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Revista Psicologia e Saúde. DOI: http://dx.doi.org/10.

20435/2177-093X-2016-v8-n2(05) 55

“Dá Até pra Fazer Poesia”: O Recurso Estético Disparando Reflexões


e Potência
“I can Even Make Poetry”: The Esthetic Resource Triggering Reflexions and
Youngsters’ Potential
“Hasta Puedo Hacer Poesia”: El recurso estético disparando reflexiones y potencia
Ana Paula Alves Vieira
Carolina Nascimento Dias
Eliane Regina Pereira1
Universidade Federal de Uberlândia

Resumo
O presente artigo se propõe a apresentar uma experiência de estágio em Psicologia Social e
da Saúde com um grupo de jovens em um Centro de Referência em Assistência Social (CRAS)
de uma cidade no interior de Minas Gerais. O encontro do grupo ocorria semanalmente na
instituição e as intervenções das estagiárias aconteciam a partir da psicologia histórico-cultural
com o uso de recursos estéticos, disparadores dos encontros. Analisamos como tais recursos
consistiam em ser mais que disparadores de conversa, mas disparadores de potência. Ao estarem
em contato com diversas linguagens artísticas e por meio de conversas geradas a partir de tais
linguagens, percebemos que as reflexões originadas levavam à ação, havendo uma tendência
à mudança a partir de uma intensificação na autonomia dos participantes. Percebemos uma
possibilidade de grupo como potencializador, sendo um espaço onde vários assuntos abordados
levam-nos à reflexão e propriamente à ação, tornando-se, assim, uma busca de possibilidades
até então cristalizadas ou desconhecidas.
Palavras-chave: Psicologia social e da saúde; Recurso estético; Grupo; Juventude; CRAS.
Abstract
This article intends to present an experience due to an internship in Social and Health Psychology

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with a group of youngsters in Reference Centre of Social Assistance from a city in Minas Gerais,
Brazil. The group used to have weekly meetings inside the institution and intern’s interventions
were guided according to cultural-historic psychology using a esthetic resources which were
trigger for the meetings. It came to light that such resources worked more than triggers for the
conversations, they were triggers for youngsters’ potential. By getting in touch with several
artistic languages and after conversations it was possible to conclude that the thoughts eluded
there led to action and allowed a tendency to change by supporting participants’ autonomy. It
was noted a possibility of group as an optimizer, a space where several subjects lead youngsters
to think and then to act which used to be lethargic and an unknown search of possibilities.
Key words: Social and Health Psychology; Aesthetic resource; Group; Youth; CRAS.
Resumen
El presente artículo se propone a presentar una experiencia de práctica en Psicología Social y
de la Salud con un grupo de jóvenes en un Centro de Referencia en Asistencia Social (CRAS) de
una ciudad del interior de Minas Gerais. El encuentro del grupo ocurria en todas las semanas en
la instituición y las intervenciones de las pasantes acontecian a partir de la psicología histórico-
cultural con la utilización de recursos esteticos, disparadores de los encuentros. Analizamos
como los recursos consistian en ser más que disparaderos de pláticas, pero disparaderos de
potencia. Al contactar diversas lenguajes artísticas y por medio de pláticas engendradas a partir
de estas lenguajes, percibimos que las reflexiones originadas llevavan a la acción, habendo
una tendencia a cambio a partir de una intensificación en la autonomia de los participantes.
Percibimos una posibilidad de grupo como potencializador, al cual el espacio donde varios
asuntos abordados llevan a la reflexión y propiamiente a la acción, se tornando, así, una busca
de posibles hasta entonces cristalizadas o desconocidas.
Palabras-clave: Psicología social y de la salud; Recurso estetico; Grupo; Juventud; CRAS.

1
Endereço de contato: Universidade Federal de Telefone: (34) 3218-2547 - Ramal: 2822. www.ip.ufu.
Uberlândia, Instituto de Psicologia. Av. Pará,1720, br. E-mail: anapaulaaaa@gmail.com
Umuarama, Uberlândia, MG, Brasil, CEP 38400-902.

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“Prezo insetos mais que aviões. história dos seus antepassados. Isso tem
Prezo a velocidade das tartarugas proporcionado mudanças na realidade
Mais que a dos mísseis. social e na forma em que o indivíduo se
Tenho em mim posiciona diante do mundo, já que os
Esse atraso de nascença. sujeitos são tanto fruto quanto produ-
Eu fui aparelhado tores dessa realidade (Zanella, Lessa, &
Para gostar de passarinhos. Da Ros, 2002).
Tenho abundância Em uma sociedade que nos incentiva
De ser feliz por isso”. a ter sempre uma opinião sem reflexão,
(Barros, 2003). na qual aprender significa processar in-
formações e que nos distancia da histó-
O pensar, a reflexão e a experiência ria tanto pessoal quanto da humanida-
não têm tido muito espaço na socieda- de, nos propomos a intervir no sentido
de contemporânea. Pensando que muita oposto a esse movimento e provocar es-
coisa se passa no mundo e cada vez num sas experiências, assim como reflexões e
ritmo mais elevado, ao falar de experi- pensamentos críticos acerca da realida-
ência falamos no sentido que pontua de. Para a intervenção explicitada neste
Bondía (2002) daquilo que nos passa e artigo embasamo-nos na teoria históri-
daquilo que nos toca. A experiência de- co-cultural elaborada por Vigotski e seus
manda então uma pausa para pensar, colaboradores em meados do século XX,
olhar, sentir e refletir, vivências raras uma abordagem crítica preocupada com
hoje em dia. as dimensões históricas do desenvolvi-
Em decorrência da obsessão pelo mento humano sem desconsiderar a di-
novo, da concepção de que informação é mensão biológica, também concernente
sinônimo de conhecimento e da necessi- aos processos psicológicos complexos.

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dade de termos opiniões sobre tudo que A psicologia de Vigotski (1995) parte
acontece na atualidade, a experiência do estudo do mais complexo (ser huma-
se torna cada vez mais restrita. Ela de- no) e entende tal como constituído pela
manda tempo para apreender o que nos sociedade, a qual também é constituída
acontece, e o saber gerado por ela requer por este dialeticamente. Sendo assim,
uma elaboração do sentido ou não sen- o desenvolvimento humano se dá por
tido daquilo que cada um vivencia, sen- meio da superação das funções psicoló-
do, portanto, um saber particular, já que gicas elementares (instintivas, próprias
as pessoas dão um significado subjetivo de todos os animais) desenvolvendo as
àquilo que experienciam (Bondía, 2002). funções psicológicas superiores (pró-
De acordo com Zanella, Lessa e Da prias do ser humano), processo que só é
Ros (2002), as experiências são descor- possível por meio da mediação.
porificadas, e os sujeitos e os contextos Assim, o ser humano passa pelo pro-
são naturalizados numa perspectiva cesso de humanização-individualização
não histórica. “As relações se processam daquilo que a humanidade produziu
muito mais por aquilo que está aderido apenas com a ajuda de outras pessoas,
ao objeto/à situação, o que lhe confere ou seja, por meio da coletividade e atra-
um dado significado, do que através do vés da mediação. A mediação é um pro-
objeto/da situação em si” (p. 212). cesso realizado por instrumentos físicos
O imediatismo, a fragmentação da e/ou simbólicos. O instrumento físico,
realidade e a descontinuidade temporal como, por exemplo, o uso de uma ferra-
são algumas das características da cultu- menta ou uma chave, é direcionado para
ra contemporânea que acabam por afas- uma transformação externa, ao ser utili-
tar o sujeito da sua história de vida e da zado ele passa a ser instrumento, e não

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apenas objeto. Já o instrumento simbó- závamos como estagiárias de Psicologia


lico tem como consequência uma modi- nessa instituição. Além do grupo, nosso
ficação interna, sendo responsável pelo estágio baseava-se também na participa-
desenvolvimento das funções psicológi- ção da rotina da instituição, isto é, visitas
cas elementares nos seres superiores. domiciliares, acolhimentos, pesquisas
De acordo com Vigotski (1996), os referentes ao conhecimento de território
instrumentos psicológicos que possibi- e participação nos chamados “grupos
litam esse desenvolvimento das funções de descumprimento do programa bolsa
psicológicas são a linguagem, a escrita, família”. Nesses diferentes espaços, nos
a álgebra, as obras de arte e todo tipo de deparamos com jovens em vivências
signo. À medida que são desenvolvidas atravessadas pelo uso de drogas, com
as funções superiores, também são de- abandono da escola, gravidez precoce e
senvolvidas outras formas de lidar com violência.
a realidade. Para a criação do grupo de jovens
Dessa forma, nossa intervenção fun- apresentado neste trabalho, prepara-
damentada na teoria histórico-cultural mos uma proposta e a apresentamos à
se deu no sentido de possibilitar um es- equipe do CRAS, esta consistia na rea-
paço de reflexão e de discussão acerca lização de um grupo de caráter semanal
do cotidiano ocorrendo um processo de com jovens de 12 a 18 anos que coorde-
mediação, que contribuísse para o de- naríamos como estagiárias de psicologia
senvolvimento integral e, consequente- na instituição. Tratava-se de um grupo
mente, para a transformação da realida- aberto, ou seja, não limitávamos nú-
de. A escolha por essa metodologia de meros de participantes, no entanto ele
trabalho decorreu do interesse de con- aconteceu com aproximadamente oito
participantes, com periodicidade sema-

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tribuirmos para que os grupos oprimi-
dos da sociedade, isto é, jovens em sua nal, e cada encontro tinha uma hora e
maioria negros e de classe econômica e trinta minutos de duração. Totalizaram-
cultural baixas, tivessem um espaço ga- se nove encontros, os quais foram reali-
rantido onde pudessem problematizar zados durante um semestre letivo.
suas condições de vida concretas e, a O grupo tinha como objetivo propor-
partir disso, adotarem práticas liberta- cionar um espaço de reflexão acerca da
doras pautadas no diálogo, na ação e na realidade para que, a partir de então, pu-
defesa dos seus direitos (Freire, 2015). desse pensar em ações que modificassem
Nesse sentido, apresentamos aqui um suas vidas de alguma forma. Com esse
grupo com jovens1 que coordenamos no objetivo, fizemos uso de recursos estéti-
Centro de Referência em Assistência cos, previamente preparados, e que serão
Social em uma cidade do interior de mais bem detalhados ao longo do artigo,
Minas Gerais, do qual, em alguns mo- como disparadores de temas que parti-
mentos, participaram também as profis- riam do próprio grupo em cada encontro.
sionais da instituição. A coordenação do Nossa proposta se diferenciava dos
grupos que aconteciam no CRAS uma
grupo era parte das atividades que reali-
vez que estes aconteciam com as famílias,
nos quais as mães eram mais presentes
1
Adotamos a nomenclatura jovens, ao invés de e tinham temáticas específicas a serem
adolescentes, pois a última está relacionada a abordadas nos encontros. Essas diferen-
uma fase do desenvolvimento humano marca- ças na proposta do grupo fizeram com
da por um tempo biológico. Já o termo jovens
que a nossa não fosse aceita tão pronta-
propõe uma extensão do sentido, incluindo os
aspectos contextuais, sociais, econômicos e cul- mente, exigindo explicações detalhadas
turas que influenciam o ser jovem. de como os encontros aconteceriam.

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Pensando em contribuir na articula- cial básica e a proteção social especial


ção das esferas família, escola, lazer e (Brasil, 2004).
cultura que a instituição deve se com- A proteção social básica visa preve-
prometer, fazia-se necessária a criação nir situações de risco por meio de ações
de um espaço para a juventude refle- de fortalecimento de vínculos familia-
tir, problematizar e discutir sobre sua res e comunitários, sendo destinada à
realidade. população em situação de pobreza, de
O jovem é um ser de direitos, no privação e com vínculos socioafetivos
entanto é importante refletir se tais di- frágeis. O Programa de Atenção Integral
reitos lhes são assegurados. Segundo às famílias (PAIF) faz parte da proteção
Monteiro e Castro (2008), houve um social básica, e suas ações são executa-
progresso quanto à importância desti- das diretamente nos CRAS ou em outras
nada à juventude na sociedade, porém unidades básicas e públicas de assistên-
isso não representa uma cidadania de cia social.
fato, já que ainda são os adultos os res- Já a proteção social especial atua em
ponsáveis por pensar, definir projetos casos de violação de direitos decorren-
e decidirem ações que dizem respeito à tes da exclusão social, isto é, onde o risco
vida dos jovens. pessoal ou social já está instalado, como
Pensando na juventude e consequen- em casos de abandono, maus tratos físi-
temente na sociedade contemporânea, cos e/ou psíquicos, abuso sexual, uso de
são escassos os momentos de reflexão substâncias psicoativas, cumprimento
sobre a realidade. No espaço em que de medidas socioeducativas, situação de
construímos, propúnhamos exatamente rua e situação de trabalho infantil. Esta
esses pensamentos não tão comuns para se divide em Proteção Social Especial de
Média complexidade, a qual oferece ser-

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os jovens. Para isso utilizávamos da arte
como um recurso que possibilita inquie- viços à população cujos vínculos fami-
tações e experiências estéticas. De acor- liar e comunitário não foram rompidos,
do com Vigotski (2009, p. 29), “muitas e em Proteção Social Especial de Alta
vezes, uma simples combinação de im- Complexidade, que proporciona prote-
pressões externas – por exemplo, uma ção integral aos grupos que estão sem
obra musical – provoca na pessoa que a referências e em situação de ameaça, de-
ouve um mundo inteiro e complexo de vendo ser retirados do convívio familiar
vivências e sentimentos”. e comunitário (Brasil, 2004).
No contexto deste trabalho, os relatos
Psicologia e CRAS: Possíveis Relações das nossas experiências estão em con-
sonância com a política do SUAS e da
A Política Nacional de Assistência proteção social básica. Por essa razão,
Social (PNAS) criada em 2004 imple- buscamos referenciais que abordassem
mentou diretrizes para a assistência so- a relação entre a assistência social, a psi-
cial brasileira. Com a criação do Sistema cologia e as políticas públicas de modo
Único de Assistência Social (SUAS), que que pudéssemos nos capacitar para atu-
é um modelo de gestão dessa política, ar conforme a PNAS, em que se preco-
houve uma descentralização político- niza “Programas de incentivo ao pro-
-administrativa de modo a respeitar as tagonismo juvenil, e de fortalecimento
características e diferenças de cada ter- dos vínculos familiares e comunitários”
ritório, tendo foco nas famílias como (Brasil, 2004, p. 34).
prioridade dos serviços, benefícios, pro- O trabalho do psicólogo na Assistência
gramas e projetos. Dentro do SUAS, há Social está amparado na Cartilha de re-
dois tipos de proteção: a proteção so- ferências técnicas para a atuação do

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psicólogo no CRAS/SUAS, que prevê o social, na medida em que o refletir e o


fortalecimento das políticas públicas e a pensar se dá nas e pelas relações sociais.
garantia de direitos sociais aos usuários Assim, “toda análise que se fizer do indi-
do serviço. Nesse sentido, a psicologia víduo terá de se remeter ao grupo a que
tem um papel na transformação da rea- ele pertence, à classe social, enfocando a
lidade social na medida em que trabalha relação dialética ser humano-sociedade,
de modo a promover a emancipação e atentando para os diversos momentos
a autonomia dos sujeitos ao investir nas dessa relação” (Lane, 1985, p. 84).
suas histórias e no que apresentam como Há, na maior parte do tempo, uma
recursos e potencialidades (Conselho reprodução de ideologia dentro do gru-
Federal de Psicologia, 2007). po, seja por sua forma de organização,
Ainda segundo a Cartilha, uma das seja por suas ações. Isso significa que
diretrizes para a atuação do psicólogo ele desempenha um papel histórico de
nos serviços, benefícios e programas do cultivar ou transformar as relações so-
CRAS é: ciais advindas das relações de produção
Fomentar espaços de interação (Lane, 1985).
dialógica que integrem vivências, Os grupos são notáveis potenciali-
leitura crítica da realidade e ação zadores quando se reconhecem como
criativa e transformadora, a fim de agentes na produção material de suas
que as pessoas reconheçam-se e se vidas. Ao tomarem consciência das con-
movimentem na condição de co- tradições históricas que vivenciam, se
-construtoras de si e dos seus con- seus membros se unificam nesse proces-
textos social, comunitário e familiar. so, pode haver a realização de ativida-
(Conselho Federal de Psicologia, des que visam à transformação da reali-

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2007, p. 27). dade histórico-social (Lane, 1985).
Nesse sentido, propusemos espa-
Dessa forma, os grupos são formas ços que valorizassem a experiência dos
pertinentes de intervenção nessa insti- sujeitos, contribuindo para que estes
tuição, fazendo-se necessária. O grupo reconhecessem sua identidade, e uma
é um espaço que potencializa a voz das forma de promover e fortalecer víncu-
famílias, um espaço que se faz necessá- los socioafetivos. Ao entendermos que o
rio nos dias de hoje e que o CRAS pode
sujeito se constitui nas relações sociais,
e deve oferecer.
os grupos a que os sujeitos pertencem
De acordo com Lane (1985) o grupo se
constituem os lugares sociais que esses
caracteriza pelo encontro, desencontro e
mesmos indivíduos assumem. Visando
confronto de diferentes sujeitos, sendo
às finalidades supracitadas, utilizáva-
um momento de emersão e expressão de
mos para início dos encontros, recursos
variados sentimentos.
estéticos, tais como poesias, músicas, fo-
Ainda segundo a autora, é impossí-
tografias e imagens.
vel pensar um sujeito desconectado do
contexto social no qual está inserido,
Recursos Estéticos como Disparadores
pois, desde o seu nascimento, ele convi-
de Potência
ve com grupos sociais e se constitui no
emaranhado dessas relações. É a partir Os recursos utilizados foram escolhi-
da linguagem, código produzido pela dos por nós, estagiárias, e pelos próprios
sociedade, que o ser humano se comu- jovens do grupo, pensando no envolvi-
nica e estabelece relações, age e partici- mento dos jovens e no potencial de dis-
pa dentro dos grupos. A consciência de parar conversas que lhes interessassem.
si é, portanto, também uma consciência Assim, buscávamos em supervisões

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discutir sobre tais recursos, sempre com (Vigotski, 1996). Assim, novas formas de
a preocupação de não enviesarmos ou pensar e de agir sobre a realidade se fi-
restringirmos reflexões, mas sim de am- zeram possíveis a partir dos recursos es-
pliarmos os sentidos daquilo que traba- téticos e das discussões, o que nos leva à
lhávamos. De acordo com Maheirie et conclusão de que houve um processo de
al. (2012), o conceito estética a partir dos potencialização dos jovens envolvidos
autores Vygotsky e Vàzquez se refere a no grupo.
uma relação em que há uma sensibiliza- Espinosa (1983) contribui para a com-
ção do sujeito trazendo novas formas de preensão do termo potência, que aqui
compreender um objeto. usamos como sinônimo de força trans-
Ainda segundo os autores, as relações formadora e possibilitadora da criação
estéticas são aquelas que transfiguram os de novos sentidos e ações.
sentidos cristalizados e ampliam olhares, O racionalismo absoluto defendido
escutas e afetos, possibilitando desesta- por Espinosa representa a libertação
bilizar verdades. Os chamados recursos das causas da ignorância e do medo,
estéticos seriam então ferramentas que a fim de que não sejamos consequên-
possibilitam um disparar dessas experi- cia dos efeitos da política, da religião e
ências estéticas, a fim de suscitar novos da imaginação – que nos dá a imagem
olhares sobre suas vidas e o meio em que das coisas, sem proporcionar a nature-
vivem (Maheirie et al., 2012). za verdadeira delas. Em contrapartida,
Vigotski (2003) caracteriza a vivência é uma filosofia da ética da alegria, da
estética como sendo resultado da combi- felicidade, da satisfação intelectual e da
nação de excitação, elaboração e respos- liberdade individual e política. Há uma
ta, como qualquer reação comum. No valorização na capacidade liberadora da
entanto as influências sensíveis podem

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razão, enfatizando que nosso intelecto
ser organizadas e construídas de modo tem a capacidade de conhecer tudo que
que um determinado recurso estético existe em nossa realidade (Chaui, 1995).
provoque nos organismos uma reação A reflexão possibilita que o intelecto
diferente da habitual, sendo que é nesse se perceba como inteligência, que nada
processo que se encontra a essência da mais é do que um ato que possui a po-
vivência estética. tência para pensar e para o verdadeiro.
A arte se configura por aquilo que A autora utiliza o termo potência a par-
ultrapassa a vida no indivíduo, produ- tir da concepção espinosona, que signifi-
zindo emoções que estruturam os pro- ca força atual (Chaui, 1995).
cessos psicológicos e criam algo novo. A Espinosa discorre sobre o termo cona-
estética relaciona-se com a vivência da tus, que é uma potência natural de auto
arte, sendo essa uma reação transforma- conservação que todos os seres possuem
dora na medida em coloca o indivíduo com o objetivo de preservarem suas
num lugar diferente do habitual provo- existências.
cando uma sensibilização que possibilita
formas inovadoras de estar na realidade Nosso ser é definido pela intensi-
e se relacionar com as coisas, objetos e dade maior ou menor da força para
situações (Vigotski, 2003). existir – no caso do corpo, da força
Dessa forma, nos encontros, as obras maior ou menor para afetar outros
de arte eram mais que disparadores de corpos e ser afetados por eles; no
tema, pois sendo consideradas instru- caso da alma, da força maior ou me-
mentos psicológicos, isso significa dizer nor para pensar. A variação da in-
que possibilitavam o desenvolvimento tensidade da potência para existir
de funções psicológicas complexas depende da qualidade de nossos

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apetites e desejos e, portanto, da ma- Assim, influenciado por Espinosa,


neira como nos relacionamos com as Vigotski constatou que “é por meio do
forças externas. (Chaui, 1995, p. 64). intelectualismo e do uso de ferramentas
Desse modo, denomina-se alegria o intelectuais (simbólicas) que a organiza-
sentimento vivenciado quando a nos- ção do comportamento humano se dá”
sa força para existir e pensar aumenta, (Chaves et al., 2012, p. 141), sendo que o
fato que acontece quando nosso desejo mesmo acontece com as emoções.
é realizado. Se esse aumento advém de O grupo de jovens possibilitou, por-
uma causa externa, o mesmo é chamado tanto, a intensificação do conatus na me-
dida em que eles viveram um processo
de amor. Caso o desejo seja frustrado,
de reconhecimento de si próprios e da
temos a tristeza e a diminuição da capa-
realidade social, econômica e cultural
cidade para existir, sendo que, se a dimi-
que estavam inseridos. Afetados pe-
nuição for efeito de uma causa externa,
las reflexões geradas nos encontros, vi-
chama-se ódio (Chaui, 1995).
mos que os jovens se empoderaram de
O conatus aumenta conforme as pai-
suas histórias e se viram como agentes
xões tristes são afastadas e as alegres,
transformadores da realidade por eles
aproximadas. Assim, a possibilidade de
vivenciada.
ação reflexiva encontra-se na afetivida-
de, que é uma parte da essência do hu-
Novos Encontros, Novas Potências:
mano, uma vez que pensamos e agimos
Algumas Cenas
conforme nossos afetos (Chaui, 1995).
É possível fazer uma aproximação Os encontros aconteciam no CRAS,
entre os pensamentos espinosanos e vi- em uma sala utilizada pela instituição
gotskianos. A noção de intelectualismo, para realizar reuniões com os grupos

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instrumentos intelectuais e determinis- que já existiam; além disso, o ambiente
mo presente na obra de Vigotski são era composto por cadeiras, uma televi-
provenientes da filosofia de Espinosa, são e um aparelho de DVD. Sentíamos
sendo que aquele utilizou os conceitos que o espaço poderia ser mais bem ex-
deste para elaborar sua concepção de plorado e que sua própria organização
que o desenvolvimento do psiquismo se contava um pouco da instituição: um
dá a partir da apropriação cultural. espaço formal e não muito convidativo.
Foi a partir dessa compreensão que A sala era um ambiente comum e nada
Vigotski desenvolveu estudos sobre as continha de diferente que pudesse cha-
funções psicológicas superiores. Elas re- mar a atenção dos jovens provocando
presentam a formação de um psiquismo neles algum tipo de sensibilidade.
mais elaborado que acontece quando a Buscamos, em alguns encontros, dar
razão domina as condições naturais, isto mais vida àquele ambiente, deixando-o
é, supera a biologia (Chaves, Maia Filho, mais aconchegante e criando um lugar
Oliveira, & Pereira Neto, 2012). que pudesse dialogar com os jovens e
Espinosa também rompeu com o du- com a proposta de desconstruirmos ver-
alismo mente-corpo presente na obra de dades absolutas e construção conjunta
Descartes e, em sem lugar, criou uma de sentidos. Com o objetivo de ouvi-los,
nova concepção que conseguiu acessar dando espaço para conversar sobre o
o real mecanismo de funcionamento das que queriam e propiciando um local
funções psicológicas. Tais funções, para onde pudessem exercitar uma liberdade
Vigotski, têm o poder de controlar as de expressão, em cada encontro reorga-
funções cognitivas humanas (Chaves et nizávamos o ambiente, ora com imagens
al., 2012). e fotografias nas paredes, ora com um

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varal de poesia ou de imagens, ora com demonstrando uma postura caracterís-


propostas de começarmos o encontro tica da sociedade contemporânea em
circulando pela sala como uma forma de que vivemos. Outros já se mostravam
darmos movimento ao ambiente. Essa mais introspectivos e que, por mais que
reorganização fazia parte de nossa pro- pensassem, não parecia ser comum o
posta de levarmos para cada encontro compartilhamento desses pensamentos.
diferentes ferramentas que suscitassem Nesse grupo, buscamos falar sobre a re-
reflexões e discussões para os jovens, lativização dos fatos, sobre os diferentes
além de tornar o espaço do CRAS um pontos de vistas que podemos ter diante
lugar possível de imaginar. das histórias e da realidade e de como
Dentre os diferentes recursos que le- isso interfere, ou até mesmo determina,
vamos, como imagens, fotografias, víde- em nossas atitudes e comportamentos.
os, músicas, livros, recortes, telas e tin- Os jovens compartilharam muito suas
tas, alguns nos chamaram atenção pelo afinidades, uma jovem gostava de dese-
maior envolvimento dos jovens. Em um nhar, outro de escrever, outra de cantar.
dos encontros, levamos como recurso es- Diante disso, perguntamos se eles fa-
tético o “Livro das Perguntas” de Pablo ziam alguma coisa que estimulasse esses
Neruda. Participaram desse grupo, pela interesses, como aulas ou oficinas. Eles
primeira vez, três irmãs que diziam jun- nos apresentaram vários impedimentos
tas não saberem o que faziam ali, que a à realização de tais atividades, dentre
mãe, de certa forma, as tinha obrigado eles a falta de informação de onde pode-
a participar. Elas afirmavam ainda que, riam potencializar essas aptidões Assim,
certamente, não iriam gostar do gru- informamos sobre as oficinas que ocor-
po, pois elas não gostavam da escola. riam nas ONGs do bairro e os orienta-

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Explicamos que o grupo não tinha ca- mos a procurá-las, ao que prontamente
ráter obrigatório e que elas eram nossas se mostraram curiosos e animados com
convidadas a participar. Apresentamos a ideia.
o livro ao grupo e começamos estimu- As três irmãs que no início do grupo
lando-o a pensar sobre as perguntas, as comentaram não gostar de estudar, ao fi-
que fazemos a nós mesmos, às outras nal do encontro falaram sobre a vontade
pessoas e no geral. Pensamos, então, de voltar à escola. Elas relataram sobre
juntos, sobre o que era pergunta, se nos a falta que a escola fazia, mostrando-se
fazíamos perguntas a nós e aos outros. mais abertas a falar e a pensar sobre o
Depois passamos o livro para que todos assunto depois das reflexões e discus-
olhassem e, em seguida, passamos um sões geradas no grupo. Elas percebe-
envelope com perguntas retiradas do li- ram que havia coisas de que gostavam
vro, em que cada um retirava uma, para na escola que eram interessantes. Vimos
então começarmos a discussão. que elas passaram a fazer um novo mo-
As perguntas despertaram vários as- vimento, colocando a escola não mais
suntos, tais como se existe uma verdade apenas no campo da obrigação, isto é,
absoluta, os diferentes pontos de vista como algo imposto e distanciado da re-
existentes; também foram feitos relatos alidade de vida delas. As possibilidades
de casos pessoais, relatos de problemas, de escreverem novas histórias de vida
houve aqueles que falaram sobre a esco- a partir das contribuições que a escola
la, sobre o pensamento e o preconceito. oferece – como conhecimento científi-
Alguns diziam não gostar de pensar, não co, reflexão do mundo e novas relações
gostar de buscar entender o porquê das interpessoais – ampliaram suas expecta-
coisas e que não costumavam fazer isso, tivas em relação àquela.

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Tal mudança na fala das irmãs e a jovens que se encontravam na praça,


vontade de todos em frequentar oficinas eles começaram a interagir, sendo pos-
de música, desenho ou alguma outra teriormente convidados a participarem
surgiram durante o encontro, a partir do dos encontros no CRAS. A aproximação
contato com o recurso estético e das dis- desses jovens sinalizou-nos a importân-
cussões no grupo. Esse fato demonstra a cia de ocuparmos os espaços do bairro,
necessidade de espaços assim, cuja me- como praças, com atividades diferen-
diação suscite a reflexão sobre a realida- ciadas para que os jovens tenham pos-
de, possibilitando ação. sibilidade de conhecer coisas diferentes
Em outro encontro, um dos jovens, das que estão habituados, expandindo
que já havia participado de outros gru- o leque de experiências, possibilitando
pos, sugeriu a praça como possível lo- transformações.
cal para nos reunirmos. Percebemos um Enquanto os jovens observavam e
envolvimento do grupo, que sentiu ne- liam o varal de poesias que havíamos
cessidade de sair do CRAS, de desinsti- montado entre duas árvores, surgiram
tucionalizar as reflexões e vivenciar o en- conversas sobre as poesias, sobre o que
contro de maneira menos formalizada. elas diziam, sobre sentimentos como
Assim, realizamos o encontro em uma tristeza, raiva, profissões, livros, músi-
praça próxima ao bairro. Encontramo- cas e sobre o que gostamos de fazer.
nos no CRAS e, como não havia praça A partir da leitura de algumas poe-
no bairro onde o CRAS estava localiza- sias que remetiam às coisas simples da
do, fomos juntos com o motorista da ins- vida, como alguns escritos de Manoel
tituição até a mais próxima, situada no de Barros, começamos a conversar so-
bairro ao lado. Ela era pequena, possuía bre isso: as coisas simples que sentía-

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uma quadra que era frequentada por jo- mos prazer em fazer no dia a dia, como
vens que jogavam futebol. Também era Marcelo, por exemplo, um jovem que
conhecida como sendo ponto de encon- escrevia e que se mostrou envolvido nos
tro para uso de drogas, como afirma- encontros, ele refletia e gostava de falar
ram os jovens do grupo que a conhe- sobre a vida, e citou como uma forma
ciam. Alguns jovens nunca haviam ido de simples prazer “andar com meias no
à praça. chão gelado”. Lucia, outra jovem envol-
Organizamos o espaço com a ajuda de vida na conversa disse: “dá até pra fazer
todos os envolvidos do grupo. Levamos poesia”.
livros, construímos um varal de poesias, Espinosa (1983) nos explica que, exis-
convidamos uma pessoa de fora que to- tindo, o sujeito dispõe seu corpo ao con-
cava violão, montamos um slackline e, ao tato com outros corpos e, nesse contato,
centro, estendemos um forro para colo- “o corpo humano é afetado pelos corpos
carmos o lanche: pipoca, suco e refrige- exteriores de um grande número de ma-
rante, fornecidos pelo CRAS, um bolo neiras” (p. 211). Cada corpo, portanto,
levado por Marcelo2 e pão de queijo le- tem sua potência
vado por Luana.
Quase todos tentaram andar no sla- aumentada ou diminuída, favore-
ckline, e isso chamou atenção dos outros cida ou entravada, assim como as
ideias dessas afecções. (...) O corpo
humano pode ser afetado de nume-
2
Todos os nomes utilizados neste artigo são fic- rosas maneiras pelas quais a sua po-
tícios e por se tratar de um relato de experiência,
temos a aquiescência da instituição e dos parti-
tência de agir é aumentada ou dimi-
cipantes sobre os registros em diário de campo e nuída; e, ainda, por outras que não
uso das falas em supervisões e publicações. aumentam nem diminuem a sua

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potência de agir. (...) As afecções, envolvido no encontro e encantado com


com efeito, são modos pelos quais o violão, um dos recursos estéticos que
as partes do corpo humano, e, con- levamos. Ele aprendeu um acorde com
sequentemente, o corpo humano, na o nosso convidado que tocava violão e
sua totalidade, é afetado. (Espinosa, se interessou em fazer aula e aprender
1983, p. 184) mais. Quando tirávamos foto, ele dizia
Nas falas de Marcelo e Lucia, desta- “só tiro se for com o violão”. Ao final do
cadas anteriormente, fica evidenciado encontro reforçou querer entrar numa
que o contato com outros corpos, que aula de música; baseado nisso e mencio-
o contato com a poesia, transforma as nando também o quanto ele gostou do
afecções em força que permite a esses encontro, disse “Foi melhor que compu-
sujeitos transcenderem as condições de tador e poucas coisas são melhores que
existência, promovida por uma reflexão computadores”.
afetiva. Já Marcelo se interessou mais pelo li-
Vemos nesses comentários dos jovens vro que levamos “Mania de Explicação”
um processo de sensibilização vivencia- de Adriana Falcão, ele, inclusive, anotou
do por eles. A poesia e a arte deixaram o nome do livro para procurar depois.
de ser algo erudito e distanciado e pas- Esses novos interesses dos jovens mos-
sou a dialogar com a realidade desses jo- tram como os recursos estéticos são po-
vens. A fala de Lucia sinaliza o quanto a tentes e que a oferta de espaços como es-
ampliação de experiência proporciona- ses se faz necessária no mundo em que
da nos encontros a partir do contato com vivemos.
os recursos estéticos provoca mudanças Os diálogos iniciados a partir dos
também na consciência, na forma de in- recursos estéticos se configuraram em

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terpretar e visualizar a realidade. Esse conversas em que foi possível conhecer
pensamento em escrever uma poesia só a realidade dos jovens e compreender as
foi possível devido aos encontros que questões que perpassam sua constitui-
tivemos anteriormente e pela própria ção. Nos diferentes encontros, surgiram
presença do varal de poesias nesse en- discussões que o próprio grupo quis
contro. O contato com poesias era uma abordar, questões referentes à família,
atividade nova para eles, bem como o etapas da vida, escola, futuro, sentimen-
contato com muitos recursos disponibi- tos e independência apareceram como
lizados, talvez menos para Marcelo que demanda deles, e nós, estagiárias, coor-
já escrevia, mas o fato de agora Lucia denávamos no sentido de mediar e pro-
pensar em escrever uma, nos permite por reflexões para além do que estava
pensar que ela foi afetada de alguma sendo dito.
forma. Diante desse processo, percebemos
No mesmo encontro, havia outro jo- que o grupo foi um espaço de troca no
vem, Antônio, que participava pela pri- qual os jovens puderam se revelar e de-
meira vez. Ele fazia parte de uma das monstrar seus interesses. Luiza, uma jo-
famílias acompanhadas pelo CRAS. Em vem de quinze anos que tinha um filho
atendimento psicossocial, sua mãe quei- pequeno, nos disse que pretendia voltar
xava-se de que ele não fazia nada além a estudar e, ainda, que gosta de cantar,
de jogar no computador, sendo desse também procurou uma ONG para reali-
atendimento com sua mãe que surgiu o zação de oficinas.
convite para o grupo. Antônio foi à pra- Durante o processo do estágio, busca-
ça nos contando que não a conhecia e mos fazer articulação com a Rede, isto é,
que não saia muito de casa. Ele parecia fazer parcerias com as escolas próximas,

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bem como ONGs e demais instituições A partir dessa experiência de reali-


voltadas à infância e adolescência, situ- zar grupos com jovens numa instituição
adas no bairro. O nosso objetivo era que municipal localizada num bairro com
os jovens conhecessem o território onde população economicamente vulnerável,
viviam e a oferta de espaços relaciona- pudemos vivenciar lugares e estar com
dos à cultura, lazer e outras possibilida- pessoas que nos possibilitaram encon-
des de aprendizagem. tros espinosanos. Não só os jovens como
Desse modo, para o último encontro, nós, estagiárias, também participamos
que também foi realizado na praça, con- de um processo de desconstrução de
vidamos um oficineiro de uma ONG do crenças acerca de quem é o jovem da pe-
bairro, para que ele pudesse apresentar riferia, o trabalho do psicólogo e a pro-
ao grupo os diferentes projetos da insti- moção de saúde no contexto da assistên-
tuição e das oficinas que ela oferecia. A cia social.
mobilização dos jovens se materializou É interessante destacar o quanto é
sobretudo nesse encontro, já que, nesse válida a criação de espaços na comuni-
mesmo dia, todos os jovens que estavam dade em que as pessoas possam falar de
presentes se interessaram e se inscreve- si, dos problemas sociais, dos enfrenta-
ram em oficinas, como a de cinema, dan- mentos e desafios cotidianos. Os diálo-
ça e música. gos são promotores de saúde na medi-
da em que dão voz e autoria à vida de
Considerações Finais muitas pessoas que são silenciadas pela
condição social que vivenciam. Vimos
Por meio dos recursos estéticos vi-
que estar com o outro de modo a ouvi-
venciamos um processo transformador.
-lo, entendendo seus pontos de vista e
O grupo com jovens se configurou como

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buscando ampliar as possibilidades de
um espaço em que poderíamos conver-
se relacionarem, é uma forma importan-
sar sobre diferentes temas de modo a le-
te de enriquecermos vínculos e propor-
gitimarmos suas queixas, mas também
cionarmos inquietações que geram inte-
propormos reflexões que os colocassem
resse em mudar e transformar a própria
numa situação de não passividade e de
realidade e/ou realidade social.
crítica em relação à realidade em que vi-
vem e as possibilidades de mudanças. Referências
Assim os jovens puderam, ao ter contato
com o recurso estético, ao refletir sobre Barros, M. (2003). Memórias inventadas -
a própria realidade e ao participar das A infância. São Paulo: Planeta.
discussões, pensar em ações que modifi- Bondía, J. L. (2002, jan./abr.). Notas so-
cassem suas vidas de alguma forma. bre a experiência e o saber de expe-
Por se tratar de um grupo aberto, sem riência. Revista Brasileira de Educação,
exigência de frequência, a cada encontro (19), 20-28. Disponível em http://
surgia a insegurança quanto à participa- www.scielo.br/pdf/rbedu/n19/
ção dos jovens, se eles compareceriam e n19a02.pdf. Acesso em 25 março 2011.
se estariam abertos para conversar. No Brasil. (2004). Política Nacional de
entanto essa dúvida foi se dissolvendo Assistência Social. Sistema Único de
à medida que os jovens começaram a Assistência Social – SUAS. Brasília:
participar semanalmente e entenderam MDS.
que aquele era um espaço deles, pensa- Conselho Federal de Psicologia. (2007).
do para e também por eles. Um reflexo Referência técnica para atuação do(a)
dessa participação foi a sugestão de rea- psicólogo(a) no CRAS/SUAS. Brasília:
lizarmos o encontro na praça. CFP.

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Recebido: 03/02/2016
Última revisão: 26/07/2016
Aceite final: 02/08/2016

Sobre os autores:
Ana Paula Alves Vieira: Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de
Uberlândia, mestranda em Psicologia na Universidade Estadual de Maringá.
E-mail: anapaulaaaa@gmail.com
Carolina Nascimento Dias: Graduada em Psicologia pela Universidade Federal
de Uberlândia, mestranda em Psicologia na Pontifícia Universidade Católica de
Campinas. Professora substituta da Escola de Educação Básica da Universidade
Federal de Uberlândia.
E-mail: carolina.ndias@gmail.com
Eliane Regina Pereira: Professora Doutora da Universidade Federal de Uberlândia.
E-mail: pereira.elianeregina@gmail.com

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