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0INSTITUTO FEDERAL DO MATO GROSSO – IFMT

DISCIPLINA: ÉTICA PROFISSIONAL


PROF. BRENO DUTRA SERAFIM SOARES

ÉTICA PROFISSIONAL, RED, CICLO 3

LIBERALISMO

CONCEITO DE LIBERALISMO

Como o próprio nome aponta, o liberalismo é uma teoria política, econômica e social embasada nos
ideais de liberdade individual e mercantil, em que toda a população deve ter direitos humanos iguais para
garantir a livre concorrência no mercado. Dessa forma, uma das bases fundamentais do modelo é o
individualismo, tendo em vista a sua prioridade em frente ao coletivo. Em outras palavras, ao não considerar a
hierarquia social, cada ser humano se torna livre e igual perante o Estado e, portanto, vive em função das suas
próprias necessidades.

RESTRIÇÃO DA ATUAÇÃO DO ESTADO E LIVRE MERCADO

O Liberalismo teve início com o Iluminismo e as Revoluções Burguesas europeias, tendo o intuito de
acabar com a Monarquia e suas formas de controle social. A partir disso, a teoria liberal demandava a livre e
ampla concorrência no mercado, com a restrição do Estado, assim como exaltava a liberdade de expressão e de
pensamento, tanto no universo ideológico quanto religioso. Os governos adeptos ao liberalismo econômico e
político devem promover a liberdade singular e evitar imposições estatais, desenvolvendo uma sociedade justa
e igualitária para todos, inclusive na distribuição de serviços e recursos públicos.
No entanto, embora o discurso manifestasse a importância do desenvolvimento de direitos iguais, com a
livre concorrência econômica, as sociedades foram se tornado cada vez mais desiguais, ocasionando problemas
políticos e econômicos que, em conjunto com a destruição social da Primeira Guerra Mundial e as correntes
socialistas e comunistas, levou ao questionamento do Liberalismo.
A EXPRESSÃO FUNDAMENTAL DO LIBERALISMO: “LAISSEZ FAIRE”

A expressão “laissez faire” significa “deixar fazer”, e representa uma das principais ideias da economia
liberal. O modelo econômico defende que o Estado deve garantir apenas as condições adequadas, como o
direito à propriedade. O restante deve se desenvolver de forma natural. A versão completa em francês é “laissez
faire, laissez aller, laissez passer, le monde va de lui-même”, que é traduzida para “deixai fazer, deixai ir, deixai
passar, o mundo vai por si mesmo”. A expressão também é conhecida na forma grafada com hífen (laissez-
faire).
Em resumo, o termo mostra os ideais defendidos pelo liberalismo. Isso é, as instituições privadas podem
solucionar todas as suas questões sem uma interferência do governo. Além disso, a teoria também propõe uma
diminuição da interferência política. Assim, restringe-se também a atuação do Estado na economia. Caberia ao
poder público apenas a fiscalização e regulamentação.

OUTRA EXPRESSÃO FUNDAMENTAL DO LIBERALISMO: “A MÃO INVISÍVEL”

A economia teria a interferência de uma chamada “mão invisível” que ditaria as condições. O termo
“mão invisível”, derivado das teorias do economista e filósofo Adam Smith, faz referência a lei de oferta e
procura.1 No liberalismo, como há a menor intervenção do governo quem regula fatores como preços e
produção é o próprio mercado. Segundo essa lógica, uma falta de um produto no mercado associada a uma
grande procura pelo mesmo faz os preços deste bem aumentarem automaticamente. E, quando há uma redução
na procura, os preços baixariam. Portanto, essa regulação aconteceria de forma automática, como se houvesse
uma mão invisível capaz de intervir.

CARACTERÍSTICAS DO LIBERALISMO

Ao longo da história ocidental, o liberalismo tomou várias formas, encontrando soluções para alinhar a
liberdade e a igualdade dentro da sociedade. Dessa forma, surgiram diferentes modelos liberais — como o
clássico, o econômico e o político —, cada um priorizando uma esfera ideológica. Por exemplo, no liberalismo
clássico, o sistema dá preferência aos direitos civis, sustentando-o como foco de intervenção. Já o econômico

1 O termo “mão invisível” foi introduzido no pensamento econômico liberal por Adam Smith. O único uso do termo “mão invisível”
encontrado na obra A Riqueza das Nações se encontra no Livro IV, Capítulo II, “Restrições à Importação de Mercadorias Estrangeiras
que Podem Ser Produzidas no Próprio País”. A frase exata é utilizada somente três vezes nas escrituras de Smith.
tende a focar no mercado e na baixa atuação estatal. No entanto, todas as vertentes iniciaram em um ponto em
comum, sendo sustentadas por bases específicas que determinam o que é o liberalismo.
Confira as principais características:
 Ampla e livre concorrência de mercado;
 Individualismo e valorização do trabalho;
 Diminuição das barreiras econômicas e medidas restritivas;
 Valorização das leis;
 Liberdade ideológica e de expressão, priorizando a tolerância quanto aos pensamentos
contrários e opositores;
 Instituição da lei da oferta e procura, isto é, quanto mais produtos disponíveis no mercado,
menor deverão ser os preços.

LIBERALISMO POLÍTICO

Para compreender o que foi o liberalismo e os seus significados, é preciso conhecer a sua vertente
política, amplamente aplicada após os regimes monárquicos e absolutistas. Desenvolvido por John Locke, o
sistema político liberal é opositor ao modelo monárquico, visto que as ideias do rei e seus aliados não englobam
o desejo da população como um todo e, muito menos, os individuais. Dessa forma, um regime pautado nas
vontades de uma única pessoa não permite o crescimento econômico e social, ferindo os princípios de liberdade
e igualdade preconizados pelo liberalismo. Então, dentro desse modelo, o Estado tem atuação reduzida e é
substituído pela razão individual, liberdade civil e transparência política, com a criação de leis claras
formuladas pelo poder estatal por meio de um processo eleitoral e democrático.

LIBERALISMO ECONÔMICO

O sistema liberal defende a livre atuação do mercado, isto é, sem interferência de taxas, barreiras e
regimes fechados do Estado. Nos países em que o liberalismo econômico atua, o crescimento exponencial da
produção é facilitado e, por consequência, o lucro. Aqui, as leis da livre concorrência e de oferta e procura são
bem-vindas, assim como o direito à propriedade privada e a forte valorização do trabalho humano, que
providencia sustentos para a sobrevivência individual.
LIBERALISMO E NEOLIBERALISMO

O liberalismo entrou em fracasso após a Primeira Guerra Mundial em função da desigualdade social que
ele criou. Depois das mudanças sociais, políticas e econômicas que aconteceram durante a Guerra Fria e após a
Segunda Guerra Mundial, surgiu o conceito de neoliberalismo. Ao avaliar certas incoerências no discurso do
modelo clássico e a sua ineficiência em se adaptar ao contexto atual — capitalista, globalizado e diversificado
—, alguns teóricos desenvolveram um novo sistema com base nos ideais tradicionais. Em outras palavras, a
grande diferença entre liberalismo e neoliberalismo é o contexto social em que ele é aplicado. Enquanto o
primeiro foi criado como uma forma de luta contra a monarquia, o segundo surgiu para apoiar os ideais
capitalistas, favorecendo a economia privada.

JOHN LOCKE (1632 – 1704)

John Locke ficou conhecido como o fundador do liberalismo político, lançando mão de ideais flexíveis
para alavancar o poder privado e favorecer a ascensão da burguesia e, por consequência, dando base para a
Revolução Francesa, de 1789. Segundo sua teoria, cada ser é livre para fazer o que quiser, desde que não
prejudique a existência do outro, reforçando o ideal individualista do sistema liberal.

O ESTADO DE NATUREZA SEGUNDO LOCKE

Junto a Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau, John Locke é um dos principais representantes do
jusnaturalismo ou teoria dos direitos naturais. O modelo jusnaturalista de Locke é, em suas linhas gerais,
semelhante ao de Hobbes: ambos partem do estado de natureza que, pela mediação do contrato social, realiza a
passagem para o estado civil. Existe, contudo, grande diferença na forma como Locke concebe especificamente
cada um dos termos do trinômio estado natural/contrato social/estado civil.
Em oposição à tradicional doutrina aristotélica, segundo a qual a sociedade precede o indivíduo, Locke
afirma ser a existência do indivíduo anterior ao surgimento da sociedade e do Estado. Na sua concepção
individualista, os homens viviam originalmente num estágio pré-social e pré-político, caracterizado pela mais
perfeita liberdade e igualdade, denominado estado de natureza. O estado de natureza era, segundo Locke, uma
situação real e historicamente determinada pela qual passara, ainda que em épocas diversas, a maior parte da
humanidade e na qual se encontravam ainda alguns povos, como as tribos norte-americanas. Esse estado de
natureza diferia do estado de guerra hobbesiano, baseado na insegurança e na violência, por ser um estado de
relativa paz, concórdia e harmonia.
A TEORIA DA PROPRIEDADE DE JOHN LOCKE

Nesse estado pacífico os homens já eram dotados de razão e desfrutavam da propriedade. Numa
primeira acepção genérica, propriedade designava simultaneamente a vida, a liberdade e os bens como direitos
naturais do ser humano. Numa segunda acepção, em sentido estrito, propriedade significa especificamente a
posse de bens móveis ou imóveis. A teoria da propriedade de Locke, que é muito inovadora para sua época,
também difere bastante da de Hobbes. Para Hobbes, a propriedade inexiste no estado de natureza e foi instituída
pelo Estado-Leviatã após a formação da sociedade civil. Para Locke, ao contrário, a propriedade já existe no
estado de natureza e, sendo uma instituição anterior à sociedade, é um direito natural do indivíduo que não pode
ser violado pelo Estado. Os direitos naturais inalienáveis do indivíduo são: direito à vida, à liberdade e à
propriedade e constituem o cerne do estado civil. Por isso, John Locke é considerado por isso o pai do
individualismo liberal.

O TRABALHO COMO FUNDAMENTO ORIGINÁRIO DA PROPRIEDADE

O homem era naturalmente livre e proprietário de sua pessoa e de seu trabalho. Como a terra foi dada
por Deus em comum a todos os homens, ao incorporar seu trabalho à matéria bruta que se encontrava em estado
natural o homem tornava-a a sua propriedade privada, estabelecendo sobre ela um direito próprio do qual
estavam excluídos todos os outros homens. O trabalho era, pois, na concepção de Locke, o fundamento
originário da propriedade.

O APARECIMENTO DO DINHEIRO E SUAS IMPLICAÇÕES NA PROPRIEDADE

Se a propriedade era instituída pelo trabalho, este, por sua vez, impunha limitações à propriedade.
Inicialmente, quando “todo o mundo era como a América”, o limite da propriedade era fixado pela capacidade
de trabalho do ser humano. Depois, o aparecimento do dinheiro alterou essa situação, possibilitando a troca de
coisas úteis, mas perecíveis, por algo duradouro (ouro e prata), convencionalmente aceito pelos homens. Com o
dinheiro surgiu o comércio e também uma nova forma de aquisição da propriedade, que, além do trabalho,
poderia ser adquirida pela compra. O uso da moeda levou, finalmente, à concentração de riqueza e à
distribuição desigual dos bens entre os homens. Esse foi, para Locke, o processo que determinou a passagem da
propriedade limitada, baseada no trabalho, à propriedade ilimitada, fundada na acumulação possibilitada pelo
advento do dinheiro.
O CONTRATO SOCIAL

O estado de natureza, relativamente pacífico, não está isento de inconvenientes, como a violação da
propriedade (vida, liberdade e bens) que, na falta de lei estabelecida, de juiz imparcial e de força coercitiva para
impor a execução de sentenças, coloca os indivíduos singulares em estado de guerra uns contra os outros. É a
necessidade de superar esses inconvenientes que, segundo Locke, leva os homens a se unirem e estabelecerem
livremente entre si o contrato social, que realiza a passagem do estado de natureza para a sociedade política ou
civil. Esta é formada por um corpo político único, dotado de legislação, de jurisdição e da força concentrada da
comunidade. Seu objetivo precípuo é a preservação da propriedade e a proteção tanto dos perigos internos
quanto das invasões estrangeiras.

PACTO DE SUBMISSÃO X PACTO DE CONSENTIMENTO

O contrato social de Locke em nada se assemelha ao contrato hobbesiano. Em Thomas Hobbes, os


homens firmam entre si um pacto de submissão pelo qual, visando a preservação de suas vidas, transferem a
um terceiro (homem ou assembleia) a força coercitiva de suas vidas, trocando voluntariamente sua liberdade
pela segurança do Estado-leviatã. Em Locke, o contrato social é um pacto de consentimento em que os
homens concordam livremente em formar a sociedade civil para preservar e consolidar ainda mais os direitos
que possuíam originalmente no estado de natureza. No estado civil, os direitos naturais inalienáveis do ser
humano à vida, à liberdade e aos bens estão melhor protegidos sob o amparo da lei, do árbitro e da força
comum de um corpo político unitário.

A SOCIEDADE POLÍTICA OU CIVIL

A passagem do estado de natureza para a sociedade política ou civil se opera quando, através do
contrato social, os indivíduos singulares dão seu consentimento unânime para a entrada no estado civil.
Estabelecido o estado civil, o passo seguinte é a escolha pela comunidade de uma determinada forma de
governo. Na escolha do governo, a unanimidade do contrato originário cede lugar ao princípio da maioria,
segundo a qual prevalece a decisão majoritária e, simultaneamente, são respeitados os direitos da minoria.
O DIREITO DE RESISTÊNCIA

No que diz respeito às relações entre o governo e a sociedade, Locke afiram que, quando o executivo ou
o legislativo violam a lei estabelecida e atentam contra a propriedade, o governo deixa de cumprir o fim a que
fora destinado, tornando-se ilegal e degenerando em tirania. O que define a tirania é o exercício do poder para
além do direito, visando o interesse próprio e não o bem público ou comum. A violação deliberada e sistemática
da propriedade (vida, liberdade e bens) e o uso contínuo da força sem amparo legal colocam o governo em
estado de guerra contra a sociedade e os governantes em rebelião contra os governados, conferindo ao povo o
legítimo direito de resistência à opressão e à tirania.
O estado de guerra imposto ao povo pelo governo configura a dissolução do estado civil e o retorno ao
estado de natureza, onde a inexistência de um árbitro comum faz de Deus o único juiz, expressão utilizada por
Locke para indicar que, esgotadas todas as alternativas, o impasse só pode ser decidido pela força. Segundo
Locke, a doutrina da legitimidade da resistência ao exercício ilegal do poder reconhece ao povo, quando este
não tem outro recurso a quem apelar para a sua proteção, o direito de recorrer a força para a deposição do
governo rebelde. O direito do povo à resistência é legítimo tanto para defender-se da opressão de um governo
tirânico como para libertar-se do domínio de uma nação estrangeira.

BERNARD DE MANDEVILLE (1670 – 1733)

Pelo senso comum, o egoísmo é o amor exagerado aos interesses próprios a despeito dos de outrem.
Mas, para Bernard de Mandeville, essa atitude pode trazer vantagens para a sociedade. É o que ele defende no
clássico do pensamento das Luzes A fábula das abelhas: ou vícios privados, benefícios públicos. Em um tom de
fábula, Mandeville passeia pela questão dos defeitos e corrupções apontados em diversas profissões para, a
seguir, examinar de que forma esses “vícios, de cada pessoa em particular, por uma hábil destreza, são postos a
serviço da grandiosidade e da felicidade mundana de todos”.
De acordo com Mandeville: “[O]s que examinam a natureza do homem, dispensando a arte e a
educação, podem observar que aquilo que o torna um animal sociável consiste não no seu desejo de companhia,
bondade, piedade, afabilidade e outros encantos de bela aparência, mas sim no fato de que as suas qualidades
mais vis e odiosas são as aptidões mais necessárias para ajustá-lo nas maiores e, conforme anda o mundo, nas
mais felizes e prósperas sociedades”.
Ele ainda demonstra que, “se a humanidade pudesse ser curada das imperfeições que lhe são
naturalmente próprias, ela deixaria de ser capaz de se lançar à condição das sociedades tão vastas, poderosas e
refinadas, como as que existiram sob as diversas repúblicas e monarquias que prosperaram desde a criação”.
O EGOÍSMO ÉTICO DE BERNARD DE MANDEVILLE:
“VÍCIOS PRIVADOS, BENEFÍCIOS PÚBLICOS”

Bernard de Mandeville, no então polêmico poema Fábula das abelhas; ou vícios privados e benefícios
públicos (1714), vincula conceitualmente os progressos da época ao egoísmo/individualismo. Mandeville
destoa da tradição da filosofia moral escocesa de Adam Smith e Adam Ferguson, pois opera uma inversão
conceitual fundamental, popularizada na fórmula “vícios privados, benefícios públicos”. Nele, a prosperidade
social deriva do puro egoísmo, mas esse egoísmo não é sinônimo de individualismo, pelo menos não no sentido
da filosofia iluminista.
A colmeia da Fábula é uma miniatura da sociedade inglesa tal como a percebia Mandeville: “esses
insetos viviam como homens, e todas as nossas ações eles a faziam em pequena escala”. A principal
característica da colmeia era a profunda dissociação entre, de um lado, suas brilhantes realizações práticas e
econômicas, e, de outro, o descontentamento ético das abelhas consigo próprias. Na sua ingenuidade elas não se
davam conta de que ambas as coisas estavam intimamente ligadas entre si – que o vínculo entre uma e outra era
o mesmo que une um efeito a sua causa. Tudo lá transcorria sem maiores abalos, até o dia em que suas preces
são afinal atendidas por um deus impaciente que expulsa o vício, a má-fé e a hipocrisia de suas vidas. Em
pouco tempo, as abelhas da colmeia se descobrem condenadas a uma existência insípida e medíocre, porém,
virtuosa, no interior de uma árvore oca.

SOCIEDADE DESIGUAL, PORÉM COM PLENO EMPREGO

Antes da súbita conversão das abelhas, nenhuma outra colmeia era tão pujante, próspera e bem
governada quanto aquela. Sua indústria e seu poderia militar conferiam-lhe respeito e renome internacionais.
Suas leis, arte, ciência e tecnologia eram admiradas e copiadas pelas colmeias vizinhas. Embora houvesse
grande desigualdade social entre as abelhas, não havia desemprego na colmeia. E o avanço da técnica e da
capacidade produtiva eram de tal ordem que todos se beneficiavam de alguma forma. Graças a isso, até os
pobres de agora podiam “viver melhor que os ricos de antes”. Mas, não obstante todas estas conquistas e feitos
notáveis, a insatisfação era geral. As abelhas não tinham paz e viviam se acusando e recriminando umas às
outras. Nunca perdiam a chance de reclamar amargamente de sua triste condição.
“UMA BELA SUPERESTRUTURA PODE SER CONSTRUÍDA SOBRE UMA FUNDAÇÃO POBRE E
DESPREZÍVEL”

O problema é que as abelhas não eram apenas aproveitadoras, corruptas e egoístas. Também era míopes
e incapazes de ver que o esplendor econômico da colmeia, do qual tanto se orgulhavam, resultava precisamente
de seus vícios e taras. Elas não viam que “uma bela superestrutura pode ser construída sobre uma
fundação podre e desprezível”. A cada nova denúncia, a cada novo escândalo, ao menor incidente que se
tornasse público, as abelhas embarcavam numa verdadeira orgia de insultos, acusações e recriminações mútuas,
cada uma clamando por mais honestidade e rezando pela regeneração moral das demais. É aí que Jupiter acaba
perdendo a paciência com as abelhas e resolve atendê-las. Ele baixa um decreto eliminando qualquer traço de
egoísmo, oportunismo e corrupção da “colmeia lamuriante”.

CONCLUSÃO: EXCESSO DE MORALIDADE CÍVICA LEVA À COLMEIA OSSIFICADA

O núcleo lógico do paradoxo mandevilliano consiste numa reductio ad absurdum da posição adotada
pelos moralistas clássicos. Imaginemos que algum dia, por um verdadeiro milagre, a humanidade não só se
disponha a ouvir com a devida atenção a pregação destes moralistas, mas passe também a agir de acordo com
ela. O resultado de tanta virtude, responde Mandeville, só poderia ser um: a ruína do comércio e da indústria, a
estagnação científica e tecnológica e o embotamento geral da civilização.
O argumento central da Fábula, não se pode negar, contém muito de verdadeiro. O excesso de
moralidade cívica leva à colmeia ossificada. Sua imposição de cima e de fora (no caso, pela autoridade divina)
acaba produzindo não o paraíso sonhado, mas o limbo estagnado e insípido. O valor moral dos grandes santos,
mártires e heróis da humanidade reside precisamente na escassez relativa dos seus méritos e virtudes. Se todos
fôssemos tão bons quanto eles, ninguém mais no mundo se destacaria pela sua bondade. Imaginar que se possa
basear todo um sistema econômico na hipótese de que os indivíduos agirão de acordo com o ideal da perfeição
moral é não só uma fantasia tola, mas uma receita para o desastre. Por outro lado, o mesmo não pode ser dito da
noção de que a moral não tem nada a ver com o desempenho produtivo ou serve apenas para atrapalhá-lo.
ADAM SMITH (1723 – 1790)

Com conhecimentos sólidos sobre economia e filosofia, Adam Smith contribuiu para a criação e o
fortalecimento do liberalismo ao desenvolver a sua teoria “laissez-faire”, isto é, a atuação livre do mercado
privado, sem interferências e imposições estatais — que, na época, eram realizadas por meio do mercantilismo.
Justamente por isso, ele é conhecido como o pai do liberalismo econômico, enaltecendo a individualidade e
influenciando as industrializações europeias. Para Adam Smith, isso não só permitiria o crescimento econômico
privado, como também promoveria o bem-estar social.

SMITH CONTRA MANDEVILLE

O rigorismo ético sobre o qual se ergue o argumento central da Fábula remete a uma visão
extremamente restritiva do que é a conduta moral: a noção de que toda a virtude é feita de renúncia, i.e., da
“rendição das paixões mediante uma ambição racional de ser bom”, ao passo que, por oposição, toda conduta
autointeressada, e que de alguma forma beneficie o próprio agente, constitui ipso facto2 uma ação egoísta e
merece, portanto, ser chamada de vício.

CRÍTICA DE SMITH: O REDUCIONISMO DE MANDEVILLE

Adam Smith, em sua Teoria dos sentimentos morais (1759), critica o sistema de Mandeville como
“sistema licencioso”, pois toda paixão fora reduzida ao vício e toda virtude à renúncia. Smith, ao criticar o
sistema de Mandeville, pôs o dedo no nervo da questão: “A grande falácia do livro do dr. Mandeville é
representar toda paixão como inteiramente viciosa, na medida em que ela o seja em qualquer grau ou em
qualquer direção”. Nem só de renúncia é feita a conduta moral. A afirmação de valores na vida prática, a
busca da felicidade e uma atenção prudente a nossos assuntos particulares são princípios louváveis de
ação, assim como a apatia e a preguiça – o descaso e o desleixo em relação à nossa pessoa – nada têm de
meritório. Fazer do ascetismo monástico o padrão universal da conduta ética foi um dos estratagemas
empregados com inegável arte por Mandeville para potencializar o caráter paradoxal da Fábula.
A força do paradoxo mandevilliano deriva de um exercício contrafactual. À colmeia que está aí é
contraposta uma outra colmeia, hipotética, onde a virtude e a honestidade ocupam o lugar do vício e da
corrupção. A questão proposta é: o que aconteceria se os membros da comunidade suprimissem suas inclinações

2 Expressão latina que significa “pelo próprio fato”; como resultado da evidência do fato; como consequência obrigatória do fato;
por isso mesmo; por via de consequência.
egoístas e oportunistas para abraçar, digamos, o princípio da ética franciscana do “dar sem medir o custo,
trabalhar sem pedir recompensa”? A moral da fábula sugere a futilidade do clamor pela virtude e induz à
reconciliação da “colmeia ruidosa” com a colmeia que aí está. O desejado se torna o desejável. Amor fati.

ARGUMENTO DE SMITH PARA DERRUBAR O EGOÍSMO ÉTICO DE MANDEVILLE

O primeiro passo para tornar clara a fragilidade desse raciocínio e mostrar o que há de errado com a tese
do egoísmo ético é recorrer a um argumento contrafactual na direção oposta. Suponhamos que os indivíduos
adotem como princípio de conduta na vida prática o mais estrito, vigoroso e inexpugnável egoísmo, que eles
sejam absolutamente alheios a qualquer tipo de consideração pelo bem-estar dos demais e que jamais percam
uma chance sequer de tirar proveito em benefício próprio da violação de normas de convivência social
(oportunismo). Pergunta-se: o que aconteceria? Quais seriam as consequências prováveis da generalização do
egoísmo crasso por toda a sociedade?
Há boas razões para acreditar que, sejam quais forem as regras do jogo econômico, o egoísmo
crasso é muito mais um obstáculo do que um insumo na busca da eficiência e do crescimento econômicos.
O fato é que a simples maximização do egoísmo, sem inibições e preocupações morais, é um princípio de
conduta inadequado – e com frequência letal – tanto para o bom desempenho da economia como para a própria
existência do mercado enquanto mecanismo de coordenação econômica.

A PROPOSTA DE ADAM SMITH: VIRTUES COM DIFERENTES GRAUS DE SOCIABILIDADE

Embora Smith tenha sido lido na chave “quanto mais extenso o mercado, maior a vantagem para
o maior número”, tornada palavra de ordem no glossário neoliberal, não podermos compreendê-la
isolada do corpo de sua filosofia moral. Invoca-se sempre a clássica passagem de A riqueza das nações
(1776): “Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos nosso jantar, mas
de sua consideração por seus próprios interesses. Nós nos dirigimos não a sua humanidade mas a seu
autointeresse (self-love), e nunca falamos-lhes de nossas próprias necessidades, mas de suas vantagens”.
Ao comparar a benevolência ao autointeresse, Smith não compara uma virtude a um vício, mas
sim duas virtudes ou paixões, cuja diferença reside no maior ou menor grau de sociabilidade. O
pressuposto fundamental da filosofia moral de Smith está na compreensão de toda a ambiguidade do
individualismo: o autointeresse (self-love) é absolutamente indispensável à sociedade, é a linha tênue que
equilibra impulsos insociáveis e impulsos sociáveis. As paixões egoístas estão situadas em uma zona de
penumbra entre as paixões sociáveis e as paixões insociáveis.
AUTOINTERESSE (SELF-LOVE) COMO PAIXÃO EGOÍSTA MEDIADORA ENTRE PAIXÕES
INSOCIÁVEIS E SOCIÁVEIS

O autointeresse (self-love) da filosofia moral escocesa tem paralelo na ambivalência do impulso para a
autopreservação, presente nas teorias contratualistas, de Thomas Hobbes a Immanuel Kant. Toda essa tradição
da filosofia política vê, no princípio de autopreservação, riscos para a sociabilidade humana, mas, também e
precisamente aí, a única forma de viabilizar a associação política. O medo que leva à agressão defensiva
antecipatória e degenera o estado natural na guerra de todos contra todos é o mesmo que funde os homens
individualizados no Leviathan de Hobbes. Os inconvenientes para a preservação da propriedade, em Locke, a
rigor, preexiste ao governo civil, são os fundamentos para a sua própria constituição. A instabilidade do estado
natural que corrompe o bom selvagem de Rousseau é a mola para a expressão da vontade geral na instituição
do legislador. A insociável sociabilidade (ungesellige Geselligkeit) da filosofia da história de Kant, expressão
mais nítida da incontornável tensão moral do individualismo, que viabiliza a sociedade enquanto ameaça
sempre dissolvê-la.
Contra o raciocínio intuitivo desavisado, o autointeresse (self-love) é absolutamente essencial para
a sociabilidade burguesa – muito embora, no limite, possa destruí-la. É essa tensão extremamente
sensível que marca a simbiose entre liberalismo e individualismo no século XVIII. Essa síntese, mesmo
partindo de uma igualdade básica, tende a desigualar os homens, o que, no limite, levaria a comprometer
os fundamentos do próprio Iluminismo. Para amainar essa tensão intrínseca, o século XVIII desenvolve a
filosofia da história.

CONCLUSÃO: INDIVIDUALISMO, DESIGUALDADE E PROGRESSO

Liberalismo, no sentido sintetizado pela clássica expressão “laissez faire, laissez passer” de origem
fisiocrata, não se reporta apenas e imediatamente ao mercado, mas tem em conta uma luta política contra o
absolutismo. Esse liberalismo é correlato a um individualismo muito específico, obtido a partir do
confronto entre impulsos egoístas e impulsos “sociais” ou “sociáveis”, por assim dizer. É dessa tensão
extremamente sensível que emerge o mercado liberal – e a questão da desigualdade, preço a ser pago pelo
desenvolvimento e pela liberdade econômica e política. Tal questão tem, então, de ser remetida ao futuro,
à utopia do progresso humano garantido pela(s) filosofia(s) da história. O problema posto pela
desigualdade não se pode resolver no presente, para cada indivíduo isolado, mas reporta-se ao gênero
humano.
REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

CHAUI, Marilena. Iniciação à Filosofia. São Paulo: Ática, 2013.

COTRIM, Gilberto e FERNANDES, Mirna. Fundamentos de Filosofia. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

REALE, G.; ANTISERI, D. História da filosofia. São Paulo: Paulus, 2009.

SANDEL, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa? Trad. de Heloísa Matias e Maria Alice Máximo. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

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