiosos a darem início à ciência jurídica. Não havia um fórum jurídico ao qual o
papado e o império pudessem recorrer - somente ao papa ou ao imperador. A criação do Dictatus Papae foi
revolucionária, tendo um papel decisivo na constituição da tradição jurídica ocidental (cf. Berman, 2006).
2
76
5
Este é um debate bastante complexo e merece ser aprofundado em momento oportuno. Maiores informações
podem ser obtidas na obra de Berman (idem), entre outros.
3
77
nessa conjuntura, foi fundamental: coube-lhe o papel de colaborador da “reforma” sendo que
essa área do saber foi dotada dos dispositivos para tanto, para “regular” as condutas humanas
frente a uma nova ordem social que se impunha na Europa principalmente.
Assim sendo, a partir do século XI as instituições seculares passam a se desenvolver
e delas espera-se uma continuidade no tempo (como as universidades, igrejas, cidades e
governos, por exemplo). Tem origem uma nova forma de pensar e viver no mundo que
caracterizaria, para Berman, o pensamento e o modo de vida Ocidental. Esse ethos teria sido
sedimentado no decorrer de séculos, tendo sido marcado por transformações violentas e
profundas, por revoluções, dentre elas: a Papal, a Reforma Protestante, a Revolução Inglesa,
Americana, Francesa e Russa. Através dos processos que fomentaram, formulam-se os pilares
ocidentais: o Estado Nacional, a Universidade, o Direito, a Filosofia e o Indivíduo Moderno 6.
Embora o debate seja imensamente mais amplo 7, esse conjunto de revoluções acabou
por configurar a história ocidental, que se confunde com a própria tradição jurídica ocidental.
Desse modo, a história ocidental teria por característica o fato de ser marcada por períodos
recorrentes de mudanças nas quais os sistemas político, jurídico, religioso, cultural são
radicalmente transformados ou trocados. Nestes eventos, forças ilegais para substituir a ordem
estabelecida foram alçadas à condição de autoridade, criando novos e duradouros sistemas de
governo e de Direito, bem como novas visões sobre a comunidade, suas crenças e tradições.
Aliás, a despeito das diferenças que as marcam, as revoluções acima citadas
compartilham da mesma estrutura. Isto é, buscaram sempre “um direito fundamental, um
passado remoto, em um futuro apocalíptico” (Berman, idem: 31). Outrossim, pretenderam
“reformar o mundo”, lema da Revolução Papal que permaneceu nas demais revoluções ainda
que ganhasse uma roupagem mais e mais secular. Mesmo marcando o insucesso do antigo
sistema jurídico transformado radicalmente 8, todas pretenderam preservar a ordem e o bem
estar da comunidade pela promoção de uma idéia de justiça que, no fundo, é messiânica.
6
Para Berman esse processo está “completo” no período pós 1945.
7
O debate é imensamente mais amplo. No entanto, no momento, não cabe um debate mais denso sobre o tema.
A ideia, é apenas apresentar um panorama inicial. Para maiores informações, ver Berman, entre outros autores.
Dumont (1985) é também uma boa referência, sobretudo, para entender o processo de constituição da noção de
indivíduo moderno, do processo de constituição do que chamou de “ser-no-mundo”.
8
Lutero, por exemplo, queimou o Direito Canônico e o Papa Gregório VII denunciou os direitos emanados pelos
reis e imperadores. No entanto, nenhuma das grandes revoluções conseguiu abolir o direito pré-revolucionário e
adotar um novo sistema jurídico da noite para o dia. Desta forma, “cada revolução experimentou um período em
que novas leis, decretos, regulamentos e outras ordens eram estabelecidas em uma rápida sucessão e do mesmo
modo emendados, repelidos ou substituídos. Após algum tempo, contudo, cada revolução fez as pazes com o
Direito pré-revolucionário e restaurou muitos de seus elementos em um novo sistema, que incluía os principais
objetivos, valores e crenças pelos quais a revolução havia sido feita. Assim as grandes revoluções
transformaram a tradição jurídica permanecendo nela” (Berman, 2006).
4
78
Por outro lado, todas estas revoluções tiveram uma forte dimensão jurídica e foram
acompanhadas por transformações fundamentais nas estruturas sociais 9. Tiveram ainda
caráter transnacional, sendo que aquelas que se sucederam à Revolução Papal transferiram
parcelas significativas do direito canônico para o Estado Nacional secularizando-o.
Nenhum povo pode viver sem fé em uma vitória final. Portanto, enquanto a
escatologia adormecia, o laicismo tornou-se fonte das últimas coisas –
mudou-se para a escatologia de Karl Marx, por um lado, e para o de
Friedrich Nietzsche, por outro (ROSENSTOCK-HUESSY apud BERMAN,
idem: 40).
É a partir desse contexto histórico-social que Berman define o termo jurídico, que
não se restringe a um conjunto de regras e procedimentos, configurando-se como um sistema
sociocultural, composto por instituições, procedimentos, valores, conceitos, pensamentos e
regras próprias. “As fontes do direito ultrapassam à vontade do Legislador para abranger
também a razão e a consciência da comunidade, de seus usos e costumes” (idem: 22). Nessa
concepção, o direito tem por tarefa submeter a conduta humana ao governo das regras, o que
envolve um processo dinâmico de atribuição de direitos e deveres, a capacidade de resolver
problemas e criar canais de cooperação entre grupos sociais diversos.
A tradição jurídica ocidental está marcada por uma distinção relativamente nítida
entre as instituições jurídicas e as demais instituições. O direito tem uma autonomia relativa
ainda que outras instâncias o influenciem. É confiado a um grupo de pessoas especializadas,
treinado em uma técnica especializada de nível superior, com literatura e metodologia
específica. O sistema jurídico compõe-se por instituições jurídicas e por pessoas,
especialistas, que configuram as instituições, comandos e decisões jurídicas 10. Forma um todo
coerente (corpus iuris) que se diferencia, ao menos formalmente, do campo da moral e dos
costumes. A coexistência e a competição na mesma comunidade de várias jurisdições e
9
O novo direito canônico, por exemplo, praticamente exigiu a configuração dos Estados Nações e esteve
relacionado ao crescimento do comércio, à agricultura, à ascensão da cidade e dos reinos como territórios
autônomos, ao surgimento das universidades, do pensamento escolástico e de outras mudanças que afetaram os
oito dos dez séculos subseqüentes (idem).
10
Estas quatro características fazem parte da Tradição Jurídica Ocidental, do direito romano, desde II ac até o
século VIII e além. O direito romano, contudo, estava imerso na vida religiosa, dos costumes e na moral. O
direito canônico, por sua vez, estava vinculado à teologia e dizia respeito a penas aplicadas ao pecado. Com a
formação das Universidades essa relação começa a se fragmentar.
5
79
sistemas jurídicos, assim como a tensão entre os ideais e a realidade, entre estabilidade e
mudança são outras de suas principais características.
Ainda de acordo com a análise de Berman (2006) a tradição jurídica está em crise na
contemporaneidade, o que afeta a própria noção de Ocidente. Trata-se de uma crise em
relação aos valores e ideais jurídicos, uma vez que seus conceitos estão sendo fortemente
desafiados por transformações políticas, mudanças sociais e econômicas, entre outros
aspectos. Os motivos da crise, aliás, são inúmeros. Vejamos alguns deles.
No século XX, todas as nações ocidentais passaram a ser controladas fortemente por
agentes governamentais totalitários, sendo que muitos países adotaram uma forma de
capitalismo estatal. No campo do direito, o campo do direito privado sofreu transformações
devido à radical centralização e burocratização da vida econômica. O do contrato passou a se
adaptar a uma nova realidade econômica nas quais os principais termos são ditados por
grandes corporações. A divisão do direito público e privado é desafiada a cada dia. O direito
civil, que trata da família, de relações étnicas, raciais e de gênero, precisa ser reformulado
para atender aos novos contextos. O penal também sofreu mudanças drásticas e está sendo
provocado por novos crimes (como o de colarinho branco, o tráfico de drogas, de seres
humanos, de órgãos, etc.). A “presença” do Estado, ao final, tem marcado grande parte dos
procedimentos jurídicos, afetando a própria noção de “neutralidade” jurídica.
A crença no crescimento e desenvolvimento do direito ao longo das gerações começa
a ser enfraquecida ideologicamente, havendo inclusive uma noção de que o direito está
transformando-se basicamente um instrumento do Estado. Todos esses aspectos afetam a
confiança em relação ao papel da tradição jurídica no contexto atual. Na medida em que as
cidades tornam-se mais violentas e perigosas; que o sistema de bem estar social está em
falência; que a “justiça” perde suas raízes históricas e filosóficas transformando-se em palavra
vazia, o direito passa a ser olhado com desprezo e cinismo por segmentos sociais diversos.
Todas essas questões acabam tendo replicações em valores ocidentais caros, como a própria
noção de individualismo e liberalismo. Ou seja, a crise da tradição jurídica não se restringe ao
campo acadêmico, mas afeta a própria civilização ocidental e vice-versa.
Diante do quadro, cabe um debate mais profundo sobre a relação entre o direito e as
questões sociológicas e antropológicas que o envolvem. No sentido inverso, importa também
6
80
De acordo com Lima (2000), a Universidade é uma criação medieval, embora seja
muito distinta do que é hoje. No século XI era composta por homens do clero que faziam
“ciência” e jurisprudência. Nascia do contexto de renascimento da vida urbana e do
corporativismo jurídico, sendo formada por uma corporação de professores e alunos. As
Universidades eram essencialmente móveis, não sendo dotadas de instalações fixas próprias.
As primeiras escolas do pensamento jurídico no Império do Ocidente foram criadas
em Roma, onde foram elaborados os manuais introdutórios, como o manual de Gaio, que deu
origem a um texto que consolida a direito clássico: as Instituições de Justiniano, texto
“redescoberto” no século XI, transformando-se em uma referência fundamental para a
tradição jurídica ocidental, inicialmente ensinada em Roma, Bolonha, Palermo, etc.
No contexto, eram os clérigos que tinha familiaridade com estes textos, sendo
praticamente os únicos que eram formados na escrita e na leitura e que podiam ter acesso a
uma escola conventual. Foram eles, especialmente os glosadores, que preservavam,
interpretaram e ordenavam os escritos das primeiras comunidades cristãs e os organizaram em
um cânon de autoridade reconhecida. Focavam especialmente os textos antigos considerados
“clássicos” (gregos, romanos e hebreus). E, mesmo que o ambiente fosse de intenso
pluralismo jurídico (não haviam estados nacionais), compartilhava-se um forte senso de
“ecoúmene” cristã por oposição ao Islã e à cristandade oriental grega.
Depois de um período de relativo declínio, a Universidade é reformada no final do
século XVIII e XIX. Ganha autonomia, rompendo definitivamente com os dogmas
7
81
religiosos 11. Adota instalações e uma metodologia própria 12. No entanto, se Universidade
apresenta-se de uma forma distinta nesse período, o direito, como campo de saber, já estava
sedimentado desde o século XI. Alguns de seus princípios fundamentais têm sido
reproduzidos desde então, entre eles: o apego à tradição, a um senso de estabilidade e de
reformador social, como se fosse responsável por criar canais de cooperação entre diferentes
tipos de sujeitos e nações. A metodologia continua a privilegiar a objetividade, a
sistematização, a neutralidade, a centralidade dos dogmas e o princípio de “verdade jurídica”.
Embora este seja um longo caminho, é esse modelo de ensino do direito que chega e
permanece no Brasil, sendo imediatamente apropriado por uma elite. No Brasil Colônia e
Império, e mesmo nos primeiros momentos em que a República é constituída, o acesso ao
direito está restrito a um a elite, preocupada em fazer as leis para a reprodução de seus
próprios interesses. Historicamente essa estrutura se mantém, mesmo a despeito da
multiplicação de centros de ensino de direito no contexto atual – o que dá um aspecto, em
certo sentido ilusório, de que há um processo de maior “democratização” desse campo de
saber (cf. Faoro, 1984; Leal, 1997; Holanda, 1995; Wehling, 2004; Carvalho, 2004, etc.).
Diga-se, de passagem, que os vestibulares para o curso de Direito no Brasil ainda são
um dos mais concorridos e os ingressantes, como pude observar em vários momentos de
minha trajetória docente, estão em busca de um senso de justiça raso. Desconhecem a
realidade social mais ampla, ainda que existam exceções à regra. Preocupam-se com altos
rendimentos que a carreira pode possibilitar de forma singular, sentindo-se dotados de poder
já no primeiro semestre do curso.
A julgar pela estrutura do curso do Direito do Centro Universitário de Brasília –
Uniceub, onde lecionei no período de 2004 a 2010, as disciplinas sociologia, sociologia
jurídica, ética, história e cultura jurídica brasileira e filosofia ficam restritas aos primeiros
semestres 13. E em geral, costumam ser mal recebidas, pelo teor crítico que possuem, por
desvelarem a realidade social ao propor a ideia de interpretação em substituição à noção de
“verdade”, entre inúmeras outras questões. Não raro, inclusive, são feitos “motins” para que
estas disciplinas deixem de ser lecionadas. “Afinal, qual a utilidade desses conhecimentos?”
“Por que motivos despender recursos com essas disciplinas, se o que importam são os
11
Desde o ano de 1213 os clérigos haviam perdido o privilégio único de conferir licença para ensinar.
12
Para complementação do debate, confira, por exemplo, Santos (2003).
13
Ao contrário das outras, a disciplina filosofia é oferecida no primeiro e último semestre, no momento em que
os alunos estão elaborando suas monografias e muitas vezes cursando estágios. A importância que dão à
filosofia, nesse contexto, é mínima como pude perceber inúmeras vezes.
8
82
14
Aliás, os alunos chegam ávidos pelos códigos jurídicos e não raro os compram logo ao ingressar no curso.
Passam a ostentá-los pelos trajetos que fazem cotidianamente mesmo que não os utilizem ainda. Os códigos
parecem constituir como uma nova marca social.
15
Lembro-me que no Uniceub propus que alunos do primeiro semestre tivessem visitas aos presídios. No
entanto, essa indicação foi imediatamente rejeitada. Afirmaram que muitos alunos simplesmente desistiriam do
curso se tivessem contato com essa realidade. Era mais cômodo e viável levá-los para os Tribunais, lugares
“limpos”, suntuosos e no qual se encontram pessoas dotadas de status simbolicamente importante.
9
83
crime estão “fazendo justiça” por um lado, mas por outro ferindo princípios jurídicos quando
o sistema penitenciário não é capaz de assegurar os direitos humanos elementares para
aqueles que cumprem penas, especialmente quando provenientes de setores menos abastados
economicamente. Ou seja, muitos simplesmente não percebem como operam com um ideal de
igualdade que é utópico e que através de suas próprias práticas, sociais e jurídicas,
corroboram para a reprodução de contextos de desigualdade, assimetria e violência.
Todavia, um olhar mais focado na realidade social, incentivado desde os bancos
escolares, seria capaz de identificar essas lacunas. De fazê-los perceber que os presídios, por
exemplo, são incapazes de promover a ressocialização dos internos e funcionam como uma
espécie de apartheid social. A maior parte da população encarcerada é de baixa renda 16 e
escolaridade 17, sendo que essa população está composta em sua maioria por negros e pardos,
tratados como “lixo” no decorrer de suas vidas e, enfim, depositados nas grandes lixeiras que
são hoje os presídios como observei e comprovam pesquisas na área (Lemgruber et al, 2010).
Todavia, a “culpa”, na falta de um melhor termo, não deve ser dirigida somente aos
centros acadêmicos que formam bacharéis de direito, mas vincula-se a estruturas mais amplas,
envolvendo nuances políticas e mercadológicas. No Brasil, para que um bacharel em direito
torne-se um advogado, por exemplo, precisará ser aprovado na prova da Ordem dos
Advogados do Brasil – OAB. Aliás, passar na OAB é o objetivo de todos os alunos que
ingressam e continuam em um curso de direito e as Universidades, especialmente as
particulares, competem entre si para ver qual é aquela mais aprova alunos neste processo
seletivo. Se a Universidade aprova menos, terá seu potencial de alunos reduzido, menos
recursos e assim sucessivamente. Ou seja, as Universidades precisam também se adequar à
prova da OAB, ao mercado de trabalho, ao foco determinado por concursos públicos e desse
modo em diante. Estamos diante, portanto, de um ciclo vicioso, do qual não se sai facilmente.
Embora as dificuldades sejam múltiplas, acredito ser possível abrir brechas na
estrutura vigente e tenho me dedicado a isso, mesmo que minhas possibilidades de agência
sejam limitadas. Acredito que, se conseguirmos demonstrar que as possibilidades do campo
16
Muitos já cumpriram suas penas e continuam presos, justamente pela falta de acesso a advogados. Recorrer
aos Defensores Públicos é complicado, embora muitas vezes a única solução possível. Os defensores ganham os
menores salários do Judiciário, são poucos e em geral tem que cuidar, cada um, de centenas e até mesmo
milhares de processos, o que impossibilita a realização de um trabalho mais eficiente socialmente.
17
Na pesquisa realizada no Complexo Penitenciário João Chaves pude perceber que cerca de 80 a 90% dos
internos têm baixa escolarização. Ao aplicar um questionário para recuperandos do regime aberto e semi-aberto
em Parnamrim, município que faz parte da “grande Natal” uma cena foi especialmente chocante: em um
ambiente com cerca de 50 pessoas, 30 ou mais não sabiam sequer assinar seus próprios nomes. Precisavam usar
suas digitais nas listas de freqüência a que são obrigados a assinar diariamente.
10
84
do direito são mais amplas do que a simples aplicação mecânica de códigos e dogmas
jurídicos, poderemos contribuir para uma transformação mais ampla da própria sociedade.
No entanto, para a instauração de um diálogo verdadeiramente interdisciplinar,
outras dificuldades imediatamente se imporão. Muitos juristas desconhecem o relativismo, o
trabalho de campo, importando-se pouco com a questão da diversidade e desconfiando
veementemente da noção de que tudo é interpretação, tão cara à antropologia. Superar essas
questões é um longo caminho a percorrer.
Se as limitações são inúmeras para os “juristas”, para os antropólogos e sociólogos
são muitas as barreiras a superar. Como afirmou Tiscornia (2010), adentrar no mundo jurídico
provoca uma sensação de que somos hóspedes indesejáveis ou, no mínimo, pouco
apropriados, exóticos. Como cientistas sociais, dominamos pouco da linguagem hermética do
direito e ao mesmo tempo temos pouco potencial de agência se compararmos ao papel de
juízes, que ao assinarem um dispositivo legal podem condenar ou absolver uma pessoa, por
exemplo. Pesquisas no campo penitenciário serão diretamente afetadas por esse aspecto.
Muitos recuperandos só querem conversar com pessoas que podem ajudá-los penalmente e na
medida em que não dominamos os dispositivos legais e que não temos legitimidade social
para usá-los, o diálogo é limitado. Quando desejam ser ouvidos, temos a opção de ouvir suas
queixas e, se possível, levá-las para setores competentes. Mas nosso poder de ação é bastante
restrito como pude vivenciar em campo 18. Ademais, é comum que antropólogos e sociólogos
rejeitem o direito por desacreditarem no ideal de “justiça” propagado no Brasil, que, entre
outras coisas, prega a igualdade sendo profundamente desigual e assimétrico. DaMatta
(2000), inclusive, afirma que no Brasil o direito é para ser “driblado”.
Ao abordar o campo da antropologia jurídica na disciplina “Atividade Curricular em
Comunidade”, ofertada pelo Departamento de Antropologia da UFRN no primeiro semestre
de 2011, essas questões se fizeram bastante presentes. Os discentes tiveram uma resistência
enorme às leituras propostas. Diziam que “o foco era muito restrito”; “que não acreditavam
no direito e na justiça brasileira”; “que o direito era um curso de elite” e esses eram alguns
dos motivos pelos quais rejeitavam fortemente o debate indicado.
Aliás, quando afirmei que nossas práticas de pesquisa seriam realizadas no
Complexo Penitenciário João Chaves, já que a disciplina propunha unir atividades de ensino,
18
Em campo, nas raras vezes em que tive acesso a recuperandas do regime fechado, conversei com uma senhora
que disse que ainda está presa por falta de acesso a um advogado. Sua pena já terminou e continua presa, fato
que a deixa emocionalmente abalada. Para ela, o presídio é a representação do próprio inferno. Escutei seus
lamentos e prometi levar seu caso adiante, para autoridades competentes. Cumpri o que prometi, mas
efetivamente não sei se seu caso foi resolvido apesar de meus reiterados pedidos. A sensação de impotência, que
vivenciei tantas vezes ao realizar trabalhos com populações indígenas nacionais, se repete acentuadamente.
11
85
pesquisa e extensão, a resistência tornou-se maior ainda. Como resultado, mais da metade da
turma trancou o curso. Mesmo sendo cientistas sociais, percebi que muitos discentes estavam
envoltos em uma névoa de preconceito e medo, enebriados por imagens midiáticas
sensacionalistas que relacionam os recuperandos a animais e até mesmo à encarnação do
próprio Mal (cf. Zaluar, 1994). Estavam igualmente marcados por uma cultura e por noção de
“justiça” de base inquisitorial como afirmou Kant de Lima (1996, 2008). Afirmavam ainda
que indiretamente: “se estas pessoas erraram e transformaram-se em criminosos têm que
pagar, do pior modo possível, para que sejam redimidas, inclusive espiritualmente”. Isto é, os
próprios cientistas sociais não queriam desconstruir esse olhar e tirar suas próprias conclusões
através dos trabalhos de campo. Os exemplos mostram, portanto, que estamos diante de um
impasse: não somente os alunos do direito têm dificuldade para analisar a realidade social.
Esta dificuldade também se faz presente para alguns de nós, cientistas sociais.
No entanto, com persistência, consegui que alguns alunos superassem essas
primeiras impressões e que adentrassem comigo nesse novo e árido mundo. A proposta que
tinha em mente era passar filmes e documentários para os recuperandos e, a partir daí, discutir
com eles noções de cidadania e justiça, buscando identificar a polissemia do termo. Todavia,
outras limitações se impuseram. Ter acesso ao sistema jurídico como universo de pesquisa é
tarefa árdua, ainda mais se o foco é o sistema penitenciário, marcado pela violência e
corrupção (cf. Lemgruber & Paiva, 2010 e Soares et al, 2009). São várias as burocracias a
transpor, bem como justificativas (em geral mal compreendidas, já que o discurso
antropológico guarda, quase sempre, um senso de exótico) e necessidades de reorientações na
pesquisa.
No meu caso, a opção encontrada foi procurar o Projeto “Novos Rumos” vinculado
ao Conselho Nacional de Justiça do RN. Tentei estabelecer um diálogo com o próprio
Departamento de Direito da UFRN, mas as tentativas não lograram o êxito esperado e não
consegui estabelecer uma ponte entre os dois departamentos, aspecto que merece ser melhor
analisado em momento oportuno. O Projeto “Novos Rumos” abriu-me as portas,
possibilitando que tivesse autorização para a pesquisa (que dependiam do Secretario de
Justiça e Cidadania de Natal e dos próprios Diretores do Presídio).
A pesquisa, contudo, precisou ser reorientada. Ao invés de filmes e debates com as
recuperandas do regime fechado, eu e meu pequeno grupo de alunos 19 passamos a condição
de aplicadores de um questionário formulado pelo próprio Conselho Nacional de Justiça e que
19
Na disciplina permaneceram dez alunos, sendo que seis outros agregaram-se ao grupo como voluntários.
12
86
20
Isto é, são pessoas que conseguiram a progressão de pena e que vão ao presídio apenas para assinar a lista de
presença (regime aberto) e outras para pernoitar (regime semi-aberto).
21
Muitos entrevistados afirmaram, inclusive, que pior do que o tempo na prisão era o processo de
ressocialização. A vida na prisão deixa marcas profundas na vida dessas pessoas e é muito difícil superá-las.
13
87
começa a surtir efeitos e alguns dos recuperandos foram encaminhados para cursos de
capacitação e vagas de emprego na construção civil. Além dessas questões, pude comprovar
empiricamente que o direito é um sistema social e cultural, bem como percebi como o direito
afeta a realidade social, muitas vezes ajudando, inclusive a constituí-la e vice-versa.
Desse modo, o campo da antropologia jurídica tem me possibilitado perceber
nuances antes não evidenciadas. Não percebia, por exemplo, como a noção de direito está tão
fortemente vinculada ao conceito de cultura. Tampouco percebia como muitas práticas sociais
ocidentais estão também organizadas em torno de dispositivos legais específicos, que
inundam nossas vidas e organizam nossas relações com os outros e o mundo de uma forma
geral. Ampliar o debate, dessa forma, ganhou centralidade em minha vida enquanto docente,
pesquisadora e cidadã. Além de fundamental, penso que o exercício é essencial para uma
reflexão mais densa sobre a contemporaneidade, o que pode ser transformador.
5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
ADORNO, Sérgio. Racismo, criminalidade violenta e justiça penal: réus brancos e negros
em perspectiva comparada. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nº. 18, 1996.
OLIVEIRA, Luís R. Cardoso de. Existe violência sem agressão moral?. REVISTA
BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - V. 23 No 136 . 67, 2008.
14
88
CARVALHO, José Murilo de. CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem:
Teatro das sombras. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.
DAMATTA, Roberto. Entrevistas. In: CORDEIRO, L.C; COUTO, J.G. Quatro autores em
busca do Brasil. Entrevistas a José Geraldo Couto. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
LEMGRUBER, Julita; PAIVA, Anabela. A dona das Chaves: uma mulher no comando das
prisões no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Record, 2010.
15
89
LIMA, José Reinaldo de Lopes. O direito na história: Lições introdutórias. Max Limonad,
2000.
MIRANDA, Ana Paula Mendes; MOTA, Fábio Reis (orgs). Práticas Punitivas, Sistema
Prisional e Justiça. Niterói: Editora da UFF, 2010.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Um Discurso sobre as Ciências. São Paulo: Cortez, 2003.
SOARES, Luiz Eduardo; LEMOS, Carlos Eduardo Ribeiro; MIRANDA, Rodney R. Espírito
Santo. Editora São Paulo: Editora Objetiva, 2009.
16
90
WOLFF, Maria Palma. Antologia de vidas e Histórias na Prisão. Rio de Janeiro Lumens
Iuris, 2005.
17
91
RESUMO
Uma instituição (a), um ideal (b), e uma realidade (c). O ponto de convergência entre
os três elementos não é tão simples quanto deveria, no campo jurídico. É possível destacar
*
Graduação em Direito pela UFRN. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela UNI-RN. Mestre em
Direito Constitucional pela UFRN. Defensor Público do Estado do Espírito Santo, atuante no Núcleo de
Execução Penal.
92
alguns aspectos, de cada um destes elementos, para permitir a fluência da relação que
buscamos realizar nesse texto.
A Defensoria Pública (a) é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do
Estado, sendo expressão e instrumento da democracia cuja atribuição precípua é a orientação
jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa dos direitos fundamentais de forma
integral e gratuita aos vulneráveis. Todos esses conceitos foram estampados com a Emenda
Constitucional nº 80 no artigo 134 da Constituição Federal de 1988. Além disso, entre as
garantias de organização (DIMOULIS, 2012, pág. 57) previstas na Constituição Federal, a
Defensoria Pública é uma das que possui maior proximidade com a função de possibilitar o
exercício dos direitos fundamentais.
Quanto a Justiça Social (b), é interessante destacar que se trata de uma mudança do
“tempo de referência” do direito, que na concepção liberal se refere ao passado, e por isso
sobrevaloriza a certeza jurídica. Obviamente, quando o presente lhe é agradável,
sobrevalorizar o passado e a firmeza das relações – e o status quo – é uma forma confortável
de se fazer a justiça. Todavia, uma nova concepção de justiça surge, alterando o seu
referencial para o “tempo futuro”, pois o direito prescreve programas de desenvolvimento,
ainda que com promoção gradual – que não se confunde com promessas ou normas
programáticas – e isso se aproxima do conceito de uma justiça social (VIANNA, 1999, pág.
16).
A Constituição Federal de 1988 é repleta de dispositivos que indicam ser a Justiça
Social um dos fins da construção da sociedade brasileira. Um grupo de preceitos relacionados
preponderantemente à garantia e promoção da redução dos desequilíbrios sociais em favor
dos inferiorizados da comunidade política estão previstos no texto constitucional e podem ser
exemplificados pelos seguintes: previstos no artigo 3°: “construir uma sociedade livre, justa e
solidária. Garantir o desenvolvimento nacional e erradicar a pobreza e a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais e regionais” (incisos I, II e III); pelo artigo 170: soberania
nacional, função social da propriedade privada, defesa do consumidor, defesa do meio
ambiente e redução das desigualdades regionais e sociais (incisos I, II, III, V, VI, VII); e,
sobretudo, art. 1º ao estabelecer a dignidade da pessoa humana como fundamento da
república.
Por sua vez, a Execução Penal (c) aqui tratada se refere à todo um complexo
sistêmico, jurídico, judicial e administrativo, dedicado à aplicação da pena decorrente da
sentença penal. Não somente no campo fático-jurídico visto sob uma ótica positivista do
direito – aquela que analisa acriticamente a lei, o fato, e a subsunção repleta de um valor –
93
1
O “país da impunidade” é um generalismo conveniente dissipado, sobretudo, pelas classes dominantes. A
imunidade histórica de tais classes é projetada sobre as classes dominadas, que de fato sofrem em excesso o
poder punitivo do Estado. Para essa grande maioria de brasileiros, a punição é fato cotidiano, quando não uma
projeção de futuro quase inescapável. (BATISTA, Nilo. Punidos e Mal Pagos: violência, justiça, segurança
pública e direitos humanos no Brasil de hoje. Rio de Janeiro: Revan, 1990, pág. 38.) Outra relação que deve ser
destacada quanto à falácia da impunidade é que aqueles que fazem uso desse discurso dificilmente conhecem
uma realidade carcerária, e muitas vezes associam o fato de terem sido vítimas de algum fato delitivo e não
terem, imediatamente, a resposta desejada da vingança estatal. Contudo, não se preocupam em conhecer se
realmente houve tal impunidade – se a “justiça” que almejam é a prisão do “malfeitor”, certamente poderão se
sentirem justiçados ao visitarem uma Unidade Prisional e ali escolherem quem foi, dentre tantos iguais, aquele
que lhe causou o mal.
94
2
Art. 134, caput, da CF, alterado pela EC/80.
3
Ou seja, na visão inicial do papel do órgão restrito ao fornecimento da Assistência Jurídica aos pobres.
96
Diante disso, a função típica da Defensoria Pública na Execução Penal engloba todos
os interesses do apenado no curso do cumprimento da sanção. A seguir, falaremos quais são
os objetos mais comuns da atuação do Defensor Público nessa atividade típica na Execução
Penal.
Considerando o sistema progressivo de cumprimento de pena, a progressão de
regime prisional é um constante pedido feito em favor do apenado. Atentando ao disposto no
artigo 112 e os demais relativos à matéria, o Defensor Público deve requerer a progressão
para o regime mais brando no momento oportuno, observando se os cálculos lançados no
resumo de cumprimento de pena estão corretos, sobretudo quanto às frações utilizadas de
acordo com a natureza do delito e a jurisprudência, a contagem do período de pena
efetivamente cumprido, e o elemento subjetivo suficiente.
Esse elemento subjetivo – conduta carcerária – também é tema de atuação da
Defensoria Pública, sendo constantemente responsável pela defesa técnica em Procedimento
Administrativo Disciplinar que busca apurar o cometimento de falta disciplinar por parte do
interno, além de realizar sua defesa oral nas audiências de justificação, quando se tratar de
falta de natureza grave prevista na legislação. O pedido do livramento condicional também é
matéria rotineira na atuação do Defensor Público que atua na Execução Penal.
Temas ainda relativos à execução da pena e com grande relevância para o apenado
são os pedidos de indulto e comutação das penas. Nesses casos, não só na esfera individual
pura atua a Defensoria Pública, mas também em demandas coletivas em favor de um grupo de
pessoas. O Decreto de Indulto nº 8.172 de 25 de dezembro de 2013 passou a prever
expressamente que a Defensoria Pública – enquanto órgão da execução penal – poderá enviar
em formato de lista o pedido dos apenados que façam jus ao direito do indulto ou comutação
da pena previsto naquele ato normativo. O Defensor Público também deve atentar para a
possibilidade do pleito do Indulto ou Comutação em face de Decretos anteriores ao ano
corrente, visto se tratar de direito público subjetivo. 4
A adequação do regime inicial do cumprimento da pena, observada a detração do
período de pena cumprido em razão de prisão cautelar, também é assunto corriqueiro para a
Defensoria Pública. Sobretudo após a modificação operada pela Lei 12.736/12 no artigo 387,
§2º do Código de Processo Penal, em que tal detração pode ocorrer ainda na fase do juízo do
conhecimento, desde que tal providência altere o regime inicial do cumprimento da pena. Nos
4
São praticamente exclusivos da Defensoria Pública os pleitos feitos quanto à comutação em cascata, por
exemplo, quando se calcula posteriormente o direito à comutação com base em decreto antigo, e por
consequência a redução da pena nos anos subsequentes, o que permite o pleito de uma comutação seguida de
outras.
97
casos da realização da detração sem alteração do regime inicial, deixa de ser de interesse do
apenado a sua realização na esfera do juízo do conhecimento e passa a ser tema a ser
suscitado pelo defensor técnico na execução da pena.
Além desses temas cuja natureza é eminentemente jurídica, o Defensor Público
também comumente atua em relação a outros aspectos do acompanhamento do cárcere. Um
tema comum diz respeito à saúde e integridade física do preso, sendo determinante a atuação
do Defensor Público, seja junto à autoridade administrativa e aos profissionais da saúde da
unidade prisional, seja junto à autoridade judicial, quanto às providências para a manutenção
do estado de saúde do preso, ou em situações excepcionais, medidas para proteger a saúde e a
vida do interno. Situação de saúde extrema, por exemplo, permite o pedido da prisão
domiciliar humanitária.
Estas são apenas algumas anotações da atuação típica do Defensor Público na
Execução Penal, baseadas na rotina do atendimento do órgão. Para a efetivação dessa
atividade típica é indispensável a obediência ao previsto no §5º, artigo 82 da Lei de Execução
Penal que determina a existência de instalação própria para a Defensoria Pública nos
estabelecimentos penais, sendo, obviamente, imprescindível que tais instalações sejam
adequadas ao bom funcionamento da atividade do Defensor Público, além de respeitar as
prerrogativas funcionais.
Essa atuação típica possui uma importância determinante para o sistema da execução
penal. É inimaginável, atualmente, que inexista um sistema de cumprimento de pena que
obedeça minimamente os direitos da pessoa presa sem a imediata e direta atuação da
Defensoria Pública.
Todavia, essa atuação típica da Defensoria Pública não pode se realizar de forma
automatizada e ausente de crítica. O risco de uma atuação típica mecanizada é o de que em
um sistema de encarceramento em massa, se passe à ofertar também uma defesa massificada,
como em uma linha de produção.
A existência de um órgão que realize a defesa individual do preso no cumprimento
da pena é determinação que, caso não seja bem exercida, oferece o risco de se tornar mais
uma engrenagem de um sistema repressor de superprodução de pessoas presas. Não pode a
Defensoria Pública servir como órgão legitimador de um fenômeno de encarceramento em
massa, realizando formalmente a defesa do apenado como meio de justificar que, uma vez
98
2.2 A atuação mais que típica da Defensoria Pública: para além da demanda
individual e o reforço do caráter político da atividade do Defensor Público
MARTINS, 2012, pág. 52). Ou seja, uma exigência de que o Estado deva agir no sentido
indicado pela Constituição para prover algo, uma prestação estatal que busca efetivar a esfera
material do direito à igualdade.
A demanda levada ao poder judiciário, nesses casos, consiste em determinar a
obrigação do Poder Público em efetivar determinado direito social, de forma concreta. Por
essa razão que em tais situações – em que a autonomia dos poderes é mais sensível – a função
política se sobreleva.
A Defensoria Pública, no exercício da missão constitucional da defesa dos direitos
fundamentais também na esfera coletiva, possui uma Função Política acentuada, ainda mais
na atuação referente a matéria da Execução Penal. O caráter contramajoritário do
posicionamento da Defensoria Pública é posto em maior destaque nesse campo.
A defesa dos direitos sociais das pessoas presas não possui um poder atrativo à
sociedade em geral, que envolvidos em uma ideologia punitivista, enxergam qualquer atuação
em favor do apenado como uma perda de tempo e recursos públicos. As medidas – e, por
vezes, os responsáveis por eles – que buscam efetivar os direitos sociais dos apenados
recebem a mesma censura do que os próprios presos. O discurso do ódio que se alastra em
relação a pessoa condenada atinge todos que estejam ao seu lado. A família é uma das
principais vítimas desse efeito reflexo. A defesa técnica também.
Justamente em razão de ter que suportar um pesado ônus de ser uma função
contramajoritária que deve recair sobre um órgão público, autônomo e independente, a função
precípua da defesa dos interesses coletivos das pessoas encarceradas. 7 A autonomia funcional
da Defensoria Pública decorre de expressa previsão constitucional 8 e tem por objetivo
permitir que o órgão não se torne refém de pressões externas, públicas, midiáticas ou da
sociedade, quanto ao seu exercício.
Em razão dessa atribuição constitucional, a Defensoria Pública possui ampla
competência em matéria de direitos coletivos, podendo utilizar os meios tradicionais já
7
Não é exclusivo da Defensoria Pública a defesa dos direitos coletivos. Diversos outros órgãos, especialmente o
Ministério Público, possuem o mesmo dever constitucional. Contudo, quando se fala em defesa dos direitos
coletivos das pessoas presas, o elemento do desinteresse público majoritário ganha destaque. Atuar em favor da
construção de hospitais (direito à saúde), da contratação de professores (direito à educação), da urbanização de
uma área (direito ao meio ambiente urbano), da regulamentação de terrenos (direito à moradia) e outras medidas
semelhantes são de interesse de todos os órgãos responsáveis, pois geram uma imagem positiva à sociedade que
apoia tais iniciativas. Todavia, a luta pelo direito dos presos envolve se posicionar de forma contrária ao
pensamento majoritário, o que não gera o mesmo efeito atrativo aos demais órgãos em razão da resistência
social, o que acaba levando à atuação mais intensa da Defensoria Pública.
8
CF, Art. 134, 4º: São princípios institucionais da Defensoria Pública a unidade, a indivisibilidade e a
independência funcional, aplicando-se também, no que couber, o disposto no art. 93 e no inciso II do art. 96
desta Constituição Federal.
101
Todavia, tal exercício da função política na atividade coletiva não deve cingir-se as
questões judiciais. A Defensoria Pública possui por si uma função política própria, e sendo
órgão autônomo e independente do poder judiciário, do executivo ou do legislativo, com estes
poderes deve interagir em igualdade horizontal, no sentido de sempre expressar sua visão
institucional.
No caso da atuação da Defensoria Pública na Execução Penal, ganha ainda maior
destaque ao ser reconhecida como Órgão da Execução Penal, além de compor importantes
órgãos de deliberação coletiva, como o Conselho da Comunidade e Conselho Penitenciário.
A interação com os demais Poderes permite que a Defensoria Pública participe do
processo de construção das políticas públicas, e assim possa da forma mais ampla possível
defender os interesses dos apenados, bem como criticar e argumentar de forma contrária à
políticas desinteressantes aos fins constitucionais, tal como a política de encarceramento em
massa.
A promoção dos Direitos Humanos e da Democracia não se realizam na esfera
judicial de forma prioritária. Na verdade, o poder judiciário é provocado quando se verifica
uma violação desses objetivos constitucionais. Antes mesmo da judicialização dos conflitos
sociais, a função da Defensoria Pública já é precípua, devendo integrar a construção das
políticas sociais que promovem tais fins, em atuação conjunta com os demais poderes. Por
isso mesmo que foi nomeada tal atividade da Defensoria Pública como função mais que
típica, pois deve ser o vetor de atuação principal da instituição.
9
Ver: CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso á Justiça.
103
10
Por exemplo, a preparação para os projetos de educação popular dos Defensores Públicos devem adotar
metodologias como a de Paulo Freire e estabelecer uma interação com a população assistida por seu serviço.
104
Dessa forma, a Defensoria Pública deve se fazer presente em todas essas fontes de
obstáculos para ter chance de colaborar com a ruptura de um programa de encarceramento em
massa. A crença na capacidade do direito em promover a emancipação 11 ainda resiste quando
se enxerga o potencial que a Defensoria Pública possui na sua atuação constitucional.
REFERÊNCIAS
BATISTA, Nilo. Punidos e Mal Pagos: violência, justiça, segurança pública e direitos
humanos no Brasil de hoje. Rio de Janeiro: Revan, 1990
SANTOS, Boaventura de Souza. A cor do tempo quando foge: uma história do presente.
Crônicas 1986-2013. São Paulo: Cortez, 2014.
11
Sobre: SANTOS, Boaventura de Sousa. Poderá o direito ser emancipatório? Vitória: FDV; Florianópolis>
fundação Boiteux, 2007.
105
WACWANT, Loic. Punir os pobres: a Nova Gestão da Miséria nos Estados Unidos. Rio de
Janeiro: F. Bastos, 2001, Revan, 2003.
ABSTRACT
RESUMO
*
Editor-Chefe da Revista Transgressões: Ciências Criminais em Debate, Professor de Criminologia e Teoria da
Pena pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Mestre em Direito Constitucional, Juiz de Direito.
107
1
SALEILLES, Raymond. A Individualização da Pena. Trad. Thais M. S. da Silva Amadio. São Paulo: Rideel,
2006, p. 30.
2
PROUDHON, Pierre-Joseph. Sistemas das Contradições Econômica ou Filosofia da Miséria. T. I, trad.
Antônio Geraldo da Silva, São Paulo: Escala, 2007, p. 359.
3
Ibidem p. 341.
4
Teoria das Penas Legais e Tratado dos Sofismas Políticos. Sem tradutor mencionado. São Paulo: Edijur,
2002, p. 20.
5
Ibidem, p. 22.
6
Segundo afirma, "a pena tem uma tendência para emendar o homem, quando é calculada de modo que pode
enfraquecer os motivos enganosos e reforçar os motivos tutelares” (BENTHAM, Jeremy Op. cit., p. 38)
7
Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. Trad. Ana Paulo Zomer et al. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002, p. 406.
108
fisiológicas, a justificar uma presunção de periculosidade incompatível com os princípios
penais clássicos, ou seja, "o positivismo penal, cientificamente 'avançado' pelos padrões da
época, constituiu-se uma rigorosa forma de controle social e justificação da repressão
desencadeada contra as massas" 8.
O classicismo se diferencia do positivismo criminológico, fundamentalmente, pelo
método, dedutivo no primeira e indutivo no outro. Dessa forma, enquanto os autores clássicos
estudavam, dedutivamente, o infrator como um homem médio, normal, idealmente abstrato e
isolado do crime 9, os positivistas analisam o homem a partir de experimentos que conduzam a
respostas indutivas, isto é, investiga não apenas o crime, mas a relação dele com o homem que
o pratica. Ou, noutras palavras, os primeiros se fundamentam em dados da razão e, portanto,
apriorísticos, e os outros levam em conta dados integrantes das ciências experimentais
(fisiologia, psicologia, anatomia, etc) 10. Portanto, a criminologia positivista estabelece
indissolúvel relação entre crime e criminoso, aproximando a ciência criminal de outros
conhecimentos, em direção à perquirição das anomalias psíquicas do delinquente, que
obedecia a um padrão orgânico, um tipo nascido com a predisposição para violar a lei e,
assim, o faria em ambiente favorável.
A Lombroso parecia indiscutível que as características físicas do homem eram sinais de
predisposição para o crime. A assimetria craniana e facial, a proeminência dos maxilares,
certa formação das orelhas e até a falta de barbas, entre outros sinais, indicavam a inclinação
criminosa de um indivíduo. À época, não era surpreendente comparar o homem criminoso aos
animais irracionais ou mesmo às plantas carnívoras, cujos instintos e predisposições naturais
conduziriam tais seres a cometerem o que entre os humanos intitula-se crime. Com efeito,
tanto nos animais irracionais como nos homens, poderiam ser causas de delitos a antipatia, as
paixões, as aglomerações, o roubo, o alimento, a educação ou, inclusive, as condições
climáticas 11.
Inspirado nos estudos de frenologia de Gall e também nos ensaios fisionômicos de
Lavater 12, Lombroso defende que as anomalias cranianas são determinantes de perversidade
entre homens e animais, ainda que, nos últimos, os distúrbios provenientes de tais
8
As Razões do Positivismo Penal no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 302.
9
Para os clássicos, a pena era critério de proporcionalidade, resultando não somente da infração, mas da
intensidade de vontade, do dano causado, da autonomia e culpabilidade do autor (ARAGÃO, Antonio Moniz
Sodré. As Três Escolas Penais: clássica, antropológica e crítica. Rio de Janeiro, São Paulo: Freitas Bastos,
1955, p. 170).
10
BETTIOL, Giuseppe. O Problema Penal. Trad. Ricardo Rodrigues Gama. Campinas/SP: LZN, 2003, p. 86.
11
Nietzsche revigora, na sua filosofia, estas preocupações. Dentre os erros do homem, diz, está o de sentir uma
“relação hierárquica falsa diante dos animais e da natureza” (A Gaia Ciência. Trad. Antonio Carlos Braga, São
Paulo: Escala, 2006, p. 123).
12
Cf. ARAGÃO, Antonio Moniz Sodré. As Três Escolas Penais: Clássica, Antropológica e Crítica. Rio de
Janeiro, São Paulo: Freitas Bastos, 1955, p. 56.
109
deformações ósseas sejam mais evidentes. Surgem, nas anotações lombrosianas, estatísticas
de estudos sobre cérebro, cerebelo, coração, fígado, órgãos genitais e estômagos de
criminosos, loucos e indivíduos normais. Seus exames não ficaram entre os cadáveres;
analisando quase quatro mil indivíduos, as conclusões são inacreditáveis. Por exemplo, os
criminosos seriam dotados de grande envergadura, tanto que os homicidas seriam mais fortes
do que os falsários e ladrões 13.
O autor de O Homem Delinquente adverte, em bom momento, que o conjunto de
caracteres sintomatiza o criminoso e não a ocorrência isolada de um ou outro sinal 14, embora,
contraditoriamente, registre que “as anomalias, mesmo isoladas, têm importância” 15.
Lombroso deita fundamentos ao exame da biologia e da psicologia do delinquente nato, o que
parece tomar-lhe maior preocupação. Assim, enquadra a tatuagem como uma das
características do criminoso, relacionando-a muito mais com a psicologia do que com a
anatomia 16. Ele também analisa o papel da gíria, código de identificação pessoal e meio ao
qual recorreriam os criminosos, segundo diz, como forma de proteção contra intrusos 17.
De qualquer modo, o conjunto de sinais referidos foi resumido por Lombroso da
seguinte forma:
...o delinquente tem estatura mais alta; envergadura maior, tórax mais amplo,
cabeleira mais escura e peso superior ao normal e ao dos alienados; apresenta ainda,
sobretudo nos ladrões. Nos reincidentes e nos menores, uma série de subminocefalis
maior do que no normal e menor do que no alienado; o índice do crânio, comparado
em geral ao índice étnico, é mais exagerado; o delinquente apresenta ainda
assimetrias cranianas e faciais frequentes, sobretudo nos estupradores e nos ladrões,
mas mais raras do que nos loucos; tem sobre os últimos superioridade nas lesões
traumáticas na cabeça e nos olhos oblíquos. Mas menos frequentemente. O ateroma
das artérias temporais, a implantação anormal das orelhas, a escassez da barba, o
nistagmo [movimento do globo ocular]; a assimetria facial e craniana, a midriacial e
craniana, a midríase; e ainda mais raramente a calvície precoce; em proporções
iguais, o prognatismo, a desigualdade das pupilas, nariz torto, testa oblíqua; mais
frequentemente do que os loucos e sadios, o delinquente tem a face mais longa,
desenvolvimento maior das apófises zigomáticas e das apófises zigomáticas e da
mandíbula, o olhar sombrio, cabeleireira espessa e negra, sobretudo nos salteadores;
os corcundas, muito raros entre os homicidas, são mais frequentes entre
estupradores, falsários e incendiários. Os últimos, e mais ainda os ladrões, têm
sempre estrutura, peso e força muscular inferiores às dos bandidos e homicidas; os
cabelos louros são abundantes nos estupradores, os negros nos ladrões, matadores e
incendiários 18.
13
LOMBROSO, Cesare. O Homem Criminoso. Trad. Maria C. Carvalho Gomes. Rio de Janeiro: Rio, s.d., pp.
9 e 158.
14
Ibidem,p. 171.
15
Ibidem,p. 502.
16
Ibidem,p.191.
17
Ibidem,p. 392.
18
LOMBROSO, Cesare. Op. cit. pp. 185-6.
110
delinquente, em maioria entregue ao ócio 19. Como se percebe, a teoria antropológica
lombrosiana reduz a condição humana à natureza dos animais. Estuda homens delinquentes,
classificando-os segundo critérios que os distingue dos demais seres humanos, tão somente
porque transgressores de normas penais; justifica a criminalidade pelo criminoso, sem
aprofundar causas sociais ou exógenas. O criminoso nato, de acordo com tais fundamentos
teóricos, padece de formação congênita que lhe permita viver em sociedade; são homens
primitivos. No desiderato de fundamentar tais argumentos, expõe que os criminosos se
habituam ao álcool do mesmo modo que os povos selvagens, quando introduzidos a tais
usos 20.
A teoria de Lombroso assume feição perigosa ao reconhecer o crime como fenômeno
natural, a exemplo do nascimento e da morte 21; argumentos que prestam a alicerçar posições
dramáticas pelo encarceramento ou recrudescimento de sanções e, mais proximamente, pela
aplicação de políticas de tolerância zero ou de separação dos inimigos da comunidade,
punindo severamente pequenos infratores reincidentes. Inicia-se, deste modo, um processo de
classificação dos homens menos sociais, sobrepondo-se razões à superioridade de uns sobre
outros.
Nesse passo escreve Michel Foucault:
19
Ibidem,pp. 318-9.
20
Ibidem,p. 278. Lombroso, equiparando o criminoso nato ao selvagem, confirma o seguinte: “O maior número
das características do homem selvagem encontram-se no malfeitor: a escassez dos pêlos, a estreiteza da fonte, o
desenvolvimento exagerado dos senos frontais; a maior frequência das suturas médio-frontais, cavidade
occipitalmediana, ossos vórmios, sobretudo os epactais; as sinostes precoces, particularmente da fonte, a
saliência da linha, arqueada do temporal, a simplicidade das suturas; a maior espessura da caixa craniana, o
desenvolvimento desproporcional da mandíbula e dos zigonmas, o prognatismo; a obliquidade, a maior
capacidade orbital e a maior área da cavidade occipital; o predomínio da face sobre o crânio, paralelo ao dos
sentidos sobre a inteligência; a pele mais escura, os cabelos mais espessos e eriçados, as orelhas de abano ou
volumosas, os braços mais longos, os cabelos mais negros; a ausência de barba nos homens, a pelugem na fonte;
maior acuidade visual; a sensibilidade consideravelmente diminuída (o que explica a invulnerabilidade);a
ausência de reação vascular; a precocidade, um dos caracteres essenciais dos selvagens; maior analogia entre os
dois sexos, maior uniformidade fisionômica, o mancinismo, a maior incorrigibilidade na mulher; a sensibilidade
física pouco pronunciada, a completa insensibilidade moral e afetiva, a preguiça, a absoluta ausência de remorso;
a imprevidência que, às vezes, se assemelha à coragem, e a coragem que se alterna com a covardia, a vaidade
extrema, a paixão pelo sangue, pelo jogo, pelas bebidas alcóolicas e seus sucedâneos; as paixões tão fugazes
quanto violentas, o espírito muito supersticioso, a suscetibilidade exagerada do “ego” e, por fim, o conceito
relativo da divindade e da moral” (LOMBROSO, Cesare. Op. cit. pp. 496-7).
21
Cf. LOMBROSO, Cesare. Op. cit. p. 501.
22
Vigiar e Punir: histórias da violência nas prisões. 22ª ed., Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987,
p. 159.
111
Os homens honestos se separam dos criminosos, e estes se subdividem em natos,
loucos, habituais, de ocasião ou por paixão etc. Os tipos variam segundo a teoria de cada
pensador da Escola. Em poucas palavras, as ciências criminais esboçam os valores
primordiais do Direito Penal do autor, cultivando temas simpáticos à discriminação dos
estranhos.
Muito antes de Lombroso, Kant já havia desconfiado de que algumas pessoas, mesmos
as que receberam educação, apresentavam uma maldade ínsita, a ponto de serem consideradas
perversos natos, incorrigíveis. Porém, o filósofo alemão avaliava mesmo assim que o homem
possuía o livre arbítrio para cometer maldades 23. Em larga escala, o positivismo
criminológico firma a convicção de que o criminoso nato não tem vontade própria diante do
impulso de cometer crimes.
Com o tempo, o positivismo criminológico segmenta-se em um ramo crítico, que se
opõem ao conceito de criminoso nato. O criminoso já não nasceria com as características, mas
as adquiria, como um profissional que assimila certos hábitos comuns ao seu labor diário.
Aqui pousa a grande diferença: enquanto os primeiros positivistas defendiam um criminoso
que já nascia com os caracteres que determinam sua predisposição ao crime, os dissidentes
críticos sustentam que a vida em sociedade proporciona a aquisição desses caracteres 24.
23
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. Trad. Afonso Bertagnoli. Rio de Janeiro: Edições de Ouro,
1980, p. 164.
24
Cf. ARAGÃO, Antonio Moniz Sodré. As Três Escolas Penais: clássica, antropológica e crítica. Rio de
Janeiro, São Paulo: Freitas Bastos, 1955, p. 247.
25
LARRAURI, Elena. Criminología y Derecho: la herencia de la criminología crítica. 3ª ed., Madrid: Siglo
Veintiuno de España Editores, 2000, p. 13. Em sentido semelhante: BARATTA, Alessandro. Criminología
Crítica y Crítica Del Derecho Penal: introducción a la sociologia jurídico-penal. Trad. Álvaro Búnster.
Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2004, p. 37.
112
A ruptura metodológica dos postulados científicos clássicos que veio com o
positivismo não se tratou de uma evolução da teoria do livre-arbítrio, mas sua total superação
por um método científico supostamente neutro. Tratar o fenômeno crime de forma
politicamente desinteressada e conferir ao crime uma natureza ontológica esvaziou a reação
de crítica, transferindo toda energia teórica para o delinquente.
O positivismo criminológico parte assim de um postulado determinista biologista, em cujo
centro está a concepção de um criminoso patológico e não mais um homem médio com
aptidões livres para escolher o bem e o mal, como pensado durante o classicismo. Portanto, o
criminoso é tomado como um objeto de estudo científico e a criminologia deve então
determinar quais sãos os fatores criminógenos de sua conduta. O crime não mais se resume a
uma ação decorrente do livre-arbítrio, principalmente porque a conduta do criminoso não será
justificada como a do homem normal.
O paradigma etiológico funda-se na explicação da criminalidade pelas características
biológicas, psicológicas e sociais, ou seja, acima de tudo, nas diferenças entre o criminoso e o
indivíduo normal. Apoiada exatamente sobre a base etiológica, cuja índole funda-se na
utilização de método para encontrar causas e meios de intervenção no sujeito, o positivismo
criminológico norteia-se a partir de uma compreensão patológica da conduta humana.
Diante dessa aparente cientificidade, o criminólogo positivista acredita agir com
neutralidade 26. Além disso, há certa naturalidade da reação ao crime, decorrente da própria
base teoria do positivismo e da qual faz parte uma criminologia correcionalista. Alimentados
pelo paradigma etiológico, tanto o positivismo como o correcionalismo não divergem quanto
à reação ao crime - necessidade tomada inconteste e inocentemente. O crime é constituído
ontologicamente antes da reação ao crime.
Digo inocentemente porque o crime não se revela em seu caráter político. Na medida
em que o formalismo jurídico serve a uma dogmática penal estruturada exclusivamente para a
violência individual, o positivismo etiológico isola a conduta do sujeito e a dogmática a
reveste com um sistema de garantias que, na prática, excita um processo de neutralização
política do crime; o crime político não será qualquer crime, mas apenas o praticado contra o
Estado 27.
Ainda que a dogmática penal permaneça de alguma forma abraçada à violência individual
e assim ao livre-arbítrio, o positivismo criminológico expandiu isso para uma visão
marcantemente “patologizada”, que influenciará decisivamente o direito positivo. Deve ser
aqui observada a advertência de Baratta. Enquanto o classicismo tomou o crime como uma
26
Ibidem p. 96.
27
Pelas Mãos da Criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan, ICC, 2012,
p. 235.
113
entidade jurídica e abstrata − uma ação decorrente do livre-arbítrio do sujeito, a Escola
Positiva de Lombroso, Ferri e Garofalo vai mais longe. Sem negar o caráter jurídico do crime,
estende a sua compreensão para uma totalidade que, além do ato voluntário, considera os
aspectos biológicos, psicológicos e sociais. Assim, como escreve aquele sociólogo penal,
“también para la escuela positiva el delito es un ente jurídico, pero el derecho que califica este
hecho humano no debe aislar la acción del individuo de la totalidad natural y social” 28.
Dizendo de outra forma, a Escola Positiva não se sustenta apenas sobre o delito e as ações
abstratamente consideradas, mas, sobretudo, sobre a personalidade do autor e a sua
classificação tipológica.
Isso tudo está bem nítido em Mezger e sua teoria da pena sujeita aos dogmas do ato e
do autor. Para esse criminólogo, o legislador pensa unicamente no dogma do ato e o juiz da
sentença pondera sobre o do ato e o do autor, enquanto o juiz da execução deve limitar-se
apenas a este último dogma 29.
É assim que o positivismo promove o direito penal do autor, favorecendo um direito cheio
de espaços para decidir e punir de acordo com traços da personalidade, muitas vezes sob o
pretexto de curar e corrigir o sujeito. Portanto, a dogmática, ainda que baseada no direito do
fato, absorve o direito do autor por influência de um criminólogo imbuído de poderes
científicos, politicamente isentos, postado como uma entidade superior, capaz de lograr
resultados eficazes para reverter o quadro mórbido de seu paciente. A criminologia torna-se
um saber curativo, um exercício de cura que mais tarde será duramente criticado pela
criminologia crítica 30. Paralelo ao saber criminológico neutro está ali posta a dogmática penal,
quase que inventada com o propósito de isenção científica.
Depois de advertir para a dogmática penal não ser vista como uma evolução linear do
saber, Vera Regina destaca a feição solar do saber dogmático, enquanto à criminologia e à
política criminal restaram papéis gravitacionais secundários. Desde este ponto de vista, a
dogmática será construída como “o saber”; não qualquer um, mas “o saber” nascido para o
controle otimizado das classes perigosas, ou seja, um conhecimento central que buscará na
criminologia o vocabulário “neutro” da defesa social e da periculosidade. Essa dogmática
produz assim resultados que abrem uma ambiguidade entre garantismo clássico e controle
social.
Vejamos as palavras de Vera Regina:
28
BARATTA, Alessandro. Criminología Crítica y Crítica Del Derecho Penal: introducción a la sociologia
jurídico-penal. Trad. Álvaro Búnster. Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2004, p. 32.
29
Tratado de Derecho Penal. T. II, Trad. José Arturo Rodriguez Muñoz, Madrid: Editorial Revista de Derecho
Privado, 1949, p. 383-4.
30
TAYLOR, Ian; YOUNG, Jock; WALTON, Paul (Orgs.). Criminologia Crítica. Trad. Juarez Cirino dos
Santos e Sérgio Tancredo. Rio de Janeiro: Graal, 1980, p. 162.
114
Ao longo de seu percurso, o positivismo dará assim causa a uma teoria conservadora,
separando os homens normais dos patológicos. Deve ser tido agora que o positivismo formula
um modelo de pensar o crime muito simples. Tomando o conceito de crime ontologicamente,
não estabelece diferença entre crime e transgressão. Todo crime é uma transgressão e todo
transgressor remete à imagem estereotipada do criminoso afetado por causas biopsicológicas e
sociais.
Com efeito, o positivismo ajusta-se a uma forma conservadora e consensual de sociedade,
na medida em que pensa o crime a partir de leis naturais superiores que governam todos os
homens. No entanto, por causa de uma visão equivocada quanto às causas do crime, aliada à
inexistência de diferenças entre crime e transgressão, as supostas leis naturais superiores
fazem o positivista pensar que o criminoso difere realmente do homem normal. Logo, assim
está criado um ambiente teórico que favorece a rejeição dos valores contrários à cultura
dominante. Em um sistema social isento de maiores críticas teóricas, o criminoso é tomado
como um violador dos valores superiores da sociedade.
Como destaca Virgolini, a criminologia positivista estrutura-se em cima de bases
reducionistas, que restringem a explicação da criminalidade à a) natureza ontológica do crime;
b) patologia do criminoso; c) etiologia da criminalidade por meio da sua racional explicação
causal; d) ideologia do tratamento (correcionalismo); e) ideologia da diversificação; f) visão
consensual da ordem social 32 e g) ideologia da defesa social,
Até meados do século passado, as teorias funcionalistas estimuladas pela expansão do
Estado Social pensaram a sociedade consensualmente, como um corpo de fatores
harmonicamente combinados, o que em grande medida favoreceu o surgimento da ideologia
do tratamento. Em sendo o crime uma disfuncionalidade sistêmica que sinalizava a falha no
processo de socialização primária ocorridos essencialmente no seio da escola e da família essa
ideologia incumbia ao sistema penal a tarefa de assegurar a socialização secundária do
crimininoso (ressocialização), baseado na falsa crença de que como o indivíduo detinha o
livre arbítrio para cometer o crime, poderia da mesma forma ser programado a evitá-lo.
31
Pelas Mãos da Criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan, ICC, 2012,
p. 209.
32
VIRGOLINI, Julio E.S. La Razón Ausente: ensayo sobre criminología y crítica política. Prólogo de
Massimo Pavarini, Buenos Aires : Del Put, 2005, p. 67.
115
O crime apresenta-se como uma realidade indiscutível. Para tanto, é preciso notar que
a sua ontologia exigia uma análise reducionista, calcada em um crime visível, de simples
percepção aos olhos de qualquer um Por isso, a transgressão ficou muito bem contida aos
bens jurídicos relacionados à integridade física, patrimonial e aos interesses do Estado,
sempre demarcada por uma violência imanente e visível. Isso implica dizer que o crime
deveria ser percebido pelos sentidos e, portanto, deve ser notado que alguns indivíduos
estariam mais expostos à visibilidade é à mira aguda da vigilância punitiva 33.
A ontologia do crime tocava os sentidos e despertava sentimentos coletivos de
vingança e piedade De tudo, o reducionismo criminológico não está apenas na visibilidade do
crime, mas especialmente na do criminoso, razão pela qual a percepção do crime dependeria
deste modo de uma fisionomia característica, marcadamente identificada como patológica. Ao
igualar o feio à patologia do criminoso aprofundou-se o reducionismo criminológico
transformando a explicação do crime em uma mera criminologia multifatorial, distinta por um
monólogo que relaciona a transgressão aos problemas da socialização, especialmente
decorrentes das dificuldades econômicas, ruptura dos laços sociais e familiares; dificuldades
de integração ao modelo de sociedade competitiva etc 34. Essa criminologia incorpora falsas
crenças a respeito da criminalidade, enquanto as apresenta empacotada na aparente grandeza
de uma única teoria explicativa da criminalidade O causalismo criminológico prepara terreno
para a obsessão com a ideologia do tratamento, dotando o criminólogo da crença de que, uma
vez identificadas as causas multifatoriais do crime, seria possível corrigir o indivíduo, a ponto
de impedir a reiteração delitiva. As falhas dessa criminologia multifatorial consistem em
acreditar em um sistema teórico simplista, no qual todos os fatos determinantes do crime são
sobrepostos em uma única totalidade explicativa. Desconsiderando a complexidade da
transgressão, singelamente explicada pelas razões fundadas em hereditariedade; constituição
da família; classe; inserção social; fisiologia; educação etc.
Uma consequência inevitável à compreensão funcionalista está na identificação do
crime como manifestações de fatores estranhos ao indivíduo normal. Essa dissociação entre o
transgressor e o indivíduo normal no âmbito da criminologia multifatorial aparece em forma
da ideologia da diversidade, que patologiza o criminoso, como se fosse possível determinar
critérios científicos para separá-lo dos indivíduos normais.
Todos esses elementos estão interligados. A existência em si de um crime visível atrai
a caracterização patológica de um criminoso, que por sua vez exerce tração para movimentar
uma máquina relativamente simples em busca das causas da criminalidade e,
33
Ibidem p. 68.
34
Ibidem p. 71.
116
consequentemente, dos meios de tratamento do transgressor, concebido como alguém
diferente dos normais que habitam a sociedade consensualmente organizada. Quero assinalar
que isso racionaliza uma ideologia da defesa social, pela qual o Estado se legitima na defesa
dos interesses da sociedade contra a transgressão. Dessa forma, entende-se o crime como ação
disfuncional, violadora dos interesses coletivos e das mínimas condições de vida em
sociedade, enquanto de outro lado o discurso do Direito Penal igualitário leva a crer tratar-se
esse saber de uma técnica capacitada a devolver o indivíduo devidamente reparado ao pacífico
convívio social.
Nessa linha, Baratta anota os princípios que fundamentam a ideologia da Defesa
Social: (1) legitimação do Estado como representante maior dos interesses da sociedade; (2) o
delinquente como um sujeito disfuncional à sociedade; (3) expressão do crime como uma
conduta voluntária negativa dos interesses sociais superiores; (4) a crença na ideologia do
tratamento; (5) o Direito Penal como instância igualitária; e (6) o crime como impeditivo das
condições mínimas de vida em sociedade 35.
A partir dessas bases, o positivismo criminológico inspira em boa medida a
criminologia do Estado, principalmente porque não problematiza a reação ao crime. Com
efeito, fica de fora da busca das causas da criminalidade a discussão de assuntos que tocam ao
próprio sistema de justiça como participante do processo de criminalização e seleção de
sujeitos, isto é, não se insere no rol de causas a omissão estatal, a impunidade dos crimes de
colarinho branco, o tratamento privilegiado na lei, a falta de criminais descriminalizantes ou
despenalizantes etc.
3 CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Vera Regina P. de. Pelas Mãos da Criminologia: o controle penal para além
da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan, ICC, 2012.
BENTHAM, Jeremy. Teoria das Penas Legais e Tratado dos Sofismas Políticos. Sem
tradutor mencionado. São Paulo: Edijur, 2002.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. Trad. Ana Paulo Zomer
et al. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: histórias da violência nas prisões. 22ª ed., Trad.
Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. Trad. Afonso Bertagnoli. Rio de Janeiro:
Edições de Ouro, 1980.
MEZGER, Edmundo. Tratado de Derecho Penal. T. II, Trad. José Arturo Rodriguez Muñoz,
Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1949.
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Trad. Antonio Carlos Braga, São Paulo: Escala,
2006.
119
PROUDHON, Pierre-Joseph. Sistemas das Contradições Econômica ou Filosofia da
Miséria. T. I, trad. Antônio Geraldo da Silva, São Paulo: Escala, 2007.
TAYLOR, Ian; YOUNG, Jock; WALTON, Paul (Orgs.). Criminologia Crítica. Trad. Juarez
Cirino dos Santos e Sérgio Tancredo. Rio de Janeiro: Graal, 1980.
VIRGOLINI, Julio E.S. La Razón Ausente: ensayo sobre criminología y crítica política.
Prólogo de Massimo Pavarini, Buenos Aires : Del Put, 2005.
ABSTRACT
Keywords:
Criminology. Positivism. Criminological positivism. Etiological parad
igm. Positive school. Conservative criminology.
REVISTA ~
TRANSGRESSOES
Ciências Criminais em Debate
www.revistatransgressoes.com.br
ARTIGOS
SELECIONADOS
REVISTA ~
TRANSGRESSOES
Ciências Criminais em Debate
www.revistatransgressoes.com.br
122
RESUMO
1 INTRODUÇÃO
Por incrível que pareça, há tempos que os presídios não funcionam mais como
ambientes que esterilizam a prática criminosa. Explico. Apesar de estarem atrás das grades,
cumprindo penas privativas de liberdade, cercados por vigilância 24 horas e outros meios de
fiscalização, os detentos, no interior das cadeias, continuam a controlar as atividades
criminosas de seus grupos transgressores. Eis que surge a indagação: como isso é possível? E
a resposta é a mais absurda existente. Através de seus próprios aparelhos celulares.
Além de seguir comandando atividades delinquentes cometidas na sociedade,
percebemos ainda a propagação do medo e do terror por via de telefonemas intimidadores que
buscam extorquir as pessoas, através de ludíbrios sequestros de familiares ou amigos,
obrigando a vítima a permanecer na linha ouvindo falsos brados de sofrimento a fim de
convencê-la do sequestro.
∗
Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
123
Prática que tem atrapalhado até mesmo as relações entre consumidores e empresas, já
que as ligações de número desconhecido– cujo DDD é diferente do Estado onde o cidadão
mora – são prontamente ignoradas em virtude do receio de que seja uma ligação maliciosa.
Quando, por vezes, tratam-se apenas de chamadas oriundas da sede de determinada empresa
que se localiza em outra região do país.
Nesse diapasão, fora criada a Lei nº 11.466, de 28 de março de 2007 que altera a Lei
no 7.210, de 11 de julho de 1984 – Lei de Execução Penal, e o Decreto-Lei no 2.848, de 7 de
dezembro de 1940 – Código Penal, para prever diretamente como falta disciplinar grave do
preso e crime do agente público a utilização de telefone celular. Nessa perspectiva, o uso da
expressão diretamente será doravante elucidado.
Aqui está o alicerce desta pesquisa. Analisar pormenorizadamente o verdadeiro
espírito do tipo penal denominado de prevaricação imprópria, apontando as circunstâncias que
proporcionaram sua criação. Assim como elaborar um estudo aprofundado de suas
características principais e sua consolidação como reflexo da ineficiência das políticas de
segurança dos presídios brasileiros.
Art. 1º. O art. 50 da Lei no 7.210, de 11 de julho de 1984 – Lei de Execução Penal,
passa a vigorar acrescido do seguinte inciso VII:
“Art. 50. ..................................................................................
VII – tiver em sua posse, utilizar ou fornecer aparelho telefônico, de rádio ou
similar, que permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente
externo................................................................................ ” (NR)
Art. 2º. O Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, passa a
vigorar acrescido do seguinte art. 319-A:
“Art. 319-A. Deixar o Diretor de Penitenciária e/ou agente público, de cumprir seu
dever de vedar ao preso o acesso a aparelho telefônico, de rádio ou similar, que
permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente externo:
124
1BRASIL. Decreto - Lei Nº 11.466, de 28 de Março de 2007 - Dou de 29/3/2007- Edição Extra. Brasília, 29 mar.
2007.
125
Prevaricação
Art. 319-A. Deixar o Diretor de Penitenciária e/ou agente público, de cumprir seu
dever de vedar ao preso o acesso a aparelho telefônico, de rádio ou similar, que
permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente externo
Pena: detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano
Segundo o jurista Thiago Solon Gonçalves Albeche, o art. 319-A veio em resposta
aos verdadeiros atos de terrorismo ocorridos em nosso país, especialmente nos Estados do Rio
de Janeiro e São Paulo, quais sejam, os ataques sistematizados e comandados pela facção
criminosa conhecida como PCC. Naquele episódio, estarrecidos, assistimos pela televisão
presos comandando, com sol à pino, explosões a ônibus, assaltos, utilizando-se de celulares
que livremente lhe estavam à disposição dentro dos presídios em que cumpriam pena. 2
Observa-se, ainda, que tal legislação incide especificamente sobre os sujeitos ativos
Diretor de Penitenciária e/ou Agente Público justamente graças a grande incidência de
funcionários corruptos que facilitam a entrada de aparelhos eletrônicos nos presídio,
aproveitando-se da sua função de fiscalizador para ganhar proveito, adquirindo vantagem
econômica. Prática que incide no tipo incriminador do artigo 317 do Código Penal, referente a
Corrupção passiva.
Exemplos de tal conduta se espalham vertiginosamente, basta observar a vasta
quantidade de denúncias do Ministério Público, como a que obteve a condenação definitiva
do ex-agente penitenciário Marcos Antônio Garcia, de 37 anos, denunciado em 2006 pelo
crime de corrupção passiva. Garcia foi condenado em setembro de 2010 à pena de 4 anos e 5
meses de reclusão, em regime semiaberto, por ter recebido cerca de R$ 10,7 mil de familiares
de presos para facilitar a entrada deles na Penitenciária de Junqueirópolis com telefones
celulares endereçados aos detentos. 3
2 ALBECHE, Thiago Solon Gonçalves. A denominada prevaricação imprópria: Ofensiva aos fins da pena e um
caso de inconstitucionalidade necessária. Jus Navigandi, Teresina, 7 nov. 2007. Disponível
em: <http://jus.com.br/artigos/10624>. Acesso em: 10 jun. 2014. “Documento on-line não paginado”.
3 Agente penitenciário é condenado por facilitar entrada de celular: Servidor atuava na Penitenciária de
Junqueirópolis e recebia dinheiro de familiares de presos. iFronteira, Presidente Prudente, 17 jul. 2012.
126
[...] “agente público” é utilizada para designar todo aquele que se encontre no
cumprimento de uma função estatal, quer por representá-lo politicamente, por
manter vínculo de natureza profissional com a Administração, por ter sido
designado para desempenhar alguma atribuição ou, ainda, por se tratar de
delegatário de serviço público. (MIRANDA, 2005, p. 137).
Com a legislação anterior, era inviável a atribuição, de forma incólume, da falta grave
do preso pelo uso de tais aparelhos eletrônicos que permitam a comunicação. Hodiernamente,
é indubitável que todo e qualquer uso desses aparelhos provocarão uma falta grave ao
presidiário. Entretanto, há quem questione: se a penitenciária tiver bloqueadores de sinal de
celular, o detento que estiver na posse desse aparelho estará cometendo falta grave?
129
A partir deu uma análise exegética do inciso VII do artigo 50 da LEP, verificamos a
expressão "que permita a comunicação", ou seja, qualquer aparelho capaz de enviar ou
receber informações. Já que o aparelho é incapaz de realizar qualquer tipo de comunicação, o
inciso VII não poderá ser aplicado, sendo assim, o preso não estará cometendo essa falta
disciplinar (estão incluídos nesse rol todos os aparelhos que não tenham antena, por exemplo -
o legislador foi claro ao afirmar que somente os aparelhos que permitem a comunicação que
serão considerados como falta grave). 5
Enfim, “como o tipo penal utiliza a expressão ‘que permita a comunicação com outros
presos ou com o ambiente externo’, conclui-se pela atipicidade do fato nas situações em que o
aparelho de comunicação esteja quebrado ou de qualquer modo absolutamente
impossibilitado de funcionar, bem como quando tratar-se de réplica de tais aparelhos.”
(MASSOM, 2014, p. 554).
É comum, ainda, que o crime objeto deste estudo seja, por vezes, confundido com o
tipo penal do art. 317, a corrupção passiva. Conforme análise, já realizada, do caso concreto
no qual as denúncias do Parquet geraram a condenação de ex agentes penitenciários, notou-se
que esses indivíduos se propuseram a exercer um comportamento deveras proativo em busca
de uma vantagem indevida. O que não acontece na Prevaricação Imprópria, haja vista sua
atuação valer-se da máxima da omissão.
Nesse sentido, “não podemos confundir a situação do agente público que,
simplesmente, se omite em fazer a apreensão de um aparelho telefônico, de rádio ou similar,
que está sendo indevidamente utilizado por um preso, com aquele que se corrompe, obtendo
uma vantagem indevida (ou mesmo a promessa de tal vantagem), para que o preso tenha
acesso aos mencionados aparelhos.” (GRECO, 2011, p. 435).
5
LOURENCETTE, Lucas Tadeu. Comentários sobre as Leis n° 11.466/07 e 11.596/07: Ambas promoveram
sutis alterações na legislação penal, a primeira no âmbito prisional, já a segunda, na interrupção do prazo
prescricional.. Disponível em: <http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/6584/Comentarios-sobre-as-Leis-n-
11466-07-e-11596-07>. Acesso em: 10 jun. 2014. “Documento on-line não paginado”.
130
Após toda essa análise, é gritante a gravidade do comportamento daquele que através
de omissão permite a entrada de celulares nas penitenciárias. Logo, a interferência Estatal a
fim de proibir tal comportamento deveria, claro, ter ocorrido de forma mais ríspida, fazendo
com que aqueles que praticam essa atividade criminosa fossem punidos rigidamente.
Entretanto, o legislador brasileiro cominou pena de míseros 03 meses a 1 ano de
reclusão. Está caraterizado, pois, uma inescrupulosa ofensa aos princípios da pena e também à
Constituição Federal do Brasil.
Concernente ao desrespeito aos princípios da pena, basta observar o que diz o Código
Penal, em seu artigo 59: "o juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta
social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime,
bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente
para reprovação e prevenção do crime".
É lúcido afirmar categoricamente que a pena cominada não serve para fins de
prevenção, sequer reprovação da prática criminosa, haja vista que a pena prevista possui tripla
falibilidade: (1) – a pena máxima não excede a 02 anos, ou seja, cabe transação penal, nos
termos do art. 76 da Lei 9.099/95; (2) a pena mínima é inferior a um ano, é dizer, se por
acaso, uma vez cometido o crime do art. 319-A do CP, o agente já tiver utilizado a transação,
poderá ele agora (diante da impossibilidade de transacionar novamente no período de 05 anos,
nos termos do art. 76, § 2.º, II da lei 9.099/95), valer-se da suspensão condicional do
processo; (3) se mesmo assim, não puder ele nem transacionar e nem se valer do sursis
processual, a depender do local onde cometeu o delito, a pena fatalmente poderá prescrever –
em 02 anos, nos termos do art. 109, VI do CP (basta mencionar a lamentável situação dos
Juizados Especiais Criminais do Estado de São Paulo, assoberbados com um acúmulo
invencível de processos). 6
A tipificação da conduta versada no art. 319-A do Código Penal fundamenta-se em
dois fatores aterrorizantes da sociedade moderna, intimamente relacionados com o crime
organizado: (a) ausência de medidas administrativas eficazes para impedir o ingresso de
aparelhos de comunicação nos estabelecimentos prisionais, que acabam funcionando como
autênticos “escritórios” das organizações criminosas, mantidos pelo Estado; e (b) inexistência
de punição rígida e efetiva aos agentes públicos que permitiam o ingresso de meios de
comunicação nos presídios para a utilização pelos detentos. (MASSOM, 2014)
6
ALBECHE, Thiago Solon Gonçalves. A denominada prevaricação imprópria: Ofensiva aos fins da pena e um
caso de inconstitucionalidade necessária. Jus Navigandi, Teresina, 7 nov. 2007. Disponível
em: <http://jus.com.br/artigos/10624>. Acesso em: 10 jun. 2014. “Documento on-line não paginado”.
131
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
espírito motivador da norma e proponha-se a atender seus fins, protegendo o bem jurídico em
questão.
É impreterível, ainda, que o legislador contemporâneo trate de reconstituir a força do
nosso ordenamento jurídico, reformando a referida lei, a fim de impedir o atentado contra os
princípios do nosso Estatuto Penal e da nossa Carta Magna de 1988, haja vista a insignificante
cominação penal que não serve de resposta às pretensões de que a pena sirva para prevenção e
reprovação do crime, ferindo os princípios constitucionais da proporcionalidade e da
proibição da proteção insuficiente dos bens jurídicos, que combinado com os fatores
supramencionados, estão a comprometer a base sólida do nosso Estado Democrático de
Direito.
REFERÊNCIAS
DE PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Curso de direito administrativo. 18 ed. São Paulo:
Atlas, 2005.
GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte especial, v.4. 7 ed. Niterói, RJ: Impetus,
2011.
MASSON, Cléber Rogério. Direito penal esquematizado: parte especial, vol. 3. 4. ed. Rio
de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014.
ABSTRACT
133
This paper exposes the fragility of Law No. 11,466 of March 28,
2007, sanctioned as a reflection of factual reality, pointing to
numerous cases of criminal activities in prisons, whose illegal use of
mobile phones causes the continuity of command of trafficking,
kidnappings, extortion, and many other offenses directly from within
the Brazilian jails. The law has, therefore, to restrain the size of such
devices, indicating the cause of serious misconduct for prisoners.
However, omissions, gaps and conflicting interpretations of the law,
as well as poor criminal sanction, came to raise discussion about its
efficacy, and even of its constitutionality.
RESUMO
“Predicar moral es cosa fácil; mucho más fácil que ajustar la vida a la moral que se
predica.”(Arthur Schopenhauer) 1
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo aborda o crime tipificado no art. 229 2 do Código Penal brasileiro,
intitulado “Casa de Prostituição”. O ponto central do trabalho é analisar se há necessidade
e/ou legitimidade de ainda admiti-lo atualmente, com o fulcro de se proteger uma suposta
moral sexual e os bons costumes.
Para tanto, faz-se necessária a desmistificação dos errôneos enlaçamentos que são
feitos entre Direito e Moral, para que tão somente possamos compreender a importância dos
tipos penais se desvincularem de estigmas sociais, pois o Direito e em Ultima Ratio o Direito
Penal não deve se alicerçar em condutas paternalistas.
Ademais, se demonstrará que falar em moral sexual e em bons costumes,
hodiernamente, implica em pensar um Direito arcaico, em um judiciário cego com a
temporalidade a qual o direito está submetido.
Busca-se, também, à luz de um Direito Penal Constitucionalizado, mostrar a
importância da hermenêutica principiológica dos tipos penais no processo de
descriminalização de condutas, pois, diferentemente do que comumente se pensa muitas
condutas tipificadas na legislação infraconstitucional vão de encontro aos princípios e
garantias constitucionais.
2 MORAL E DIREITO
Assim, teríamos que moral e direito seriam representados, figurativamente, por dois
círculos concêntricos, nos quais a moral abarcaria o direito. E dessa ilustração podemos
3
REALE, Miguel. Direito e Moral. In: REALE, Miguel. Lições Preliminares do Direito. 24. ed. São Paulo:
Saraiva, 1999. Cap. 5. p. 42-56.
136
depreender que o Direito não é algo diverso da Moral, mas uma parte desta, armada de
garantias específicas.
Podemos, assim, compreender que para essa Teoria tudo que é jurídico é moral, mas
nem tudo que é moral é jurídico.
Então, nem o direito seria moral, nem a moral seria jurídica, vez que nem tudo que é
tutelado pelo direito é moral, assim como, nem tudo que é moral é protegido pelo direito.
Sendo assim, à concepção real, e não ideal, entre direito e moral está, figurativamente,
demonstrada por dois círculos secantes.
Outra diferença importante é trazida por Kant 4 e seus discípulos é de que a Moral é
autônoma e o Direito heterônimo. Nesse sentido, temos que as normas jurídicas são
4
REALE, Miguel. Direito e Moral. In: REALE, Miguel. Lições Preliminares do Direito. 24. ed. São Paulo:
Saraiva, 1999. Cap. 5. p. 42-56.
137
imposições postas pelo legislador, as quais podem ou não coincidir com as convicções que
temos sobre o assunto. Então, as normas jurídicas apresentam uma validade objetiva e
transpessoal, sendo superiores as pretensões e quereres dos sujeitos. Já o querer e agir moral
exige uma adesão de espírito, ou seja, deve-se estar imbuído e acreditar nas normas
moralmente impostas.
Ademais, salienta-se o posicionamento de Del Vecchio 5, o qual distingue a Moral e o
Direito pela “bilateralidade”, “alteridade” ou “intersubjetividade”. Nesse diapasão, constata-
se que as relações jurídicas, diferentemente das morais, são permeadas pela exigibilidade, ou
seja, os sujeitos de uma relação jurídica ficam autorizados a pretender, exigir, ou a fazer,
garantidamente, algo.
5
REALE, Miguel. Direito e Moral. In: REALE, Miguel. Lições Preliminares do Direito. 24. ed. São Paulo:
Saraiva, 1999. Cap. 5. p. 42-56.
138
O Direito Penal deve ser utilizado apenas quando estritamente necessário, como ultima
ratio, ou seja, como última opção, vez que seu intuito é tutelar apenas bens jurídicos mais
relevantes e imprescindíveis socialmente. Nesse patamar, Moral e bons costumes não são, de
maneira alguma, de indiscutível relevância, pois são bens abstratos e perigosamente
subjetivos. Acerca da Ultima Ratio princípio, apregoa Nucci:
A liberdade individual, estampada sob variadas formas (ir, vir e ficar; pensar e
manifestar-se; crer e cultuar; associar-se; viver de maneira privada; zelar pela
intimidade; possuir e usufruir de bens; unir-se em família etc.), é o paradigma da
sociedade democrática, regrada por leis. Destarte, as infrações às normas postas
merecem ser coibidas por inúmeros instrumentos jurídicos extrapenais, antes que se
possa lançar mão da ultima ratio (última hipótese), identificada no Direito Penal. O
eficiente equilíbrio entre liberdade e punição penal, modelado pela razoabilidade e
pela proporcionalidade, constitui o demonstrativo eficaz de que se cultua e respeita o
Estado Democrático de Direito, nos parâmetros delineados pelo art. 1º da
Constituição Federal. (NUCCI, 2010, p. 168) [grifos do autor].
Então, intervir na liberdade de outros indivíduos com base em um bem jurídico que
não apresenta a menor lesividade a outras pessoas é, no mínimo, inquietante. Sobre isso,
Nucci muito bem opina, de modo que:
6
ESTELLITA, Heloisa. Paternalismo, moralismo e direito penal: alguns crimes suspeitos em nosso direito
positivo. Revista Brasileira de Filosofia.vol LVI, 2007.p.333-341.
139
seria uma forma de tutela estatal que provoca colisão com a autodeterminação e a autonomia
da vontade de seres competentes, ideias essas que formam a base de um sistema liberal.
Então, temos que a interferência penal sobre os bens juridicamente protegidos não
poderão interferir na liberdade das pessoas, uma vez que a proteção que ultrapassa a
necessidade de conservar a harmonia social, e por consequência restringe a liberdade pessoal
são injustas. Pois, segundo Beccaria:
Todo o acto de autoridade de um homem sobre o outro homem que não derive da
absoluta necessidade é tirânico. Eis, pois, sobre o que se fundamenta o direito que os
soberanos têm de punir os delitos: a necessidade de defender o depósito do bem-
estar público das usurpações particulares. (BECCARIA, 2009, p.64).
7
MARIA RIGOPOULOU, L.L.M. Traços paternalistas no direito penal da atualidade. In A Escola
Cientificista Brasileira: estudos complementares à história das idéias filosóficas no Brasil. Londrina: Edições
Cefil, 2003. p.343-358.
140
A teoria da adequação social, concebida por Hans Welzel, significa que apesar de uma
conduta se subsumir ao modelo legal não será considerada típica se for socialmente adequada
ou reconhecida, isto é, se estiver de acordo com a ordem social da vida historicamente
condicionada.
Ademais, demonstra-se que o princípio da adequação social se alicerça em uma tripla
função. Sendo assim, é imprescindível seu papel hermenêutico, impondo óbices á abrangência
da norma penal incriminadora, descriminalizando àquelas condutas aceitas e adequadas
socialmente.
A outra função é a normativa, ou seja, diz respeito a atividade criativa do legislador.
Em sendo assim, fomentará ao legislador um limite para tornar ou não uma conduta
criminalizada. Busca-se, assim, que no ato de criação da norma jurídica busque-se o direito
penal em ultima ratio, ou seja, não reprimindo uma conduta socialmente adequada valendo-se
da criminalização.
E a última função, é que o principio da adequação e o seu papel revogador de tipos
penais, a qual será objeto do próximo tópico.
O Princípio da Adequação Social, traz uma terceira função, que para o nosso estudo é
a mais importante, a qual se destina fazer com que o legislador repense os tipos penais e retire
do ordenamento jurídico a proteção sobre aqueles bens cujas condutas já se adaptaram
perfeitamente a evolução social. É imprescindível salientar, que para que uma conduta seja
adequada socialmente, não implica dizer que ela está em consonância com os padrões morais
sociais. Pelo contrário, estamos desde do início defendendo a necessidade de se separar a
moral do direito.
Quando falamos no principio da adequação social e a sua aplicabilidade no tipo penal
em estudo, estamos tão somente afirmando que a prostituição é fato concreto no nosso corpo
social, e consabido é fato penalmente irrelevante. Dessa feita, a legalização dos
estabelecimentos que abriguem a prostituição nada mais faz do que um favor às pessoas que a
exercem, vez que o exercício da prostituição não traz a tona qualquer ofensividade a bem
jurídico.
142
6 CONCLUSÕES
A noção de certo e errado quando postas no plano real, e também na prática jurídica,
muitas vezes geram conceitos e interpretações arbitrárias e destoantes, quando não deviam
ser. E hodiernamente, essas regras acentuam preconceitos e ferem direitos de grupos sociais
ainda marginalizados, como no caso das prostitutas. Tornando-os ainda mais vulneráveis do
que já são.
8
O Bataclan representa a história de Ilhéus do começo do século XIX. Imortalizado nas obras de Jorge Amado,
o antigo cabaré se localiza próximo ao porto e ao cais da antiga feira de Ilhéus, ponto de maior movimentação da
cidade. Teve seu apogeu entre 1926 e 1938, frequentado por boêmios, coronéis do cacau, jagunços, marinheiros
e intelectuais. Funcionava um cassino e um salão, no qual constantemente havia apresentações de dois shows
por noite. Ali costumava se apresentar companhias de dança do sul do País e até do exterior, como grupos de
tango argentino e de cancan francês. Era, também, um bordel e um importante ponto de decisões políticas e para
fazer negócios.Com a proibição do funcionamento de cassinos no Brasil, o Bataclan entrou em decadência, não
conseguindo manter o antigo nível de alto luxo da casa. Hoje, o antigo cabaré, transformado em centro cultural,
propõe ter uma visão mais ampliada sobre sua importância no contexto cultural atual da cidade. Mostrando uma
nova roupagem, o Bataclan quer proporcionar um lugar onde a historia permite valorizar a produção cultural e
artística contemporânea. Disponível em: CONSULTOR JURÍDICO, Revista. Exploradores de casa de
prostituição têm HC negado. 2011. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2011-fev-09/comerciantes-
exploravam-casa-prostituicao-nao-hc>. Acesso em: 01 maio. 2014.
143
É evidente que nenhum aspecto de nossas vidas escapa a essa classificação do certo
ou errado. Mas até que ponto é legítimo considerar unicamente essa moral sexual como um
bem jurídico penal? Se admitirmos que deva haver normas penais para coibir tais condutas,
quais seriam as justificativas jurídicas que poderiam nos respaldar?
Considerar a moral sexual um bem jurídico penal implica juridicamente em sanções
e tipificações desarrazoadas, que no plano concreto, ao invés de proteger bens jurídicos
tutelados pelo direito penal, fere direitos humanos e fundamentais, quais sejam a autonomia
da vontade, as liberdades individuais e a dignidade humana, valores estes norteadores de um
Estado Democrático de Direito.
Assim, é difícil conceber tipicidade material ao tipo descrito no art. 229, embora a
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a tenha reconhecido. Se consideramos os fatores
sociais, o princípio da adequação social e a licitude da prostituição, podemos afirmar que
Moral Sexual não é um bem jurídico penal legítimo a ser admitido em um Estado democrático
de direito.
Assim, deveriam as leis penais de hoje serem objetivas e racionalmente
determinadas, justificadas pela proteção dos bens jurídicos mais importantes e que merecem
tal proteção pelo nosso estatuto repressivo, já que um Estado democrático aprecia, em regra, a
diversidade e a autonomia da vontade, quando esta não colide com direitos fundamentais de
outrem. Por isso, um Direito Penal que se propõe a ser liberal é incompatível com a ideia da
proteção de bens jurídicos irrelevantes.
Portanto, cabe ao direito penal tutelar ao invés da moral, as liberdades e os direitos
fundamentais dos cidadãos que compõem o Estado, onde a moral não deve ser considerada
unicamente para justificar a proteção penal. Isso não impede, entretanto, que a moral não
possa ser tutelada por outros ramos do direito, só não cabe ao direito penal tutelá-la devido o
seu caráter repressivo incidir num direito basilar de um Estado democrático: a liberdade dos
cidadãos.
REFERÊNCIAS
BECCARIA, Cesare. Direito de punir. In: BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2009. Cap. 2, p. 64.
GRECO, Rogério. Princípio da Adequação Social. In: GRECO, Rogério. Curso de Direito
Penal. 8. ed. Niterói, Rj: Impetus, 2007. Cap. 8. p. 57-59.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 13. ed. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2013.
REALE, Miguel. Direito e Moral. In: REALE, Miguel. Lições Preliminares do Direito. 24.
ed. São Paulo: Saraiva, 1999. Cap. 5. p. 42-56.
WELZEL, Hans. Derecho penal alemán.Trad. Juan Bustos Ramirez e Sergio Yañes Peréz.
Chile: Jurídica de Chile, 1987.
ABSTRACT
The criminal law is formed by several principals, like break ups and
minimal interventions, which means that referring to the public law it
should intervene only to guard legal assets classified as more relevant
by the society. In this context, coming from a more accurate analysis
of the social values it is shown to be dishonest to conceive typical
material to the kind of crime in titled as: "prostitution house", shown
in the 229th article of the Brazilian Criminal Code, as the target
population of the criminal code does not rule out the day and
nighttime practices that go against the legal interests of sexual
145
RESUMO
1 INTRODUÇÃO
∗
Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte
147
Defronte desse contexto, importante se fazer uma ressalva, frente ao que se,
costumeiramente, observa na doutrina: a proteção do prestígio da máquina pública,
conseguintemente, dos seus funcionários no exercício de suas funções.
Nesse esteio, a título de reflexão crítica, não se concebe esse tipo penal como apto a
resguardar o bem jurídico do prestígio – propriamente dito – supostamente sustentado pela
administração pública.
Em verdade, pode-se assentar, a despeito disso, que seja apenas uma terminologia
inadequadamente utilizada pela doutrina. Contudo, não se pode deixar de atentar-se para essa
problemática, vez que tal terminologia guarda um sentido de grande influência perante os
demais, dando margem a um enaltecimento da função pública, isto é, o culto a esse ofício.
A referida terminologia, ainda, pode ser tida como incompatível com princípios
penais de ordem constitucional, quais sejam, o da fragmentariedade, intervenção mínima,
razoabilidade e proporcionalidade. Ou seja, dentro da visão do Direito Penal como medida
última de sanção jurídica, eleger-se o “prestigio” da função pública como bem jurídico
fundamental é, irrefragavelmente, uma congruência desmedida, até mesmo, uma antinomia
real do sistema.
Assim, seria mais adequado referir-se ao bem jurídico desse tipo como tutela da
atividade proba pela administração pública, quer dizer, pelo exercício regular da função
estatal; quando não possível a sua descriminalização, vez que há outros tipos penais com
maior aptidão para o resguardo desse bem jurídico – o tipo de resistência (art. 329) 1 e
desobediência (art. 330) 2.
Até por isso mesmo, é pretendido que se estabeleça, topograficamente, em outra
região na sistemática do Código Penal, qual seja, nos crimes que tutelam a honra do
indivíduo.
Dessa forma, desacato é o ato ofensivo ao funcionário público que, no momento
consumativo, está no exercício de suas funções, ou em razão dele. Reflexamente, não se
recomenda, em se tratando de desacato como norma penal, equiparar-se essa conduta às ações
como “menosprezar” ou “humilhar”; isso porque, mais uma vez, adota-se o entendimento de
que o prestígio não é resguardado por esse tipo penal.
1
Art. 329 – Opor-se à execução de ato legal, mediante violência ou ameaça a funcionário público competente
para executá-lo ou a quem lhe esteja prestando auxílio: Pena – detenção, de três meses a dois anos, e multa. § 1º
- Se o ato, em razão da resistência, não se executa. Pena – reclusão, de um a três anos. § 2º - As penas deste
artigo são aplicáveis sem prejuízo das correspondentes à violência
2
Art. 330 – Desobedecer a ordem legal de funcionário público. Pena – detenção, de seis meses a dois anos, ou
multa.
149
Na verdade, esse entendimento nos remete aos privilégios vigentes a época do Estado
Absolutista, no qual se prestigiava a condição dos nobres, em detrimento da sociedade
comum. Nessa época, a proteção ao privilégio, como fim útil do desacato, tinha sua razão de
ser; hodiernamente, é inconcebível esse propósito normativo. Diante de tais circunstâncias,
percebe-se o bem jurídico em questão: a proteção ao exercício regular e probo da atividade
pública.
Assim sendo, o que se busca proteger no tipo penal do art. 331 (desacato) do Código
Penal Brasileiro é a salvaguarda da função administrativa estatal.
Por reflexo, deve-se tutelar penalmente o funcionário público no exercício de suas
funções, haja vista ser ele o responsável por orientar a administração estatal no seio social,
proporcionando a atuação da máquina estatal de forma proba.
Em suma, o tipo penal do desacato é a garantia ao funcionário quanto às suas ações
executadas de forma regular e íntegra.
Caso contrário, poderá ele exigir, da administração pública, uma ação positiva do
Estado para que se cumpra essa prerrogativa: nesse momento, se provoca o dever de cumprir
a norma penal reservado a ordem estatal.
2.1 Tipificação legal do desacato: sua previsão legal e a sua vagueza significativa
Sendo assim, com fins a garantir a proteção imediata à função pública e, também,
mediata ao funcionário público, tipifica o art. 331 do código penal, no título XI, capítulo II, a
conduta do desacato. Nos seus termos legais: “Art. 331 – Desacatar funcionário público no
exercício da função ou em razão dela: Pena – detenção, de seis meses a dois anos ou multa”.
Ainda, é de salutar importância se fazer uma ressalva quanto à localização do tipo no
Código Penal, topograficamente, no capítulo II, “dos crimes praticados por particular contra a
administração em geral”.
Isso porque funcionários públicos, seja de hierarquia superior, seja de inferior,
também podem integrar o polo ativo do delito em tela, conforme entendimento de Magalhães
de Noronha e Heleno Fragoso (1981, p. 307), acompanhado por Guilherme Nucci (2012, p.
1196).
Para esses autores, não importa a hierarquia dos sujeitos da infração penal: tanto o
infrator, como ofendido pode ser de hierarquia diferente ou, até mesmo, de mesma hierarquia
– o que vale é a efetiva lesão ao bem jurídico resguardado no tipo, o exercício regular de suas
150
funções. “Quanto ao funcionário como sujeito ativo, entendemos, (...) poder haver desacato,
pouco importando se de idêntica hierarquia, superior ou inferior.” (NUCCI, 2011, p. 1196).
Em resumo, não somente particulares podem cometer o desacato, mas também
funcionários públicos que não estejam no exercício regular, ou em razão dela, de suas
funções. Malgrado isso, é bem verdade que não há, na codificação criminal, um capítulo que
abarque tanto particulares, como agentes públicos, porém, impede fazer fundamental ressalva.
Nessa perspectiva, a técnica empreendida na tipificação legal do desacato é,
inegavelmente, dotada de grau elevado de abstratividade, vez que não há requisitos objetivos
para a sua configuração no meio social. Evidentemente, não é caso de norma penal em
branco, porém abre margem para diversas interpretações.
Nesse caso, observa-se a incompatibilidade da previsão legal com os princípios,
também de cunho constitucional, da legalidade e taxatividade, balizadores do processo de
criminalização estatal, no âmbito legislativo. Isso porque não assegura uma tipicidade
determinada do crime, como faz, por exemplo, o abuso de autoridade.
Obviamente, ficará a cargo do juiz competente – de sua discricionariedade, à luz do
caso concreto, delinear os traços objetivos do desacato na situação, vez que não pode abster-
se de julgar o caso, afetando, substancialmente, a segurança jurídica dentro do ordenamento
criminal – o que se demonstra incongruente com a concepção de última opção do direito
penal.
Além disso, vale salientar que são direitos fundamentais indisponíveis, a exemplo da
liberdade de expressão e liberdade de locomoção, encartados no art. 5º, inc. IV e XV, da
Constituição Federal, fato que impõe efetiva segurança assegurada em processos de possíveis
flexibilizações. Ainda mais no ambiente penal, considerando-se que é a mais drástica
flexibilização de direitos fundamentais no ordenamento jurídico.
3.1 Abuso de autoridade: coibição legal a excessos arbitrários por funcionário público
3
Art. 3º. Constitui abuso de autoridade qualquer atentado: a) à liberdade de locomoção; b) à inviolabilidade do
domicílio; c) ao sigilo da correspondência; d) à liberdade de consciência e de crença; e) ao livre exercício do
culto religioso; f) à liberdade de associação; g) aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício do voto;
h) ao direito de reunião; i) à incolumidade física do indivíduo; j) aos direitos e garantias legais assegurados ao
exercício profissional.
153
margem para o cometimento de maiores abusos por parte do funcionário público, visto que a
técnica legislativa não traz requisitos específicos e objetivos para se distinguir uma real
agressão a sua função ou, apenas, um simples desentendimento situacional.
Ademais, é importante ainda se ressaltar um ponto: a sanção penal prevista no tipo de
abuso de autoridade é significativamente de menor gravame do que a do desacato – o agente
público pode, no máximo, ficar em regime de detenção por seis meses. Assim, percebe-se que
o legislador não se preocupou tanto com o bem jurídico resguardado no tipo – as liberdades
individuais, contraditoriamente, a exemplo do desacato.
Com efeito, aduz a referida lei, em termos de sanção penal: “(...) § 3º A Sanção penal
será aplicada de acordo com as regras dos artigos 42 a 56 do Código Penal e consistirá em: a)
multa de cem a cinco mil cruzeiros; b) detenção por dez dias a seis meses; c) perda do cargo e
a inabilitação para o exercício de qualquer outra função pública por prazo de até três anos”.
Pelo que se percebe, ante o exposto, não há similitude visível entre as duas técnicas
legislativas empreendidas nas referidas legislações, evidenciando um significativo
desequilíbrio na relação jurídico social envolvida. Especificar as restrições relativas a conduta
de um agente, sem fazer o mesmo com o outro agente, é manter uma desigualdade
injustificada na mencionada relação.
3.2 O advento da lei n.º 9.099/95: um passo importante para a mudança desse
paradigma
Nessa linha de intelecção, vale debruçar-se sobre o que dispões o artigo 301 do
Código de Processo Penal Brasileiro, tendo em vista a sua pertinência com o tema em pauta.
Em suas letras legais:
Art. 301. Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão
prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito; Art. 302. Considera-se
em flagrante delito quem: I – está cometendo infração penal; II – acaba de cometê-
la.
4
Art. 61. Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as
contravenções penais e os crimes a que lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não
com multa; Art. 69. A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e
o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e da vítima, providenciando-se as requisições dos
exames periciais necessários. Par. Único. Ao autor do fato que, após a lavratura do termo, for imediatamente
encaminhado ao Juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante,
nem se exigirá fiança (grifos nossos).
155
Assim como se posiciona esse breve ensaio, o acórdão considera atípica a conduta de
apenas exaltação de ânimos no ambiente de investigação criminal, ou seja, exercício da
função policial. Contrariamente ao que foi peticionado, não houve efetiva lesão ao exercício
regular da função investigativa, existindo, apenas, uma tensão momentânea entre os
respectivos profissionais.
Nessa linha, o delegado, insatisfeito com o insucesso de sua apuração, recorreu à
utilização arbitrária do desacato, a fim de prevalecer a sua função frente às liberdades
fundamentais do suposto infrator. Assim, como houve, pelo contrário, utilização ilegítima do
desacato para se prevalecer à vontade do agente público, o Tribunal entendeu corretamente
pelo improvimento da apelação.
6
BRASIL Senado Federal. Projeto de Lei do Senado nº 236/2012. Altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de
Dezembro de 1940 que dispõe sobre as normas incriminadoras atinentes ao Código Penal Brasileiro. Disponível
em: <http://www12.senado.gov.br/noticias/Arquivos/2012/06/pdf-veja-aqui-o-anteprojeto-da-comissao-especial-
de-juristas>. Acesso em: 09/03/2014.
157
as garantias fundamentais, quando existem outras medidas mais adequadas e menos onerosas
para esse fim; por exemplo, os crimes de desobediência e resistência.
Manter o desacato em uma nova legislação criminal é, de fato, admitir uma postura
desproporcional com a Constituição Federal. Assim, posturas arbitrárias, legitimadas por uma
defesa do interesse público, não mais poderão ser ratificadas pelo desacato. Assim, o
ordenamento penal pátrio poderá, apenas, proteger a honra violada do sujeito agredido,
embora a sua condição de agente público poderá render uma majoração da possível pena
aplicável.
Dessa forma, haverá, fundamentalmente, prevalência dos direitos fundamentais
frente a abusos ilegítimos dos funcionários públicos, quando “investidos” de interesse público
desvirtuado.
Assim, por se tratar de uma majorante do crime de injúria, caracterizado por ser de
ação penal de iniciativa privada, haverá importantíssimas consequências processuais, no que
se refere a sua persecução criminal.
Em resumo, quais sejam: faculdade de interpor a ação penal (princípio da
oportunidade), de renunciá-la, antes de seu prosseguimento (princípio da disponibilidade);
possibilidade de ver concedido o perdão pelo querelante, após prosseguimento da ação penal
(disponibilidade); o prazo decadencial para a sua interposição estender-se-á para seis meses;
e, por fim, a legitimidade para integrar a relação processual penal passa a ser do ofendido, e
não do Ministério Público.
Enfim, mudanças importantes, salvo a oportunidade, em relação ao crime de
desacato – de ação penal pública incondicionada. Isso porque, de fato, há diferentes bens
jurídicos em questão.
5 CONCLUSÃO
Dessa forma, o que se propõe, nesse presente trabalho, é apresentar uma visão
analítica sobre essa mentalidade vigente na função pública, principalmente, a policial, bem
como versar sobre ilegitimidade das práticas fundadas nesse pensamento.
Resta, aqui, demonstrar não só inviabilidade dessa postura dentro de um Estado
Democrático de Direito, como também, demonstrar, sobretudo, a sua inconstitucionalidade
perante a Constituição Federal brasileira. Não há espaços para flexibilização de direitos
fundamentais de forma arbitrária e abusiva.
Portanto, faz-se mister destrinchar toda essa cultura que envolve o apego ao
desacato, bem como a “veneração” à autoridade, na sociedade brasileira – na administração
pública, especificamente. A liberdade de autodeterminação é uma das mais importantes
garantias fundamentais do Estado brasileiro e não pode ser restringida mediante tal
abusividade.
E, tomado por essa visão, o anteprojeto de reforma do Código Penal brasileiro fora
redigido, reservando o devido espaço necessário para a proteção do exercício regular da
função pública. Dando-lhe, assim, novos contornos em seu regime jurídico, o desacato
certamente atenderá aos fins que lhe são incumbidos, não abrindo margem para qualquer que
seja a desvirtuação que esteja relacionada a si.
REFERÊNCIAS
BARROS FILHO, Mario Leite de. O resgate do efeito intimidativo do crime de desacato. Jus
Navigandi, Teresina, a. 14, n. 2069, mar. 2009. Disponível em:
<http://jus.com.br/revista/texto/12387>. Acesso em: 13 jun. 2013.
BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial.v.5. 6 ed. São
Paulo: Saraiva, 2012.
DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 4 ed.
São Paulo: Atlas, 2012.
HUNGRIA, Nelson. FRAGOSO, Heleno Claudio. Comentários ao código penal.. 6. ed. Rio
de Janeiro: Forense, 1981.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 11. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2012.
159
ABSTRACT
RESUMO
1 INTRODUÇÃO
Nada é por acaso. Em 30 de outubro de 2007, o Brasil foi eleito sede dos jogos do
campeonato mundial de futebol de campo da Fédération Internationale de Football Association
(FIFA) do ano de 2014 1. Em 19 de dezembro de 2008, foi instalada a primeira Unidade de Polícia
Pacificadora, no Morro Santa Marta, no bairro de Botafogo, na Zona Sul do Rio de Janeiro 2. O
processo de pacificação cresceu, evolui e conta hoje com trinta e sete Unidades de Polícia
∗
Mestre em Direito Penal pela Universidad de Salamanca
1Veja-se: ACERVO O GLOBO. Brasil foi escolhido sede da Copa do Mundo de 2014 em outubro de 2007.
Disponível em: http://acervo.oglobo.globo.com/fatos-historicos/brasil-foi-escolhido-sede-da-copa-do-mundo-de-
2014-em-outubro-de-2007-9630221. Acesso em 14 set. 2014.
2 Veja-se: GOVERNO DO RIO DE JANEIRO. UPP – Histórico. Disponível em:
http://www.upprj.com/index.php/historico. cesso em 14 set. 2014.
161
Pacificadora (UPP) instaladas naquela cidade. Nesse interstício, o Rio de Janeiro também foi
eleito, em 2 de outubro de 2009, como sede dos jogos do Comitê Olímpico Internacional (COI)
do verão de 2016.
Esforços têm sido envidados por todas as esferas de governo, no sentido de melhorar a
qualidade da prestação do serviço de segurança pública nos município que sediarão os jogos da
Copa de 2014, em grau que quer se equiparar à política de segurança pública denominada de
Giuliani-Bratton, ou tolerância zero nova-iorquina, da década de noventa do século passado 3.
Ainda que se reconheça que a referida política de segurança pública tenha méritos
consideráveis, tais como a redução da sensação de insegurança por parte da população de
determinado local (WILSON; KELLING, 1982, p.1), dado irrelevante para o direito penal, mas
de importância central para a criminologia e a sociologia do crime, ela vem sendo descarta por
especialistas do mundo inteiro como modelo bem-sucedido de política de segurança pública
orientada à real redução de taxas de criminalidade, especialmente pelo seu pouco impacto na
criminalidade denominada de criminalidade não aparente.
Porém, aqui no Brasil, se foi mais longe. É o que percebemos com a edição, em 19 de
dezembro de 2013, da Portaria Normativa n. 3461/MD 4, pelo Ministro da Defesa, que trata de
aprovar a regulamentação da Operação Garantia da Lei e da Ordem, operação de natureza militar,
com incursões dentro do próprio território nacional, para garantir a ordem local através das forças
armadas. Conforme exposto, nada é por acaso, e é bem esperado que esse tipo de normativa
venha a ser editada às vésperas da Copa do Mundo de 2014.
Assim, para a compreensão da realidade do cenário da segurança pública atual brasileira,
faz-se necessário analisar os fundamentos dos movimentos de política criminal de tolerância zero,
o conteúdo da citada Portaria e obviamente, a realidade das Operações Garantia da Lei e da
Ordem no país e as reais motivações de sua implementação.
3 Veja-se: HOJE EM DIA. Política de "tolerância zero" aplicada em Belo Horizonte. Disponível em:
http://www.hojeemdia.com.br/minas/politica-de-tolerancia-zero-aplicada-em-belo-horizonte-1.220528. Acesso em
14 set. 2014. Veja-se também: SOUZA, André de. Tolerância zero com violência em protestos na Copa. Disponível
em: http://oglobo.globo.com/pais/tolerancia-zero-com-violencia-em-protestos-na-copa-10351396. Acesso em 14 set.
2014.
4 BRASIL. PORTARIA NORMATIVA Nº 3.461/MD, DE 19 DE DEZEMBRO DE 2013. Dispõe sobre a publicação
“Garantia da Lei e da Ordem”. Brasília, D.O.U. nº 247 de 20 de dezembro de 2013.
162
Alguns gestores da polícia admitem que esse processo ocorra, mas argumentam que
policiais em patrulhas motorizadas podem lidar com isso tão efetivamente quanto a
policiais em patrulha a pé. Não estamos seguros disso. Em teoria, um policial em uma
viatura pode observar tanto quanto um policial a pé; em teoria, o primeiro pode
conversar com o mesmo tanto de pessoas quanto o segundo. Mas na realidade dos
encontros polícia-cidadão é potencialmente alterada pelo automóvel. Um policial a pé
não pode separar ele mesmo das pessoas na rua; se aproximam-se dele, somente seu
uniforme e personalidade podem ajudá-lo a controlar o que estiver por acontecer. Ele
nunca pode ter certeza do que será – um pedido de orientação espacial, um pedido de
ajuda, uma denúncia enfurecida, uma provocação, um murmúrio confuso, um gesto de
ameaça. 6 (WILSON; KELLING, 1982, p.1) (Tradução livre)
5 WILSON, James Quinn; KELLING, George L., "Broken Windows: The police and neighborhood safety", en:
Atlantic Monthly, March, 1982, disponível en: <www.theatlantic.com/politics/crime/windows.htm.>
6 “Some police administrators concede that this process occurs, but argue that motorized-patrol officers can deal
with it as effectively as foot patrol officers. We are not so sure. In theory, an officer in a squad car can observe as
much as an officer on foot; in theory, the former can talk to as many people as the latter. But the reality of police-
citizen encounters is powerfully altered by the automobile. An officer on foot cannot separate himself from the street
people; if he is approached, only his uniform and his personality can help him manage whatever is about to happen.
And he can never be certain what that will be—a request for directions, a plea for help, an angry denunciation, a
teasing remark, a confused babble, a threatening gesture.”(WILSON; KELLING, 1982, p.1)
163
Nesse contexto, George Kelling e Catherine Coles desenvolvem a fundo o que chamam
de estratégia Broken Windows de restabelecimento da ordem e redução da criminalidade em
dadas comunidades. De fato, trata-se de uma estratégia de política criminal, conforme informado,
7 “Second, at the community level, disorder and crime are usually inextricably linked, in a kind of developmental
sequence. Social psychologists and police officers tend to agree that if a window in a building is broken and is left
unrepaired, all the rest of the windows will soon be broken. This is as true in nice neighborhoods as in rundown ones.
Window-breaking does not necessarily occur on a large scale because some areas are inhabited by determined
window-breakers whereas others are populated by window-lovers; rather, one unrepaired broken window is a signal
that no one cares, and so breaking more windows costs nothing. (It has always been fun.)” (WILSON, 1995, p. 126)
8 “The patrolman, in the discharge of his most important duties, exercises discretion necessarily, owning in part to
his role in the management of conflict and in part to his role in the suppression of crime. In managing conflict, his
task is to maintain order under circumstances suck that the participants and observer are likely to disagree as to what
constitutes a reasonable and fair settlement and he is likely to be aware of hostility, alert to the possibility of
violence, and uncertain that the authority symbolized by his badge and uniform will be sufficient for him to take
control of the situation. In suppressing crime, his task is to judge the likely future behavior of persons on the basis of
their appearance and attitude and to deal with those he deems “suspicious” under the color of laws that either say
nothing about his authority to question and search short of making an arrest or give him ambiguous or controversial
powers.” (WILSON, 1976, p. 278)
164
Curiosamente, em outro estudo, o próprio James Wilson se mostra de certo modo cético
em relação às medidas de controle de criminalidade, em especial atenção à experiência histórica
de combate à criminalidade nos Estados Unidos da América, da seguinte forma:
Não há nada de novo em dizer que nós não conhecemos o suficiente para montar um
conjunto de novos programas bem elaborados, e é um pouco desconfortável pedir mais
pesquisa sobre isso. No começo da década de sessenta do século passado, quando as
taxas de criminalidade nos Estados Unidos começaram seu dramático aumento, nós
sabíamos ainda menos sobre como lidar com o problema que hoje. Muitas pessoas
estavam confortavelmente otimistas sobre a eficácia dos programas de reabilitação,
levou uma década ou mais de pesquisas e publicações para perceberem que o naufrágio
desse otimismo estava no lugar errado. Outros estavam certos de que contratando mais
policiais e colocando-os mais frequentemente em patrulhas preventivas aleatórias iria
reduzir drasticamente a criminalidade de rua. De novo, uma década se passou antes que
essa certeza fosse destruída por estudos que sugeriam que as mudanças possíveis nos
9 “Four elements of Broken Windows strategy explain its impacts on crime reduction. First, dealing with disorder
and low-level offenders both inform Police about, and put them into contact with, those who have also committed
index crimes, including the hard core of “6 per cent” youthful offenders. Second, the high visibility of police actions
and the concentration of police in areas characterized by high levels of disorder protect “good kids”, while sending a
message to “wannabes” and those guilty of committing marginal crimes and their actions will no longer be tolerated.
Both of these elements ultimately bring greater control to bear to prevent crime. Third, citizens themselves being to
assert control over public places by upholding neighborhood standards for behavior, and ultimately move onto center
stage in the ongoing process of maintaining order and preventing crime. Finally, all problems of disorder and crime
the responsibility not merely to the police but of the entire community, including agencies and institutes outside but
linked to it, all mobilize to address them in a integrated fashion. Through this, broadly based effort, a vast array of
resources can be marshaled, and through problem solving, targeted at specific crime problems” (KELLING; COLES,
p. 141-143)
165
10 “There is nothing new in saying that we do not know enough to mount a well conceived set of new programs, and
there is something a bit lane in calling for more research. In the early 1960s, when crime rates in the United States
began their dramatic increase, we knew even less about how to cope with the problem than today. Many people were
comfortably optimistic about the efficacy of rehabilitation programs; it took a decade or more of research and writing
for the realization to sink in this optimism was misplaced. Others were certain that hiring more police officers and
having them engage more frequently in random preventive patrol would cut down on street crime. Again, a decade
passed before this certainty was shattered by studies suggesting that feasible changes in levels of preventive patrol
would have few or no demonstrable effects on crime rates. Still others believed that the causes of crime could easily
be addressed by programs that provide job training, more schooling, and reduced racial segregation. Job-training and
job-creation programs flourished; the proportion of young people staying in school increased; the more obvious
forms of racial segregation were overcome. Billions of dollars were spent. Crime continued to rise” (FARRINGTON;
OHLIN; WILSON, 1986, pp. 1 ss)
166
Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela
Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base
na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e
destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de
qualquer destes, da lei e da ordem. (BRASIL, 1988)
A utilização das forças armadas como instrumento de garantia da lei e da ordem tem
previsão constitucional. Compreende-se garantia da lei e da ordem, nesse contexto, a manutenção
da vida em sociedade, das instituições sociais e da organização social, o que está visceralmente
vinculado à noção de utilização de espaços públicos, através da utilização das forças armadas. A
regulamentação do referido dispositivo constitucional estabelece o conceito de Operação
Garantia da Lei e da Ordem, em dois instrumentos normativos, o Decreto n. 3.897, de 24 de
agosto de 2001 e a Portaria Normativa n. 3461/MD, de 19 de dezembro de 2013, que,
respectivamente, estabelecem que:
Art. 3º Na hipótese de emprego das Forças Armadas para a garantia da lei e da ordem,
objetivando a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do
patrimônio, porque esgotados os instrumentos a isso previstos no art. 144 da
Constituição, lhes incumbirá, sempre que se faça necessário, desenvolver as ações de
polícia ostensiva, como as demais, de natureza preventiva ou repressiva, que se incluem
na competência, constitucional e legal, das Polícias Militares, observados os termos e
limites impostos, a estas últimas, pelo ordenamento jurídico. (BRASIL, 2001)
Operação de Garantia da Lei e da Ordem (Op GLO) é uma operação militar conduzida
pelas Forças Armadas, de forma episódica, em área previamente estabelecida e por
tempo limitado, que tem por objetivo a preservação da ordem pública e da incolumidade
das pessoas e do patrimônio em situações de esgotamento dos instrumentos para isso
previstos no art. 144 da Constituição ou em outras em que se presuma ser possível a
perturbação da ordem. (BRASIL, 2013)
Como se pode depreender dos dispositivos normativos citados, nas Operações Garantia
da Lei e da Ordem há previsão expressa de utilização das forças armadas como forças de
segurança pública interna, quando estas se esgotem, ou em outras situações em que se presuma
ser possível a perturbação da ordem. Ou seja, não é necessário o prévio esgotamento das forças
regulares de segurança pública para que seja posta em funcionamento uma operação para garantia
167
da lei e da ordem, nem a efetiva perturbação da ordem, basta que se presuma ser possível
perturbação da ordem social.
Assim, é evidente que é perfeitamente presumível a possibilidade de perturbação da
ordem nas cidades brasileiras que sediarão o campeonato mundial de futebol de campo da FIFA
de 2014. Não é por acaso que há previsão específica de emprego das forças armadas em eventos
públicos, quando será presumível a perturbação da ordem, vejamos o que estabelece o citado
Decreto presidencial:
Art. 5º O emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem, que deverá ser
episódico, em área previamente definida e ter a menor duração possível, abrange,
ademais da hipótese objeto dos arts. 3º e 4º, outras em que se presuma ser possível a
perturbação da ordem, tais como as relativas a eventos oficiais ou públicos,
particularmente os que contem com a participação de Chefe de Estado, ou de Governo,
estrangeiro, e à realização de pleitos eleitorais, nesse caso quando solicitado. (BRASIL,
2001)
4.3.2 Dentro desse espectro, pode-se encontrar, dentre outros, os seguintes agentes como
F Opn:
a) movimentos ou organizações;
b) organizações criminosas, quadrilhas de traficantes de drogas, contrabandistas de
armas e munições, grupos armados etc;
168
Todo Estado de Direito que se deseje democrático, para ser legítimo, tem que se
fundamentar em uma ordem racional. Uma Constituição bem formulada, capaz de
validar todo um ordenamento jurídico, tem que se fundamentar em valores racionais que
são alcançados pelo respeito aos direitos humanos. (LOPES, 2006, p.108)
Um Estado que segue o modelo Democrático de Direito 11, como o Brasileiro, deve
buscar a garantia da efetivação de princípios e direitos inerentes aos sistemas constitucionais
democráticos contemporâneos. Deve ele tutelar tais valores constitucionalmente garantidos a
todos, a fim de que se coadune com a ordem constitucional e assim possa intervir na sociedade,
validamente.
Consoante tal modelo estatal, o que legitima a sua intervenção em sociedade, em
qualquer área, é o objetivo maior de promoção do bem comum, porém, faz-se necessário que
este, além de prever como direitos individuais tais valores, também efetivamente os garanta.
Assim, em um modelo de Estado Democrático de Direito, todas as formas de atuação
estatal, por sua vez, devem se adequar e buscar materializar tais núcleos mandamentais
normativos, quais sejam, os princípios e valores constitucionais, e em especial, a dignidade da
pessoa humana. Assim informa a doutrina:
11 Constituição da República Federativa do Brasil: Art. 1º, caput: “A República Federativa do Brasil, formada pela
união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e
tem como fundamentos:”
170
5 CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias: uma leitura do garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil.
1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001.
FARRINGTON, David P., OHLIN, Lloyd E., WILSON, James Q. Understanding and
Controlling Crime. Toward a New Research Strategy, Springer-Verlag, New York, 1986.
WILSON, James Quinn; KELLING, George L., "Broken Windows: The police and neighborhood
safety", en: Atlantic Monthly, March, 1982, disponível en:
<www.theatlantic.com/politics/crime/windows.htm.>
WILSON, James Q. On Character: Essays by James Q. Wilson, AEI Press, 1991, expanded
edition, Washington D. C., 1995.
________. Varieties of Police Behavior by James Q. Wilson; Harvard University Press, New
York, 1976.
KELLING, George L.; COLES, Catherine M. Fixing Broken Windows: Restoring Order and
Reducing Crime in Our Communities, New York: Free Press, 1996.
172
ABSTRACT
This article will explain the rationale, the objectives and the practices of
the United States public security policy called zero tolerance, and its
relative in the Brazil: the operations for the guarantee of law and order.
Brazilian public security policies will be analyzed as well as their origins
and their consequences to the current Brazilian culture of public security.
The main problem of this research is the compatibility of that criminal
policy model’s ideology to the values of a constitutional and democratic
society. This inquiry is needed to understand those criminal policies that
have been subject of the interest of Brazilian agencies responsible for the
management our system of public security, aiming to maintain law and
order in the country, at the time of the FIFA’s World Cup of 2014.
RESUMO
1 INTRODUÇÃO
∗
Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte
∗
Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte
174 2
áreas do Direito também o fazem. Um dos frutos dessa adaptação, como se observa
atualmente, é a conquista de uma nova visão sobre os fins do Processo Penal, que ganha
traços mais humanizados e realistas quanto aos limites fáticos da atividade jurisdicional. É
dizer, portanto, que houve ganhos para o desenvolvimento dos direitos humanos na sua luta
por condições reais de defesa do indivíduo contra o ímpeto do Estado.
Não obstante a isso, o ato de “dizer o direito” ao cidadão implica inevitavelmente um
fator humano: a atividade do magistrado. A figura do juiz, personagem central ainda hoje na
imagem coletiva sobre o sistema de Direito, continua ostentando uma noção de poder e
sabedoria que pode ser perigosa na dinâmica de julgamento de um indivíduo acusado de
subverter as normas sociais. Apesar de ser uma peça importante na conquista dos direitos ao
devido processo legal e outros princípios que garantem maior segurança ao réu, posto que em
tempos remotos ou outras experiências sociais esta persona supostamente imparcial nem
mesmo é cogitada, o Juízo carrega em si certos excessos.
Um dos abusos mais notórios na prática da magistratura, ainda que observado sob
uma perspectiva superficial, é o linguístico. A decisão dada de forma textual, que é apenas um
resultado de elementos intrínsecos e extrínsecos que incidem sobre o convencimento do
magistrado, transmuta-se em símbolos e códigos que guardam certos significados, na intenção
de transmitir a seus receptores a opinião daquele que sentencia. Da forma como é feita, no
entanto, não traduz apenas isso, visto que a fundamentação do juiz vai muito além de
estabelecer se o acusado será condenado ou absolvido. A linguagem do magistrado pode
denunciar sua convicção particular acerca de fatos e elementos estranhos à sua atribuição
como julgador, de modo que essa mensagem também poderá surtir efeitos no plano da
realidade.
O presente trabalho objetiva, através de análise crítica das possíveis influências do
texto sentencial na realidade do acusado, expor uma dimensão ignorada da atividade
jurisdicional. Compreendendo a linguagem como instrumento comunicativo para o
magistrado, pode-se obter através dela a expressão de seus diversos pontos de vista acerca do
Direito – e dos indivíduos a ele submetidos. Necessário, portanto, explorar os limites atuais na
liberdade de decidir, bem como os princípios hoje em voga no Processo Penal e seu influxo
na formação de convicção dos julgadores.
Ressaltar, por conseguinte, o abuso do Estado-juiz contra o indivíduo processado,
pela análise linguística da atividade do magistrado, permite compreender uma das faces da
crítica ao Processo Penal – interconectada ao confronto sobre a busca pela verdade real, os
conflitos encontrados no modelo jurídico protagonizado pelo “humano julgador” contra o
175 3
“humano julgado”, bem como da nebulosa ligação entre o Direito e a psicologia (ou até
mesmo a neurociência). Assim, faz-se relevante analisar não só os conteúdos limitadores da
atividade do indivíduo enquanto “ser” social, mas aqueles que limitam (ou deveriam limitar) a
atuação do indivíduo enquanto “regulador” social.
2 LINGUAGEM E DIREITO
Nesta perspectiva, podemos perceber que aquele que constrói a ideia, a mensagem,
considera, inevitavelmente, o público à que se destina, como forma de convencer,
até para que se mantenha legitimado na sua ação. No caso do juiz, a sua decisão
(escolha) visa fazer com o que as partes (principalmente a parte “perdedora”) aceite
o seu ato, que nada mais é do que decidir por um argumento e não por outro.
Todavia, essa decisão (escolha) precisa ser fundamentada. A questão, pois, nos
remete à forma pela qual o juiz constrói a sua edificante argumentação, pois na
técnica do direito (pode ser avaliada também por profissionais de outras áreas) pode
ser avaliada, e, portanto, conformada ou não. A ação judiciante é uma ação não só
particular das partes, mas politicamente pública.
Assim, para além da técnica judicial, é possível que exista uma tendência, pré-
formada, de concepção subjetiva, internalizada de alguma maneira no processo de
formação do sujeito, que apareça no momento da decisão judicial? Esta indagação
também direciona a reflexão para o tipo de sujeito para à qual se destina a decisão
(aqui o réu o adolescente autor de infracional, ou, como símbolo linguístico,
simplesmente “delinquente”), pois os sentidos humanos permitem defesas
automáticas que nos dão os sinais de ameaça. Desta forma, a visão e a oralidade
transformam-se em mecanismos de ação sobre o “outro”, seja na medida em que o
“avalio” pela aparência”, seja quando eu o “julgo” por palavras. (AGUIAR, 2013, p.
2)
A postura ora expressada pode possuir, como se observa, caráter decisivo diante de
outras realidades que não a do estrito processo. E essa assertividade não se restringe ao campo
da moral social, na qual as escolhas textuais dos magistrados irão apenas emanar sugestões de
conduta ou opinião sobre certos indivíduos, mas, como já referenciado, apresenta força por
advir de uma autoridade com notoriedade pública.
177 5
Isto posto, passa a ter compreensão mais palatável a grande influência da linguagem
das decisões judiciais, cuja incidência vai além da mera ordem dada pelo juiz às partes,
alcançando também aspectos como a reconstrução do senso interno de justiça moral diante de
uma suposta “afronta”, cegamente legitimada pela lei, à honra do acusado – além dos
impactos difundidos no senso comum, como a opinião da mídia sobre tal assunto e a
consequente diminuição de receptividade do indivíduo no seio social, após sua execração pelo
representante da Justiça. O campo da análise do discurso passa a ser ferramenta de estudo
não só da intenção argumentativa do juiz, mas dos reflexos ultrajurídicos de suas escolhas
linguísticas.
pelo magistrado, fazendo com que a atuação do juiz, no que tange à gestão da prova, seja
complementar (2014) 1.
Para Salah (2011), embora diante de possível diferença, as duas correntes
(re)legitimam a ambição de verdade inquisitorial, pois, mesmo diante da “flexibilização” de
uma ideologia de busca da verdade, inevitavelmente ocorre a desembocadura em um Processo
Penal do inimigo, colidente ao Sistema Acusatório delineado pela Constituição Federal de
1988. Desta feita, para Lopes Jr. e Rosa, a obra citada alhures tem como escopo a
conformidade constitucional do direito processual penal e a vedação explicita à ideologia
inquisitória, implicando na mantença da ambição de verdade (2014) 2.
Não se sabe o porquê do exacerbado uso de uma linguagem segregante. Talvez com
fulcro no ranço inquisitivo e em uma espécie de bis in idem do quantum em abstrato da pena,
pode ser um mecanismo (utilizado pelo magistrado) “forjador” para a conquista da tão
almejada verdade real. Embora não se tenha a precisa resposta dessas indagações, qualquer
que seja a encontrada, essa será (mesmo que inconscientemente) alicerçada na tradição
violenta e monológica de construção do conhecimento e imposição da verdade.
Nesse entendimento:
Na seara penal, para Rosa e Khaled Junior (2014 3), a separação entre Direito
e Moral, pressuposto existencial do Estado Laico, escamoteia a verdade, pelo fato de ainda se
debater as velhas práticas cristãs, como o pecado, a confissão, o arrependimento e a punição.
A estrutura formal do “crime” e as heranças (in)conscientes que povoam os hábitos
judiciais deixam notório que o “discurso moral” é uma condicionante no processo decisório,
não raro por se acreditar que a punição é um mal necessário para a purificação.
Deste modo, a secularização, entendida como a “cisão entre a cultura eclesiástica e as
doutrinas filosóficas (laicização), mais especificamente entre a moral do clero e o modo de
produção da ciência” (BUENO DE CARVALHO; CARVALHO, 2001, p. 1), é agravada se o
mito ingênuo da Verdade Real estiver presente.
1
Documento eletrônico não paginado.
2
Documento eletrônico não paginado.
3
Documento eletrônico não paginado.
179 7
Desta forma, é notório o colapso do Direito Penal do Inimigo, a pena como fim em si
mesmo, a sede punitivista e vingativa de ferir a ferro e fogo aquele que não se submeteu ao
que é tido como correto pela maioria das pessoas e pelo Ordenamento Jurídico. A linguagem
utilizada, também, atua como mecanismo (des)socializador daqueles que ousam, intencional
ou não intencionalmente, ir de encontro ao que é tido como padrão penal.
Ora, a equação “busca da verdade real + direito penal do inimigo + linguagem
chanceladora do punitivismo inquisitivo” leva a um resultado que põe em xeque o princípio
4
Documento eletrônico não paginado.
180 8
condizentes com os juízos e concepções formadas externamente: “Se alguém diz que eu sou
ladrão, eu realmente o sou. Se me dizem que eu não presto para nada, de fato, não presto”.
Para Vera Britto e José Fernando Lomonaco, o conceito de profecia autorrealizadora
existe não de agora. Segundo eles (1983, p. 60), há muito se entende que “a expectativa de
uma pessoa a respeito do comportamento de outra pode contribuir para que essa última se
comporte de acordo com o que se espera dela”.
Neste viés, Castro complementa que
que demore a aceitar ou tenha um concreto posicionamento sobre si próprio, poderá ter a
opinião dos outros tida para si como verdade absoluta inata a sua realidade.
Uma vez já maculado por essa (falsa) realidade construída pelos outros, o indivíduo
ruma ao segundo ponto: “Será que eu realmente não presto?”, “realmente, como nada nunca
deu certo, estou à margem da sociedade e o que me resta é delinquir”. A aceitação e
comodidade dessas premissas levam ao ponto “3”, outrora explicitado.
Esse último ponto é nevrálgico na presente discussão: a força (des)construtora e
(des)socializadora no Direito Processual Penal cria uma realidade na cabeça daquele que por
ela fora bombardeado. Numa espécie de convencimento externo, o indivíduo começa a
desempenhar ações para “superar” os seus déficits de modo a ser reinserido de alguma forma
na sociedade – por mais que, para manter status de riqueza perante os outros, tenha de
cometer crimes, por exemplo.
Por fim, o último ponto é o colapso de tal ciclo: a reiterada prática delituosa (como
fruto, também, da utilização de uma ácida linguagem no Processo Penal) não serve mais como
válvula de escape. Ora, mais cedo ou mais tarde, o indivíduo será punido pelos fatos típicos
que cometeu e que foram acarretados, também, pela influência externa dos outros, no presente
caso representados pelo mau uso da linguagem.
Ou seja: aquele que segrega e marginaliza pune aquele que cedeu ao seu
convencimento bombardeador (o que é contraditório). Permissa venia, uma espécie de
armadilha para, propositadamente, capturar o inimigo ofensor e lançá-lo às masmorras do
nosso (flagelado, deficitário e precário) sistema prisional. Mais uma vez, notória incidência da
pena autossatisfativa com fim em si mesmo, do “punir somente por punir”.
Agora, mais do que antes, há o retorno ao ponto inicial. Embora seja um paradoxo,
no intento de garantir a perfectibilização da imputação e cumprimento da pena no seio do
Sistema Acusatório – embora, no entendimento de Lima (2014), este não se trate de um
sistema puro -, a (tão exaustivamente discutida) busca da verdade real e a cisão entre cidadão
e inimigo pregada por Jakobs e Meliá (2007) põem em xeque o tal buscado Garantismo.
O próprio Direito Processual Penal pune vigorosamente quem cede a suas pressões.
A linguagem como mecanismo construtor de uma verdade paralela à real tenta forjar uma
cópia fidedigna à realidade fática pretérita exercida pelo acusado. Entretanto, devido à
irrazoabilidade e suas nefastas consequências, este ramo do Direito pune várias vezes o
eventual cometedor de um crime, aniquilando direitos e garantias inatos ao cidadão
considerado individual e coletivamente.
183 11
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
BISPO, Armando. Nossa identidade: o ciclo vicioso da insatisfação. [S. l.: s. n.], 2014.
BRITTO, Vera Maria Vedovelo de; LOMONACO, José Fernando Bitencourt. Expectativa
do professor: implicações psicológicas e sociais. Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, v.
3, n. 2, p. 59-79, jan.-dez. 1983. Disponível em: <://www.scielo.br/pdf/pcp/v3n2/05.pdf>.
Acesso em 15 ago. 2014.
BUENO DE CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e
garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001.
CASTRO, Lola Aniyar. Criminologia da reação social. Trad. de Ester Kosovski. Rio de
Janeiro: Forense, 1983.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002.
JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito penal do inimigo: noções e críticas.
Trad. de André Luis Callegari e Nereu José Giacomolli. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2007.
KHALED JUNIOR, Salah Hassan; ROSA, Alexandre Morais da. Rehab aos viciados em
punição e salvação. Disponível em: <http://justificando.com/2014/08/11/rehab-aos-viciados-
em-punicao-e-salvacao/>. Acesso em: 12 ago. 2014.
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. 2. ed. Salvador: Jus Podivm, 2014.
ROSA, Alexandre Morais da; LOPES JUNIOR, Aury. Busca da verdade no processo penal
para além da ambição inquisitorial. 2014. Disponível em:
<http://www.conjur.com.br/2014-jul-04/busca-verdade-processo-penal-alem-ambicao-
inquisitorial>. Acesso em: 14 set. 2014.
SANTOS, Juarez Cirino dos. O direito penal do inimigo – ou o discurso do direito penal
desigual. 2009. Disponível em: <http://www.cirino.com.br/artigos/jcs/Direito penal do
inimigo.pdf>. Acesso em: 12 ago. 2014.
ABSTRACT