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3 As Mediações Da Paisagem LUCRECUIA FERRARA
3 As Mediações Da Paisagem LUCRECUIA FERRARA
As mediações da paisagem
bidos, se forem aproximados da matriz que mentos que a distinguem da natureza. Esse
lhes dá origem, a natureza. imperativo é claramente anunciado também
Nesse sentido, o conhecimento da paisa- por Simmel, em seu célebre estudo sobre a
gem parece decorrer da ontologia que, pelo natureza cultural do sentido de paisagem:
menos no ocidente, foi demarcado para a na-
“La nature, qui dans son être e son sens
tureza e a distinguiu do ambiente material, profond ignore tout de l´individualité, se
trouve remaniée par le regard humain – que
la divise et recompose ensuite des unités
perticulières – em ces individualités qu´on
A paisagem precisa baptise paysage.” (Simmel, 1988:233)
distinguir-se da nature-
Entretanto, se a exigência dessa distinção
za, mas também deixar
impõe considerar a diferença entre nature-
evidente aquele modo za e paisagem a fim de superar a projeção da
de ser que lhe permite totalidade da primeira sobre a construção da
singularizar-se, históri- segunda, é imprescindível, também, superar
ca e culturalmente a paisagem como hábito de ver, a fim de ser
possível observar a distinção entre paisagens
que, em se fazendo, se distinguem e, por-
tanto, apresentam características próprias a
social e culturalmente construído. Para essa
considerar.
ontologia, concorreu a filosofia grega dos
pré-socráticos a Aristóteles quando opõem a Nesse sentido, a percepção da paisagem
ordem da natureza entendida como cosmos como síntese reprodutora da completude da
ao acaso da matéria que exige ser formaliza- natureza, é apenas aparente. Ao contrário, a
da para ser conhecida. pretensa indefinição de traços fenomênicos
No Século XVII, Espinosa propõe a dis- ou perceptivos que decorre daquela percep-
tinção entre a dinâmica natureza naturali- ção não aponta para a pobreza ou para a im-
zante, do seu reflexo estático e entendido propriedade da paisagem como questão de
como natureza naturalizada. Por similarida- investigação, mas salienta seu interesse, em-
de, essa distinção é constantemente retoma- bora não esconda as precipitações ou equí-
da e atua como base para a caracterização vocos que nos levam a relacionar paisagem
de todo determinismo na leitura ou inter- e natureza.
pretação de várias manifestações culturais. Entretanto, autores como Giulio Carlo
Bourdieu (2001:58-59) recupera a mesma Argan (História da Arte como História da
dicotomia, ao distinguir a atividade cientí- Cidade), George Simmel (La Tragédie de
fica que atua entre a opus operatum como La Culture), Bruno Zevi (Paesaggi e Città),
obra consumada, da opus operandi como Aldo Rossi (A Arquitetura da Cidade), Mil-
obra em se fazendo e sujeita às imprevisi- ton Santos (A Natureza do Espaço), Marc
bilidades do próprio objeto em estudo. Para Bloch (Apologie pour l´Histoire ou Métier
Boudieu, essa distinção surge como base d´Historien), Pierre George (L´Ère des Téch-
para a formulação do seu célebre conceito niques: Constructions ou Destructions), são
de habitus, entendido como parâmetro para unânimes em considerar a paisagem, na me-
definição e distinção da prática científica lhor consideração de Aristóteles, como for-
enquanto exercício aplicativo de um saber ma que decorre de uma materialidade natu-
instituído e instituinte da ciência. ral que permite torna evidente a relação que
Para desenvolver o estudo da paisagem se estabelece entre ambas e o modo como a
enquanto realidade instituinte, é indispen- primeira se congrega à segunda, ou seja, a
sável operar/produzir a evidência dos ele- paisagem existe através das suas formas que
de é essa que dispersa nas suas regiões, não que a riqueza de hoje pode trazer escondi-
pode dispensar obrigatórios espaços de con- da a degradação de amanhã? Que cidade é
centração que são os mesmos nas zonas de essa que espanta pela crueza e perigo do seu
elevada hierarquia econômico-social e na gigantismo e, ao mesmo tempo. agasalha a
periferia porque, nos dois casos, se desti- imigração que, distinta, é incessante e a tor-
nam ao consumo e ao entretenimento? Que na endereço e horizonte de vida e trabalho
cidade é essa que, como uma cibercidade para todos? Que cidade é essa onde a paisa-
conectada wireless, torna possível se tornar gem que a comunica, a esconde como espaço
pequena e suficiente em todos os seus pon- de vida feito de convergências e divergências,
tos, ao mesmo tempo em que se confronta mas sempre prontas a serem revistas e re-
e se redescobre em outras paisagens de ci- escritas? Que cidade é essa, onde a imagem
dades que lhe conferem dimensões globais? que a registra, pode esconder a paisagem que
Que cidade é essa de múltiplas centralidades nos poderia levar a redescobri-la? Será que é
próprio da paisagem registrar e esconder ao
e descentrada, histórica e geograficamen-
mesmo tempo ou é sua função comunicar,
te? Que cidade é essa onde convergências e ao mostrar a incompletude da cidade con-
divergências econômicas, sociais e culturais temporânea e global?
são múltiplas e polivalentes, e não escondem (artigo recebido fev.2012/ aprovado mai.2012)
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