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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO


ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL
DEPARTAMENTO DE SERVIÇO SOCIAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL
DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL

NÁDIA XAVIER MOREIRA

ESTRUTURA E EVENTO EM MARSHALL SAHLINS: CONTRIBUIÇÃO PARA


ANÁLISE DA RESSIGNIFICAÇÃO DA DEFICIÊNCIA PELA ABORDAGEM
SOCIAL

Trabalho apresentado ao Programa de


Pós-Graduação em Serviço Social da
Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como requisito à disciplina
“Seminário de Tese I”.

Professora: Myriam Moraes Lins e


Barros

Rio de Janeiro
2012
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ESTRUTURA E EVENTO EM MARSHALL SAHLINS: CONTRIBUIÇÃO PARA


ANÁLISE DA RESSIGNIFICAÇÃO DA DEFICIÊNCIA PELA ABORDAGEM
SOCIAL

A História é ordenada culturalmente de diferentes modos nas


diversas sociedades, [...] esquemas culturais são ordenados
historicamente porque, em maior ou menor grau, os
significados são reavaliados quando realizados na prática. [...]
a cultura é historicamente reproduzida na ação. [...] as
circunstâncias contingentes da ação não se conformam
necessariamente aos significados que lhe são atribuídos [...]. É
nestes termos que a cultura é alterada historicamente na ação
(SAHLINS, 1987).

INTRODUÇÃO

O trabalho tem como objetivo pensar, através de uma revisão de literatura, na


contribuição dos conceitos de estrutura e evento, no âmbito antropológico, para análise da
ressignificação da deficiência trazida pela abordagem social. Toma de empréstimo, para isto,
as construções teóricas de Marshall Sahlins acerca destas categorias, bem como estudos sobre
a deficiência, pautadas numa perspectiva social no tratamento da questão.
Em sua obra Ilhas de história (1987), Sahlins traz fecundas reflexões para elaborar a
relação entre estrutura e história, oferece, assim, subsídios para uma proposta interdisciplinar
entre antropologia e história. Analisa como o conceito antropológico de cultura pode ser
importante para o estudo da história e vice-versa. Para ele, aquilo que os antropólogos
chamam de estrutura constitui na verdade um objeto histórico. Diz o autor (1987, p. 19): “o
problema agora é de fazer explodir o conceito de história pela experiência antropológica da
cultura. As consequências, mais uma vez, não são unilaterais; certamente uma experiência
histórica fará explodir o conceito antropológico de cultura – incluindo a estrutura”.
Para demonstrar que história e estrutura não se excluem mutuamente, Sahlins analisou
os impactos da chegada às ilhas havaianas, durante o século XVIII, de James Cook, capitão da
Marinha Real inglesa. Para o autor, a experiência de Cook comprovou que o mundo não é
obrigado a obedecer à lógica pela qual é concebido, mostrou ainda que a transformação de
uma cultura é também um modo de sua reprodução1. Podemos perceber em tal análise um
clássico exemplo da teoria do autor acerca das relações entre estrutura e evento:

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Os ingleses, entre os anos 1778-1779, liderados pelo capitão Cook, aportaram nas ilhas havaianas. Diversos
contatos estabelecidos entre os nativos e o oficial culminaram em um episódio dramático: a morte do capitão.
Sahlins deu sua interpretação para o fato. Segundo ele, o capitão Cook fora confundido com o deus Lono, da
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As formas culturais tradicionais abarcavam o evento extraordinário e recriavam as


distinções dadas de status, com o efeito de reproduzir a cultura da forma que estava
constituída. As condições específicas do contato europeu deram origem a formas de
oposição entre chefia e pessoas comuns que não estavam previstas nas relações
tradicionais. No mundo ou na ação- tecnicamente, em atos de referência- categorias
culturais adquirem novos valores funcionais. (SAHLINS, 1987, p 174).

Em torno desta compreensão, uma análise da história pressupõe que os significados


culturais se alteram a partir de novos valores funcionais dados às categorias, seja através de
mudanças no mundo ou por atos de referência. Ao modificar as relações entre categorias, a
estrutura acaba se transformando. O autor sugere que a história não deve ser confundida com
mudança, como se a persistência da estrutura através do tempo não fosse histórica: “[...] a
história havaiana certamente não é a única em demonstrar que a cultura funciona como uma
síntese de estabilidade e mudança, de passado e presente” (SAHLINS, 1987, p.180). Ou seja,
toda mudança prática é uma reprodução cultural. E toda reprodução da cultura é uma
alteração, pois na ação, as categorias, pelo qual o mundo atual é orquestrado, assimilam um
novo conteúdo empírico.
Ao construir seu argumento em favor da inseparabilidade da reprodução e
transformação cultural, Sahlins propõe o conceito de estrutura da conjuntura, importante à
compreensão da mudança cultural. Forma como as culturas reagem a um evento, fazendo o
contexto imediato dialogar com estruturas anteriores. Em sua definição seria (1987, p. 15): “a
realização prática das categorias culturais em um contexto histórico específico, assim como se
expressa nas ações motivadas dos agentes históricos, o que inclui a microssociologia de sua
interação”. Adiante o autor complementa (1987, p. 160): “um conjunto de relações históricas
que, enquanto reproduzem as categorias culturais, lhes dão novos valores retirados do
contexto pragmático”.
Conceito interposto entre evento e estrutura, a estrutura da conjuntura pode ser
considerada uma noção mediadora entre a sincronia e a diacronia. O evento não existe sem o
sistema simbólico: “É que a definição de um “algo-acontecido” como um evento, assim como
suas consequências históricas específicas, tem de depender da estrutura em vigor”
(SAHLINS, 2004, p. 322).
Um acontecimento (um fenômeno) só se torna significativo quando seus efeitos
históricos são acolhidos na cultura em questão, cuja maneira de acolhimento nunca é a única
possível, haja vista ser o evento uma interpretação de algo acontecido e interpretações variam.

mitologia dos nativos. Desenvolveu, dentre outro argumentos, a tese de que o Cook chegara às ilhas havaianas
durante o festival de Mahahiki, ocasião na qual se louva a chegada do deus Lono. Para Sahlins as ações do
capitão Cook, naquela época específica do ano, ratificaram a visão de que o oficial era de fato o deus Lono.
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Corolário a este processo, a ordem cultural deve ser vista como uma síntese entre
passado e presente, estabilidade e mudança. Nas palavras de Sahlins (2004, p.372): “As
ordens culturais são sistemas-de-eventos, uma vez que se reproduzem por meio de um mundo
do qual elas mesmas não são produtoras”.
Um evento, conforme o demonstra Sahlins, não constitui apenas em um acontecimento
do fenômeno, mas aquilo que é dado com interpretação, e adquire significância histórica
apenas quando apropriado pelo esquema cultural. É algo complexo, diferente, com força,
forma e causas próprias, e a importância que estes atributos adquirem no contexto cultural.
Dialogando com tais contribuições, como pensar na abordagem social da
deficiência enquanto evento histórico, conformador de novos significados culturais às
práticas sociais?
Aqueles que se propuserem a analisar os debates travados sobre a deficiência, a partir
dos anos sessenta do século XX, perceberão que tais discussões foram permeadas por dois
conceitos sobre a questão, conhecidos como modelos clássicos da deficiência: o modelo
biomédico e o modelo social. Eles constituem expressão de interpretações sobre a deficiência,
e, sua incorporação, enquanto prática social, representa tratamentos diferenciados dispensados
às pessoas com deficiência (PCD), assim como na condução de políticas e programas afetas a
estas últimas.
Portanto, a questão será pensada a partir do resgate destes dois modelos. É intenção
fazer tais construções dialogando com as reflexões de Sahlins sobre evento e estrutura.

CONTRIBUIÇÃO DAS ELABORAÇÕES DE MARSHALL SAHLINS PARA


ANÁLISE DOS MODELOS CLÁSSICOS INTERPRETATIVOS DA DEFICIÊNCIA

Para Sahlins (1987, 2004), todo evento se insere no domínio humano através dos
valores culturalmente estabelecidos. Nosso interesse, nosso investimento no passado não é
pura e simplesmente o desejo de compreender o que foi feito e pensado antes de nós: entre os
‘fatos’ e nós existe um contexto e um sistema que media o que entendemos como evento. Diz
Sahlins (1987, p.193): “A cultura é justamente a organização da situação atual em termos do
passado”. Na prática historiográfica, perturbações a um dado fluxo normativo são aquelas
comumente elevadas ao patamar de eventos.
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De acordo com o contexto em que ocorrem, seres, objetos ou atos específicos são
totalizados. Tornam-se, assim, eventos capazes de afetar a ordem de um dado sistema.
Inversamente, de acordo com o contexto das relações de um dado sistema, categorias e
hierarquias são particularizadas em pessoas, lugares, objetos ou atos específicos.
Em torno deste entendimento, podemos pensar na abordagem da deficiência em uma
perspectiva social como um evento na medida em que representou uma guinada
revolucionária no tratamento da questão. Desde seu nascimento, esta abordagem vem
desafiando os saberes e poderes que têm constituído o outro deficiente como anormal,
patológico, inferior e incapaz. Tal modelo ofereceu argumentos que deslocaram as causas da
deficiência, interpretadas como limitações de um corpo com lesão, segundo modelo
biomédico, para as estruturas sociais.
Esta interpretação da deficiência promoveu impactos no sistema culturalmente
estabelecido e na estrutura social, no modo específico de se lidar com as deficiências e com as
PCD, cujas expressões objetivas podem ser observadas no desenho dos direitos, da legislação,
e políticas públicas fomentadas para este segmento nas últimas décadas.
Portanto, se o evento “É uma diferença e faz diferença”, o tratamento da deficiência,
numa perspectiva social, trouxe para a arena política uma dimensão central ignorada nas
maneiras de se lidar com a questão. Trata-se da construção social da deficiência: alguém é
deficiente somente em um contexto temporal, espacial e socialmente determinado.

A deficiência não é algo que emerge com o nascimento de alguém ou com a


enfermidade que alguém contrai, mas é produzida e mantida por um grupo social na
medida em que interpreta e trata como desvantagens certas diferenças apresentadas
em determinadas pessoas. Assim, as deficiências devem, a nosso ver, ser encaradas
também como decorrentes dos modelos de funcionamento do próprio grupo social e
não apenas como atributos inerentes às pessoas identificadas como deficientes. A
deficiência e a não-deficiência fazem parte do mesmo quadro; fazem parte do
mesmo tecido- padrão. (OMOTE, 1994, p.68-69).

Os estudos sobre a deficiência nasceram em um território de militância política e


investigação teórica. Tiveram início no Reino Unido e nos Estados Unidos nos anos 70 do
século XX, e foram frutos da politização crescente e da organização política das PCD,
iniciada na década de 1960, notadamente, aquelas institucionalizadas, cujos corpos estavam
colonizados e lutavam por direitos e uma vida mais condigna (PEREIRA, 2006; DINIZ, 2007;
DINIZ, MEDEIROS, 2004).
Do ponto de vista teórico, destaca-se a contribuição dada pelas primeiras organizações
no Reino Unido criadas e gerenciadas por e para pessoas com deficiências, a exemplo da Liga
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dos Lesados Físicos Contra a Segregação (UPIAS), que lançou as bases, através de um dos
seus fundadores, Mike Oliver, para o que ficou conhecido como modelo social da deficiência.
Retomando as contribuições de Sahlins, podemos pensar na UPIAS como indivíduo
sócio-histórico, sujeitos com a possibilidade, não apenas de incorporar uma ordem sistêmica,
mas de transformar essa ordem através de atos-mediações que representam as disposições de
todo um grupo. Os atos dos indivíduos sócio-históricos são transformados em ícones de
conceitos que interagem com a estrutura social.
Uma das principais contribuições da construção teórica destes estudos foi colocar em
xeque o modelo dominante trazido pela modernidade e pela abordagem da biomedicina: o
modelo biomédico. Também conhecido como “modelo individual”, face à abordagem
individual dada à questão da deficiência (BARNES, BARTON, OLIVER, 2002).
A hegemonia do modelo biomédico no tratamento à questão da deficiência se
encontrava firmada no início do século XX. Fato diretamente imbricado à consolidação do
que Michel Foucault denominou de biopoder (1987, 1988, 2000): uma nova tecnologia do
poder, na qual este último passa a investir sobre os corpos já docilizados pelo poder
disciplinar.
A idéia de biopoder em Foucault veio a se juntar às suas reflexões sobre as práticas
disciplinares, ambas as técnicas, segundo o autor, de exercício de poder, particularmente a
partir do século XVIII e XIX. As disciplinas se voltavam para o indivíduo, seu corpo, sua
normalização e adestramento através das diversas instituições modernas que esse indivíduo
atravessava durante a sua vida (escola, quartéis, fábricas, prisão, etc.). Instituições que
docilizavam os corpos e os tornavam aptos à produção industrial vigente.
Se a disciplina agia sobre os indivíduos, o biopoder, segundo Foucault, agia sobre a
espécie, “no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte
dos processos biológicos” (FOUCAULT, 1988; p. 152). E sobre esse corpo-espécie, o
biopoder cuidava de processos como nascimentos e mortalidades, da saúde da população, de
sua longevidade, etc. O biopoder é a gestão da vida como um todo, técnicas de poder sobre o
biológico, central nas discussões políticas. Modificá-lo, transformá-lo, aperfeiçoá-lo eram
objetivos do biopoder, e, é claro, produzir conhecimento, saber sobre ele, para melhor
manejá-lo.
Assim como a disciplina foi necessária na docilização do corpo produtivo fabril, o
biopoder foi também muito importante para o desenvolvimento do capitalismo, ao controlar a
população e adequá-la aos processos econômicos.
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Poder disciplinar e biopoder, no século XIX, passam a constituir uma unidade, por
meio da eclosão da sociedade normalizadora, cujos mecanismos de regulação e correção
produzem, avaliam e classificam as anomalias do corpo social, segundo argumentos
biológicos, ao mesmo tempo em que as controlam e eliminam: fazer viver e deixar morrer
constitui sua expressão (FOUCAULT, 2000)2.
Segundo Sahlins, a classificação é uma característica intrínseca da ação simbólica, que
consiste na apreensão de objetos ou fenômenos da realidade em termos dos conceitos culturais
que compõem uma estrutura ou um sistema, de maneira a torná-los eventos inteligíveis e
transmissíveis a outros indivíduos. Enquanto sistema classificatório, podemos pensar na
abordagem biomédica da deficiência como conceito caudatário do biopoder.
Decorrente desta apreensão do objeto, segundo Ana Pereira (2006), o modelo
biomédico olha para a deficiência na busca de um diagnóstico, e, ato contínuo de uma cura. O
foco é na “anormalidade” do corpo, e a forma como isto, por sua vez, causa uma
“deficiência”. A ênfase é assim colocada na tragédia pessoal, na vitimização e no fato de
haver algo de errado naquele corpo que precisa ser “regularizado” ou “normalizado”, através
da submissão à biomedicina. Centrando-se o olhar no corpo como fonte do problema, o
modelo biomédico desresponsabiliza a sociedade pela exclusão das PCD.
Todavia, como bem o demonstra sahlins, o mundo não é obrigado a se reproduzir tal
qual pensado por categorias tradicionais. No desenrolar dos acontecimentos, ao interpretar o
passado, os homens repensam suas categorias, submetendo-as a riscos empíricos, do
cotidiano. Remodela-se, nesta perspectiva, o sentido original das categorias culturais pela
introdução de novos significados, de novos símbolos, acarretando alterações na maneira de
pensar e agir da sociedade.
E são as categorias prescritas pelo modelo biomédico que os estudos sobre a
deficiência vêm colocar em causa.

As categorias tradicionais, quando levadas a agir sobre um mundo com razões


próprias, um mundo que é por si mesmo potencialmente refratário, são
transformadas. Pois, assim como o mundo pode escapar facilmente dos esquemas
interpretativos de um dado grupo humano, nada pode garantir que sujeitos
inteligentes e motivados, com interesses e biografias sociais diversas, utilizarão as

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[...] é o corpo da sociedade que se torna, no decorrer do século XIX, o novo princípio. É este corpo que será
preciso proteger, de um modo quase médico: em lugar dos rituais através dos quais se restaurava a integridade do
corpo do monarca, serão aplicadas receitas, terapêuticas como a eliminação dos doentes, o controle dos
contagiosos, a exclusão dos delinqüentes. A eliminação pelo suplício é, assim, substituída por métodos de
assepsia: a criminologia, a eugenia, a exclusão dos “degenerados” (FOUCAULT, 1982, p. 145).
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categorias existentes das maneiras prescritas. Chamo essa contingência dupla de o


risco das categorias na ação (SAHLINS, 1987, p. 181 e 182).

A interpretação da deficiência, trazida pelo modelo social, introduz novos


significados, novos símbolos para se pensar na questão, abre, assim, a possibilidade de
alteração do sentido das categorias em que tradicionalmente a deficiência foi culturalmente
elaborada.

A novidade teórica fundamental é a divisão entre ‘lesão’ (impairment) e


‘deficiência’ (disability). Enquanto a primeira remete à condição física da pessoa, a
deficiência por sua vez faz referência a um vínculo imposto por uma sociedade sobre
o indivíduo com alguma lesão: [...] Basicamente, o modelo social da deficiência
surge como alternativa ao modelo hegemônico médico-individual com sua ênfase no
diagnóstico e que constrói o indivíduo deficiente como sujeito dependente. Mike
Oliver denomina esse modelo de ‘modelo da tragédia pessoa’. Para os teóricos do
modelo social, a deficiência não é uma tragédia pessoal; é um problema social e
político. Ela não existe para além da cultura e do horizonte social que a descreve
como tal e nunca pode ser reduzida ao nível biológico e/ou patológico. Para eles, só
existem atributos ou características do indivíduo considerados problemáticos ou
desvantajosos em si por vivermos em um ambiente social que considera esses
atributos como desvantajosos (ORTEGA, 2009, p.68).

Inspirados no materialismo histórico, os primeiros teóricos do modelo social da


deficiência explicavam a opressão lançando mão de argumentos vinculados aos valores
centrais do capitalismo de produtividade e funcionalidade. Corpos com impedimentos não
seriam funcionais à lógica produtiva de exploração do capitalismo em uma estrutura social
pouco sensível as diferenças.
Partiam do pressuposto de que as desvantagens estavam relacionadas mais diretamente
às barreiras do que às lesões e de que, retiradas barreiras, as PCD exercitariam a
independência (DINIZ, 2007). Afinal, para estes teóricos, a PCD era um sujeito produtivo tal
como a não deficiente, sendo necessária eliminar as barreiras sociais, principalmente
arquitetônicas e de transporte, para o desenvolvimento das suas capacidades e
potencialidades. O corpo com lesões neste debate era negligenciado, face ao compromisso
com o projeto da independência. Dor, sofrimento, limites corporais foram reservados à esfera
da vida privada.
Conforme discutido alhures, quando olhamos para trás, através da narrativa histórica,
o fazemos dentro de uma lógica cultural na qual estamos inseridos. Sahlins parte da
concepção de que as pessoas usam as ordens culturais para moldar sua construção e ação no
mundo. Quando agem, as pessoas colocam suas construções em jogo, usando-as para se
referir ao mundo. “O olho que vê é o órgão da tradição”.
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Em contrapartida, a cultura vivida, revivida e ressignificada está impregnada de


história. Aos acontecimentos que iluminamos no tempo passado damos o nome de evento.
Esse evento, através do tempo, é reinterpretado pelas trocas culturais, inerentes à própria
dinâmica da cultura e pelas relações sociais das interações humanas.
Assim, nos anos 1990 e 2000 o modelo social passa por uma revisão, com o ingresso
da perspectiva feminista, constituída pela segunda geração de teóricos, cujas contribuições
revigoram a tese social da deficiência e acrescentam novos ingredientes para o enfrentamento
político da questão.
A contribuição da epistemologia feminista desafiou tanto os teóricos da primeira
geração do modelo social quanto os proponentes da abordagem biomédica ao levantar
nuances de situações de deficiência que se mostraram enquanto marca cega destes modelos,
notadamente, o local colocado para o corpo com lesões: preponderante para o modelo
biomédico, pois considerado fonte da deficiência; negligenciado para modelo social.
Desafiaram ainda a suposição dos teóricos do modelo social de que todas as PCD desejariam
ou experimentaria a independência, o que remete ao desafio de se refletir sobre as diversas
formas de se viver a experiência da deficiência.
Conforme observa Débora Diniz (2003), os primeiros teóricos eram em sua maioria
homens com lesão medular, apontados pelas estudiosas feministas como membros da elite dos
deficientes, não representantes da grande maioria das PCD, especialmente, daquelas com
deficiência intelectual. Mormente tal grupo tecesse críticas à sociedade capitalista,
paradoxalmente, lutava por se inserir no processo produtivo, ao invés de promover uma
reformulação ampla dos princípios produtivos e morais que regem a vida coletiva em torno do
trabalho.
Portanto, os teóricos da primeira geração construíram sua argumentação sustentando-
se em estruturas anteriores, através da lógica cultural na qual estavam inseridos.
Ortner (2011), em artigo que trata da teoria na antropologia desde os anos 60, oferece
elementos para se pensar na contribuição de Sahlins para teoria da prática. Diz a autora:

Resumidamente, Sahlins argumenta que as pessoas em diferentes posições sociais


têm diferentes “interesses” (...) e agem em conformidade com esses interesses. Em si
isto não implica conflito ou luta, nem mesmo implica que pessoas com interesses
diversos tenham visões de mundo radicalmente distintas. Contudo, implica que, ao
surgirem oportunidades, elas procurarão reforçar as suas posições, mas que irão
fazê-lo pelos meios tradicionalmente disponíveis para pessoas em suas posições.
(ORTNER, 2011, p. 35).
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Todavia, conforme o demonstra Sahlins (1987, 2004), a prática é prenhe de


objetivações, o que faz com que as categorias culturais sejam postas em riscos empíricos
constantes. O movimento feminista traz a possibilidade de reavaliação de categorias
funcionais ao introduzir novos elementos para se problematizar a deficiência.

Foram as teóricas feministas que, pela primeira vez, mencionaram a importância do


cuidado, falaram sobre a experiência do corpo doente, exigiram uma discussão sobre
a dor e trouxeram os gravemente deficientes para o centro das discussões - aqueles
que jamais serão independentes, produtivos ou capacitados à vida social, não
importando quais ajustes arquitetônicos ou de transporte sejam feitos. Foi o
feminismo quem levantou a bandeira da subjetividade na experiência do corpo
lesado, o significado da transcendência do corpo para a experiência da dor, forçando
uma discussão não apenas sobre a deficiência, mas sobre o que significava viver em
um corpo doente ou lesado (DINIZ, 2003, p. 03-04).

O debate em torno destas contribuições traz o desafio de se pensar deficiência no


plano individual e subjetivo dos sujeitos envolvidos, para além da diversidade no modo como
ela é vivenciada em diferentes contextos e culturas. Pois, se é verdade, como afirma Mirela
Berger (1999), que o entendimento sobre deficiência, assim como os modos de com ela lidar
mudam com o tempo, com a cultura e com os saberes que se propõe a estudá-la, narrá-la e
controlá-la, é igualmente verdadeiro o fato de que numa mesma sociedade há várias formas de
se viver a deficiência. A serem considerados, neste aspecto, recortes de gênero, raça e
orientação sexual.
Estudos antropológicos podem oferecem importantes contributos à análise de
narrativas de PCD sobre suas trajetórias, vivências e percepções sobre sua deficiência, em
síntese, sobre os significados atribuídos pelos sujeitos à experiência da deficiência.

O indivíduo é um ser social, mas nunca devemos esquecer que é um ser social
individual, com uma biografia que não é idêntica à de ninguém mais. Trata-se de
alguém a quem ‘é preciso prestar atenção’. Isso porque, [...] se existe um ‘mim’ que
incorpora a atitude de algum grupo em algum nível de generalidade, há também um
‘eu’ que preserva uma liberdade potencial de reagir ao ‘outro generalizado’
(SAHLINS, 2004, p.309).

A crítica feminista vem possibilitando ao modelo social contemplar novas dimensões


afetas a deficiência, tornando esta abordagem mais complexa e revigorante, bem como vem
acrescentando novos componentes a serem considerados no tratamento político da questão.
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CONCLUSÃO

Através das elaborações de Marshall Sahlins, notadamente as categorias de estrutura e


evento, buscou-se nos limites deste trabalho, trazer tais contribuições para se pensar na
abordagem social da deficiência enquanto evento, conformador de novas práticas sociais. Para
isto, procurou-se, ao longo do estudo, desenvolver um diálogo entre as construções teóricas
do autor e investigações que interpretam a deficiência, pautadas numa perspectiva social.
A abordagem social da deficiência não significou que a visão biomédica no tratamento
da questão foi superada. Ainda hoje o discurso biomédico tem grande força enquanto matriz
teórica de entendimento da questão. Decorre deste modelo a ideia de que as limitações do
corpo deficiente são inerentes à lesão deste último. Perspectivas teóricas diferenciadas, ligadas
à sociologia, compreendem que a deficiência deve ser entendida como resultado da interação
entre sujeitos, que possuem algum tipo de lesão no corpo, e as barreiras sociais, impeditivas à
sua plena e efetiva participação na sociedade em igualdade de oportunidade com as demais
pessoas, portanto deficiência é um conceito amplo e relacional.
As ideias de Sahlins sugerem ser a dinâmica cultural caracterizada pela continuidade e
mudança, simultaneamente. Portanto, convivem atualmente em uma mesma estrutura,
processos que interpreta a deficiência por categorias tradicionais, e visam promover a
reprodução de categorias consolidadas no tratamento da questão; e aqueles que buscam
reavaliar significados da deficiência, objetivando transformar os elementos originais sobre os
quais a questão vem sendo historicamente pensada, pela ação prática.
Encontra-se no cerne das discussões contemporâneas sobre os direitos das PCD o
conceito de inclusão social. Para Romeu Sassaki (1997), paradoxalmente, a inclusão social
defende simultaneamente a igualdade e as diferenças: a igualdade se refere à dignidade e aos
direitos; e, as diferenças à singularidade de cada ser humano.
Todas as pessoas são iguais em dignidade humana e direitos humanos. Por outro lado,
não há duas pessoas iguais. Ser diferente é inerente à condição humana. Esta singularidade
implica que a sociedade, para ser justa, igualitária e inclusiva, deve ser modificada para
acolher, contemplar as diferenças individuais, com vistas a atender às necessidades de seus
membros.
Novamente nos ensina Sahlins (2004, p. 309) “[...] a vida em sociedade não é uma
genuflexão automática diante do ser superorgânico, mas, antes, um rearranjo contínuo de suas
categorias e projetos de existência pessoal”.
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O Estado se constitui em ator fundamental no processo de inclusão social, visto ter


poder de ratificar pactos e convenções, formular, implementar e revisar leis e políticas,
capazes de promoverem uma maior justiça social.

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