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QUEIXA PRINCIPAL: 

“hematúria”

HISTÓRIA DA MOLÉSTIA ATUAL:


O quadro clínico teve início em Fevereiro de 2003, quando procurou
um cardiologista devido a fadiga e palpitações esporádicas, sendo
diagnosticada hipertensão arterial. A seguir evoluiu com quadro de
artralgias em cotovelos e joelhos, bilateral, em repouso, com piora
quando exposta ao frio.
Encaminhada ao nefrologista por apresentar hematúria microscópica
em exame de urina realizado durante a investigação da hipertensão
arterial pela cardiologia.

ANTECEDENTES:
- Hipertensão arterial sistêmica diagnosticada em 2003 – em uso
regular de atenolol 50mg/dia e clortalidona 12,5mg/dia;
- Submetida a miomectomia em 2002 sem intercorrências;
- sem relato de outras comorbidades, etilismo ou tabagismo;
- Pai falecido de causa desconhecida; Mãe viva e portadora de
hipertensão arterial sistêmica. Não há relato de nefropatia na família.

EXAME FÍSICO:

 Paciente lúcida e orientada no tempo e no espaço, corada, hidratada, anictérica,


acianótica, eupneica, perfusão capilar periférica satisfatória.

 Sinais vitais: PA: 160/90 mmHg, Pulso: 92 bpm; FR: 20 irpm: Tax.: 36,5 ºC.

 Aparelho cardiovascular: RCR em 2T, bulhas normofonéticas, sem sopros.


Ausência de turgência jugular patológica ou sopro de carótidas.

 Aparelho respiratório: inspeção e expansibilidade normais, MV universalmente


audível, sem ruídos adventícios.

 Abdome: plano, peristáltico, flácido, indolor, sem visceromegalias palpáveis.

 Extremidades: sem edemas, panturrilhas não empastadas, pulsos arteriais


periféricos sem alterações.
EXAMES COMPLEMENTARES (Hospital de origem):

 Tabela 01: Sangue (amostras venosas):

Exame Resultado Valores de referência

Hematócrito 44 40 – 54 %

Hemoglobina 14,6 13,0 – 18,0 g/dL

Leuco / Plaquetas 6400 / 296000 4000 – 11000/mm3

Sódio 137 135-145 mmol/L

Potássio 5,0 3,5-5,5 mmol/L

Cloro 99 98-107 mmol/L

Cálcio 12,2 8,5-10,2 mg/dL

Fósforo 3,8 2,5-4,5 mg/dL

PTH 11,3 7,0-72 pg/mL

Albumina 3,9 3,5-4,7 g/dL

Glicose 116 60-110 mg/dL

Uréia 85 16-40 mg/dL

Creatinina 2,0 0,6-1,2 mg/dL

Ácido úrico 10,9 2,5-7,4 mg/dL

Hepatograma Sem alterações --------------

PCR 1,29 < 0,5mg/dL

VHS 27 < 20mm

FAN negativo <1/20

Anti-DNA negativo Não-reagente

C3 140 90-180 mg/dL

C4 18 10-40 mg/dL

IgA 321 70-400 mg/dL

IgG 1120 700-1600 mg/dL

IgM 88 40-230 mg/dL

Eletroforese proteínas Sem alterações ----------------

TSH 17,96 0,6-4,2 μUi/mL

T4L 1,60 0,8-1,4 ng/dL

 Tabela 02: urina de 24h

Exame Resultado Valores de referência

Proteinúria 616 mg/24h Até 150mg/24h

Clearance de creatinina medido 43 mL/min < 90mL/min/1,73m2

Cálcio 169 mg Até 200mg/24h

Fósforo 714 mg Até 1200mg/24h

Urina (amostra):

EAS: pH 6.0, d 1011, Hb (3+/4+), PTN neg, Leucócitos 03 p/c,


Hemácias 15 p/c.
Urinocultura: negativa

Imunoeletroforese de proteínas urinárias: sem alteações

DISCUSSÃO:

Esta senhora de 56 anos foi atendida devido a hematúria


microscópica, na ocasião da primeira consulta, com doença renal
crônica (DRC) estágio III (clearance de creatinina 43ml/min) e
hipertensão arterial controlada com atenolol e hidroclorotiazida. Na
apresentação não tinha hipercalcemia, havia discreta proteinúria
(0,6g/dia) e todos os marcadores imunológicos e virais foram
normais ou negativos. Portanto, naquele momento, tratava-se de
uma glomerulonefrite com insuficiência renal associada, o que
traduzia gravidade. Não havia manifestações clínicas sugestivas de
quaisquer doenças sistêmicas como causa da nefropatia. Foi-lhe
sugerida a necessidade de uma biópsia renal para definição
diagnóstica, inicialmente recusada, pois tinha quadro estável e
assintomático, apesar da disfunção renal. Ficou então em observação
e foi medicada com lisinopril, sinvastatina, atenolol e tiazidico, além
de orientação dietética para DRC.

A paciente apresentava claramente uma glomerulopatia,


caracterizada pela presença de hematúria significativa e proteinúria
não-nefrótica, elementos essenciais, juntamente com dismorfismo
eritrocitário, para caracterização de comprometimento glomerular em
qualquer situação clinica. Havia um sinal de gravidade, que foi a
presença de comprometimento significativo (embora estável) da
função renal. As glomerulopatias primárias como lesão mínima, GESF
e membranosa, normalmente evoluem classicamente com síndrome
nefrótica, o que não foi observada nesta senhora (embora não seja
regra geral). Causas secundárias de glomerunefrite, tais como as
virais (hepatite C, B e HIV) e colagenoses (notadamente a nefrite
lúpica) foram afastadas pela negatividade dos exames e pela
evolução clinica da paciente, sempre estável naquele grau de
disfunção renal e leve proteinúria.

Naquele momento, a principal hipótese levantada foi Nefropatia da


IgA (Berger), embora tenha apresentado uma evolução atípica, com
insuficiência renal associada. Comumente esta glomerulopatia tem
evolução mais branda, com hematuria microscópica persistente e
períodos agudos de hematúria macroscópica, geralmente deflagrados
por infecção respiratória ou intestinal concomitantes à manifestação
renal. A nefropatia da IgA foi descrita por Berger e Hinglais em 1968,
é caracterizada pela deposição de IgA predominantemente no espaço
mesangial glomerular. Apenas alguns pacientes evoluem para
nefropatia terminal, tendo a maioria evolução benigna. Geralmente a
lesão é limitada aos rins, mas doenças sistêmicas como a púrpura de
Henoch-Schonlein, lupus, hepatites, dermatite herpetiforme,
espondilite e doença inflamatória intestinal, podem estar relacionadas
com a sua presença.

Alguns meses depois da primeira consulta ela apresentou


hipercalcemia progressiva (10,5mg% até 12,2mg%), sem sintomas
respiratórios ou outros que indicassem uma etiologia definida.
Embora o uso de tiazídico possa levar à hipercalcemia, principalmente
em estados de depleção crônica de volume, já estava em uso da
droga há pelo menos 2 anos e, após sua suspensão, a paciente
continuou hipercalcêmica, eliminando-se assim esta possibilidade. As
principais causas de hipercalcemia são as doenças malignas,
hiperparatireoidismo primário e doenças granulomatosas, incluindo a
sarcoidose. Não havia quaisquer evidências de hiperparatireoidismo e
o nível sérico baixo de PTHi (11,3pg/ml) eliminou esta hipótese.
Embora não houvesse sinais clínicos de malignidades, a presença de
neoplasia oculta ou inaparente foi lembrada, além de sarcoidose e
tuberculose extra-pulmonar, uma vez que não tinha alterações
respiratórias ou febre.

Após a observação de adenopatia hilar bilateral ao RX e


posteriormente em 2 exames tomográficos de alta resolução, um
deles com comprometimento intersticial pulmonar, a hipótese de
sarcoidose ficou fortalecida. Teve um PPD reator fraco, indicando que
não havia contato recente com tuberculose. A paciente recusou-se a
realizar a biópsia ganglionar mediastinal, mas aceitou a biópsia renal
que foi realizada sem intercorrências. A angiotensina covertase
(ECA), um importante marcador de sarcoidose, estava aumentada
(176 U/L – valor normal 35-90U/L). Embora ela possa aumentar em
outras doenças granulomatosas, como a tuberculose, está presente
em cerca de 75% dos casos de sarcoidose não tratados, tendo cerca
de 5% de resultados falso-positivos. Não está definido o seu valor
prognóstico. Diante da presença de hipercalcemia, adenopatia hilar,
comprometimento pulmonar, aumento da ECA, na ausência de
quaisquer evidências de outras doenças granulomatosas ou
neoplásicas, a hipótese de sarcoidose foi fortalecida, embora o
diagnóstico definitivo desta doença seja feito essencialmente por
exame histológico, com a presença tecidual de granulomas não
caseificados.

A biópsia renal revelou a presença de glomerulonefrite da IgA, com


comprometimento tubulointersticial significativo e alguns pontos de
calcificação no parênquima renal, entretanto não ficou caracterizada,
nesta amostr, a presença de granulomas de qualquer natureza.
O envolvimento renal na sarcoidose pode ser secundário, na maioria
das vezes, à hipercalcemia, mas a nefrite tubulointersticial
granulomatosa ou glomerulonefrite, principalmente a glomerulopatia
membranosa, também podem estar presentes. Apenas um caso foi
descrito, até o momento (Taylor JE, Ansell DI, NDT (1996) 11:355-
356), relatando a associação entre sarcoidose e nefropatia da IgA,
em uma paciente de 65 anos com hematúria, proteinuria,
insuficiência renal, esplenomegalia, anemia e hipercalcemia leve, com
excelente resposta ao uso de corticóide durante um período de 6
meses. Esta associação é rara e a relação entre sarcoidose e
nefropatia da IgA pode estar relacionada a anormalidades humorais e
celulares que caracteriza ambas as situações.

No caso em questão, o surgimento da hipercalcemia assintomática foi


o evento que deflagrou a investigação adicional, chegando-se ao
diagnóstico de sarcoidose. Possivelmente trata-se de mais um caso
de glomerulonefrite da IgA com possível associação com a
sarcoidose, entretanto não se pode confirmar esta associação com
absoluta precisão, uma vez que não está bem caracterizado o início
de cada uma das doenças presentes.

A paciente foi submetida a um curso de prednisona 1mg/Kg/dia


(60mg), com redução progressiva após a 8ª semana, até completar 6
meses. Teve evolução satisfatória, atualmente assintomática, com
pressão arterial controlada, clearance de creatinina atual de
60ml/min e proteinuria 0,2g/24h, sem quaisquer manifestações de
comprometimento pulmonar.

CONCLUSÃO:

Glomerulonefrite da IgA e Sarcoidose

 
Distribuição dos palpites diagnósticos:

Diagnóstico %
Secreção tumoral de peptídeo PTH – símile 13,53
Sarcoidose 54,59
Iatrogenia por tiazídico 14,98
Hiperparatireoidismo primário 8,70
Tuberculose 8,21

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