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Apresentação
Fonte: http://bit.ly/2J7kvsL.
Nesta aula e na próxima, vamos entrar em contato com o pensamento de seis culturas
diferentes. Agora vamos estudar três dessas culturas: a Nauhatl, a Maia e a Tojolabal. Na
introdução, vamos discutir sobre a possibilidade de entender esses pensamentos originários
como filosofia. Em relação ao pensamento dos Náuhatl, os pontos destacados são a existência
de sábios que questionavam acerca do destino do homem na terra e no mais além,
interrogavam também o mistério da divindade e a possibilidade de dizer palavras verdadeiras.
No que concerne aos Maias, os pensamentos dos livros Popol-vuh e do Chilam Balam insistem
na importância da experiência sensível do corpo, dos desejos, da vontade, do coração e
sentimentos, sem negar a importância do pensamento. O pensamento Tojolabal possui
conceitos provocadores para nós como: a intersubjetividade em que todos os entes tanto os
humanos como os demais seres do universo são sujeitos e assim se torna impossível a relação
sujeito x objeto. A "nosoutrificação" que é o processo pelo qual, no final, todos os indivíduos
humanos tomam consciência e se identificam como partes da comunidade nosoutros; o
antissolipsismo que é consequência direta do fato de todos os entes fazerem parte da
comunidade nosoutros - são conceitos totalmente novos e provocativos para nós.
Bons estudos!
Conteúdo
Podemos começar com a polêmica questão: Há filosofia na América Latina antes da conquista
e colonização europeia? Trata-se de um tema muito complexo e polêmico, pois, como já vimos
no capítulo anterior, há uma opinião generalizada defendendo categoricamente que, no
sentido estrito, só o Pensamento Grego é filosofia; e, se falamos de "filosofia" do Oriente, da
África e da América Latina, isso só é possível se for num sentido amplo do termo. Segundo essa
opinião, só é filosofia, de fato, o estilo grego de filosofar. Os estilos de pensar das outras
grandes culturas, contudo, são - segundo essa posição - pensamentos de grande valor;
contudo, a despeito de se poder serem chamados de Sabedoria, nunca seriam Filosofia.
Esses autores pressupõem que existe uma sequência linear: filosofia grega, medieval latina e
moderna europeia. Mas, como diz Dussel (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 17), não
é bem isso o que aconteceu historicamente, pois a Filosofia grega foi desenvolvida pelo
Império cristão Bizantino. Em seguida essa tradição foi herdada pelos árabes muçulmanos que,
para esse fim, criaram uma língua estritamente filosófica. E foi a tradução dos textos
aristotélicos e de seus comentários árabes (Avicena e Averróis) - tradução essa realizada, em
grande parte, em Córdoba, por especialistas árabes - que possibilitaram, de modo decisivo, o
auge da Filosofia Latina Medieval no século XIII.
E todas essas filosofias - ancoradas no pensamento filosófico grego – mostram que não existe
essa pretendida sequência linear da filosofia grega, pois aparecem aí diferentes estilos de
filosofar: o filósofo bizantino cristão – deixando fora questões teológicas - distinguia-se mais
por sua cultura abrangente e geral do que pelo desenvolvimento das grandes questões da
metafísica medieval latina e, por sua vez, os filósofos árabes, uns mais e outros menos, faziam
filosofia - tendo como parâmetro - as questões da religião islâmica. E, por último, também os
pensadores medievais latinos cristãos tinham um estilo próprio de fazer Filosofia: esta se torna
serva da Teologia e predomina nela o interesse por questões metafísicas e especulativas.
Assim sendo, parece que - já dentro da história do desenvolvimento do pensamento grego -
podem-se vislumbrar vários estilos de filosofar.
O que são e como se comportam as coisas reais em sua totalidade, desde os fenômenos
astronômicos até a simples queda de uma pedra ou a produção artificial do fogo? Em que
consiste o mistério de sua própria subjetividade, o eu, a interioridade humana? Como pode
pensar-se o fato da espontaneidade humana, a liberdade, o mundo ético e social? E, afinal,
como se pode interpretar o fundamento último de todo o real, do universo? – o que levanta a
pergunta sobre a questão ontológica: "Por que o ser e não mais bem o nada?"
Os mitos, que surgem em todas as culturas, diz Dussel (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ,
2009, p. 16), se constituem como uma resposta a essas questões. É o primeiro tipo racional de
interpretar a realidade existencial e o mundo dos indivíduos e da sociedade. É importante
destacar que os mitos não são irracionais, mas têm uma forma típica de racionalidade: são
narrativas simbólicas e apresentam significados universais. Esses mitos são guardados,
primeiro, na modalidade de memória oral e, depois, cerca de mil anos antes de Cristo - na
Mesopotâmia, no Egito, na América Central e em outras culturas – são preservados na
modalidade escrita. Esses mitos, interpretados pelos sábios, se tornam explicações racionais
simbólicas para responder a todos os principais problemas e questões daquelas culturas.
Nos choques culturais, esses mitos são depurados: alguns perduram, mesmo depois do
aparecimento das categorias filosóficas ou científicas e outros perdem sua força argumentativa
e, por essa razão, eles são desacreditados, como aconteceu com os mitos dos astecas que
pretendiam justificar a necessidade de sacrificar pessoas humanas para aplacar os deuses.
Mas, embora os mitos sejam tão racionais quanto a filosofia e as ciências (são discursos
diferentes porque servem a finalidades diversas), ao longo do tempo, começa-se a substituição
da linguagem mítica - de natureza simbólica e carregada de múltiplos sentidos - por um
discurso unívoco, metodicamente estruturado por categorias filosóficas que podem definir seu
conteúdo sem recorrer ao símbolo e determinar com rigor um significado preciso. Esse
fenômeno se deu em todas as grandes culturas.
Assim, a passagem do mito para a filosofia, ao mesmo tempo, significa ganho por produzir um
saber mais preciso e perda por eliminar sua sugestão de múltiplos sentidos. Mas, de qualquer
forma, parece ser o pensamento unívoco, como diz Dussel:
... um avanço da civilização importante à medida que abre novos caminhos pela possibilidade
de efetuar atos de abstração, de análise, de separação de conteúdos semânticos da coisa ou
do fenômeno observado, do discurso, e torna possível uma descrição precisa da realidade
empírica, a fim de permitir ao observador um manejo mais eficaz em vista da reprodução e
desenvolvimento da vida humana em comunidade.
Essa passagem do discurso mítico simbólico para um discurso com categorias intelectuais
unívocas aconteceu em todas as grandes culturas como, por exemplo, no Egito, com a filosofia
de Menfis; na China, a partir do livro das Mutações I ching na Índia, com os Upanishads; na
Pérsia e no Mediterrâneo oriental, a filosofia se deu entre os fenícios e os gregos; na América
Central, entre os maias e astecas; nos Andes entre os aymarás e os quéchuas que se
organizaram no Império Inca.
A Filosofia Náhuatl
É importante saber que o pensamento desse povo asteca apoia-se em fontes fidedignas e
disponíveis para todos os pesquisadores: as fontes antigas são: inscrições, representações
iconográficas, códices e outros manuscritos, anteriores à invasão europeia de 1500. Nesses
documentos, encontram-se testemunhadas sua visão de mundo e a sabedoria dos povos que
falam náhuatl na região central do México. Nesses documentos fala-se da existência de sábios
entre eles - tlamatinime (os que sabem algo)– os quais levantaram um grande número de
questões sobre a divindade, a origem, o ser e o destino do homem e do mundo, temas esses
que são fundamentais também na Filosofia grega.
Estudemos agora breve e sequencialmente estes itens da filosofia náhuatl: a antiga visão do
mundo; a sabedoria atribuída a Quetzalcóatl; ulteriores desenvolvimentos de saberes e
questionamentos de um tipo de filosofia durante os séculos XIII a XVI; e o pensamento
particular de Nezahualcóyotl (1402-1472). Seguiremos o roteiro indicado pelo especialista do
tema Miguel León-Portilla (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 21-26).
Verticalmente, o universo tem uma série de divisões superpostas acima da superfície da terra;
nesse patamar, estão os céus que, juntando-se às grandes águas que rodeiam o mundo,
formam a abóbada azul com caminhos por onde transitam o sol, a lua, as estrelas, os planetas,
os cometas e a estrela da manhã. Vêm, em seguida, os céus de várias cores; e, por fim, o mais
distante e metafísico é o céu dos deuses. Embaixo da terra, encontram-se vários pisos
inferiores por onde caminham os que morrem para chegar, no final dessas camadas, à região
dos mortos.
Quetzalcóatl, no século XIII, medita sobre essa visão do mundo e propõe uma nova concepção
do deus supremo e de uma terra de cor negra e roxa, mais além da destruição dos mundos.
Numa de suas meditações, ele se aproximou do mistério divino: "buscava um deus para si".
Concebeu a divindade como um ser, ao mesmo tempo, uno e dual, o qual deu origem a tudo o
que existe. O princípio supremo é o deus da Dualidade, dono da vizinhança e proximidade, que
age em toda parte, e, dito metaforicamente, com um rosto ao mesmo tempo masculino e
feminino.
Ele insistia que o mais importante para o homem é chegar à contemplação de Deus Dual e,
mais alto ainda, alcançar a sabedoria, a fim de compreender o verdadeiro sentido da existência
humana e do mundo. No Oriente habitava a sabedoria e, avançando por essa região de luz, era
possível superar o mundo transitório, ameaçado de destruição e morte. O homem na terra
deve imitar a sabedoria do Deus Dual ou repetir em miniatura sua ação que concebe e
engendra tudo.
Quetzalcóatl se torna um mito e inspira os povos toltecas e, muito tempo depois, os mexicas.
Estes criam uma moral rígida que todos deviam seguir para evitar o rompimento da ordem do
universo. Essa moral, em nível mais elevado, era objeto de elucubrações na escola dos sábios.
Assim, mais que crer que o destino, depois da morte, depende das ações dos seres humanos
na terra, pensava-se, como critério imanente, que quem pratica com esmero seus princípios
morais, enunciados nas antigas palavras, viveriam em paz na terra. Os que não atendessem a
esses princípios, ao contrário, deformariam seu próprio rosto e coração.
O autor do canto pergunta o que o coração pode encontrar de verdadeiramente valioso. Rosto
ou coração significa para ele "o mais íntimo do ser humano". O homem sem rumo, perdendo
seu coração, perde seu próprio ser. Na última linha do canto ele se pergunta sobre a
possibilidade de o homem encontrar, sobre essa terra, algo que satisfaça nosso coração.
À persuasão de que aqui tudo perece, acrescenta-se a dúvida do que pode acontecer no além:
No interior do céu?
Como nos adverte Portilla, "etimologicamente verdade entre os náhuas ou náhuatl era em sua
forma abstrata (neltilizili), a qualidade de estar firme, bem cimentado, ou enraizado: o
fundado". Assim se compreenderá a pergunta do texto citado "acaso são de verdade os
homens? O texto deve ser entendido assim: acaso possuem (os homens) a qualidade de ser
algo firme, bem enraizado?" (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 24). Estamos diante
de verdadeiros questionamentos que podem ser chamados filosóficos.
Existem outros sábios que têm um modo de pensar que pode ser chamado de filosófico, como
é o caso de Nezahualcóyotl. Ainda criança viu seu pai, rei de Tezcoco, sendo assassinado. Ele é
conhecido como um homem muito perseguido e cheio de infortúnios, até que, aliado com os
mexicas, conseguiu a independência de Texcoco. Seu reinado foi uma época de grande
esplendor.
Entre suas principais ideias, há o tema da fugacidade de tudo o que existe. Tudo nesta vida é
passageiro, aparece e desaparece como se exprime neste canto:
Só um pouco aqui.
Só um pouco aqui.
Se o ouro e o jade se quebram, os fracos corações, por mais nobres que forem como flores
secas se desvanecem:
Nezahualcóyotl aprofunda a questão para saber se há algum lugar onde a morte não exista:
Há incineração de gente.
Descobre o sábio que a única solução é conectar o quotidiano com o que está acima de nós,
com a região do divino. Eis o que descobre seu coração:
Escuto um canto,
se murcharem e amarelarem,
O rosto e o coração do homem, na terra, estão perto do Supremo Doador da vida, embora Ele,
para o homem, permaneça invisível:
Só lá no interior do céu
Doador de Vida!
O que determinarás?
O que determinarás?
do Doador da vida.
Em conclusão, parece que devemos concordar com Portilla ao afirmar que tanto esses textos
como muitos outros dos manuscritos existentes evidenciam que, no México originário,
houve sábios que questionavam acerca do destino do homem na terra e no mais além, o
mistério da divindade e a possibilidade de dizer palavras verdadeiras. Em seu pensamento
aflorou assim uma forma de pensamento filosófico, ao menos no nível dos pré-socráticos (não
menos que o de um Heráclito ou de um Parmênides).
(DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 26).
Portilha e eu pensamos assim, mas você como interpreta esse pensamento dos náhuas? Você
vê nele também um novo estilo de Filosofia? Ou pensa você de outro modo? Faça um pequeno
texto justificando seu posicionamento.
A Filosofia Maia
A Filosofia maia se encontra em dois livros antigos: o popol-vuh e o Chilam Balam. Comecemos
pelo estudo do Popol-vuh.
O Pensamento do Popol-vuh
O Popol-vuh, como bem explica Miguel Herniández Díaz (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ,
2009, p. 21-26), é livro da comunidade e o Popol na é a casa ou escola da comunidade para
instruir crianças e adultos; nesse lugar se discutia temas sobre a vida, o trabalho e a cultura:
era a casa em que se buscava a solução dos problemas dos indivíduos e da sociedade. Os
anciãos compartilhavam a sabedoria relacionada aos saberes sociais, políticos e culturais,
sobre as concepções de economia, matemática e calendários. Desenvolviam conhecimentos
sobre a vida e os ensinava a toda a sociedade.
Os questionamentos da filosofia maia versam sobre a criação dos mundos: acima da terra, o
terreno, o inferior à terra e o mundo dos anões que moram no Nadir. Para os maias o princípio
de todas as coisas está na divindade.
O papel de demiurgo que fabrica as coisas do mundo é reservado a duas personagens: Tepeu e
Gucumatz, tendo a seu serviço outros demiurgos inferiores; são "os fabricantes do mundo e
dos homens maias". Esses dois demiurgos são chamados "os grandes sábios entre os grandes
pensadores".
Esses dois pensadores entravam de acordo e juntos pensavam e meditavam sobre o que iriam
fazer; contudo, não fabricavam as coisas com as mãos, mas sim com palavras. Pronunciavam
as palavras e as coisas correspondentes passavam a existir. Assim produziram a vida, a terra, a
luz, o amanhecer e o anoitecer. Esses obreiros agiam obedecendo ao ente divino:
Faça-se assim! Que se encha o vazio! Que esta água se retire e desocupe o espaço, que surja a
terra e que se torne firme! Assim disseram. Que fique claro, que amanheça no céu e na terra!
Não haverá glória nem grandeza em nossa criação e formação até que não exista a criatura
humana, o homem formado.
Sem demora a terra foi criada por eles. Assim foi, em verdade, como se fez a criação da terra.
Terra! Disseram e, no mesmo instante, ela foi feita.
Depois do Popol-vuh, devemos comentar a outra obra o Chilam Balam, que tem um sentido,
ao mesmo tempo, histórico e profético. Chilam é o título que se oferecia à classe dos sábios,
que interpretavam os livros e a vontade dos deuses.
O maia considera que primeiro se deve existir para poder enfrentar o mundo. Ele se considera
como parte do mundo, por nele habitar. Reflete fazendo interrogações: Quem sou eu? De
onde venho? Para onde vou? Qual é a causa de minha existência? Por que nosso corpo é
anterior ao pensamento do mundo? Que estou fazendo nesse sítio sagrado? A matéria, ao
realizar uma ação transcendente (a ação física na busca do bem), está no primeiro plano. É o
corpo que realiza toda atividade importante e mental com a qual reflete sobre suas atividades
psicossomáticas que se localizam no entendimento a fim de poder entender sua própria
conduta e a dos outros, inclusive nossos comportamentos comuns e compartilhados. Aliás, a
maneira de ser desse povo é viver sempre em comunidade, em comum acordo,
compartilhando as necessidades.
Se não existisse corpo, quem poderia pensar? O pensamento é causado pela existência, pois
que é originado pelos órgãos do corpo, e por meio da mente, propicia a razão. Como afirma
Hernández Diaz:
Se o maia infere primeiro a existência e em seguida o pensamento, é por sua natureza de ser
nativo; por antonomásia diz e compreende o mundo com o afã de preservar as diferenças do
sentir e da razão para expor melhor seu rosto ou personalidade baseada na categoria Moral.
O pensamento parte do sujeito humano, mas todas as coisas da natureza têm coração (o que
lhes dá existência e valor das categorias entre as coisas do mundo), e que têm - como ele - o
caráter de sujeito, embora se situem em outro estado de vida, compartilham da sensibilidade
da vida, da alegria e tristeza, quando estão em pleno vigor. "A presença da natureza em seu
pensamento tem a categoria de sujeito por extrair seu próprio ser." (DUSSEL; MENDIETA;
BOHÓRQUEZ, 2009, p.30) As coisas feitas por ele, contudo, perdem sua qualidade de sujeito e
são apenas objetos. Essas coisas feitas por um mortal passam automaticamente à existência
material como objetos, os quais estão sem o "on" (coração), sem alma, como o bastão de um
ancião.
As coisas da natureza, porém, por serem sujeitos, têm coração o qual lhes outorga
sensibilidade, pensamento sobre si mesmas e sobre as coisas do mundo. Assim, o pensamento
maia foi posto por um jech-o stuk (Ser Absoluto) para compreender as coisas do mundo. O
pensamento prospera a partir dele, pois desenvolve os conhecimentos a partir de sua
consistência. Por exemplo, o teto da casa (trotzil) se diz em maia sjol na (sua cabeça da casa),
graças a ele tem cabeça; brinda a imagem de sua cabeça para pensar a casa.
Ainda com esses atributos de existir e de ostentar-se ao mundo a fim de acumular seus
conhecimentos, ele verá as coisas que lhe causam sensibilidade de vida, e desenvolverá o
sentir para identificá-los como meios de compreensão. O pensar das coisas é atingir o fim
daquilo que são. Tais são os diversos modos de reflexão sobre o mundo em que vive o povo
maia. A maneira de sentir consiste em existir para perceber as coisas em seu entendimento e
determiná-las por sua vontade. (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 30)
Por isso, o maia deve estar presente para poder sentir e imaginar o que são as paixões e
inclusive para conceber coisas puramente mentais.
Essas são maneiras diferentes de apreciar, desejar, repelir aversão, assegurar, negar e duvidar:
pois são modos diferentes de compreender as coisas. Em sentido complexo, essa é uma
representação mental que se apóia nos sentidos. Podemos fazer as perguntas mais profundas
sobre o mundo: Como pensas em teu ser? De onde tiras o saber sobre a vida? Como se dá a
instrução para gerar a sabedoria?
Mas, além disso, o pensamento maia sempre recorre a dois elementos fundamentais: o rosto e
o coração. Por isso, continua o autor dizendo:
Assim mesmo, o maia para poder compreender melhor uma situação e a solução em seu
círculo social e em sua relação com o Ser absoluto, tem que expressar suas ideias através de
yutsilal xcholobil (a metáfora). Por exemplo, o rosto do indivíduo é a personalidade moral
plasmada em sua vocação; e essa é a própria personalidade que atua e comove o mundo. Essa
é uma expressão ética.
Essa expressão ética - em que todo seu ser (emoções, desejos, sentimentos, rosto, corpo,
vontade, coração e pensamento) participa – torna quase impossível ao maia não dizer a
verdade, não dizer como ele percebe a realidade. A consciência moral e a expressão corporal
tornam difícil enganar e mentir, pois
... o coração intervém na expressão profunda e na agudeza de sua fala. Manifesta com
profundidade esse algo que diz com empenho. Com o gesto de seu rosto enfatiza a verdade do
que expressa. Assim o rosto e o coração se ligam intimamente na formação maia. Quando se
exibe a personalidade originária, o ser da vida digna, terá que relacionar-se com o coração
para mostrar o verdadeiro rosto. Quer dizer, ambos os aspectos se conjugam para mostrar a
personalidade moral em seu ser com quem se relaciona nos diálogos e no labor que
desempenha para viver com sentido.
A metáfora do falar mostra que nem tudo fica submetido ao entendimento. O maia vive uma
integração profunda com a natureza e consigo mesmo. Inteligência, vontade, desejos,
emoções, coração rosto são uma só coisa no processo de dizer a palavra verdadeira. Nesse
sentido, a filosofia, desse povo originário está no lado oposto do dualismo da filosofia de
Platão. O corpo, os sentimentos, rosto, o coração, as emoções são tão importantes quanto o
pensamento, a reflexão e o espírito.
Enfim, estamos diante de uma concepção do ser humano e do universo totalmente diferente
da concepção do homem, natureza e pensamento do europeu que os dominaram. As coisas da
natureza também são sujeitos como os humanos, embora em outro estádio. Mas, sendo
assim, o homem não pode objetivá-las; deve respeitá-las e preservá-las à medida do possível.
Só pode tornar objetos coisas que o homem mesmo faz.
E o que dizer do modo como o pensamento se dá na cultura maia? Ele nasce a partir da
existência e experiência sensível do corpo, do desejo, vontade, coração e sentimentos; é o
oposto do modo de ver do pensamento platônico, pois para este pensar provém de uma razão
e alma que excluem toda forma de experiência sensível e o coração para a elaboração da
verdade absoluta. Penso que o filósofo tem muito a aprender com o povo maia. Ela deixa
muito a pensar.
A Filosofia Tojolabal
O povo tojolabal é um entre os diferentes povos maias. Eles habitam no Sudeste do México.
Esse povo vive nessas terras há muitos séculos antes da conquista europeia. A cultura deles
contrasta fortemente com a dos europeus que invadiram a América com crueldade, no século
XVI, dizimando-os ou tornando-os seus escravos, além de eliminar sua cultura e impor–lhes a
europeia. Os espanhóis tinham uma cultura hierárquica e autoritária; os tojolabais, ao
contrário, se organizavam horizontalmente, pois para eles Nosoutros é sua categoria
fundamental: isso significa que eles não têm nem reis nem chefes, tampouco caudilhos,
caciques ou mandões. O poder é exercido pelo Nosoutros (comunidade); por isso não se
encontra nas mãos de uma minoria, mas é exercido pela comunidade Nosoutros em que todos
são responsáveis pelas decisões que se fazem necessárias.
A Noção de "Nosoutros"
Como para eles tudo tem vida, esse termo tojolabal – nosoutros - compreende não só a
sociedade humana, mas todos os entes do cosmo. Os humanos, assim, são apenas uma das
diferentes espécies de entes entre uma quantidade inumerável de outros seres vivos que se
deve respeitar e aprender a conviver com eles sem nunca tratá-los como objetos. Assim, nossa
relação com a natureza não é de dominação, mas sim respeito e convivência, pois, na verdade,
a natureza é nossa Mãe, que nos dá a vida e nos mantém com vida. E as coisas que nos cercam
não são objetos, mas sujeitos. Lendersdorf nos dá outro exemplo que esclarece melhor a
questão do nosoutros:
É preciso salientar um terceiro aspecto dessa frase tojolabal, com implicações importantes
para a Filosofia: a intersubjetividade. Nas proposições dos idiomas europeus, há o sujeito que
age e o objeto que sofre a ação. Em tojolabal ao contrário,
... os dois sujeitos, que se complementam, mostram que sempre ambos são ativos e passivos
um em relação ao outro. Aquele que fala escuta aquele que ouve e aquele que ouve escuta ao
que fala. Se não se der essa dupla ação com duplo sentido, ainda que se diga mil palavras, só
se dizem "abobrinhas"". O escutar é um elemento fundamental da comunicação e,
certamente, da língua.
O autor observa ainda que – como no Ocidente só se ensina línguas escritas e não se estuda as
que se ouve (as faladas), temos graves problemas para escutar. Em geral todos nós somos
péssimos ouvintes A razão é que não se ensina a escutar. Nesse contexto é importante saber
que os tojolobais têm dois termos diferentes para indicar ruma língua/palavra falada (kumal) e
escutada (abal). Lekensdorf diz que os tojolabais se chamam a si mesmos "os que sabem
escutar bem". Aquele que escuta presta atenção no outro para aprender dele. "Assim se forma
um nosoutros entre os dois, aquele que fala e aquele que escuta ... Ao escutar o outro, o
respeitamos como o igual de quem podemos aprender o que nos diz" (DUSSEL; MENDIETA;
BOHÓRQUEZ, 2009, p. 34).
Aquele a quem escutamos não pode ser nosso inimigo. Por isso, pode-se compreender por que
os tojolabais não têm a palavra que corresponda à inimigo, porque sabem escutar. A
convivência de quinhentos anos com os ocidentais, contudo, lhes ensinou quem são os
inimigos.
Para os tojolabais tudo vive e, por isso, o milharal fica triste quando não o visitamos
diariamente. [...] As casas também vivem. Por isso as casas não só são o reflexo do gosto de
quem a mandou construir, mas, por sua vez, formam seus habitantes. [...] Dito de outro modo,
a partir da perspectiva tojolabal e com base em que todos os seres vivem, as casas não são
montes de pedras mortas, mas sim formadoras de nossos corpos, as quais, por outra parte,
nosoutros temos edificado. Em que espécie de casa viveis? interpelam-nos sempre os
tojolabais.
Assim, a categoria Nosoutros nivela, com equidade e justiça, todas as relações sociais, não
distinguindo os de cima e os de baixo; e elimina o desejo individualista de ser o primeiro ou o
melhor. A educação é o processo de nosoutrificação em que todos aprendem a repartir seus
conhecimentos e sua sabedoria.
Ao ser examinado na escola, os alunos se reúnem para avaliarem todos juntos, porque a
solução de qualquer problema se alcança com o consenso e intervenção de todo mundo, o que
pressupõe que todos entendem o problema.
Por isso, eles rechaçam o solipsismo, o egoísmo, a competência, seja de um partido, de uma
autoridade, de uma só semente ou de um só cultivo e também de um só deus. Por isso uma
mulher jovem disse: "Veja, agora querem ensinar-nos que todo o mundo foi feito por um só,
quem pode crer nesses contos?", e o disse depois de 500 anos de evangelização e presença da
civilização ocidental.
Nós, os brancos da cultura ocidental filosófico-cristã somos insensíveis a esses gritos abafados
desse povo originário da América Latina. Torna-se urgente aprender a escutar o outro,
sobretudo o oprimido.
O saber escutar que preserva a alteridade do outro e mostra o que Lévinas também defende: o
outro sempre é um mestre para quem escuta; e o fato de que tudo vive e nós somos apenas
um tipo de entes viventes - são teses que chocam os homens da cultura europeia e é uma das
razões principais de os povos originários não serem apreciados pelos conquistadores e até
hoje pelo poder hegemônico de nossa América Latina.
Certamente essa cultura tojolabal, ela nos interpela e nos propõe a transformar em
profundidade não só nossas relações com os seres humanas, mas também com todos os
demais entes de nosso universo. Com os tojolabais temos muito a aprender, sobretudo a
escutar o outro, pois, se realmente escutamos os outros, isso implica ter desenvolvido uma
profunda atitude ética de respeito a sua alteridade, de acolhimento do outro como nosso
mestre, no dizer de Lévinas.
Finalizando...
Acabamos de estudar o pensamento das culturas originárias dos Náuhatl, Maias e Tojolabais.
São marcantes os seguintes pontos: os Náuhatas, mediante os questionamentos de
Quetzalcóatl e de Nezahualcóyatl, nos Cantares mexicanos, se perguntam sobre o sentido da
existência humana nesse mundo e se existe para nós vida no além. Também se questionam
sobre o mistério do divino e qual o sentido dele para nós, e ainda como é possível ao homem
dizer a verdade. Os Maias, por sua vez, nos falam a partir de seus dois livros Popol-vuh e
Chilam Balam sobre sua concepção de que a natureza não pode ser objetivada, pois ela
também é subjetiva, falamos de um pensamento que só recebe sentido a partir da experiência
sensível do corpo, dos desejos, dos sentimentos, do coração e vontade.
Os Tojolabais, enfim, nos acordam sobre a importância de escutar os outros, a
intersubjetividade que não se restringe aos humanos, mas se estende a todos os entes
naturais e divinos, tornado, dessa forma, a relação sujeito x objeto impossível, porque só há
relações entre sujeitos os quais nunca podem ser considerados objetos. Importância capital
tem para eles a noção de nosoutros, que pressupõe que nenhum indivíduo existe
separadamente da comunidade de qual faz parte. Não aceitam também qualquer forma de
solipsismo, pois tudo o que o indivíduo pensa ou faz é obra também de toda comunidade.
Saiba Mais
Para ampliar seu conhecimento a respeito dos temas tratados nesta aula, veja abaixo a(s)
sugestão(ões) do professor:
Leia o livro “La Filosofia Náhuatl estudiada em sus fuentes” de Miguel León-Portilla.
Referências
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