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61 Revista de Economia Política e História Econômica, número 10, dezembro de 2007

Caio Prado Júnior como matriz de uma história


ambiental

Dora Shellard Corrêa44

As políticas públicas pela preservação e conservação


do meio ambiente no Brasil têm gerado uma tensão muito
grande entre ambientalistas, agentes do Estado e índios. São
vários os casos de sobreposição de Unidades de Conservação
e terras indígenas, especialmente na Amazônia legal. A visão
de uma parte dos agentes do Estado é que existem áreas
quase intocadas45 no território nacional, ocupadas por grupos
indígenas Acreditam que estes podem comprometê-las
ambientalmente, seja em razão de suas formas tradicionais de
sobrevivência, seja em conseqüência do assédio de
empresários interessados na extração de madeira ou de
minérios. Tal postura decorre, entre outros aspectos, da
percepção de que as sociedades originais desta porção da
América pouco transformavam o meio natural. Pressupõem
que a valorização dessas terras pelo trabalho humano, a sua
colonização, efetivou-se somente com a chegada do
europeu, a partir do século XV. Tal postura significa afirmar a
incipiência das culturas indígenas. A partir da noção de que
existem terras virgens e de que os índios são tecnicamente e
intelectualmente despreparados para preservá-las no mundo
moderno, busca-se, pela implantação de áreas protegidas
legalmente, normatizar as formas de exploração desses locais.

44Texto apresentado na XXIV Semana de História da UNESP-Assis – Pensando o Brasil


no centenário de Caio Prado Júnior. Outubro de 2007. Doutora em História
Econômica pela Universidade de São Paulo. É professora e pesquisadora do
UNIFIEO – Centro Universitário Unifieo.
45 Sobre a crítica à concepção de que existem áreas intocadas no Brasil, vide:

DIEGUES, A. Carlos Sant’Ana. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo:


Núcleo de apoio á pesquisa sobre populações humanas e áreas úmidas brasileiras
– USP, 1994.
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Tal ação pode comprometer a sobrevivência das
comunidades que os habitam.46
Julgamos que essas representações sobre os índios e
suas terras têm uma grande força porque é referendada pela
escola e pelos livros didáticos. Faz parte de nosso imaginário
que o espaço que viria a formar o Brasil singularizava-se, antes
da colonização portuguesa, pelas matas a perder de vista,
pelas águas boas, pelo clima ameno e por sua gente
inocente que não plantava, não criava animais e vivia
escondida nas matas. Essa visão edênica comum aos
cronistas dos primeiros séculos da colonização - a começar
por Pero Vaz de Caminha47 - é reproduzida ainda hoje, apesar
do desvelamento do que ela encobre estar sendo divulgado
desde a publicação de Visão do Paraíso por Sérgio Buarque
de Holanda em 1958.
As pesquisas recentes na área de História indígena vêm
mostrando que a ausência dos índios na História do Brasil é
resultado48 do que podemos ver como uma
“indisponibilidade” dos historiadores em percebê-los, em
questionar a documentação a seu respeito. A
“disponibilidade” ou “indisponibilidade”, segundo Agnes
Heller, é determinada pela visão de mundo. Esta “induz-nos a

46 Sobre a sobreposição de terras indígenas e unidades de conservação, foi


publicado um livro com artigos de geógrafos, antropólogos, biólogos,
ambientalistas e políticos discutindo as várias faces do problema. Vide: RICARDO,
Fany (Org.). Terras indígenas & Unidades de conservação da natureza. O desafio
das sobreposições. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2004.
47 Sobre os índios Caminha escreveu:“Parece-me gente de tal inocência (...)Eles

não lavram, nem criam”, e sobre a terra: “Pelo sertão nos pareceu, vista do mar,
muito grande, porque a estender olhos, não podíamos ver senão terra com
arvoredos, que nos parecia muito longa (...) é de muito bons ares, assim frios e
temperados (...) Águas são muitas; infinitas”. PEREIRA, Paulo Ribeiro (Org.). Os três
únicos testemunhos do descobrimento do Brasil. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999.
48 Tem crescido na ultima década o número de estudos em história indígena, os

quais têm mostrado que a documentação existente permite que se discuta o índio
na história do Brasil. Uma importante obra é: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.).
História dos índios no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1992.
John Manuel Monteiro possui um site onde expõe uma bibliografia extensa sobre
história indígena, assim como disponibiliza integralmente alguns desses estudos.
Vide: www.ifch.unicamp.br/ihb.
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ver aquilo que não tinha sido visto antes, ainda que estivesse
presente, e nos leva a procurar uma mensagem – um tipo
específico de mensagem”. 49
A historiografia brasileira tratou a noção de paisagem,
definindo-a como o reflexo das formas de apropriação e
exploração da terra. Esses intelectuais construíram os cenários
que representavam o Brasil-colônia a partir do que foi
visualizado pelos cronistas, padres, viajantes, soldados e
sertanistas, assim como pelo que imaginaram analisando
dados sobre a estrutura agrária. Em sua maioria, aqueles que
se preocuparam com o cenário geográfico, pano de fundo
de suas argumentações, foram pesquisadores ligados à
história da agricultura e à econômica.50 Lembremos o nome
de Caio Prado Júnior, Alice Canabrava, Maria Yeda Linhares e
Maria Thereza Petrone, entre outros. As matrizes dessas
narrativas são Capistrano de Abreu e, especialmente, Caio
Prado Júnior. Centrados, como ensinou este ultimo, nos fatos e
dados que revelavam o fundamental e permanente, ou seja,
o “sentido” dessa história, os historiadores despreocuparam-se
com a presença do índio; em conseqüência, deixaram de
refletir sobre as representações que envolviam essas
sociedades, suas terras e paisagens.
A representação sobre como era a paisagem ao longo
dos três séculos da colonização portuguesa do que viria a
formar o Brasil induz a um imaginário sobre o período pré-
cabralino e foi fixada por Caio Prado Júnior. Em 1942, o
historiador paulista publicou Formação do Brasil

49 Agnes Heller aponta três estágios ligados à reconstrução dos eventos históricos:
recepção de mensagens, interpretação delas e atribuição de significado. A visão
de mundo antecede a recepção da mensagem é constitui a própria
“disponibilidade para a mensagem”. Vide: HELLER, Agnes. Uma teoria da História.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993. p. 175.
50 Sobre os historiadores que se debruçaram sobre o meio ambiente vide: CORRÊA,

Dora Shellard. História e meio ambiente. Revista Unifieo. Osasco, ano I, no 1, junho
de 1999, p. 135-144.
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contemporâneo e desenvolveu, partindo de Capistrano de
Abreu, o que se tornou um modelo de descrição da
paisagem. Narrou o avanço irregular e vagaroso do
povoamento europeu a partir da costa, embaraçado pelos
índios e, principalmente, pela geografia do continente.
Construiu um cenário, localizando o narrador na marinha, de
costas para o mar, mirando as terras apropriadas e exploradas
pelos colonos, numa perspectiva de quem acompanha a
fronteira econômica. Além desta, como toda porção do
continente ocupada pelas sociedades indígenas, as terras
foram definidas como “trópicos brutos e indevassos (...)
entregues ao livre jogo da natureza”.51 Dentro da abordagem
a que se propôs e da tese que defendeu, avançar além
daquele limite seria irrelevante. Esse retrato físico do Brasil foi
reproduzido não só em textos, mas figurativamente também.
Aroldo de Azevedo, na década de 60, produziu três mapas
que sintetizavam visualmente esse quadro exposto, o que
ajudou a difusão do modelo. Posteriormente, essas cartas
geográficas foram reproduzidas na coleção História da
Civilização Brasileira, dirigida por Sérgio Buarque de Holanda e
mais recentemente na História da Vida Privada, no volume
sobre o Brasil-colônia, organizado por Laura de Mello e Souza
e no livro História do Brasil de Boris Fausto.52
Nesta comunicação, nós propomos rever Formação do
Brasil contemporâneo como um exercício de reflexão sobre o
modelo de descrição proposto. Num primeiro momento,

51 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. Colônia, 14ª. ed. São
Paulo: Brasiliense, 1976. p. 27.
52 AZEVEDO, Aroldo de. Terra brasileira. São Paulo: Companhia Editora Nacional,

1963
HOLANDA, Sérgio Buarque de (Dir.). História geral da civilização brasileira. I Época
colonial. 2. Administração, economia, sociedade. 7ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand
do Brasil, 1993.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 1994.
SOUZA, Laura de Mello e (Org.). História da vida privada no Brasil. Cotidiano e vida
privada na América portuguesa. V. 1. São Paulo: Cia das Letras, 1997.
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recuperaremos os aspectos teórico-metodológicos que


informam sobre a seleção, organização e análise das fontes.
E, num segundo, apresentaremos e discutiremos as descrições
dos cenários geográficos. Esse livro é considerado o mais
importante entre todos que escreveu. Centramo-nos nele pois,
embora Caio Prado Júnior discuta as formas de exploração
dos recursos naturais e os impactos sobre o meio geográfico
em outras obras, foi em Formação que construiu o modelo de
descrição da paisagem.
O estudo dos textos de Caio Prado Júnior sempre foi
imprescindível e continua sendo nesta época em que muitas
decisões relativas ao meio ambiente são tomadas partindo,
consciente ou inconscientemente, de uma visão sobre a
formação do Brasil estabelecida em suas obras. Foi um dos
intelectuais sobre o qual mais se produziu. Sua trajetória de
vida, seu projeto político, seus livros, foram investigados, assim
como polemizou-se sobre sua interpretação marxista da
História do Brasil e sobre algumas de suas teses. 53 Contudo,
apesar de ser notório o seu interesse e envolvimento com a
Geografia, poucos se aprofundaram na análise da sua
reflexão sobre o meio ambiente. O intelectual paulista foi um
dos fundadores da revista Geografia na década de 1930 e
amigo de geógrafos franceses que vieram lecionar na recém

53 Caberia mencionar alguns livros e tese sobre Caio Prado Júnior recentemente

publicados:
IUMATTI, Paulo Teixeira. Caio Prado Júnior: uma trajetória intelectual. São Paulo:
Brasiliense, 2007.
RÊGO, Rubem Murilo Leão. Sentimento do Brasil. Caio Prado – Continuidades e
mudanças no desenvolvimento da sociedade brasileira. Campinas: Unicamp, 2000.
MARTINEZ, Paulo. A dinâmica de um pensamento crítico: Caio Prado Júnior (1928-
1935). Tese (Doutorado em História) – Departamento de História da FFLCH da
Universidade de São Paulo, São Paulo.
RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil. São
Paulo: Fapesp; Editora 34, 2000.
Não tão recente, mas significativa foi a obra publicada em homenagem ao
historiador, contendo depoimentos e análises de intelectuais sobre a sua vida e
produção: D’INCAO, M. Angela (Org). História e Ideal. Ensaios sobre Caio Prado
Júnior. São Paulo: Brasiliense, 1989.
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criada Universidade de São Paulo - Pierre Defontaines e Pierre
Monbeig.
A sua importância para a historiografia brasileira é
inquestionável como mostra a constatação feita por Stuart
Schwartz:
“Desde a década de 1930, e por cerca de meio
século, um único paradigma dominou as
interpretações históricas do Brasil colonial, tornado-
se quase universalmente aceite por indivíduos
portadores de posições políticas e de
metodologias de investigação amplamente
distintas. Este paradigma perspectiva o Brasil no
quadro da expansão européia e do
desenvolvimento precoce do capital comercial
(ainda que não necessariamente do capitalismo)
português. O Brasil era visto como um grande
empreendimento colonial, baseado na
escravatura africana e na exploração dos recursos
locais e dos povos indígenas para benefício
exclusivo da metrópole, Portugal”.54

A tese proposta por Caio Prado Júnior de que “sentido


da colonização” do território que viria a constituir o Brasil era a
exploração de seus recursos naturais em benefício da
metrópole e de que esse traço marcou o Brasil até a
contemporaneidade apresenta-se ainda quase como um
axioma. Mesmo aqueles que o criticam não conseguem fugir
a essa como a outras concepções que elucida em seus
estudos. Lembra Gildo Marçal Brandão que: “muitos de seus
conceitos, hipóteses e resultados, revolucionários a seu tempo,
foram incorporados à “ciência normal” e integrados ao nosso
universo mental”.55
Em Formação do Brasil Contemporâneo, não só
apresenta uma interpretação do Brasil, inovadora na época,
como expõe um método de abordagem pouco conhecido

54 SCHWARTZ, Stuart B. Depois da dependência: caminhos novos da historiografia

brasileira. In: _______________. Da América portuguesa ao Brasil. Estudos Históricos.


Algès: Difel, 2003. p.273-304. p. 274.
55 BRANDÃO, Gildo Marçal. Prefácio. In: RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr. e a

nacionalização do marxismo, p. 13.


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pela historiografia nacional coetânea. Tanto um como o outro


ainda se constituem em pontos de partida para estudos
atuais.
O sentido da colonização, como aponta Fernando
Novais, é a categoria explicativa básica, utilizada por Caio
Prado Júnior nessa obra. Ela estabelece o nexo entre todas as
partes do livro: “Essa categoria que explica os vários
segmentos (...) ao mesmo tempo, que por eles se explica (...)
Recortando o objeto, a análise desdobra-se, portanto, em dois
movimentos: da aparência para a essência, e da essência
para a realidade”. 56 Nos três capítulos da publicação –
povoamento, vida material, vida social – Caio Prado retoma a
tese inicial apresentada na parte introdutória – o sentido da
colonização - e demonstra a sua pertinência através da
narração minuciosa dos dados empíricos.
Caio Prado Júnior criticou os estudos factualistas, que
desprezavam a seleção de dados, deixando de discriminar o
que era secundário do “conjunto dos fatos e acontecimentos
essenciais” que tornavam a evolução inteligível. Firmou que os
acontecimentos e fatos são partes incompletas de um todo. É
este, o todo, que o historiador deve buscar. Explicou Fernando
Novais que: “A localização do fenômeno na totalidade de
que faz parte, situando os seus nexos, permitiria a apreensão
das categorias a partir das quais a reconstrução inteligível se
torna uma possibilidade”.57
Continuando numa explanação didática de seu
método, Caio Prado Júnior fixou o final do século XVIII e início
do XIX como o momento que sintetizava o Brasil-colônia e
marcava, por outro lado, o início de nova fase. Ressaltou que,

56 NOVAIS, Fernando. Aproximações. Estudos de história e historiografia. São Paulo:


Cosacnaify , 2005. p. 286.
57 NOVAIS, Fernando. Aproximações, p. 288.
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até o século XX, persistiam elementos daquela realidade
colonial que impediam que transformações se completassem.
Em 1942, afirmava que o novo “processo histórico se dilata, se
arrasta até hoje. E ainda não chegou ao seu termo”. 58
Esse local privilegiado de onde interpretou a História do
Brasil assim como a sua determinação em buscar a essência
do processo e esquivar-se dos detalhes e minúcias precisou os
testemunhos pesquisados. A maior parte dos documentos
sobre os quais se debruçou era constituída por narrativas
gerais sobre o Brasil - relatórios, crônicas e relatos de viagens -
escritas no final do século XVIII e século XIX.
A partir dessas constatações, devemos analisar as
inferências que Caio Prado Júnior faz sobre o meio ambiente.
As paisagens que descreveu constituíam-se em partes desse
todo que era o Brasil-colônia. Peças que nos informavam
sobre o sentido da colonização: “explorar os recursos naturais
de um território virgem em proveito do comércio europeu”.59
O método de abordagem também é reproduzido no esboço
do cenário geográfico. Contudo, suas descrições da
paisagem revelam mais. Apresentam paradigmas comuns à
intelectualidade da primeira metade do século XX, a
interpretações politicamente diversas, com a de Capistrano
de Abreu em Capítulos de História Colonial. A concepção de
que havia uma ordenação entre as culturas ou formações
econômico-sociais levou tanto o paulista quanto o cearense a
desconsiderar a ação dos índios sobre a natureza. Ambos
pressupunham que a sua interferência sobre o meio era
mínima e localizada. Essa visão interferiu na seleção de dados
e nas questões que fizeram às fontes.

58 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação, 10.


59 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação, p. 31.
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O modelo caiopradiano de descrição da paisagem é


demonstrado de forma clara em Formação do Brasil
Contemporâneo. O relato foi formulado a partir da costa e
acompanha o avanço da colonização terra adentro. Reflete
a descrição das fontes utilizadas, cientistas e viajantes do final
do século XVIII e do século XIX e alguns poucos cronistas dos
séculos anteriores. Estes visualizaram o Brasil a partir da costa,
das terras colonizadas por onde viajaram ou onde viviam.
Perambularam especialmente por caminhos já há muito
trilhados, seguros de ataques indígenas. Penetraram o interior
dominado pelas comunidades indígenas, os sertões, mas
cruzando locais já em processo de apossamento pela
sociedade colonial e, depois de 1822, nacional.
Como indicamos, a descrição da paisagem em
Formação do Brasil Contemporâneo estancou nos limites da
área colonizada, tomada pelas sesmarias, estradas, cidades e
vilas. O sertão foi desprezado. Quanto à área colonizada, o
panorama traçado era o de espaços onde a colonização se
encontrava consolidada. Os usos pretéritos ou mesmo a
incorporação de indícios de ocupações anteriores foi
descartada, dando a sensação de que o cenário foi todo
substituído. Embora tenha apontado que o índio estabelecera
a ligação entre planície litorânea e o planalto, no caso de São
Paulo, afirmou que os colonos que devassaram o território,
avançando e expandindo essas trilhas e dando-lhes um uso
menos localizado.
No artigo O fator geográfico na formação e no
desenvolvimento da cidade de São Paulo, publicado em
1935, 60 Caio Prado Júnior defendeu a tese de que as

60 PRADO JÚNIOR, Caio. O fator geográfico na formação e no desenvolvimento da

cidade de São Paulo. In: __________________. Evolução política do Brasil e outros


estudos. 9ª. ed. São Paulo: Brasiliense, 1975.
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condições geográficas de São Paulo - centro de vias naturais
de comunicação, proximidade com o litoral - foram
fundamentais para a sua futura evolução como um dos
centros mais importantes de Brasil e da América Latina.
Indicou que já era um local utilizado pelos índios. Entretanto,
apesar de admitir uma anterioridade indígena, asseverou que
os campos do planalto paulistano, os chamados campos de
Piratininga, resultavam de um fenômeno natural,
desconsiderando a possibilidade de terem sido conseqüência
de ocupações sucessivas. Escreveu que: “Os campos de
Piratininga eram muito conhecidos pelos índios antes da
chegada dos portugueses e abrigavam numerosas tribos suas.
Constituía assim, por uma verdadeira destinação física, o
papel de condensador demográfico (...) Não só a clareira de
Piratininga é a primeira zona de campo primitivo e original
com que se depara ao penetrar o planalto pelo caminho do
mar”. 61 Porém, descarta a possibilidade de que a utilização
de uma infra-estrutura criada pelos índios possa ter tido
qualquer interferência na colonização, como mostra a
passagem a seguir A importância dos índios estava no
trabalho que poderiam executar para os colonos e não no
que haviam construído no passado. Nesse sentido declara:
“São as numerosas tribos indígenas aí estabelecidas e que
apresentam aos colonos um farto abastecedouro de mão-de-
obra”.62 Esse relato acaba induzindo a imagem de que os
índios pouco interferiam no meio ambiente e, portanto, que
inexistia uma paisagem indígena.

A concepção geral de que os índios eram defasados


em termos sócio-econômicos em relação aos colonos - reflexo
do pressuposto de que existia uma ordenação entre as

17 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação, p. 96 e 97.


62 PRADO JÚNIOR, Caio. O fator geográfico, p. 94.
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formações econômico-sociais - determinou a sua descrição


da paisagem. Conforme informa Caio Prado Júnior, antes da
chegada dos portugueses, esta porção do continente
americano caracterizava-se por uma natureza bruta,
indevassada. Era habitada por grupos indígenas isolados uns
dos outros. As culturas mais desenvolvidas dominavam os
campos, as áreas abertas: “Não é sem razão que nas zonas
tropicais a floresta aparece não raro como refúgio de
populações inferiores, expulsas por outras mais fortes e
superiores das regiões menos desfavorecidas”.63 As mais
rústicas escondiam-se nas matas. A interferência humana na
natureza era pontual. Suas descrições sugerem, pelas
ausências, que considerava os espaços ocupados pelos índios
como a-históricos e destituídos de uma dinâmica que pudesse
interferir nos rumos da colonização.

Segundo sua descrição estas terras eram ocupadas


por uma rala população indígena que vivia isolada e
espalhada e que, pouco interferia no meio natural. Assim esta
parte do continente era quase que um deserto demográfico e
cultural: “Os problemas de novo sistema de colonização,
envolvendo a ocupação de territórios quase desertos e
primitivos, terão feição variada”64
Tanto a postura teórico-metodológica, formulada no
capítulo inicial de Formação do Brasil contemporâneo, quanto
a paradigmática explicam por que Caio Prado Júnior
acompanha, em sua descrição da paisagem, o avanço da
fronteira da colonização, sem nunca extrapolá-la. Retratar o
sertão, buscar dados sobre ele significaria desviar-se do que
era o movimento essencial. O que determinou a formação do
Brasil e o que viabilizou o entendimento dos rumos de sua

63 PRADO JÚNIOR, Caio. O fator geográfico, p. 243.


64 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação, p. 25.
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evolução foram as atividades e a sociedade organizadas
para atender o mercado exportador. Já, os índios, por
representarem cultura e sociedade primitiva em relação aos
colonos, estavam fadados a desaparecer, seja sucumbindo
fisicamente em razão da violência do processo de
colonização, seja integrando-se à sociedade colonial.
Para Caio Prado Júnior, essas terras ocupadas pelos
índios era o espaço não incorporado e integrado à economia
mercantilista; portanto, fora de seu controle. Contudo, um
espaço a ser absorvido e transformado em razão da lógica da
História. Também, para uma historiografia que possuía um
projeto político diverso daquele expresso na narrativa de Caio
Prado Júnior, o sertão estava fadado a desaparecer. Tanto
numa interpretação como na outra, para a criação de um
estado nacional, a integração do sertão era importante. Nas
duas interpretações, a destruição do sertão é positivada.

Por fim, quando Caio Prado Júnior monta seu cenário, a


paisagem do Brasil-colônia - apoiando-se principalmente
numa documentação do início do século XIX, de viajantes e
cientistas, além de alguns poucos cronistas - instiga a que se
conceba o sertão como um espaço com uma evolução
linear. O que se encontra, no início do século XIX, conforme
sua exposição sintetiza os três séculos de colonização.
Entretanto, embora a síntese não seja a soma das partes, a
caracterização das terras ocupadas pelos índios como virgens
e os índios como culturalmente defasados leva o leitor a
concluir que, ao longo desses três primeiros séculos da
colonização, não houve transformações sociais e paisagísticas
nas terras além da fronteira da colonização.

Alguns historiadores que se apropriam das descrições de


Caio Prado Júnior não se dão conta de que ele está
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descrevendo o que é a síntese de três séculos de colonização


e, portanto, não deve ser pensado como uma reprodução do
existente no século XVI e XVII. Esse caminho - centrar-se no
resultado do processo para explicitar a realidade e alertar
sobre o que efetivamente mudou e o que ainda se
conservava - foi suficiente para interpretar os rumos da
formação político-econômica do Brasil e fornecer ferramentas
para pensar a transformação. Mas, com a fragmentação dos
movimentos sociais em reação crítica às identidades, sejam
de classe, sejam étnicas ou de gênero, mostra-se como
insuficiente para recuperarmos os processos de domínio
dessas terras e o que representou em termos de
transformação da paisagem, expressão das formas de
apropriação e exploração dos recursos naturais.

Hoje em dia, quando levantamos a bandeira verde65 e


nos apoiamos em Caio Prado Júnior para estudar a
exploração do meio ambiente no período colonial ou
nacional, é imperioso que tenhamos consciência de que as
suas paisagens falam mais do que somente sobre árvores, rios
e animais. A crítica a esta parte de sua obra não nega a sua
importância política e muito menos a desqualifica
metodologicamente. Contudo, mostra que algumas noções
que permeiam o trabalho historiográfico não se resumem a
uma única teoria explicativa: respondem também a princípios
orientadores aceitos “pela totalidade da comunidade
científica de um período ou de outros subseqüentes”. 66

65 Bandeira verde é uma alusão ao artigo em que Agnes Heller discute e distingue,
quanto a valores predominantes, os movimentos sociais da década de 60 e de 80.
Enquanto os primeiros lutavam pela liberdade e levantavam a bandeira vermelha,
os outros lutavam pela vida, representada pela cor verde do movimento
ambientalista. Ela conclui afirmando que devemos lutar pela vida, mas com
liberdade. Vide: HELLER, Agnes. From red to green. Telos. New York, no 59, p. 35-44,
1984.
66HELLER, Agnes. Uma teoria … p. 218.
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Os problemas que colocamos quanto à utilização do
modelo de descrição proposto por Caio Prado Júnior é que,
se, especialmente nas décadas de 1960 e 1970, ele foi uma
importante ferramenta para pensar o Brasil, hoje se apresenta
como um entrave ao debate sobre conservação do meio
ambiente e justiça social. É a crença do que existiam terras
virgens no Brasil que suporta e dá força à concepção de que
ainda existem áreas com pouca ou nenhuma interferência
cultural na natureza. E que as áreas naturais são territórios
inexplorados e apropriados culturalmente pelos homens. É a
partir dessas concepções que se tem tomado decisões que
têm representado a desapropriação ou adaptação cultural
de parcelas da população brasileira.

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