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Sobre a consciência histórica: Uma perspectiva da história moderna

Rafael Felipe da Silva Alves

O texto aqui redigido tem o objetivo de realizar uma breve reflexão acerca de
um tema genuinamente moderno, sob a ótica do filósofo alemão Hans-Georg Gadamer,
grande representante da filosofia hermenêutica; a saber: a questão da consciência
histórica na modernidade. Influenciado por outro grande pensador do século XX, Martin
Heidegger, Gadamer se propõe a investigar os fenômenos históricos e sociais da
realidade sob uma perspectiva fundamentada na hermenêutica, ou seja, numa
metodologia filosófica de interpretação das ciências humanas.

Gadamer compreende a qualidade que separa as ciências da natureza e as


ciências humanas (ou ciências do espírito), na medida em que atribui a essas últimas um
caráter histórico e subjetivo da época em que se produz essa ciência. Na modernidade, o
ser humano adquiriu tal compreensão da história que permite a reflexão da historicidade
de seu tempo e da relatividade de sua concepção de mundo: tal compreensão se
denomina consciência histórica, é a noção das limitações de nossa perspectiva de
mundo, vinculada diretamente ao nosso tempo e, portanto, produto genuíno de nossa
época. Essa consciência histórica permite um debate mais intenso contra as tradições do
passado, que agora não precisam ser aceitas acriticamente e beatificadas como valores
divinos e eternos. A historicidade do presente questiona toda autoridade do passado,
permitindo a compreensão do espírito de cada época a partir de uma interpretação
sempre renovada dos fenômenos e das relações sociais existentes. Dessa forma, a
interpretação se torna um aspecto universal na compreensão de toda tradição, seja
escrita ou oral, na modernidade; até mesmo o presente passa a ser interpretado e não
revelado. Formam-se assim as várias concepções de mundo e formas de interpretar os
acontecimentos da realidade.

A compreensão das ciências humanas não se fundamenta na mesma exatidão e


objetividade em que repousam as noções e postulados das ciências naturais e
matemáticas, entretanto, o caráter hermenêutico das humanidades confere a essas
ciências maiores capacidades de compreensão do próprio ser do homem. A
interpretação de toda tradição a partir do tempo presente nos coloca em debate profundo
com todo o desenvolvimento do pensamento humano, fazendo parte desse processo o
encontro interno consigo mesmo, com seu tempo, sua identidade, sua cultura e seu
povo; ao mesmo tempo em que se busca dialogar com as culturas, costumes e com os
seres humanos do passado, se constrói nesse processo uma concepção de mundo
consciente de sua historicidade. Dessa forma, se torna possível ao gênero humano o
autoconhecimento de toda a relatividade e multiplicidade de sua universalidade.

“Somente através dos outros é que adquirimos verdadeiro conhecimento


de nós mesmos. O que implica, entretanto, que o conhecimento histórico
não conduz necessariamente à dissolução da tradição na qual vivemos;
ele pode também enriquecer essa tradição confirma-la ou modifica-la,
enfim, contribuir para a descoberta de nossa própria identidade.”

O estudo das modernas ciências humanas se encontra fortemente imbricado nas


tradições e na cultura precedente. Estudar um texto de alguns séculos atrás, portanto,
exige ao leitor a sagacidade de superar os preconceitos e as limitações que o espírito de
seu tempo carrega, evitando, assim, interpretações anacrônicas dos eventos do passado
ao julgar e criticar outro tempo com os valores e as ideias do presente. Dessa forma, a
consciência histórica tem uma relação recíproca com o senso histórico, a capacidade de
vislumbrar na tradição e nos costumes de outro tempo o contexto e a as causas em que
se desenvolveu o espírito daquela época ou daquele povo.

Mediante o que já foi abordado até aqui nessa exposição, fica claro a
incomensurável importância atribuída à hermenêutica no desenvolvimento e estudo das
modernas ciências humanas. Como carecem tais ciências da mesma exatidão natural das
ciências da natureza, toda relação proposta por seus estudos se limita à uma atividade
interpretativa de seu estudante. Esse caráter interpretativo, entretanto, não se limita as
ciências humanas, se expande em toda universalidade da era moderna; faz parte do
espírito moderno, desvinculado de toda certeza sagrada do passado e imbuído de várias
facetas multidimensionais e relativas. Assim, pontua Gadamer a respeito da
universalidade adquirida pela possibilidade interpretativa de toda tradição e todas as
demais manifestações que se colocam a nossa frente:

“A interpretação, tal como hoje a entendemos, se aplica não apenas aos


textos e à tradição oral, mas a tudo que nos é transmitido pela história:
desse modo falamos, por exemplo, da interpretação de um evento
histórico ou ainda da interpretação de expressões espirituais e gestuais, da
interpretação de um comportamento etc. Em todos esses casos, o que
queremos dizer é que o sentido daquilo que se oferece à nossa
interpretação não se revela sem mediação, e que é necessário olhar para
além do sentido imediato a fim de descobrir o “verdadeiro” significado
que se encontra escondido.”

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