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O poético da imagem sintética

A identidade visual de Coimbra criada por Francisco Providência

Laís Guaraldo
PUC-SP
Instituto ID+ (Universidade de Aveiro)
* Pesquisa realizada com apoio da Fapesp

Resumo
Esse artigo analisa o processo criativo da elaboração de uma nova identidade visual
para a cidade de Coimbra, ocorrido em 2003. O trabalho partiu de um concurso proposto
pela câmara municipal da cidade, com o mote: “Coimbra- cidade do conhecimento”. A
proposta aqui analisada foi a vencedora do concurso, realizada pelo designer português
Francisco Providência. A nova identidade visual partiu da tradição heráldica da cidade, mas
também buscou ressignificar e atualizar a sua dimensão simbólica.
A análise tem como propósito contribuir para a reflexão sobre os desafios de traduzir
sinteticamente a representação de uma cidade: um signo híbrido de imagem e texto que
interpreta, com força simbólica, um território e o conjunto de experiências ali vividas e
significadas.

Palavras-chave: Identidade visual, design, Francisco Providência, Processo de criação.

Abstract:

This article looks at the creative process of developing a new visual identity for the
city of Coimbra, which occurred in 2003. The work started from a competition proposed by
the municipal council, with the motto: "Coimbra: city of knowledge". The proposal analyzed
here was the winner of the contest held by Portuguese designer Francisco Providência. The
new visual identity was based in the heraldic tradition of the city, but also sought to re-mean
and update its symbolic dimension.
The analysis aims to contribute to the reflection on the challenges of translating
synthetically the representation of a city: a hybrid sign of image and text that interprets, with
symbolic power, the territory and the set of experiences lived and signified there.

Keywords: Branding, Design, Francisco Providência, process of creation.


Introdução

“Dizer o menos possível, com o menor número de elementos, recorrendo aos meios mais comuns, da
forma mais simples possível. Fazer uso da linguagem de modo mínimo (e por isso mais universal),
deixando emergir a ordem subjacente à matéria.” Francisco Providência

Com essas palavras, o designer português Francisco Providência expõe em uma


pequena publicação sobre seu estúdio o posicionamento de seu trabalho. Essa intenção de
manifestação expressiva sintética, como resultado do entendimento de uma ordem
subjacente ao objeto, é possível de ser apreendida na análise do processo de reformulação da
identidade visual da Câmara Municipal da cidade de Coimbra, feita por esse designer– e será
o tema desse artigo.
O programa do concurso pedia uma marca que identificasse a cidade no respeito pela
sua história e cultura, mas atribuindo-lhe uma nova imagem de modernidade e dinamismo.
A marca “Coimbra” destinava-se a identificar a municipalidade , e tinha, também a ambição
de ganhar a representação dos cidadãos, estimulando o seu espírito de pertencimento e
contribuindo para a coesão social em torno do lugar geográfico, cultural e sentimental.
Coimbra é uma das cidades mais antigas de Portugal. Foi capital do reino e é chamada
“a cidade do conhecimento” devido à importância da vida universitária na cidade. A
Universidade de Coimbra foi fundada por D. Diniz em 1290 e é uma das primeiras da
Europa. Além dessa universidade, outras instituições de ensino superior se estabeleceram na
cidade, consolidando o seu vínculo com o espírito científico. Como equacionar a força dessa
tradição com a imagem de modernidade e dinamismo em uma marca sintética?
A mais antiga representação das armas de Coimbra data de 1240 e apresenta uma
figura feminina coroada com um manto. Ainda no século XIII, as armas passam a apresentar
o busto de uma donzela coroada, ladeada por dois escudos, tendo por baixo uma cobra, uma
taça e uma flor. Esta representação manteve-se até o final do século XIV. Nos séculos
seguintes a donzela passou a ser acompanhada ora pela figura de um leão, ora por um dragão
ou novamente pela figura de uma cobra.

Representação das “armas Coimbrãs”- sec XIII e identidade visual criada.


A proposta final apresentada pelo designer como identidade visual da cidade de
Coimbra apresenta a figura de uma cobra mordendo a própria cauda, numa alusão ao
símbolo do Uróboro, representando o ciclo dialético da vida e da morte, a transformação
alquímica, o tempo. No texto que justifica o trabalho, lê-se: “o anel constituído pela serpente
que morde a própria cauda, Uróboro, representa a dialética da vida e da morte, o dinamismo
do círculo, a primeira roda, aparentemente imóvel, mas criadora de vida e da sua duração: o
tempo.”
A eleição da simbologia da serpente foi o primeiro passo dado na concepção do
projeto de identidade visual da cidade e também o último. A força simbólica da serpente é
inquestionável: em todo mundo, nas mais distintas culturas e religiões, representações da
serpente estão associadas com conteúdos relacionados a consciência, renascimento e também
sedução e beleza. Entre os pagãos, a serpente que morde a própria cauda (Uróboro) se
associa a conteúdos relacionados com a morte e o renascimento. Na simbologia judaico-
cristã, a serpente está associada com o “pecado original”, que é a condição da liberdade,
conhecimento e ontologia humana. O “morder a cauda” é também a imagem da perfeição
circular, ainda que carregada de sofrimento autofágico (de quem se come a si próprio),
levado ao infinito, pois a devoração de si próprio é ao mesmo tempo uma subtração e uma
adição. No que diz respeito à história da ciência, é conhecida a história do sonho do químico
belga, F. Kekulé em 1865, que na tentativa de compreender as estruturaas dos compostos de
carbono sonhou com uma cobra mordendo o próprio rabo e compreendeu finalmente que a
estrutura era em anel (Massironi, 1982, p.133).
No caso da cidade de Coimbra, desde o tempo de D. Dinis, a serpente figura no selo
da cidade. E até hoje reaparece - em lugares como os postes de iluminação pública no centro
da cidade universitária (em frente à faculdade de letras) uma pequena cobra serpenteada em
“M” adorna a parte superior.

Imagem geradora do trabalho e imagem aprovada e aplicada na cidade.


Francisco observa que curiosamente a solução final foi praticamente igual à imagem
simbólica referida na origem. E traça a seguinte avaliação a respeito disso: “o esforço de
desenho não foi um instrumento de construção mas de destruição (síntese); isto é, serviu
menos para acrescentar do que para eliminar.”
A solução final manteve a ideia que já estava indicada no primeiro momento do
projeto – a escolha do símbolo do Uróboro. No entanto, as idas e vindas do percurso
mostram outros aspectos dessas camadas de sentido.
A palavra Coimbra” foi trabalhada a partir da fonte “Trajan”, de estética clássica,
que segundo o designer homenageia uma época de afirmação da ciência e da modernidade. A
fonte Trajan foi desenhada em 1989 por Carol Twombly a partir das letras capitulares
romanas inscritas na Coluna de Trajano. A coluna narra a vitória do imperador sobre os
Dácios e é uma fonte que reproduz com muita fidelidade o desenho das inscrições romanas
talhado na pedra. É uma fonte charmosa, elegante e com um DNA épico. Foi muito utilizada
pelo cinema hollywoodiano, nas campanhas gráficas dos filmes e também em algumas
universidades, como a Columbia University ou a Universidade de Bologna.
Nota-se o trabalho de desenho a partir da fonte Trajan (que por sua vez é um desenho a
partir do monumento de pedra). A letra “R” foi alongada à maneira da letra Q da Trajan –
como se o rabo da cobra fosse transportado do “Q” para o “R”. O “M” foi redesenhado,
sugerindo um relevo montanhoso. O desenho do Oroboro que acompanha a palavra
“Coimbra” carrega de “reptilidade” a fonte Trajan.





Coimbra Coimbra


Q


 

Palavra “Coimbra” e letra “Q” escritas com a fonte Franklin, a fonte Trajan, e o trabalho tipográfico final.

Não há dúvida que no desenho do anel reside a força expressiva maior do trabalho. A
fina secção transforma o anel em cobra e faz aparecer a cabeça e a cauda. Somada ao nome
da cidade em traços reptilianos/renascentistas e em estrutura regular, dá-se uma síntese de
um conjunto de conteúdos
Ezra Pound (2006, p.22) se referiu à literatura como “linguagem carregada de
significado, até o máximo grau possível”. Defende-se aqui uma categoria expressiva entre as
marcas gráficas: a imagem sintética. E a evidência de que essa síntese, como na expressão
poética, é “carregada de significado”. A análise dos movimentos geradores do trabalho
colocam em evidência o conjunto de conteúdos manipulados que foram sintetizados.

255
movimentos
no
processo
de
desenvolvimento
da
imagem
da
marca
Coimbra.




O percurso do signo:
O levantamento de todo o processo de desenho que resultou na proposta foi
sistematizado em um quadro com o registo de 255 movimentos1.


























































1
Esse
trabalho
foi partilhado pelo então assistente do designer, Arqº Miguel Palmeira.



Sobre esses movimentos, Francisco observa que o desenho “não é só uma forma de
pensamento associativo (simbologia metafórica), mas também meio de transformação
metamórfica (antecipando o tempo da evolução pelo uso, pelo desgaste da erosão, ou pela
tendência de afirmação da forma) e, sobretudo, um sistema rápido de invocação, indexação e
concentração de ideias” 2. O que vemos aqui, nesse percurso, são várias camadas de
significação que aos poucos criam oposições ou possibilidades de compostos.
As testagens iniciaram com uma gravura de uma serpente mordendo a própria cauda
(Uróboro). A partir dessa imagem geradora, uma série de novos desenhos foram feitos: o
desenho da serpente se transformou em estrela pentagonal (que se refere geométrica e
simbolicamente ao homem). Na sequência, vão aparecendo outros signos: maçã,
constelação, palavra/estrela (Coimbra), dragão/Uróboro, Lua no lugar do C – com estrelas,
com palavras, lua/cobra. Vale observar o momento que entra em cena a virgem coroada
(movimento 70) e as várias testagens com a virgem, a cobra e o cálice (em positivos e
negativos), mantendo a mesma estrutura. Depois de 37 movimentos, a virgem, o cálice e a
serpente são abandonados. Inicia um trabalho com o nome da cidade. Em um breve
momento, é incorporada a imagem da torre da universidade, mas também abandonada. Uma
tipografia de natureza mais gótica é adotada e combinada com a virgem, com a maçã e
também com a serpente. Voltam as constelações, discos astronômicos e um óculos formado
com as letras C e O. Entra em cena a esfera armilar (instrumento astronômico de
navegação). Novas experiências com a tipografia (mas até então a fonte Trajan não havia
sido usada). Foram buscados os primeiros impressos produzidos na cidade e estudada a sua
tipografia e iconografia (movimento 206). No movimento 211 um arco se projeta e aos
poucos é reforçada a relação entre o “C” e uma meia lua, ou o “O”. Novamente a esfera
armilar e desenhos buscando relações orgânicas entre “C” e “O”, ou a forma do “O” e da
esfera armilar.
No movimento 214 o “C” toma a forma de uma serpente. No movimento 169 entrou
a fonte Trajan, algumas idas e vindas e no movimento 236 volta pra valer, assim como o
desenho da relação entre o “C” e a serpente. Na adoção da fonte Trajan é notório o ganho de
uma atmosfera renascentista, científica. No movimento 243 volta a antiga imagem do
Uróboro e é então no movimento 245 que aparece pela primeira vez o anel/cobra. Nessa
primeira versão a serpente está representada com olho e a tipografia Franklin.


























































2
Depoimento
de
Francisco
Providência
à
autora:
17/07/2012

Segue então uma interessante sequência final, com testagens que envolvem pesos
visuais Light / Bold, equação entre a luz e a sombra e o desenho da serpente e da palavra
“Coimbra”. O ponto branco que representa o olho da serpente é subtraído, a secção do anel é
ajustada, assim como os pesos visuais. Por fim é adicionada uma linha horizontal entre o
anel e a palavra. Colocada na grade, nota-se a estrutura regular do símbolo: conjunto vertical
com dois quadrados.

Últimos movimentos e o símbolo ajustado à grade.

Francisco explica alguns desses elementos elencados: observa que na tradição


acadêmica de Portugal os professores catedráticos eram chamados de “lentes”. Essa alcunha
era uma maneira de indicar a dedicação à pesquisa desses profissionais. A constelação que
aparece nos movimentos é aquela que foi nomeada de “Serpens”. A intenção era fazer a
relação com o século XVI e a descoberta do movimento dos astros em torno do sol. Daí a
presença do desenho de órbitas, da mecânica celeste e da esfera armilar.
“A metamorfose evolui depois para a silhueta da maçã, enquanto representação do desejo e
estereótipo da tentação do conhecimento (serpente em negativo na silhueta da maçã); evolui depois
para outras representações da ciência menos religiosas, adotando no zodíaco a constelação da serpente
sob a mesma sequência de estrelas mas com as letras que se transmutarão em pontos de uma rede
universal de conhecimento. Só então regressará ao brasão da cidade e seus símbolos heráldicos e
herméticos da mulher, do cálice e da cobra, inscritos por medalha circular.”
A forma do anel trouxe novas camadas de sentido onde até o calíce foi incluído.
Francisco avalia que o anel sugere uma centralidade, um domínio que é a própria cidade.
“Talvez o ‘Anel dos Nibelungos’3 também tenha contribuído para a escolha deste símbolo
(associando-o ao meu avô, antigo professor de literatura alemã na Universidade de
Coimbra). Ainda que na ópera de Wagner tenha uma conotação moralmente negativa, é forte
a ideia de aliança e unidade contraposta ao vazio interior que o anel traduz.


























































3
Na ópera de Wagner - “Anel de Nibelungo”, a glorificação da Vida e do Amor contrasta com a atração
demoníaca do Poder, que o anel e o ouro representam. Trata-se de um anel mágico, que torna o seu proprietário
soberano do mundo mas pagando para isso o preço da total renúncia ao amor.
Conclusão:
O trabalho de elaboração de uma identidade visual lida com um movimento formal
de síntese. No entanto, essa síntese não é apenas de natureza formal, mas sobretudo de
sentido. O designer Enzo Mari observa em seu livro “Progetto e Passione” que em um
projeto “um mais um é igual a três” (2001, p27). Como operação alquímica, a identidade
visual da cidade de Coimbra é síntese de conteúdos associados ao conhecimento e à
identidade da cidade: o ciclo da vida, a espiral, a órbita, o anel, o feminino, o conhecimento
e a sabedoria.
O designer suíço Adrian Frutiger (2001, p. 203), ao refletir sobre o que significa
“o simbólico”, argumenta que se trata de um valor implícito,
“(...) um intermediário entre a realidade reconhecível e o reino místico e invisível da
religião, da filosofia e da magia, estendendo-se, portanto, desde o que é conscientemente
compreensível até o campo do inconsciente. Nesse sentido, pode-se dizer que o artista ou
artesão é, na verdade, um mediador entre o mundo visível e outro invisível”
A aspiração manifestada por Francisco Providência “por um desenho lacônico por um
mundo menos cínico” é antes de mais nada a defesa da expressão poética como recurso
expressivo extremo de significação através do mínimo, nesse mundo tão cheio de ruídos. Em
sala de aula, costuma dizer para seus alunos que um projeto precisa equalizar a competência
funcional com o valor simbólico (e esse aspecto é muito difícil de ser compreendido entre os
estudantes). 
Avalia
que

“criar
conhecimento
é
dotar
de
sentido;
construir
relações,

dominar
o
caos
ou
pelo
menos
introduzir
estruturas
de
ordem
na
infinita
realidade

natural.”
Apropriando‐se
da
lei
de
Lavoisier,
o
designer
defende
que
também
na

cultura
nada
se
perde,
nada
se
ganha,
tudo
se
transforma.
E
ao
desenho
cabe
o
papel

transformador

e
alquímico.


Referências:
FRUTIGER. Adrian. Sinais & Símbolos. Desenho, projeto e Significado. São Paulo, Martins
Fontes, 2001.

MARI, Enzo. Progetto e Passione. Torino, Bollati Boringhieri, 2001.


MASSIRONI, Manfredo. Ver Pelo Desenho. Lisboa, Ed. 70, 1982. 


POUND, Ezra. ABC da Literatura. São Paulo, Ed. Cultrix, 2006.

Depoimento de Francisco Providência à autora: 17/07/ 2012

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