Você está na página 1de 7

ENTRE HERÓIS E MONSTROS: UM DEBATE SOBRE A ORGANIZAÇÃO ESPAÇO-

SOCIAL EM BEOWULF
Nathalia Agostinho Xavier (PEM-UFRJ)

Introdução
O poema Beowulf narra a trajetória de um herói que se dispõe a derrotar Grendel,
monstro cuja carnificina interrompe a vida social da elite no reino dos dinamarqueses.
Sendo um dos primeiros manuscritos em old english de que temos notícia, foi comumente
retomado em trabalhos sobre o medievo nórdico e/ou britânico.
Tendo em consideração as especificidades de uma narrativa de gênero literário,
acreditamos que este documento possa ser, de alguma forma, representativo de valores
partilhados pela nobreza no período de sua composição. Beowulf interessa,
principalmente, por ser ambientado em um reino fictício marcado por relações
hierárquicas aristocráticas e de lealdade entre guerreiros, bem como por apresentar
elementos da religiosidade em cristianização.
Com enfoque particular na caracterização dos cenários em relação às personagens,
considerando os lugares ocupados pelos agentes no documento, optamos por abordar a
obra por meio da perspectiva dos spacial studies. Cabe-nos, portanto, apresentar e
comparar as referências ao espaço, isso é, do cenário, como ponto de partida para a
análise. A priori, tanto Heorot quanto os pântanos e cavernas que abrigam os monstros
exercem uma função no poema e, consequentemente, são lentes usadas para o estudo das
posições sociais e das relações políticas que inspiraram a construção da história, sobre as
quais nos debruçamos nesta comunicação. Vemo-nas como recursos narrativos que
descrevem a sacralidade do local de reunião e descanso da corte, junto a um monarca
benevolente, em contraposição ao refúgio das criaturas que subverteriam a ordem
política, cultural e, sobretudo, moral de uma sociedade. Em suma, propomos levantar, em
sua leitura, uma associação direta entre texto e contexto.

A construção da espacialidade
Tendo com objetivo analisar as caracterizações espaciais no documento, e
compreendendo o que nos informam as associações entre personagens e cenário acerca
da sociedade que o produz, partimos das contribuições dos spatial studies.1 Compostos
por variados campos disciplinares e opções teóricas, estas últimas são relevantes como
premissa, uma vez que conceituamos espaço como constructo que não independe da
materialidade, mas também não se pauta apenas pela definição de fronteiras artificiais ou
naturais.2

1 Nem se limita ao estudo de comunidades herméticas e acabadas, ou mesmo de Estados. Isto é, de trabalhos

que após o spatial turn, voltaram-se para espaço como objeto analisado como constructo social. Sobre tal
vertente e seus colaboradores, ver: SCHORER, M. Entrevista: Space-studies – Spatial Turn. Entrevistadores:
A. A. Bragança e D. G. Silva. Brathair, v. 12, n. 1, p. 193-201, 2012.
2 Trata-se de uma continuidade das críticas já elaboradas por estudiosos de diversas vertentes à rigidez da

Geografia Humana do século XIX. A crise do determinismo geográfico é comentada por Raffestin em sua
obra basilar acerca do desenvolvimento da Geografia Política na Europa e, em geral, o aspecto
unidimensional e descritivo destes estudos foi, consequentemente, apontado pelo crescimento da Escola
Francesa e pela influência do materialismo histórico. Cf. QUIEROZ, T. A. N. Espaço geográfico, território
usado e lugar: ensaio sobre o pensamento de Milton Santos. Para Onde?, v. 2, n. 8, p. 154-161, 2014.;
RAFFESTIN, C. Por uma Geografia do Poder. São Paulo: Ática, 1993.
335
Observamos espaço como objeto particular; como local geográfica e socialmente
marcado, hierarquicamente organizado, e que não pode ser restrito a um palco sobre o
qual os agentes se movem. A rigor, é flexível, abrangente, e manejado discursivamente em
meio a disputas. Não pode ser compreendido como essência e apenas pode ser observado
por meio da ação humana que o erige, qualifica, aparelha, cria normativas de
acesso/restrição, formas de segregação ou identidades que lhe pareçam inerentes.
Neste sentido, avaliamos a significação e a descrição dos cenários como escolhas e
como caracterização de tipo espacial, as quais deixam entrever interpretações das
estruturas políticas que servem de inspiração ao poema. Beowulf é como qualquer fonte
primária: uma obra com objetivos e públicos pretendidos próprios e que, portanto, antevê
uma sociedade e formula uma visão de mundo. Neste caminho, constrói a espacialidade
pelo posicionamento e interação entre as personagens. E para abordá-lo, apropriamo-nos
da teoria de Pierre Bourdieu acerca do espaço social, conceituando-o como um “conjunto
de posições distintas e coexistentes, externas umas de outras, definidas em ralação umas
as outras, por sua exterioridade mútua e por relações de proximidade, de vizinhança ou
de alojamento e também por relações de ordem (...).”3
A partir das ferramentas teóricas supracitadas, resta-nos investigar os dispositivos
de distinção que a lenda heroica naturaliza, ou seja, a reiteração de um habitus.4 Isto
implica em considerar que as práticas simbólicas apresentadas demarcam as disputas por
classificação. Por esta via, pensamos em Beowulf não apenas como produto de uma
estrutura, mas também como elemento de sua construção; fruto de uma perspectiva
prévia que se entrelaça ao enredo e se desenvolve pela lógica própria de uma saga fictícia.

Entre heróis e monstros: uma proposta de leitura para Beowulf


Lido como indicativo da construção de uma raça ou nação ou como representativo
do ambiente cultura pós-conversão ao cristianismo,5 o poema foi um dos documentos
mais pesquisados para o medievo britânico. Chama-nos atenção pela forma como foi
usado, tangencialmente, para caracterizar realeza anglo-saxônica6 e como, de fato, volta-
se para a exaltação de um tipo de monarquia e de nobreza cortesã.7
Com efeito, ainda que pareçam ser o fio condutor da narrativa, as lutas travadas
contra os monstros são conflitos que destacam o que é verdadeiramente central na obra:
a construção de um perfil de herói. As batalhas não se resumem a um conjunto de escolhas

3 BOURDIEU, Pierre. Razones prácticas sobre la teoria de la acción. Barcelona: Anagrana, 1997. p. 16.
(Tradução nossa).
4 Junto aos demais conceitos sobre as disputas simbólicas em campos, habitus pode ser resumido, na leitura

da obra de Bourdieu, como conjunto de “princípios geradores de práticas distintivas e distintas”. Cf. Ibidem.
p. 20. (Tradução nossa).
5 Ao tratar de uma crítica à produção nacionalista que firmou datações rígidas ao documento, Liuzza afirma

que tal corrente teria buscado no poema referências ao “comportamento inglês”, anacronicamente
considerado, frente às invasões nórdicas. E visto as claras referências a um monoteísmo de tipo cristão, o
documento é frequentemente datado como pertencente aos séculos VII-VIII. Sobre os debates acerca da
datação, ver: LIUZZA, R. M. On the Dating of Beowulf. New York: Baker, 1995. p. 281-302.
6 CAMPBELL, J. Bede I. In: ______. Essays in Anglo-Saxon History. London: The Hambledon Press, 1986. p.

14; YORKE, B. Kings and Kingdoms of early Anglo-Saxon England. London: Taylor and Francis e-library,
2003. p. 17.
7 Fugindo de quaisquer anacronismos que o termo “cortesã” pode suscitar, apresentamos, desde já, este

como forma de descrição da nobreza que circunda o palácio real, manifestando-se em banquetes e
recebendo as benesses dos reis “doadores de anéis”.
336
estilísticas, de gênero, ou mesmo aspectos usados para entretenimento, outrossim,
aparecem como embasamento daquilo que é verossímil ou identificável para o público.
Assim sendo, sem necessariamente esvaziar a forma, atentamos para o conteúdo e para o
que ele relata acerca dos protocolos e códigos morais que confeririam valor à elite, pois é
neste meio nascem os guerreiros e apresenta-se o protagonista.
É na constância de indícios valorativos acerca da vida na corte que encontramos
fonte rica para o estudo das relações de poder dos reinos britânicos, independente da
dificuldade de associação direta entre o poema e um contexto específico.
Metodologicamente, optamos por creditar aos recursos de oposição e adjetivação entre
agentes/condutas e os locais onde estes atuam um propósito de distinção, vendo entre as
linhas da narrativa épica uma apresentação de um espaço social cujos poder, honra e
virtude, estão restritos a poucos, mas são exaltados universalmente. 8
Sabemos que qualquer debate acerca da efetividade deste discurso, ou mesmo de
seus propósitos, conscientes ou não, depende de uma verificação de seu público e, todavia,
há uma quase insuperável dificuldade em observar sua recepção na época, visto a escassez
de documentos para o período e ausência de manuscritos pares que demonstrem sua
circulação.9 Escusamo-nos, portanto, de oferecer afirmativas acerca do curso ou sucesso
da história, porém, temos como premissa teórica de que a produção do documento per se
é indicativa de uma propensa recepção, sobretudo se considerarmos a oralidade que o
compõe.10 Lemo-lo, deste modo, por meio suas prováveis intenções, pela perspectiva
acerca das práticas sociais.
Vista por este prisma, a saber, o de que o delineamento de personagens e cenários
a partir do que informam sobre quaisquer organizações políticas, observamos o poema
como dividido, grosso modo, em dois momentos: o período anterior e posterior ao
reinado de Beowulf. Ou seja, suas batalhas no reino dos dinamarqueses da lança, e a seu
último confronto, já como rei dos geats.
O conflito inicia-se quando o âmbito palaciano em que se reúnem os homens do rei
Hrothgar é atacado pelo monstro Grendel. Em meio à trama, os versos de Beowulf parecem
se amparar em valores e práticas identificados e identificáveis como positivos, bem como
em uma ideia de desordem proporcionada pela invasão de um local cuja deferência
deveria ser intransponível.
Heorot, salão de festas dos dinamarqueses, é a representação de um espaço social 11
e, consequentemente, de um habitus. É permeado por um conjunto de normas e de

8 Em sua análise do documento, Ary Gonzalez Galvão, propõe Beowulf pode ser lido de duas maneiras: a
partir das ideias de uma “raça” ou “nação” acerca de si mesma, ou como defesa de uma universalidade das
vicissitudes humanas. Por meio de nossa análise, não podemos deixar de notar a tendência universalizante
da obra. Cf. GALVÃO, A. G. Ideais Nacionais e Universais em Beowulf. In: BEOWULF. São Paulo: Hucitec, 1992.
p. 13.
9 Existiu apenas um manuscrito, que remonta ao século X, pertencente ao Cottonian Collection do Museu

Bitânico, que se não houvesse sido copiado por um pesquisador no século XVIII teria sido perdido em um
incêndio. Cf. Ibidem. p. 9.
10 A métrica do texto original utiliza aliterações e possui uma sonoridade em rimas que é levada em

consideração, inclusive, pelos tradutores na hora de transpor para outras línguas, com o intuito de
demonstrar e preservar sua oralidade.
11 Visto que observamos em sua descrição, as lutas simbólicas por classificação, por posicionamento. Como

antes ressaltado, partimos das contribuições de Pierre Bourdieu para analisar os valores defendidos no
texto, relacionados à nobreza, o que vai de encontro à afirmação do sociólogo acerca do conceito: “o espaço
social é, com efeito, a realidade primeira e última, visto que segue ordenando as representações que os
agentes sociais possam ter dele.” Cf. BOURDIEU, P. Op. Cit., p. 25. (Tradução nossa).
337
características distintivas, dentre elas, a hospitalidade, a generosidade e a coragem. Para
garantir o reconhecimento de tais características, o texto remonta, concomitantemente, à
mitologia nórdica12 e a referências cristãs.13 Isso parece pouco ter contribuído para a
difícil e não consensual datação do documento,14 mas é ponto que indica os argumentos
de universalização da história. Bem e mal, assim como ordem e caos, são exibidos por
meio de uma roupagem que se apresenta como compartilhada, a despeito das diferenças
sociais, econômicas ou mesmo religiosas do medievo e do fosso que separava nobres e
camponeses. Dentre estes argumentos, a referência bíblica que explicar a presença de
Grendel no mundo como um descendente de Caim, sublinha como a história se baseia em
uma já conhecida linha cronológica que submeteria a todos e tornar-se-ia uma referência
de mundo, para além da ficção.
No que tange à própria divisão entre dois lados, valorados negativa e
positivamente, a criatura e o salão de festas são apresentados sempre em oposição um ao
outro. Se tivéssemos que indicar um único recurso a ser sublinhado no texto, certamente
seria a antítese. Ambos definem-se mutuamente.

Então seu coração ansiou por construir para si um Palácio de festas, o


mais imponente de todos jamais vistos pelos homens, um palácio
condigno de sua fama (...). E assim foi feita a sua vontade, e com destreza,
terminado, espaçoso e potentoso – o mais famoso de todos os palácios.
Heorot ele o batizou (...). Não esqueceu também de dar anéis e oferecer
riquezas – fartura nas festas. v. 85-100.15

Assim que Heorot e sua construção são citados, Grendel aparece na história, no
mesmo “raio” que o palácio, mas em situação oposta:

Mas o monstro, que emboscado nas sombras, estava poderoso demônio,


sofria malignamente quando a folia, a vozeria, a algazarra e a alegria em

12 Sobretudo pela criação de uma genealogia para os dinamarqueses, originada em Scyld Scefing, que lembra

a associação entre os reinos anglo-saxônicos e sua fundação por Hengist e Horsa, ancestrais de cunho
mitológico reconhecidos nos textos de Beda e Nennius. John Hill, por sua vez, defende a ideia de que o autor
de Beowulf teria “reformado” lendas e não as repetido. Há, entretanto, uma característica
predominantemente pagã para o poema, segundo Ary Galvão. Cf. GALVÃO, A. G. Op. Cit., p. 25; HILL, J. The
Functions of History and Legendary Matterin Beowulf. Disponível em:
<https://www.academia.edu/9969155/Beowulf_and_Germanic_Legend>. Acesso em: 15 dez. 2017. p. 5.
13 Há constantes referências a uma deidade única que submete a todos e concede a graça aos reis e a vitória

aos heróis, além da associação entre Grendel e Caim. Não nos restam dúvidas de que o(s) autor(es) de
Beowulf eram conhecedores do cristianismo. Todavia, não nos debruçamos sobre a perspectiva, tão comum
entre os estudiosos, de busca por uma predominância cristã ou pagã no manuscrito, visto que tal dicotomia
cultural não se aplica, a nosso ver, para o período. Assim sendo, o próprio sincretismo do documento – e na
falta de uma palavra melhor nos desculpamos – basta para compreendermos este como um texto que
buscaria ampla aceitação.
14 Segundo Roy Liuzza, a dificuldade de definir rigidamente uma datação para o documento vem do fato de

que não há referências a períodos específicos e afirma que: “no caso de Beowulf a data é por si só um ato de
interpretação”. Cf. LIUZZA, R. M. Op. Cit., p. 295. O tradutor e comentarista da versão que aqui utilizamos,
Ary Gonzales Galvão, defende que o poema teria sido escrito por volta de 750, na Northumbria. Cf.
BEOWULF, Op. Cit., p. 9.
15 Ibidem. p. 34.

338
Heorot dia a dia ouvia. (...) E assim os seres e todas aas tribos viveram por
muito tempo, alegres, felizes e abençoadas até que o demônio inimigo
seus crimes perpetrasse. v. 107-124.16

A constante oposição entre luz/escuridão, festa/solidão, banquete/podridão


realizam, assim, o duplo objetivo de expor a associação entre heróis e monstros com
ambientes diametralmente fixados e exaltar a comunhão em tono da figura real. Neste
sentido, o salão de festas representa um espaço de sociabilidade erigido como símbolo
dos valores que unem e guiam a nobreza e justificam determinada organização política.
Ficam claras as expectativas criadas sobre a monarquia. Por isso, observamos na obra a
divisão supracitada para história, pré e pós reinado de Beowulf, uma vez que tal
personagem se desenvolve indo de um vínculo com os monarcas até uma posição que em
ocupa, ele mesmo, o trono, sempre guiado pelos mesmos paradigmas.
O que define o herói na narrativa é sua capacidade de ser excepcional entre pares
e liderar respeitando normas de convivência claramente delineadas no texto, de acordo
com os valores e prestígios encontrados nessas relações. Deste modo, defendemos uma
perspectiva que não busca somente o que pode ser apurado material ou historicamente
no documento, mas que visa a observar a função que a descrição do herói, ou a utilização
de mitos, tem na formação de arquétipos desejáveis.17 Doador de dádivas, criador de um
consenso, defensor da lealdade e provedor de uma ação militar: esses pontos marcam a
construção de um habitus que sustenta a realeza e a nobreza que a circunda, compõe e
legitima.
Igualmente, quando já monarca e em seu último confronto com um monstro que
ataca seus domínios, Beowulf se vale destes dispositivos e padrões comportamentais para
atingir vitória, pois é auxiliado por um de seus companheiros, o guerreiro Wyglaf, que
afirma:

Bem me lembro quando bebíamos mulso e hidromel nos prândios nos


salões, e quando em grupos de guerreiros – todos em obediência ao nosso
senhor generoso que nos dava armas, espadas e elmos para que se algum
dia precisasse de nossa presença nos embates da batalha; (...) vamos

16 BEOWULF. Op. Cit., p. 35.


17 A crítica a essa perspectiva foi elaborada em uma famosa palestra de J. R. R. Tolkien em 1936, na qual o
filólogo defendia as características artísticas do texto e criticava aqueles que viam em Beowulf um conjunto
de imprecisões fantasiosas, em suas buscas por origens e referências historicamente posicionadas. Ainda
que concordemos em parte com Tolkien, acreditamos que Beowulf pode e deve ser lido como fonte
histórica, sem ater-se somente à sua forma métrica, beleza poética ou às suas idiossincrasias estilísticas. Há
um meio termo que nos permitiria uma abordagem histórica do documento, sem que fosse preciso buscar
nele dados rigidamente precisos. Tais esforços, geralmente, servem apenas para a criação de uma linha
cronológica, de tipo positivista, para o contexto anglo-saxônico. Neste ponto, aproveitamos o debate
levantado por Diego Klatau que contrapõe esta leitura de Tolkien à atenção de Borges aos detalhes de obra:
o segundo relacionaria o texto à determinada conjuntura, com vistas a inseri-lo no início de uma história da
literatura inglesa. Por esta via, aproximar-nos-íamos, certamente, da proposta de Borges, visto sua tentativa
em delimitar um contexto de produção, apontando para as virtudes encarnadas por Beowulf como virtudes
de cavaleiros medievais. Cf. KLAUTAU, D. Os dois olhos do dragão: uma análise de Beowulf a partir de
Tolkien e Borges. Ciberteologia. Revista de Teologia & Cultura, ano 7, n. 33, p. 49-68, 2011; TOLKIEN, J.
R. R. The Monsters and the Critics. In: DONOGHUE, D. (Ed.). Beowulf: A Verse Translation. New York: Norton
Critical Editions, 2002. p. 103-129.
339
ajudá-lo nessa luta de fúria e fogo; prefiro que a minha carne seja
devorada pelas chamas, junto ao meu senhor (...)” v. 2639-2656.18

Mais uma vez, as trocas nos salões, em contraposição ao isolamento e escuridão


em que se encontram as criaturas inimigas, desenham favoravelmente as relações entre
famílias, e rechaçam quaisquer intervenções e intervenções desse status quo. Herói e
monarca não são âmbitos separados na narrativa, mas representam um mesmo
constructo, elaborado a partir da inserção de um inimigo que subverte a ordem
estabelecida.

É, pois, com tristeza e sofrimento no coração que conto a qualquer um a


vergonha que Grendel me trouxe, cruelmente destruindo Heort. Meus
guerreiros definharam, meu palácio reluzente empobreceu; bravos
cavaleiros pelo destino foram arrastados para as entranhas malditas de
Grendel. v. 559-567. 19

Em linhas gerais, Hrothgar e Beowulf representam a responsabilidade na


manutenção da paz e da benesse. O texto trabalha com a dicotomia, com a constante
tensão entre centro e marginalidade que, ao fim, serve para demarcar o que não deve fazer
um monarca:

É um milagre como um Deus Todo-Poderoso dá aos homens dádivas


divinas (...) Então o orgulho aumenta e se inflama infesto –o guardião da
alma adormecido está. (...) numa ira avara não mais doa dádivas e anéis e
esquece as honras que o Rei da Glória lhe dera; inevitável é o fim;
envelhecido, o corpo enfraquece e lhe falha; outro então herda tudo e,
irresponsável, dissipa as riquezas; preciosidades e tesouros distribui em
feitos de mérito duvidoso. v. 1860-1984.20

Consequentemente, a interrupção do cotidiano nos reinos pela destruição causada


por monstros pode ser vista como forma de castigo divino21 e/ou como relembrança do
papel real frente o mundo. Trata-se do conceito de luck que, investido de símbolos
cristãos,22 refere-se ao acúmulo de vitórias que tanto garantem a sustentação de um
“doador de anéis” quanto conferem certa sacralidade à figura monárquica, representando
uma sociedade que associa as virtudes dos governantes à prosperidade dos súditos. 23 Por

18 BEOWULF. Op. Cit., p. 119.


19 BEOWULF. Op. Cit., p. 50.
20 Ibidem. p. 93-94.
21 Na obra percebemos constantes referências à possibilidade de que os palácios sejam atacados por algum

erro dos reis. Dentre outros, podemos citar os seguintes versos: “Beowulf logo soube do horror seu próprio
palácia havia sido devorado pelas chamas, suntuoso átrio, e o sólio soberano dos geats; sofrimento ceifou
seu coração generoso; pensou que tivesse suscitado a ira de Deus, o eterno Senhor: alguma falta cometida
no passado; e seu coração encheu-se de agourentos presságios.” v. 2374-2380. Cf. Ibidem. p. 110.
22 Neste ponto, Chaney elabora uma hipótese acerca dos paralelismos entre o paganismo nórdico e o

cristianismo, dentre outros, defendendo que houve nos reinos dos anglo-saxões um discurso de
transposição da luck real para a lógica cristã. Cf. CHANEY, W. A. Paganism to Chritianity in Anglo-Saxon
England. The Harvard Theological Review, v. 53, n. 3, p. 197-217, 1960. p. 207-212.
23 “Um bom rei é também um rei rico”. Cf. YORKE, B. Op. Cit., p. 17. (Tradução nossa).

340
esta via, a paz, a benesse e o combate às forças destrutivas dependem de uma regular
manutenção das relações entre nobres e de um equilíbrio garantido na renovação de
vínculos sociais. Tanto o palácio dos dinamarqueses, quanto o dos geats, quando sob
ataque, imaginam a defesa de normativas de convício e de práticas frente ao caos ou, em
suma, a defesa de determinado espaço social.

Considerações finais
A saga do herói Beowulf, de importância reconhecida entre os estudiosos do
período anglo-saxônico, foi observada por meio de variadas perspectivas, historiográficas
ou não. De nossa parte, abordando diretamente o conflito central de destruição de
palácios de convivência e trocas de uma elite, interessou-nos a caracterização destes
cenários em comparação com a descrição dos monstros em seus covis.
Com auxílio das contribuições dos estudiosos do espaço e da construção teórica de
Pierre Bourdieu sobre a movimentação dos agentes em um espaço social, notamos como
os recursos narrativos da obra, sobretudo de adjetivação e antítese, exercem função
discursiva; constroem e corroboram as relações de poder, legitimando determinada
organização sociopolítica, e exaltando as práticas distintivas do habitus da nobreza
guerreira.
Ao comparamos como Heorot e o palácio dos geats são descritos de forma
diametralmente oposta aos monstros, desenhando uma visão universalizada e
rigidamente dicotômica acerca do bem e do mal, da ordem e da desordem, que
percebemos como a obra não somente buscou descrever o funcionamento do cotidiano
monárquico, mas propor-lhes um conjunto de valores. Por meio de uma narrativa
fantasiosa, que se vale de diversificadas referências da época, a produção de Beowulf
corrobora com uma estrutura, protege condutas e valores e reforça as hierarquias
políticas. Considerando as diferentes lentes teóricas e metodologias que podem dispor as
variáveis, não podemos deixar de crer que há de se pensar em novas possibilidades para
a análise de um documento cuja forte atração sobre os estudiosos não foi suficiente para
esgotar a sua leitura.

341

Você também pode gostar