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DOI: 10.4025/actascihumansoc.v31i1.

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Marx e as noções de progresso, liberdade e sujeito na história

Jadir Antunes

Programa de Pós-graduação em Filosofia, Centro de Ciências Humanas e Sociais,


Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Rua Faculdade, 645, 85800-000,
Toledo, Paraná, Brasil. E-mail: jdiant@yahoo.com.br

Acta Scientiarum. Human and Social Sciences Maringá, v. 31, n. 1, p. 000-000, 2009
2 Antunes

ABSTRACT. Marx’s notions of progress, liberty and subject


in History. The purpose of this article is to show, from the
philosophical and dialectical conception of Karl Marx, how the
notions of progress, liberty and subject have been developed
throughout Western History. According to Marx, those notions
arose together with the private appropriation of Nature that
began with the dissolution of the so-called primitive community
and the emergence of ancient slavery. These notions continued
to develop along the European Middle Ages and reached their
peak with the appearance of the wage worker imposed by
modern capitalism. The article also aims to show the difference
between Marx’s materialistic conception and Hegel’s
teleological conception (which reflects about History in terms of
a great theodicy moving towards liberty and rationality) and the
ways by which Marx inverted this mystified conception of
History.
Key words: philosophy of history, progress, liberty, subject,
Hegel, Marx.

RESUMO. Este artigo tem por objetivo mostrar, a partir da


concepção de Karl Marx, como se desenvolveram as noções
de progresso, liberdade e sujeito ao longo da história ocidental.
Segundo Marx, essas noções surgiram juntamente com a
apropriação privada da Natureza, a partir da dissolução da
chamada comunidade primitiva e da emergência da escravidão
antiga. Essas noções continuaram a se desenvolver ao longo
da Idade Média europeia e atingiram seu auge com o
aparecimento do trabalhador assalariado posto pelo capitalismo
moderno. O artigo pretende, ainda, mostrar a diferença entre a
concepção materialista de Marx e a concepção teleológica de
Hegel – que pensa a história como uma grande teodiceia rumo
à liberdade e à racionalidade – e em que sentido Marx teria
invertido esta concepção mistificada da história.
Palavras-chave: filosofia da história, progresso, liberdade,
sujeito, Hegel, Marx.

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DOI: 10.4025/actascihumansoc.v31i1.3112
Introdução Hegel, surgiu com os orientais. Aí, que diante de Deus e da Lei
pela primeira vez, os homens consideram todos os homens iguais –,
Segundo Hegel, a partir do
descobriram que eram dotados da essa contradição seria finalmente
cristianismo e da revolução burguesa
substância da liberdade e da resolvida. Com eles, todos os homens
dos séculos XVII-XIX, os homens
racionalidade. Contudo, descobriram poderiam se reconhecer e existir
teriam sido postos pela primeira vez
que apenas um era livre: o déspota e enquanto livres, racionais e iguais
na história enquanto homens
chefe do Estado. Já com a civilização (HEGEL, 1953). A história estaria
verdadeiramente livres e universais.
greco-romana, os homens assim, segundo Hegel, desde o
Hegel saudou a Revolução Francesa
descobriram que não apenas um era começo determinada a seguir seu
como a prova de que o homem
livre, mas alguns, os cidadãos telos em direção à liberdade e à
finalmente se teria emancipado das
membros da Pólis. Com a civilização racionalidade agora vividas pela
forças do reino natural e se convertido
germano-cristã os homens finalmente modernidade.
efetivamente em ser livre e racional.
se descobriram, em sua totalidade, Pensamos, seguindo a concepção
Hegel descreve a história universal
(Weltgeschichte) na forma de uma como verdadeiramente livres e de Hyppolite (1995), que a questão do
racionais. fim da inadequação entre Espírito
série de etapas pela qual o Espírito
O curso racional da história para Absoluto e Espírito do Povo e o
Absoluto, em seu insaciável processo
Hegel aparece, assim, na forma de problema da reconciliação perfeita
de autorreconhecimento, buscaria
uma grande teodiceia e como a entre ambos na Idade Moderna não
realizar sua liberdade e racionalidade.
história da solução de uma podem ser considerados plenamente
Os homens, afirma ele, são livres e
contradição. No princípio da história, resolvidos no sistema de Hegel. De
racionais por natureza. No entanto, o
os homens surgem na figura de acordo com Hypollite (1995, p. 110),
reconhecimento dessa verdade para
homens potencialmente livres e “subsiste no seu pensamento uma
todo o gênero humano somente se
racionais, entretanto, não reconhecem ambigüidade. É que a reconciliação
teria convertido em realidade com o
ainda essa natureza e por isso não do espírito subjetivo e do espírito
cristianismo e a modernidade
existem enquanto tais. No princípio da objetivo, síntese suprema do sistema,
burguesa. No seu estado natural, o
história humana haveria, portanto, não é talvez integralmente realizável”.
homem, mergulhado ainda na
uma contradição entre ser e Para Marx, ao contrário de Hegel, a
escuridão dos instintos, não
existência. Se, por um lado, o homem história – como procuraremos mostrar
reconhecia sua natureza espiritual e
é livre e racional por natureza, por neste artigo – teria seguido um curso
livre. O primeiro estágio na história
outro, não existe enquanto tal. A partir absolutamente distinto e oposto.
desse reconhecimento, segundo
do cristianismo e da Idade Moderna – Enquanto para Hegel a história
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universal seria a história que separam dela e caem na processo de trabalho foram
solucionaria a contradição originária desumanidade e na animalidade. convertidos em propriedade do não-
entre ser e existência humana, para Se o capital na sociedade burguesa trabalhador. Para que o capitalista
Marx a história universal seria a desenvolve as forças produtivas em possa converter dinheiro em capital e
história que estabeleceria e níveis nunca antes imaginados pela daí extrair mais dinheiro é
desenvolveria, sem resolver, a humanidade, se ele domina as forças fundamental que o trabalhador exista
contradição entre indivíduo e gênero da Natureza como nenhuma outra enquanto trabalhador livre. Mas
humano e entre este e a Natureza. A sociedade jamais dominou, a mesma trabalhador livre para Marx é
história universal para Marx não força social que produz essa riqueza, trabalhador destituído de todos os
seguiria um telos pré-determinado. a classe trabalhadora, porém, meios objetivos de realização de sua
Para ele, a história humana fundaria e embota-se e definha espiritualmente, humanidade enquanto trabalhador.
desenvolveria ao grau mais absoluto permanecendo alienada do desfrute Como os meios objetivos de
de oposição a contradição no interior da mesma riqueza que produz. O realização do trabalho se converteram
do próprio gênero humano, a desenvolvimento e refinamento da ao longo do processo histórico em
oposição entre indivíduo e gênero e a dominação do homem sobre o próprio propriedade do não-trabalhador, do
oposição entre gênero e Natureza. homem atingiram tal grau de burguês na sociedade capitalista, o
Quanto mais a história se desenvolve, irracionalidade no mundo moderno trabalhador somente poderá realizar
mais se desenvolve com ela o gênero que, conforme dizia Marx (1989, p. sua capacidade abstrata para o
humano e sua capacidade produtiva, 189), ao descrever o processo de trabalho em trabalho efetivo alienando
científica e espiritual, isto é, mais exploração nas manufaturas inglesas sua personalidade e seu tempo de
progridem as forças produtivas do século XIX, “Dante sentiria [...] vida ao capitalista.
dirigidas para dominar e transformar a [suas] fantasias mais cruéis sobre o
Natureza. Contudo, quanto mais o inferno ultrapassadas”. A entidade comunitária primitiva
domínio humano sobre a Natureza se A liberdade posta pela sociedade Para Marx, nas primeiras formas de
desenvolve, mais se desenvolve ao capitalista seria uma falsa liberdade, comunidade, chamadas de
seu lado a contradição entre produção segundo Marx, pois seria uma comunidade primitiva
social e apropriação privada da liberdade puramente formal e (Urgemeinschaften), o trabalhador
riqueza. Quanto mais o gênero abstrata. O trabalhador aparece na surgia integrado tanto com a Natureza
humano desenvolve as potências para figura de homem livre no mercado de quanto com a própria entidade
o trabalho, mais aqueles que trabalho unicamente porque antes comunitária (Gemeinwesen). Na
produzem diretamente a riqueza se todos os meios objetivos para o
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comunidade primitiva, ele estava existência objetiva, independente do indissociável da Natureza e da
integrado à Natureza e se relacionava trabalho [...]e se comporta consigo entidade comunitária, o trabalhador
com ela como quem se relacionava mesmo como proprietário, como possuía uma existência segura. Esta
com parte de seu próprio organismo senhor das condições de sua existência determinada e completa,
vital, porque na comunidade primitiva realidade” (MARX, 1986, p. 433). Na porém, começaria a desaparecer e
o trabalho, a atividade que media o comunidade primitiva – onde não adotar uma forma abstrata,
metabolismo entre ele e a Natureza, existia ainda a propriedade privada da fragmentada e unilateral à medida que
estava posto em um baixo nível de terra e das condições objetivas para o o trabalhador começasse sua lenta
desenvolvimento. Enquanto a divisão trabalho e a Natureza ainda não tinha separação tanto da Natureza quanto
social do trabalho no interior da sido convertida em propriedade da comunidade humana. Na
comunidade primitiva se encontrava somente de parte da comunidade, comunidade primitiva não existia
pouco desenvolvida e o trabalhador mas existia enquanto propriedade propriamente indivíduo e, com ele, a
se relacionava com a Natureza coletiva dela – o trabalhador se liberdade subjetiva dos modernos, já
mediado por instrumentos comportava com os outros membros que não existia apropriação privada
rudimentares de trabalho, enquanto a da comunidade como quem se da Natureza. “O pôr o indivíduo como
Natureza ainda não havia sido relacionava com sócios proprietários trabalhador em sua nudez [isto é,
convertida em propriedade privada e da Natureza. Nesse estágio, ele como elemento separado da
separada de parte da comunidade, o encontrava todas as garantias para propriedade dos meios de produção
trabalhador individual existia, por isso, uma existência objetiva e segura e J.A] é em si mesmo um produto
em suas múltiplas dimensões. cada membro individual se apropriava histórico”, argumenta Marx (1986, p.
Com a baixa divisão social do das forças da Natureza apenas na 434). O indivíduo e a liberdade de
trabalho e a rudimentar medida em que era membro da iniciativa começavam sua história no
especialização dos ofícios na comunidade. Fora da entidade momento em que iniciava a
comunidade primitiva, o trabalhador comunitária não haveria liberdade e separação do trabalhador direto da
permanecia ainda proprietário das existência individual, e dentro dela o propriedade das condições objetivas
condições naturais do trabalho: da indivíduo seria um produto de menor para o trabalho.
Natureza enquanto despensa farta de importância. Por condições objetivas de trabalho
meios de subsistência e dos Enquanto esteve preso nesse Marx entende todo o conjunto de
instrumentos de trabalho. Aqui, o estágio, a entidade comunitária condições necessárias para o
trabalhador, colado ainda aos meios garantia a cada indivíduo uma processo de trabalho, tais como a
de produção e da Natureza “tem uma existência objetiva. Como membro terra (a Natureza), o fundo de
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consumo ou de subsistência, os seu lado, seria lentamente convertido ainda se convertera em propriedade
instrumentos de trabalho e transporte, em sujeito despojado da propriedade do déspota. O déspota, na figura de
os meios de produção e circulação da de todas as condições objetivas de chefe maior do Estado que flutua
riqueza etc., exceto a força viva do existência. Estas, a partir de então, já sobre todas as cabeças da nação, era
trabalhador. Esta, o próprio como propriedade privada do não- senhor absoluto não apenas da
trabalhador, Marx concebe como trabalhador, opor-se-iam ao Natureza, mas também dos homens.
condição subjetiva para o trabalho. Na trabalhador como objetos de No Oriente Antigo, segundo nos
comunidade primitiva, tanto as exploração e dominação. ensina Hegel (1953), apenas um
condições subjetivas, o próprio homem era livre: o chefe do Estado.
trabalhador, quanto as condições A dissolução da comunidade O segundo estágio histórico pós-
objetivas estavam ainda coladas uma originária: o mundo antigo comunidade primitiva foi o estágio
na outra. O processo histórico que Conforme relatamos acima, o greco-romano. Nele a propriedade da
separaria o homem da Natureza e o primeiro estágio histórico que se terra já aparece como propriedade de
indivíduo da comunidade humana iniciou após a dissolução da homens individuais, ainda que uma
seria o mesmo processo que comunidade primitiva foi o inaugurado parte da terra, o ager publicus, ou
separaria o trabalhador, força pelos orientais. No Oriente Antigo, o seja, a parte da Natureza destinada
subjetiva de trabalho, da propriedade, trabalhador não aparece mais como ao usufruto comum continue
do conjunto das condições objetivas proprietário natural da terra. Assim, o pertencendo à comunidade, isto é, à
para o processo de produção. Posta déspota, pairando acima de todas as Polis. Entre os gregos não apenas a
essa separação no tempo, o membro pequenas entidades comunitárias, Natureza fora convertida em objeto de
da entidade comunitária começaria aparece enquanto único proprietário desfrute para o homem privado como,
sua lenta transformação em indivíduo da Natureza e o trabalhador enquanto também, o próprio trabalhador. No
subjetivo completamente destituído de mero possuidor dela. No Oriente Oriente Antigo, a terra e mesmo o
objetividade e segurança. Antigo, o déspota, enquanto pai das trabalhador pertenciam ao Estado. Na
Destruída a unidade originária muitas entidades comunitárias, Grécia, ambos já começam a
contida na entidade comunitária, o outorgava ao indivíduo o usufruto da pertencer a indivíduos privados. Será
homem iniciaria seu lento processo de terra por meio da comunidade tribal. O entre os gregos que, pela primeira vez
subjetivação. A partir daí, a Natureza trabalhador não apenas perdera a na história humana, tanto a Natureza
seria lentamente convertida em propriedade da terra, possuindo quanto o trabalhador serão
propriedade privada do não- apenas sua posse temporária, como convertidos em propriedade e fonte de
trabalhador, e o trabalhador direto, por enriquecimento privado. Entre eles, o
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trabalhador escravo se diferenciava livre separada do trabalho diretamente oposição, vivendo como escrava e
dos animais de tração apenas porque manual e se apropriando em benefício formando o polo oposto da
era um instrumentum vocale de próprio da Natureza e do espólio de comunidade. Separação e oposição
trabalho, isto é, um instrumento de guerra. Para que o indivíduo pudesse da comunidade humana, porque
trabalho que falava. existir enquanto livre era fundamental, enquanto os gregos e os romanos se
Entre os antigos, contudo, a no entanto, que pertencesse à dedicavam, na condição de homens
apropriação privada da Natureza e do entidade comunitária. Fora da livres, às atividades mais espirituais
trabalhador como escravo – seja ele comunidade, ele não possuía nenhum tais como a filosofia, a arte, a religião
apropriado por meio do comércio, da direito como homem. Entre gregos e e a política e, ainda, à guerra, o
caça ou da guerra – continuava sendo romanos antigos era fundamental que escravo capturado se dedicava
mediada pela intervenção da entidade o membro da comunidade possuísse exclusivamente ao trabalho
comunitária – pela Polis, no caso dos laços de sangue com os diretamente manual. Enquanto numa
gregos, ou pelo Estado, no caso dos antepassados da entidade tribal para ponta do processo o homem greco-
romanos. Entre eles, todo indivíduo que pudesse desfrutar do espólio de romano iniciava seu caminho em
era considerado cidadão apenas na guerra e existir enquanto homem livre, direção à liberdade, na outra ponta a
medida em que era membro da na figura de cidadão e proprietário de imensa camada de escravos se
entidade comunitária e enquanto escravos, separado do trabalho desumanizava e se destruía
membro dela tinha direito ao espólio diretamente manual e vivendo rapidamente, empregada na forma de
conquistado na guerra – esteja este exclusivamente para o trabalho não- animal de tração no processo de
espólio na forma de riquezas material. trabalho manual. Enquanto entre
materiais ou na forma de escravos Com os gregos e os romanos, o gregos e romanos uma parte dos
capturados em luta contra as gênero humano, pela primeira vez, homens se libertava da necessidade
comunidades inimigas. Por isso, entre elevar-se-ia efetivamente sobre a de prover diariamente a própria
eles, acentua Marx (1986, p. 437), Natureza e colocá-la-ia existência material, elevando-se
“segue sendo pressuposto para a verdadeiramente enquanto objeto de acima dessa necessidade e
apropriação do solo o ser membro da sua ação e reflexão. Contudo, desenvolvendo sua parte subjetiva e
comunidade [...] e enquanto membro enquanto com eles parte da espiritual, outra parte era posta a
da comunidade, o indivíduo é humanidade se elevava acima da viver, como escrava e elemento
proprietário privado”. Entre gregos e Natureza e passava a existir na figura objetivo do trabalho, abaixo do nível
romanos do mundo antigo, parte da de homem livre, outra parte iniciava das condições animais.
comunidade já existia como sua parte seu processo de separação e Garlan (1991) considera que na
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Grécia Antiga haveria dois tipos constituía antes de tudo um objeto de A idade média europeia
fundamentais de escravidão: a propriedade e era a este título O segundo estágio de
escravidão-comunitária e a transmissível como qualquer bem desenvolvimento da história ocidental
escravidão-mercadoria. A escravidão- móvel” (GARLAN, 1984, p. 54). Esse corresponde à etapa feudal. Na Idade
comunitária seria aquela presente, escravo-mercadoria era “desprovido Média europeia, o trabalhador
entre outras cidades, em Esparta e de toda personalidade jurídica”
continuava separado da propriedade
caracterizar-se-ia pela escravidão das (GARLAN, 1984, p. 55). Até mesmo da Natureza e da comunidade
comunidades originais pelas sua prole era adicionada, como coisa, humana do mesmo modo que no
comunidades invasoras. Os hilotas, entre os bens de propriedade do escravismo antigo. No feudalismo, o
por sua condição de propriedades do senhor. Conforme Gustave Glotz servo-de-gleba continuava a fazer
Estado, estariam, assim, nessa (1920, p. 235), o escravo grego “não parte, como os animais de tração, das
condição de escravos públicos para tem família. Se dois escravos habitam condições objetivas de trabalho. O
uso coletivo da entidade comunitária um mesmo espaço, esta união trabalhador direto não era mais que
invasora. A escravidão-mercadoria tolerada não constitui casamento. A
simples apêndice da terra, e a
seria aquela tipicamente ocidental e sua progenitura não passa de crias de separação e a oposição entre
teria surgido especialmente da guerra rebanho que pertencem inteiramente desenvolvimento espiritual do gênero
e da pilhagem contra povos ao senhor da mãe”. humano numa ponta e embotamento
estrangeiros, ou seja, da escravidão Nessa contradição entre liberdade e estupidez mental na outra
de povos não-helenos. Depois de subjetiva numa ponta – ainda que em prosseguiram o seu curso.
desenraizados de seu solo original e processo de formação – e escravidão De acordo com Charles Parain,
trazidos como escravos para Atenas, e embotamento espiritual na outra, o citado por Jaime Pinsky (1979, p. 76),
principalmente, esses indivíduos eram homem, enquanto gênero, elevar-se-
no feudalismo, os trabalhadores têm
postos à venda para cidadãos ia pela primeira vez acima da direito apenas ao usufruto e à
particulares. Uma vez convertidos em Natureza e vislumbrá-la-ia como ocupação da terra e não à sua
escravos, “eram em seguida tratados objeto a ser dominado e desenvolvido. propriedade. Embora a propriedade
como objeto de propriedade Assim, para Marx, já no começo da não pertença a um único senhor
desprovido de qualquer direito e história, a comunidade humana diretamente, acaba pertencendo a
mesmo de toda proteção, a não ser a desenvolver-se-ia na mesma medida uma hierarquia de senhores que
que seu senhor, em interesse próprio, que a maior parte dela cairia na mais possui o direito de arrecadar tributos
lhe assegurava”, relata Garlan (1991, absoluta barbárie e empobrecimento.
sobre seu arrendamento. As relações
p. 76). “O escravo ateniense
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de trabalho são, assim, menos servos, argumenta Pirenne, recai a Uma grande parte do
relações de propriedade e mais de mais absoluta autoridade do senhor. campesinato, senão a maioria, diz
dependência e subordinação pessoal. Nos mansus indominicatus “até a Duby, eram coloni cultivando as
No feudalismo, relata Parain, citado pessoa pertencia ao senhor”, afirma terras pertencentes a outrem.
por Jaime Pinsky (1979, p. 76), “não ele (PIRENNE, 1968, p. 68). Na Embora fossem formalmente
há ‘escravidão’ (propriamente da prática e independentemente de suas livres, na realidade eram
pessoa), mas ‘servidão’ (vínculo do diferentes denominações, estas prisioneiros duma vasta gama de
camponês com o seu amo – homo pessoas, de acordo com Duby (1980, serviços obrigatórios que
proprius – e, mais tarde com sua p. 44), limitavam seriamente a sua
exploração – adscribus glebae)”. independência. Ainda nos séculos
pertenciam totalmente ao senhor
De acordo com Georges Duby VII e VIII, a linha entre a liberdade
desde o nascimento até a morte e
(1980, p. 43-44), todas as fontes e formas atenuadas de
os filhos de uma escrava viveriam,
escritas que teriam chegado até os escravatura tornou-se cada vez
em princípio, na mesma sujeição
historiadores do século XX mais confusa e as circunstâncias
que a mãe. Nada possuíam de
preparavam o caminho do seu
revelam a existência na Europa seu. Eram instrumentos,
desaparecimento gradual.
dos séculos VII e VIII de grande ferramentas vivas que o dono
número de homens e mulheres podia usar como se lhe No século XII, relata Duby (1980, p.
que são denominados em latim aprouvesse, mantendo-os se 229), essas relações já estavam mais
por servi e ancillae, ou assim o desejasse, pelos quais amenas e o camponês desfrutava de
designados pelo substantivo era responsável perante os certos privilégios – como o de
neutro mancipia, que exprime tribunais, que podia castigar como constituir família e ser dono de sua
ainda mais vivamente o seu melhor achasse, que podia vender prole – negados em séculos
estado de coisas e não de ou dar. anteriores. Contudo, ele ainda
pessoas. continuava sendo explorado e
Segundo Duby (1980, pp. 45 a 48),
Os servi de que fala Duby parecem dominado pelos senhores da terra.
mesmo os camponeses livres desse
“Durante a explosão econômica deste
equivaler ao que Henri Pirenne (1968) período, os chamados colonos,
chama de servi-quotidiani ou período, os trabalhadores
estavam submetidos a uma vasta
mancipia, ou seja, ao ‘servo dominial’ conseguiram de fato maior liberdade
série de obrigações e compromissos
de ação, mas os seus senhores
pertencente aos domínios de uso que não podiam romper sem serem
exclusivo do senhor. Sobre esses rigidamente castigados.
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continuaram a apropriar-se da maior massa camponesa estava reduzida ao escravo no mundo antigo–, ele,
parte dos bens que produziam”. mínimo vital”. A Igreja, o alto clero contudo, continuava existindo como
Se, na Idade Média, o servo-de- pelo menos, por seu lado, vivia na simples instrumento objetivo de
gleba não era mais propriedade de fartura. A própria Igreja gastava uma trabalho destinado a alimentar seus
um dono particular, se não era mais parte das suas riquezas em luxo [...] senhores; neste aspecto, portanto,
uma mercadoria que podia ser com a ornamentação das igrejas e não se diferenciava dos animais de
alienada livremente no mercado pelo com a pompa litúrgica”. A nobreza, tração com os quais arava a terra.
senhor de escravos, ele estava, por sua vez, gastava a riqueza que No Oriente Antigo, apesar de
porém, preso ao lote de terra e não ela conquistara sem trabalhar, assim separado da propriedade da terra, o
podia separar-se dele sem o como a Igreja, em atividades trabalhador não estava ainda
consentimento do senhor feudal. improdutivas que apenas consumiam separado da sua posse, que lhe era
Como apêndice inseparável da terra, o trabalho produzido pelo camponês. anualmente outorgada pelo déspota e
caso o servo fugisse e migrasse para “A dignidade e a honra dos senhores chefe do Estado. Assim, ele não
outro lote e se colocasse a serviço de consistiam em gastar sem fazer estava ainda inteiramente separado
outro senhor feudal, seu primeiro contas: o consumo e o esbanjamento dos meios de subsistência e dos
senhor tinha o direito de caçá-lo e [...] absorviam quase a totalidade dos instrumentos de trabalho. Na Grécia e
castigá-lo penosamente por ter seus rendimentos”. Obrigado a Roma Antiga, apesar de o trabalhador
infringido a relação de compromisso e produzir a riqueza consumida pela ser concebido como um instrumento
servidão que havia contraído. classe dos senhores feudais, o servo objetivo de trabalho semelhante aos
Liberdade e subjetividade eram vivia, por isso, fixado na terra sem animais de tração, ele não estava, do
aspectos inteiramente estranhos ao dela poder sair. mesmo modo que os animais,
servo-de-gleba. Na Idade Média, A Idade Média, assim, libertaria o separado dos meios de subsistência
liberdade subjetiva e desenvolvimento trabalhador da antiga escravidão diários necessários para manter um
das potencialidades espirituais do direta somente para convertê-lo em homem vivo. Como propriedade do
gênero humano eram elementos apêndice inalienável da terra. Se o patrão, o trabalhador recebia
usufruídos exclusivamente pela classe servo-de-gleba agora usufruía a diariamente certa dose de ração
dos senhores feudais. liberdade de constituir família – suficiente para mantê-lo apto para o
Segundo Jacques Le Goff (1983, p. apesar de ser obrigado a pagar uma trabalho braçal. Na Idade Média, o
275), na Idade Média, pelos altos taxa para ganhar a autorização do servo-de-gleba, como apêndice
tributos pagos à nobreza e pelos senhor – e ser dono de sua própria inalienável da terra, não estava
dízimos recolhidos pela Igreja, “a prole – liberdade ausente para o também inteiramente separado das
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condições objetivas para o trabalho. trabalhador existe no capitalismo, tão preso à relação de submissão
Se não era proprietário do lote que então, na forma de trabalhador livre. com seus patrões quanto estiveram
trabalhava, era, porém, proprietário Dado que o trabalhador agora não no passado o escravo e o servo-de-
dos instrumentos simples de trabalho existe mais enquanto propriedade do gleba. Se o trabalhador não encontrar
e dos meios de subsistência diários Estado, como o aldeão oriental ou os um patrão disposto a comprar sua
necessários para manterem vivos ele hilotas de Esparta, ou enquanto força de trabalho, ele será, então,
e sua família. Em todas essas formas propriedade de um patrão particular, posto para fora da comunidade pela
de trabalho, o trabalhador, por não como o escravo antigo; dado que ele força das novas relações de
estar ainda inteiramente separado das não pertence mais à terra e nem está produção. Se porventura ele encontrar
condições objetivas para o trabalho, subordinado a um senhor algum, terá de se submeter, porém,
possuía certa base objetiva de diretamente, como no feudalismo; ao seu despotismo no interior da
existência e realizava, mesmo que em dado que ele agora não aparece fábrica e trabalhar para enriquecê-lo.
condição escrava ou semiescrava, preso a nenhuma forma de escravidão Com o olhar preso nas alturas da
sua humanidade enquanto antiga, o trabalhador aparentará, religião cristã e das constituições
trabalhador. então, ser tão livre quanto seu patrão. modernas – que diante de si
A modernidade burguesa aparentará, consideram todos os homens
A modernidade burguesa assim, como apontou Hegel, ser igualmente livres e racionais –, Hegel
Na sociedade capitalista, contudo, mesmo o Éden da liberdade e da perdia de vista as diferenças reais
diferentemente de todas essas igualdade humana. Porém, se o entre servos e proletários contidas
formações sociais anteriores, o trabalhador agora não está mais nas relações ordinárias e materiais de
trabalhador está absolutamente preso a nenhum patrão particular, produção.
separado de todos os elementos como estava o escravo antigo, e Se o trabalhador agora tem uma
objetivos para o processo de trabalho, obrigado a se submeter a seu existência livre, ele existe, todavia,
sejam estes elementos a terra, os domínio, na sociedade capitalista ele enquanto sujeito abstrato destituído
meios de subsistência e os meios e será prisioneiro do conjunto da classe de toda objetividade e realidade.
instrumentos de trabalho e circulação dos patrões. Como agora o Como os meios objetivos para a
da riqueza. Como sujeito trabalhador vive da venda cotidiana realização de sua humanidade estão
absolutamente separado dessas de sua força de trabalho e como esta concentrados nas mãos do capitalista,
condições objetivas de existência e venda somente poderá ser realizada para quem esses meios são meios de
realização de sua humanidade, o caso encontre um patrão disposto a exploração e enriquecimento privado,
empregá-lo, o trabalhador continuará na sociedade capitalista o trabalhador
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só poderá realizar sua humanidade, moralmente pela legislação das poderia desenvolver suas habilidades
enquanto trabalhador, alienando sua cidades, que o cidadão e potências para o trabalho de modo
vontade na vontade do capitalista. desenvolvesse suas habilidades determinado e limitado. O regime das
Contudo, enquanto a vontade do manuais para o trabalho. Entre gregos corporações proibia violentamente
trabalhador será de trabalhar e e romanos antigos, o trabalho que um mestre artesão migrasse
produzir riqueza para si e para a diretamente manual era concebido livremente de um ramo da produção
comunidade, a vontade do capitalista como atividade própria de homens de para outro. Caso ocorresse uma
será de pôr o trabalhador para raça inferior. Ao cidadão e membro da mudança de ocupação sem o
trabalhar durante o maior tempo e comunidade cabia unicamente o consentimento da corporação, o
intensidade possíveis para daí extrair exercício das atividades propriamente mestre-artesão poderia ser
o máximo de sobretrabalho na forma espirituais, tais como a filosofia, a severamente punido e perder o direito
de dinheiro. religião, a arte e a política e, ainda, a de exercer livremente sua profissão.
Na concepção de Marx, em todos guerra. O trabalho diretamente braçal Em todas as sociedades pré-
os modos de produção pré- estava condenado a ser realizado capitalistas, segundo Marx, o
capitalistas, o trabalhador individual pelo trabalhador escravo, geralmente trabalhador individual era impedido de
existia sempre como potência limitada membro de uma comunidade inimiga se desenvolver livremente pelas
e determinada para o trabalho. No destruída pela guerra. Na Idade diversas formas da entidade
modo de produção asiático-oriental, o Média, o servo-de-gleba, como comunitária. Com a destruição das
regime imutável de castas impedia apêndice vivo da terra, não podia diversas formas de entidade
ferrenhamente que o trabalhador migrar livremente para outro feudo ou comunitária provocada pelo
individual desenvolvesse todas as para outro ramo da produção sem surgimento do capitalismo, a liberdade
suas potências humanas para o sofrer o castigo imposto pelo senhor de trabalho parece ter finalmente
trabalho. No regime hierárquico de feudal. O servo-de-gleba só podia encontrado terreno propício para se
castas do antigo Oriente, diferentes desenvolver as potências universais desenvolver. No mundo moderno,
ocupações e ofícios eram preenchidos do homem para o trabalho fugindo do porém, o livre desenvolvimento do
hereditariamente dentro de um campo e migrando para as cidades. trabalhador individual surgirá apenas
determinado regime de castas No regime urbano das corporações de como possibilidade abstrata, enquanto
inviolável. Na Grécia e Roma Antiga – ofício surgido no final da Idade Média, possibilidade de um desenvolvimento
onde a divisão social do trabalho era regime corporativo muito semelhante unilateral e fragmentado. O
menos rígida e menos hierárquica – ao regime oriental de castas, o desenvolvimento da grande indústria
era proibido, e condenado trabalhador individual somente automatizada, base do
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desenvolvimento do capitalismo em trabalho – serão agora propriedades maquinaria em larga escala e a
sua fase madura, só desenvolverá o do não-trabalhador. Nessa redundância do trabalho vivo na
trabalhador individual como apêndice determinação, o trabalho será posto, produção, o próprio trabalhador direto
e servidor da maquinaria. segundo Marx (1986, p. 236), “como será convertido em “parte de uma
Para que o trabalhador possa ser miséria absoluta: a miséria não como máquina parcial” (MARX, 1989, p. 41),
posto enquanto elemento subjetivo da carência, senão como exclusão plena em mero servidor da máquina
riqueza ao lado do elemento objetivo, da riqueza objetiva”. Enquanto miséria automática e “apêndice vivo” dela
ele terá que aparecer no mercado de absoluta e subjetividade abstrata, o (MARX, 1989, p. 41). O sistema
trabalho vendendo, ele próprio, sua trabalhador assalariado será posto automático da fábrica capitalista
força de trabalho na forma de como a possibilidade universal da sufoca e reprime o desenvolvimento
mercadoria. Porém, para existir riqueza material para o desfrute de todos os impulsos vitais do
enquanto livre vendedor de sua alheio, porém, nunca para si próprio. trabalhador e confisca dele “toda a
própria força de trabalho, ele Posta historicamente a divisão livre atividade corpórea e espiritual”,
precisará, antes, estar separado da capitalista do trabalho, o relata Marx (1989, p. 41).
propriedade dos meios materiais de enriquecimento do gênero humano Na fábrica automatizada, o
produção. O trabalhador deverá, estará, segundo Marx (1989, p. 271), trabalhador existe, pela primeira vez,
portanto, existir como não- “condicionado pelo empobrecimento na forma de trabalhador em geral, na
proprietário. Por outro lado, precisará do trabalhador em forças produtivas figura de trabalhador puramente
existir na figura de não-propriedade, individuais”. A partir do surgimento da abstrato e genérico, como força
isto é, como não-escravo e não-servo- grande indústria, a separação do puramente subjetiva e sem
de-gleba. Deverá existir, deste modo, trabalhador individual das potências determinação específica para o
enquanto trabalhador assalariado que gerais para o trabalho atingirá o auge trabalho. Como a grande indústria
terá como mercadoria para vender da irracionalidade. Com a grande transfere para o sistema automatizado
apenas sua própria pele. Na figura de indústria e o sistema de máquinas, o de máquinas tanto as potências
não-proprietário e não-propriedade, o próprio conhecimento científico mecânicas quanto as potências
trabalhador existirá na forma de poderá se desenvolver separado do espirituais para o trabalho, todo
trabalhador assalariado e, enquanto trabalhador. Com a maquinaria, “o desenvolvimento intelectual do
tal, será mera subjetividade destituída conhecimento torna-se um trabalhador poderá ser, então, não
de objetividade, pois os meios de instrumento capaz de ser separado do apenas suprimido, mas, ainda,
produção objetivos – meios trabalho e oposto a ele”, (MARX, dispensável. Restará, desse modo, ao
indispensáveis para a realização do 1989, p. 271). Com o emprego de trabalhador na produção capitalista,
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ser flexível o suficiente para A sociedade capitalista leva mais o vínculo que une os diferentes
acompanhar e adaptar-se aos adiante a separação entre trabalhador indivíduos à comunidade não é mais
movimentos do sistema de máquinas. e condições de trabalho na medida um vínculo natural, como era nas
A única exigência imposta pelo capital em que desenvolve tanto as potências sociedades pré-capitalistas. Os laços
para empregar o trabalhador, afirma espirituais quanto as potências que unem os diversos indivíduos entre
Marx (1989, p. 40), será a de “que ele mecânicas para o trabalho em níveis si na sociedade capitalista são agora
aprenda a adaptar seu próprio nunca antes imaginados pela laços sociais e econômicos. “Seu
movimento ao movimento uniforme e genialidade humana separadas do poder social, assim como seu nexo
contínuo de um autômato”. desenvolvimento do trabalhador com a sociedade, o [indivíduo] leva
Segundo Marx, a grande indústria individual. Assim, à mesma medida [agora] consigo no bolso”, relata Marx
capitalista não apenas desenvolve no que essas potências objetivas e nos Grundrisse (1986, p. 84). No
mais elevado grau a separação do espirituais se desenvolvem no gênero capitalismo, o indivíduo poderá se
trabalhador direto das potências humano, desenvolvem-se a estupidez colocar como livre e igual frente a
espirituais e mecânicas do processo e a miséria do trabalhador individual. todos os outros membros da
de trabalho como, ainda, esvazia de O trabalhador se desenvolve, assim, comunidade, independentemente de
conteúdo todo trabalho direto. Na mesmo em meio a todos os sua condição natural, desde que
fábrica capitalista, relata Marx (1989, progressos científicos e tecnológicos possua dinheiro no bolso. Assim,
p. 41), “mesmo a facilitação do da modernidade burguesa, como como tudo na sociedade capitalista, o
trabalho torna-se um meio de tortura, indivíduo-fragmento e apêndice da nexo com a sociedade poderá ser
já que a máquina não livra o maquinaria. comprado da mesma maneira que se
trabalhador do trabalho, mas seu Se, nas formas pré-capitalistas de compra qualquer mercadoria no
trabalho de conteúdo”. A grande sociedade, a livre iniciativa do mercado.
indústria capitalista e o sistema indivíduo era mais ou menos impedida Essa nova sociabilidade objetivada
automatizado de máquinas de se desenvolver pela entidade apenas se consolidará plenamente na
completam, portanto, o longo comunitária, no mundo moderno essa condição de que cada indivíduo
processo histórico de separação do mesma livre iniciativa estará posta possa, de agora em diante, apropriar-
trabalhador frente à Natureza e à apenas para aqueles indivíduos que se do dinheiro, o novo meio de
comunidade humana, iniciado, no não estiverem à margem, quando não entrelaçamento social. Sem este laço,
Ocidente, com os gregos da absolutamente excluídos, das o indivíduo não apenas estará fora de
Antiguidade. relações sociais mediadas pela posse sua própria comunidade de origem, já
do dinheiro. Na sociedade capitalista, em franca decadência, como cairá
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desterrado para fora de toda e maneira, participar da sociedade civil submetido ao direito doméstico, isto é,
qualquer forma de comunidade. Como tanto quanto seu patrão. Possibilidade ao direito absoluto do senhor sobre
as formas naturais de sociabilidade inteiramente ausente para o escravo seu corpo e sua personalidade no
serão cotidianamente destruídas pelo antigo e para o servo-de-gleba. interior da propriedade familiar, o
desenvolvimento capitalista e a No regime escravista, ao contrário oikos. Como diz Glotz, “em princípio,
integração do indivíduo à nova forma da sociedade capitalista, relata Marx o escravo não tem personalidade.
objetivada de sociabilidade dependerá nos Grundrisse (1986, p. 426), “o Não tem verdadeiramente nome
de sua relação com o dinheiro, a trabalhador não é outra coisa que próprio [...] Não sendo uma pessoa, o
possibilidade de surgir uma crise uma máquina viva de trabalho, que, escravo não dispõe do seu corpo [...]
permanente e insuperável entre ele e portanto, tem um valor para outro, ou Sendo ele próprio uma propriedade,
o restante da comunidade, e de ele melhor, é um valor”. Na figura do carece de capacidade para exercer o
ser expulso para fora dela, será, escravo, o trabalhador era direito de propriedade”. No interior do
então, uma possibilidade bem propriedade particular do patrão e oikos, o escravo-mercadoria se
plausível. De todo modo, e ainda que fazia parte das condições objetivas de submetia ao poder absoluto de seu
marcado por profundas contradições, trabalho. O escravo não existia senhor, o despotès.
a destruição dos antigos laços enquanto elemento subjetivo da O servo-de-gleba da Idade Média
naturais entre indivíduo e comunidade riqueza, como o proletário na europeia não se comportava, frente às
e a substituição deles por laços sociedade capitalista, e, assim, não condições de trabalho, de modo
meramente econômicos permitirão a tinha necessidade de exteriorizar uma diferente do escravo antigo. Apesar
fundação de uma sociedade mais personalidade que não possuía. de não fazer parte da propriedade do
plena e universal que as antigas “Como totalidade de manifestação de senhor, ele continuava fazendo parte
sociedades do passado pré- energia, como capacidade de dos meios objetivos de trabalho como
capitalista. trabalho, esse trabalhador é uma acessório da terra e não se colocava,
A instauração de uma nova coisa pertencente a outro e por fim por isso, enquanto sujeito do processo
sociabilidade determinada não mais não se comporta como sujeito ante a diante do senhor feudal. “Na relação
naturalmente, mas, sim, manifestação de sua energia servil o trabalhador aparece como um
contratualmente, isto é, determinada particular ou ante a ação viva de elemento da propriedade da terra, é
pela posse ou não de dinheiro e trabalho” (MARX, 1986, p. 426). um acessório da terra, inteiramente
mercadoria para vender, permitirá, até Na Grécia antiga, relata Glotz igual aos animais de tiro” (MARX,
certo ponto, que o trabalhador exista (1920, p. 235), o escravo não possuía 1986, p. 426). Do mesmo modo que o
como pessoa livre e possa, dessa estatuto jurídico na cidade, ele estava escravo, o servo-de-gleba não era
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ainda uma pessoa livre e subjetiva, no sentido humilhante [...] ambos no processo de trabalho. “Ambas as
mas, sim, mero instrumento de devem ao senhor uma série de partes [capital e trabalho] se
trabalho. obrigações [...] e ambos estão sujeitos enfrentam como pessoas” (MARX,
Como nos relata Marc Bloch (1987, ao seu poder”. 1986, p. 425-426).
p. 268), “os servi permaneciam, de O trabalhador assalariado, ao Na figura de livre proprietário de
direito, a coisa de um senhor, que contrário do escravo e do servo-de- sua personalidade, o trabalhador
dispunha soberanamente do seu gleba, por estar absolutamente assalariado tem interesse em discutir
corpo, do seu trabalho e dos seus separado das condições objetivas com o patrão em quais condições
bens. Desprovido, assim, de para o trabalho, foi convertido em suas energias serão consumidas no
personalidade própria, à margem do ‘pessoa’ pelo capital. Diferentemente trabalho, interesse completamente
povo, ele faz figura de estrangeiro- da escravidão antiga e da servidão de ausente no escravo e no servo-de-
nato”. Conforme Hilário Franco Junior gleba, a capacidade de trabalho é gleba. Apesar de a relação entre
(1986, p. 192): “ser servo implicava agora propriedade do trabalhador, que capital e trabalho ser uma relação
não gozar de liberdade, ter a vende ao patrão mediante contrato. entre homens livres apenas do ponto
incapacidades jurídicas. Ele podia ser Por isso, o trabalhador tem interesse de vista formal, isto é, contratual e
vendido, trocado ou dado pelo senhor, direto em saber em que condições não-real, a relação capitalista de
não podia testemunhar contra homem sua energia e personalidade são trabalho estabelece uma diferença
livre, não podia se tornar clérigo, empregadas pelo patrão. Por estarem importante entre o trabalhador
devia encargos diversos”. fora de uma relação contratual de assalariado, de um lado, e o escravo
Também Le Goff concorda com a trabalho e por existirem na forma de antigo e o servo-de-gleba, de outro. A
tese da ausência de liberdade na meros instrumentos objetivos de formalidade da relação assalariada
Idade Média europeia e do trabalho, escravo e servo-de-gleba pressupõe subjetividade e certo grau
predomínio de relações de poder nunca poderiam enfrentar seus de eleição na relação social que o
mediadas por vínculos de patrões na figura de ‘pessoas’. Com o escravo e o servo-de-gleba
subordinação e dependência pessoal. trabalhador assalariado ocorre o desconheciam por inteiro. Quer dizer,
Segundo ele (1984, p. 45-46), tanto o contrário. Por ser livre proprietário de simplesmente, que no que concerne à
vassalo nobre quanto o camponês sua força de trabalho, ele não se pessoa real, o capital deixa ao
“pertencem ambos ao senhorio, ou relaciona com o patrão como animal operário individual um amplo campo
melhor: ao senhor de quem de tração, mas enquanto ‘pessoa’ para sua eleição, seu arbítrio e,
dependem. Ambos são ‘homens do que, mediante contrato, determina em portanto, para sua liberdade formal
senhor’, um no sentido nobre, outro quais condições sua vida será gasta (MARX, 1986, p. 426). Enquanto
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escravo e servo-de-gleba estavam racionalidade. Por isso, relata a seguir um curso inexorável em
impedidos, por natureza, de escolher Guerreau (1980, p. 73), Hegel poderia direção ao supremo bem coletivo. Há
para qual patrão entregariam suas ser muito bem definido “como o em sua concepção, certamente, o
vidas, o trabalhador assalariado pode, filósofo que levou até as mais reconhecimento de que o curso da
até certo ponto e em determinadas extremas conseqüências a afirmação história teria sido progressivo. Este
condições, eleger formalmente seu burguesa da racionalidade da história progresso, porém, como relatamos, foi
próprio patrão. Fora da formalidade do mundo”. somente um progresso nas forças de
contratual, porém, escravo, servo-de- De todo modo, porém, é a dominação do homem, enquanto
gleba e trabalhador assalariado existência dessa liberdade formal no gênero, sobre as forças hostis da
pertencem inteiramente à classe dos mundo moderno que explica em Natureza. Foi também apenas um
patrões. No conjunto, e para além da grande parte a possibilidade de a progresso nas forças de dominação
formalidade da relação, todos classe trabalhadora ser integrada à do homem sobre o próprio homem,
pertencem a alguma espécie de ordem capitalista e passar até mesmo isto é, do não-trabalhador sobre o
patrão, seja por um prazo a defender certas vezes algumas de trabalhador. A maioria absoluta da
determinado e consentido suas instituições. Mas é essa mesma humanidade não desfrutou, não
contratualmente, como no caso do liberdade formal que fornece a ela a desfruta e jamais desfrutará desse
trabalhador assalariado, seja para possibilidade de se organizar progresso na forma como tem-se
sempre e sem contrato nenhum, como politicamente como partido – desenvolvido até aqui. O desfrute tem
nos casos da escravidão e da liberdade inteiramente ausente para o estado, até agora, restrito a uma
servidão de gleba. Se não escravo antigo e o servo-de-gleba – e, camada minoritária de não-
pertencerem, serão postos para fora existindo agora na figura de pessoa, trabalhadores pertencentes às mais
da comunidade. combater revolucionariamente o diferentes classes dominantes. Max
É a incapacidade de entender que, mundo moderno a partir de seus não pode, assim, de modo algum, ser
em seus fundamentos reais e para próprios interesses de classe. considerado um positivista e
além da mera formalidade jurídica, apologista do progresso ocidental,
não há diferença entre escravo antigo, Conclusão como muitas vezes o consideram.
servo-de-gleba e trabalhador Ao contrário da concepção Para ele, o progresso, como
assalariado moderno que leva Hegel a teleológica e otimista de Hegel sobre apresentamos, não tem sido linear
mistificar o processo histórico e o curso da história humana, para Marx nem universal, mas contraditório, já
interpretá-lo na figura de um a história não estaria pré-determinada que tem desenvolvido, a seu lado, a
progresso em direção à liberdade e à
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barbárie e a miséria no polo do A história ocidental, por isso, não mesmo para o conjunto da classe
trabalhador. tem sido até agora história trabalhadora, pelo contrário, restou
Marx também não nega o propriamente dita, mas, pré-história apenas a mais completa destruição de
progresso verificado no âmbito da humana. A verdadeira história está sua antiga condição de homem
liberdade e da subjetividade humana ainda por ser desenvolvida e tem por natural e livre, ainda que esta
desenvolvido pela história ocidental. tarefa fundamental a reconstituição da condição seja a de um homem
No entanto, tal progresso tem unidade originária entre trabalhador e rudimentar e inculto, no interior da
produzido uma liberdade meramente condições de trabalho, unidade esta comunidade primitiva.
abstrata, já que tem produzido um presente na chamada comunidade
trabalhador carente da propriedade primitiva, destruída pelo processo Referências
dos meios objetivos para sua histórico. A história universal, desse
BLOCH, M. A sociedade feudal.
realização integral como homem livre. modo, na concepção de Marx, não
Lisboa: Edições 70, 1987.
Separado da propriedade dos meios seguiu o curso mistificado que seguiu
objetivos de produção, o trabalhador para Hegel. Para este, todas as DUBY, G. Guerreiros e
assalariado da sociedade burguesa conquistas do gênero humano se camponeses: os primórdios do
tem existido até agora na figura de converteram, de certo modo, em crescimento econômico
homem livre apenas no sentido conquistas para os indivíduos. Para europeu do século VII ao
formal. Para que sua liberdade possa Marx, ao contrário, todas as século XII. Lisboa: Editorial
ser completa, ele precisa reapropriar- conquistas do gênero humano obtidas Estampa, 1980.
se dos meios objetivos de trabalho pelo Ocidente se deram à custa de FRANCO JUNIOR, H. A idade média
que originariamente lhe pertenciam e um prejuízo profundo para o e o nascimento do ocidente.
compunham parte de sua própria trabalhador individual. Este tem-se São Paulo: Brasiliense, 1986.
personalidade enquanto homem. A desenvolvido apenas como indivíduo GARLAN, Y. Guerra e economia na
subjetividade, assim como a genérico e abstrato, como capacidade Grécia Antiga. Campinas, SP:
liberdade, também tem sido universal para o trabalho em geral, Papirus,
meramente abstrata, pois tem-se separado, porém, das condições 1991.
desenvolvido separadamente das objetivas para desfrutar dessas GARLAN, Y. Les esclaves en Grèce
condições fundamentais que a tornam mesmas conquistas. Se houve ancienne. Paris: Éditions la
objetiva: os meios de produção e progresso na história humana, houve Découverte,
sustentação da vida. apenas para as classes dominantes. 1984.
Para o trabalhador individual direto, e
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Marx e a história 19
GUERREAU, A. O feudalismo: um MARX, K. O capital: livro I. São
horizonte teórico. Lisboa: Paulo: Abril Cultural, 1989. v. 1-
Edições 70, 1980. 2.
GLOTZ, G. Le travail dans la Grèce PINSKY, J. O modo de produção
ancienne. Paris: Librairie Felix feudal. São Paulo: Brasiliense,
Alcan, 1979.
1920. PIRENNE, H. História econômica e
HEGEL, G. W. F. Lecciones sobre la social da Idade Média. São
filosofia de la historia Paulo: Mestre Jou, 1968.
universal. 3. ed. Madrid:
Revista de Occidente, 1953. t.
1. Received on April 27, 2008.
HYPPOLITE, J. Introdução à Accepted on February 17, 2009.
filosofia da história de Hegel.
Rio de Janeiro: Elfos, 1995.
LE GOFF, J. A civilização do License information: This is an open-
Ocidente medieval. Lisboa: access article distributed under the
Editorial Estampa, 1983. terms of the Creative Commons
Volume I. Attribution License, which permits
LE GOFF, J. A civilização do unrestricted use, distribution, and
Ocidente medieval. Lisboa: reproduction in any medium, provided
Editorial Estampa, 1984. the original work is properly cited.
Volume II.
MARX, K. Elementos fundamentales
para la crítica de la economia
política – borrador 1857/1858
(Grundrisse). 8. ed. México:
Siglo Veintiuno Editores, 1986.
v. 1.

Acta Scientiarum. Human and Social Sciences Maringá, v. 31, n. 1, p. 000-000, 2009
DOI: 10.4025/actascihumansoc.v31i1.3112

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