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uma
economia
que não
aprende
Novas perspectivas para
entender nosso fracasso
Bibliografia
ISBN 978-65-991040-0-8
20-36254 CDD-338.981
Índices para catálogo sistemático:
2020
8 Paulo Gala
Licenciado e André
para Roncaglia
- Daniel Valdir Santiago - 04620311600 - Protegido por Eduzz.com
Índice
Apresentação.................................................................................................. 13
1. Introdução.................................................................................................. 25
Referências Bibliográficas......................................................................... 197
Apoiadores....................................................................................................217
João Sayad
14 Paulo Gala
Licenciado e André
para Roncaglia
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Prefácio
Luiz Gonzaga Belluzzo
P
aulo Gala e André Roncaglia oferecem aos leitores
interessados um livro com um título instigante: Brasil, uma
economia que não aprende. Já na casa dos 77 anos, arrisco a pele
para sugerir que o Brasil já foi uma economia que ensinou. Nos idos de
1978, uma missão chinesa aportou às terras de Pindorama para obser-
var e indagar das façanhas brasileiras na caminhada para a industrial-
ização e o desenvolvimento. Nesse momento, fumegavam no Império
do Meio as reformas de Deng Xiaoping e o Brasil liderava com folga
a marcha da industrialização entre os países então ditos “em desen-
volvimento”, hoje apelidados de “emergentes”. A visita chinesa ocor-
reu um ano antes do gesto americano empunhado por Paul Volcker
em outubro de 1979. A elevação da taxa de juro pelo Federal Reserve
deu impulso à “nova expansão americana”. À sombra do fortalecimen-
to do dólar, os Estados Unidos impuseram a liberalização financeira
Urbi et Orbi, assim como impulsionaram a metástase produtiva para o
Pacífico dos pequenos tigres, e do Novo Dragão chinês.
No livro Os antecedentes da tormenta ousei escrever que, em
todas as etapas, o capitalismo em seu movimento engendra transfor-
mações financeiras, tecnológicas, patrimoniais e espaciais que decor-
rem da interação de duas forças: 1) o processo de concorrência movido
pela grande empresa, sob a tutela das instituições nucleares de “gover-
nança” do sistema: a finança e o Estado hegemônico; e 2) as estratégias
nacionais de “inserção” das regiões periféricas. As transformações que
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do seriam suficientes para dinamizar as exportações, atrair investidores
externos e deslanchar um forte ciclo de acumulação.
Depois da bem-sucedida estabilização de 1994, os “reformistas
liberais” brasileiros apoiaram sua estratégia em cinco pontos: 1) a esta-
bilidade de preços criou condições para o cálculo econômico de longo
prazo, estimulando o investimento privado; 2) a abertura comercial im-
poria disciplina competitiva aos produtores domésticos, forçando-os a
realizar ganhos substanciais de produtividade; 3) as privatizações e o in-
vestimento estrangeiro removeriam os gargalos de oferta na indústria e
na infraestrutura, reduzindo custos e melhorando a eficiência; 4) a libe-
ralização cambial, associada à previsibilidade quanto à evolução da taxa
real de câmbio, atrairia “poupança externa” em escala suficiente para
complementar o esforço de investimento doméstico e para financiar o
déficit em conta corrente; 5) o gotejamento da renda promovida pela
acumulação de riqueza na camadas superiores – auxiliada pela ação das
políticas sociais “focalizadas” – seria a forma mais eficiente de reduzir a
desigualdade e eliminar a pobreza.
Na verdade, a privatização desarticulou um dos mecanismos
mais importantes de governança e de coordenação estratégica da eco-
nomia brasileira. O setor produtivo estatal – num país periférico e de
industrialização tardia – funcionava como um provedor de externali-
dades positivas para o setor privado: 1) o investimento público era o
componente “autônomo” da demanda efetiva (sobretudo nas áreas de
energia, transportes e telecomunicações) e corria à frente da demanda
corrente; 2) as empresas do governo ofereciam insumos generalizados
em condições e preços adequados; e 3) começavam a se constituir – ain-
da de forma incipiente – em centros de inovação tecnológica.
Os celebrados efeitos da privatização sobre a eficiência da eco-
nomia não se concretizaram. Senão, vejamos: 1) a indexação das tarifas
e preços das empresas privatizadas produziu um aumento expressivo
dos custos dos insumos de uso generalizado e 2) o investimento em
infraestrutura passou a correr atrás da demanda, gerando pontos de
estrangulamento; 3) as grandes empresas “exportaram” os seus departa-
mentos de Pesquisa e Desenvolvimento e os escritórios de engenharia
reduziram dramaticamente seus quadros; e 4) iniciativas importantes,
como o Centro de Pesquisas da Telebras, foram praticamente desa-
tivadas. No debate em curso sobre a situação da indústria brasileira,
há quem proclame desdenhosamente que a desindustrialização é um
“mito”. Mal sabem que a encrenca vai além dos problemas criados pelas
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nomo do Estado. O salto de escala e tecnológico das indústrias brasi-
leiras não vai ocorrer sem políticas adequadas que recuperem o papel
do BNDES. A experiência chinesa demonstra que é incontornável a
constituição de um sistema financeiro formado pela interação virtuo-
sa entre grandes bancos comerciais públicos e privados articulado a
bancos de desenvolvimento de grande porte, rigorosamente regulados
e supervisionados, capazes de desenvolver instrumentos financeiros
destinados para o crédito de longo prazo.
O esperado efeito “acelerador” decorrente desse arranjo vai dina-
mizar os setores já existentes, cuja “proteção” não deve ser concedida sem
contrapartidas de desempenho nas exportações, na inovação tecnológica
e na substituição de importações. A economia mundial está diante de ca-
pacidade de oferta excedente em quase todos os setores, e isso vai tornar
ainda mais acirrada a conquista de mercados. É natural, portanto, que
essas novas relações entre investimento e comércio exigissem uma maior
flexibilidade na importação de insumos, componentes, partes e peças. De
outro lado, a abertura pura e simples às importações não seria suficiente
como fator de atração do investimento externo, na ausência de um regi-
me cambial e de incentivos favorável às exportações. A abundante litera-
tura sobre o desenvolvimento das economias do Leste Asiático demons-
tra inequivocamente que a forte promoção de exportações antecedeu e
combinou-se virtuosamente com a abertura comercial.
A crise de 2008 acirrou a concorrência mundial na proporção
em que os mercados se contraíam. Isto deixou ainda mais patente a
fragilidade da inserção externa da economia brasileira. Não por acaso,
as medidas de incentivo tributário perdem eficácia, neutralizadas pelo
pecado original da valorização da moeda. Isso, além de comprometer
o crescimento, o equilíbrio fiscal e a conta-corrente do balanço de pa-
gamentos, coloca pressão sobre a taxa de juro. Para quem tem um co-
nhecimento elementar dos processos de industrialização e de expansão
industrial das economias emergentes, a manutenção do câmbio sobre-
valorizado ao longo de muitos anos é um erro crasso de política econô-
mica que afeta negativamente a política fiscal e a política monetária.
Além dos fatores sistêmicos favoráveis como câmbio adequado, custo
de capital reduzido e infraestrutura eficiente, a competitividade depen-
de de certas características da estrutura empresarial, particularmente
da capacidade de inovação em empresas com estratégias agressivas de
conquista de mercados ou da competência de redes de pequenas e mé-
dias empresas na ocupação de nichos de mercado.
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dança de paradigmas, particularmente nas economias que estavam em
processo de industrialização rápida. A nova concepção de políticas in-
dustriais ou de competitividade coloca no centro das preocupações a
indução daquelas sinergias baseadas no conhecimento e na capacidade
de resposta à informação. O novo papel do Estado deve estar concen-
trado na indução da cooperação, na coordenação dos atores e na redu-
ção da incerteza. Sua tarefa não é a de “escolher vencedores”, mas a de
criar condições para que os vencedores apareçam.
A relativa complexidade do fenômeno torna difícil sua com-
preensão e comunicação no debate público devido à disseminação de
simplificações midiáticas e à partidarização das posições em confron-
to. Por isso, é mais que oportuno o empenho de Paulo Gala e André
Roncaglia em construir uma exposição, ao mesmo tempo acessível e
conceitualmente rigorosa, a respeito dos sucessos e percalços da indus-
trialização brasileira. A regressão industrial brasileira foi escoltada por
um retrocesso de igual intensidade no debate econômico. Contingente
expressivo de economistas conservadores empreendeu uma campanha
de desqualificação das ideias que proclamavam a importância crucial da
indústria nas economias contemporâneas. Paulo Gala e André Ronca-
glia registram o fenômeno: “No Brasil e no mundo, muitos economistas
ainda não acreditam na potência da indústria para gerar o desenvolvi-
mento econômico. Isso se deve a um longo engessamento intelectual
na fé ingênua do espontaneísmo de mercado e do livre comércio em
promover o progresso material das nações, bastando apenas produzir
aquilo que se faz de melhor”.
Sou obrigado a recorrer aos ensinamentos do grande historia-
dor Carlo Cipolla. Ele afirmou que a vida dos Homens atravessou dois
momentos cruciais: o neolítico e a Revolução Industrial. No neolítico,
os povos abandonaram a condição de “bandos selvagens de caçadores”
e estabeleceram as práticas da vida sedentária e da agricultura. Entre as
incertezas e brutalidades da “vida natural”, tais práticas difundiram con-
dições mais regulares de subsistência dos povos e assentaram as bases
da convivência civilizada. Podemos afirmar que ao longo de milênios as
sociedades avançaram lentamente nas técnicas de gestão da terra, desen-
volvidas à sombra de distintos regimes sociais e políticos e, portanto, sob
formas diversas de geração, apropriação e utilização dos excedentes.
Às vésperas da Revolução Industrial, os fisiocratas consideravam
“produtiva” somente a classe de agricultores. A manufatura era a ativida-
de da classe estéril que conseguia apenas repor seus custos por meio das
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porados à nova divisão internacional do trabalho. Para os europeus
retardatários, para os norte-americanos e japoneses e, mais tarde,
para os brasileiros, coreanos, chineses, russos e outros, a luta pela in-
dustrialização não era uma questão de escolha, mas uma imposição
de sobrevivência das nações, de seus povos e de suas identidades. Pa-
radoxalmente, a especialização de alguns países na produção de bens
não industriais é fruto da própria diferenciação da estrutura produti-
va capitalista à escala global comandada pela dominância do sistema
industrial. Este é o caso de países dotados de uma relação população e
recursos naturais favorável, como Austrália, Nova Zelândia, Uruguai,
Chile. Essa especialização decorre da própria divisão do trabalho sus-
citada pela expansão do sistema industrial.
O
desenvolvimento econômico é uma transformação
estrutural que leva pessoas da agricultura para a indústria e
depois para os serviços modernos, um processo conhecido
como Revolução Industrial. Trata-se, no jargão dos economistas, de
uma mudança do lado da oferta da economia ou, nos termos de Bres-
ser-Pereira (2014), uma sofisticação tecnológica do tecido produtivo.
Países que têm uma estrutura produtiva complexa e sofisticada têm
empresas que investem muito em pesquisa e desenvolvimento de pro-
dutos e serviços (P&D). Empresas de países de estrutura produtiva po-
bre não têm porque investir nessas áreas. O Brasil passa cada vez mais
para esse segundo grupo de economias, uma vez que parou seu pro-
cesso de industrialização no meio do caminho. Viramos reféns do que
os economistas chamam de armadilha de renda média, um ponto em
que o país esgota seu estoque ocioso de mão de obra antes de atingir
um estágio de sofisticação produtiva mais avançado. Vale dizer, ocu-
pamos nossos trabalhadores em atividades de baixa produtividade, es-
pecialmente serviços não escaláveis, agropecuária, commodities e in-
dústrias de baixa intensidade tecnológica.
O Brasil conseguiu avançar muito em sua transformação es-
trutural até os anos 1980; chegou na metade da jornada, parou e depois
começou a regredir. Nosso sistema produtivo caminhou no sentido de
diversificação e aumento da complexidade até os anos 2000, depois re-
grediu e voltou a se especializar em produtos menos complexos. Quase
conseguimos nos desenvolver, faltou pouco. No início dos 1980 a pro-
dução industrial brasileira era maior do que a chinesa e a coreana soma-
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-inflação, caos monetário e financeiro. Como mostraram Carvalho,
Sampaio e Garcia (2017), houve uma completa desorganização de nos-
so sistema de preços que atrapalhou enormemente o funcionamento
do sistema financeiro e, portanto, de toda a estrutura produtiva. A cri-
se foi principalmente fruto de nossa dívida externa após o choque do
petróleo e choque de juros nos Estados Unidos promovido por Paul
Volcker. A reposta das autoridades brasileiras foi mais fechamento do
país para economizar divisas externas. Passamos por fuga de capital,
calotes na dívida externa, grandes desvalorizações cambiais, inúmeras
trocas de moedas e corte de zeros, um verdadeiro caos econômico e fi-
nanceiro. Tudo isso já sabemos. O aumento de protecionismo gerou
mais ineficiência nas empresas domésticas e a resposta para o Brasil no
final dos anos 1980 passou a ser: abertura econômica e estabilização
do sistema de preços. Na década de 1990 iniciamos uma nova transi-
ção econômica. A abertura da economia, o controle da inflação, a pri-
vatização, uma melhora fiscal e novos marcos regulatórios prepararam
o país para um novo ciclo de crescimento. O período que vai de 1990
até 1999 ficará na história como uma grande fase de ajustamento com
crescimento baixo, mas importantes reformas institucionais da econo-
mia brasileira. O paralelo aqui com os anos 1960 é evidente.
Adiantou? Um outro lado menos apreciado de nossa econo-
mia nessa época foi a capacidade de aprender a produzir coisas, pro-
dutos que hoje não sabemos mais fazer. O Brasil avançou muito em
termos de capacidades produtivas locais desde os anos 1960. Nos anos
1980, a economia brasileira atingiu seu auge em termos de sofistica-
ção produtiva. Éramos capazes de produzir muito do que existia no
mundo: cilindros de mergulho, prensas, carros, motos, motores, tur-
binas, computadores etc., tudo com ineficiência e alguma precarieda-
de, mas sabíamos produzir ainda que de modo incipiente. A Gurgel e
várias outras marcas brasileiras produziam carros domesticamente. A
Mafersa foi a maior fabricante nacional de material ferroviário do Bra-
sil, produzia vagões, caminhões-betoneira, usinas de concreto, cami-
nhões-basculantes etc. A Engesa produzia tanques de guerra e veícu-
los de combate. A Villares S/A, hoje uma mera subsidiária da austríaca
Voestalpine AG, foi um grupo industrial riquíssimo, desenvolvendo
motores, elevadores e escadas rolantes por sua subsidiária Atlas Ele-
vadores. Produzia máquinas e equipamentos pesados fazendo frente,
em alguns segmentos, a Caterpillar, Komatsu e John Deere. E tantas
outras incríveis empresas brasileiras do passado.
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mos para o exterior. Tudo isso a um custo altíssimo de sobrevaloriza-
ção cambial e altíssimas taxas de juros. Matamos nossa própria com-
plexidade econômica, sofisticação produtiva e capacidades técnicas. O
que temos hoje? Inflação baixa e regressão tecnológica e produtiva. Jo-
seph Stiglitz mostra em seu livro Creating a learning society (Stiglitz e
Greenwald, 2014) a importância das capacidades produtivas locais para
gerar desenvolvimento econômico e prosperidade, algo que os econo-
mistas desenvolvimentistas e estruturalistas sempre souberam e defen-
deram. Nossas capacidades tecnológicas foram sendo perdidas princi-
palmente para a Ásia do leste ao longo do tempo. Nossa sofisticação
produtiva se perde a cada dia e, com ela, vão embora “bons” empregos e
o principal meio de transformar conhecimento, educação e capital hu-
mano em produtos, serviços e renda. Na atual tendência, restará no país
um pequeno setor de serviços altamente sofisticado e complexo e algu-
ma produção industrial inseridos em um mar de empregos de serviços
não sofisticados, uma economia dual, como veremos.
Em interessante trabalho, McMillan, Rodrik e Verduzco-Gallo
(2014) mostram como a rodada de abertura comercial e melhora insti-
tucional ocorrida na América Latina e África dos anos 1990 acabaram
por não produzir o resultado esperado de aumento da produtividade
agregada dos países dessas regiões. O argumento e as evidências empí-
ricas mostradas por Rodrik no trabalho são relativamente simples de se
entender. O pequeno aumento de produtividade promovido dentro das
empresas sobreviventes foi bem menor do que a transferência de traba-
lhadores de setores de alta produtividade (indústria e serviços empresa-
riais) para setores de baixa produtividade intrínseca. Os trabalhadores
da América Latina e África saíram de empregos de manufaturas e servi-
ços relativamente sofisticados e foram parar em serviços não sofistica-
dos (varejo, restaurantes, padarias, cabeleireiros etc.). Os autores mos-
tram que o movimento oposto ocorreu na Ásia, dinâmica que ganhou
enorme produtividade com a transferência de trabalhadores para os se-
tores “certos”. Rodrik critica as análises microeconômicas feitas para
Brasil e outros países de América Latina e África por não responderem
a questão mais importante de todas: onde foram parar os trabalhadores
que foram demitidos das empresas sobreviventes (para não mencionar
a grande maioria das empresas que sumiu)? Rodrik responde: no setor
de serviços não sofisticados. Houve regressão tecnológica e produtiva.
Na Ásia, a “abertura” funcionou, na América Latina e África não. Os da-
dos empíricos que Rodrik mostra são avassaladores. No Brasil, a aber-
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da interna tiveram efeitos diretos e violentos na produção doméstica de
carros, motos, caminhões, móveis, eletrodomésticos, bens de consumo
em geral, matérias da construção civil, aço, entre outros. Nossa produ-
ção industrial colapsou com queda de 20% entre 2014 e 2016. Na era
Lula e Dilma, a alavancagem de crédito (imobiliário e não imobiliário)
provocou um boom de consumo e um boom de construções imobiliárias,
resultando em grande aumento de endividamento e oferta de imóveis.
Os investimentos foram primordialmente direcionados para o setor de
bens non-tradables (prédios comerciais, residenciais e shopping centers).
As desonerações de impostos da era Dilma agravaram o pro-
blema injetando demanda agregada e complicando a situação de con-
tas públicas. O represamento de preços administrados como energia,
gás e gasolina contribuiu na mesma direção. Em 2015, essas políticas
foram revertidas de forma brusca e a bolha que já vinha desinflando
estourou. O choque de juros, o realinhamento de preços livres e ad-
ministrados e a forte desvalorização cambial, também decorrente do
estouro da bolha de commodities, deram o tiro de misericórdia na
atividade econômica e estouraram a bolha de crédito e consumo no
Brasil. A grande maioria dos empregos gerados nesses anos foi em se-
tores com baixa produtividade intrínseca: construção civil, serviços
não sofisticados em geral (lojas, restaurantes, cabeleireiros, serviços
médicos, call centers, telecom etc.), serviços de transporte (motoris-
tas de ônibus, caminhões e táxis), entre outros. Os empregos indus-
triais ficaram estagnados e depois de 2015 mergulharam (para uma
ótima análise desse período, ver Carvalho, 2018). Nossa indústria en-
trou em estagnação e, depois de 2015, mergulhou para uma queda de
US$ 100 bilhões de produção industrial em relação a 2014. O Brasil
passa hoje por um dos maiores processos de desindustrialização em
valores absolutos do mundo (para uma análise crítica das políticas in-
dustriais da era Lula e Dilma, ver Machado, 2019).
Em face desta tendência, costuma-se dizer agora, no Brasil, que
“o engenheiro virou motorista de Uber”. É cada vez mais comum en-
contrar motoristas de Uber e táxi que vieram do setor industrial brasi-
leiro; muitos vêm também do setor derivado de serviços empresariais
(marketing, design, TI, logística, finanças). O efeito da destruição do
tecido industrial e produtivo do Brasil é visível a olhos nus. Viramos a
economia das padarias, dos cabeleireiros, das manicures e dos lojistas
de shopping: serviços não escaláveis, sem produtividade, sem desenvol-
vimento tecnológico. A indústria brasileira que já chegou a representar
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trabalhadores encontram, portanto, empregos com melhores condi-
ções de aproveitamento intelectual e menor esforço físico.
Quem estuda e obtém um diploma encontra oportunidades
que recompensam o esforço de assimilar conhecimentos novos e de
melhorar o ambiente em que vive. Além disso, as pessoas consomem
mais e melhor e tornam rentáveis os negócios que dão oportunidades
a outras pessoas esforçadas e talentosas. É uma rede de relações mútu-
as que nutre uma vida econômica e social mais sofisticada e mais rica,
em todos os sentidos, para todos os envolvidos. Quanto mais inteligên-
cia é aplicada ao processo produtivo, menor é o desgaste físico e men-
tal, menor é o desperdício (de esforço inclusive), menor é a poluição e
menores são os malefícios à qualidade de vida dos que habitam o nosso
planeta. Por isso, o desenvolvimento é uma força inclusiva que coloca
na equação não só o bem-estar humano, mas o de todas as espécies que
habitam o planeta. Pensar o desenvolvimento econômico no Brasil e no
mundo não é um luxo. É uma necessidade.
No Brasil e no mundo, muitos economistas ainda não acreditam
na potência da indústria para gerar o desenvolvimento econômico. Isso
se deve a um longo engessamento intelectual na fé sobre a capacidade do
mercado e do livre comércio em promover o progresso material das na-
ções. No entanto, após o incrível sucesso recente da China e dos países
do Leste Asiático, com suas políticas industrialistas e dirigistas, essa men-
talidade está mudando. Abre-se agora a oportunidade para uma revisão
crítica dessa perspectiva liberal ingênua e uma busca por alternativas re-
correndo a antigas receitas, mas em novos moldes. As novas políticas de
promoção industrial na Alemanha, França, Reino Unido, Estados Unidos
e de outros países ricos mostram que o ocidente acordou em relação à
China e às suas próprias estratégias de sucesso no passado. Rodrik e Ai-
ginger (2020) fazem um importante levantamento da nova literatura que
surge no mundo para explicar a importância da indústria, o papel da po-
lítica industrial no desenvolvimento econômico e o sucesso do Leste Asi-
ático. Nessa onda, importantes economistas estruturalistas no mundo e
no Brasil voltaram a ganhar força. Nas páginas que seguem exploramos
essas ideias em detalhe, trazendo contribuições recentes para nos ajudar
a pensar o Brasil. A boa notícia é que o conhecimento teórico e empírico
sobre o tema melhorou muito e pode agora nos ajudar com novas pers-
pectivas para entendermos o empobrecimento da sociedade brasileira.
Este breve livro explora essas ideias de maneira simples e didática com o
objetivo de tentar contribuir com o debate sobre o tema no Brasil.
O
processo de desenvolvimento sempre intrigou os
economistas. Pensadores do passado como o italiano Antonio
Serra, de Nápoles, no início do século XVII; John Cary, de Bris-
tol, no final do século XVII; ou Duarte Ribeiro de Macedo, de Portugal,
na mesma época se indagavam sobre o que fazer para acelerar o progres-
so do reino e alcançar riqueza para todos. Veneza se tornou poderosa aos
olhos de Antonio Serra porque conseguiu criar um cluster de indústrias,
inovação, aprendizagem, comércio e pessoas qualificadas, num processo
de “cumulação causativa”. Estes fatores juntos colocaram Veneza numa
trajetória diferente daquela em que Nápoles se encontrava. Para Serra,
Nápoles com sua estrutura agrária não seria capaz de resolver seus pro-
blemas econômicos sem criar uma base produtiva semelhante à de Ve-
neza. Para o embaixador português em Madri, Duarte Ribeiro de Mace-
do, a pobreza de Portugal nos anos 1600 estava relacionada à ausência de
manufaturas e indústrias no Reino (o termo usado na época era artes);
um pouco disso se observava na Espanha, que perdeu suas manufaturas
da região de Segóvia para outros países. Para Duarte Ribeiro de Macedo,
o atraso de Portugal estava ligado à ausência de processos produtivos
mais sofisticados como o que se via nas manufaturas inglesas e holande-
sas. John Cary, grande comerciante de Bristol, explicou a dinâmica das
manufaturas da Inglaterra em seu belíssimo livro de 1695 An essay on the
state of England in relation to its trade, its poor, and its taxes, for carrying on
the present war against France (Cary, 2010). Muito antes de Adam Smith
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questão. A fábrica de alfinetes de Adam Smith era, antes de mais nada,
uma fábrica. Segundo Smith (2003, p. 42-43), “a natureza da agricultu-
ra não comporta tantas divisões do trabalho, nem uma diferenciação
tão grande de uma atividade para outra, quanto ocorre nas manufa-
turas”. Ou ainda: “As nações mais opulentas geralmente superam to-
dos seus vizinhos na agricultura como nas manufaturas: geralmente,
porém, distinguem-se mais pela superioridade na manufatura do que
na agricultura”. No jargão atual, manufaturas exibem em geral retor-
nos crescentes de escala, agricultura não. O setor industrial se destaca
por sua complexidade; de todos os subsetores produtivos é o que mais
exerce efeitos de encadeamento para frente e para trás sobre os outros
subsetores e em seu próprio subsetor. Isso ocorre porque a indústria de
transformação demanda insumos e oferta produtos de e para todos os
demais setores da economia, como também porque os elos entre os se-
tores produtivos dentro da indústria são mais densos. Movimentos de
expansão ou contração no setor manufatureiro afetam mais o conjunto
da economia do que impulsos observados fora desse setor.
Até o final dos anos 1980, era relativamente consensual entre
economistas das mais variadas linhagens teóricas a premissa de que a
possibilidade de mecanização e especialização é maior na indústria do
que em outros setores por conta da maior possibilidade de divisão do
trabalho intraindústria e entre a indústria e outros setores. Este con-
senso foi alcançado após uma longa história de contribuições teóri-
cas que foram refinando o nosso entendimento sobre a importância
dos processos de sofisticação produtiva que a experiência histórica da
manufatura tão claramente encarnava. Assim, os insights originais de
Adam Smith sobre as manufaturas e a fábrica de alfinetes foram am-
pliados no trabalho de Allyn Young, Divisão do trabalho e retornos cres-
centes, nos anos 1920, e também elaborados no pensamento austríaco
de Eugen von Böhm-Bawerk; por isso, para alguns austríacos inspi-
rados por este autor, o setor industrial também é chave. Na vertente
keynesiana preocupada com o crescimento de longo prazo, Nicholas
Kaldor partiu dos trabalhos de Allyn Young e da divisão do trabalho
dentro das empresas e entre as empresas para destacar a importância
dos retornos crescentes de escala na indústria.
Essa característica da indústria e das possibilidades de divisão
do trabalho ficaram conhecidas entre os seguidores da escola austrí-
aca como as economias de “produção indireta” (roundaboutness), que
diz o seguinte: se o Robinson Crusoé estiver sozinho numa ilha, vale
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veitar os retornos crescentes à escala, seus efeitos amplificaram as dife-
renças com relação àqueles setores, regiões e países que mantiveram sua
produção pouco indireta e pouco sofisticada. O problema central não era
tanto entender estes mecanismos, mas sim como operar uma mudança
tão profunda e abrangente na matriz estrutural das economias atrasadas.
Isso nos leva ao problema central da economia do desenvolvimento e as
alternativas que os intelectuais pioneiros neste campo ofereceram.
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pobre” (Nurkse, 1953, p. 8). Nurkse e Lewis concordavam em que a supe-
ração deste círculo vicioso da pobreza seria possível por meio do apro-
veitamento do desemprego disfarçado de mão de obra no campo e do ta-
manho do mercado interno como gerador de demanda para validar um
“aumento na produção de um amplo setor de bens de consumo, equili-
brado de modo a corresponder ao esquema de preferências dos consu-
midores, cria[ndo] sua própria demanda” (Nurkse, 1953, p. 265).
Lewis (1954) foi mais conciso e formulou um modelo simplifi-
cado com conclusões muito assertivas e claras. Dividindo a economia
em dois setores com dinâmicas diferentes, ele analisa teoricamente o
problema das economias duais que diferiam de economias homogêneas
em termos da produtividade do trabalho. No modelo de Lewis, as socie-
dades rurais teriam uma “poupança oculta” (isto é, energia econômica
ociosa armazenada) na forma de contingentes de mão de obra com pro-
dutividade próxima a zero. Com efeito, uma oferta potencial “ilimitada”
de mão de obra tornava os salários reais estáveis durante as primeiras
fases de expansão industrial. Com isso, qualquer expansão da econo-
mia canalizaria os frutos do crescimento para os lucros dos empresários
das novas atividades urbano-industriais, dando suporte à posterior rea-
limentação do ciclo de investimentos. Porém, em fases mais adiantadas
da mudança estrutural, conforme os contingentes populacionais deslo-
cados do campo para a cidade fossem esgotando este exército laboral de
reserva, os salários reais passariam a crescer, de maneira a remunerar o
esforço dos trabalhadores de acordo com sua produtividade marginal.
Em suma, capital e trabalho eventualmente chegariam a um acordo,
contanto que a economia continuasse crescendo.
Os autores deste polo tinham, portanto, o entendimento de
que apenas amplos programas de desenvolvimento, financiados e diri-
gidos por governos e com o apoio do capital estrangeiro, dariam con-
ta de quebrar as armadilhas do atraso a que foram submetidas as eco-
nomias retardatárias da Revolução Industrial. A melhoria do parque
industrial viabilizaria uma pauta de exportações mais robusta e com
maiores efeitos dinamizadores sobre a economia interna. Devido à pre-
sença de indivisibilidades (isto é, custos fixos monumentais em termos
da escala das plantas e dos projetos de infraestrutura, para ficar em dois
exemplos), de externalidades pecuniárias e tecnológicas e de retornos
crescentes à escala, qualquer esforço localizado de mudança estrutural
tenderia a ser autoderrotante, por não garantir tração econômica sufi-
ciente para validar os projetos de investimento.
Bangladesh e Vietnã
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tram a enorme potência da indústria para aumentar a produtividade
geral de um país e tirar pessoas da pobreza. O Vietnã já ultrapassou o
Brasil entre os maiores exportadores do mundo. É um dado chocante,
mais ainda sabendo que a população do Vietnã é metade da brasileira e
seu território é 66 vezes menor do que o nosso. Qual foi o grande acerto
do Vietnã para esse sucesso? Já tendo as mínimas condições de sobrevi-
vência, em 1986, o Partido Comunista do Vietnã, inspirado no socialis-
mo de mercado chinês e preocupado com o fim da URSS, resolveu tam-
bém abrir o país para a competição mundial, tal qual a China tinha feito
em 1978. Em 1990, o PIB per capita do Vietnã era de US$ 200, mas já em
2017 saltou para US$ 2.400. Desde as reformas, o Vietnã cresce a uma
média de 7,2%, sendo que as exportações crescem a uma média de 20%
ao ano. A indústria vietnamita tem se tornado cada vez mais complexa,
nacional e competitiva. O país também ostenta uma expectativa de vida
de 76 anos, que é maior do que a do Brasil. De sua população total, 92%
têm acesso à eletricidade e 80% à água potável. A pobreza caiu drastica-
mente, saiu de mais de 50% para 15% da população em somente 20 anos.
O Vietnã está saindo da periferia mundial para a relevância geopolítica
e competição em tecnologias, um líder regional notável.
O Vietnã é um dos casos mais bem-sucedidos de industriali-
zação com integração recente às cadeias globais de valor (CGVs). Uma
espécie de fábrica de alfinetes do século XXI. Especificamente, encai-
xa-se bem no chamado paradigma dos “gansos voadores”, o desen-
volvimento sequencial de indústrias, característica marcante da inte-
gração regional asiática. Trata-se de um processo de industrialização
liderado pelas economias mais dinâmicas da região. Teria se iniciado
com o “ganso” líder Japão, que deslocou atividades industriais mais
simples, maduras e padronizadas para um 2º nível de países segui-
dores, os tigres asiáticos. Este modelo depende do Investimento Es-
trangeiro Direto (IED) proveniente das nações mais desenvolvidas da
região. De fato, as principais origens do IED no país são os tigres asi-
áticos e o Japão. Aproximadamente um terço da produção global dos
smartphones da Samsung ocorre hoje no Vietnã. Em 1986, ano das
primeiras reformas, o país exportava apenas bens primários. Trinta
anos depois, eletrônicos e têxteis dominam a pauta exportadora.
O estágio de desenvolvimento em que se encontra um país de-
limita as alternativas de que dispõe para avançar. Para Bangladesh, por
exemplo, a adesão às cadeias globais de valor pelo elo de menor valor
agregado trouxe claros benefícios. A oferta quase ilimitada de mão de
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compreender o que acontece nas indústrias onde as estratégias de Mi-
chael Porter não funcionam; as “dog industries” que ele diz a seus clientes
para se manterem longe (Porter, 1980). “Star industries”, por outro lado,
são atividades onde em geral predominam competição imperfeita e todas
as características desse tipo de estrutura de mercado: retornos crescen-
tes de escala, alta incidência de inovações tecnológicas, altas sinergias de-
correntes de divisão do trabalho dentro das empresas e entre empresas,
importantes curvas de aprendizagem, rápido progresso técnico, alto con-
teúdo de R&D, alta concentração industrial, grandes barreiras à entrada
e diferenciação por marcas. No livro A vantagem competitiva das nações,
Porter (1990) leva as conclusões tiradas da arena da competição industrial
para o nível nacional. O conselho que ele dá às nações é essencialmente
o mesmo que ele dá às corporações: cultivar “star industries” e manter-se
longe das “dog industries”. Segundo Erik Reinert, as recomendações da
estratégia nacional de Porter são essencialmente uma versão mais sofisti-
cada das recomendações das escolas de pensamento mercantilista.
O grupo de atividades industriais e serviços de alto valor agre-
gado se contrapõem às atividades de baixo valor agregado com típica es-
trutura de competição perfeita: baixo conteúdo de R&D, baixa inovação
tecnológica, informação perfeita, ausência de curvas de aprendizado e
baixas possibilidades de divisão do trabalho. A construção de um siste-
ma industrial complexo e diversificado é, portanto, a face mais visível
do processo de desenvolvimento econômico. A mera especialização em
agricultura e em atividades extrativistas, como mineração bruta, inibe
o florescimento deste tipo de evolução tecnológica. Atividades de baixa
qualidade são normalmente representadas por mercados em concorrên-
cia perfeita, em que os produtores não têm qualquer poder de monopó-
lio, ficando muito sujeitos às oscilações de mercado. Assumem a posição
de tomadores de preço e participam do sangrento “oceano vermelho” da
concorrência acirrada dentre vários produtores por bens sem muita dife-
renciação: o caso atual de Vietnã e Bangladesh. Por outro lado, as ativida-
des de alta qualidade normalmente envolvem dominar uma competên-
cia particular que as concorrentes não conseguem imitar com facilidade.
Neste sentido, falamos que setores de alta qualidade geralmente partici-
pam no “oceano azul” da concorrência imperfeita. Por definição, as ati-
vidades de alta qualidade aparecem em mercados com estruturas de oli-
gopólio e concorrência monopolíticas, o que já dificulta sobremaneira a
entrada de novos players de países emergentes. Pense num produtor de
limão tentando diferenciar seu produto de outros que concorrem com o
O setor de serviços
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produtividade do trabalho, de maneira a acomodar as crescentes aspi-
rações de consumo da massa de trabalhadores urbanos.
Daí surgiu a famosa Lei de Engel, segundo a qual o desenvolvi-
mento econômico ocasiona uma mudança qualitativa no orçamento fa-
miliar em que, inicialmente, os alimentos eram substituídos por bens ma-
nufaturados e, quando a economia se tornava industrialmente “madura”,
os serviços passariam a dominar os gastos de consumo das famílias. O
economista americano William Baumol deu uma explicação muito ele-
gante para a maior produtividade da indústria em relação aos serviços me-
nos sofisticados, isto é, não escaláveis (ou não sujeitos a economias de es-
cala): quando o trabalho é uma atividade-fim, como educação, saúde e
lazer, que são “tecnologicamente não progressivas”, fica muito mais difícil,
se não impossível, de obter a mecanização e o alcance de economias de es-
cala; ao contrário das atividades em que o trabalho é uma atividade-meio,
por exemplo, manufaturas que são “tecnologicamente progressivas” (Bau-
mol, 2012). Neste último caso, as economias de escala e de escopo estão
mais presentes, o que eleva os ganhos de produtividade dos setores.
Contudo, o leitor pode indagar: se a indústria é o motor mais
pujante do desenvolvimento, como podem as economias maduras
continuarem crescendo e se desenvolvendo se o setor de serviços não
está à altura do desafio? Esta é uma pergunta comum quando se con-
funde a indústria com a manufatura. Esta é apenas uma das repre-
sentações concretas do conceito mais amplo de “produção indireta”
associada ao termo “indústria”. O que realmente importa não é se a
produção ocorre em um chão de fábrica ou em um escritório clima-
tizado no Vale do Silício; o que vale é a densidade da rede de ativida-
des mutuamente relacionadas para produzir cooperativamente bens
e serviços complexos. Como o cardume está para os peixes e a alca-
teia para os lobos, a indústria é um coletivo para atividades produti-
vas complementares dentro de um setor. Podemos, claro, pensar em
economias de escala e escopo também em serviços mais sofisticados:
marketing, design, tecnologia da informação, finanças, advocacia etc.
O desafio é que muitos dos serviços não conseguem aumentar produ-
tividade de forma relevante e persistente pois não apresentam econo-
mias de escala nem possibilidade de mecanização: músicos, educação,
garçons, cabeleireiros etc. são iguais em todos os lugares. Como disse
Baumol (2012) em seu livro mais recente, a Nona Sinfonia de Beetho-
ven tem a mesma duração desde sua composição, mas os salários dos
membros da orquestra cresceram substancialmente desde então.
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3. Breve história da origem
do pensamento sobre
desenvolvimento econômico
A
dam Smith explicou a base do funcionamento do sistema
capitalista em sua famosa passagem de A riqueza das nações: “Não
é da benevolência do outro que devo aguardar o meu sustento,
mas do interesse que os outros têm pelos produtos que posso produzir”.
Quanto mais raro e mais valioso for o que eu produzo, maior o valor que
as pessoas estarão dispostas a pagar pelo meu esforço. Por outro lado,
quem não tiver talentos que lhe diferenciem dos outros estará fadado a
concorrer com vários outros também com potencial mediano e recebe-
rá menos pelo seu esforço. O capitalismo é baseado na liberdade de in-
ciativa, no autointeresse de se ganhar a vida por meio da venda de um
bem em troca de lucro, isto é, um ganho que exceda os gastos para ma-
nutenção do capital produtivo ou financeiro. Os proprietários de terra,
de imóveis e de invenções e patentes recebem uma renda por deterem a
propriedade deste capital na forma de juros, aluguéis e de royalties. Po-
rém, como ensinou Karl Marx, uma vez que nem todos têm capital ou
propriedades resta-lhes apenas a possibilidade de oferecer sua força de
trabalho e receber um salário em troca de sua produtividade.
Goste-se ou não do capitalismo, foi o arranjo institucional que
mais desenlaçou o potencial humano para a criação e para a produção.
Mais do que isso, como nos mostra Bresser-Pereira, só é possível pen-
sarmos em desenvolvimento econômico no contexto do capitalismo.
Justamente por ter sido este o único sistema capaz de difundir o tra-
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renda nas mãos de poucas pessoas muito ricas. As melhorias em ter-
mos de bem-estar são indiscutíveis. Em média, o mundo humano vive
mais, come mais e tem maior leque de possibilidades culturais. To-
davia, tamanha potência produtiva não é capaz de garantir a todas
as pessoas a boa qualidade de vida e a longevidade que a tecnologia
pode oferecer. Uma parcela ainda substancial da população mundial
não se beneficiou deste avanço técnico geral, sofrendo desnutrição e
enfermidades de fácil prevenção, analfabetismo e restrições materiais
das mais brutais. Eis a questão da distribuição do produto nacional e
da justiça social: quem ganha o quê e por que ganha tal quantia? Em
resumo, o problema econômico envolve duas grandes perguntas. A
primeira é: como aumentar a produtividade do trabalho humano por
meio da tecnologia e da organização eficiente da produção? A segunda
questão, por sua vez, é: como repartir os resultados deste esforço cole-
tivo entre todas as pessoas da sociedade de maneira a garantir a todos
um padrão mínimo de vida material e social? De forma mais simples:
como aumentar o tamanho do bolo e como dividir o bolo?
Desde antes de Adam Smith até meados dos anos 1960, a preocupação
central dos economistas era com a primeira pergunta, isto é, as causas
e os motores do crescimento econômico. No plano da discussão entre
economistas, o centro vai se deslocando dos metais preciosos e do co-
mércio (mercantilistas) para a qualidade produtiva da terra (fisiocra-
tas), daí migra para a combinação de máquinas e trabalho no espaço
da produção (economistas clássicos e neoclássicos), e, por fim, o mo-
tor do crescimento foi identificado na educação e na inovação tecno-
lógica (de Karl Marx, Joseph Schumpeter e Alfred Marshall em dian-
te). Mesmo quando o problema era a desigualdade, o foco da análise
recaía sobre as taxas desiguais de crescimento entre as nações, o cha-
mado problema da convergência dos níveis de renda ou catching-up.
Afinal, a organização doméstica da produção depende essencialmente
das trocas comerciais com outras nações. Nenhum sistema econômi-
co mais complexo é autossuficiente. Nenhum país pode contar apenas
com insumos produtivos domésticos e todas as competências técnicas
para produzir tudo o que precisa. A interdependência das nações é o
pano de fundo do desenvolvimento econômico.
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Logo, não seria à toa que seus teóricos ventilassem argumentos abstra-
tos – com verniz filosófico e científico – que reforçassem sua posição ge-
opolítica e comercial, e que negavam as práticas que a própria Inglaterra
adotou para se desenvolver. List costumava dizer que os países ricos “chu-
tavam a escada” do desenvolvimento após terem atingido um nível de
avanço econômico e tecnológico. Faziam isso para impedir que os países
atrasados desenvolvessem suas próprias forças produtivas e se tornassem
potenciais concorrentes no plano internacional.
Ciente de tal retórica ricardiana, List defendia que cada país
aplicasse tarifas comerciais sobre produtos importados que protegessem
a lucratividade de suas “indústrias infantes”, bem como lançasse mão
de subsídios que reduzissem o custo de produção dos bens a serem ex-
portados, para garantir maior competitividade. O que List propunha era
o ancestral do processo atual de incubadora tão praticado na conver-
são de uma ideia em produto comercial; observou essas políticas fun-
cionando nos Estados Unidos de Alexander Hamilton no final do sécu-
lo XVIII. Hamilton, o primeiro secretário do tesouro norte-americano
(1789-1795), está entre um dos principais formuladores de medidas pro-
tecionistas que estimularam a instalação e desenvolvimento da indústria
manufatureira norte-americana. Seu conhecido trabalho Report of the
Secretary of the Treasury of the United States, on the subject of manufactu-
res (1791) contém muitas das ideias que seriam depois formalizadas por
Friedrich List no argumento da proteção à indústria infante presente em
seu trabalho National system of political economy (1856).
Antes de List ter escrito seu famoso tratado sobre o assunto,
passou vários anos nos Estados Unidos estudando as práticas protecio-
nistas americanas. O projeto dos Estados Unidos, especialmente dos
estados do norte, se contrapunha frontalmente às recomendações do
liberalismo inglês que, segundo alguns americanos, era produzido para
exportação e não para consumo interno. Um dos exemplos do fervor
protecionista americano no século XIX encontra-se na Guerra Civil.
Além da questão da escravidão, o outro estopim do conflito foi o em-
bate entre o protecionismo da União, que representava as indústrias
do norte, e o liberalismo da Confederação, representando os interes-
ses agrícolas do sul. Abraham Lincoln foi eleito a partir do voto decisi-
vo dos estados protecionistas, especialmente New Jersey e Pensilvânia.
A vitória dos estados do norte na Guerra Civil transformou os Estados
Unidos em um dos mais assíduos praticantes da proteção à indústria
infante até a Primeira Guerra Mundial (ver DeLong e Cohen, 2016).
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mas a demanda por navios da Nova Inglaterra e outros bens manufa-
turados do norte cresciam criando uma nova dinâmica econômica. O
oeste se integrava como grande fornecedor de matérias-primas e agri-
cultura. Assim foi se formando a base da estrutura produtiva da econo-
mia americana. Douglass North analisa em detalhes como esse tecido
econômico evoluiu até 1860, às vésperas da grande Guerra de Secessão.
Lá já estariam presentes os elementos que fariam do norte os vence-
dores da batalha e a grande potência econômica americana em termos
regionais: a base produtiva manufatureira. Estrutura esta que serviria
de matéria-prima para os pensamentos de Hamilton e List sobre a im-
portância das manufaturas para o desenvolvimento econômico.
No início dos anos 1800, a indústria da Nova Inglaterra come-
çou a florescer: fabricação de casas com artesãos locais fornecendo para
as suas comunidades, fábricas de fiação de algodão, descaroçadores de
algodão, a indústria de armas com peças intercambiáveis, indústria de
ferro, fornos e laminadores foram rapidamente suplantando pequenas
forjas locais. Em 1804, um motor a vapor de alta pressão que era adap-
tável a uma grande variedade de fins industriais foi desenvolvido na Fi-
ladélfia. Dentro de alguns anos passou a equipar navios, serrarias, moi-
nhos de farinha, máquinas de impressão, bem como fábricas têxteis. A
construção ferroviária também desempenhou um papel importante no
transporte de pessoas e de carga para o oeste, aumentando o tamanho
do mercado americano. Com a nova infraestrutura, até mesmo partes
remotas do país ganharam a habilidade de se comunicar e estabelecer re-
lações comerciais com os centros de comércio da Nova Inglaterra. Os re-
tornos crescentes reinaram e as indústrias da Nova Inglaterra passaram
então a ser o principal fornecedor do sul agrário e do oeste agrícola du-
rante todo o período pós-guerra civil até o século XX. Numa dinâmica,
aliás, muito parecida com o que se observou no sudeste brasileiro, fazen-
do o café as vezes do algodão para a dinâmica brasileira e o estado de São
Paulo, se constituído como a nossa “Nova Inglaterra”. Claro que com um
século de atraso, já com o bonde da história perdido. Assim como a Nova
Inglaterra se tornou o polo econômico e financeiro dos EUA a partir de
sua primazia nas manufaturas, São Paulo também se tornou nosso polo
dinâmico e nossa Wall Street. Os robber barrons, barões ladrões america-
nos, reinaram nesse ambiente de pujança manufatureira e industrial do
nordeste americano. Ferrovias, aço, navios a vapor, eletricidade flores-
ceram nessa época e catapultaram os EUA para a posição de economia
mais importante do mundo já no início do século XX.
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trário de outros setores importantes para o Estado coreano, Park não
conseguiu convencer os grandes conglomerados (chaebols) a construí-
rem a planta, tendo que confiar o empreendimento a uma estatal.
Também em oposição aos outros setores, nos quais o Estado
coreano incentivou uma estrutura de competição oligopolista, a POS-
CO recebeu direito de monopólio sobre a produção de aço. O risco de
captura política acabaria sendo mitigado pelo status estratégico que
Park concedeu ao projeto. Por fim, os recursos das reparações de Guer-
ra eram limitados, de forma que a POSCO não poderia contar com eles
por muito tempo. Para assegurar a sobrevivência, a empresa teve que
embarcar em uma agressiva estratégia baseada em exportações para
se tornar competitiva. Em 1987, menos de 20 anos após recusar o em-
préstimo à POSCO, o Banco Mundial acabaria reconhecendo a empre-
sa como a mais eficiente produtora de aço do mundo. Setores a jusante
como o automobilístico, o naval, o eletrônico, o de construção civil e o
de eletrodomésticos passaram a ter uma fonte estável e competitiva de
aço para se desenvolver e alavancar a renda do país.
Tendo se transformado em menos de cinquenta anos de uma
pequena economia rural em um dos países mais tecnologicamente avan-
çados do mundo, a Coreia do Sul é provavelmente o melhor exemplo de
país que realizou catching-up por meio da implantação de políticas in-
dustriais. Sob o governo do famoso general Park, entre 1963 e 1979, o país
adotou uma estratégia de desenvolvimento, embasada no planejamento
e na aplicação de diretrizes que se revelariam muito bem-sucedidas na
promoção de avanços tecnológicos. A burocracia coreana foi responsável
não apenas pela criação desses planos, mas também pela sua aplicação
por meio da adoção de medidas de eficiência. A cada nova etapa de de-
senvolvimento, o Estado reavaliava os setores a serem incentivados. No
começo da década de 1960 foram priorizados os segmentos de perucas,
brinquedos, compensado de madeira, cimento, fertilizantes e fibras sin-
téticas. No começo dos anos 1970, indústrias de base, como a química, a
siderúrgica e a de maquinário foram as prioridades, de tal modo que, ao
final da década, a Coreia do Sul já tinha setores sofisticados de constru-
ção naval e aço. Houve então uma nova onda de substituição de importa-
ções que permitiu a produção de automóveis e, depois, a de eletrônicos.
Em meados da década de 1980, a Coreia do Sul já tinha uma indústria
autônoma intensiva em tecnologia que produzia peças para o setor auto-
motivo e bens de alta tecnologia, como computadores, chips de memó-
ria, eletrônicos e semicondutores para exportação (Amsden, 1992).
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trincavam, maçanetas se rompiam, freios falhavam e a pintura enfra-
quecia em semanas. Apenas em 1991 um motor nativo foi desenvolvido
e, mesmo assim, conforme suas próprias estimativas, sua produtivida-
de não atingia metade dos da Honda e da Toyota. A reputação da marca
foi péssima por anos, mas hoje a Hyundai é a terceira maior produtora
de carros no mundo. Foram anos de prejuízo, sustentados por genero-
sos subsídios do Estado, protecionismo, ajuda das demais empresas do
grupo (como o segmento de construção civil e naval) e pelas restrições
à entrada de concorrentes (apenas Hyundai e Daewoo podiam vender
carros leves). Diante do limitado mercado coreano, regulações restrin-
giam o número de modelos que podiam ser fabricados, buscando ge-
rar economias de escala. A partir de 1985, a guerra comercial EUA-Ja-
pão facilitou o acesso coreano ao mercado norte-americano e mudou
a empresa de patamar. A Hyundai também tinha um grande programa
de integração tecnológica com os japoneses. A Samsung tentou fabri-
car carros leves, mas sem muita relevância, e a Ásia Motors também.
Concorrência interna e as metas de melhoria dos produtos foi algo exi-
gido pela ditadura coreana; os primeiros motores foram desenvolvidos
por empresas menores compradas pelo grupo Hyundai. Demorou e foi
custoso, mas o Estado e a empresa seguiram comprometidos com uma
estratégia nacional de desenvolvimento baseada em aprendizado pro-
dutivo e tecnológico (ver Lee, 2011 e Kim e Vogel, 2011).
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harmônica, segundo a qual cada indivíduo e cada nação coopera com
o bem-estar mundial por meio de um critério técnico e abstrato, as
“vantagens comparativas”. List explicita, por sua vez, que o comércio
entre nações é uma das faces da geopolítica. Países mais ricos fazem
uso do comércio mundial para ampliar e explorar as assimetrias tec-
nológicas, militares e econômicas existentes entre economias em di-
ferentes estágios do desenvolvimento de suas forças produtivas.
O
s pioneiros do desenvolvimento desafiaram a visão neo-
clássica acerca da eficiência do mercado, a flexibilidade do
sistema de preços e a elasticidade das estruturas produtivas
como forças que dirigiriam espontaneamente a mudança estrutural
que caracteriza o desenvolvimento econômico. Diferente da pretensa
universalidade das abstrações neoclássicas, a teoria do desenvolvimen-
to já nasceu cosmopolita e, portanto, reconhecia a heterogeneidade
das experiências nacionais. Dentre os nove pensadores tão bem retra-
tados por Fernanda Cardoso (2018) em Nove clássicos do desenvolvimen-
to econômico, três eram do Leste Europeu e três eram latino-america-
nos, de maneira que esses autores se preocupavam com a realidade das
economias atrasadas, isto é, com a periferia do sistema. Vários destes
intelectuais tiveram ampla experiência de emigração e exílio (Rosens-
tein-Rodan, Nurkse, Singer, Hirschman, Furtado), de forma que sua vi-
são de economia foi, assim, profundamente inspirada e motivada pela
experiência real com a pobreza e o subdesenvolvimento em seus paí-
ses. Estes aspectos conferem à teoria do desenvolvimento uma nature-
za holística, que combina aspectos sociais, históricos, políticos e insti-
tucionais, além dos eminentemente econômicos.
Além disso, esta teoria tem uma vocação imediata à sua apli-
cação na forma de políticas de desenvolvimento. Isto se deve ao fato
de que muitos destes autores foram ligados aos organismos multilate-
rais criados no pós-guerra, em sua maior parte vinculados à ONU. Na
CEPAL, Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, esta-
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ção devido ao aumento no poder de barganha dos trabalhadores. Com
vistas a elevar a rentabilidade dos investimentos, as empresas dos países
industrializados passaram então a buscar matérias-primas, trabalho ba-
rato e demanda para seus produtos no mundo subdesenvolvido. Como
nestes países não existe uma estrutura sindical organizada e raramente
as elites econômicas detêm um projeto de desenvolvimento autônomo,
nasce uma interação específica entre os interesses estrangeiros e os das
elites dirigentes. Formam-se alianças com as elites locais para bloque-
ar o avanço de forças sociais que acompanham o desenvolvimento eco-
nômico e que poderiam vir a ameaçar a estrutura social vigente. Afinal,
não é do interesse das empresas estrangeiras o desenvolvimento local,
pois isso poderia levar ao aumento do poder dos trabalhadores e con-
sequentemente à elevação dos custos das matérias-primas a serem ex-
portadas para o centro, além do surgimento de concorrência industrial.
Desta forma, não se observa a formação nem de uma “burguesia na-
cional” nem um “capitalismo autóctone”, que poderia conduzir ao que
Acemoglu e Robinson (2012) chamaram de instituições inclusivas em
seu livro Por que as nações fracassam. Ao penetrarem nos esquemas pro-
dutivos destes países, as empresas estrangeiras não promovem a mesma
modernização econômica, tecnológica e institucional que o desenvolvi-
mento do capitalismo imprimiu nos países centrais.
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capitalismo, dependência e subdesenvolvimento torna-se um elemento
indispensável para a análise da evolução econômica da América Latina.
Em resumo, podemos esquematizar o núcleo da Teoria Cepa-
lina do desenvolvimento latino-americano em duas proposições cen-
trais: I) economias latino-americanas desenvolveram estruturas pouco
diversificadas e integradas; setor primário-exportador dinâmico, po-
rém incapaz de difundir progresso técnico para o resto da economia, de
empregar produtivamente o conjunto da mão de obra e de permitir o
crescimento sustentado dos salários reais; livre comércio aprofundaria
estes traços ao longo do tempo na ausência de uma indústria dinâmica e
II) ritmo de incorporação do progresso técnico e de aumento na produ-
tividade é maior nas economias industriais (centro) do que nas especia-
lizadas em produtos primários (periferia), gerando a diferenciação secu-
lar da renda em favor do centro; os preços de exportação dos produtos
primários apresentam tendência declinante em relação aos produtos in-
dustrializados: dá-se aqui a percepção de que a tendência à deterioração
dos termos de troca levaria à transferência dos ganhos de produtividade
do setor primário-exportador para os países industrializados.
Originalmente, a abordagem cepalina se apresentou como um
corpo teórico não formal, em que a elaboração de hipóteses, conceitos
e implicações foi conduzida paralelamente à descrição dos aspectos da
realidade econômica da América Latina. Por isso, há certa ambiguida-
de na especificação das hipóteses e definições básicas das relações cau-
sais entre as variáveis e predições da teoria cepalina. Como argumentou
Colistete (2007, p. 27), as proposições requerem que se explicitem e se
verifiquem algumas hipóteses adicionais para que se possa avaliar a va-
lidez da abordagem como um todo. Supõe-se que os efeitos dinâmicos
sobre a economia seriam mais intensivos em uma economia industrial.
Logo, a diversificação industrial seria o principal meio para reverter os
efeitos negativos da especialização primária. Não há na teoria, todavia,
qualquer especificação quanto à natureza da diversificação industrial,
apenas a ênfase na indústria de bens de capital como o núcleo da gera-
ção e difusão do progresso técnico. O processo de industrialização de-
veria incorporar setores de bens de produção mais complexos e capazes
de gerar e difundir progresso técnico por toda a estrutura industrial. Já
as hipóteses adicionais postulam que a produção primário-exportado-
ra é limitada em termos de incorporação de valor agregado e, por con-
sequência, que os efeitos de encadeamento das atividades exportadoras
sobre os outros setores produtivos são limitados.
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R$ 400 em 2018, ou seja, R$ 6,6 o quilo, se transforma numa cápsula que
é vendida no varejo brasileiro por R$ 400 o quilo. O preço remunera a
construção da fábrica e gera um fluxo de salários e produtividade lá bem
maior do que aqui. Depois, a cápsula é reexportada para o Brasil e vendi-
da por um preço 70 vezes maior do que o preço de saída. Aqui, um lojista
brasileiro ganha um salário baixo de serviço não sofisticado para vender
a cápsula. O barista consegue ainda adicionar algum valor para tentar
vender o produto um pouco mais caro. O ciclo de pobreza e riqueza do
café se fecha então. Quem ganhou dinheiro mesmo foram os alemães e
suíços que processaram o café. Algo parecido com o café ocorre também
no petróleo brasileiro: exportamos cada vez mais óleo bruto e importa-
mos derivados como querosene de aviação, nafta, solventes, coque e lu-
brificantes. Nossas refinarias vão ficando ociosas e atrasadas.
Praticamente tudo o que comemos no café da manhã, almoço
e jantar depende de gigantes multinacionais suíças, francesas, inglesas e
americanas. Países ricos importando as matérias-primas dos emergentes,
processando, colocando suas marcas e revendendo com mais valor. A Gi-
vaudan, IFF, Firmenich, quase todas suíças, compram ingredientes bá-
sicos e simples no Brasil, processam, produzem essências, condimentos
e extratos e depois vendem para a Unilever e outras gigantes. Estas, por
sua vez, adicionam isso a outras matérias-primas e produzem alimentos
processados; põem suas marcas e vendem nos supermercados brasilei-
ros. Há oligopsônio na compra dos ingredientes básicos, poucos e enor-
mes compradores, e oligopólio na venda dos alimentos processados, pou-
cos vendedores muito grandes. Onde fica o lucro? As matérias-primas da
África, Ásia e América Latina viram lucro na Suíça, Alemanha, França e
EUA –café, cacau, frutas, especiarias, condimentos. Poder de monopólio,
marcas fortes, concentração de mercado, diferenciação de produtos ga-
rantem a concentração produtiva e de lucros. Mesmo raciocínio se aplica
a aromas, fragrâncias, perfumes, desodorantes, detergentes, sabão, bebi-
das; frutas naturais para extração de óleo; especiarias como cravo e cane-
la, flores como hibisco e maracujá e extratos botânicos, e milhares de ou-
tras matérias-primas. A CEPAL segue mais atual do que nunca.
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combinação de negócios, operações e bases acionárias, está avaliada em
US$ 11 bilhões; com a combinação dos negócios passará a ser a quarta
maior empresa de cosméticos do mundo, com quase 70% das receitas
vindas do exterior. Embora o negócio tenha iniciado com uma primeira
loja física em 1970 na rua Oscar Freire, em São Paulo, com atendimen-
to pessoal de Luiz Seabra, foi com o modelo de negócios de venda direta
adotado a partir de 1974 que a empresa se solidificou. A venda direta é o
famoso “porta a porta”, na qual revendedores fazem a venda aos consu-
midores no ambiente doméstico ou profissional, sem envolvimento do
varejo tradicional. Caracteriza-se por margem de lucro alta, pois o con-
sumidor paga o preço do varejo sem o envolvimento deste último.
Em 2009, 40 anos após a sua fundação, a Natura registrou 1
milhão de consultoras. Com a junção de negócios com a Avon, passa-
rão a ser mais de 6,3 milhões de representantes e consultoras da Avon
e Natura. Fortemente aderente à cultura da sustentabilidade e com es-
tratégia de valorização da brasilidade, a Natura se destacou nos anos
2000 com o lançamento da linha Ekos, com ativos da biodiversidade
nacional, com a formação de fornecedores locais na Amazônia. A es-
tratégia da empresa incluiu desenvolvimento de capacidades produti-
vas nas comunidades, pesquisas sobre biodiversidade, reforma de es-
colas e construção de fábricas no Pará. O mercado internacional foi
explorado inicialmente via contrato de distribuição no Chile, em 1982.
A segunda etapa consistiu na instalação de operações na Argentina e
Peru, em 1992. Mais de uma década depois, em 2005, a Natura abriu
loja em Paris, e, em 2016, em Nova York, além de várias outras no Bra-
sil. Mais recentemente, a Natura adotou arrojada estratégia de con-
solidação com aquisição da Aesop em 2013 e The Body Shop em 2017
(esta última por €$ 1 bilhão), e agora recentemente a Avon.
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Para entender melhor o funcionamento desses processos use-
mos o que os estatísticos chamam de “urna de Polya”. Imagine uma
urna que contém inicialmente 10 bolas azuis e 10 bolas vermelhas; ago-
ra, para cada bola azul retirada aleatoriamente da urna acrescente mais
uma azul e repita o procedimento para bolas vermelhas. Depois de al-
gum tempo a urna estará mais carregada de bolas azuis ou vermelhas
dependendo da aleatoriedade dos passos iniciais do processo. Digamos
que o acaso tenha favorecido as bolas azuis no começo, depois de mui-
tas repetições deste processo a urna estará cheia de bolas azuis e com
uma proporção bem pequena de bolas vermelhas. Quanto mais bolas
azuis se coloca na urna, maior a probabilidade de se retirar novamente
uma bola azul. Se o processo continuar, as bolas vermelhas praticamen-
te desaparecerão como proporção das azuis. Esse tipo de dinâmica ilus-
tra claramente um processo de retornos crescentes e path dependent.
Poderíamos, por exemplo, dizer que Alemanha, Japão, China e
Coreia do Sul hoje seriam as indústrias sofisticadas “bolas azuis”. Faça-
mos agora o mesmo experimento com duas urnas de Polya, uma brasilei-
ra e outra alemã: cada bola azul (indústria high tech) sorteada na urna da
Alemanha implica retirar uma bola azul da urna brasileira. E assim conti-
nuamos sorteando bolas na urna alemã e cada vez que sai uma azul, tira-
mos mais uma do Brasil e mandamos para lá. Depois de algumas rodadas,
teremos muito mais bolas vermelhas (indústrias simples) para o Brasil e
mais bolas azuis para a Alemanha. Por que isso ocorre? As economias de
escala e retornos crescentes geram forças centrípetas (em relação aos po-
los já existentes), e os custos de transporte, do trabalho e de ocupação ge-
ram forças centrífugas. As gigantescas economias de escala da Alemanha
(ou de China e EUA) atrairão para si, como bombas de sucção, bolas azuis,
até que os custos de transporte e trabalho interrompam o processo.
A localização das redes produtivas ao redor do globo depende-
rá, portanto, da resultante dessas forças, trazendo importantes conse-
quências para países desenvolvidos e em desenvolvimento. No caso do
comércio internacional, esse processo cumulativo é atenuado por fric-
ções como os custos de transporte, barreiras comerciais (tarifárias e
não tarifárias), bem como políticas de administração da taxa de câmbio
e de fomento de indústrias estratégicas locais. Para mais detalhes de
experiências internacionais neste sentido, Chang e Lin (2009) é uma
leitura imperdível. Krugman, Fujita e Venables (1999) também discu-
tiram amplamente essas ideias do ponto de vista teórico em seus mo-
delos do tipo centro periferia da chamada nova geografia econômica.
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Uma outra questão fundamental sobre a relação entre redes
produtivas e o desenvolvimento econômico diz respeito à “transaciona-
bilidade” dessas redes (ou tradeability, como bem argumentou Gunnar
Myrdal em seus trabalhos pioneiros sobre o tema). Este conceito se re-
fere à dificuldade de levar tais redes para fora do país, como um quebra-
-cabeças que, uma vez montado, precisa ser transportado. Vale destacar
que as capacidades produtivas locais contidas nessas redes são insumos
não transacionáveis; as redes produtivas não “viajam bem” e, portanto,
são locais e se instalam em determinados países. Nessa perspectiva fica
evidente que uma abertura ampla e generalizada do comércio mundial
não afetaria uniformemente todos os países. Mais do que isso, o jogo
tende a ficar desequilibrado de forma persistente e as diferenças tecno-
lógicas entre países tendem a se autorreforçar. A partir da relação das
suas estruturas produtivas locais com as dos seus parceiros comerciais,
há uma tendência a se gerarem fortes concentrações regionais das in-
dústrias mais sofisticadas, com maiores retornos de escala e com menor
transacionabilidade: as redes não saem dos países. Ainda na linha de
Myrdal, o que se observa é um processo de causação cumulativa, em que
países com estruturas produtivas menos sofisticadas têm mais dificul-
dade de entrar na liga dos campeões. Esta dificuldade aumenta quanto
mais tempo permanecem fora da liga, tornando cada vez menos plau-
sível seu aprimoramento produtivo para concorrer com os campeões
mundiais (o que chamamos de catching-up).
Essa discussão já estava presente nos clássicos trabalhos de Al-
fred Marshall sobre economias de aglomeração, redes produtivas locais
e externalidades positivas presentes nas análises de “distritos indus-
triais” do final do século XIX. O desenvolvimento econômico é sempre
um fenômeno regional e local. As regiões, cidades e países que têm as
redes produtivas mais complexas e sofisticadas são ricos e desenvolvi-
dos. Os insights de economias de rede são, portanto, chave para se en-
tender a complexidade produtiva dos diversos países e sua conexão com
desenvolvimento econômico. A criação de produtos complexos requer
grandes redes produtivas, com ampla integração entre firmas. Os exem-
plos clássicos aqui são computadores, automóveis e aviões que necessi-
tam de uma infinidade de fornecedores e produtores, dentro do próprio
país de produção e fora, integrados ao processo produtivo: as chamadas
cadeias globais de valor. No caso de um avião da Boeing, por exemplo,
as turbinas são feitas na Europa e nos EUA, as asas na Ásia, o trem de
pouso no Reino Unido e partes da fuselagem no próprio Estados Uni-
Shenzhen
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maiores e mais importantes da China, localizada na província de Guang-
dong, no sul do país, ao norte de Hong Kong. Era uma vila de pescado-
res com menos de 100 mil habitantes nos anos 1970, hoje tem mais de 15
milhões de moradores. Foi a primeira cidade chinesa a abrigar uma zona
econômica especial, implementada pelo governo chinês em 1979 e que
transformou radicalmente a cidade numa base exportadora de manufa-
turas high tech. Sua população cresceu mais de 5000% nesses últimos 33
anos, e sua economia, mais de 9000% desde então. O poderio econômico
apresentado por Shenzhen, figurando como um dos principais centros fi-
nanceiros, urbanos, culturais e administrativos da China atual, é fruto de
gigantescos estímulos do governo e atração de investimento estrangei-
ro. Em 2010 Shenzhen ficou na 4ª posição entre as cidades mais ricas da
China, ficando atrás somente de Xangai, Hong Kong e da capital Pequim.
A cidade virou o “Vale do Silício da China” e superou a renda
per capita do experimento liberal mais bem-sucedido do pós-guerra,
Hong Kong, seu vizinho no Delta do Rio Pérola. O feito é impressio-
nante por vários motivos. Escolhida como primeira Zona Econômica
Especial para testar as reformas na China pós-Mao, Shenzhen iniciou
seu crescimento, em grande medida, por meio de investimentos ex-
ternos diretos de Hong Kong, que na época era industrializado. Colô-
nia britânica até 1997, Hong Kong adotou uma via mais liberal ofere-
cendo sua vantagem comparativa na época, a mão de obra barata, em
troca de investimentos externos para produzir bens simples. Quando
os custos aumentaram, as fábricas partiram para lugares como Shen-
zhen. Sem indústria, e com localização e topografia apropriadas, Hong
Kong se especializou em serviços desde então. Já Shenzhen, por meio
de incessante planejamento governamental, tornou-se referência em
alta tecnologia. No início o governo constituiu uma “zona econômica
especial” dando isenção tributária geral para quem ali produzisse para
exportação; ao mesmo tempo promoveu forte política de proteção ta-
rifária protegendo as indústrias chinesas nascentes. Num segundo mo-
mento, convidou os estrangeiros para usar essa incrível base logística
na foz do Rio Pérola, repleta de mão de obra produtiva e barata. Auxi-
liou também a região e o país com uma política cambial ultracompe-
titiva para conquista de mercados no mundo. O aprendizado tecno-
lógico ali foi incrível. Nos estágios finais as tarifas foram removidas e
Shenzhen virou um filho prodígio. A cidade de Shenzhen produziu em
2010 mais de 75% dos tablets do mundo. É hoje um dos principais clus-
ters regionais que produzem novas tecnologias para o mundo.
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países emergentes e desenvolvidos. Ou seja, o Brasil sofre em termos
de composição setorial “ruim” para produtividade e de nível baixo de
produtividade mesmo dentro dos setores “corretos”. Temos uma con-
figuração setorial ruim no sentido de perda de espaço da manufatura
e aumento de espaço do setor de serviços tradicionais. Muitos empre-
gos ainda em agricultura familiar e subsistência, sem escala e meca-
nização. Então, nossa produtividade em agricultura é baixa quando
comparada a países ricos. Nossa indústria também é fraca e atrasada
em relação ao que se vê em países ricos desenvolvidos; o grosso que te-
mos de produção industrial é low tech, enquanto países desenvolvidos
têm indústrias middle tech e high tech. Nossos serviços tradicionais
também são ultrassimples, sem mecanização no pouco que é possível.
Em commodities somos muito produtivos, por exemplo em Petrobras
e Vale, mas esse setor ocupa menos de 2% do nosso emprego total. Em
serviços modernos também vamos bem, mas é um setor pequeno do
ponto de vista de geração de empregos. Temos, portanto, baixa produ-
tividade dentro de nossos setores econômicos e também maior parti-
cipação de setores com baixa produtividade intrínseca no PIB.
O
tema da complexidade ganhou destaque em economia
com os trabalhos de Brian Arthur na liderança do Instituto
Santa Fé no Novo México, no final dos anos 1980. Com apli-
cações em várias frentes, a perspectiva de sistemas dinâmicos com-
plexos tem sido usada em diversos campos de pesquisa em economia
e outras ciências, tais como teoria dos jogos, ciência política, biologia,
física. Em economia, as aplicações originais modelavam o funciona-
mento de mercados financeiros, como os indivíduos tomam decisões
em variados contextos, bem como estudos sobre path dependence, isto
é, dinâmicas que dependem de sua trajetória inicial. Recentemente,
os físicos Albert Barabási e César Hidalgo e o economista Ricardo
Hausmann deram novo impulso ao estudo dos sistemas complexos
em economia ao disseminar o uso das redes complexas para o estu-
do do comércio internacional. O mais recente Altas da Complexidade
Econômica de 2011 combina avanços dessa discussão de complexi-
dade com a tecnologia de Big Data para criar um dos mais modernos e
relevantes banco de dados em economia na atualidade. A ironia é que
toda a sofisticação da metodologia de análise dos dados obtém resul-
tados empíricos incrivelmente próximos às teses defendidas por an-
tigos economistas do desenvolvimento e estruturalistas, como vimos
nos capítulos anteriores.
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dos conseguem fabricar. Neste caso, as pautas exportadoras desses pa-
íses são extremamente diversificadas. Por fim, países que tenham uma
pauta muito diversificada, mas com bens ubíquos (peixes, tecidos, car-
nes, minérios etc.), deixam a desejar em termos de complexidade eco-
nômica; não têm nenhum diferencial produtivo relevante.
A comparação entre Cingapura e Paquistão ajuda a ilustrar a
metodologia. Os dois países têm aproximadamente o mesmo tamanho
de PIB, mas o Paquistão é 34 vezes mais populoso do que Cingapura, de
forma que é muito mais pobre em termos per capita. A diversidade de
exportação do Paquistão e de Cingapura é praticamente a mesma: am-
bos os países exportaram aproximadamente 133 produtos distintos em
2014. Todavia, o indicador de complexidade econômica (ECI) é bastan-
te diferente entre os dois: em 2014 o Paquistão tinha uma complexida-
de econômica de -0.75 e Cingapura de 1.40, significando que o segundo
país era bem mais complexo do que o primeiro nesse ano. Os produtos
exportados pelo Paquistão são também exportados por países que têm
pautas de exportações pouco diversificadas, enquanto produtos expor-
tados por Cingapura são exportados por concorrentes com exporta-
ções diversificadas e não ubíquas. Paquistão exporta tecidos, toalhas e
lençóis principalmente. Cingapura exporta máquinas, computadores e
circuitos integrados majoritariamente.
A capacidade exportadora dos diversos países no mercado
mundial é medida no Atlas através da vantagem comparativa revelada,
uma comparação entre a participação de cada bem na cesta exportado-
ra de um país em relação a participação do bem no comercial mundial.
Quem exporta muito em termos relativos demonstra muita competên-
cia e vantagem na produção daquele bem. Uma das grandes virtudes
dos indicadores de complexidade é que eles trabalham com medidas
quantitativas a partir dos cálculos de álgebra linear para chegar aos re-
sultados. Isso significa que não há juízo de valor em relação ao que se
considera complexo ou não complexo. Outra vantagem interessante
está na identificação de enormes mudanças nas tecnologias produti-
vas ao longo do tempo de forma ajustada ao paradigma tecnológico de
cada era. Por exemplo, uma televisão dos anos 1970 é completamente
diferente de uma televisão de 2014. Um carro, avião ou motocicleta dos
anos 1980 não se comparam aos seus modelos atuais. Ainda assim a me-
todologia do Atlas da Complexidade captura a dificuldade relativa em
se produzir cada bem em qualquer momento do tempo. Um país capaz
de produzir uma motocicleta hoje talvez fosse incapaz de produzi-la em
A escada tecnológica
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gica em direção a produtos processados, ao queijo e aos cosméticos
por exemplo, vamos adicionando camadas de sofisticação e etapas de
produção, envolvendo processos mais complicados e que requerem
maior conhecimento para que tudo saia como desejado pela socieda-
de e pelos consumidores. São produtos de baixa e média intensidade
tecnológica que, em geral, pagam maiores salários e trazem mais pro-
dutividade aos trabalhadores em processos fabris de produção. Mais
acima na escada encontramos a nata do conhecimento e do conteúdo
tecnológico. O último estágio dessa subida é representado por produ-
tos de alta intensidade tecnológica, fortemente industrializados e que
em geral demandam também serviços muito sofisticados. Por exem-
plo medicamentos e aparelhos de raio-X, cujas produções requerem
os mais qualificados conhecimentos e máquinas de altíssima precisão.
Nestes exemplos retirados do Atlas da Complexidade Econô-
mica podemos entender por que alguns países conseguem enriquecer e
outros não e por que o Brasil parou no tempo. A Holanda, por exemplo,
se industrializou muito, e é capaz de produzir bens de média e alta tec-
nologia como máquinas de raio-X e medicamentos (bem não ubíquos).
A Argentina, por outro lado, está no estágio da renda média, produzin-
do bens de baixa densidade tecnológica (ou low tech) e de média inten-
sidade (medium tech), como alimentos processados e ceras de sapato;
o Brasil também se encontra nesse estágio hoje. Gana, na África, é um
país muito pobre, onde a pesca ainda constitui importante fonte de ren-
da e de nutrição para a população. A Holanda também faz queijos ex-
celentes, ceras de sapato e tem um razoável setor pesqueiro. Consegue
fazer o que todos conseguem fazer, mas também faz mais coisas que
poucos países no mundo são capazes de fazer.
Áustria, Finlândia, Dinamarca e Suíça estão entre os países
mais complexos e sofisticados do mundo. Áustria está hoje na fronteira
tecnológica de produção de aço e materiais metálicos hipersofisticados.
A aldeia austríaca de Donawitz tem sido um centro de fundição de fer-
ro desde o século XIV, quando o minério era escavado de minas nos pi-
cos nevados nas proximidades. Ao longo dos séculos, Donawitz desen-
volveu-se como o centro de produção de aço do Império Habsburgo e,
no início dos anos 1900, tinha a maior planta de produção da Europa.
Com a abertura recente do novo laminador Voestalpine AG, a indústria
segue robusta e absurdamente produtiva. Nesta fábrica totalmente au-
tomatizada, 14 pessoas vão produzir 500.000 toneladas de aço por ano.
A Finlândia, pequena, rural, periférica e de renda média baixa no início
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modernizados pela Saab. Em 2006, a Ericsson Microwave Systems foi
vendida para a Saab por US$ 521,5 milhões junto com a participação de
40% da empresa na joint venture Saab Ericsson Space. A empresa ale-
gou que a venda ajudava em seu processo de reestruturação para focar
exclusivamente no setor de telecomunicações.
A Dinamarca, com uma população de 5,5 milhões de habitan-
tes, empregava 414.000 pessoas nos setores de manufaturas, minera-
ção e agricultura e exportava US$ 88,4 bilhões em 2010 (US$ 213 mil per
capita exportado no ano). O Senegal, com 15,8 milhões de habitantes,
empregava 2.673.000 nesses mesmos três setores e exportava US$ 2,5
bilhões em 2010 (US$ 939 por ano per capita). Uma diferença de 230 ve-
zes. Claro que parte do que se exporta é importado antes, especialmen-
te na Dinamarca, então teríamos que descontar da exportação a impor-
tação direta relacionada, dados bem mais difíceis de se conseguir, além
do consumo interno. Ainda assim, percebe-se a brutal diferença de pro-
dutividade de um trabalhador dinamarquês em relação a um senegalês.
Essa diferença se encontra no setor de bens transacionáveis, especial-
mente manufaturas. O estado dinamarquês sempre se destacou por po-
líticas de fomento à inovação e hoje o país está na fronteira do mundo
na produção e inovação em robótica e drones, por exemplo.
O produto industrializado mais exportado pela Suíça em 2017
foi medicamento. O produto químico mais exportado pelo Brasil em
2017 foi óxido de alumínio, um bem que os economistas chamam de
commodity por não ser um produto sujeito a muitas diferenciações
entre produtores concorrentes. No outro extremo, a produção de me-
dicamentos envolve uma intrincada divisão de tarefas entre trabalha-
dores altamente especializados. Trata-se de um processo produtivo
muito mais indireto, encadeado e complexo do que de óxido de alu-
mínio. Medicamentos são intensivos em P&D e exigem conhecimen-
to formal, prático e organizacional de várias áreas complementares
entre si. Esta densidade de know-how custa muito caro às empresas,
levando as mesmas a solicitar patentes que garantem direitos de uso
exclusivo, a menos que se paguem royalties para usar as ideias e pro-
cessos inovadores. Como complexidade e conhecimento se retroali-
mentam, o desenvolvimento de medicamentos gera muito mais ino-
vações e transbordamentos do que a produção de óxido de alumínio.
O Brasil, com quase 210 milhões de habitantes, exporta por ano
cerca de US$ 220 bilhões. A Suécia, com 10 milhões de habitantes, ex-
porta cerca de US$ 140 bilhões. Ou seja, a Suécia tem somente 5% da
Hubs de conhecimento
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mundo. Por outro lado, pedras preciosas, petróleo, minerais, peixes e
crustáceos, frutas, flores e agricultura tropical apresentam baixíssima
complexidade. Têxteis, equipamentos para construção e alimentos pro-
cessados situam-se numa posição intermediária. A grande maioria de
patentes existentes no mundo hoje estão ligadas a bens manufaturados
(ver Schoen et al., 2012). Apenas cinco setores produtivos concentram
90% das patentes mundiais: I) engenharia elétrica, II) ótica e instrumen-
tos de precisão, III) química, Iv) fármacos, e v) engenharia mecânica e
metalurgia. Bens com muita complexidade são uma espécie de “hub de
conhecimento produtivo”. Estão carregados de potencial de conheci-
mento e de tecnologia. Produzir um desses bens aumenta a probabili-
dade de produzir algo próximo com tecnologia parecida. Produzir bens
complexos facilita a nova produção de outros bens complexos, cria-se
alto potencial multiplicativo de conhecimento.
Alguns exemplos históricos interessantes: o Tratado de Versa-
lhes proibiu a produção de aviões na Alemanha, e a BMW, que produ-
zia turbinas para os aviões, começou a produzir motores de moto, de-
pois motos e carros. Na Suécia, a Saab fazia aviões e começou depois a
produzir carros (recentemente a empresa foi vendida aos chineses). A
Rolls Royce começou a produzir carros e depois foi para as turbinas.
A Lamborghini começou produzindo tratores e depois avançou para a
produção de carros, segundo a lenda, após uma rixa do fundador com
Enzo Ferrari sobre a má qualidade das Ferraris. A Hyundai começou na
construção civil, avançou para navios e depois para carros. No Canadá,
a Bombardier começou fazendo veículos para andar na neve, o Ski-Doo,
depois avançou para aviação e trens. A divisão de veículos recreacionais
da Bombardier, a Bombardier Recreational Products, explora até hoje
produtos como Sea-Doo (jet skis) e snowmobiles.
Países que produzem motores de carros avançados provavel-
mente tem engenheiros e conhecimentos que permitem produzir uma
série de coisas similares e sofisticadas como motores de barcos, de mo-
tos e outros tipos de motores. Países que produzem somente bananas
ou frutas têm conhecimentos limitados e provavelmente serão incapa-
zes de fazer bens mais complexos no futuro. Uma turbina de avião tem
potência de pelo menos 100.000 cavalos. Inclui milhares de peças mili-
metricamente encaixadas. Um motor turbojato funciona comprimindo
o ar e fazendo sua combustão através de um compressor que mistura
combustível com o ar comprimido e um combustor que queima a mis-
tura e passa o ar quente de alta pressão através de uma turbina e um bo-
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ficadas, não só porque têm um mercado interno maior, mas também
porque são mais diversificadas em termos do que podem vender para
outras cidades e países (ver Balland, 2020).
As cidades são os locais onde as pessoas que se especializaram
em diferentes áreas de conhecimento se reúnem para combinar o seu
know-how. Como bem demonstram Hausmann e Hidalgo na aborda-
gem de complexidade, cidades ricas são caracterizadas por um conjunto
mais diversificado de habilidades que apoiam um conjunto mais diversi-
ficado e complexo de indústrias e, assim, proporcionam mais oportuni-
dades de emprego para os diferentes especialistas. No processo de desen-
volvimento econômico, cidades, estados e países não se especializam, se
diversificam. Evoluem de sistemas com algumas indústrias simples para
um conjunto cada vez mais diversificado de indústrias mais complexas.
As maiores economias do mundo são também as mais complexas.
Seguindo a metáfora de Hidalgo e Hausmann, o desenvolvi-
mento econômico pode ser entendido com o uso do brinquedo Lego.
São ricos e desenvolvidos aqueles países que possuem muitas peças e
são capazes de montar “brinquedos” complexos. O que são as peças de
Lego? São as capacidades locais de produção ou competências técnicas
de um país; não das pessoas individualmente, mas das empresas e orga-
nizações de uma determinada sociedade. Quanto maior e mais diversi-
ficado o número de empresas de um país, maior a quantidade de peças
que são conhecidas e maior a quantidade de produtos que podem ser
feitos. Cada peça é uma capacidade produtiva que pode ser combina-
da com outra para gerar um produto (brinquedo). Dentro das empresas
existem, portanto, várias capacidades produtivas que podem ser usadas
em várias direções. Quanto maior a diversidade de empresas, maior a
disponibilidade de capacidades e, portanto, maior o potencial de se pro-
duzir mais coisas e mais complexa a economia.
Como consequência da lógica acima, se um país se especiali-
zar na geração de produtos simples e não caminhar na direção de com-
plexidade e diversificação não conseguirá progredir. Por isso a ideia de
vantagens comparativas deve também ser pensada em termos dinâmi-
cos. Como bem apontam os autores destacados nessas discussões, o
processo de desenvolvimento se dá num ambiente de intensa competi-
ção e nações ricas lutam para preservar suas vantagens competitivas em
relação aos países em desenvolvimento em mercados de produtos mais
sofisticados, tornando o processo de crescimento de economias muito
mais desigual e assimétrico. Países de sucesso são aqueles que conse-
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automotiva e a indústria de informática são a criação de políticas de
substituição de importações, seguidas por políticas tarifárias preferen-
ciais no âmbito da NAFTA. O papel desempenhado por essas políticas
no Leste Asiático é bem conhecido. O que é menos apreciado é a forma
como o mesmo vale também para a América Latina. Quando se deixa de
lado as exportações de commodities tradicionais, tais como cobre, pe-
tróleo bruto e bens agro, aparecem produtos que foram grandes benefi-
ciários de políticas industriais. No caso do Brasil, o aço, aviões e a indús-
tria calçadista foram criação de políticas de substituição de importações
do passado. Altos níveis de proteção, subsídios e crédito público foram
deliberadamente usados para gerar rendas para os empresários que in-
vestiram em novas áreas e para construir clusters industriais.
No caso do Chile, políticas industriais desempenharam um
grande papel nos setores de frutas, madeiras e salmão. A Fundacion
Chile é um órgão público que foi criado por fundos doados pela ITT;
começou a experimentar com salmão na segunda metade da década
de 1970 e criou uma empresa no início de 1980 usando uma tecnologia
adaptada do que se fazia na Noruega e na Escócia. A empresa foi ven-
dida para uma empresa de pesca japonesa. Antes dos esforços da Fun-
dação Chile, o país não exportava praticamente nenhum salmão; hoje
é um dos maiores exportadores de salmão do mundo. Os gastos públi-
cos em P&D para frutas foi também significativo nos anos 1960, o que
ajudou a preparar a indústria para o mercado mundial. E no caso das
madeiras, há uma história de pelo menos 60 anos de subsídios para
plantações, bem como um grande impulso a partir de 1974 para trans-
formar a madeira, papel e celulose em um cluster de móveis e madei-
ras para exportações (ver Rodrik, 2008) .
Rodrik sugere que podemos pensar em política industrial
como investimentos de Private Equity em empresas novas ou emer-
gentes. Muitos falham, mas os que acertam compensam em larga me-
dida as falhas. Na Ásia, a estratégia que se mostrou mais acertada foi
usar o mercado mundial como benchmark para medir o sucesso ou
fracasso do resultado industrial das companhias que recebem sub-
sídios e proteção tarifária. China, Japão, Taiwan e Coreia acertaram
bem. América Latina, Indonésia, Malásia e Filipinas erraram muito. Se
o governo não faz nada, dificilmente o status quo econômico muda só
por conta das forças de mercado (retornos crescentes e economias de
escala mantêm tudo como está). Idealmente os erros que resultam em
“escolher os perdedores” devem ocorrer. Estratégias públicas do tipo
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7. Redes complexas são necessárias
para se produzir bens sofisticados
D
esenvolvimento econômico é acúmulo de capital
humano de uma sociedade que se traduz na capacidade de
produzir bens e serviços complexos que, por sua vez, geram
poder de monopólio, “lucros excedentes” e altos salários. Para isso não
basta apenas investir em educação. É preciso que exista um setor pro-
dutivo capaz de utilizar as competências gestadas na educação. Em im-
portante passagem da mitologia que envolve a figura de Pitágoras, um
dos mais brilhantes intelectuais da Antiga Grécia, o filósofo pede a seu
escravo que entregue uma moeda a um de seus discípulos, quando este
lhe pergunta para que serve o triângulo em que Pitágoras trabalhava
naquele momento. Teria dito o filósofo a seu pupilo que ele era o tipo
de ser humano que espera um lucro por tudo aquilo que faz. A passa-
gem é marcante por revelar a histórica tensão (talvez antropológica)
entre o saber filosófico, que persegue a verdade, e o saber técnico, que
procura resolver problemas práticos, geralmente associados a alguma
relação custo e benefício. Em palestra na FEA-USP em 2012, o econo-
mista João Sayad disse que “educação não serve para nada”. Após o as-
sombro tomar conta da plateia, o professor ratificou sua declaração
dizendo que a educação é um fim em si mesmo, isto é, prescinde de
motivações práticas. É um exercício de exploração das capacidades hu-
manas cujos efeitos se desdobram não apenas sobre o setor produtivo
– preocupado com o sustento imediato dos grupos sociais –, mas tam-
bém se incorporam ao estoque cultural das sociedades, dentro do qual
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Ken Robinson tem um olhar de fora para dentro da escola, em
como aprimorá-la e gerar modelos localmente adaptados que se apro-
ximem da cultura educacional finlandesa. Este capítulo terá como fio
condutor a ideia de organicidade do conhecimento, porém com um foco
diferente. A visão dos economistas é a partir da “escola” para o setor pro-
dutivo, mas há diferenças substanciais. A economia convencional do
capital humano, na linha da Escola de Chicago de Gary Becker, Milton
Friedman, Jacob Mincer e Theodore Schultz, enfatiza a importância da
instrução escolar como produtora de conhecimento útil ao mercado, o
qual daria conta de absorver os melhores profissionais de acordo com
sua produtividade e sua postura perante o risco. Segundo esta análise, o
sucesso profissional está fortemente ligado à dedicação do indivíduo aos
seus estudos; é a visão liberal de meritocracia. Uma segunda visão ado-
ta a mesma premissa de que a lógica de mercado operaria a “sabedoria
das massas”, mas que as instituições, isto é, as regras do jogo econômico
e político, poderiam influenciar o processo de organização via merca-
dos. Esta é a abordagem neoinstitucionalista de Douglass North e Da-
ron Acemoglu, dentre outros, segundo a qual a estrutura institucional
das sociedades define os retornos das atividades produtivas em geral,
bem como dos investimentos individuais e dos governos em educação.
Ao corrigir as distorções institucionais, o jogo econômico mediado pelo
mercado daria conta de promover o desenvolvimento econômico.
Alternativamente, defendemos que é a estrutura produtiva
e sua inserção nas redes internacionais de comércio que delimitam,
dinamicamente, o espaço de atuação conjunta de mercados e gover-
nos. Isto significa que reconhecemos a importância das instituições e
dos investimentos em educação, mas reclamamos a prioridade causal,
analítica e histórica das estruturas produtivas. Estas dependem das
condições materiais locais, como disponibilidade e diversidade de re-
cursos naturais e humanos, os quais, em conjunto com a forma de in-
teração econômica com outras nações, motivarão, informarão e ins-
pirarão as inovações produtivas, tecnológicas e institucionais; enfim,
sua cultura. Por isso, é essencial compreender as forças que colocam
a evolução das estruturas produtivas em trajetórias progressivamente
mais complexas e sofisticadas ou caminhos de regressos tecnológico
e atraso. Estes grandes movimentos estruturais determinarão a utili-
dade dos diversos tipos de atividade para a economia e, portanto, sua
remuneração relativa. Por isso, analisar o conjunto institucional sem
considerar as condições materiais das sociedades pode levar a genera-
Ataris e supercomputadores
D
esde os trabalhos de Antonio Serra em Nápoles dos 1600,
os economistas se preocupam com as causas do crescimen-
to econômico e rotas a perseguir para a prosperidade. Até os
anos 1970, as preocupações giravam em torno da acumulação de ca-
pital, uma expressão pomposa que significa “aumentar a quantidade
de tecnologia à disposição de cada trabalhador”. O foco no crescimen-
to do maquinário e dos equipamentos que constituíam as estruturas
produtivas dos países ficou conhecido como “fundamentalismo do ca-
pital”. Ao longo das décadas, os modelos econômicos foram elabora-
dos para responder à pergunta: se todos os países investirem em má-
quinas e equipamentos e abrirem as suas economias à concorrência
externa, todos eles convergirão ao mesmo nível de renda per capita?
O famoso modelo de crescimento de Robert Solow, publica-
do em 1956, é um marco na busca por esta resposta. A bala de prata do
crescimento se resumiria a dotar os trabalhadores com suficiente quan-
tidade de máquinas para aumentar sua produtividade. Quanto mais po-
bre um país, maior seria o efeito de qualquer adição de capital (pense
no efeito de um trator numa pequena propriedade rural) e, portanto,
maior seria a taxa de crescimento da economia na trajetória até o esta-
do estacionário. Nesta situação, as novas oportunidades de crescimento
se esgotariam e os investimentos deveriam ser suficientes para cobrir o
desgaste das máquinas (depreciação, no jargão) e o crescimento da po-
pulação. Afinal, as máquinas ficam obsoletas ou quebram e precisam ser
O
centro da economia mundial tem alto conteúdo
tecnológico proprietário em seus produtos, logo, tem poder
de monopólio considerável e a periferia não. Isso torna muito
difícil para países da América Latina, África e Ásia chegarem lá. Alguns
países do Leste Asiático conseguiram. O desenvolvimento econômico
pode ser entendido, então, como um processo de aprendizagem produ-
tiva. Alguns países pobres são capazes de aprender ao longo do tempo,
outros não. Essa aprendizagem leva à produção de bens e serviços com
poder de monopólio e alto conteúdo tecnológico, que dificulta o avanço
dos outros (ver Reinert, 2008). O conhecimento produtivo é o grande
valor que um país tem, isso o torna rico. Este conhecimento está nas
empresas, marcas, tecnologias e patentes de propriedade de seu sistema
produtivo. Isso nunca é transferido para os países emergentes, especial-
mente por multinacionais que protegem seu core tecnológico e muitas
vezes drenam tecnologia quando alguma empresa emergente desponta;
compram, absorvem a tecnologia e mandam para a matriz.
Alice Amsden (2001, p. 5) nos relembra que, mesmo na ausência
de patentes, a natureza tácita e proprietária das tecnologias produtivas
dificultam a aquisição de conhecimento. As características de uma dada
tecnologia não podem ser totalmente documentadas, de forma que a
otimização do processo e a especificação do produto permanecem uma
“arte”, dependendo de habilidades gerenciais que são mais tácitas do
que explícitas. Na tipologia empregada por Amsden em seu livro A as-
Gurgel
Automóveis na Índia
A
complexidade econômica se manifesta no grau de
sofisticação produtiva de um país que, por sua vez, reflete o
ritmo de progresso técnico das sociedades. Investimentos em
Pesquisa & Desenvolvimento (P&D) e o número de patentes registradas
são ambas medidas indiretas desses processos. Estudo recente do Ban-
co Mundial mostrou que grande parte da inovação na América Latina
é capitaneada pelo Estado. O trabalho descobriu que nenhum país da
América Latina e do Caribe exibe um nível de patentes que se aproxime
dos países de alta renda. Além disso, a maioria dos países da América
Latina e do Caribe (AL&C) teve menos patentes aprovadas pelo órgão
dos EUA quando comparados a outros países de renda média. O Bra-
sil, por exemplo, registrou apenas cinco patentes por milhão de pessoas
entre 2006 e 2010, metade do número per capita da China (10) e pouco
menos de um quarto do número per capita da Bulgária (22).
Na marcha do desenvolvimento, é preciso correr para se man-
ter no mesmo lugar, já disse o ex-ministro Delfim Netto. Concorrer
no mercado internacional implica se expor ao “estado da arte da tec-
nologia mundial”. É o equivalente a uma versão tecnológica da Copa
do Mundo: só os melhores entram em campo. Manter-se entre os me-
lhores requer investimentos constantes em estratégia, pesquisa e de-
senvolvimento de produtos. Por isso, a conquista de novos mercados
no mundo através do comércio é, sem dúvida, uma manifestação cla-
Novo Desenvolvimentismo
O Estado empreendedor
S
e é difícil subir a escada do desenvolvimento para alcançar o
enriquecimento é igualmente desafiadora a tarefa de manter a so-
fisticação e complexidade das estruturas produtivas em face de
grandes mudanças na estrutura global de produção. Recentemente o
historiador do MIT, Peter Temin, mostrou em seu livro The vanishing of
the middle class (O desaparecimento da classe média) que os EUA vêm
passando por um longo processo regressivo em sua estrutura produti-
va com claros e nefastos efeitos concentradores da renda e da riqueza.
Haveria um setor de Finanças, Tecnologia e Eletrônica (FTE) respon-
sável por concentrar grande parte dos rendimentos totais do país, dei-
xando uma parcela muito pequena do produto nacional para um vas-
to contingente de trabalhadores não qualificados alocados em setores
de baixa densidade tecnológica. Para Lance Taylor, da New School for
Social Research, em trabalho recente com a economista Özlem Ömer,
esta dualidade resulta de um retorno da economia norte-americana a
uma estrutura econômica muito desigual, em face de mudanças insti-
tucionais e tecnológicas profundas e da expansão chinesa. A China con-
seguiu deslocar para si grande parte dos empregos industriais de mé-
dia complexidade dos EUA. A pesquisa mostra que a combinação dos
efeitos das mudanças na produção e na produtividade fez que os “seto-
res estagnados” (de baixa produtividade) absorvessem a maior parte da
criação de empregos. A “aniquilação de empregos” se concentrou em se-
tores como tecnologia da informação, atacado, varejo, agricultura e ma-
P
ara a perspectiva aqui apresentada, o papel do Estado é
fundamental para escapar da armadilha do subdesenvolvi-
mento. A importância das chamadas políticas de ITT (Indus-
trial, Trade and Technology) e de política macroeconômica adequa-
da (Novo Desenvolvimentismo) aparece na discussão como uma das
principais explicações do sucesso dos países hoje considerados ri-
cos. Obviamente que apenas o uso de políticas protecionistas para
desenvolver a indústria nascente não garante o sucesso de empresas e
países. São exemplos de fracasso a tentativa de desenvolver a indústria
aérea na África do Sul e na Indonésia, bem como a lei da informática
e Zona Franca de Manaus no Brasil dos anos 1980 e 1990 e inúmeros
outros exemplos. A história recente da política industrial mostra que
a quantidade de fracassos supera o número de sucessos. Não basta
fomentar uma indústria. Ela precisa crescer, amadurecer e se tornar
eficiente para lutar no cenário internacional, como se observou no
Japão, Inglaterra, EUA e países do Leste Asiático.
Weg
E
xistem no Brasil atual duas grandes correntes de
economistas com visões de mundo bem distintas acerca do de-
senvolvimento e crescimento. Para o grupo dos economistas
ortodoxos ou “mainstream”, o desenvolvimento econômico tende a
ser um processo espontâneo guiado pelo mercado e que depende ba-
sicamente de boas políticas internas, tais como: governo parcimonio-
so que não tribute demais, bom funcionamento da justiça, controle
da inflação, educação de qualidade, defesa da concorrência. Se es-
sas políticas forem perseguidas, o desenvolvimento será apenas uma
questão de tempo. Seria o equivalente a esperar um bom desempe-
nho de um atleta, garantindo-lhe apenas sua integridade física e a
alimentação diária de sua preferência. Bastaria submetê-lo sistema-
ticamente à “disciplina” das competições de mercado mundial, sem
necessidade de treino, planejamento ou condicionamento físico. Na
metáfora futebolística, os países ricos teriam ficado ricos porque des-
cobriram seus “Romários” em cada posição do campo de futebol, mas
sem um técnico que definisse uma estratégia de jogo. Os exemplos de
Marta (Brasil) e de Salah (Egito) mostram que talento sem estrutura
não garantem a vitória. Os economistas ortodoxos defendem, por-
tanto, a educação e as instituições “corretas” como elementos cen-
trais para o desenvolvimento. Basta descobrir seu talento e jogar sem
a necessidade do técnico (no caso, a política industrial) que os cam-
peonatos e as medalhas virão, mais cedo ou mais tarde. Se não de-
sempenhar bem, troque de esporte.
E
ste livro só foi possível graças aos 786 apoios recebidos
durante a campanha de financiamento coletivo realizada entre os
dias 11 e 25 de maio de 2020 na plataforma Benfeitoria (https://
benfeitoria.com/brasilnaoaprende). Gostaríamos de agradecer a cada
uma e cada um de vocês que acreditou e se interessou pelo conheci-
mento que compartilhamos agora. Esperamos que da mesma forma que
0 livro nos entusiasmou, inspire e incentive todas e todos no compro-
misso de sempre buscar um país melhor e mais justo. Muito obrigado!