Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Rio de Janeiro
2012
2
INTRODUÇÃO
1
Os ingleses, entre os anos 1778-1779, liderados pelo capitão Cook, aportaram nas ilhas havaianas. Diversos
contatos estabelecidos entre os nativos e o oficial culminaram em um episódio dramático: a morte do capitão.
Sahlins deu sua interpretação para o fato. Segundo ele, o capitão Cook fora confundido com o deus Lono, da
3
mitologia dos nativos. Desenvolveu, dentre outro argumentos, a tese de que o Cook chegara às ilhas havaianas
durante o festival de Mahahiki, ocasião na qual se louva a chegada do deus Lono. Para Sahlins as ações do
capitão Cook, naquela época específica do ano, ratificaram a visão de que o oficial era de fato o deus Lono.
4
Corolário a este processo, a ordem cultural deve ser vista como uma síntese entre
passado e presente, estabilidade e mudança. Nas palavras de Sahlins (2004, p.372): “As
ordens culturais são sistemas-de-eventos, uma vez que se reproduzem por meio de um mundo
do qual elas mesmas não são produtoras”.
Um evento, conforme o demonstra Sahlins, não constitui apenas em um acontecimento
do fenômeno, mas aquilo que é dado com interpretação, e adquire significância histórica
apenas quando apropriado pelo esquema cultural. É algo complexo, diferente, com força,
forma e causas próprias, e a importância que estes atributos adquirem no contexto cultural.
Dialogando com tais contribuições, como pensar na abordagem social da
deficiência enquanto evento histórico, conformador de novos significados culturais às
práticas sociais?
Aqueles que se propuserem a analisar os debates travados sobre a deficiência, a partir
dos anos sessenta do século XX, perceberão que tais discussões foram permeadas por dois
conceitos sobre a questão, conhecidos como modelos clássicos da deficiência: o modelo
biomédico e o modelo social. Eles constituem expressão de interpretações sobre a deficiência,
e, sua incorporação, enquanto prática social, representa tratamentos diferenciados dispensados
às pessoas com deficiência (PCD), assim como na condução de políticas e programas afetas a
estas últimas.
Portanto, a questão será pensada a partir do resgate destes dois modelos. É intenção
fazer tais construções dialogando com as reflexões de Sahlins sobre evento e estrutura.
Para Sahlins (1987, 2004), todo evento se insere no domínio humano através dos
valores culturalmente estabelecidos. Nosso interesse, nosso investimento no passado não é
pura e simplesmente o desejo de compreender o que foi feito e pensado antes de nós: entre os
‘fatos’ e nós existe um contexto e um sistema que media o que entendemos como evento. Diz
Sahlins (1987, p.193): “A cultura é justamente a organização da situação atual em termos do
passado”. Na prática historiográfica, perturbações a um dado fluxo normativo são aquelas
comumente elevadas ao patamar de eventos.
5
De acordo com o contexto em que ocorrem, seres, objetos ou atos específicos são
totalizados. Tornam-se, assim, eventos capazes de afetar a ordem de um dado sistema.
Inversamente, de acordo com o contexto das relações de um dado sistema, categorias e
hierarquias são particularizadas em pessoas, lugares, objetos ou atos específicos.
Em torno deste entendimento, podemos pensar na abordagem da deficiência em uma
perspectiva social como um evento na medida em que representou uma guinada
revolucionária no tratamento da questão. Desde seu nascimento, esta abordagem vem
desafiando os saberes e poderes que têm constituído o outro deficiente como anormal,
patológico, inferior e incapaz. Tal modelo ofereceu argumentos que deslocaram as causas da
deficiência, interpretadas como limitações de um corpo com lesão, segundo modelo
biomédico, para as estruturas sociais.
Esta interpretação da deficiência promoveu impactos no sistema culturalmente
estabelecido e na estrutura social, no modo específico de se lidar com as deficiências e com as
PCD, cujas expressões objetivas podem ser observadas no desenho dos direitos, da legislação,
e políticas públicas fomentadas para este segmento nas últimas décadas.
Portanto, se o evento “É uma diferença e faz diferença”, o tratamento da deficiência,
numa perspectiva social, trouxe para a arena política uma dimensão central ignorada nas
maneiras de se lidar com a questão. Trata-se da construção social da deficiência: alguém é
deficiente somente em um contexto temporal, espacial e socialmente determinado.
dos Lesados Físicos Contra a Segregação (UPIAS), que lançou as bases, através de um dos
seus fundadores, Mike Oliver, para o que ficou conhecido como modelo social da deficiência.
Retomando as contribuições de Sahlins, podemos pensar na UPIAS como indivíduo
sócio-histórico, sujeitos com a possibilidade, não apenas de incorporar uma ordem sistêmica,
mas de transformar essa ordem através de atos-mediações que representam as disposições de
todo um grupo. Os atos dos indivíduos sócio-históricos são transformados em ícones de
conceitos que interagem com a estrutura social.
Uma das principais contribuições da construção teórica destes estudos foi colocar em
xeque o modelo dominante trazido pela modernidade e pela abordagem da biomedicina: o
modelo biomédico. Também conhecido como “modelo individual”, face à abordagem
individual dada à questão da deficiência (BARNES, BARTON, OLIVER, 2002).
A hegemonia do modelo biomédico no tratamento à questão da deficiência se
encontrava firmada no início do século XX. Fato diretamente imbricado à consolidação do
que Michel Foucault denominou de biopoder (1987, 1988, 2000): uma nova tecnologia do
poder, na qual este último passa a investir sobre os corpos já docilizados pelo poder
disciplinar.
A idéia de biopoder em Foucault veio a se juntar às suas reflexões sobre as práticas
disciplinares, ambas as técnicas, segundo o autor, de exercício de poder, particularmente a
partir do século XVIII e XIX. As disciplinas se voltavam para o indivíduo, seu corpo, sua
normalização e adestramento através das diversas instituições modernas que esse indivíduo
atravessava durante a sua vida (escola, quartéis, fábricas, prisão, etc.). Instituições que
docilizavam os corpos e os tornavam aptos à produção industrial vigente.
Se a disciplina agia sobre os indivíduos, o biopoder, segundo Foucault, agia sobre a
espécie, “no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte
dos processos biológicos” (FOUCAULT, 1988; p. 152). E sobre esse corpo-espécie, o
biopoder cuidava de processos como nascimentos e mortalidades, da saúde da população, de
sua longevidade, etc. O biopoder é a gestão da vida como um todo, técnicas de poder sobre o
biológico, central nas discussões políticas. Modificá-lo, transformá-lo, aperfeiçoá-lo eram
objetivos do biopoder, e, é claro, produzir conhecimento, saber sobre ele, para melhor
manejá-lo.
Assim como a disciplina foi necessária na docilização do corpo produtivo fabril, o
biopoder foi também muito importante para o desenvolvimento do capitalismo, ao controlar a
população e adequá-la aos processos econômicos.
7
Poder disciplinar e biopoder, no século XIX, passam a constituir uma unidade, por
meio da eclosão da sociedade normalizadora, cujos mecanismos de regulação e correção
produzem, avaliam e classificam as anomalias do corpo social, segundo argumentos
biológicos, ao mesmo tempo em que as controlam e eliminam: fazer viver e deixar morrer
constitui sua expressão (FOUCAULT, 2000)2.
Segundo Sahlins, a classificação é uma característica intrínseca da ação simbólica, que
consiste na apreensão de objetos ou fenômenos da realidade em termos dos conceitos culturais
que compõem uma estrutura ou um sistema, de maneira a torná-los eventos inteligíveis e
transmissíveis a outros indivíduos. Enquanto sistema classificatório, podemos pensar na
abordagem biomédica da deficiência como conceito caudatário do biopoder.
Decorrente desta apreensão do objeto, segundo Ana Pereira (2006), o modelo
biomédico olha para a deficiência na busca de um diagnóstico, e, ato contínuo de uma cura. O
foco é na “anormalidade” do corpo, e a forma como isto, por sua vez, causa uma
“deficiência”. A ênfase é assim colocada na tragédia pessoal, na vitimização e no fato de
haver algo de errado naquele corpo que precisa ser “regularizado” ou “normalizado”, através
da submissão à biomedicina. Centrando-se o olhar no corpo como fonte do problema, o
modelo biomédico desresponsabiliza a sociedade pela exclusão das PCD.
Todavia, como bem o demonstra sahlins, o mundo não é obrigado a se reproduzir tal
qual pensado por categorias tradicionais. No desenrolar dos acontecimentos, ao interpretar o
passado, os homens repensam suas categorias, submetendo-as a riscos empíricos, do
cotidiano. Remodela-se, nesta perspectiva, o sentido original das categorias culturais pela
introdução de novos significados, de novos símbolos, acarretando alterações na maneira de
pensar e agir da sociedade.
E são as categorias prescritas pelo modelo biomédico que os estudos sobre a
deficiência vêm colocar em causa.
2
[...] é o corpo da sociedade que se torna, no decorrer do século XIX, o novo princípio. É este corpo que será
preciso proteger, de um modo quase médico: em lugar dos rituais através dos quais se restaurava a integridade do
corpo do monarca, serão aplicadas receitas, terapêuticas como a eliminação dos doentes, o controle dos
contagiosos, a exclusão dos delinqüentes. A eliminação pelo suplício é, assim, substituída por métodos de
assepsia: a criminologia, a eugenia, a exclusão dos “degenerados” (FOUCAULT, 1982, p. 145).
8
O indivíduo é um ser social, mas nunca devemos esquecer que é um ser social
individual, com uma biografia que não é idêntica à de ninguém mais. Trata-se de
alguém a quem ‘é preciso prestar atenção’. Isso porque, [...] se existe um ‘mim’ que
incorpora a atitude de algum grupo em algum nível de generalidade, há também um
‘eu’ que preserva uma liberdade potencial de reagir ao ‘outro generalizado’
(SAHLINS, 2004, p.309).
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARNES, Colin; BARTON, Len; OLIVER, Mike. Disability studies today. Cambridge:
Polity Press, 2002.
DINIZ, Débora. Modelo social da deficiência: a crítica feminista. Série Anis 28, Brasília:
Letras Livres, jul., 2003.
___________. Os Anormais: curso no Collège de France. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
OMOTE, Sadao. Deficiência e não deficiência: recortes do mesmo tecido. Revista Brasileira
de Educação Especial, Marília, v.1, n.2, p.65-73, 1994.
ORTNER, Sherry B. Teoria na antropologia desde os anos 60. Revista Mana: estudos de
antropologia social, v.17, n.2, Rio de Janeiro, ago 2011.
SASSAKI, Romeu Kazumi. Inclusão - Construindo uma Sociedade para Todos. Rio de
Janeiro: WVA, 1997.
__________. Vida independente na era da sociedade inclusiva. São Paulo: RNR, 2004.