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'A Doutora Nise' de Carlos Drummond de Andrade

Há visível engano nos registros burocráticos referentes à funcionária federal,


Nível 22-A, Dra. Nise da Silveira. Segundo os papéis oficiais, a aludida servidora atingirá,
no próximo dia 10 de janeiro, a idade-limite que determina aposentadoria compulsória. A
contagem deve estar certa, se baseada em certidão de nascimento. Mas cumpre excluir do
total 15 meses em que a Dra. Nise não trabalhou nem viveu vida normal, pois esteve
presa. Seria justo descontar-lhe da idade esse tempo vazio, por um lado, e cheio de
angústia, por outro. Graciliano Ramos, nas Memórias do Cárcere, dá testemunho da
passagem da Dra. Nise pelo túnel da prisão política, de resto injusta, pois o Tribunal de
Segurança acabou por absolvê-la de imaginários crimes. Não lhe restituiu, porém, o ano e
tanto de vida seqüestrada, durante a qual, no dizer de Graciliano, fugia-lhe às vezes a
palavra e um desassossego verdadeiro transparecia em seu rosto pálido, os grandes olhos
moviam-se tristes. Atravessando o túnel, era como se ela não existisse mais, tanto que,
classificada em 4o lugar no concurso, viu nomeados todos os candidatos até o 3o lugar,
com exclusão de sua pessoa. Nise na compulsória? Corrijam os números, senhores
escriturários, pois tudo isso, conta, e muito, existencialmente.

Não contou foi no íntimo de Nise da Silveira para torná-la criatura amarga e
revoltada, que daí por diante abominasse o gênero humano. Pelo contrário. Restituída à
atividade médica especializada, em cargo público que na aposentadoria lhe proporcionará
os proventos de Cr$ 1mil740, dedicou-se a uma obra em que o interesse científico é
amalgamado com o interesse humano, e toda pesquisa envolve amor ao ser - o ser
distanciado da imprecisa fronteira do normal - o fechado em si, o supostamente
ininteligível, o esquizofrênico. Nise debruçou-se sobre a mente cheia de mistério dos que
não participava do nosso modo comum de viver e exprimir-se, e em cerca de 30 anos de
observação, estímulo e carinho, extraiu deles alguma coisa profundamente comovedora e
de enorme interesse psicológico.

Seu Serviço de Terapia Ocupacional abriu um caminho para a interpretação


de valores obscuros, em potencial no espírito atormentado: o caminho da criação artística.
Sem pretensão de formar criadores no sentido em que lhes atribui a disciplina estética.
Sem querer aumentar o catálogo de nossos pintores, escultores, gravadores. Nise
interroga o inconsciente e consegue que dele aflorem as representações artísticas
espontâneas, prova de que nem tudo em seus autores é caos ou aniquilamento: perduram
condições geradoras de uma atividade bela, a serem devidamente estudadas visando ao
benefício do homem futuro, tornando mais transparente em suas grutas interiores.

Resultado desse trabalho que seduziu outros psiquiatras e discípulos,


levando-os a cooperar com a frágil e forte pessoa de Nise, é o Museu de Imagens do
Inconsciente, sobre cujo sorte pairam hoje interrogações: não o estando ainda integrado
legalmente na estrutura do Ministério da Saúde, embora portaria ministerial de 1973 lhe
reconhecesse a existência, que será dele com a aposentadoria de Nise? Ira vegetar,
marcar passo, regredir, acabar melancolicamente?

Para evitar que isto aconteça, fundou-se a Sociedade de Amigos do Museu de


Imagens do Inconsciente. Não é comum ver-se um funcionário que se aposenta suscitar
iniciativa desta ordem para preservar-lhe as realizações no serviço público. Deve ser
mesmo caso único. Para se justificarem como entidade, os amigos do Museu, que são os
amigos de Nise, precisam ficar atentos e ativos, não deixando que tal instituição seja roída
pela indiferença burocrática. Os museus não valem nada como depósitos de cultura ou
experiências acumuladas, mas como instrumentos geradores de novas experiências e
renovação de cultura. Só assim deve ser entendido o maravilhoso acervo de obras
recolhidas ao museu que é alma e vida de Nise.

Do contrário, é o caso de apelar para sua criadora, esquecendo-lhe a


aposentação compulsória, no verso do cantor maranhense:
Nise? Nise? Onde estás? Aonde? Aonde?

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