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A filosofia da ciência de Rubem Alves

Júlio Fontana*

Rubem Alves nasceu em Boa Esperança, Minas Gerais, e tem, hoje, 72 anos. Estudou música e
quis ser médico quando jovem. Entretanto acabou optando pela Teologia.1 Formado em Teolo-
gia pelo Seminário Presbiteriano de Campinas, é mestre em Teologia pelo Union Theological
Seminary, de New York, EUA, e doutor em Filosofia pelo Princeton Theological Seminary,
EUA. Formado em Psicanálise pela Sociedade Paulista de Psicanálise, é professor emérito da
Unicamp.

O senso comum e a ciência Isso é fácil de ser verificado: o que temos por sen-
so comum, hoje, já foi ciência em épocas passadas,
Rubem Alves mostra o que significam senso co- ou, como Rubem Alves diz: “Aquilo que outros ho-
mum e ciência. Essa discussão é necessária, pois ha- mens, em outras épocas, consideraram ciência sem-
verá um debate muito acirrado entre os epistemolo- pre parece ridículo séculos depois. Isso acontecerá,
gistas para saber qual dessas formas de conhecimento também, com nossa ciência.” (p. 16)
e mais complexa.
O senso comum e a ciência são expressões da
Primeiro, o autor desmitifica a ciência mostrando mesma necessidade básica, a necessidade de com-
que ela nada mais é que a hipertrofia do nosso senso preender o mundo, a fim de viver melhor e sobrevi-
comum: ver. Para aqueles que teriam a tendência de achar que
A ciência não é um órgão novo de conhecimento. Ela é o senso comum é inferior à ciência, eu só gostaria
a hipertrofia de capacidades que todos têm. Isso pode de lembrar que, por dezenas de milhares de anos, os
ser bom, mas pode ser muito perigoso. Quanto maior a seres humanos sobreviveram sem coisa alguma que
visão em profundidade, menor a visão em extensão. A se assemelhasse à nossa ciência. Depois de cerca de
tendência da especialização é conhecer cada vez mais quatro séculos, desde que surgiu com seus fundado-
de cada vez menos (p. 12).2 res, curiosamente a ciência está apresentando sérias
ameaças à nossa sobrevivência. (p. 21)
A aprendizagem da ciência é um processo de de-
senvolvimento progressivo do senso comum. Que é Que procuramos conhecer? O senso comum e
senso comum? Antes, devo informar ao leitor que a a ciência possuem mais em comum do que imagi-
expressão senso comum não foi criada pelas pessoas nam. Ambos não investigam toda a realidade, mas
de senso comum, mas por aqueles que se julgam aci- apenas aquilo que se apresenta como um problema.
ma do senso comum. Portanto senso comum é o co- Todo conhecimento começa com um problema (p.
nhecimento que não é científico e as pessoas de sen- 24). Quando não há problemas, não pensamos, só
so comum são intelectualmente inferiores, ou, como usufruímos. Como nos ensina Michael Polanyi: “[...]
muitos chamam, “leigos”. O que os cientistas talvez coisa alguma, em si mesma, se constitui como pro-
não saibam — ou melhor, eles sabem, mas fingem blema ou descoberta; ela pode ser um problema so-
que não sabem —, é que a ciência é uma metamorfo- mente se produz perplexidade e incômodo a alguém,
se do senso comum. Sem o senso comum, a ciência e será uma descoberta se aliviar alguém do peso do
não pode existir. problema.” (p. 34).

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Assim também pensa Miguel de Unamuno: “Todo diz outra coisa: “A investigação científica não termi-
conhecimento tem uma finalidade. Saber por saber, na com seus dados; ela se inicia com eles. O produto
por mais que se diga em contrário, não passa de um final da ciência é uma teoria ou hipótese de trabalho
contra-senso” (p. 35). e não os chamados fatos”. (p. 44)
Na verdade, os fatos servem apenas para confirmar
Em busca de ordem ou negar as teorias elaboradas pela ciência. Portanto
o empirismo não é a gênese da ciência como muitos
Não importam as diferenças que separam o senso afirmam. A gênese da ciência é algo bem próximo da
comum da ciência: ambos estão em busca de ordem. gênese do senso comum, como aponta L. L. Whyte:
Não se pode negar, por outro lado, que o senso co- “O místico crê num Deus desconhecido. O pensa-
mum e a ciência nos apresentam visões de ordem dor e o cientista crêem numa ordem desconhecida.
muito diferentes uma da outra. Qual a diferença entre É difícil dizer qual deles sobrepuja o outro em sua
o senso comum e a ciência? Eles procuram compre- devoção não-racional”. (p. 43)
ender a realidade de formas diferentes. Também não Descobrimos que a ciência busca o invisível e
está incorreto afirmar que eles buscam aspectos dis- as teorias são enunciados sobre esse invisível, então
tintos da realidade. Portanto aquele critério demar- como falar sobre o que não se viu? Para isso os cien-
cador com que a ciência contempla a realidade de tistas utilizam modelos que são construções da imagi-
forma objetiva não é válido. Diz John Dewey: nação e que servem para representar a realidade. Nas
palavras de Rubem Alves, “a ciência não nos oferece
Temos de reconhecer que a consciência ordinária do
cópias do real. Ela nos dá apenas modelos hipotéti-
ser humano comum (...) é uma criatura de desejos e
não de estudo intelectual, investigação e especulação.
cos e provisórios”. (p. 47) E que é modelo? Modelo
O ser humano vive num mundo de sonhos antes que de é algo que nos oferece uma réplica do original. O
fatos, e um mundo de sonhos organizado em torno de problema é que a ciência não conhece esse original.
desejos, cujo sucesso ou frustração constitui sua pró- Destarte, na ciência os modelos não são réplicas do
pria essência. (p. 41) original. Vejamos o que Mary Hesse diz acerca desse
problema:
O mundo humano se organiza em torno de dese-
jos. Sendo assim, é do desejo que surgem a música, a Sob a luz da física moderna não se pode mais conside-
literatura, a pintura, a religião, a ciência e tudo aqui- rar a ciência como uma descrição literal do que exis-
lo que se poderia denominar criatividade. Já que o te na natureza, como se admitia em séculos passados.
desejo não pode ser erradicado e é central na ordem Teorias científicas descrevem a natureza em termos de
de nossa experiência cotidiana, como a ciência pode analogias retiradas de tipos familiares de experiência.
(p. 50)
ser objetiva?
Definitivamente, o que separa a ciência do senso Se os modelos de que a ciência se utiliza não são
comum não é a objetividade. Então, que é que distin- réplicas fiéis do original, então como é possível para
gue a ciência do senso comum? A resposta para essa essa ciência dizer se suas teorias são verdadeiras? Ela
pergunta não é algo fácil de dar-se. Os cientistas di- não pode. Assim afirma o grande epistemologista Karl
zem que os esquemas do senso comum são absurdos, Popper:
enquanto os esquemas científicos são lógicos. Ouso
A ciência não é um sistema de declarações certas e
discordar. O que parece mais absurdo não é o senso bem estabelecidas; tampouco um sistema que avança
comum e sim a ciência. Lembro as seguintes palavras para um estado final. Nossa ciência não é conhecimen-
de Karl Marx: “É um paradoxo que a Terra se mova to (episteme): ela nunca pode pretender haver atingido
ao redor do Sol e que a água seja constituída de dois a verdade, nem mesmo um substituto para ela, como a
gases altamente inflamáveis. A verdade científica é probabilidade. (p. 50)
sempre um paradoxo, se julgada pela experiência co-
tidiana, que apenas capta a aparência efêmera das Relendo esses dois pensamentos — Mary B. Hesse
e Karl R. Popper — podemos apontar as conclusões
coisas”. (p. 42)
a que se chega neste item. O cientista não investiga
Portanto não se verifica a alegação dos cientistas qualquer coisa, mas somente aquilo que lhe interes-
de que o discurso deles é mais lógico do que o do sa, que normalmente é um problema. Ele já domina,
senso comum. intelectualmente (conhece), uma experiência familiar
Outra alegação dos defensores da ciência é que que imagina ser... análoga à estrutura do problema.
a ciência busca os fatos, pelo menos esse era o lema Porém, nesse caminho, não existe segurança. Na ver-
do positivismo. Será que é isso mesmo? G. H. Mead dade, o cientista aposta na sua intuição.Essa forma

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de conhecer não é somente própria do cientista, mas cumprir o prometido ou só cumpre parte de suas pro-
de qualquer pessoa.3 Portanto, passarei a usar o pro- messas, ela é abandonada e outra teoria mais eficaz
nome da primeira pessoa do plural para referir-me a é criada. Um exemplo claro disso é o sistema pto-
todos os seres humanos. lomaico. Durante séculos, o sistema ptolomaico foi
A única coisa que conhecemos, como vimos no aceito porque era adequado para resolver os proble-
esquema acima, é o modelo. Nós os conhecemos não mas cotidianos que se apresentavam aos seres huma-
porque sejam cópias vistas, mas porque são entida- nos. Conforme Thomas Kuhn:
des construídas, intelectualmente, por nós mesmos.
Nenhum outro sistema antigo foi tão bom. Em relação
Na verdade, só conhecemos aquilo que construímos às estrelas, a astronomia ptolomaica é, ainda hoje,
mentalmente, como diz Giambattista Vico: “Podemos tão largamente usada como aproximação; em relação
conhecer objetos de qualquer tipo somente na medi- aos planetas, as predições de Ptolomeu eram tão boas
da em que somos capazes de produzi-los”. (p. 52) quanto as de Copérnico. Mas para uma teoria científi-
É óbvio que, ao referir-se à construção de um objeto, ca, ser admiravelmente bem-sucedida não é a mesma
Vico não estava pensando somente na construção real coisa que ser completamente bem-sucedida. (p. 56)
da coisa, por processos técnicos. Kepler, por exemplo, Uma teoria científica tem sempre a pretensão de
não construiu o sistema solar, nem Vesalius construiu oferecer uma receita universalmente válida, válida
o corpo humano. Ambos, entretanto, produziram, para todos os casos. É isso que Kuhn quer dizer com
intelectualmente, os seus objetos de conhecimento. “ser admiravelmente bem-sucedida não é a mesma
Agora podemos responder o que são modelos coisa que ser completamente bem-sucedida”. Essa
para a ciência? São construções intelectuais, palpi- exigência de universalidade tem a ver com a exigên-
tes, apostas baseadas na crença de que existe uma cia de ordem, de que já falamos. Leis que funcionam
relação de analogia entre o que conhecemos e o que aqui e não funcionam ali não são leis, e um universo
desejamos conhecer. que se comporta de uma forma em certos momentos
Voltamos ao problema da verdade científica: se o e de outra forma em outros não é um cosmo.
que a ciência diz não é verdade, que é que nos leva a Essa necessidade de universalidade causa um pro-
aceitar certas declarações da ciência? E sob que con- blema. Para contornar essa dificuldade, os cientistas
dições concluímos que elas devam ser rejeitadas? Ru- propõem explicações ad hoc para salvaguardar a lei.
bem Alves diz que aqui descobrimos, uma vez mais, Vejamos um exemplo: “Todos os gansos são bran-
a solidariedade da ciência com o senso comum. E cos”. E se aparece um ganso verde? Digo: “Isto não é
isso porque o senso comum se articula, em grande ganso, mas sim um fanso”. Portanto a universalidade
medida, em torno das propriedades funcionais do co- da minha lei continua intacta. Todavia não se pode
nhecimento. preservar uma teoria indefinidamente, chega um mo-
Acreditamos no discurso científico porque ele nos mento que ela fica tão saturada de tantas explicações
é útil. Nas palavras de Rubem Alves, “muito do nosso ad hoc que há a necessidade de rever a teoria. No
conhecimento tem o caráter de ferramenta”. Tal tipo nosso exemplo, a saturação chegaria quando, além
de conhecimento pode ser denominado receita. Que dos gansos, passássemos a ter fansos, bansos, cansos,
é uma receita? É uma série de instruções sobre coisas dansos, jansos, lansos, mansos etc. A receita ficou de
a serem feitas caso se deseje obter determinado re- tal modo complexa, as exceções são tantas, que dei-
sultado. É o conhecimento usado como ferramenta: xou de ser uma ferramenta adequada. Nesse momen-
instrumento para a ação. Quando uma receita é ver- to, ela perde a credibilidade.
dadeira? Quando ela funciona bem, isto é, quando
resolve o problema. É isso que Peter Berger e Thomas Modelos e receitas
Luckmann dizem:
No item anterior, já vimos o que são modelos
A validade do meu conhecimento acerca da vida coti- científicos. Eles são construções mentais das quais se
diana é simplesmente aceita, sem qualquer dúvida, até utilizam os cientistas visando descrever algo que lhes
que apareça um problema que não pode ser resolvido interessa. Os modelos são construídos com concei-
segundo suas instruções. Na medida em que meu co- tos. O ponto que aprofundaremos neste item é o dos
nhecimento funciona de forma satisfatória, geralmente
conceitos. Em muitos casos, os conceitos guardam
suspendo todas as minhas dúvidas a seu respeito. (p. 55)
uma semelhança com coisas visíveis. Quando fala-
A mesma coisa ocorre na ciência. Enquanto uma mos em teoria corpuscular ou teoria ondulatória da
teoria funciona de forma adequada, os cientistas luz, por exemplo, é impossível evitar a visualização
não têm por que questioná-la. Mas quando deixa de de bolinhas sendo atiradas como balas de metralha-

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dora ou a imagem de uma onda de mar. Há situações, dos quadrados dos catetos? Claro que não. A mate-
entretanto, em que não se pode invocar a visão como mática demonstra relações. Ela enuncia que as rela-
muleta da razão. A razão deve caminhar sozinha. A ções se dão de determinada forma, fazendo silêncio
pergunta é a seguinte: “Como podem ser formulados completo sobre se isso é bom ou mau, feio ou bonito.
conceitos sem o auxílio de analogias visuais?” Com a matemática a ciência abandona valores.
A resposta à pergunta foi dada de forma mais efi- Voltemos à afirmação de Galileu, de que “o livro
caz pelo cientista Galileu Galilei, que formulou seus da natureza está escrito em caracteres matemáticos”.
conceitos em linguagem matemática. Outra questão pode ser levantada: Quando olhamos
O livro da filosofia é o livro da natureza, livro que para a natureza, vemos estrelas cintilantes, sentimos
aparece aberto, constantemente, diante de nossos o sol quente, contemplamos o céu azul, bebemos
olhos, mas que poucos sabem decifrar e ler, porque a água fresca, sentimos o perfume das flores, nossa
ele está escrito com sinais que diferem dos de nosso pele fica arrepiada com o vento. É um mundo colo-
alfabeto, e que são triângulos e quadrados, círculos e rido, sonoro, perfumado, mundo sensível e erótico,
esferas, cones e pirâmides. (p. 85) que provoca prazer ou dor. É assim que nosso corpo
sente esse mundo. Onde se encontram os caracteres
Obrigatoriamente, devemos analisar mais profun- matemáticos a que Galileu se refere? Podemos dizer,
damente esse ponto, pois este é um momento crucial com toda certeza, que não é a observação que os
da história da ciência. oferece. De fato, não foi pela observação que a visão
Até Galileu, os filósofos (cientistas) haviam tenta- matemática da natureza surgiu. Ao contrário, foi da
do decifrar a natureza tomando o ser humano como interioridade da razão que surgiu a suspeita de que,
o terceiro texto. Tudo era descrito de uma perspectiva talvez, a matemática fosse a chave para decifrar o
antropocêntrica (inclui-se, aqui, teocêntrica). Tenta- enigma e fazer a natureza falar. A natureza sentida e
va-se compreender a natureza em função de seu fim observada pelo corpo tem de ser colocada em segun-
(telos). As coisas só possuíam sentido se soubéssemos do plano, como um texto enigmático. O que esse tex-
a sua finalidade. Explicar alguma coisa é compreen- to enigmático diz, realmente, deverá ser encontrado
dê-la em função de seus propósitos, objetivos e finali- numa linguagem que só a razão conhece. Liquidado
dades. Rubem Alves mostra o significado sub-reptício o corpo como meio para a compreensão da natureza,
que havia nisso: impõe-se a razão matemática; sem sangue e sem cor-
po, é bem verdade, mas universal e eterna. (p. 88)
Se o que fazemos se explica teleologicamente, não se
deverá concluir, também, que a grande obra da divin- Decorre de toda essa discussão que agora pode-
dade, o universo, deve explicar-se em função de seu mos desmitificar a reivindicação da ciência moderna
propósito? É claro. Se se admite que a natureza é um de apenas dar-se com fatos. Tolo engano. Na verda-
produto da ação criadora de Deus, a expressão mais de, a crítica que se fazia contra Galileu era que ele
alta da sabedoria é ter consciência dos propósitos do não respeitava os fatos. Com certo ar arrogante, su-
Criador. E foi assim que as perguntas teleológicas foram geria que as diferenças, os detalhes, o específico não
feitas à natureza e as respostas obtidas serviram para tinham importância alguma. O que interessava eram
dar sentido à vida das pessoas. Só havia um pequeno as regularidades e uniformidades. Em vez de partir da
problema com elas: belas esteticamente, fascinantes realidade e sua imensa variedade, impunha sobre ela
psicologicamente, mas irremediavelmente à mercê das uma camisa-de-força, obrigando as diferenças a dis-
idiossincrasias da subjetividade. Elas não podem ser solver-se nos caldeirões das identidades matemáticas.
testadas e corrigidas. (p. 86)
Tudo, em nossa experiência, diz que a tendência de
Numa época em que, como vimos, o universo todos os movimentos é o repouso. Galileu, em nome
possuía sentido humano, Galileu vem falar que “o de exigências matemáticas, afirma que a tendência
livro da natureza está escrito em caracteres matemá- de todo movimento é continuar, indefinidamente, em
ticos”. Significa que o mundo não possui sentido hu- movimento. E surge a idéia da inércia, um conceito
mano. Foi exatamente isso que o levou à Inquisição. que não é, de forma alguma, derivado da observa-
Por meio dessa afirmação ele arranca a natureza do ção, mas imposto sobre ela. Vejamos como racioci-
quadro quente e amigo marcado pelo amor e pela nava Galileu: fingia experimentos e os realizava pela
sabedoria divina, e a coloca num mundo frio, em que imaginação apenas, pois a natureza não apresentava
dominam as relações entre os números. No mundo nenhuma situação em que as condições por ele exi-
dos números, não se pode mais fazer a pergunta acer- gidas pudessem ser observadas. (pp. 88-89)
ca da finalidade do universo. Fará sentido perguntar Esse é o problema da ciência moderna. A natureza
para que o quadrado da hipotenusa é igual à soma é um texto a ser decifrado. Se concordamos com Ga-

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lileu, sabemos que ela fala a língua da matemática. a serem empregadas e dos métodos a serem utiliza-
O problema é que, ao nos voltarmos para a natureza, dos. Cientistas das chamadas ciências exatas freqüen-
em vez de encontrar fórmulas e números, ela fica à temente se riem de seus companheiros das ciências
nossa frente exibindo cores, cheiros, ruídos, tempe- humanas e chegam a perguntar se tais ciências são
raturas, mas sem abrir a boca, sem falar nada. Muda. mesmo ciências.
Como obrigá-la a falar? Todavia o rigor das ciências da natureza não se
Quando Galileu fez com que bolas de pesos pre- deve, em absoluto, a que elas sejam mais rigorosas
viamente determinados rolassem num plano inclina- e seus métodos mais precisos. Acontece que o seu
do; quando Torricelli atribuiu ao ar peso que, segun- objeto é estável, enquanto o das ciências humanas é
do seus cálculos, era igual ao peso de uma coluna dinâmico. Nas ciências da natureza, tudo é tão domi-
definida de água; ou quando, em tempos recentes, nado pela rotina que tudo é previsível. Assim, com o
Stahl transformou metais em óxidos e óxidos em auxílio das ciências da natureza, o cientista se trans-
metais... uma luz raiou sobre todos os estudantes da forma num profeta. Na verdade, nesse campo uma
ciência. Eles aprenderam que a razão pode compre- teoria se confirma por seus poderes para predizer o
ender aquilo que ela mesma produz de acordo com futuro. Nas ciências humanas, como no balé, é im-
um plano que ela mesma elaborou. A razão não pode possível prever o próximo passo. Mas uma vez dado,
deixar-se arrastar pela natureza. Ao contrário, é ela a gente percebe que ele se integra perfeitamente no
que deve mostrar o caminho [...] obrigando a nature- estilo de música. Parece que, aqui, a gente só pode
za a dar respostas às questões que ela mesma propôs. ser sábio depois que as coisas acontecem. É exata-
Observações acidentais, feitas sem nenhum plano mente a dinamicidade do objeto que torna tão difícil
previamente elaborado, nunca podem produzir uma fazer uma ciência rigorosa do mundo humano.
lei. [...] A razão, assim, se aproxima da natureza não
como um aluno que ouve tudo que o professor se de- A aposta
cide a dizer, mas como juiz que obriga a testemunha a
responder questões que ele mesmo formulou. (p. 76) “Redes não se constroem com peixes. Redes são
feitas para apanhar peixes.” Como vimos no item an-
A natureza tem o que dizer. Mas ela não toma a
terior, redes são teorias e peixes são os dados. Portan-
iniciativa. Mais do que isso, o fato é que ela não ela- to teorias não se fazem com dados. No entanto, é fre-
bora resposta alguma. Ela se limita a dizer “sim” ou qüente encontrar pessoas que pensam que teorias se
“não” às perguntas feitas pelo cientista. E mais: quan- fazem com dados. Gunnar Myrdal mostra, magnifica-
do ela diz “sim”, na verdade ela diz “talvez”. mente, aquilo que desejamos expressar anteriormente:
Os fatos não se organizam em conceitos e teorias se
Pescadores e anzóis simplesmente os contemplamos. Na verdade, exceto
“Teorias são redes; somente aqueles que as lan- no contexto de conceitos e teorias, não há fatos cientí-
çam pescarão alguma coisa.”4 Não foi por acaso que ficos, mas apenas caos. Existe um fator, a priori, inevi-
Karl Popper escolheu essa frase de Novalis como epí- tável em todo trabalho científico. Perguntas devem ser
grafe de seu livro A lógica da investigação científica. levantadas antes que respostas possam ser dadas. (pp.
O uso de analogias não é gratuito. Portanto as teo- 115-116)
rias são redes e os cientistas, pescadores. Redes são Pensemos nessa declaração de Myrdal. Notamos
apropriadas para pegar certos tipos de peixes do in- que em todo trabalho científico existe um a priori.
teresse do pescador. Assim fez Galileu, uma rede na Foi justamente da luta contra esse a priori que surgiu
qual apenas se pegavam as relações matemáticas no a ciência ocidental. Francis Bacon (1561-1626), de-
mar da realidade. A malha deixava passar os sons, os sejoso de purificar a mente de idéias preconcebidas,
cheiros, as cores, as sensações etc. Uma rede que traz fez um inventário das perturbações possíveis do nos-
tudo não é adequada. Destarte, uma rede vale não só so conhecimento, sugerindo um quadro da patologia
pelo que pega, mas também pelo que deixa passar. do saber. Ele deu o nome de ídolo a cada uma dessas
Portanto a ciência não compreende toda a realidade, perturbações: ídolos da tribo; ídolos da caverna; ído-
mas apenas aquilo que lhe interessa. los do mercado; ídolos do teatro.
Após essa consideração, Alves sai um pouco do É assim que um novo clima intelectual se estabe-
rumo para examinar esse problema no que concerne lece. Por um lado, um sadio ceticismo quanto ao que
às ciências sociais. Nas ciências sociais há um sem- havia sido herdado do passado. Por outro, a preocu-
número de redes. Não há acordo entre os cientistas pação em aprender da natureza. Bacon, então, tratou
sociais acerca dos peixes a serem pescados, das redes de estabelecer um método para organizar a observa-

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ção e orientar o pensamento, de forma que o cientista Isso nos obriga a repensar, profundamente, o senti-
pudesse, realmente, tornar-se aluno da natureza. Os do dos dados e dos fatos da ciência. A palavra dados
fatos são a voz da natureza. A questão, então, é orga- deriva do verbo dar. Que seria um dado da ciência?
nizar esses fatos de modo que formem frases coeren- Presumivelmente, é algo que foi, gratuitamente, dado
tes. O cientista não precisa dizer coisa alguma. Bas- pelo mundo ao nosso redor. O mundo dá, o cientista
ta-lhe ordenar os fatos. Foi assim que ele construiu recebe.
alguns artifícios a serem usados na observação. Um Esse dado, contudo, deve poder circular por meio
deles se chamava tabela de afirmações ou regra de da linguagem. Por quê? Um dado, qualquer que
presença. Outro, tabela de negações ou de ausência. fosse, acessível apenas a mim poderia pertencer ao
Por fim, uma tabela de comparações. Essa é uma das mundo das minhas experiências internas, privadas,
primeiras tentativas de elaborar um método indutivo religiosas ou místicas. Mas o que caracteriza o jogo
para a ciência. a que damos o nome de ciência é um acordo tácito
No restante do capítulo, Rubem Alves mostra o entre todos os cientistas de que nele só se pode falar
problema da indução. Não discutirei, aqui, o critério sobre experiências abertas à verificação intersubjeti-
de demarcação da ciência deixando isso para o item va. Na verdade, é essa verificação que garante a obje-
“A imaginação”. tividade do conhecimento. Assim, se trabalhando sob
tais e tais condições de laboratório obtenho o efeito
A, qualquer cientista, em qualquer parte do mundo,
A construção dos fatos trabalhando sob condições idênticas, deve obter o
O positivismo prega que “toda proposição que mesmo resultado. Portanto, se um fato não puder ser
não seja estritamente redutível ao simples enunciado enunciado, não poderá ser testado.
de um fato, particular ou geral, não pode oferecer A partir daí, Polanyi chama nossa atenção:
nenhum sentido real e inteligível.”5
Contrariamente ao positivismo se expressa Prescott Mas, ao anunciar um fato, de forma mais simples e
Lecky: “Os fatos, em si mesmos, não oferecem sua direta, não o estarei já capturando com minhas teias
teóricas? Haverá uma pura descrição de fatos, livre de
própria iluminação. O problema científico central,
pressupostos? “Falar sobre coisas [...] é aplicar a teoria
portanto, é, claramente, o da interpretação”. (p. 136) do universo, implícita em nossa linguagem, aos parti-
Esta palavra, interpretação, deve merecer nossa culares sobre que falamos.” (p. 143)
atenção. Quando algo necessita ser interpretado?
Quando esse algo, tal como nos é apresentado, é des- Uma outra colocação, feita por Scheler, é muito
tituído de sentido. apropriada: “Se se entende por fato algo que é sim-
plesmente dado, sem nenhuma interferência de nossa
Para Galileu, a natureza, em sua aparência bruta, parte, então fatos, não importa o tipo, não têm exis-
não diz nada. O sentido está escondido. Para Galileu, tência alguma”. (p. 145)
tal sentido era matemático. Mas note que a matemá-
tica não é extraída dos fatos; é, antes, aplicada a eles. Diante de tudo o que foi exposto neste item, con-
De onde surge a matemática? De um poder criativo cluímos que a ciência, com o propósito de estabele-
da razão. cer regras para a construção dos fatos de um discurso
“objetivo”, livre de “ídolos” e intromissões indevidas
É assim que Nietzsche chega à seguinte conclusão: de nossas emoções, pensou que o caminho correto
“Contra o positivismo, que pára perante os fenômenos seria partir dos fatos e não dizer coisa alguma além
e diz: ‘Há apenas fatos’, eu digo: ‘Ao contrário, fatos daquilo que os fatos permitem. Agora, entretanto,
é o que não há; há apenas interpretações’”. (p. 142) descobrimos que os fatos não dizem coisa alguma a
Esse problema leva a um outro: à ilusão de que não ser quando trabalhados pela imaginação.
o avanço da ciência só acontece pelo acréscimo de
fatos novos.
A imaginação
Assim, a opinião de que o progresso científico é
meramente uma questão de contínuas descobertas Gauss afirmou: “As soluções, eu já possuo há mui-
de fatos novos tem o efeito de desencorajar o tipo to tempo, mas ainda não sei como cheguei a elas”. (p.
de pensamento de que mais se necessita no traba- 145) Diante dessa confissão, Rubem Alves questiona:
lho científico. Os fatos empíricos podem, no final das “Como é possível que alguém chegue a um destino
contas, servir apenas como matéria-prima para a ci- sem ter consciência do caminho seguido?” Conclui
ência; em si mesmos, até que tenham sido trabalha- Alves: “Está em xeque a questão do método, tão cui-
dos e interpretados, são totalmente inúteis. (p. 133) dadosamente embalada pela ciência. Há, mesmo,

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certa tendência a identificar ciência com o método Outro aspecto deve ser analisado: em todo ato de
científico”. (p. 147) verdadeira criação científica, quando uma nova vi-
Como a ciência não pode ser definida em função são do mundo é criada, existe um salto qualitativo. É
de seu conteúdo, pois ele tem sofrido profundas re- necessário abandonar todos os auxílios do passado,
voluções ao longo da história, é definida por seu mé- porque o novo não é uma versão melhorada do ve-
todo. lho.
Que é método? Paul Edwards nos ensina que “o Isso desagrada aos ouvidos empiristas e positi-
termo ‘método’ significa, literalmente, ‘seguindo um vistas. Eles adotaram um programa de austeridade e
caminho’ (do grego méta, ‘junto’, ‘em companhia’, e sanidade: liquidar a imaginação, porque é dela que
hodós, ‘caminho’), refere-se à especificação dos pas- surgem os fantasmas que perturbam o conhecimento.
sos que devem ser tomados, em certa ordem, a fim de Foi por isso que Bacon fez um inventário dos ídolos,
alcançar-se determinado fim”. (p. 149) a “lista negra” dos inimigos do saber, emissários dos
subterrâneos dos desejos, intrometidos no mundo
Mas Gauss, na declaração citada, está declaran-
austero e calmo do conhecimento científico.
do: “Cheguei lá sem seguir caminho algum, preme-
ditadamente. Estou pensando para ver se descubro o A pura imaginação perde, assim, irrevogavelmen-
método...” te, sua antiga supremacia e se subordina, necessaria-
mente, à observação. Com isso, os cientistas passa-
Karl Popper concorda: “Não existe aquilo a que
ram a imaginar que eles pensam de maneira diferente
poderíamos chamar de um método lógico para ter no-
dos seres humanos comuns. Desligaram-se do “senso
vas idéias”. (p. 150) Michael Polanyi mantém opinião
comum”. Enquanto o senso comum pensa a partir de
semelhante: “O advento de um pensamento feliz é
emoções e desejos, o cientista é totalmente objetivo.
fruto dos esforços anteriores do investigador, mas não
é, em si, uma ação de sua parte. Ao contrário, trata-se A pergunta que surge é: será que seu pensamen-
de algo que acontece a ele...” (p. 150) to é realmente objetivo, ou sua pretensa objetividade
não passa de um sonho, de uma ilusão de alguém que
Alves observa que esse ponto de vista é muito per-
gostaria de ser um pouco mais que os demais mortais?
turbador, porque parece equiparar o ato pelo qual um
Não é sem razão que Alvin Gouldner declara que é
cientista defronta com uma idéia seminal à experiên-
necessário “abandonar o pressuposto muito huma-
cia de iluminação espiritual de místicos e videntes:
no, mas elitista, de que os outros crêem movidos por
um ato de graça, uma surpresa, uma revelação.
interesses, enquanto eles (cientistas) crêem em obe-
Feyerabend sugere, claramente, que a idéia de um diência aos ditames da lógica e da razão”. (p. 157)
método científico não passa de um mito que não re-
A discussão do método da ciência nos leva a uma
siste à investigação histórica:
outra questão fundamental: o critério de demarcação.
A idéia de um método que contenha princípios científi- Como se constroem as teorias? Uma alternativa
cos inalteráveis e absolutamente obrigatórios que rejam é aceitar que existe um método, um procedimento
os assuntos científicos se defronta com dificuldades ao racional, que nos leva das amostras, dos dados, dos
ser confrontada com os resultados da investigação his- enunciados particulares (ou protocolares) aos enun-
tórica. Descobrimos que não existe uma única regra,
ciados universais. Agindo assim, seguiríamos pelo ca-
por mais plausível que pareça, por mais alicerçada so-
bre a epistemologia, que não seja desrespeitada numa minho proposto pela indução. E foi por esse caminho
ou noutra ocasião. É evidente que tais transgressões que a ciência entrou. A indução parecia um método
não ocorrem acidentalmente [...] mas são, antes, ne- seguro, pois ele começava com os fatos e ficava com
cessárias ao progresso. (p. 151) eles. Nada de saltos. Nos saltos, a imaginação entra e
o conhecimento se transforma em fantasia. A ciência
O fato é que os cientistas, freqüentemente, se vêem procura dizer apenas o que os fatos autorizam, a par-
incapazes de explicar como as idéias lhe ocorrem. tir de baixo, aos poucos, progressivamente, passo a
Elas simplesmente aparecem, repentinamente, sem passo, juntando, cuidadosamente, todos os pedaços
que tenham sido construídas, passo a passo, por um de informação.
procedimento metodológico. O que Gauss, Popper,
Polanyi e Feyerabend fazem, portanto, é simplesmen- Abordarei, agora, o problema da indução.
te confessar a presença de um fato imponderável no Que pretende a indução? A indução tem como pro-
trabalho científico: a criatividade. Lecky diz, mesmo, grama construir o discurso da ciência a partir dos fatos
que “um sistema científico é sempre o resultado de observados. É uma forma de argumentar, de passar de
uma atividade criativa”. (p. 152) certas proposições a outras. A indução é uma forma

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de pensar que pretende efetuar, de forma segura, a Se digo que todos os seres humanos são mortais,
passagem do visível para o invisível. (p. 119) E qual o e que Sócrates é um ser humano, portanto é mortal,
propósito da indução? Oferecer um caminho seguro, o raciocínio é lógico. A conclusão estava contida nas
à prova de erros. O problema é que a indução parece duas premissas. Portanto a passagem do todos para
ser uma ilusão. Por mais que nos esforcemos para se- alguns é lógica, demonstrativa, analítica.
guir, com rigor, o caminho que vai dos fatos aos enun- Será possível o caminho inverso?
ciados de leis e teorias, há indícios de que, em certas
Hume diz que não. “Não é o raciocínio (lógico)
passagens, trapaceamos sem querer. O primeiro filó-
que nos leva a supor que o passado é semelhante ao
sofo a analisar o problema foi David Hume. (p. 125)
futuro e a esperar efeitos semelhantes de causas que
Para Hume, tudo aquilo que podemos investigar são aparentemente semelhantes.” (p. 128)
se divide em duas classes:
Será necessário que as experiências se repitam, se
• relações de idéias: matemática e lógica; acumulem, criem hábitos mentais. Os hábitos e cos-
tumes nos fazem ver a realidade por meio das rotinas,
• matérias de fato: tudo o que acontece no mundo
das repetições. Eles criam formas peculiares de con-
real, que nos é dado pelo sentido.
templar o mundo. Aquilo que já aconteceu muitas
As relações de idéias são conhecidas apenas pela vezes, da mesma maneira, deve continuar a aconte-
razão, enquanto as matérias de fato só nos são co- cer da mesma forma sempre.
nhecidas pela experiência. Assim, a contragosto somos forçados a admitir
Que significa conhecer as matérias de fato? Signi- que, nas teorias, não são apenas os fatos que falam.
fica conhecer suas causas e seus efeitos. Por exemplo: É o costume, um fato psicológico, que faz com que
saber o que é a água é saber, entre outras coisas, que liguemos esses fatos de certa forma. Foi-se o ideal
ela pode ser usada para apagar o fogo, para matar a de um discurso que enuncia os fatos apenas. Porque
sede, para matar um animal etc. Tais são os efeitos da aqui, sub-repticiamente, o ser humano introduz sua
água. Contemplando um terreno comido e destruído crença. (p. 131).
pela erosão, posso dizer: a água foi a causa disso (pp. Hume indicou que a passagem do alguns para o
125-126). todos se dá graças ao auxílio de um pressuposto emo-
E como se descobrem causas e efeitos? Hume res- cional. A inferência indutiva necessita da imaginação
ponde que “são descobertos não pela razão, mas pela para estabelecer a ligação entre o particular e o univer-
experiência”. (p. 126) sal. A psicologia da forma mostra que o conhecimento
Destarte, todo conhecimento, toda ciência, toda depende de nossa capacidade para encher os espaços
tecnologia se baseia no conhecimento de relações vazios deixados por fragmentos de informações. Sem
entre causas e efeitos. Mas que significa dizer que a imaginação, ficaríamos nos fragmentos, no parti-
uma coisa é causa de outra? Significa que estou afir- cular. Nunca daríamos o vôo universal da ciência.
mando a existência de uma relação necessária entre Diante de tudo isso, Rubem Alves conclui: “As te-
elas. Ao afirmar uma relação causal, estou dando um orias, essas ambiciosas generalizações que abarcam
pulo enorme para longe dos fatos. o passado e o futuro, o aqui e os confins do espaço,
Faz um ano, uma chuva apagou um incêndio. são construídas sobre nossa crença na continuidade
Dois meses atrás, apaguei um fósforo num copo de do universo, uma exigência que brota da fé, dos sen-
água. Ontem. joguei água em uma brasa e ela apa- timentos, dos hábitos”. (p. 131)
gou. São alguns fatos, mas até aí não se fez ciência Os dados, portanto, não são a origem das teorias.
alguma. Quando damos o salto e concluímos que a Elas não surgem deles. Dados são apenas provoca-
água apaga o fogo, aí sim fazemos ciência. A ciência ções que sacodem a imaginação, pedindo-lhe que
busca o invisível. ela resolva o enigma.
Que nos autoriza a pular dos enunciados relativos
aos fatos passados para o enunciado relativo a todos As credenciais da ciência
os fatos, até mesmo os futuros?
Kant, Comte, Freud e Marx, todos eles acredi-
A conclusão de que o futuro será semelhante ao tam no advento de uma ciência livre de emoções.
passado, de que a totalidade dos casos será seme- Kant denunciava as paixões como “cancros da razão
lhante aos que examinei, não é lógica. Dizer que não pura”. Comte falava dos três estádios do pensamento:
é lógica é afirmar que o enunciado sobre todos não o mais primitivo, habitado por mágicos e sacerdotes e
estava contido no enunciado sobre alguns (p. 127). representado pela imaginação, enquanto o último era

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constituído de cientistas, sábios o bastante para amor- únicos testes possíveis são aqueles que, eventualmen-
daçar a imaginação. Entre os dois, a fase do pensa- te, podem demonstrar a falsidade de seus enunciados.
mento metafísico. Freud caminha na mesma procissão Não se quer dizer que uma teoria só pode ser consi-
e saúda o pensamento científico como o que, defini- derada científica se for provada falsa. Ao contrário: se
tivamente, abandonou as fantasias e se ajustou à rea- uma teoria não puder ser provada falsa, eventualmen-
lidade. Enquanto isso, no marxismo, a ciência devo- te, isso significa que ela não pode ser corrigida pela ex-
ra, antropofagicamente, sua própria mãe, a ideologia. periência. Tal critério é decepcionante. Na realidade,
Entretanto, eles estavam errados. As teorias nas- o que queremos é a verdade. E é justamente isso que
cem com os sonhos, as fantasias, em meio à visão nos é negado. Apenas podemos chegar a um talvez.
dos místicos, ao prazer de charutos, ao lazer de ca- A testabilidade, portanto, pode mostrar que uma
minhadas, ao amor intelectual pelos objetos. As pes- teoria é falsa ou que talvez seja verdadeira. Para fins
soas acham que na ciência as idéias se impõem pelo práticos, entretanto, o talvez é satisfatório.
peso das evidências. Errado. No início, o cientista
Concluindo este item, podemos dizer que a cre-
que pela primeira vez contempla uma nova verdade
dencial de qualquer declaração, para que ela tenha
se vê numa aterradora solidão. O inovador está só.
entrada no submundo da ciência, é a sua falsifica-
E contra a sua visão se levanta o peso de centenas,
bilidade, porque não há métodos que nos permitam
por vezes milhares de anos. Incontáveis experiências
concluir acerca de sua verdade de forma definitiva.
bem-sucedidas.
Podemos ter certeza quando estamos errados, mas
A ciência é uma entre muitas outras atividades nunca podemos ter certeza de estarmos certos.
com que se ocupam as pessoas comuns. Assim sendo,
Diante de tudo isso, concluímos que o cientista
também apresenta características constantes no senso
não é o dono da verdade.
comum, como é o caso do dogmatismo. A ciência é
dogmática. Novas idéias são impostas a contragosto.
Geralmente, a Igreja é descrita como a vilã em opo- Verdade e bondade
sição ao “mocinho”. Todavia, contra Galileu falava Este item, segundo a minha opinião, é um dos
a ciência da época, acidentalmente incorporada na mais confusos, pois Rubem Alves, após demonstrar
Igreja. A sociologia das instituições científicas, hoje, toda uma concepção popperiana de ciência, critica
continua a mesma. E que critério invocam os cien- aquilo que explicou no livro todo, ou seja, tudo aqui-
tistas ortodoxos para rejeitar Galileu? O mesmo que lo que o leitor tinha como definido, segundo Rubem
ainda hoje se invoca: o consenso, o acordo. Quan- Alves, está indefinido.
do todos concordam, é porque existe uniformidade
quanto à interpretação das evidências. Declarações não-falsificáveis não podem perten-
cer à ciência. Isso é certo. Para contrariar esse cri-
E como os cientistas chegam às descobertas? No tério popperiano, e admito não conhecer as razões
momento que uma idéia nova é gerada, o cientista que levaram Alves a isso, o mesmo adota o discurso
conta com apenas duas coisas para sustentá-la: pri- kuhniano.
meiro, o amor com que ele a concebeu; segundo,
a promessa que lhe faz a nova visão, de abrir novos Thomas Kuhn alega que o critério de falsificabi-
campos. Não existe um método para a descoberta de lidade não passa de um mito que não encontra cor-
uma teoria, mas como no discurso científico só en- roboração alguma na história. Ao contrário, é cons-
tram proposições sobre as quais se pode tomar uma tantemente por ela refutado. Diz ele: “Nenhum pro-
decisão quanto a serem verdadeiras ou falsas, essas cesso já revelado pelo estudo da história do desen-
teorias podem ser metodicamente testadas. volvimento científico se parece, nem de longe, com
o estereótipo da falsificação pela comparação direta
É somente o teste das declarações que irá tornar com a natureza”. (p. 196)
possível a decisão de serem elas verdadeiras ou fal-
sas. Se houver uma declaração qualquer que não Nem pudera. A história da ciência mostra que a
possa ser testada, essa mesma declaração estará fora mesma já esteve fundada nos mais diversos critérios:
do jogo em que é fundamental poder dizer “falso”, o mitológico, o racionalista, o empirista, o positivis-
“verdadeiro”. ta e o positivista lógico. Popper propõe o critério da
falsificabilidade como critério demarcador para a ci-
“Falso” e “verdadeiro”, porém, que jamais podem ência naquele momento. Creio, ainda, que, em face
ser afirmados com absoluto grau de certeza. Não há do seu espírito crítico, Popper ficaria agraciado caso
verificabilidade de teorias, e sim a testabilidade delas. propusessem um critério demarcador melhor do que
Uma teoria somente pode ser testada, sendo que os o seu. Kuhn está totalmente equivocado.

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Em vez de tentar entender a ciência a partir de mente, que se encontra diante de algo muito impor-
critérios lógicos ou metodológicos para seu discur- tante e começaria a levantar dúvidas quanto à pro-
so, Kuhn faz uma sugestão muito simples: examinar a priedade da teoria. Parece, entretanto, que não é isso
história e deixar que ela nos conte o que é ciência, tal que acontece. Tal fato leva Kuhn a duvidar de que “os
como ela se dá efetivamente, e compreender, a partir cientistas rejeitem paradigmas quando confrontados
do comportamento dos cientistas, os mecanismos pe- com anomalias ou contraprovas”. (p. 200)
los quais suas decisões são tomadas. Kuhn está correto. Entretanto Popper jamais negou
Recordemos a posição de Popper: que os cientistas estavam interessados em conservar
— Como as teorias são construídas? os paradigmas aos quais estão acostumados. Popper
chama esse paradigma de tradição. A tradição é in-
Não há método para isso.
dispensável para o conhecimento.6
— Quais razões fazem com que uma teoria seja
Portanto Kuhn está equivocado em sua crítica ao
aceita?
critério de falsificabilidade de Popper, e mais ainda
Seu poder para resolver problemas e fazer predi- Rubem Alves, que viu em Kuhn uma forma de descre-
ções. Muito embora os testes todos não possam ga- dibilizar a ciência a fim de conceder força aos seus
rantir a veracidade de uma teoria, podemos dizer que devaneios poéticos.
cada novo sucesso a corrobora.
Farei, agora, uma revisão do que vimos. Come-
— Quando é que uma teoria é abandonada? çamos indicando que as relações entre a ciência e
Quando aparecem fatos que contrariam suas pre- o senso comum são muito estreitas, mais íntimas do
dições e não podem ser compreendidos com o auxí- que comumente se admite. No transcurso de nossas
lio de seu instrumento conceptual. Tais fatos provam reflexões, tentamos mostrar como a ciência procurou
que ela é falsa. Isso significa que uma nova teoria estabelecer métodos que garantissem para seu dis-
deve ser construída. curso uma credibilidade que falta ao senso comum.
Vejamos, agora, a posição de Kuhn. Não há méto- O senso comum contém muitas coisas embaraçosas:
dos para a construção de teorias. Na verdade, Kuhn superstições, crendices, religião, preconceitos, emo-
não começa com teorias, mas, antes, com aquilo a ções e todas aquelas turbulências que perturbam os
que ele dá o nome de paradigmas, que são visões de amantes dos ares calmos da razão pura. Ao caminhar,
mundo mais abrangentes que teorias. entretanto, vimos que o programa proposto pela ci-
Uma vez constituído um paradigma, instaura-se o ência era de realização problemática. A indução era
que Kuhn denomina “ciência normal”. Ciência nor- um sonho da imaginação e a verificação, uma pre-
mal são as pesquisas baseadas, firmemente, em uma tensão impossível. A falsificabilidade, a despeito do
ou mais conquistas passadas da ciência, conquistas que Rubem Alves propôs, continua, ainda, a ser uma
que certa comunidade científica particular reconhe- maneira racional de encarar-se a ciência.
ce, por certo período de tempo, como oferecendo as
bases para sua prática posterior. Para Kuhn, o cientis- Conclusão
ta está mais interessado na preservação do paradigma
que em sua falsificação. Ele diz: Rubem Alves é um autor que merece nossa apre-
ciação, pois ele se empenhou em discutir assuntos
Normalmente, os cientistas não têm por objetivo in- e temas muito complexos, sejam eles das áreas de
ventar novas teorias e são, freqüentemente, intolerantes filosofia da religião, teologia ou filosofia da ciên-
para com as inventadas por outros. Ao contrário, a pes- cia. Entretanto, deixa a desejar em vários aspectos.
quisa científica normal tem por objetivo a articulação Como o próprio autor confessa em suas obras, sua
dos fenômenos e teorias que o paradigma proporciona. abordagem não é academicista, o que dificulta a
A ciência normal não busca novidades de fato ou de te- compreensão dos seus pontos de vista. Ele está fa-
oria e, quando bem-sucedida, não encontra nenhuma.
lando de um determinado assunto, no meio de sua
A despeito dos cuidadosos arranjos para que nada explanação passa a tratar de outro, retornando ao
de novo apareça, de vez em quando surgem fatos primeiro depois.
inesperados que não podem ser processados com o Alves prega uma teopoética, e pode até ser que
auxílio das receitas teóricas à disposição da comuni- teologia combine com poema e tudo o mais, mas
dade científica: eventos que não deveriam ter acon- poesia e filosofia da ciência jamais combinarão. Isso
tecido. O que o cientista faz quando se defronta com leva o autor a descrédito e talvez seja por isso que
uma dessas anomalias? Bem, se ele levasse a sério seu livro não seja adotado nos cursos de filosofia da
o critério de falsificabilidade, perceberia, imediata- ciência. O teólogo Afonso M. L. Soares, em seu livro

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Interfaces da revelação, aponta o real objetivo de Ru- permitiu à humanidade chegar ao desenvolvimento
bem Alves ao escrever sobre esse assunto: em que ela está hoje. Não podemos retroagir a um
mundo pré-científico, em que o ser humano viva sem
Na verdade, a crítica de Alves à ciência diz respeito, os recursos tecnológicos que conquistou ao longo da
sobretudo, ao cientificismo, isto é, à tendência que vê
história. Tal mundo só tem existência na cabeça cria-
nas ciências exatas e experimentais a única base pos-
sível de uma filosofia humana. Isso não quer dizer que
tiva dos poetas.
haja incompatibilidade entre discurso científico e me-
tafísico, como, tantas vezes, dão a entender os textos Bibliografia
de Alves.7
ALVES, Rubem. Filosofia da ciência: introdução ao jogo
Alves, portanto, elaborou seu livro com o propósi- e suas regras. 9. ed. São Paulo, Loyola, 2005.
to de levar a ciência ao descrédito e implantar, assim,
POPPER, Karl R. Conjecturas e refutações. 2. ed. Brasí-
o irracionalismo. O mundo não vive de sonetos, de
lia, Editora Universidade de Brasília, 1982.
divagações rimadas, de cheiros, sabores etc. A huma-
nidade sobrevive, hoje, devido à ciência. Isso é de SOARES, Afonso M. L. Interfaces da revelação: pressu-
fácil constatação. Suprima toda a tecnologia existen- postos para uma teologia do sincretismo reli-
te no mundo, hoje, e veja o colapso em que entrará gioso. São Paulo, Paulinas, 2003.
a humanidade. Por quê? Porque foi a tecnologia que

Notas
*
Aluno de Teologia da PUC-RJ. Autor de artigos e resenhas publicadas nas revistas Inclusividade, do Centro
de Estudos Anglicanos; Ciberteologia, de Paulinas Editora; e Correlatio, da Associação Paul Tillich do
Brasil.
1
Rubem Alves é, reconhecidamente, um dos precursores da teologia da libertação no Brasil. De raízes
protestantes, exerceu, a partir da década de 1980, uma evidente influência nos meios acadêmicos católicos
de linha mais progressista (SOARES, Afonso M. L. Interfaces da revelação. p. 128).
2
Todas as citações feitas neste artigo foram extraídas do livro de Rubem Alves Filosofia da ciência: introdução
ao jogo e a suas regras, 9. ed., São Paulo, Loyola, 2005. A fim de tornar o texto menos volumoso, colocarei
somente as páginas referentes às citações no próprio corpo do texto.
3
Rubem Alves desenvolve de forma deficiente esta parte do livro. O problema é gerado pela mistura de
teoria do conhecimento e teoria da ciência.
4
Na tradução brasileira de A lógica da pesquisa científica consta assim: “As hipóteses são redes: só quem
as lança colhe alguma coisa” (p. 22). Creio que a tradução de Rubem Alves esteja mais correta, pois na
própria Lógica, traduzida para a nossa língua (p. 61), Popper diz que “as teorias são redes, lançadas para
capturar aquilo que denominamos mundo”.
5
COMTE. Apud ALVES, R. Op. cit. p. 136.
6
Ver: POPPER, K. R. Conjecturas e refutações. pp. 147-160.
7
SOARES, Afonso M. L. Interfaces da revelação. p. 133.

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