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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

EMILIANO PALMADA LIU

O CONCEITO DE SOBREDETERMINAÇÃO EM
LOUIS ALTHUSSER
análise crítica de uma abordagem sobre a questão do
método no marxismo

Material apresentado à Banca de Exame como exigência para


obtenção do grau de Mestre em “Ciências Sociais”, pela
UNIFESP, campus Guarulhos, sob Orientação do Prof. Dr.
Davisson Charles Cangussu de Souza

GUARULHOS
2016
Sumário

Introdução

Capítulo I: Questões do método em Marx


1.1 A sobredeterminação e a teoria do método
1.2. A sobredeterminação e a teoria da história

Capítulo II: O conceito de sobredeterminação em Althusser: desdobramentos teóricos


2.1. Escritos de Althusser: delimitação do campo de pesquisa
2.2. Psicanálise e marxismo
2.3. A teoria do corte epistemológico
2.4. A forma da dialética marxista: seu conceito e suas categorias sob a ótica de Althusser

Capítulo III: Limitações e dificuldades no uso do conceito de sobredeterminação em Althusser


3.1. Monismo x pluralismo: a dialética entre a ordem e o caos
3.2. O exílio interno provocado pelo fechar-se em um círculo hermenêutico, ou o milagre da
partenogênese
3.3. O lugar de uma ausência

Conclusão
Introdução

A questão do método para a produção do conhecimento científico é das mais importantes e


controvertidas na história das ciências sociais 1. Positivismo, racionalismo, materialismo, teoria da
ação social, funcionalismo, estruturalismo...são apenas alguns exemplos de correntes que, em maior
ou menor medida, remetem o leitor a certas ideias sobre procedimentos teóricos e metodológicos
presentes nessa história. O grande peso que a questão do método possui dentro desse campo reside,
em grande parte, na ideia de que um objeto de conhecimento possui basicamente uma única verdade
fundamental, e de que, por conta disso, apenas o método verdadeiro será capaz de apreender e
evidenciar a verdade essencial do objeto. Em consequência disso, se explicam as muitas e
intermináveis batalhas teóricas que continuam sendo geradas e alimentadas dentro do nosso campo
de pesquisa, em razão de que cada teoria metodológica, na medida em que recorta e assedia um
objeto que não é exclusivamente seu, acusa os adversários de incorreção, distorção ou má fé, e alça-
se a si mesma como a verdadeira (o que nos faz lembrar a conhecida advertência de Marx: "Assim
como não se julga um indivíduo pela ideia que ele faz de si próprio, não se poderá julgar uma tal
época de transformação pela mesma consciência de si;..."2). É a partir das acusações ou das
apropriações críticas de processos metodológicos que vão ser construídas as possíveis relações de
endosso, endosso parcial, rejeição produtiva3 ou desqualificação e proscrição4 que um teórico vai
estabelecer na sua relação com um conjunto variado de teorias. E se aquela advertência é legítima
para indivíduos e para épocas no seu conjunto, parece válido que possa também ser aplicada para o

1 Mesmo no campo das ciências naturais essa questão gera muita controvérsia. Por exemplo, Paul Feyerabend,
filósofo da ciência, no seu livro "Contra o método" defende a posição de que o melhor é adotar uma postura de
"anarquismo epistemológico", entendido por ele como ensinamento que se extrai do estudo da história das práticas
científicas, história essa onde não se observa a repetição de um mesmo padrão de procedimentos metodológicos na
formulação de novos conhecimentos, mas, ao contrário, a diversidade de práticas que são adotadas, muitas vezes,
contra o modelo que é aceito como racional e científico numa determinada época e lugar da história: "Assim, tudo o
que podemos dizer é que os cientistas procedem de muitas maneiras diferentes, que regras de método, se
explicitamente mencionadas, ou não são obedecidas de modo algum ou funcionam na maior parte dos casos como
regras práticas de proceder, e resultados importantes surgem da confluência de realizações produzidas por
tendências separadas e frequentemente conflitantes. A ideia de que "o conhecimento 'científico' é, de algum modo,
peculiarmente positivo e isento de diferenças de opinião" (Campbell, 1957, p.21) não passa de uma quimera."
(FEYERABEND, Paul. Contra o método. editora unesp. 2º edição. 2011. pág. 307)
2 MARX, Karl. Contribuição à crítica da Economia Política. wmfmartinsfontes. 2016. Prefácio. Pág. 5-6)
3 Um exemplo daquilo que se imagina ser a rejeição produtiva de uma teoria nos é dado pelo comentário de Weber
sobre o "Manifesto Comunista", ao afirmar que o "erro espirituoso" de suas teses foi muito mais frutífero para o
desenvolvimento da ciência do que muita "correção sem espirituosidade". (WEBER, Max. O Socialismo. Texto
incluído na coletânea Max Weber e Karl Marx. Org. René E. Gertz. Editora Hucitec. 2º Edição. 1997. Pág. 264)
4 Essa desqualificação e proscrição pode também funcionar como critério revestido de parecer técnico para permitir
ou recusar o financiamento de pesquisas. Assim, a síntese do parecer da CAPES relativa ao projeto “Crise do
Capital e Fundo Público: Implicações para o Trabalho, os Direitos e as Políticas Sociais”, apresentado ao Edital
Procad 071/2013, envolvendo doutorandos, mestrandos e graduandos da UnB, UERJ e UFRN. Justificativa do
parecerista: “Projeto afirma basear-se no método marxista histórico-dialético. Julgo que a utilização deste método
não garante os requisitos necessários para que se alcance os objetivos do método científico (…) considerando a
metodologia a ser empregada – cujos requisitos científicos não tem unanimidade – a proposta pode ser considerada
pouco relevante (…) a formação proposta estaria no âmbito do método marxista histórico-dialético, cuja
contribuição à ciência brasileira parece duvidosa.”
teórico que discursa sobre o método que adotou.

É em função de questões como essas que Althusser vai elaborar alguns importantes
posicionamentos sobre a prática teórica, suas possibilidades, características e limitações, ora
pontuando ideias de natureza mais comum dentro da história do marxismo, ora avançando em novas
ideias, sendo um dos propósitos mais importantes dessa dissertação oferecer algumas respostas à
seguinte pergunta: até que ponto essas novas ideias, se de fato novas, avançam em relação ao que já
estava postulado na obra marxiana? Pergunta simples e ambiciosa, sem dúvida, mas que pode nos
trazer alguma luz sobre os caminhos mais heterodoxos que o marxismo pode percorrer. Para ilustrar
essa ambivalência entre o ortodoxo e o heterodoxo na pesquisa marxista, tomemos por exemplo as
batalhas teóricas que se processam no campo das ciências sociais. Não são nunca disputas que se
definem por critérios técnicos puramente epistemológicos. As divergências intermináveis
evidenciam, sempre, um posicionamento de classe, uma escolha política que se faz no contexto da
luta de classes, a favor ou contra cada uma delas. Esse posicionamento é decisivo para se
determinar o alcance que pode ser atingido pelo lançamento do olhar crítico sobre o objeto. Daí, em
"Marx e Freud", a analogia entre Maquiavel e Marx:

"No entanto, essa mesma condição se entrelaça com uma tradição diferente, cujos traços podem encontrar-se em
Maquiavel, por exemplo, quando este escreveu 'para conhecer os príncipes, é preciso ser povo'. Marx disse a mesma
coisa, no fundo, em toda a sua obra...E se tomamos as palavras de maquiavel em sentido forte e as aplicamos à história
de Marx e de sua obra, poderemos dizer com justiça: é preciso ser proletariado para conhecer O Capital".5

Temos assim um critério marxista dos mais clássicos, de caráter histórico e objetivo, que ajuda a
explicar o motivo pelo qual há profundas divergências de teoria e de método dentro da ciência. É o
tipo de critério usado com muita frequência para fazer a clivagem entre ciência burguesa e ciência
revolucionária. Mas esse não é o único fator operativo. O posicionamento político no contexto das
lutas de classe (que vai se expressar no posicionamento político que se faz no contexto das lutas
teóricas6) não é suficiente para produzir o conhecimento científico. Há também a necessidade de
5 ALTHUSSER, Louis. Freud e Lacan, Marx e Freud. graal. Rio de Janeiro. 4º edição. 2000. Pág. 81.
6 A propósito desse tema cumpre dizer que nos textos de Pour Marx, bem como na edição original de "Ler o Capital",
Althusser formulava um entendimento bem específico sobre o estatuto teórico da filosofia, tal como ele a perseguia: ela
era entendida como a "Teoria (com "T" maiúsculo) da prática teórica", ou seja, a produção teórica do método, a
formulação conceitual da dialética em sua forma marxista. No entanto, com o passar dos anos, vai se consolidando um
certo movimento de autocrítica que vai se expressando de modo cada vez mais definitivo, no prefácio de 1967 à edição
italiana de "Ler o Capital", nos seus "Elementos de Autocrítica", e também na nota de advertência ao leitor da edição
francesa de "Ler o Capital" do ano de 1975, base da nossa primeira tradução brasileira: "...temos agora razões de sobra
para pensar que uma das teses que apresentei sobre a natureza da filosofia exprime uma tendência 'teoricista' certa,
apesar de todos os esclarecimentos feitos. Mais precisamente, a definição (dada em Pour Marx e invocada no prefácio
de Ler o Capital) da filosofia como teoria da prática teórica é unilateral e portanto inexata. De fato, não se trata de
simples equívoco de terminologia, mas de erro na própria concepção. Definir a filosofia de modo unilateral como teoria
das práticas teóricas (e, por conseguinte, como teoria da diferença das práticas) não passa de uma fórmula que só pode
suscitar efeitos e ressonâncias teóricas e políticas ou 'especulativas' ou 'positivistas'. " A partir daí, a filosofia não será
armar-se e enriquecer-se com os conhecimentos científicos e culturais acumulados ao longo da
história, preservados e transmitidos por obras, instituições e tradições encarregadas de formar a
camada social dos intelectuais de uma determinada época:

"...o socialismo marxista, levando a cabo o gigantesco trabalho teórico de instauração e de desenvolvimento de uma
ciência e de uma filosofia sem precedente, só poderia resultar do trabalho de homens possuidores de uma profunda
formação histórica, científica e filosófica, de intelectuais de grande valor."7

Entramos, assim, ainda sem nenhuma apresentação teórica, em contato com o objeto central da
presente monografia: o conceito de sobredeterminação, que vai implicar, como veremos, na ideia de
campos da superestrutura regidos por uma autonomia relativa. Esse é um tema que aparece em
outros teóricos de peso no marxismo, e até que ponto se trata, de fato, de um aporte heterodoxo ao
corpo da obra marxiana é, como já se disse, uma das questões de que vamos tratar.

Ainda tocando com a ponta dos dedos o objeto de estudo da presente dissertação, um dos aspectos
mais importantes e fecundos que está presente em diversos pontos dos desenvolvimentos críticos da
teoria marxista, é o das formulações teóricas e metodológicas do tema que, em Althusser, aparece
sob o conceito de sobredeterminação. A questão que é proposta por esse conceito, da autonomia
relativa das estruturas que estão presentes na vida de uma sociedade, com as diferentes respostas
que engendrou, aparece também em outros importantes escritores marxistas, tal como, por exemplo,
em Lukács8, que opera com a noção de “complexos relativamente autônomos” no interior da
“totalidade social”. Veja-se a propósito a seguinte passagem:

“(...) podemos antecipar, ao que de mais concreto diremos em seguida, apenas indicações muito gerais, extremamente
abstratas, sobre a verdadeira conexão no interior da totalidade social. Tendo concebido a sociedade como um complexo,
vemos agora que ela é composta, por sua vez, de uma intrincadíssima rede de complexos heterogêneos que, por isso,
agem de modo heterogêneo uns sobre os outros. Basta pensar, por um lado, na diferenciação em classes que se movem
em sentido antagônico e, por outro, nos sistemas de mediação (direito, Estado, etc.) que se desenvolvem em complexos
relativamente autônomos. Nesse tocante, jamais se deve esquecer que também esses complexos parciais são, por sua
vez, formados por complexos, por grupos humanos e por indivíduos humanos, cuja reação ao próprio mundo
circundante – que constitui a base de todos os complexos de mediação e diferenciação – repousa irrevogavelmente
sobre decisões alternativas.”9

mais identificada com a epistemologia da Ciência, ganhará uma formulação radicalmente distinta, qual seja, a de
política - ou luta de classes - dentro da teoria.
7 ALTHUSSER, Louis. A Favor de Marx. ZAHAR Editores. 1979. Pág. 14.
8 A presença de uma mesma questão representada como um problema que exige pesquisa teórica pode indicar a
filiação de dois pensadores a um mesmo mestre, muito embora entre os dois possa haver diferenças radicais de
identidade epistemológica. Esse é o caso entre Althusser e Lukács, antípodas no mundo do marxismo, indicação
dada pelo próprio Althusser que, ao se referir a Lukács, diz que este, ao tratar do tema da autonomia relativa das
esferas de superestruturas, praticou um "hegelianismo vergonhoso" (Althusser. 1979. pág. 100).
9 Ibidem, pág. 404. Em seu opúsculo sobre o estudo do método em Marx, José Paulo Netto vai defender a ideia de
Interessante também é notar a presença forte dessa questão nas obras de Gramsci, considerado
como um importante teórico marxista das superestruturas. Na própria formulação de uma questão o
problema já pode se evidenciar:

"Os intelectuais constituem um grupo social autônomo e independente ou cada grupo social possui sua própria categoria
especializada de intelectuais? O problema é complexo por causa das várias formas que, até nossos dias, assumiu o
processo histórico real de formação das diversas categorias intelectuais." (Gramsci. 1982. A Formação dos
Intelectuais. pág. 3)

Não se pretende nesse trabalho aprofundar o conhecimento desse tema em Lukács e Gramsci, mas
sim tão somente ilustrar a sua presença e pertinência como problema teórico estratégico no campo
do marxismo. O que se pretende é proceder a uma investigação teórica que trate da fecundidade e
potencialidade implicada nos desenvolvimentos e usos do tema que, em Althusser, aparece sob o
conceito teórico e metodológico de sobredeterminação. Buscaremos caracterizar, também, de que
modo ele aparece e opera, de forma mais ou menos latente, em textos da própria obra marxiana,
condição indispensável para a sua legitimação enquanto coerente com os postulados teóricos e
metodológicos enunciados por Marx. É preciso observar ainda que não há a pretensão de esgotar as
possibilidades de exploração da noção de sobredeterminação, nem de indicar as múltiplas formas
em que ela possa estar presente nas diversas correntes e autores do pensamento marxista. O
objetivo, muito mais modesto, é o de indicar uma linha de pesquisa que possa ter essas finalidades,
contribuindo para desbravar o campo de um programa de pesquisa que já foi elaborado e
explicitado por Althusser, como estratégico para o desenvolvimento crítico da teoria marxista,
especialmente da sua lógica dialética. As questões importantes que ao final devemos estar em
condições de responder são as seguintes: de que forma o conceito de sobredeterminação em
Althusser inova ou avança em relação às formulações marxianas sobre o método? Quais são as
principais limitações e dificuldades que são desencadeadas no processo de exploração teórica desse
novo conceito no marxismo?

Entretanto, pode-se iniciar com a seguinte questão: por quais razões esse tema da
sobredeterminação surge e permanece na obra marxiana, supostamente, de forma apenas
embrionária e explicitado apenas em linhas gerais, ao menos no que diz respeito à sua formulação
em linguagem metodológica?

que foi Lukács quem melhor definiu o conceito de totalidade presente na obra marxiana (NETTO. José Paulo.
2011).
Já foi muitas vezes apontado que, ao observar o curso da sua trajetória teórica e política, surgem
diversos indícios de que Marx se sentia fortemente pressionado por um sentido de urgência, para
que, o quanto antes, pudesse terminar a elaboração e exposição científica da sua obra sobre o modo
de produção capitalista e a sociedade burguesa. Ao que parece, ele nutria uma profunda convicção a
respeito do caráter iminente da revolução proletária, que já estaria amadurecida, na segunda metade
do século XIX, para eclodir na primeira oportunidade. Isso pode ser observado em algumas
passagens da sua obra, bem como em trechos da sua correspondência e na sua biografia, dos quais
extraímos as seguintes ilustrações:

“Na já mencionada carta a Engels de dezembro de 1857, Marx refere-se justamente aos Grundrisse ao informar que
'trabalho como um louco […] na síntese dos meus estudos econômicos' para ao menos ter claros os 'esboços antes do
dilúvio'. Os seus estudos de economia política desde o início tiveram o propósito de investigar a estrutura, a dinâmica e
as contradições da economia capitalista, pois as crises daí decorrentes constituem, em sua opinião, aberturas para as
práticas revolucionárias e transformadoras. Compreende-se, portanto, que o prognóstico de uma crise econômica
iminente – o 'dilúvio' – forneceu a Marx estímulo para pôr no papel as descobertas de longos anos de estudos de

economia política e dar uma primeira forma à sua crítica”10

Também, um pequeno episódio da vida de Marx na Inglaterra, nação que ele considerava seria a
provável vanguarda da revolução proletária mundial, narrado por Edmundo Wilson:

“Em junho de 1855, foi aprovada uma lei que, para manter os trabalhadores sóbrios, proibia a venda de cerveja aos
domingos; e o povo londrino passou a reunir-se todos os domingos no Hyde Park, formando multidões de 250 a 500 mil
pessoas, gritando com rebeldia 'vão para a igreja!' para a gente elegante que lá passava o dia. Marx foi logo achando que
aquilo era 'o início da revolução inglesa', e participou tão ativamente nas manifestações que uma vez só não foi preso
porque conseguiu confundir o policial com uma de suas argumentações irrespondíveis. Mas o governo voltou atrás,
liberando a cerveja dominical e a agitação não deu em nada.”11

A constatação e o reconhecimento desse possível sentido de iminência histórica e urgência teórica,


que pressionava Marx a avançar a construção da sua obra sobre o capital, pode constituir uma
importante hipótese explicativa (embora não exclusiva), dos motivos pelos quais a sua escrita vai se
concentrando, com exclusividade crescente, na crítica da economia política, empurrando para as
margens as preocupações de elaboração teórica dos problemas e questões referentes à teoria da sua
prática metodológica, que desponta eventualmente em formulações intensamente condensadas Mas
essa não é a única hipótese possível12. Podemos também conjecturar com o fato de que Marx não

10 MARX, Karl. Grundrisse. BOITEMPO Editorial. 2011. Apresentação de Mario Duayer. Pág. 16
11 WILSON, Edmund. Rumo à Estação Finlândia. Companhia das Letras. 1986. Pág. 197
12 Em "Ler o Capital", Althusser relativiza essa ideia de "falta de tempo" para explicar o motivo pelo qual Marx não
nos deu, em forma acabada e definitiva, a sua dialética. Segundo nosso autor, a falta desse desenvolvimento formal
e conceitual pode evidenciar, antes, uma das dificuldades típicas que uma ciência nova enfrenta no seu nascimento,
era um teórico da academia, e, por conta disso, não sofria as mesmas pressões institucionais que um
profissional da universidade eventualmente pode vir a sentir para formular de um modo mais
explícito os seus processos de trabalho13. Como teórico, Marx era um intelectual organicamente
vinculado às organizações de luta do proletariado, que, em regra, tem um interesse muito mais
"prático" nos ganhos que uma obra escrita pode proporcionar. Diante disso, devem-se ressaltar ao
menos duas consequências de grande interesse para a perspectiva do nosso objeto de estudo:

1) Em todos os seus textos, considerando sobretudo os da maturidade, embora as elaborações da


teoria do método não estejam explicitadas e manifestas numa forma completa, detalhada e
definitiva, as concepções e procedimentos metodológicos estão sendo rigorosa e sistematicamente
praticados. A partir desse reconhecimento, abre-se um campo de possibilidades para a investigação
marxista das questões do método, constituindo um importante ramo do seu desenvolvimento
histórico. Esse ponto foi claramente evidenciado por Althusser:

“O momento da Teoria da prática teórica, isto é, o momento em que uma 'teoria' sente a necessidade da Teoria da sua
própria prática, - o momento da Teoria do método em sentido geral – chega sempre demasiado tarde, para ajudar a
superar dificuldades práticas ou 'teóricas', a solucionar problemas insolúveis pelo jogo da prática imersa nas suas obras,
por conseguinte, teoricamente cega, ou para enfrentar uma crise ainda mais profunda. Mas a ciência pode realizar a sua
tarefa, isto é, produzir conhecimentos, por muito tempo, sem sentir a necessidade de construir a Teoria daquilo que faz,
a teoria da sua prática, do seu 'método'. Vejam Marx. Escreveu dez obras e esse monumento que é O Capital se, jamais
escrever sobre 'Dialética'. Falou que iria escrever sobre isso, mas não o fez. Jamais encontrou tempo para fazê-lo. O que
quer dizer que não o encontrou porque a Teoria da sua própria prática teórica não era, então, essencial ao
desenvolvimento da sua teoria, isto é, à fecundidade da sua própria prática”14

2) Apesar de não ter se dedicado diretamente à construção de uma obra teórica que pudesse tratar
centralmente e de um modo mais exaustivo sobre a teoria do seu método, os textos marxianos nos
de ter que lidar com referências e recursos teóricos que configuram um contexto teórico objetivo muito inadequado
e que vai se tornando cada vez mais obsoleto, exigindo-se, historicamente, um certo tempo para a maturação: "Toda
a história dos inícios das ciências ou das grandes filosofias mostra, que o conjunto exato dos conceitos novos não
desfila em parada, na mesma linha; que, pelo contrário, alguns se fazem esperar por muito tempo, ou desfilam em
vestimentas de empréstimo, antes de vestir sua roupa ajustada - pelo tempo que a história não tenha fornecido nem
o tecido nem o costureiro" (ALTHUSSER, Louis. Ler o Capital. Zahar. 1979. pág. 54). No caso do objeto da
presente dissertação - o conceito de sobredeterminação - pretende-se que seja uma roupa mais ajustada para o corpo
da dialética marxista, e Althusser o seu costureiro.
13 Em seu livro, Edmund Wilson conta que, por volta de 1837, quando Marx ainda trocava intelectualmente com os
jovens hegelianos, Bruno Bauer, professor na universidade de Bonn, havia prometido um cargo para Marx, o que
não foi possível pois, antes disso, o primeiro já havia perdido o seu posto por conta das suas atividades anti-
religiosas e pró-constitucionais: "Assim, a possibilidade de que o mais talentoso filósofo da nova geração na
Alemanha - a respeito do qual alguém já dissera que, assim que pisasse numa sala de aula, todos os olhos da
Alemanha estariam voltados para ele - , a possibilidade de que o jovem dr. Marx seguisse o exemplo de seus
grandes predecessores, Kant, Fichte e Hegel, e expusesse seu sistema de um púlpito acadêmico, foi destruída para
sempre." (Wilson, 1986. pág. 120). Quiçá, como professor universitário, a obra marxiana tivesse tomado outro
rumo, e tivessemos hoje talvez uma parte mais desenvolvida de textos metodológicos. Mas sabe-se lá com que
prejuízos...
14 ALTHUSSER, Louis. A Favor de Marx. ZAHAR Editores. 1979. Pág. 151
legaram “produções marginais” de suma importância para a indicação desse caminho, tais como o
prefácio à “Contribuição à Crítica da Economia Política”, “O Método da Economia Política”, nos
“Grundrisse”, o posfácio à segunda edição do Livro I de "O Capital", e também o prefácio ao Livro
II de "O Capital", escrito por Engels, este último uma indicação tardia em Althusser, para a
retificação da ideia (isso será abordado nesse trabalho) segundo a qual Engels não entendia
corretamente o tema da "inversão" da dialética hegeliana como uma mudança de elemento ou de
problemática. Esse conjunto disperso de textos pequenos, mas por vezes extremamente concisos,
complicados e de difícil leitura e entendimento, abordando mais diretamente questões de
metodologia, foram e continuam sendo de suma importância para a fundação de um programa de
pesquisa sobre processos metodológicos do marxismo, indicando temas e caminhos para a
investigação de cunho mais epistemológico. São 4 textos que, formando um quadrilátero, cercam o
terreno de escritos metodológicos marxianos indicados explicitamente por Althusser como a base
sobre a qual se constituiu a sua teoria do corte epistemológico e da sobredeterminação.

Vejamos isso, nesse momento, de um modo apenas panorâmico, como que sobrevoando essa região
e apontando alguns lugares mais importantes nessa paisagem. Os comentários genéricos a seguir
serão retomados com mais aprofundamento ao longo dos capítulos da presente dissertação, sempre
que isso se revele indispensável para o entendimento do nosso tema.

No prefácio da "Contribuição à Crítica da Economia Política", além de pontuar alguns dos mais
importantes momentos do seu percurso teórico (o estudo da legislação sobre o roubo de lenha e a
situação dos camponeses da região do Mosela, o encontro com a Economia Política e o acerto de
contas com a ideologia alemã), Marx nos dá a formulação mais direta e concisa dos princípios,
conceitos e categorias da teoria que nos é conhecida como materialismo histórico. Aqui temos as
seguintes questões: a relação entre a estrutura e a superestrutura, o modo de produção como forças
produtivas e relações de produção, o princípio da relação de determinação entre o ser e a
consciência, a revolução social como produto do que se convencionou chamar de determinação em
última instância: a contradição entre as forças produtivas e as relações de produção. Retomar de
certa forma as formulações contidas nesse texto, para nós, se faz uma tarefa indispensável, na
medida em que o conceito de sobredeterminação tem, como uma de suas finalidades, explorar a
ideia de que além da contradição atuante como determinação em última instância, as esferas que se
erguem na superestrutura acabam por produzir uma lógica, um conjunto de instâncias e de
contradições que lhe são próprias, e que vão sustentar o efeito da sua autonomia relativa, que se
combina com todas as outras esferas para gerar o efeito da sobredeterminação. Uma das
consequências disso é o fato de que, como Althusser procura evidenciar na leitura leninista da
Revolução Russa, a revolução deixa de ser o resultado de uma contradição simples, e passa a ser o
resultado de um conjunto complexo e sobredeterminado de múltiplas contradições.

Já no texto sobre o "Método da Economia Política" 15, o mesmo tema é abordado, mas com uma
perspectiva diferente. A questão agora, abordada de forma altamente concisa e abstrata, é o processo
de produção do conhecimento científico de uma determinada sociedade. Alguns dos temas mais
importantes: o movimento que é percorrido pelo pensamento e que vai do concreto imediato ou
representado, para conceitos e categorias de determinação cada vez mais simples e abstratas e que, a
partir daí, volta para o concreto, se elevando ao concreto pensado, concreto como síntese de
múltiplas determinações. É interessante notar que, aqui, a volta para o concreto é postulada como
um momento de elevação sobre a elevação, o que pode ser entendido no sentido de que os
princípios de física da primeira natureza (orgânica e inorgânica) não são os mesmos e não se
aplicam às imagens e terminologias da física quando operam na segunda natureza (a sociedade
histórica como produto da determinação)16. Além desse tema, que constrói a diferença entre o
concreto imediato ou representado e o concreto de pensamento, também o tema da diferença entre
as categorias na sua função de determinação em uma formação social específica e o momento do
seu aparecimento histórico, ou seja: o processo de genese histórica das categorias, em ordem
cronológica, não é o objeto principal de conhecimento na crítica da economia política. E, por fim,
com base nessas considerações de método, a diferença que se estabelece também entre o método de
pesquisa e o método de exposição no marxismo. Todas essas questões são de enorme importância
na consideração do conceito de sobredeterminação, que também é entendido por Althusser como
resultado do processo de pensamento. Mas aqui entram algumas dificuldades: ora Althusser trabalha
a sobredeterminação dentro da chave do prefácio referido no parágrafo anterior; ora o trabalha
dentro da chave do texto sobre o método referido por esse parágrafo. Há portanto, no nosso
entendimento, uma certa confusão entre os conceitos de contradição e de determinação. Não são
duas coisas separadas, mas são uma mesma coisa em dois momentos distintos, e uma das metas ao
final é detalhar na conclusão o significado dessa dificuldade que agora só enunciamos.

15 Esse texto pode ser encontrado em duas edições diferentes: na "Contribuição à Crítica da Economia Política", na
parte intitulada "Introdução à Crítica da Economia Política", tópico 3; e também nos "Grundrisse", Introdução,
tópico 3. Ambas as edições estão referenciadas na lista bibliográfica da presente monografia.
16 Certas passagens desse texto é que podem dar ao entendimento a imagem de um movimento de duas elevações, e,
dentro dessa imagem, simultaneamente, a ideia de um movimento de ida e volta. Assim, Marx primeiro diz: "...do
concreto representado [chegaria] a conceitos abstratos [Abstrakta] cada vez mais finos, até que tivesse chegado às
determinações mais simples. Daí teria de dar início à viagem de retorno...". Aqui, portanto, a ideia de ida e volta.
Logo em seguida, Marx nos diz: "...o método de ascender do abstrato ao concreto é somente o modo do
pensamento de apropriar-se do concreto...". Aqui, por sua vez, a ideia da elevação. Temos assim, portanto, o
caminho do abstrato para o concreto, que deve ser percorrido pelo pensamento científico, representado de modo
ambivalente pelas imagens de retorno e de elevação. O retorno ao concreto significando uma elevação. Poderia
ser mais um prato cheio para os exercícios althusserianos de Leitura Sintomal, que será explicada em outro
momento dessa dissertação.
Por fim, para terminar esse sobrevoo que pretende apenas mostrar os canais de comunicação entre o
conceito de sobredeterminação e as formulações metodológicas presentes no corpo da obra
marxiana, temos o posfácio à segunda edição do Livro I de "O Capital". Nesse texto, Marx expõe
resumidamente a sua análise de que a dialética, em Hegel, está de cabeça para baixo, e que o
movimento de invertê-la e a pôr sobre os pés torna possível extrair o cerne racional que se esconde
dentro do seu envoltório místico. Como veremos mais adiante, é por meio da crítica dessa ideia de
inversão e de extração de um conteúdo racional que já existiria em Hegel, que Althusser vai
fundamentar a sua tese de um corte epistemológico, a separar radicalmente a dialética marxista de
sua predecessora, justificando, dentro da primeira, o seu conceito de sobredeterminação, estranha
em absoluto à segunda.

Sendo assim, querendo também trilhar o caminho que já foi aberto por diversas correntes teóricas
do marxismo que se ocuparam, ao longo do tempo, com as questões da teoria e da prática do
método em Marx, o que se propõe como objeto aqui é abordar uma das suas problemáticas, que se
prefere designar, junto com Althusser, por toda fecundidade, riqueza e complexidade que ela
carrega, como os princípios e as formas da sobredeterminação.

Sabe-se aqui que a proposta de estudo que rege essa dissertação é por demais ambiciosa. Pode
acabar causando o desagradável sentimento de antipatia por parte do leitor, pela impressão de
arrogante presunção que pode provocar. Certos temas que existem desde o princípio no marxismo -
e que talvez, nos seus começos, fossem debatidos com mais liberdade - , hoje já se converteram em
temas clássicos, por vezes quase que sagrados, diante dos quais se é chamado a sentir
imediatamente os tremores de um contato temeroso. A dialética, sem dúvida, pertence a essa
categoria de temas. É claro que isso não acontece por acaso. Uma grande massa de escritos teóricos,
de inestimável valor e relevância, muitos deles de produção acadêmica, vem sendo acumulada há
mais de um século sobre uma questão que sempre esteve muito longe de ser popular e facilmente
acessível. É um mar imenso que separa o discurso acadêmico da conversa do dia a dia. E falar sobre
a dialética nos dias de hoje significa, assim, o desejo e a competência para ao menos conseguir
enfrentar a corrente principal dessa massa de escritos de conteúdo teórico altamente abstrato, o que,
sem nenhuma dúvida, não é algo que dependa apenas da boa vontade de alguém. Na presente
dissertação, não se chega nem perto de trazer e confrontar todas as obras importantes que falam
sobre o tema que foi escolhido, muito embora vão aparecer diversas referências bibliográficas que
também são úteis como elos que fazem a ligação com essas correntes caudalosas que se somam
nesse grande empreendimento que é falar sobre a dialética. Sendo assim, por escrúpulos de
honestidade, achamos por bem tentar justificar um trabalho de pesquisa com as limitações que
acabam de ser apontadas. Em primeiro lugar, trata-se de uma dissertação e, como tal, pode ser
entendida e acolhida stricto sensu: como exercício para discorrer sobre um determinado tema, e,
como tal, ser avaliado pelo seu rigor teórico, científico e formal. Pensamos que todos esses critérios
podem ser atendidos mesmo quando o propósito é fazer, de alguma forma, a releitura de um
clássico, e desde que haja uma preocupação mínima para dialogar com um conjunto de autores que
são reconhecidos como relevantes no contexto acadêmico de hoje. Em segundo lugar, para evitar
que esses temas clássicos, quase sagrados, que se colocaram em alturas quase que inacessíveis, e
que, nessa condição, despertam muitas vezes o interesse de quem ainda está muito embaixo, sejam
o motivo de um abandono pedagógico prematuro, pelo receio de pisar com pés pequenos sobre as
mesmas pegadas de outros pés, maiores, que já marcaram os seus passos nas areias da história.
Nesse sentido, o que diz o professor de filosofia Serenus Zeitblom, personagem narrador do
romance "Doutor Fausto", de Thomas Mann:

"Fugas, contraponto, Eroica, 'confusão causada por modulações excessivamente coloridas' - no fundo tudo aquilo
parecia-nos um sussurro de fábulas, mas gostávamos tanto de ouvi-lo, com os olhos arregalados, assim como crianças
espiam coisas incompreensíveis, virtualmente impróprias para elas. Isso nos divertia então muito mais do que assuntos
mais corriqueiros, mais adequados, mais correspondentes a nosso nível. Acreditarão em mim se disser que essa é a
maneira mais intensa, mais soberba, quiçá mais propícia, de aprendermos algo - a aprendizagem antecipadora, a que
passa por cima de vastas áreas de ignorância? Na minha função de pedagogo, eu não deveria recomendá-la, porém sei,
afinal de contas, que a juventude a prefere irrestritamente e tenho para mim que o espaço saltado com o tempo se

preencherá por si mesmo." (Mann. 2015. pág. 71)

Segue abaixo o plano geral de execução para cada capítulo:

No primeiro capítulo, vamos retomar principalmente dois dos textos de Marx que se relacionam
diretamente com o nosso objeto de estudo: o texto sobre "O Método da Economia Política", e o
prefácio da "Contribuição à Crítica da Economia Política". Desses textos, serão destacados apenas
os argumentos que nos ajudam a problematizar a interrogação que nos pudemos para responder: até
que ponto, ou em que ponto, o conceito althusseriano de sobredeterminação avança ou elabora um
discurso diferente em relação às formulações teóricas que já foram explicitadas ou indicadas por
Marx? Ou será que não passa da reprodução de uma ideia já estabelecida pela obra marxiana,
vestida com de uma nova roupagem?

No segundo capítulo, vamos aprofundar e detalhar a formulação e o uso do conceito de


sobredeterminação em Althusser, tomando por base os seguintes dos seus escritos: "A Favor de
Marx"; "Freud e Lacan"; "Marx e Freud", e "Ler o Capital". Veremos aqui de que modo a
sobredeterminação é entendida como o produto de um corte epistemológico operado por Marx, e
que separou radicalmente a sua dialética da hegeliana, exigindo, por isso, novos conceitos e
categorias para o uso epistemológico, que Althusser vai buscar em Mao Tsé-Tung e Lênin. Há uma
outra questão de grande interesse que vamos abordar nesse capítulo: a tomada de empréstimo do
conceito de sobredeterminação, que Althusser vai buscar na psicanálise freudiana, e que se
constitui, desse modo, em tema para a elaboração de analogias entre o seu uso lógico em Freud e no
marxismo.

Por fim, para o terceiro capítulo, faremos retomar e acrescentar as questões que de alguma forma
definem as dificuldades e limitações implicadas na formulação e no uso do conceito de
sobredeterminação em Althusser. Esses apontamentos poderão servir de base para o esboço de um
roteiro que indique alguns possíveis caminhos para a pesquisa sobre questões de método no
marxismo.

Para tentar desfazer uma falsa impressão que essa introdução já possa ter causado, não se pode
esquecer que esse tipo de pesquisa teórica, dedicada a questões metodológicas com elevado grau de
abstração, não significa um interesse puramente contemplativo sobre o processo de elaboração
teórica de um grande pensador. Tal como indicado por Althusser na citação que foi transcrita mais
acima, a necessidade de desenvolvimento e atualização da teoria do método se faz sentir diante de
“dificuldades práticas ou 'teóricas'”, “problemas insolúveis”, “para enfrentar uma crise ainda mais
profunda...”. Se levarmos em conta, estritamente, o que diz o texto marxiano sobre a estrutura e a
dinâmica de evolução do modo de produção capitalista, em sua forma mais lógica e pura, o seu
movimento histórico já deveria ter culminado numa crise tão aguda e violenta que já teria resultado,
ou na sua completa destruição sem nada para pôr no lugar, ou na emergência revolucionária de uma
nova forma de sociedade. Vejamos, para ilustrar esse ponto, a seguinte passagem de Marx, onde se
caracteriza a lógica do desenvolvimento do capital como contradição em processo, e que se
relaciona aos princípios do desenvolvimento das forças produtivas, aumento progressivo da
extração do mais valor relativo e a queda tendencial da taxa de lucro:

“Tão logo o trabalho na sua forma imediata deixa de ser a grande fonte da riqueza, o tempo de trabalho deixa, e tem de
deixar, de ser a sua medida e, em consequência, o valor de troca deixa de ser [a medida] do valor de uso (…) Com isso,
desmorona a produção baseada no valor de troca, e o próprio processo de produção material imediato é despido da
forma da precariedade e contradição. [Dá-se] o livre desenvolvimento das individualidades e, em consequência, a
redução do tempo de trabalho necessário não para pôr trabalho excedente, mas para a redução do trabalho necessário da
sociedade como um todo a um mínimo, que corresponde então à formação artística, científica, etc. dos indivíduos por
meio do tempo liberado e dos meios criados para todos eles. O próprio capital é a contradição em processo, [pelo fato]
de que procura reduzir o tempo de trabalho a um mínimo, ao mesmo tempo que, por outro lado, põe o tempo de trabalho
como única medida e fonte da riqueza (…) As forças produtivas e as relações sociais – ambas aspectos diferentes do
desenvolvimento do indivíduo social – aparecem somente como meios para o capital, e para ele são exclusivamente
meios para poder produzir a partir de seu fundamento acanhado. De fato, porém, elas constituem as condições materiais
para fazê-lo voar pelos ares.”17

A forma específica e concreta do capitalismo, tal como existia e foi observada por Marx na Europa
do século XIX, e que serviu de objeto para a construção do seu edifício teórico, não pode servir
como modelo imediato para interpretarmos o capitalismo dos nossos dias, nem os seus efeitos em
termos de prognósticos teóricos. Embora seja necessário reconhecer que a teoria marxiana
conquistou o mérito histórico de formular, em linhas definitivas e permanentes, muitas das formas
estruturais, categorias e a lógica de funcionamento que continuam operando como espinha dorsal
dos desenvolvimentos da sociedade burguesa, as formas mais concretas e específicas desses
desenvolvimentos, sua carne, seus músculos, nervos periféricos, acúmulos adiposos e epiderme,
representam os modos historicamente diversificados da sua reprodução ampliada, respondendo às
crises e desafios impostos pelo mecanismo da contradição em processo com soluções concretas e
particulares de uma plasticidade provavelmente inimaginável para o próprio Marx, exigindo, por
conta disso, uma releitura crítica do conjunto das previsões marxianas sobre o seu colapso, não pelo
motivo leviano e apressado de que estivessem simplesmente equivocadas, mas, sobretudo, porque
as formas do desenvolvimento histórico da sociedade burguesa foram se revelando, cada vez mais,
sob aquele caráter extremamente plástico, capaz de abrir um leque de variadas possibilidades para
dar conta de suas próprias crises. Essas reflexões, já por si mesmas, apontam para a importância
estratégica das pesquisas referentes aos princípios e às formas da sobredeterminação na teoria
marxista.

Continuar, portanto, com as pesquisas em teoria do método marxista, é indispensável para atualizar
permanentemente o conhecimento científico da sociedade burguesa em toda a sua complexidade
cambiante, resguardando, para não perder o núcleo duro desse conhecimento, a referida espinha
dorsal legada pela obra teórica marxiana, bem como seguindo a trilha dos seus apontamentos
metodológicos, que permaneceram ainda embrionários ou muito condensados. O contínuo
movimento de releitura e atualização dos conhecimentos sobre as modalidades de desenvolvimento
da sociedade burguesa é condição sine qua non para a revisão e atualização das estratégias de
resistência e luta nos diferentes campos sociais. O prognóstico, na teoria marxista, não pretende ser
a afirmação de um futuro teleologicamente inevitável; mas vai se constituindo, com força cada vez

17 MARX, Karl. Grundrisse. Obra citada. Págs. 587 – 588 – 589.


maior, como horizonte de uma estratégia historicamente possível.

Assim se expressa Alain Badiou sobre a “hipótese comunista”:

“Minha convicção se esclarece com uma comparação. Consideremos um problema científico que, enquanto não é
resolvido, pode assumir a forma de uma hipótese. Por exemplo, o 'teorema de Fermat', do qual podemos dizer que é
uma hipótese, se formulado da seguinte maneira: 'Para n > 2, suponho que a equação xn + yn = zn não tem solução
inteira (solução em que x, y e z são números inteiros)'. Entre Fermat, que formulou a hipótese (ele afirmava que a havia
demonstrado, mas isso é outra história), e Wiles, o matemático inglês que realmente demonstrou o teorema alguns anos
atrás, houve inúmeras tentativas de justificação. Muitas serviram de ponto de partida para desenvolvimentos
matemáticos de longuíssimo alcance, embora não tenham resolvido o problema em si. Mas foi fundamental que a
hipótese não tenha sido abandonada durante os três séculos em que foi impossível demonstrá-la. A fecundidade desses
fracassos, de sua análise, de suas consequências, estimulou a vida matemática. Nesse sentido, o fracasso, desde que não
provoque o abandono da hipótese, é apenas a história da justificação dessa hipótese.”18

Essa monografia expressa, portanto, para concluir essa introdução, o desejo de mergulhar nessa
poderosa corrente histórica que é o marxismo desde o século XIX, e que tem como um de seus
afluentes mais importantes a pesquisa científica em questões de teoria e de método.

18 BADIOU, Alain. A Hipótese Comunista. BOITEMPO Editorial. 2012. Pág. 10


Capítulo 1
Questões do método em Marx

Se quisermos começar com um jogo de palavras podemos dizer que o conceito de


sobredeterminação, para ser entendido em toda sua complexidade, é um conceito
sobredeterminado. Principalmente por duas determinações convergentes que, embora falem sobre a
mesma questão, o fazem de um modo diferente. Esses dois modos distintos de se falar sobre uma
mesma questão, nesse caso, são o que conhecemos pelos nomes de materialismo histórico e
materialismo dialético. O que se procura demonstrar no presente capítulo é o como que em
Althusser essas duas determinações (o materialismo histórico, tal como sinteticamente formulado
no texto do prefácio a "Contribuição à Crítica da Economia Política; e o materialismo dialético,
representado, principalmente, pelo texto sobre "O Método da Economia Política") acabam por
disputar o peso maior do significado e efeito epistemológico que se produz com a definição e o uso
do conceito de sobredeterminação, como se esse estivesse amarrado pelos braços e pelas pernas a
dois cavalos que se esforçam por correr em disparada à força de chicotadas, em direções opostas. E,
sendo assim, ou o conceito de sobredeterminação se despedaça, ou resiste na base de um alto grau
de tensionamento.

1.1. A sobredeterminação e a teoria do método


Em "Ler o Capital", um dos pontos mais altos e interessantes da argumentação desenvolvida por
Althusser é quando se constrói a diferença entre o objeto real e o objeto de conhecimento, o que,
por implicação, serve de base para se postular a diferença entre o processo de conhecimento do
empirismo e o da dialética. Althusser começa pela definição do esforço de conhecimento operado
pelos empiristas, e que se caracteriza pela diferença que se estabelece, dentro do círculo do objeto
real, entre a sua aparência e a essência real, o conteúdo inessencial e o essencial, sendo que a
essência verdadeira está escondida, velada, por detrás da aparência ou conteúdo inessencial do
objeto real. Diante de tal objeto real, que mantém escondida a sua essência real (e a repetição
reiterada do termo "real" é um dos indicativos da identidade entre objeto real e objeto de
conhecimento), qual seria o trabalho de produção do conhecimento para os empiristas? Seria um
trabalho de abstração, abstrair a essência real separando-a do objeto real, o conteúdo essencial e
verdadeiro da casca inessencial e falsa, o caminho que se percorre do concreto para o abstrato 19.

19 Que esse procedimento seja de fato o resumo epistemológico correto do empirismo é questionado por E. P.
Thompson, em uma nota na qual reproduz Kolakowski: "Ver Hans Kolakowski, "Althusser's Marx", Socialist
Register, 1971, pp. 124-125: "O leitor com um conhecimento elementar de história da filosofia notará
imediatamente que aquilo que Althusser entende por "empirismo" bem poderia ser considerado como a teoria
aristotélica ou tomista da abstração, mas que o empirismo moderno - iniciado não por Locke, mas pelo menos com
os nominalistas do séc. XIV - significa exatamente o oposto dessa ideia." (Thompson. A miséria da teoria. pág. 218)
Esse trabalho epistemológico de abstração é ilustrado por Althusser por meio de imagens de
extração que nos serão familiares:

"Com efeito, todo o processo empirista do conhecimento reside na operação do sujeito denominada abstração...Assim
como o ouro antes de sua extração existe como ouro não-separado de sua ganga em sua própria ganga, também a
essência do real existe como essência real no real que a contém."20 (Althusser. 1979. pg. 36)

E aqui uma dúvida já nos surpreende, pois essa imagem ilustrativa do propósito de abstrair ou
extrair a essência real de sua ganga ou invólucro aperente e inessencial, é justamente a imagem e os
termos empregados por Marx, no seu posfácio à segunda edição do Livro I de "O Capital",
referindo-se ali à necessidade de se inverter a dialética de Hegel e colocá-la sobre pés materialistas.
Pois, com esse movimento de inversão, se poderia descobrir "o cerne racional dentro do invólucro
místico" (Marx. 2013. pg.91). Althusser vai explicar o uso dessa linguagem do empirismo por Marx
fazendo uso da sua teoria da Leitura Sintomal (que será melhor explicada no próximo capítulo), e
afirmando que é outro, muito diverso, o procedimento de trabalho que Marx na prática adota:

"...Marx, por motivos que analisamos, teve de servir-se dela para pensar a falta de um conceito do qual, no entanto, ele
havia produzido os efeitos, para formular a questão (ausente), isto é, esse conceito, ao qual, contudo, deu a resposta em
suas análises de O Capital; que essa problemática sobreviveu ao uso pelo qual Marx a torceu, destorceu e transformou
de fato, ao mesmo tempo que recorrendo aos seus termos (aparência e essência, exterior e interior, essência interna das
coisas, movimento aparente e movimento real, etc.)..."21 (Althusser. 1979. pg.39)

Enfim, o uso empirista de tal processo de produção do conhecimento, que identifica o objeto real e
o objeto de conhecimento, e que faz do segundo o resultado de um trabalho de abstração sobre o
primeiro, é atribuído por Althusser aos empiristas ingleses do séc. XVIII ("Locke e Condillac"), e
também, "por mais paradoxal que isso possa parecer" (Althusser. 1979. pg. 39), a Hegel. Com
Spinosa e Marx, contudo, o entendimento sobre o processo de pensamento que produz
conhecimento muda radicalmente de figura. É aqui que Althusser passa a dialogar diretamente com
o texto sobre "O Método da Economia Política", de Marx. Nessa nova chave, há uma diferença
epistemológica entre o objeto real e o objeto de conhecimento. O primeiro existe de um modo que
independe em absoluto de qualquer forma de pensamento, consciência ou percepção, sendo o

20 O entendimento segundo o qual o processo empirista significa um movimento de abstrair a essência real do objeto
real dialoga diretamente com a crítica do método da economia política no séc. XVII feita por Marx: "Os
economistas do séc. XVII, p.ex., começam sempre com o todo vivente, a população, a nação, o Estado, muitos
Estados, etc., mas sempre terminam com algumas relações determinantes, abstratas e gerais, tais como divisão do
trabalho, dinheiro, valor, etc., que descobrem por meio da análise." (Marx. 2011. pg. 54). É a essa crítica que
Gianotti chama de combate ao "método indutivo em economia política", feito por Marx. (Giannotti. 1975. pg.88).
21 O curioso, nesse caso, é que o texto sobre "O método da Economia Política", que estamos examinando, representa a
elaboração mais racional e consciente do método dialético em oposição ao método empírico, mesmo que de forma
muito sintética, e serve de base para a formulação althusseriana do conceito de "objeto de conhecimento".
resultado dos processos materiais, objetivos, naturais e históricos. São esses processos que
determinam a sua gênese e conformação histórica.22 Já o objeto de conhecimento, por sua vez, tem
como objetivo produzir o concreto como concreto pensado, síntese de múltiplas determinações, o
caminho indicado por Marx como sendo do abstrato para o concreto23, o inverso do peso que é
jogado aos procedimentos de abstração dos empiristas:

"...Marx defende a distinção entre o objeto real (o concreto-real, a totalidade real que 'subsiste em sua independência no
exterior da cabeça (kopf) antes e depois' da produção do seu conhecimento) e o objeto do conhecimento, produto do
pensamento que o produz em si mesmo como concreto-de-pensamento (Gedankenkonkretun) como totalidade-de-
pensamento (Gedankentotalitat) , isto é, como objeto-de-pensamento, absolutamente distinto do objeto-real, do
concreto-real, da totalidade-real, cujo concreto-de-pensamento, a totalidade-de-pensamento, o conhecimento
proporciona." (Althusser. Ler o Capital. pg. 42)

E, em sendo assim, como definir a base que serve para a elaboração das abstrações das quais se
parte para produzir o concreto de pensamento? Althusser dá uma resposta na linha da formulação
marxiana que identifica o ponto de partida como sendo o "concreto caótico", "concreto
representado", "o ponto de partida da intuição e da representação" 24 (Marx. Grundrisse. pg. 54-55):
matéria-prima, no sentido rigoroso do conceito tal como nos é dado em "O Capital" ("matéria já
elaborada, já transformada), a base de representação subjetiva, ideológica, da qual se parte no
processo de pensamento25:
22 Assim o diz Marx: "O sujeito real, como antes, continua a existir em sua autonomia fora da cabeça; isso, é claro,
enquanto a cabeça se comportar apenas de forma especulativa, apenas teoricamente. Por isso, também no método
teórico o sujeito, a sociedade, tem de estar continuamente presente como pressuposto da representação". (Marx.
Grundrisse. pg. 55).
23 Assim o define Marx: "O último é manifestamente o método cientificamente correto. O concreto é concreto porque
é a síntese de multiplas determinações, portanto, unidade da diversidade. Por essa razão, o concreto aparece no
pensamento como processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida, não obstante seja o ponto de
partida efetivo e, em consequência, também o ponto de partida da intuição e da representação. Na primeira via, a
representação plena foi volatilizada em uma determinação abstrata; na segunda, as determinações abstratas levam à
reprodução do concreto por meio do pensamento." (Marx. Grundrisse. pg. 54).
24 Nesse sentido, Marx: "Por isso, se eu começasse pela população, esta seria uma representação caótica do todo e, por
meio de uma determinação mais precisa, chegaria analiticamente a conceitos cada vez mais simples; do concreto
representado [chegaria] a conceitos abstratos [Abstrakta] cada vez mais finos, até que tivesse chegado às
determinações mais simples." (Marx. Grundrisse. pg.54).
25 Essa formulação da questão é altamente significativa e impactante. Em sua base, o erro do empirismo não se
resume a encarar a abstração que se efetua sobre o objeto real como o ponto de chegada do trabalho de
conhecimento. Antes disso está o erro de imaginar a possibilidade de entrar em contato diretamente com o objeto
real, sem a mediação de sua representação subjetiva, intuitiva, perceptiva, ideológica. Este é um tema fecundo para
explorar a possibilidade de uma problemática kantiana nos textos do Marx da maturidade, problemática essa que
Althusser localiza em uma das fases do Marx da juventude. Mas está muito além da nossa competência nesse
momento. Apenas com o propósito de ilustrar o que isso poderia significar, vejamos a colocação de um problema
similar na obra de Simmel, tal como é indicada por Maurício Tragtenberg, na introdução à edição brasileira da
"Metodologia das Ciências Sociais", de Max Weber: "Simmel se coloca uma questão na forma de Kant: É possível
a sociedade? Para ele, a pergunta fundamental de Kant fora a seguinte: A natureza é passível de ser objeto da
ciência? Segundo Simmel, Kant poderia ter adiantado uma resposta, já que a natureza era vista como representação
da natureza. A natureza é a maneira com que nosso intelecto recebe e ordena as percepções dos sentidos, é uma
espécie de cognição...Diz Simmel: 'a sociedade é minha representação no processo de atividade da consciência'. A
resposta à pergunta - como é possível a sociedade? - é fornecida por um a priori que está contido nos sujeitos
sociais". (Tragtenberg. Em "Metodologia das Ciências Sociais", de Max Weber. pg. 19). Essa problematização
"...que, portanto, jamais o conhecimento se acha, como o quereria desenperadamente o empirismo, diante de um objeto
puro, que fosse então idêntico ao objeto real do qual o conhecimento visa justamente produzir...o conhecimento.
Trabalhando sobre seu 'objeto', o conhecimento não o faz então com o objeto real, mas com sua própria matéria-prima,
que constitui, no sentido rigoroso do termo, o seu 'objeto' (de conhecimento) que é, desde as formas mais rudimentares
do conhecimento, distinto do objeto real..." (Althusser. Ler o Capital. pg. 44)

De modo que já temos uma primeira corrente atrelando e disputando o significado do conceito de
sobredeterminação, nosso primeiro cavalo de tração: na medida em que pretende significar
múltiplas determinações que convergem para produzir os fatos históricos, diz respeito à produção
do concreto pensado pelo conhecimento, e, como tal, é um conceito que tem função epistemológica,
identificando-se com a fórmula do concreto de pensamento como síntese de múltiplas
determinações. Não há, portanto, nessa sua primeira definição, nenhuma novidade em relação ao
que já estava evidenciado no texto da obra marxiana.

Ter-se-á notado, talvez, nesse texto de Marx sobre o método e na reflexão althusseriana sobre o
objeto de conhecimento, a ausência de uma questão que para o nosso propósito de estudo do
conceito de sobredeterminação é de suma importância, e que, no último capítulo da presente
dissertação, será retomada para o comentário de uma dificuldade que se evidencia em Althusser: a
confusão provocada pela falta de distinção no uso dos conceitos de determinação e contradição.
Essa questão ausente à qual nos referimos diz respeito à falta de uma declaração, ou mesmo da ideia
operando na prática, de modo latente, da noção de determinação em última instância. Assim,
quando Marx fala do concreto de pensamento como síntese de múltiplas determinações, não se
estabelece nenhuma regra nem critério que sirva para se organizar uma hierarquia que pudesse
estabelecer o grau de importância e a relação de causalidade entre as diferentes determinações.
Também, nesse texto, é importante notar que Marx nos fala de determinações, e não de
contradições; o concreto como síntese de múltiplas determinações, não como síntese de múltiplas
contradições. E quais são as conclusões que podemos formular a esse respeito? Podemos então,
para resumir o resultado do nosso estudo sobre o método em Marx até o momento, dizer que, nesse
texto sobre "O Método da Economia Política", o tema é o do processo de produção de
conhecimento pelo pensamento, a produção do concreto pensado, síntese de múltiplas
determinações. Nesse contexto, as categorias determinantes convergem para produzir o
conhecimento da sociedade histórica de uma forma radicalmente diferente de como convergem para

também é apontada por Marcos Muller, no seu artigo "Exposição e método dialético em "O Capital"": "A
ressonância kantiana da linguagem faz Colletti dizer que Marx retorna ao conceito gnosiológico, e não ontológico,
de 'conceito', e à afirmação do papel constitutivo e permanente da multiplicidade da experiência para a elaboração
do conceito." (Muller. ob. cit. pg. 29)
produzir a sociedade histórica como processo concreto, independente do pensamento 26. O que temos
aqui, portanto, é a ordem lógica das categorias de determinação, e não a sua ordem histórica.
Ou, a coisa da lógica, e não a lógica da coisa. Nesse sentido, aqui não se fala de diferentes esferas
ou estruturas que existem e atuam em conjunto na vida social, tais como a política, o jurídico, o
religioso, o cultural, etc., mas sim das diversas categorias determinantes que fazem a estruturação
da economia no interior da sociedade burguesa. A economia burguesa é, portanto, o concreto
pensado como síntese de múltiplas determinações, e as categorias econômicas (as referidas por
Marx no texto sobre "O Método..." são: posse, propriedade, cooperação, divisão do trabalho,
dinheiro e trabalho), os conceitos com maior ou menor grau de simplicidade e abstração que, em
seu conjunto, vão determinar o concreto da economia na sociedade burguesa. Isso, naturalmente,
não significa que essas categorias não possuam aspectos antitéticos e contradições. Essas mesmas
categorias também podem ser o produto de sobredeterminações. Mas a forma como essas
contradições se resolvem, muitas vezes, são formas puramente lógicas e impessoais. O dinheiro, p.
ex. pode ser entendido como o resultado da sobredeterminação de diversas funções, tais como
apontadas em "O Capital": medida dos valores, meio de circulação, signo de valor, meio de
pagamento...Também, como a forma que resolve logicamente a contradição entre o valor e o valor
de uso entendidos como dimensões antitéticas operantes no mundo das mercadorias:

"O cristal monetário [Geldkristall] é um produto necessário do processo de troca, no qual diferentes produtos do
trabalho são efetivamente equiparados e, desse modo, transformados em mercadorias. A expansão e o aprofundamento
históricos da troca desenvolvem a oposição entre valor de uso e valor que jaz latente na natureza das mercadorias. A
necessidade de expressar externamente essa oposição para o intercâmbio impele a uma forma independente do valor da
mercadoria e não descansa enquanto não chega a seu objetivo final por meio da duplicação da mercadoria em
mercadoria e dinheiro. Portanto, na mesma medida em que se opera a metamorfose dos produtos do trabalho em
mercadorias, opera-se também a metamorfose da mercadoria em dinheiro." (Marx. O Capital. pg. 161-162)

É em razão dessa diferença que se estabelece entre o concreto caótico/representado, matéria-prima


para o trabalho de abstração de conceitos e categorias cada vez mais simples, e o concreto pensado,
produto de múltiplas determinações, que caminha na direção de uma crescente complexidade, é em
razão dessa diferença, dizíamos, que se pode entender os momentos distintos que serão chamados
de método de pesquisa e método de exposição pelo marxismo. O método de pesquisa diz respeito,
fundamentalmente, ao primeiro dos processos indicados, ou seja, ao trabalho de abstração que

26 Marx expressa essa diferença, entre outras passagens, na que se segue: "Seria impraticável e falso, portanto, deixar
as categorias econômicas sucederem-se umas às outras na sequência em que foram determinantes historicamente. A
sua ordem é determinada, ao contrário, pela relação que tem entre si na moderna sociedade burguesa, e que é
exatamente o inverso do que aparece como sua ordem natural ou da ordem que corresponde ao desenvolvimento
histórico. Não se trata da relação que as relações econômicas assumem históricamente na sucessão de diferentes
formas de sociedade...Trata-se, ao contrário, de sua estruturação no interior da moderna sociedade burguesa."
(Marx. Grundrisse. pg. 60).
produz conceitos e categorias na base do material concreto denominado caótico ou representado.
Podemos ver um pouco desse método de pesquisa a partir de alguns indicativos presentes na obra
marxiana. O primeiro, uma declaração de Marx sobre o valor do trabalho de abstração para a
produção de conhecimento:

"...na análise das formas econômicas não podemos nos servir de microscópio nem de reagentes
químicos. A força da abstração [Abstraktionskraft] deve substituir-se a ambos. Para a sociedade
burguesa, porém, a forma-mercadoria do produto do trabalho, ou a forma de valor da mercadoria,
constitui a forma econômica celular. Para o leigo, a análise desse objeto parece se perder em vãs
sutilezas. Trata-se, com efeito, de sutilezas, mas do mesmo tipo daquelas que interessam à anatomia
micrológica"27 (Marx. O Capital. Livro I. pg. 78)

O segundo indicativo do método de pesquisa pode ser observado na apresentação de Mario Duayer
à edição brasileira do "Grundrisse", que estamos utilizando nesse estudo. Nesse texto, Duayer
mostra o que se pode chamar de método extrativo de Marx, ou seja, o emprego sistemático que este
realizava do procedimento de reprodução por escrito de extratos de todos os autores e obras que
faziam parte do seu planejamento de estudo, e, junto a isso, a escrita de suas próprias anotações 28. O
"Grundrisse", nesse sentido, apesar de sua relativa disformidade (sua forma vai sendo modelada na
"Contribuição à Crítica da Economia Política" e pelos livros de "O Capital"), é o melhor posto de
observação para quem deseja ver o método de pesquisa de Marx em andamento. Sua matéria-prima,
os livros. Seu ambiente de trabalho, o gabinete de estudo. Sua ferramenta de trabalho, a força da
abstração. Seu produto, conceitos e categorias com maior ou menor grau de simplicidade.

"É preciso, portanto, uma apropriação crítica prévia dos resultados da economia política como ciência social para que a
sua reconstrução categorial seja efetivamente uma exposição do "desenvolvimento conceitual" do material
pesquisado...É preciso, assim, que o "método de pesquisa" assuma o ônus idealista da lógica especulativa apropriando-
se analítica e críticamente do conteúdo, antes que a exposição possa exprimir seu "desenvolvimento conceitual"..."
(Muller. Exposição e método dialético em "O Capital". ob. cit. pg. 32)

27 Temos assim, portanto, uma analogia entre processos químicos de laboratório e processos abstrativos de gabinete. A
força da abstração equivalente ao reagente químico, e as formas mais simples da sociedade burguesa - forma
mercadoria, forma valor - como o seu produto. Daí é que se pode inferir que Marx está a falar diretamente sobre o
procedimento de pesquisa.
28 Assim, a seguinte passagem: "Já em novembro de 1837, aos dezenove anos, ele comenta em uma carta ao seu pai
que havia adotado o 'hábito de fazer extratos de todos os livros que leio [...] e, incidentalmente, rabiscar minhas
próprias reflexões'. O que significa dizer que os extratos redigidos por ele no curso de sua extensa atividade
intelectual documentam minuciosamente os temas e autores que foram objeto de sua investigação, permitindo não
só acompanhar a evolução de seus estudos...mas, sobretudo, compreender o seu método de trabalho. Por esse
motivo, costuma-se dizer que examinar os Grundrisse (e, nesse sentido, os demais materiais inéditos) é como ter
acesso ao laboratório de estudos de Marx." (Marx. Grundrisse. pág. 13)
Já o método de exposição deve funcionar com base em uma outra lógica. Aqui, a produção de
conhecimento já não é para si próprio, é para o conhecimento do leitor. E esse conhecimento deve
ser apresentado de forma científica. O caráter científico reside, portanto, na forma da exposição, e
essa forma significa o esforço teórico de produzir o concreto pensado, a caminhada que vai das
categorias mais simples e abstratas em direção ao concreto de pensamento, a totalidade como
síntese de múltiplas determinações. Nada ilustra melhor esse propósito do que os planos de
exposição pensados por Marx para a sua crítica da economia política. A seguir, o primeiro plano de
exposição, pensado para a primeira edição da sua "Contribuição à Crítica da Economia Política",
em carta a Lassale:

"O enunciado, quero dizer a forma, é absolutamente científico. Logo não infringe os regulamentos policiais no sentido
habitual. Dividi o conjunto em seis livros: 1. Do capital (com alguns capítulos preliminares); 2. Da propriedade
fundiária; 3. Do regime de salário; 4. Do Estado; 5. O comércio internacional; 6. O mercado mundial." (Marx.
Contribuição à Crítica da Economia Política. Nota da Edição Francesa. pág. XIV)

De modo que, na "Contribuição à Crítica da Economia Política", e depois no plano dos Livros de
"O Capital", temos uma parte do trabalho acumulado pelo método de pesquisa posto em forma,
expressando o movimento que vai das categorias mais simples para o concreto pensado. É o
trabalho de expressar a síntese de múltiplas determinações, e que nos dá mais uma vez o lugar do
conceito de sobredeterminação: o método de exposição.

E, muito embora a ideia de contradição esteja presente no interior das categorias e na relação que
se estabelece entre elas, o modo da sua existência e atividade se resolve logicamente, em
desdobramentos formais, sem nenhuma ligação necessária com o processo de luta de classes,
fazendo com que, portanto, nessa dimensão do método de conhecimento, predomine a função de
determinação formal e lógica das categorias29.

Que este seja de fato o sentido do método de exposição em Marx também é entendido por Jorge
Grespan, que o vai caracterizar como "caminho da concreção":

"Apesar de dialeticamente a exposição ter uma forma recursivo-progressiva, com o que vem depois sendo pressuposto
do que vem antes, tanto quanto este é daquele, há um domínio das formas mais ricas e complexas, nas quais as mais
abstratas e iniciais não são eliminadas, mas redefinidas em seu papel. Daí que o caminho da exposição categorial seja o
da "concreção", no sentido do "concreto como síntese de múltiplas determinações" contraditórias, como diz a
Introdução de 1857" (grespan. A dialética do avesso. pág. 44-45)

29 Relembramos, aqui, a seguinte fórmula de Marx: "...as categorias expressam formas de ser, determinações da
existência..." (Marx. Grundrisse. pg. 59).
E, para ilustrar esse caminho de concreção, Grespan faz uso do seguinte exemplo, relacionado à
função categorial que a determinação da circulação simples continua desempenhando na formação
social capitalista:

"As determinações já da circulação simples não são simplesmente anuladas pelas da produção capitalista, mas também
não são mantidas como se a elas não se acrescentasse algo fundamental, isto é, que lhes dá um novo fundamento. É
superado justamente o conteúdo da circulação simples, o objetivo de vender para comprar valores-de-uso, produtos que
satisfaçam necessidades de consumo. Mas a circulação simples existe dentro da capitalista, quando o que circula são
simples mercadorias e dinheiro, e não capital-mercadoria e capital-dinheiro; quando não há investimento, mas simples
compra de bens de consumo pelos assalariados ou pelos capitalistas que também usam assim parte da mais-valia. Não é
que a circulação simples seja mera hipótese irrealista, portanto mero pressuposto lógico para desenvolver o conceito de
capital; ela existe, embora de modo subordinado à circulação e produção capitalista. Com sua transformação em
momento de um processo maior, é dado a ela agora o papel de executar fases do movimento mais amplo." (Grespan. ob.
cit. pág. 45)

Mas é Marcos Muller, no seu artigo "Exposição e método dialético em "O Capital"", quem mais
centra o foco na argumentação que visa caracterizar o método de exposição como o lugar por
excelência de exercício da dialética como lógica da produção do conhecimento científico sobre o
objeto real. Assim:

"Dialética significa n'O Capital primeiramente e, predominantemente, o "método/modo de exposição" crítica das
categorias da economia política, o método de "desenvolvimento do conceito de capital" a partir do valor, presente na
mercadoria, enquanto ela é a categoria elementar da produção capitalista que contém o "germe" das categorias mais
complexas..."método de exposição", que designa o modo como o objeto, suficientemente apreendido e analisado, se
desdobra em suas articulações próprias e como o pensamento as desenvolve em suas determinações conceituais
correspondentes, organizando um discurso metódico." (Muller. ob. cit. pg. 19-20)

E aqui também devemos notar que, no uso do método de exposição entendido dessa forma, não
haveria nenhuma ruptura epistemológica, mas sim continuidade metodológica e conceitual entre
Hegel e Marx:

"O que caracteriza o conhecimento dialético é, primeiramente, que o verdadeiro (Hegel), o racional e o concreto (Hegel,
Marx), não são de acesso imediato a qualquer tipo de intuição intelectual ou experiência direta, que intuiria ou tomaria o
objeto no seu ser dado imediato, mas que eles são o resultado de um movimento de pensamento, do que Hegel chama de
"trabalho do conceito", que expõe progressivamente, a partir das determinações mais simples e abstratas do conteúdo,
suas determinações cada vez mais ricas, complexas e intensas, até o ponto de sua unidade, que não é uma unidade
formal, mas uma unidade sintética de múltiplas determinações. Esta caracterização vale, em princípio, tanto para Hegel,
como para Marx." (Muller. ob. cit. pg. 22-23)
De que modo, e em que momentos, haveria uma ruptura entre a dialética marxiana e a hegeliana, é
um dos temas mais importantes que vamos abordar no segundo capítulo, principalmente no tópico
que se refere à teoria do corte epistemológico de Althusser.

O tema epistemológico da diferença que se constrói entre o objeto real e o objeto de conhecimento
sempre alarga uma margem para dificuldades de entendimento ou malentendidos. Isso porque tal
diferença pode ser postulada e servir com a mesma eficiência a dois senhores que são inimigos
mortais e vivem em pé de guerra: o materialismo e o idealismo 30. Essa pode ser, inclusive, uma das
chaves para a elucidação da questão de fundo posta pela problematização althusseriana: há ou não
uma ruptura, no que diz respeito a essa diferença, entre a filosofia de Hegel e a de Marx? Como será
melhor detalhado no próximo capítulo, veremos que althusser responde afirmativamente por meio
da sua teoria do corte epistemológico, posicionando-se pela ruptura com radicalidade. E é nesse
ponto que J. A. Giannotti pretende pegá-lo no pulo31.

De acordo com Giannotti, Althusser comete o erro fundamental de operar uma separação radical
entre o objeto real e o objeto de conhecimento, radicalidade de separação essa que seria estranha à
teoria marxiana. Esse erro cometido por Althusser, no seu afã de cortar toda a carne, nervos e
músculos que fariam, de fato, a ligação da filosofia de Marx com a de Hegel, acabaria por desprover
o concreto de todas as formas de universalidade (a universalidade deve ser entendida, nesse texto,
como sendo o concreto determinado por e determinante de categorias), gerando-se, desse modo,
dois mundos paralelos que se desenvolvem sem nunca se encontrarem: o processo real do concreto
e o processo de conhecimento:

"De um lado teríamos, pois, a realidade, cuja existência é independente do conhecimento, de outro, a produção do
conhecimento que como tal se move num universo autônomo, partindo de fatos teóricose chegando a outras teorias mais
gerais, adequadas e percucientes." (Giannotti. Contra Althusser. pág. 88)

E. P. Thompson, no seu "A Miséria da Teoria", livro inteiramente dedicado à crítica do programa
teórico althusseriano, embora trabalhando numa linha de argumentação muito diferente de
Giannotti32, pois a sua problemática é a de um historiador, postula e defende também a ideia de que
30 Essa diferença é a base usada por Marx para explicar o erro cometido por Hegel: "Por isso, hegel caiu na ilusão de
conceber o real como resultado do pensamento que sintetiza-se em si, aprofunda-se em si e movimenta-se a partir
de si mesmo, enquanto o método de ascender do abstrato ao concreto é somente o modo do pensamento de
apropriar-se do concreto, reproduzi-lo como um concreto mental. Mas de forma alguma é a gênese do próprio
concreto". (Marx. Grundrisse. pág. 54-55)
31 O debate que agora faremos com alguns dos tópicos de crítica de Giannotti contra althusser faz uso do artigo
intitulado: "Contra Althusser", publicado em Seleções CEBRAP 2. Exercícios de Filosofia. 1975.
32 Dedicaremos um tópico no terceiro capítulo da presente dissertação para olhar com mais detalhes esse ponto crítico
Althusser, no desenvolvimento da sua teoria da prática teórica, produz uma noção tal de objeto do
conhecimento que quebra qualquer possibilidade de ligação de correspondência com o objeto real,
ou seja, o processo histórico em sua complexidade empírica. Thompson vai afirmar que, embora
haja uma postulação de princípio dessa correspondência (ver, por exemplo, a citação de Althusser
que reproduzimos alguns parágrafos adiante), na prática o que se faz é negar esse mesmo princípio,
recusando-se toda e qualquer possibilidade de conhecimento do objeto real, o que faz com que
Thompson associe esse posicionamento althusseriano com as recusas de Popper33 e do empirismo
ao "historicismo" (entendido como qualquer tentativa historiográfica de se produzir conhecimento
científico sobre o processo histórico), e veja o objeto real em Althusser desempenhando o mesmo
papel cenográfico que Deus na teoria de Francis Bacon:

""O certo é que Deus nada fez na natureza que não fosse por causas segundas". O argumento não impediu que Francis
Bacon fosse acusado de ser ateu em segredo, e Althusser não se deve surpreender ao ser acusado de dissolver a
realidade numa ficção idealista. Pois, uma vez feito esse gesto piedoso e necessário [de afirmar a existência do objeto
real e sua correspondência com o objeto de conhecimento] (como uma espécie de a priori genético, uma cláusula "em
última instância"), o "real" é rápidamente arrastado para fora da cena." (Thompson. A Miséria da Teoria. pág. 31)

Ao nosso ver, no entanto, Giannotti e Thompson, embora desenvolvendo caminhos teóricos muito
diferentes, se equivocam ao criticar uma suposta não correspondência absoluta, em Althusser, entre
o objeto real e o objeto de conhecimento. Não se deve fazer a leitura dos textos althusserianos como
se estivessem no plano de um espaço regido pelas leis da física de Newton, no qual duas linhas
paralelas podem prosseguir em direção ao infinito sem nunca se encontrarem. O espaço em questão
seria mais o regido pelas leis de Einstein, em que a curvatura faz com que, inevitavelmente, em um
determinado ponto, as linhas se encontrem. E não há ponto mais nítidamente expressivo desse
momento de encontro na curvatura do que o conceito de sobredeterminação. Retomaremos essa
questão no terceiro capítulo do presente trabalho. Veremos, assim, que a ideia de representação do
objeto real não é estranha ao pensamento de Althusser, muito embora não seja a ideia dominante.

Giannotti elabora a sua argumentação postulando a diferença entre o "universal-concreto" (o


concreto tal como o seria entendido pela teoria marxiana, criador e criatura de categorias de
determinação), e o concreto "individual", dizendo que, em Marx, "De modo nenhum é dito porém
que o concreto é necessáriamente individual, como pressupõe tacitamente a interpretação de

na obra mencionada de E. P. Thompson.


33 "Para Popper, "não há história da humanidade, há apenas um número indefinido de histórias de todos os tipos de
aspectos da vida humana". Essas histórias são criadas por historiadores a partir de uma "matéria infinita" de acordo
com preocupações contemporâneas. A ênfase recai, com a monotonia de um martelo a vapor, sobre a
incognoscibilidade de qualquer processo histórico objetivo e sobre os perigos da atribuição "historicista"."
(Thompson. ob. cit. pág. 30-31)
Althusser" (Giannotti. Contra Althusser. pág. 89). É interessante notar também, para aproveitar o
ensejo, que uma das críticas mais ácidas de Giannotti contra Althusser se dá em relação a sua
proposta de uma Leitura Sintomal dos textos de Marx (comentaremos sobre essa proposta no
próximo capítulo), ou seja, a escolha por ler Marx nas entrelinhas e não nas linhas, "como se sua
prática teórica fosse inferior às suas descobertas" (Giannotti. ob. cit. pág. 88-89). Mas aqui, fazendo
juz não ao que preconiza mas sim ao que critica, Giannotti pretende dialogar com o que está
tacitamente pressuposto em Althusser, como se suas descobertas fossem inferiores à sua prática
teórica.

Para entendermos melhor esse ponto da crítica de Althusser, vejamos a seguinte passagem:

"...Marx contrapõe o caráter propriamente improdutivo do pensamento teórico que apenas se apropria e reproduz
(termo que Althusser deixa de comentar) o concreto numa forma espiritual...Não há pois de se atribuir uma excessiva
importância à noção de produção teórica." (Giannotti. Contra Althusser. pg. 89)

Temos portanto, como divergência de posicionamento entre Giannotti e Althusser, tal como a
formula Giannotti, o peso maior ou menor que se joga no entendimento do processo de produção do
conhecimento científico, ou como produção ou como reprodução do objeto real. E, diante disso,
na leitura que aqui fazemos dos textos de Althusser, o modo como o nosso autor valoriza e formula
a ideia de produção do objeto de conhecimento (para estudar o procedimento metodológico), não é
estranha à ideia dessa produção como, também, uma forma de reproduzir o objeto real. Há, como já
dissemos, um ponto de cruzamento entre as duas paralelas, e esse ponto de cruzamento tem um
significado muito específico, ou seja, o da reprodução da ordem lógica das categorias na
determinação daquilo que, em Marx, é definido como síntese de múltiplas determinações, e que é
diferente da ordem lógica no processo da sua gênese histórica:

"...o processo de produção do objeto do conhecimento se passa inteiramente no conhecimento, e se efetua segundo uma
outra ordem, em que as categorias pensadas que "reproduzem" as categorias "reais" não ocupam o mesmo lugar que
ocupam na ordem da gênese histórica real, mas lugares inteiramente diversos que lhes são atribuídos por sua função no

processo de produção do objeto do conhecimento." (Althusser. Ler o Capital. pg. 42)

Acontece que, em Giannotti, há uma interpretação muito peculiar sobre o conceito de concreto
pensado em Marx. Vejamos:

"Quando Marx afirma: "O todo como aparece na cabeça, tal qual um todo-de-pensar, é um produto da cabeça pensante"
está obviamente se referindo às ideias singulares que estão na cabeça de cada um, resultantes de um complexo
fisiológico. Para Marx nesse momento importa salientar a subjetividade da ideia em face da objetividade, não tendo pois
cabimento a interpretação que faz desse produto o discurso científico objetivo, independente do curso pessoal das
representações." (Giannotti. Contra Althusser. pg. 89)

Giannotti pretende, a todo custo, defender a sua tese segundo a qual, na teoria de Marx, a ideia de
produção teórica do objeto de conhecimento é estranha, e deve ser substituída pela ideia de
reprodução teórica do objeto real, "espelhamento teórico do concreto". Para tanto, acaba
cometendo dois erros, que se evidenciam na citação acima. Na primeira parte da sentença, o todo,
como concreto pensado, é entendido como "ideia singular", produzida pela cabeça de cada um de
nós individualmente, resultado de um "complexo fisiológico", assim como podemos entender a
produção do suor, da salivação e do bolo fecal. O desejo de evidenciar a naturalidade e
espontaneidade da produção de representações subjetivas da realidade concreta pelo ser humano
acaba, portanto, por rebaixar a condição de determinação para o nível do biológico, jogando, assim,
para debaixo do tapete importantes postulados marxianos básicos tais como, por exemplo, o da 6º
tese sobre Feuerbach: "...a essência humana não é uma abstração intrínseca ao indivíduo isolado.
Em sua realidade, ela é o conjunto das relações sociais" (Marx. Ideologia Alemã. pg. 534). Ou seja,
qualquer representação subjetiva, elaborada pela cabeça humana, não pode se processar sem a
mediação de uma realidade social, de uma linguagem, uma ideologia, etc., muito embora haja
sempre um suporte biológico pressuposto. O desejo de banalizar ao extremo a ideia althusseriana
de produção do objeto de conhecimento como um empreendimento epistemológico específico deve
pagar o seu preço. Na segunda parte da sentença, o argumento se dirige para a leitura de Marx,
segundo a qual, quando este fala sobre o concreto de pensamento, está a falar de qualquer forma de
representação subjetiva do todo, e não do processo de produção do conhecimento científico em
particular. Ora, ao nosso entender, essa leitura só é possível com o descolamento de algumas frases
do seu contexto, pois, no seu escrito sobre o método da economia política, o tema é justamente o da
produção do conhecimento científico em sua especificidade, diferenciando, muito claramente, de
outras formas de representação subjetiva que se constituem socialmente:

"O todo como um todo de pensamentos, tal como aparece na cabeça, é um produto da cabeça pensante que se apropria
do mundo do único modo que lhe é possível, um modo que é diferente de sua apropriação artística, religiosa e prático-
mental" (Marx. Grundrisse. pg. 55)

De modo que Giannotti, mesmo escrevendo contra Althusser, nos ajuda a pensar nos termos da
identidade conflitiva que existe entre a produção de um conhecimento e a reprodução ou
espelhamento da realidade concreta. "Para mim...o ideal não é mais do que o material, transposto e
traduzido na cabeça do homem" (Marx. O Capital. Posfácio à 2º edição. pg. 90). Ele erra, no
entanto, ao nosso ver, em afirmar que essa tese não está, pelo menos, "tacitamente pressuposta" no
nosso autor.

Vejamos agora como a coisa se passa no prefácio da "Contribuição à Crítica da Economia Política",
e quais as novas implicações que são trazidas para o nosso conceito de sobredeterminação - o
cavalo que vai puxar pela outra ponta. Nesse texto, já não se trata mais da teoria do processo de
pensamento como processo de produção do conhecimento científico, mas sim de uma teoria do
desenvolvimento histórico das sociedades humanas, que é entendida como resultado e fio
condutor do trabalho de estudo e pesquisa34. Sendo assim, devemos notar que, nesse ponto da sua
formulação teórica, estamos falando do quadro geral dentro do qual se constitui o objeto e o sentido
do método de pesquisa e do método de exposição, e que esse quadro geral, que nos é dado de uma
forma altamente sucinta - em um único parágrafo! - , nos revela os principais conceitos do que vai
ser chamado de materialismo histórico, e que, a partir de agora, vai nos instruir sobre a lógica da
coisa, e não mais sobre a coisa da lógica35.

1.2. A sobredeterminação e a teoria da história


Vamos apresentar a formulação marxiana da teoria geral do materialismo histórico dividida em três
momentos: o da estruturação de uma formação social; o do princípio que rege o processo evolutivo
das sociedades históricas; o do princípio que rege os momentos de crise revolucionária de uma
formação social. Nesse conjunto, vão aparecer alguns dos conceitos mais familiares ao marxismo:
estrutura, superestrutura, relação de condicionamento/determinação, forças produtivas e relações de
produção. Vejamos, então, como Marx nos apresenta o princípio de estruturação de uma formação
social:

"...na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da
sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas
materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a

34 Assim o reconhece Marx: "A conclusão geral a que cheguei e que, uma vez adquirida, serviu de fio condutor dos
meus estudos..." (Marx. Contribuição...pág. 5). De que modo poderíamos entender a função de uma "conclusão
geral" e de um "fio condutor" no caso dos textos marxianos que estamos estudando? 1) na escolha de objeto: a
economia burguesa, estrutura que compreende o estado histórico das forças produtivas e as relações de produção; 2)
na matéria-prima que serve de base para o estudo do objeto: a Economia Política; 3) nos conceitos e nas categorias
que são elaborados no processo de abstração do método de pesquisa: conceitos e categorias econômicas; 4) na
forma de abordar os temas da superestrutura: buscando evidenciar sempre, em última instância, a relação de
condicionamento e de determinação; 5) no objetivo do método de exposição: evidenciar a economia burguesa como
síntese de múltiplas determinações (determinações, como já vimos, representadas por categorias e conceitos
essencialmente econômicos).
35 Em linhas gerais, portanto, a coisa da lógica deve estar subordinada à lógica da coisa. E o inverso disso pode ser
caracterizado como o erro da metafísica e do idealismo: "Por isso, Hegel caiu na ilusão de conceber o real como
resultado do pensamento que sintetiza-se em si, aprofunda-se em si e movimenta-se a partir de si mesmo, enquanto
o método de ascender do abstrato ao concreto é somente o modo do pensamento de apropriar-se do concreto, de
reproduzi-lo como um concreto mental. Mas de forma alguma é o processo de gênese do próprio concreto". (Marx.
Grundrisse. pág. 54).
qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O
modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é
a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência."
(Marx. "Contribuição...". pág. 5)36

Temos aqui, portanto, o princípio da determinação em última instância 37, constituída pelas
relações de produção que, por sua vez, se estruturam de uma forma que independe de consciência
ou vontade, em função de um certo estágio do desenvolvimento das forças produtivas. E a esse
argumento já podemos fazer a ligação de um outro, que pode ser caracterizado, na forma em que
está escrito, como um princípio evolucionista:

"Em um caráter amplo, os modos de produção asiático, antigo, feudal e burguês moderno podem ser qualificados como
épocas progressivas da formação econômica da sociedade...Com esta organização social [sociedade burguesa] termina,
assim, a Pré-História da sociedade humana." (Marx. "Contribuição...". pág. 6)38

Temos, assim, uma concepção que pode ser entendida como desenvolvimento linear e progressivo
das forças produtivas materiais, determinando, diretamente, a estruturação das relações de produção
e, em última instância, as diferentes esferas da superestrutura. O último momento da argumentação
que queremos destacar é o do princípio da ruptura revolucionária. Aqui, a determinação em última
instância se converte em uma contradição lógica que opera de modo implacável39:

36 É interessante notar o uso de dois conceitos aparentados mas distintos: "condicionamento" e "determinação".
Quando se fala de determinação, pura e simplesmente, pensamos em uma forma direta de relação causal, sem
mediações. O uso desse conceito por Marx, nessa passagem, se refere à determinação mais geral da consciência
pelo ser social. Ou, o ser social precede e determina a consciência. Em uma dimensão mais próxima da experiência
concreta, Marx fala que "o modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social,
política e intelectual em geral". O uso do conceito condicionar, aqui, pode significar que Marx não pensava em
uma modalidade de relação causal direta, sem mediações. E, quando pensamos em uma determinação indireta,
como mediações, pensamos logicamente a possibilidade dos conceitos de autonomia relativa e sobredeterminação.
Mas Marx não desenvolve formalmente essa possibilidade nesse texto. Sobre o motivo pelo qual o conceito de
determinação possa ter se evidenciado quese de modo exclusivo, a seguinte passagem de Engels: "Marx e eu somos
em parte responsáveis pelo fato de que, de vez em quando, nossos discípulos dão maior peso ao fator econômico do
que deveriam. Fomos obrigados a enfatizar seu caráter central em oposição a nossos adversários, que o negavam, e
nem sempre havia tempo, espaço e oportunidade para fazer justiça aos outros fatores envolvidos nas interações
recíprocas do processo histórico." (citado por Edmund Wilson. Rumo à Estação Finlândia. pág. 176).
37 Note-se que falar da ideia de uma determinação em última instância no texto marxiano é, de certa forma, uma
concessão que se faz às leituras que já começam a relativizar a força da determinação econômica, seguindo, nesse
sentido, a linha que foi indicada por Engels na sua carta a Joseph Bloch, lugar em que aparece a noção de
determinação em última instância: "Segundo a concepção materialista da história, o momento em última
instância determinante, na história, é a produção e reprodução da vida real. Nem Marx nem eu alguma vez
afirmamos mais. Se agora alguém torce isso [afirmando] que o momento econômico é o único determinante,
transforma aquela proposição numa frase que não diz nada, abstrata, absurda." (citado em MOTTA. A Favor de
Marx. pág. 52-53)
38 O gosto de Marx por certas ideias evolucionistas aparece mais de uma vez na sua obra da maturidade. Outro
exemplo é a famosa passagem do texto sobre o método em que diz: "A anatomia do ser humano é uma chave para a
anatomia do macaco. Por outro lado, os indícios de formas superiores nas espécies animais inferiores só podem ser
compreendidos quando a própria forma superior já é conhecida" (Marx. Grundrisse. pág. 58), ilustrando assim o
motivo pelo qual na sociedade burguesa certas categorias econômicas muito complexas ajudam a explicar as
mesmas categorias em fases anteriores da história humana, e que existiam em formas mais simplificadas.
39 Tal contradição lógica, operando de forma implacável, pode também ser observada no "Grundrisse". Assim, a parte
"Em certo estágio de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as
relações de produção existentes...De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações trasformam-se no
seu entrave. Surge então uma época de revolução social. A transformação da base econômica altera, mais ou menos
rapidamente, toda a imensa superestrutura. Ao considerar tais alterações é necessário sempre distinguir entre a alteração
material - que se pode comprovar de maneira cientificamente rigorosa - das condições econômicas de produção, e as
formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens
tomam consciência deste conflito, levando-o às suas últimas consequências." (Marx. "Contribuição...". pág. 5)

E assim, terminando esse primeiro momento de reflexão, com base na apresentação sintética dos
princípios e dos conceitos fundamentais do materialismo histórico, tais como aparecem no prefácio
da "Contribuição à Crítica da Economia Política", nos encontramos diante da possibilidade de
enxergar um processo histórico regido por uma contradição simples, determinando a estrutura,
superestrutura e ruptura revolucionária de todas as formações sociais que se sucederam no tempo
histórico da humanidade. E é interessante notar que, ao final do seu artigo, Marcos Muller "brinca"
com a ideia de que a teoria da história em Marx, entendida na chave dessa possibilidade de leitura,
representaria uma forma de "inversão" da ontologia especulativa de Hegel:

"Neste sentido pode-se dizer, provocativamente, que a subjetivação do valor como capital e a sua expansão histórica e
sistemática tornaram o realismo ontológico de Hegel um sistema cifrado das relações sociais capitalistas, permitindo a
Marx "extrair" da metafísica do conceito hegeliana o "caroço racional" de uma dialética materialista. "O idealismo de
Hegel é a sociedade burguesa enquanto ontologia." [Reichelt. H. citado por Muller]." (Muller. Exposição e método

dialético em "O Capital". ob. cit. pg. 41)

Mas já ficou evidente que o marxismo cria margens e apontamentos na direção de um outro tipo de
complexidade para a relação de determinação. É uma espécie de membro do corpo marxiano que
nasceu mas permaneceu atrofiado.Já ressaltamos a presença de dois desses indicativos, quais sejam,
o conceito de condicionamento que opera junto com o de determinação no prefácio da
"Contribuição...", o primeiro em um nível mais próximo do empírico, e a declaração de Engels,

em que Marx discorre sobre a lei da diminuição progressiva da taxa de lucro, lei interna do capital, executada pela
concorrência: "A concorrência executa as leis internas do capital; faz delas leis compulsórias para o capital singular,
mas não as inventa" (Marx. Grundrisse. pg. 629). Sobre essa lei da queda da taxa de lucro: "Em todos os sentidos,
essa é a lei mais importante da economia política moderna e a mais essencial para compreender as relações mais
complicadas. Do ponto de vista histórico, é a lei mais importante" (Marx. Grundrisse. pg. 626). De tal modo que,
em se tratando de uma lei, o momento da ruptura revolucionária acaba por ganhar um certo tom fatalista: "Em
consequência, o máximo desenvolvimento da força produtiva e a máxima expansão da riqueza existente coincidirão
com a depreciação do capital, a degradação do trabalhador e o mais estrito esgotamento de suas capacidades vitais.
Essas contradições levam a explosões, cataclismos, crises, nas quais, pela suspensão momentânea do trabalho e a
destruição de grande parte do capital, este último é violentamente reduzido até o ponto em que pode seguir
empregando plenamente suas capacidades produtivas sem cometer suicídio. Contudo, essas catástrofes
regularmente recorrentes levam à sua repetição em uma escala mais elevada e finalmente à destruição violenta do
capital." (Marx. Grundrisse. 628).
segundo a qual a intenção quase que exclusiva que foi dedicada por Marx e por ele à determinação
econômica em detrimento de outras formas de determinação se explicava por motivos de contexto
histórico-teórico, ou seja, quando a posição teórica hegemônica desconsiderava a importância de tal
determinação objetiva e material. E, para terminar de fechar com mais um ponto essa nossa costura,
uma das declarações de Engels mais explícitas a esse respeito, em uma carta da década de 1890 a
Bloch, citada por Althusser:

"Escutemos o velho Engels colocar, em 90, as coisas nos eixos frente aos jovens "economistas" que não
compreenderam que se tratava antes de uma nova relação. A produção é o fator determinante, mas somente "Em última
instância". "Nem Marx nem eu afirmamos mais além disso". Aquele que "violentar o sentido dessa frase" para que ela
passe a significar que o fator econômico é o único determinante, "transformá-lo-á numa frase vazia, abstrata,
absurda". E explica que: "A situação econômica é a base, mas os diversos elementos da superestrutura - as formas
políticas da luta das classes e os seus resultados - as constituições estabelecidas uma vez ganha a batalha pela classe
vitoriosa etc., as formas-jurídicas, e mesmos os reflexos de todas essas lutas reais no cérebro dos participantes, teorias
políticas, jurídicas, filosóficas, conceitos religiosos e o seu desenvolvimento posterior em sistemas dogmáticos,
exercem igualmente a sua ação nas lutas históricas, e, em muitos casos, determinan-lhes de modo preponderante a
forma..."." (Althusser. A Favor de Marx. pg. 98)

Que essa passagem tenha sido reproduzida por Althusser, no contexto do seu esforço para a
formulação e justificação do conceito de sobredeterminação na teoria marxista, não é uma coisa de
pequena importância. Significa que, para ele, o princípio lógico que rege esse conceito não é
estranho ao pensamento marxiano e marxista, mas está lá, presente, apontando um caminho, embora
com uma grande dificuldade, que se desdobra em duas dimensões: 1) em suas formas mais
explícitas e conscientes, existe de um modo ainda muito embrionário e atrofiado, sem
desenvolvimento nem detalhamento. ; 2) apesar disso, em determinadas obras e passagens, está
presente de um modo desenvolvido e operante, mas sem forma teórica explícita. E é neste ponto que
podemos pensar a possibilidade de um avanço de Althusser em relação a Marx por meio do conceito
de sobredeterminação, ou seja, no seu desenvolvimento teórico formal, no seu detalhamento
conceitual e desdobramento categorial, fazendo do membro atrofiado e do princípio latente um
membro desenvolvido e uma forma consciente.

A questão que nos importa ressaltar a essa altura, no estudo sobre o conceito de sobredeterminação
em Althusser, é que esse esforço para desenvolver teóricamente o conceito não se dá sem um forte
tensionamento, tal como o referimos no início do capítulo. O conceito acaba sendo torturado e o seu
discurso acaba produzindo algumas confusões de entendimento. Sendo assim, temos as formulações
sobre a teoria do conhecimento em Marx, tal como nos dá no texto sobre o método da economia
política. Essas formulações vão puxar o conceito de sobredeterminação por um dos seus lados,
fazendo uso da seguinte corrente: o princípio que rege a lógica do conceito é o mesmo que opera no
campo da produção epistemológica, qual seja, o princípio do concreto como síntese de múltiplas
determinações. A questão é que, em Marx, esse concreto é o concreto de pensamento, coisa da
lógica, e, de modo a garantir a coerência operacional desse princípio, não se estabelece nenhum
critério teórico à priori para a hierarquização e evidencia da relação causal entre as diferentes
categorias que convergem para a múltipla determinação. Apenas a ideia de que alguns conceitos e
categorias são mais simples do que outros, e de que a sua ordem lógica na produção do concreto
pensado não tem nenhuma relação com a sua ordem histórica de aparecimento e operação. Há, no
entanto, um outro cavalo de tração, puxando pelo outro lado o conceito de sobredeterminação, o das
formulações metodológicas da teoria do materialismo histórico, tal como nos é dada pelo prefácio
da "Contribuição...". Aqui, para Marx, o concreto já não é mais uma coisa da lógica, mas sim a
lógica da coisa, e, como tal, já não é mais a síntese de múltiplas determinações, e sim a
determinação do todo pela estrutura econômica com as seguintes características: uma ideia de
determinação simples; uma ideia geral de condicionamento; um princípio de hierarquização que
estabelece a relação de causa e efeito entre as coisas; e um princípio de contradição que anima o
movimento do concreto. E é no meio desse tensionamento que se situa o conceito althusseriano de
sobredeterminação. Entre o concreto como síntese de múltiplas determinações, e o concreto com
determinação econômica (no texto de Marx não aparece a noção de "determinação em última
instância"). Duas ideias que em Marx estão separadas, uma no campo da epistemologia, outra no
campo da teoria da história, sendo que, em suma, Althusser acaba por fazer, com o conceito de
sobredeterminação, um transplante do princípio lógico que rege a epistemologia marxiana, para o
terreno da teoria marxista da história, regida em Marx pelo princípio da determinação econômica. A
teoria da história animada agora por dois princípios lógicos divergentes, como um corpo com dois
corações. Nada mais sintomático das dificuldades implicadas por essa tentativa de fundir as duas
ideias do que o tópico 5 do artigo "Sobre a Dialética Materialista", que compõe o livro "A Favor de
Marx". Esse tópico se intitula: "Estrutura com Dominante: Contradição e Sobredeterminação" 40, e
diz entre outras coisas:

"...essa proposição implica que as contradições 'secundárias' não sejam o puro fenômeno da contradição 'principal', em
que a principal não seja a essência de que as secundárias seriam os fenômenos, seriam de tal modo fenômenos que,
praticamente, a contradição principal poderia existir sem as secundárias, ou sem tal ou qual dentre elas, ou poderia

40 Nos próprios conceitos se pode enxergar a evidência da dificuldade: o conceito de sobredeterminação fala de
determinações. E Althusser fala, principalmente, de contradições. Haveria mais coerência em se pensar um
conceito tal como sobrecontradição. Giannotti aponta, sem se aprofundar, essa confusão em Althusser: "Ora, a
nosso ver, esta homogeneidade é problemática [referindo-se ao conceito de contradição sobredeterminada], já que
devemos distinguir a contradição enquanto categoria, condição abstrata-real da existência, da determinação
histórica propriamente dita. Assim sendo, a sobredeterminação advém da imbricação do plano sistemático no plano
histórico, as tendências que provém do sistema como um todo juntando-se às forças originárias da conjuntura".
(Giannotti. Exercícios de Filosofia. pág. 100).
existir antes delas, ou após. Ao contrário, implica que as contradições secundárias sejam tão essenciais à existência da
contradição principal, que realmente constituem a condição de existência desta última, do mesmo modo que a

contradição principal constitui a condição de existência delas." (Althusser. A Favor de Marx. pg. 180-181)

Daí que Althusser nos proporciona o exercício de pensar mais a fundo uma problemática que, como
dissemos na introdução, é fundamental na história do marxismo: qual é a possibilidade da
convivência entre essas duas ideias, do concreto como síntese de múltiplas determinações e do
concreto com determinação econômica, dentro de um mesmo terreno: a teoria do materialismo
histórico? Essa convivência pode levar a um impasse insolúvel, ou a que uma das ideias murche
debaixo da sombra da outra. Essa segunda possibilidade foi um dos motivos mais fortes da crítica
marxista contra Althusser, como se verá no terceiro capítulo. Aqui, podemos caracterizá-la fazendo
uso de uma passagem de Weber em que define o papel de Deus na teoria da história de Roscher:

"Se a comparação fosse permitida, se fosse oportuna e válida, poderíamos comparar o papel desempenhado por Deus
nos escritos científico de Ranke e Roscher - por analogia, obviamente - com o papel de um monarca num Estado
organizado rigorosamente sob os princípios do sistema parlamentar. No que diz respeito a esta forma de Estado,
podemos afirmar que o lugar mais elevado é ocupado por alguém que, na realidade, não possui quase nenhuma
influência..." (Weber. Metodologia das Ciências Sociais. pg. 84)

Deus e a determinação econômica, portanto, correndo o risco de fazerem o papel de uma rainha da
Inglaterra dentro da teoria da história. Voltaremos a essa questão no terceiro capítulo.
Capítulo 2
O conceito de sobredeterminação em Althusser: desdobramentos teóricos

"...dois descobrimento inesperados, totalmente imprevisíveis, provocaram um abalo no universo dos valores culturais
da época clássiva, o universo da burguesia ascendente e instalada no poder (do século XVI ao XIX). Esses
descobrimentos são o Materialismo Histórico, ou teoria das condições, das formas e dos efeitos da luta de classes, a
obra de Marx, e o inconsciente, obra de Freud"
("Marx e Freud", obra cit. pág. 75)

O objetivo do presente capítulo é o de contextualizar teoricamente a adoção e o uso do conceito de


sobredeterminação por Althusser. Como veremos a seguir, essa apropriação crítica por parte do
nosso autor se faz no contexto de um diálogo que é estabelecido por ele com Marx e Freud. Tal
diálogo é pautado por algumas indagações centrais: o que é a dialética marxista? Essa dialética se
diferencia da hegeliana? Até que ponto ela está formalmente desenvolvida no corpo da obra
marxiana? É no processo de construção dessas respostas que vai surgir o sentido e a justificativa da
adoção, por empréstimo, do conceito de sobredeterminação. Veremos também de que forma esse
conceito aparece em um dos textos mais importantes de Freud: "A Interpretação dos Sonhos".
Também devemos caracterizar, de modo geral, os conceitos e as categorias da forma da dialética em
Hegel e em Marx, para construir as diferenças que justificam, em Althusser, a teoria do corte
epistemológico entre os dois pensadores alemães. Além disso, deve-se caracterizar também a forma
da dialética marxista, tal como entendida por Althusser, para a definição do conceito de
sobredeterminação, e a função teórica que desempenha dentro dessa dialética.

2.1. Os escritos de Althusser: delimitação do campo de pesquisa


Para apresentar e elaborar críticamente o conceito althusseriano de sobredeterminação, vamos fazer
uso de uma limitada e seleta bibliografia. A primeira e mais importante das obras de Althusser (em
relação ao tema que estamos tratando, naturalmente), é o livro que foi publicado em 1965, com o
sugestivo título de Pour Marx, traduzido no Brasil como "A Favor de Marx". Esse livro, na verdade,
consiste em uma coletânea de artigos escritos no período entre 1960 e 1964, e publicados nas
revistas do Partido Comunista Francês, como é esclarecido pelo próprio autor em seu prefácio aos
leitores brasileiros41. Embora esses artigos não tenham sido concebidos originalmente com o
propósito de formar um livro, não há nenhuma dúvida - para quem os estudar - de que há uma
mesma lógica de fundo regendo a produção teórica de cada um deles: o desejo de estudar, explicitar
e fazer avançar o conhecimento e o uso da dialética marxista, em sua forma filosófica e científica.
Foi uma intervenção no contexto do debate político e teórico daquele momento, de um impasse

41 ALTHUSSER, Louis. A Favor de Marx. ZAHAR Editores. 1979. Pág. 5


prático e programático, no qual Althusser assumia a defesa daquilo que ele considerava como a obra
marxiana em seu caráter e valor científico, o fruto da maturidade de Marx, contra todas as tentativas
de resgate e de elevação do Marx da juventude, tentativas essas empreendidas no contexto da crise
do stalinismo e que, do modo como via Althusser, representavam o risco de que, ao livrar-se das
duras amarras do dogmatismo sectário, o marxismo acabasse por cair diretamente nos braços de
sereia da velha ideologia alemã, afogando-se em todos os erros que confudiam o marxismo com o
humanismo que estava em moda:

"A crítica do 'dogmatismo' stalinista foi 'vivida', sobretudo pelos intelectuais comunistas, como uma 'libertação': essa
'libertação' deu origem a uma reação ideológica de tendência 'liberal', a qual reencontrou espontaneamente os velhos
temas filosóficos da 'liberdade', de 'o homem', da 'pessoa humana' e da 'alienação'. Essa tendência ideológica procurou
seus títulos teóricos nas obras de juventude de Marx, que contém, de fato, todos os argumentos de uma filosofia do
homem, de sua alienação e sua libertação...O tema do 'humanismo marxista', a interpretação 'humanista' da obra de
Marx, impuseram-se, progressiva e irresistivelmente, na mais recente filosofia marxista, no próprio seio dos partidos

comunistas soviético e ocidentais"42

É nessa importante obra, que ajuda Althusser a ficar cada vez mais conhecido e debatido no cenário
do marxismo francês e internacional, que vai aparecer expressamente formulada a sua leitura sobre
o "corte epistemológico" em Marx (e que será apresentada e debatida mais adiante), assim como,
em relação a um livro com textos como esses, é que se vão tecendo os apontamentos críticos e
acusatórios da filiação estruturalista do pensamento de Althusser. Walter J. Evangelista, estudioso
de Althusser entre nós, cita uma das expressões satíricas nacionais dessa nova linguagem explorada
por Althusser, e que também evidencia o quanto já estava em evidência:

"Os 'conceitos fundamentais' do althusserianismo - problemática, corte epistemológico, leitura sintomal, Ideologia x
Ciência - começam a ganhar as ruas. Millor Fernandes, sempre sensível às peripécias da inteligentsia brasileira,
expressá-lo-á, um pouco mais tarde, com um cartoon inteligente e picante: um estudante da PUC do Rio é assaltado, na
rua, por um marginal da favela próxima, que lhe aponta o revólver. O estudante, perplexo, pergunta ao marginal se se
tratava ou não de um corte epistemológico. Millor parecia sentir, no ar, alguns dos impasses do 'teoricismo'"43

Não é uma das pretensões dessa monografia debater e elaborar um parecer sobre se Althusser,
nesses escritos, se comporta teoricamente, de fato, como um estruturalista, até que medida fez uso
do estruturalismo dentro do marxismo, ou se tal apontamento sempre consistiu mais em equívico
difamatório do que em correção de leitura. Indicaremos apenas o fato bastante conhecido de que
Althusser escreveu um texto crítico sobre o estruturalismo representado por Lévi-Strauss, em que

42 ALTHUSSER, Louis. A Favor de Marx. ZAHAR Editores. 1979. Pág. 6


43 ALTHUSSER, Louis. Freud e Lacan, Marx e Freud. graal. Rio de Janeiro. 4º edição. 2000. Pág. 25.
faz alguns apontamentos sobre as divergências fundamentais que ele via entre tal modelo e o do
marxismo, e que impediriam o reconhecimento dessa identidade nos seus próprios escritos 44. O que
também não pode deixar de ser dito é que, apesar desse esforço formal empreendido por Althusser,
de bater estacas e cavar os fossos que separariam o estruturalismo do marxismo, nos seus
movimentos de autocrítica, que serão referidos com mais precisão adiante, o nosso autor reconhece
que uma certa confusão foi causada pela aproximação de terminologia entre as duas escolas, muito
embora tenha mantido o entendimento de que são dois paradigmas dintintos e inconciliáves,
principalmente por alguns desencontros conceituais de suma importância:

"Não obstante as cautelas tomadas para nos distinguirmos da ideologia 'estruturalista' (dissemos muito claramente que a
'combinação' que verificamos em Marx nada tem a ver com uma 'combinatória'), e apesar da ocorrência decisiva de
categorias estranhas ao 'estruturalismo' (determinação em última instância, dominação, sobredeterminação, processo de
produção, etc.), a terminologia que antes utilizáramos estava, sob vários aspectos, demasiado próxima da terminologia
'estruturalista'; isso sem dúvida levou a equívocos."45

De qualquer forma, com relação ao livro "A Favor de Marx", o que nos interessa mais diretamente
são os capítulos dedicados à definição e discussão do conceito de sobredeterminação, bem como as
questões que configuram o contexto teórico que ajudam a dar sentido e função a esse conceito,
principalmente os elementos básicos que compõem a tese da cesura epistemológica, por indicarem a
ruptura com a forma hegeliana da dialética (e o conceito de sobredeterminação é a expressão mais
sintética e significativa dessa ruptura).

Articulando-se diretamente com essas questões que configuram o contexto teórico do conceito de
sobredeterminação, temos também a perspectiva daquilo que Althusser vai chamar, em outra de
suas obras mais importantes - "Ler o Capital" - de leitura sintomal. Os princípios básicos do
procedimento de estudo proposto pela leitura sintomal são de grande valor para o entendimento
crítico dos processos de uso, apropriação e reelaboração de conceitos que vão sendo assimilados no
corpo de uma teoria (no caso da leitura de Althusser, no corpo da obra marxiana), e que são os
sinais indicativos da construção de uma nova identidade (o Marx maduro), em oposição - corte
epistemológico - a uma identidade que inicialmente é tomada de empréstimo (o Marx jovem) 46. Daí
a importância estratégica do Marx da maturação, em processo de mutação, quando velhos conceitos,
tomados de empréstimo, vão assumindo estruturalmente novas funções, valores e significados, tal

44 ALTHUSSER, Louis. Sobre Lévi-Strauss. CAMPOS - Revista de Antropologia Social. Vol. 6 (2005). Pág. 197.
45 ALTHUSSER, Louis. RANCIÈRE, Jacques. MACHEREY, Pierre. Ler o Capital. ZAHAR EDITORES. Volume 1.
1979. Pág. 7-8.
46 Althusser caracteriza o jovem Marx em dois momentos: o momento racionalista-liberal e o momento racionalista-
comunitário (ALTHUSSER, L. A Favor de Marx. Obra citada. pág. 25-26). O primeiro momento é inserido dentro
de uma problemática kantiana-fichtiana. O segundo, por sua vez, na problemática antropológica de Feuerbach.
como uma pessoa dos dias de hoje vestindo as roupas da moda de uma época antiga e já
ultrapassada. Essa leitura crítica do processo de mudança dos padrões conceituais já existia nos
textos de Pour Marx, mas ainda sem os contornos definitivos e magistrais, e sem o seu nome
definitivo - leitura sintomal - que só vai ganhar três anos depois, com a publicação de "Ler o
Capital".

A teoria da leitura sintomal é uma das contribuições mais originais e importantes de Althusser para
a história do marxismo e a leitura de Marx47. Os temas relacionados a esse movimento de tomar de
empréstimo a outras áreas do conhecimento (é o caso do próprio conceito de sobredeterminação,
extraído da psicanálise freudiana), ou de outras "problemáticas" dentro de uma mesma área de
conhecimento, e todas as complexidades que se ligam a isso, são, na visão de Althusser, temas
fundamentais para a produção e reflexão crítica de uma teoria do conhecimento, o próprio objeto de
estudo que temos aqui em mira, ou seja, a teoria do método, ou, melhor dizendo, a história viva que
produz o procedimento metodológico e a possibilidade de uma teoria do método. Essa própria
condição de tomar de empréstimo, reelaborar, e fazer com que seja "seu" - no caso, marxista - o que
antes era estranho e emprestado, até que possa surgir a forma adequada da coisa nova: o novo
conceito, é a condição de alguns dos termos mais importantes de Althusser: da sobredeterminação,
como já foi dito, assim como das noções de "problemática" e "cesura epistemológica", que não são
conceitos inventados por ele, nem por ele extraídos, diretamente, da obra marxiana. O próprio
Althusser aponta as suas origens:

"...tomei de Jacques Martin o conceito de problemática para designar a unidade específica de uma formação teórica, e,
por conseguinte, o lugar assinalado dessa diferença específica, e de G. Bachelard o conceito de "cesura epistemológica"

47 A teoria da Leitura Sintomal, que Althusser vai formular em seu "Ler o Capital", é demasiado complexa e cheia de
facetas para desejarmos apresentá-la aqui, além desse modo muito resumido que foi adotado. Mas não podemos
deixar de apontar, como reforço a um dos argumentos mais importantes que se pretende defender nessa dissertação,
que aqui podemos encontrar, mais uma vez, o desejo althusseriano de construir pontes e apropriações críticas (ao
contrário da produção em massa dos anátemas que constituem um procedimento padrão vinculado ao sectarismo
dogmático) com outras produções teóricas e científicas, tal como se evidencia nos casos de Freud e Lacan. No caso
da Leitura Sintomal, Althusser vai se referir, em um de seus aspectos, ao prefácio de Foucaul à sua "História da
Loucura", onde o nosso autor enxerga uma ilustração equivalente da sua noção de campo teórico, definido e
estruturado por uma determinada problemática, como um espaço estruturado que dá as condições de possibilidade
do que é visível e invisível, em termos de problemas que são colocados e respostas que visam às suas soluções -
espaço com outro espaço no seu interior, dentro do qual se manifestam questões e respostas latentes, ainda não
evidenciadas, "invisívei" (e que só se tornam "visíveis" com uma mudança de problemática), mas que se fazem
sentir por meio de sintomas, naquilo que é designado como "lacunas", "erros", "cegueiras" do teórico que opera
dentro de uma problemática (evocando-se, aqui, a leitura crítica, sintomal, de Marx em relação à Adam Smith). Ver,
a esse respeito, o prefácio de "Ler o Capital", pág. 25-26. No prefácio de Foucault referido por Althusser
encontramos a seguinte passagem: "Um livro é produzido, evento minúsculo, pequeno objeto manejável. A partir
daí, é aprisionado num jogo contínuo de repetições; seus duplos, a sua volta e bem longe dele, formigam; cada
leitura atribui-lhe, por um momento, um corpo impalpável e único; fragmentos de si próprio circulam como sendo
sua totalidade, passando por contê-lo quase todo e nos quais acontece-lhe, finalmente, encontrar abrigo; os
comentários desdobram-no, outros discursos no qual enfim ele mesmo deve aparecer, confessar o que se
recusou a dizer, libertar-se daquilo que, ruidosamente, fingia ser." (FOUCAULT, Michel. História da Loucura.
Prefácio. PERSPECTIVA. 2012. Negrito nosso)
para assim pensar a mutação da problemática teórica contemporânea da fundação de uma disciplina científica. que se
fez necessário construir um conceito e tomar outro emprestado em nada importa que ambos os conceitos fossem
arbitrários e exteriores a Marx. Mas, ao contrário, poder-se-á mostrar que estão presentes e em ação no pensamento
científico de Marx, ainda mesmo quando sua presença permanece, na maior parte do tempo, em estado prático."48

O fato de existir em estado prático, sem ainda emergir plenamente à consciência, sem ainda possuir
um nome de batismo e uma vida teórica independente, esse é justamente o objeto procurado pela
leitura sintomal, o sintoma de um conceito ainda em estado latente e indefinido, de uma coisa que
existe, opera práticamente, mas que ainda não foi reconhecida e identificada.49

Resta, por fim, uma última referência bibliográfica fundamental, os textos de Althusser que tratam
da relação entre o marxismo e a psicanálise, relação da qual resulta o próprio conceito de
sobredeterminação: "Freud e Lacan" (1964), e "Marx e Freud" (1976). Mais de uma década,
portanto, separando a publicação desses dois textos.

Com isso, terminamos o delineamento mais geral da bibliografia que vamos utilizar para apresentar
e discutir o conceito althusseriano de sobredeterminação, que é o que de fato mais nos interessa. O
importante até aqui foi pontuar alguns dos tópicos teóricos críticos que eventualmente serão
retomados e aprofundados ao longo do presente trabalho, sempre que pertinentes ao nosso tema, e
que caracterizam os principais marcos do contexto teórico ao qual está ligado o conceito de
sobredeterminação.

2.2. Psicanálise e marxismo


Em uma de suas conhecidas expressões metafóricas, Althusser nos diz que Marx foi o responsável
por abrir um novo "continente" ao conhecimento científico - o continente da História, ao fundar
uma nova ciência: a ciência das formações sociais (o materialismo histórico), e uma nova filosofia
(a dialética materialista), assim como haviam feito antes Tales de Mileto e Galileu, ao abrirem ao
conhecimento científico, respectivamente, os "continentes" da matemática e da natureza. 50
Poderíamos fazer uso do mesmo princípio de analogia para dizer que Freud, tal como o entende
Althusser, também abriu um novo "continente" ao conhecimento científico: o continente da

48 ALTHUSSER, Louis. A Favor de Marx. ZAHAR Editores. 1979. Pág. 23.


49 A validade da proposta althusseriana de uma leitura sintomal dos textos de Marx deu pano para a manga da crítica
contra uma suposta aproximação de Althusser do pensamento positivista da antiga escola francesa. É nesse sentido
que é questionada pelo senhor J.A. Giannotti, no artigo que escreveu contra Althusser. Segundo o filósofo
brasileiro, a leitura sintomal pressupõe, equivocadamente, uma "incompetência vocabular" em Marx (Giannotti
defende a ideia de que não há descontinuidade epistemológica entre Hegel e Marx), exigindo, arbitrariamente, uma
leitura privilegiada das entrelinhas em detrimento das linhas, e que, por fim, acaba por sustentar um entendimento
sobre as verdadeiras descobertas de Marx, que, em última análise, se torna inverificável (GIANNOTTI. J. A.
Exercícios de Filosofia. Seleções CEBRAP 2. CEBRAP/Brasiliense. 1975. pág. 87-88).
50 ALTHUSSER, Louis. A Favor de Marx. ZAHAR Editores. 1979. Pág. 8.
subjetividade humana e a nova ciência que a ele corresponde: a psicanálise51.

À primeira pergunta que vem a mente - porque Althusser se interessou tanto pela psicanálise? -
poderíamos confrontar com uma outra, com o propósito de inverter o sentido da reflexão: como
poderia ele não ter se interessado por ela? A psicanálise, no seu tempo, já havia se consolidado
como uma poderosa corrente de pensamento, militância e atuação profissional que versava sobre o
homem e a sua relação com a sociedade. Em 1949, a revista teórica oficial do PCF publicou um
artigo crítico de acusação e de recusa da psicanálise, apontando nela um "princípio mistificador" e
uma condição natural de "ideologia reacionária" 52 Essa posição em relação ao problema da
psicanálise acabou ganhando um certo status de posição oficial dos comunistas franceses e, como
lembra Althusser, era ainda a ideia hegemonica quando escreveu o seu texto de 1964.

"Freud e Lacan" é a aparição teórica de Althusser no cenário desse debate. Nesse artigo, publicado
na mesma revista já referida, outrora o palco da execração pública, Althusser vai defender a tese de
que Freud foi o responsável por uma nova "descoberta revolucionária", que foi o fundador da
ciência de um novo objeto - o inconsciente - e de que no contexto dessa fundação, no
desenvolvimento e na consolidação dos seus marcos teóricos e metodológicos, existem valiosas
descobertas e criações sobre a dialética crítica (e o conceito de sobredeterminação é um desses
desenvolvimentos inovadores).

Nesse sentido, Althusser questiona e critica os marxistas que condenaram em definitivo a


psicanálise, por se terem deixado cegar em relação a esse seu caráter científico e dialético.
Construindo uma analogia e um paralelo muito expressivos entre Marx e Freud, e entre Lacan e ele
mesmo, Althusser vai dizer que as leituras, apropriações e deformações ideológicas da obra
freudiana (assim como foi com a obra marxiana), bem como o revisionismo oportunista e
ideológicamente burguês empreendido por diversos psicanalistas sobre a obra de Freud (assim
como foi feito por diversos marxistas em relação à obra de Marx) criaram uma gorda e espessa
camada de preconceitos e de leituras ideológicas envolvendo o corpo dos textos freudianos,
confundindo-os, portanto, com essas suas versões ideológicas e revisionistas, e que se expressam,
segundo Althusser, em diversas modalidades de biologismo, psicologismo, sociologismo, etc.

51 Que a Psicanálise seja uma ciência, é um tema dos mais controvertidos entre os psicanalistas. Não desejamos entrar
no mérito desse debate, seja pelo fato de que não é necessário ao propósito dessa dissertação, seja porque nos
faltaria a competência para tanto. Apesar disso, fazemos a afirmação acima dentro da lógica da argumentação de
Althusser, que faz uso dos seus próprios critérios para definir uma disciplina científica, ao mesmo tempo que julga
apoiar-se em Lacan para legitimar tal afirmação: "A primeira palavra de Lacan é para dizer: em princípio, Freud
fundou uma ciência. Uma ciência nova, que é a ciência de um objeto novo: o inconsciente." (2000, 55)
52 Veja-se, a esse propósito, o comentário de Walter José Evangelista, na sua introdução crítico-histórica à edição
brasileira dos textos "Freud e Lacan", "Marx e Freud", que já foi indicada, principalmente pág. 11.
distorcendo a verdadeira natureza da ciência psicanalítica. Os marxistas de 49 e os seus seguidores
são, nesse texto, duramente criticados principalmente pelo fato de que um dos maiores
empreendimentos e legados da obra marxiana reside, justamente, na elaboração de todo um aparato
crítico, teórico e metodológico, que serve para identificar, criticar e fazer desmoronar todas as
construções ideológicas que deformam um objeto.

O motivo pelo qual isso acontece nos interessa na medida em que se trata de mais um ponto de
identidade entre as teorias marxiana e freudiana. Althusser, em "Marx e Freud", vai qualificar
ambas as teorias como "ciências cisionistas", ou seja, condenadas por natureza a um processo
histórico-dialético de sucessivas e sempre renovadas tentativas de "resistência-crítica-revisão", pelo
fato de que carregam em si, por serem "descobertas revolucionárias", cada uma à sua maneira, de
acordo com a especificidade irredutível do seu objeto de conhecimento, uma verdade não apenas
inconveniente, mas com potenciais destrutivos em relação à ordem social burguesa e às estruturas
das suas construções ideológicas (no caso de Freud, a demolição da ideologia do homem como
sujeito, unificado pela consciência, cujo tema não podemos desenvolver aqui53):

"O mais importante nessa dialética resistência-crítica-revisão é que esse fenômeno, que começa sempre fora da teoria
freudiana (em seus adversários) acaba sempre dentro da teoria freudiana. É, então, a partir de seu próprio interior que a
teoria freudiana se vê obrigada a defender-se contra as tentativas de anexação e de revisão: o adversário acaba sempre
por "infiltrar-se" - o revisionismo - provocando contra-ataques internos que acabam em cisões. Ciência conflituosa, a
teoria freudiana é uma ciência cisionista, cuja história vem marcada por cisões incessantemente renovadas."54

Um retorno a Freud, portanto, faz-se necessário. Um retorno ao conhecimento da sua "descoberta


revolucionária", assim como Althusser estava propondo um retorno ao conhecimento verdadeiro de
Marx, contra todas as distorções dogmáticas e sectárias do stalinismo, e contra as distorções
ideológicas do humanismo então em voga. Esse retorno pressupões, naturalmente, a construção de
uma ponte, que consiga passar por cima dessa grossa camada de gordura ideológica que se formou,
ou então, em outra imagem talvez mais sugestiva, que se corte na carne essa grossa camada, e que
se possa chegar por dentro, construíndo um túnel, até o objeto que está escondido atrás. Ora, o que
são os textos de Althusser, principalmente Pour Marx e "Ler o Capital", senão o esforço em
construir esse caminho de retorno? E o que são os Seminários de Lacan - o mesmo desejo - mas em
direção a Freud? A esse propósito, cumpre dizer que esse tema do recuo, da "volta para trás", como
processo crítico que visa a libertação das formas ideológicas e o reencontro com a história em suas
formas concretas (ou, no caso presente, o reencontro com a verdade de uma teoria), é indicado por

53 Veja-se, sobre esse tópico: ALTHUSSER, Louis. Freud e Lacan, Marx e Freud. graal. Rio de Janeiro. 4º edição.
2000. Pág. 84.
54 ALTHUSSER, Louis. Freud e Lacan, Marx e Freud. graal. Rio de Janeiro. 4º edição. 2000. Pág. 79.
Althusser como um dos procedimentos básicos de demolição crítica das construções ideológicas, e
que pode ser demonstrado pela própria elaboração da obra marxiana no seu período de maturação,
especialmente na crítica que empreendeu da ideologia alemã:

"Pode-se, então, conceber o que podia e o que devia ser a condição fundamental da liberação de um jovem intelectual
alemão que começava a pensar, entre os anos 30 e 40, na Alemanha. Essa condição era a redescoberta da história real, a
redescoberta dos objetos reais para além da enorme camada ideológica que os revestia, e não os tinha somente
convertidos em sombras, mas deformados. Donde essa consequência paradoxal: para se libertar dessa ideologia Marx
deveria inevitavelmente tomar consciência de que o superdesenvolvimento ideológico da Alemanha era na verdade, e ao
mesmo tempo, a expressão do seu subdesenvolvimento histórico, e que é preciso, portanto, retornar para aquém dessa
fuga para diante ideológica, para atingir as próprias coisas, para se poder tocar a história real, e, afinal, ver frente a

frente os seres que povoavam as brumas da consciência alemã"55

A volta para trás significando, portanto, o reencontro com a história concreta, ou o reencontro com a
verdade crítica de um pensamento. Althusser a favor de Marx. Lacan a favor de Freud. A auto
identificação com Lacan construída por Althusser é tão forte que, em um momento de muita
dificuldade, o marxista acolhe o psicanalista e o abriga em sua própria casa:

"Com efeito, no fim de 1963, Lacan é excomungado da Sociedade Francesa de Psicanálise, uma vez que esta desejava
filiar-se à International Psyco-Analytic Association, a qual, por sua vez, exigia, como condição, a cabeça de Lacan.
Imediatamente após, o professor Delay, que acolhia seus seminários em Sainte-Anne, aproveita-se das circunstâncias
para desembaraçar-se de tão tumultuosa personagem. Lacan está, a partir de então, sem a SFP e sem o apoio logístico de
um centro da importância que tem o Sainte-Anne, no poderoso mundo da aristocracia médica francesa. Nessa
conjuntura, a intervenção de Althusser é dupla: ao mesmo tempo em que redige "Freud e Lacan" (janeiro de 1964), na
qualidade de Secretário da prestigiosa Ecole Normale Supérieure da rue d'Ulm, convida Lacan para ali continuar seus

seminários, que são retomados a partir de 15 de Janeiro de 1964."56

O que nos interessa dessa relação entre o marxismo e a psicanálise, dos textos de Althusser que
refletem sobre esse tema, é apenas o que diz respeito ao conceito de sobredeterminação, o objeto
que fizemos nosso no presente trabalho. Já pontuamos os delineamentos mais gerais dos tópicos que
falam a esse respeito. Resta apenas, para terminar esse capítulo, consolidar a afinidade filosófica de
fundo que Althusser enxerga em Marx e Freud.

Freud, tanto quanto Marx, é, segundo define o nosso autor, um pensador materialista e dialético:

"Se a tese mínima que define o materialismo é a existência da realidade fora do pensamento ou da consciência, Freud é,

55 ALTHUSSER, Louis. A Favor de Marx. ZAHAR Editores. 1979. Pág. 64.


56 ALTHUSSER, Louis. Freud e Lacan, Marx e Freud. graal. Rio de Janeiro. 4º edição. 2000. Pág. 17.
desde o início, materialista, já que nega a primazia da consciência, não só no conhecimento, mas também na própria
consciência, e nega, além disso, a primazia da consciência na Psicologia, para pensar o aparelho psíquico como um
todo, em que o ego, ou o consciente, nada mais é senão uma instância, parte ou efeito."57

Quanto ao caráter dialético de Freud, Althusser o representa por meio de algumas de suas
categorias, tais como "transferência", "condensação" e a própria sobredeterminação. E redige a esse
respeito o seguinte parágrafo, que pode surpreender muito à primeira vista:

"Marx e Freud se aproximariam, portanto, um do outro através do materialismo e da dialética, com a surpreendente
vantagem, da parte de Freud, de haver explorado figuras dialéticas muito parecidas com as de Marx, mas, às vezes,
inclusive, mais ricas que estas e como que esperadas pela própria teoria de Marx. Se posso citar-me, num outro
momento já dei um exemplo dessa surpreendente afinidade, ao fazer ver que a categoria de superdeterminação (tirada
de Freud) era alguma coisa necessária e esperada pelas análises de Marx e de Lênin, aos quais convinha exatamente,
tendo, além disso, a vantagem de destacar o que separava Marx e Lênin de Hegel, no qual, precisamente, a contradição
não está superdeterminada"58

Essa leitura surpreende não pela afirmação sobre o caráter dialético de certas categorias freudianas,
mas por dizer que algumas delas são mais ricas do que as utilizadas por Marx, e como que
realizando teoricamente, explicitando e pondo em forma, princípios e tópicos da dialética que eram
antecipados pelo marxismo, mas que se encontravam ainda em estado apenas prático e latente. E,
nesse conjunto, sem dúvida nenhuma a categoria que mais se destaca é a da sobredeterminação, que
não só é a que Althusser quase que exclusivamente desenvolve teoricamente e põe em ação na sua
prática teórica, como também é a que ocupa o lugar estratégico do corte epistemológico que separa
a dialética marxista da hegeliana. O modo como isso se dá, e que já desponta na citação acima - a
contradição, em Hegel, não está sobredeterminada - bem como as implicações diretas que esse corte
acarreta em dupla direção: no trabalho de produção de conhecimento do marxismo, e na elaboração
de estratégias para a atuação política, será o tema central do próximo capítulo.

Resta-nos, por fim, uma definição mais direta sobre o uso do conceito de sobredeterminação em
Freud. A princípio, é importante que se diga que muitas das análises de Freud, pensando-se, por
exemplo, em uma obra como "A Interpretação dos Sonhos", e que se expressam sinteticamente em
diversas categorias, algumas das quais já foram indicadas acima, são análises e categorias que
expressam diversas modalidades de relações contraditórias e antitéticas regendo a lógica de
funcionamento do aparelho psíquico, e que foram qualificadas como dialéticas pelos apontamentos
feitos por Althusser. Essas análises e categorias, no seu conjunto, poderiam se prestar a um trabalho
teórico de estudo e sistematização crítica em um corpo de tópicos articulados, e que poderia ser
57 ALTHUSSER, Louis. Freud e Lacan, Marx e Freud. graal. Rio de Janeiro. 4º edição. 2000. Pág. 77.
58 ALTHUSSER, Louis. Freud e Lacan, Marx e Freud. graal. Rio de Janeiro. 4º edição. 2000. Pág. 78.
denominado "estudo sobre a dialética em Freud", não apenas com o propósito de aprofundar o
conhecimento do pensamento freudiano, que, dentro dessa delimitação específica, serviria mais
diretamente à comunidade dos pesquisadores em psicanálise, mas, para nós, sobretudo, pelo
interesse em cotejar criticamente os tópicos da "dialética em Freud", com os tópicos da dialética em
Marx, na trilha do caminho que foi aberto pelo próprio Althusser. A impressão que se tem,
observando minimamente o funcionamento da categoria de sobredeterminação em Freud, é a de
que essa comparação crítica seria altamente produtiva para o desenvolvimento teórico e
metodológico do marxismo.

Sem nenhuma pretensão de querer esgotar o tema, ou enunciar a palavra definitiva sobre esse
assunto, vejamos agora de que forma se coloca o uso do conceito de sobredeterminação em um dos
mais importantes textos freudianos: "A Interpretação dos Sonhos". Do ponto de vista da localização
dentro da estrutura narrativa dessa obra, o conceito aparece no capítulo VI, intitulado "O Trabalho
do Sonho", e, dentro desse capítulo, está diretamente relacionado com a elaboração de algumas das
categorias mais importantes desse tema: A) "O trabalho de condensação"; B) "O trabalho de
deslocamento"; C) "Os meios de representação nos sonhos"; e D) "Consideração à
representabilidade. Não se consegue aqui retomar todas as ideias mais importantes sobre a teoria
dos sonhos em Freud antes de se chegar a esse Capítulo VI, pois isso demandaria muito tempo e
muito trabalho de escrita, desviando o propósito do presente trabalho. Retomaremos, portanto, de
um modo muito sumário e pontual, algumas dessas ideias, e apenas na medida em que se façam
imprescindíveis para o esclarecimento da lógica que rege a construção dessas categorias, dentro das
quais opera o nosso conceito de sobredeterminação.

Vejamos então, principalmente, o que Freud vai nos dizer sobre a categoria de "condensação", e que
se revela para nós a mais importante de todas:

"A primeira coisa que se torna clara para quem quer que compare o conteúdo do sonho com os pensamentos oníricos é
que ali se efetuou um trabalho de condensação em larga escala. Os sonhos são curtos, insuficientes e lacônicos em
comparação com a gama e riqueza dos pensamentos oníricos. Se um sonho for escrito, talvez ocupe meia página. A
análise que expõe os pensamentos oníricos subjacentes a ele poderá ocupar seis, oito ou doze vezes mais espaço. Essa
relação varia com os diferentes sonhos, mas, até onde vai minha experiência, sua direção nunca muda...Já tive ocasião
de assinalar que, de fato, nunca é possível ter certeza de que um sonho foi completamente interpretado. Mesmo
que a solução pareça satisfatória e sem lacunas, resta sempre a possibilidade de que o sonho tenha ainda outro sentido.
Rigorosamente falando, portanto, é impossível determinar o volume de condensação."59

Um sonho, segundo Freud, possui um conteúdo manifesto e um conteúdo latente. O conteúdo


59 FREUD, Sigmund. A Interpretação dos Sonhos. IMAGO. 2001. Pág. 248. (O negrito é nosso).
manifesto é aqui designado como "o conteúdo do sonho", ao passo que o conteúdo latente é
definido como sendo os "pensamentos oníricos". Com base nessa definição inicial, temos a
importante ideia de que o conteúdo manifesto de um sonho é, via de regra, muito "menor" ou mais
"curto" do que o seu conteúdo latente, e que nunca será possível estabelecer com precisão até que
ponto foi atingido o "volume de condensação".

Em seguida, após relatar os principais elementos de um de seus sonhos, ("O Sonho da Monografia
de Botânica"), Freud estabelece a seguinte formulação teórica:

"Essa primeira investigação leva-nos a concluir que os elementos 'botânica' e 'monografia' penetraram no conteúdo do
sonho porque possuíam inúmeros contatos com a maioria dos pensamentos oníricos, ou seja, porque constituíam
'pontos nodais' para os quais convergia um grande número de pensamentos oníricos, porque tinham vários
sentidos ligados à interpretação do sonho. A explicação desse fato fundamental também pode ser formulada de outra
maneira: cada um dos elementos do conteúdo do sonho revelou ter sido 'sobredeterminado' - ter sido representado
muitas vezes nos pensamentos oníricos."60

Aqui, pela primeira vez, aparece o nosso conceito de sobredeterminação, e já com a função que o
vai caracterizar não só no pensamento freudiano, mas também no marxista. De acordo com a
passagem citada, cada um dos elementos do sonho se liga a um grande número de pensamentos
oníricos latentes, e essa ligação significa que cada um desses elementos - "pontos nodais" - é
determinado em conjunto por todos os pensamentos oníricos aos quais está ligado. Temos, assim, o
efeito da sobredeterminação: sobredeterminação do conteúdo do sonho, e de cada um dos seus
elementos, por um vasto conjunto de pensamentos oníricos latentes. Essa primeira aparição do
conceito na "Interpretação dos Sonhos", como já foi dito, anuncia de imediato a função que é
chamado a cumprir: a sobredeterminação não é um resultado que se evidencia por si mesmo, nem
prática nem teoricamente; não é uma categoria que se estabelece entre os resultados visados pelo
"trabalho do sonho" como o é, por exemplo, a "condensação". É, na verdade, um princípio ou uma
lógica de funcionamento da coisa, e, como tal, tem um valor eminentemente epistemológico, tal
como o encara Althusser, funcionando muito mais como um conceito do que como uma categoria,
em sentido marxista pelo menos.

Guardemos para nós, nesse momento, para depois retomar e cotejar críticamente com os tópicos da
dialética marxista, a seguinte formulação sintética, extraída das reflexões acima:

1) O conteúdo manifesto de um sonho, bem como cada um dos elementos que o compõe, como

60 FREUD, Sigmund. A Interpretação dos Sonhos. IMAGO. 2001. Pág. 248. (O negrito é nosso)
elementos da percepção consciente, é sobredeterminado por um conjunto muito maior de
pensamentos oníricos latentes (que, como tal, existem e atuam inconscientemente). Esse processo
de sobredeterminação resulta no fenômeno de "condensação" dos sonhos, uma das funções do
"trabalho do sonho". A psicanálise, diante disso, ganha como meta analítica a tarefa de desvelar as
múltiplas ligações que sobredeterminam o conteúdo do sonho, e cada desvelamento que faz nesse
sentido, cada análise de sonho, pressupõe a confirmação da tese fundamental defendida por Freud, e
que caracteriza a natureza de todos os sonhos: todo sonho é a realização de um desejo.

Freud, por fim, termina a sua caracterização da "condensação" do sonho com mais uma observação
importante para nós:

"A natureza da relação entre o conteúdo do sonho e os pensamentos oníricos torna-se assim visível. Não só os
elementos de um sonho são repetidamente determinados pelos pensamentos oníricos como também cada
pensamento do sonho é representado neste último por vários elementos. As vias associativas levam de um elemento
do sonho para vários pensamentos oníricos e de um pensamento onírico para vários elementos do sonho...os elementos
oníricos são construídos a partir de toda a massa de pensamentos oníricos e cada um desses elementos mostra ter sido
multiplamente determinado em relação aos pensamentos oníricos."61

Dessa última definição, devemos resguardar mais uma ideia importante para o posterior
cotejamento crítico:

2) Não só o conteúdo do sonho, e cada um dos seus elementos, é o resultado da sobredeterminação


de múltiplos pensamentos oníricos latentes, mas também, cada pensamento onírico latente em
particular, determina um conjunto de diversos elementos do conteúdo do sonho, é representado por
todos esses diversos elementos.

O esforço despendido por Althusser e também por essa dissertação deve ter despertado, em algum
momento, uma dúvida legítima: até que ponto é válida uma analogia entre os processos de
pensamento da psicanálise e da dialética marxista? Em Althusser, considerando o nosso objeto, a
exploração dessa identidade de lógica se faz principalmente em dois momentos. O primeiro
momento, explicitado no esforço de cotejamento que foi feito acima, visa explicitar a analogia em
relação à definição e funcionamento metodológico do conceito de sobredeterminação em Freud e
Althusser, para explicar a lógica de fundo que rege a construção de um sonho, no caso do primeiro,
e a construção de uma sociedade histórica, no segundo. O outro momento no qual se efetua uma
analogia desse tipo virá a seguir, no contexto teórico de definição das novas categorias exigidas

61 FREUD, Sigmund. A Interpretação dos Sonhos. IMAGO. 2001. Pág. 248. (O negrito é nosso)
para a dialética marxista. Nesse caso, a analogia remete ao uso de categorias que pertencem à
análise dos sonhos, e Althusser o faz sem nenhuma explicação sobre até que ponto se trata,
efetivamente, de uma identidade de lógica com os processos de pensamento da psicanálise. Com o
conceito de sobredeterminação o caso é diferente. Nosso autor pontua aqui a existência do
parentesco lógico, que torna legítimo o efeito de importação do conceito, e enxerga a coerência
lógica existente entre a forma dada pela conceituação e o conteúdo do objeto designado: a dialética
marxista.62

2.3. A teoria do corte epistemológico


O conceito de sobredeterminação em Althusser é a chave epistemológica mais estratégica para a
construção da diferença de essência, ou de estrutura, entre a dialética em sua forma marxista e em
sua forma hegeliana. Do ponto de vista da leitura feita pelo nosso autor, há uma diferença radical
entre essas duas formas de dialética, as quais, se forem confundidas, mal separadas ou identificadas,
acabariam por acarretar inevitavelmente em algum tipo de mistificação do marxismo. Por aí se
explica a ambição maior que rege os escritos de Pour Marx, ou seja, o desejo de estabelecer, em
bases mínimas e sólidas, os tópicos da estrutura básica que diferencia e caracteriza a dialética
marxista: "...estou convencido de que o desenvolvimento filosófico do marxismo está dependendo
dessa tarefa" ("A Favor de Marx", ob. cit. pág. 80).

Esse posicionamento que Althusser adota, de construir a diferença radical que separa a dialética de
Hegel da de Marx, é a base da argumentação teórica que ele desenvolve sobre a teoria do corte
epistemológico, que tem como função separar dois mundos teóricos distintos dentro do próprio
Marx. Vejamos agora a caracterização básica dessa teoria em Althusser.

Como já foi dito no capítulo anterior, Althusser, por meio de uma metáfora topográfica, afirma que
Marx abriu um novo continente para o conhecimento científico - o continente da história -
designando, dentro desse novo espaço desbravado, como objeto de conhecimento as formações
sociais e as lutas de classe. Marx é o fundador, portanto, de uma nova disciplina científica: o
materialismo histórico. Essa nova teoria científica da história vai se formando, explicitando-se por

62 Reproduzimos aqui a nota de rodapé da pág. 182 de "A Favor de Marx", obra já citada: "Não forjei esse conceito.
Conforme indiquei, tomei-o emprestado a duas disciplinas existentes: no caso, a Linguística e a Psicanálise. Aí
possui ele uma 'conotação' objetiva dialética, e - em particular, na Psicanálise - bastante aparentado, formalmente,
ao conteúdo que ele aqui designa, para que esse empréstimo não seja arbitrário. É preciso, necessáriamente, uma
palavra nova para designar uma precisão nova. Podemos, decerto, forjar um neologismo. Pode-se, também,
'importar' (como diz Kant) um conceito bastante aparentado para que a sua domesticação (Kant) seja fácil. Esse
'parentesco' poderia, aliás, permitir, em troca, um acesso à realidade psicanalítica". E aqui vemos justificado o
pequeno esforço de cotejamento crítico que acabamos de fazer: evidenciar a identidade de lógica entre dois
processos de pensamento diferentes e permitir ver uma possível via de acesso à dialética em sua forma
psicanalítica. O aprofundamento dessa linha de investigação, no entanto, é matéria para um trabalho específico.
meio dos seus conceitos e categorias, até ganhar a sua forma definitiva e acabada nas obras da
maturidade de Marx, pensando-se principalmente no conjunto conhecido como "crítica da economia
política". Acontece que, nesse mesmo ato de fundação do materialismo histórico, cria-se também,
segundo Althusser, uma nova disciplina filosófica, designada como "materialismo dialético". No
entanto, diferentemente do modo como se deu no ato da primeira fundação, essa nova filosofia que
nasce vai permanecer em grande medida em estado prático, subdesenvolvida do ponto de vista da
sua elaboração estrutural, sem um conjunto adequado e completo de conceitos e categorias
adequadamente forjados, o que dará margem a muitos erros de entendimento.

O corte epistemológico pretende, portanto, separar o Marx da juventude 63, que pensava e produzia
dentro do universo da problemática ideológica alemã, do Marx da maturidade, fundador de uma
nova teoria científica e de uma nova filosofia (o materialismo histórico e o materialismo dialético).
Essa metamorfose, naturalmente, não poderia se produzir com um único salto. Como uma lagarta
que se envolve no seu casulo, antes de sair de lá como uma borboleta a teoria marxiana teve que se
desenvolver e se constituir enfrentando uma série de dificuldades, processo de transmutação esse
que Althusser vai chamar de "período de maturação", o lugar por excelência das ambiguidades e
ambivalências presentes na escolha e no uso dos seus conceitos e categorias:

"Não se rompe de vez com um passado teórico, porque em todo o caso precisa-se de palavras e conceitos para se
romper com palavras e conceitos, e amiúde são as antigas palavras que estão encarregadas do protocolo da
ruptura, enquanto dura a pesquisa das novas. A Ideologia Alemã dá-nos, assim, o espetáculo de conceitos
reformados, mas que foram reconvocados, para ocuparem o lugar dos conceitos novos ainda em instrução...e
como é normal julgar esses conceitos antigos pela sua aparência, tomá-los literalmente, pode-se fácilmente desgarrar-se
para uma concepção, ora positivista (fim de toda filosofia), ora individualista-humanista do marxismo (os sujeitos da
história são 'os homens concretos, reais')...Por todas essas razões, que estão em função da proximidade imediata da
cesura, a Ideologia Alemã, somente ela, exige todo um trabalho crítico para poder-se então distinguir a função
teórica supletiva de determinados conceitos, desses próprios conceitos."64

Como síntese dessas reflexões, Althusser chega ao seguinte esquema classificatório das obras de
Marx:

"1840-1844: Obras da Juventude


1845: Obras da Cesura
1845-1857: Obras da Maturação

63 Essa é a contingência do começo de Marx, referida por Althusser: "Nesse mundo foi que nasceu Marx, e foi nele
que começou a pensar. A contingência do começo de Marx é essa enorme camada ideológica sob a qual nasceu,
essa camada esmagante, de que soube livrar-se." (A Favor de Marx, pág. 62)
64 ALTHUSSER, Louis. A Favor de Marx. ZAHAR Editores. 1979. Pág. 27.
1857-1883: Obras da Maturidade"65

Dessa teoria do corte epistemológico em Marx, o que mais nos interessa, visando ao conceito de
sobredeterminação, é a seguinte primeira conclusão parcial: Marx fundou uma nova disciplina
científica - o materialismo histórico - explicitando a sua estrutura teórica, os seus conceitos e
categorias. Nesse mesmo ato de fundação, Marx criou uma nova disciplina filosófica - o
materialismo dialético - que permaneceu, no entanto, no corpo da obra marxiana, em grande
medida em estado prático, sem desenvolvimento de estrutura, conceitos e categorias. Nesse
sentido, o conceito de sobredeterminação é, para Althusser, uma importante construção teórica
para fazer avançar a explicitação formal da dialética marxista, entendida aqui como Teoria da
prática teórica, epistemologia da produção marxista de conhecimento.

Uma das maiores dificuldades para se conseguir enxergar esse corte epistemológico no próprio
Marx, segundo Althusser, reside no fato de que, nos poucos momentos em que fala, sempre de um
modo muito resumido, sobre o tema da sua relação com a dialética de Hegel, Marx o faz por meio
de termos e imagens equívocas, que se prestam a significados e sentidos ambivalentes, e que mais
ajudam a confundir do que a esclarecer tal questão. Junto a isso, também contribuíram algumas
elaborações teóricas posteriores de Engels, tentativas de produção de entendimento sobre a relação
de Marx com a dialética hegeliana, e que acabaram servindo para reforçar um dos principais
preconceitos que Althusser pretende desconstruir66. Esse preconceito, de acordo com os
apontamentos do nosso autor, vai buscar a sua justificação em uma famosa passagem de Marx:

"Meu método dialético, em seus fundamentos, não é apenas diferente do método hegeliano, mas exatamente seu
oposto. Para Hegel, o processo de pensamento, que ele, sob o nome de Ideia, chega mesmo a transformar num sujeito
autônomo, é o demiurgo do processo efetivo, o qual constitui apenas a manifestação externa do primeiro. Para mim, ao
contrário, o ideal não é mais do que o material, transposto e traduzido na cabeça do homem.

65 ALTHUSSER, Louis. A Favor de Marx. ZAHAR Editores. 1979. Pág. 25.


66 Em relação ao entendimento produzido por Engels, que Althusser vai dizer ter enveredado no caminho equivocado
sobre o tema da inversão de Hegel em Marx (o sintoma de uma ruptura epistemológica que não se evidencia pelo
seu conceito), nosso autor faz uma revisão crítica no seu prefácio a "Ler o Capital", e diz que o entendimento
correto da inversão como mudança de problemática, ao qual diz ter chegado, em "A Favor de Marx", com grandes
dificuldades, já estava explicitado em outros lugares de Engels e Marx; no prefácio ao Livro II de "O Capital", no
caso de Engels: nesse prefácio, Engels promove uma analogia entre o campo da química, explicando o modo como,
no final do século XVIII, a teoria do flogístico foi derrubada pela descoberta do oxigênio (e a essa mudança,
protagonizada por Lavoisier, assim ele se refere: "...desse modo, pôs de pé a química inteira, que, em sua forma
flogística, estava de cabeça para baixo"), caracterizando esse processo como descoberta de um novo problema, que
impõe a revisão e investigação de todas as categorias da teoria anterior. Retomando: analogia dessa mudança no
campo da química com a mudança operada por Marx campo da Economia Política, no conhecimento do objeto
chamado "mais-valor": "E então Marx entrou em cena. E em direta oposição a todos os seus predecessores. Onde
estes haviam visto uma solução, Marx viu somente um problema" (MARX, Karl. O Capital Livro II. Boitempo.
2014. pág. 95-96.), E na seção sobre o salário de "O Capital", na qual Althusser diz que Marx faz uso da expressão
"mudança de terreno" para caracterizar a sua revolução teórica. Ver Althusser, 1979, pág. 28.
Critiquei o lado mistificador da dialética hegeliana há quase 30 anos, quando ela ainda estava na moda...A
mistificação que a dialética sofre nas mãos de Hegel não impede em absoluto que ele tenha sido o primeiro a expor,
de modo amplo e consciente, suas formas gerais de movimento. Nele, ela se encontra de cabeça para baixo. É preciso
desvirá-la, a fim de descobrir o cerne racional dentro do invólucro místico."67

Essa passagem será problematizada por Althusser como indicativa de duas pistas que apontam para
direções opostas. Podemos observar em primeiro lugar o funcionamento das seguintes imagens e
ideias: os dois métodos dialéticos, um o "oposto" do outro; a dialética em Hegel em posição
invertida "se encontra de cabeça para baixo"; "é preciso desvirá-la, a fim de descobrir o cerne
racional dentro do invólucro místico". Seguindo por esses passos, enveredamos pelo caminho que
pode levar à conclusão de que a dialética, como método racional, já existe pronta no próprio Hegel,
"o primeiro a expor, de modo amplo e consciente, suas formas gerais de movimento", mas que
acaba por atuar de um modo invertido na medida em que, como "cerne racional", é atrapalhada pelo
"invólucro místico", ou seja, a filosofia idealista de Hegel. Assim sendo, a dialética, como método
racional, está guardada e escondida dentro das roupagens da filosofia especulativa, como uma noz
dentro de sua casca, e bastaria, portanto, para extraí-la em sua forma pura e racional, quebrar essa
casca, rasgar toda a roupagem da filosofia hegeliana, seu "invólucro místico". Nesse caso, embora
haja uma ruptura com o modelo filosófico anterior, não haveria nenhum corte epistemológico pois o
método dialético permaneceria basicamente o mesmo, apenas dando um giro de 180º para se apoiar
sobre os próprios pés68.

Essa mesma passagem de Marx, no entanto, lança luz sobre um outro caminho possível para o
entendimento dessa questão. Nessa outra direção, uma ideia fundamental ganha força e se destaca
de todas as demais: a dialética hegeliana possui um "lado mistificador". No paragrafo seguinte aos
dois que acima foram transcritos, Marx afirma, sobre a dialética em Hegel, que ela tinha uma
"forma mistificada". Esse é o entendimento que também se expressa em uma das cartas de Marx a
Kugelmann, datada de 6 de Maio de 1868:

"...meu método de desenvolvimento não é hegeliano, uma vez que sou materialista e Hegel é idealista. A dialética de
Hegel é a forma básica de toda dialética, mas somente depois que ela foi extirpada de sua forma mística, e isto é
precisamente o que distingue meu método."69

A mesma ideia, portanto, de que em Hegel a dialética possui uma forma mistificada-mistificadora.

67 MARX, Karl. O Capital. Boitempo editorial. 2013. Pág. 91.


68 Essa leitura crítica feita por Althusser sobre a imagem marxiana da inversão da dialética hegeliana, é a que ele vai
apontar como presente em algumas interpretações feitas por Engels, cujas passagens, transcritas por Althusser,
podem ser consultadas na página 78 da edição já referida de "A Favor de Marx".
69 MARX, Karl. O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann. BOITEMPO Editorial. 2013. Livro I. Pág. 90.
É com base nisso que Althusser vai defender a tese de que, na relação crítica que se estabelece entre
Marx e Hegel, no que diz respeito ao entendimento e ao uso da dialética, o processo de elaboração
da dialética marxista não se resume a uma simples extração e inversão do "cerne racional", pois em
Hegel a dialética, na sua estrutura, seus conceitos e categorias, está desde o princípio e
inevitavelmente "contaminada" pela filosofia idealista. Desses apontamentos podemos formular
uma segunda importante conclusão parcial: a fundação, por Marx, de uma nova disciplina
filosófica - o materialismo dialético - significa a elaboração de uma nova estrutura, um novo
conceito e novas categorias, que implicam no corte epistemológico que separa organicamente
a produção teórica de Marx da de Hegel.

Uma última questão chama a atenção ao lermos as passagens de Marx acima citadas. No caso do
texto do Posfácio à 2º edição de "O Capital", a afirmação de que Hegel foi o primeiro a expor "de
modo amplo e consciente", as "formas gerais de movimento" da dialética. Depois, na carta a
Kugelmann, a mesma afirmação, qual seja, de que "a dialética de Hegel é a forma básica de toda
dialética". O que seria, portanto, essa forma geral ou básica da dialética, que estaria presente tanto
em Marx quanto em Hegel (justificando, inclusive, o uso do mesmo nome para teorias e
procedimentos epistemológicos distintos) mas que, para a sustentação da tese do corte
epistemológico de Althusser, teria que ser diferente da estrutura, do conceito e das categorias que
caracterizam distintamente cada um dos métodos dialéticos - e, nesse sentido, aquilo que Althusser
vai chamar de "forma" do método? Marx nos dá essa resposta, no parágrafo seguinte aos dois
transcritos do referido Posfácio, e que podemos denominar, contra a ideia de que se trata da forma
do método, como princípio axiomático das duas dialéticas:

"Em sua forma mistificada, a dialética esteve em moda na Alemanha porque paceria glorificar o existente. Em sua
configuração racional, ela constitui um escândalo e um horror para a burguesia e seus porta-vozes doutrinários, uma vez
que, na intelecção positiva do existente, inclui, ao mesmo tempo, a intelecção de sua negação, de seu necessário
perecimento. Além disso, apreende toda forma desenvolvida no fluxo do movimento, portanto, incluindo o seu

lado transitório; porque não se deixa intimidar por nada e é, por essência, crítica e revolucionária."70

A afirmação desse princípio caberia, de fato, para a definição da dialética nos dois grandes
pensadores alemães, mas, justamente pelo fato de que se trata de uma base mínima de identidade,
de caráter altamente geral e abstrato, é que se prefere definir aqui como axioma e não como forma,
mais no sentido do entendimento de Althusser do que no de Marx 71, pois que, apenas com essa
70 MARX, Karl. O Capital. Boitempo editorial. 2013. Pág. 91.
71 Em Marx, a esse propósito, pode-se notar que o termo "forma", nesse caso específico, é um servo que se sujeita a
dois senhores: é empregado para designar o ganho positivo, em Hegel, da "forma geral e básica da dialética", e,
também, para acusar a "forma mistificada" dessa dialética, ou seja, o que deve ser jogado fora. Este seria mais um caso
definição, não se evidencia absolutamente nada sobre os recursos e procedimentos teóricos para a
produção de conhecimento (que em Marx é científico, e em Hegel idealista). Portanto, não há
corpo, não há forma, há apenas um princípio. Os recursos e os procedimentos só nos podem ser
dados quando passamos a considerar o conceito e as categorias que constróem a estrutura de cada
um dos dois métodos.

Antes de prosseguirmos, contudo, é importante que se fale um pouco sobre a natureza controvertida
do tema da "inversão" da dialética hegeliana em Marx. Para tanto, recorreremos aqui, mais uma
vez, ao artigo de Jorge Grespan, que, já no seu título - "A dialética do avesso" - está a nos indicar
ser este o tema principal da sua problematização. A sua argumentação é construída, como ele
próprio nos indica, principalmente com base em dois textos publicados em 1974, de H. F. Fulda e
M. Theunissen72, e tem como seu ponto central um questionamento sobre a interpretação tradicional
e inevitavelmente limitada que se constituiu historicamente no marxismo, sobre a relação da
dialética marxiana com a hegeliana, que se processou em função da tradução que produziu a ideia
de uma "inversão" do segundo pelo primeiro. Ou seja, na análise de Grespan, a ideia de uma
"inversão" leva a se produzir o entendimento segundo o qual a mudança que se opera, entre as duas
formas da dialética, é a da direção de determinação entre a materialidade e o pensamento, sendo
que, em Hegel, o pensamento está a determinar a materialidade, e, em Marx, o inverso disso. Mas,
há um problema que é apontado nessa leitura:

"O problema é que, nesta interpretação, o que se "inverte" é apenas a ordem do real sobre o qual opera a dialética, é seu
conteúdo ou substrato efetivo..."Inverte-se" a ordem do real, mas a forma de dialética seria a mesma: seria o método de
descoberta das contradições e de sua apresentação categorial. Deste modo, porém, conteúdo e forma são separados e
concebidos numa dicotomia não-dialética, em que a "inversão" do conteúdo não implica a da forma, como se ambos
fossem aspectos indiferentes um ao outro, não relacionados". (Grespan. A dialética do avesso. ob. cit. pág. 30-31)

Para dar conta de se desfazer da velha imagem da "inversão" e, desse modo, dar conta de ilustrar a
produção de um outro entendimento, que seja o indicativo de um outro tipo de mutação
epistemológica entre as duas dialéticas, Grespan, seguindo o texto de Fulda, vai destacar a
compreensão do verbo umstulpen, traduzido normalmente pelo seu significado de "inversão", pelo
seu outro significado possível, qual seja, o de "virar do avesso":

"De fato, o verbo umstulpen, empregado no texto do posfácio, pode querer dizer "entornar" um vasilhame, virá-lo para

de uso ambivalente de termos em Marx, apontados por Althusser como "sintomas" de uma disciplina teórica
experimentada praticamente mas ainda pouco desenvolvida teoricamente.
72 Esses textos tem a mesma importância e peso teórico no artigo de Marcos Muller: "Exposição e método dialético
em "O Capital"". Para a referência bibliográfica em detalhe, ver: Grespan. A dialética do avesso. ob. cit. pág. 27.
baixo e derramar o que contém - significado adequado ao ato de colocar de cabeça para cima o que estava de "cabeça
para baixo", conforme a interpretação tradicional. No entanto, o verbo se refere muito mais frequentemente ao gesto de
arregaçar a manga de uma camisa ou a boca de uma calça, pois vem do substantivo Stulpe, que designa justamente estas
partes do vestuário, bem como o cano de uma bota ou de uma luva comprida. Assim, a "inversão" proposta por Marx
pode ser entendida como o ato de virar do avesso, ou melhor, desvirar do avesso algo que estava nesta posição trocada.
Fulda propõe a elegante metáfora de uma luva que, ao ser descalçada, fica do avesso, e umstulpen quer dizer colocá-la
do lado certo." (Grespan. ob. cit. pág. 31)73

E, nesse novo entendimento, segundo o qual a relação da dialética marxiana com a hegeliana é a de
aquela desvirar esta do seu avesso, o que deve ser pensado como mudado não é apenas o sentido da
relação de determinação entre a materialidade e o pensamento, a ordem do real, mas também, ao
mesmo tempo e no mesmo processo, a forma lógica da dialética. O modo como se dá essa mudança
de forma é descrito por Grespan no segundo tópico do seu artigo, intitulado "A contradição, fonte
de toda dialética". Retomar e reproduzir passo a passo essa argumentação seria fugir muito dos
propósitos da presente dissertação, principalmente em razão de que, nesse ponto, a análise se
produz em um procedimento de cotejamento crítico da lógica da dialética em Marx com a lógica da
dialética em Hegel, por meio dos conceitos dialéticos hegelianos, o que exigiria, de algum modo,
uma exposição mais sistemática da dialética em Hegel74. Mas podemos deixar um apontamento
tópico sobre alguns aspectos da referida argumentação.

Na análise de Fulda, que Grespan vai pontualmente questionar e tentar fazer avançar em um sentido
muito específico, virar pelo avesso não significa fazer a troca entre aquilo que é entendido como
aparência ou como essência em cada uma das duas formas da dialética, ou seja, entre a contradição
- que para Hegel, segundo Fulda, reside na aparência fenomenológica das coisas, e, em Marx, na
essência do real - , e a unidade - que, em Hegel, reside na essência do real, enquanto que, para
Marx, é uma construção fenomenológica das aparências 75. A diferença fundamental deve ser
apreendida, segundo Grespan, em um outro sentido: o processo dialético se caracteriza por um
movimento contraditório de identidade e diferença, afirmação e negação. Cada uma das partes que

73 Marcos Muller, também fortemente influenciado no seu texto citado por Fulda, trabalha com as duas noções ao
mesmo tempo, de "inversão" e "virar do avesso", sem que o detalhamento do significado desses dois conceitos seja
feito com a mesma explicitação que o faz Grespan: "O que significa que a dialética hegeliana está de ponta-cabeça
e como entender adequadamente o programa marxiano do "umstulpen" (inverter e virar do avesso) da dialética
especulativa?" (Muller. Exposição e método dialético em "O Capital". ob. cit. pág. 25.
74 Para o estudo da lógica e da dialética em Hegel, indicamos dois textos: HEGEL. G. W. F. Ciência da Lógica
(excertos). Barcarolla. 2011. E também: Kojève. Alexandre. Introdução à leitura de Hegel. ed uerj e Contraponto.
2002.
75 Marcos Muller, no seu já citado artigo, "Exposição e método dialético em "O Capital"", vai concordar com a
interpretação de Fulda sem nenhum questionamento: "É preciso, além de invertê-la, virá-la ao avesso, como exige
a outra significação presente na palavra alemã 'umstulpen', mostrando que as contradições presentes nos
fenômenos não são a aparência de uma unidade essencial, mas a essência verdadeira de uma 'objetividade alienada'
(e não da 'objetividade enquanto tal'), e que a sua resolução especulativa na unidade do conceito é que representa o
lado aparente, mistificador, de uma realidade contraditória." (Muller. ob. cit. pg. 26)
fazem parte do todo se afirma positivamente como realidade por meio de um processo de
autoafirmação e também de negação do outro.

"...se, para o lado positivo, o negativo é apenas um momento a que ele tem de se referir, este negativo não poderia ser,
portanto, ele mesmo, uma totalidade da qual o próprio positivo seria só simples parte componente. Para definir-se como
algo - necessariamente algo inteiro - , o positivo não pode se deixar reduzir a "momento" da definição de seu oposto.
Daí que recuse a ele o estatuto de totalidade que reivindica para si próprio. E o mesmo vale, inversamente, para o outro.
" (Grespan. A dialética do avesso. pág. 37)

Em Hegel, de acordo com Grespan, esse processo ocorre sempre de um modo equilibrado,
conduzindo a contradição em si até o ponto em que ela se converte em contradição para si,
tornando-se autoconsciência ou o absoluto. No caso de Marx, não será esse o desenvolvimento
formal da dialética, não por conta de nenhuma mudança a priori que se deva operar na lógica, mas
em função da especificidade do objeto de conhecimento, que impõe a sua forma lógica na leitura
dialética que demanda76. No estudo desse objeto - a estrutura econômica da sociedade burguesa, o
Capital como processo de autovalorização - , uma das partes da contradição fundamental que o
rege, o Capital em relação ao trabalho, no seu processo de afirmação de si e negação de outro, de
constituir-se em totalidade dominadora que faz do outro um momento de si, o faz com base em uma
tal materialidade histórica que, na relação que estabelece com o trabalho, "suga como um vampiro"
a sua substância vital, desapossa-o das condições objetivas e concretas que lhe permitiriam o
exercício do seu ser como sujeito que também se afirma negando o outro, de tal modo que, na
dialética materialista, ao contrário do que ocorre com a especulativa, a contradição não se torna
capaz de evoluir da contradição em si à contradição para si.

"Na imagem do "vampiro", a vida do capital não vem originalmente de si mesmo, mas da força de trabalho, cuja
objetivação constitui a substância do valor das mercadorias, pois apenas "sugando trabalho vivo" o "morto" retorna à
vida e nela permanece. Ao fazê-lo, porém, ele lhe retira a vida da qual, por outro lado, depende." (Grespan. ob. cit. pg.
40)

O que mais nos interessa disso, no contexto do nosso tema, é ver que, nessa linha de interpretação
do tema da "inversão" da dialética hegeliana, como "desvirar do avesso", não há nada que possa
sustentar uma ideia althusseriana tal como a de um corte epistemológico, separando radicalmente as
duas dialéticas. Ao invés disso, o que podemos notar é a presença de pontos fundamentais de
identidade, principalmente o uso de uma mesma linguagem para a definição dos conceitos e das
categorias da lógica. Como última observação nesse momento, seria interessante também pensar

76 "...Marx resgata o lado "racional" da dialética de Hegel. Mas assim como foi seu objeto de estudo, e não uma
preferência filosófica objetiva, que lhe impôs tal resgate, é esse mesmo objeto que o leva a criticar o lado errôneo
daquele método." (Grespan. A dialética do avesso. ob. cit. pg. 29)
que, do ponto de vista da crítica althusseriana da imagem evocada pelo conceito de "inversão", ou
seja, a de que virar um objeto em 180º não muda em nada a sua estrutura, não haveria nenhuma
mudança de evocação imagética ao adotarmos a ideia de "desvirar do avesso", pois, do ponto de
vista da forma, continuaria sendo uma luva, com cinco dedos e uma palma. A metáfora, portanto,
continuaria sendo insuficiente para expressar simbolicamente a mudança formal.

2.4. A forma da dialética marxista: seu conceito e suas categorias sob a ótica de Althusser
O primeiro passo a ser dado para o propósito desse tópico é o de caracterizar, tal como o faz
Althusser, a dialética hegeliana. Essa caracterização tem por base a ideia de que, em Hegel, a
dialética é regida por um princípio de contradição simples. A história como um todo de cada um dos
povos que habitam esse mundo, e a história de cada acontecimento, entidade e instituição que faz
parte da vida desses povos, se reduz, em última análise, à história da "Astúcia da Razão", da Ideia
Absoluta que, no seu processo de "exteriorização-alienação", vai efetivando o domínio soberano e
cada vez mais absoluto da vida ideal (política-ideológica, encarnada na Filosofia e no Estado) sobre
a vida material, a "sociedade civil" na denominação hegeliana. Esse auto-movimento da Razão, que
deve terminar pela tomada de autoconsciência sobre si mesma, fazendo-se sujeito consciente e
absoluto de si mesma, vai engendrando como seu fenômeno todas as contradições que se chocam e
produzem o progresso histórico dos povos, tanto no campo da vida material quanto da espiritual,
funcionando como princípio de contradição simples que estabelece a relação de determinação entre
a essência e os seus fenômenos:

"Essa própria redução...a redução de todos os elementos que fazem a vida concreta de um mundo histórico (instituições
econômicas, sociais, políticas, jurídicas, costumes, moral, arte, religião, filosofia, e até os acontecimentos históricos:
guerras, batalhas, derrotas, etc...) a um princípio de unidade interna, essa redução não é ela mesma possível a não ser na
condição absoluta de aprender toda a vida concreta de um povo pela exteriorização-alienação de um princípio
espiritual interno, que, em definitivo, nada mais é do que a forma mais abstrata da consciência de si desse mundo: a
sua consciência religiosa ou filosófica, isto é, a sua própria ideologia...Daí porque, aliás, Hegel pode-nos representar
como 'dialética', isto é, movida pelo jogo simples de um princípio de contradição simples, a História Universal desde o
longínquo Oriente até os nossos dias."77

Assim, podemos caracterizar a estrutura da dialética hegeliana compreendendo o seu conceito e as


suas categorias. O seu conceito: o princípio da contradição simples. As suas categorias: negação,
negação da negação, contradição, identidade dos contrários, superação, transformação da
quantidade em qualidade. As categorias se apresentam, portanto, como recursos epistemológicos
que permitem operar praticamente o conceito da contradição simples que move o uso da dialética
em Hegel. E, por isso, Althusser vai nos dizer que, quando Marx retoma alguma dessas categorias
77 ALTHUSSER, Louis. A Favor de Marx. ZAHAR Editores. 1979. Pág. 89.
presentes em Hegel, o que nem sempre acontece, é para utilizá-la de uma forma muito diferente
pois, como veremos, o princípio que move a dialética marxista é outro. Mais uma vez, quando isso
acontece, tratar-se-ia de uma velha e conhecida roupagem a encobrir um conteúdo radicalmente
novo.

Nessa estrutura da dialética em Hegel, para Althusser, é onde reside o grande perigo da leitura
equivocada que se pode fazer sobre a imagem marxiana da "inversão" de Hegel, da inversão da
dialética hegeliana como forma de extrair e fazer uso do seu "cerne racional". Essa leitura
equivocada significaria que a dialética, operando dentro da chave da filosofia idealista em Hegel (o
"invólucro místico"), precisaria tão somente começar a operar dentro da chave do materialismo
histórico, sem nenhuma necessidade de mudança dos seus conceitos e das suas categorias. Esse
entendimento, quando colocado em prática, é o que acaba por levar o marxismo a desembocar,
inevitavelmente, no erro do economicismo:

"Assim substituir-se-ia o princípio 'puro' da consciência (de si de um templo), princípio interno simples que, em Hegel,
é princípio de inteligibilidade de todas as determinações de um povo histórico, por outro princípio simples, seu
contrário: a vida material, a economia, - princípio simples que se torna, por sua vez, no único princípio de
inteligibilidade universal de todas as determinações de um povo histórico...Essa tentativa termina pela redução radical
da dialética da história à dialética geradora dos modos de produção sucessivos, isto é, ao extremo das diferenças
técnicas da produção. Essas tentações trazem, na história do marxismo, nomes próprios: o economismo, e mesmo o
tecnologismo."78

Para ilustrar o modo como enxerga a operação da dialética nos processos históricos concretos, a base de onde
a sua lógica de funcionamento deve ser extraída, Althusser vai recorrer a um dos acontecimentos mais
paradoxais da história do socialismo: a Revolução Russa de 1917, e o modo como Lênin o interpretou. Essa
revolução foi um grande paradoxo do ponto de vista das previsões que se faziam com base nos postulados do
materialismo histórico vigentes até então. Apenas para pontuar em linhas bem gerais, o princípio básico que
inspirava as previsões sobre as possibilidades de revolução era o de que o desenvolvimento do modo de
produção capitalista conduziria à agudização da luta, cada vez mais antagônica e explosiva, entre a burguesia
e o proletariado, tendo como uma de suas manifestações a redução quantitativa da primeira e o crescimento
do segundo, até que se produzisse a explosão revolucionária. Esperava-se, portanto, que a revolução
acontecesse inicialmente em algum dos países mais adiantados da Europa Ocidental: na Inglaterra, onde o
capitalismo industrial atingia o seu desenvolvimento mais adiantado; na França, país onde as revoluções e as
formas da política assumiam sempre os padrões mais puros e paradigmáticos; ou na Alemanha, na qual os
socialistas haviam se organizado como partido político (o social-democrata), que se tornou um modelo de
organização política para a classe trabalhadora no mundo inteiro já no final do Séc. XIX. A Rússia, por sua
vez, não dava motivos para entrar no horizonte de tais previsões (lá a perspectiva era antes, normalmente, da

78 ALTHUSSER, Louis. A Favor de Marx. ZAHAR Editores. 1979. Pág. 94-95.


necessidade histórica de uma revolução burguesa, e não proletária).

Desse modo é que se coloca a seguinte questão paradoxal: por que a revolução socialista foi possível na
Rússia em primeiro lugar? A resposta elaborada por Lênin e retomada por Althusser se resume na ideia de
que, na cadeia formada pelo sistema mundial de Estados Imperialistas, a Rússia era o elo mais fraco. E por
qual motivo o era? Entre o final do séc. XIX e o começo do XX, a Rússia experimentou "a acumulação e a
exasperação de todas as contradições históricas então possíveis em um único Estado" 79: contradições do
regime de exploração feudal que, em certa medida, ainda regia a produção e as relações sociais no
campo; contradições da produção industrial e das relações capitalistas que se desenvolviam nas
grandes cidades; contradição entre as diversas frações da classe dominante ligadas a essas diferentes
formas de produção. A essas contradições se somou o acúmulo de uma série de outras
circunstâncias: o caráter avançado da vanguarda revolucionária, que se cultivou na Europa mais
moderna por conta do exílio forçado; a guerra imperialista que estourou em 1914, etc. Tais
contradições e circunstâncias, que vão produzir a Revolução Russa de 1917, caracterizam, por fim,
o processo que vai ser definido como desenvolvimento desigual do capitalismo, um dos conceitos
importantes da nova dialética marxista:

"A desigualdade de desenvolvimento do capitalismo leva, através da guerra de 1914, à Revolução Russa, porque a
Rússia era, ao mesmo tempo, a nação mais atrasada e a mais avançada, contradição gigantesca que as suas classes
dominantes, divididas entre si, não podiam elucidar e muito menos resolver. Por outras palavras, a Rússia se encontrava
em atraso com uma revolução burguesa às vésperas de uma revolução proletária, prenha, portanto, de duas revoluções,
incapaz, mesmo adiando uma, de conter a outra."80

Com base em tal leitura crítica da experiência revolucionária russa, Althusser sintetiza uma primeira
conclusão sobre as condições objetivas e subjetivas que se fazem necessárias para se pensar a
possibilidade de uma ruptura histórica revolucionária: o acúmulo e a exasperação de uma
variedade de contradições e circunstâncias precipitadoras. Isso significa uma complexificação
da ideia inicial simples, segundo a qual o desenvolvimento das forças produtivas reina absoluto na
determinação das revoluções históricas.

Chegamos agora, portanto, ao ponto em que se começa a caracterizar a dialética marxista, tal como
a entende Althusser. Assim, temos um primeiro postulado: a contradição provocada pelo
desenvolvimento das forças produtivas - ou seja, a determinação em última instância do
desenvolvimento histórico de uma sociedade, é uma condição necessária mas não suficiente
para produzir uma ruptura revolucionária da formação social. Havendo a necessidade do

79 ALTHUSSER, Louis. A Favor de Marx. ZAHAR Editores. 1979. Pág. 81.


80 ALTHUSSER, Louis. A Favor de Marx. ZAHAR Editores. 1979. Pág. 83.
acúmulo e da ação de uma série de outras contradições e circunstâncias, podemos afirmar que
a revolução só pode ser o produto de múltiplas determinações. Até aqui, ainda não atingimos
nenhuma novidade em relação ao que já foi dito pelos textos marxianos. Vejamos o que nos diz
Marx em um dos seus mais importantes comentários sobre a questão do método científico:

"...se começássemos pela população teríamos uma visão caótica do todo, e através de uma determinação mais precisa,
através de uma análise, chegaríamos a conceitos cada vez mais simples; do concreto figurado passaríamos a abstrações
cada vez mais delicadas até atingirmos as determinações mais simples. Partindo daqui, seria necessário caminhar em
sentido contrário até chegar finalmente de novo à população, que não seria, desta vez, a representação caótica de um
todo, mas uma rica totalidade de determinações e de relações numerosas...O concreto é concreto por ser a síntese de
múltiplas determinações, logo, unidade da diversidade."81

A questão é que o reconhecimento do fato de que existem diversas contradições e circunstâncias


(representadas por diversas categorias e conceitos) operando na produção da vida de uma sociedade,
esse reconhecimento, por si mesmo, não tem ainda o poder de negar a ideia de que todas elas sejam
o produto da determinação em última instância. Que assim o seja na formulação marxiana do
materialismo histórico pode ser evidenciado por outra famosa passagem teórica de Marx sobre o
método:

"...na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da
sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas
materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a
qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O

modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral." 82

Temos com isso, portanto, a determinação em última instância (o desenvolvimento das forças
produtivas), a produção, na base dessa estrutura, de uma série de formas, modalidades e
circunstâncias de superestrutura, e a realidade concreta como a síntese de múltiplas determinações,
as quais são representadas por diferentes conceitos e categorias. Dentro dessa chave interpretativa,
ainda estamos no terreno da leitura marxiana, e o conceito althusseriano de sobredeterminação não
seria mais do que a síntese teórica dessa interpretação. Esse conteúdo ainda pode ser caracterizado
por uma contradição simples, que constrói a diferença radical entre a determinação em última
instância e os fenômenos dessa determinação. As múltiplas determinações que vão sintetizar o
concreto possuem todas a mesma lógica de fundo, a mesma causa operante: o atual estágio do
desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção: a estrutura econômica.

81 MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. wmfmartinsfontes. 2016. Pág. 248.
82 MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. wmfmartinsfontes. 2016. Pág. 5.
Na conclusão do seu argumento sobre o motivo pelo qual a revolução foi possível na Rússia antes
do que em qualquer outra parte, Althusser vai consolidar sua ideia segundo a qual, apesar de existir
uma contradição fundamental, que é onipresente na formação social burguesa - a determinação em
última instância das formas, relações e movimentos da vida social - , essa não é a única contradição
existente e operante, mas antes, ao contrário, deve conviver e convergir com uma variedade de
muitas outras contradições, que produzem, todas juntas, "o concreto como síntese de múltiplas
determinações" (no caso que serviu de ilustração para essa argumentação, a Revolução Russa como
o resultado da sobredeterminação de múltiplas contradições que se acumularam e exasperaram em
altíssimo grau). Mas, a essa altura, se produz uma mudança qualitativa na elaboração do argumento,
pois, segundo o nosso autor, essas outras contradições que convivem com a principal nunca se
resumem a ser o seu puro fenômeno, como se fossem epifenômenos unilateralmente determinados
de modo direto pela contradição entre as forças produtivas e as relações de produção. Outras
instâncias, circunstâncias e lógicas fazem agora a sua entrada em cena: a conjuntura nacional e
internacional, as formas desenvolvidas na superestrutura, as instâncias que se derivam
diretamente dessas formas e de cada uma das contradições.

"Decerto, a contradição fundamental que domina esse tempo...é ativa em todas essas 'contradições' e até na sua 'fusão'.
Mas não se pode, entretanto, pretender, com todo o rigor, que essas 'contradições' e a sua 'fusão' não sejam mais do que
o puro fenômeno dela. Pois, as 'circunstâncias' ou as 'correntes' que a executam são mais do que o seu puro e simples
fenômeno. Originam-se das relações de produção, que são, com efeito, um dos termos da contradição, mas ao mesmo
tempo sua condição de existência; superestruturas, instâncias que dela derivam, mas que tem consistência e eficácia
próprias; a própria conjuntura internacional, que intervém como determinante que desempenha o seu papel
específico."83

De tal modo portanto que, a forma como as diferentes contradições se encontram, articulam, e se
influenciam recíprocamente no tempo e no espaço (conjuntura), as formas concretas e específicas
que desenvolvem, bem como a derivação de instâncias diretamente determinadas, e que só se
explicam pela lógica particular de cada contradição, representam a condição de possibilidade e
efitividade da autonomia relativa de cada uma delas. Não se trata mais de epifenômenos; além de
possuírem suas formas próprias, possuem também uma lógica específica de funcionamento e um
conjunto de instâncias diretamente derivadas, suportes da sua relativa autonomia (relativa em
função da determinação em última instância):

"Essa sobredeterminação torna-se inevitável e pensável, desde que se reconheça a existência real, em grande parte
específica e autônoma, irredutível pois a um puro fenômeno, das formas da superestrutura e da conjuntura nacional e

83 ALTHUSSER, Louis. A Favor de Marx. ZAHAR Editores. 1979. Pág. 86.


internacional...que jamais a dialética econômica age em estado puro, que jamais na história se vê essas instâncias que
são as superestruturas etc. afastar-se respeitosamente quando elas realizaram a sua obra ou dissipar-se como o seu puro
fenômeno para deixar avançar no caminho real da dialética Sua Majestade a Economia porque os Tempos teriam
chegado. Nem no primeiro nem no último instante, a hora solitária da 'última instância' jamais soa"84

Podemos, então, resumir e sistematizar a estrutura da dialética marxista, tal como a entende
Althusser, do seguinte modo: a dialética marxista não é regida pela lógica de uma contradição
simples, que produz os seus fenômenos de afirmação, negação e negação da negação. De
forma radicalmente distinta, a nova dialética é regida pela ideia de que a história - o concreto
- é o resultado de múltiplas contradições, sendo que nenhuma delas é o puro fenômeno de uma
contradição principal, mas sim que desenvolvem uma lógica própria e se desdobram em
diversas instâncias que são determinadas por essas especificidades irredutíveis a um mesmo
denominador comum. É a esse princípio que Althusser vai conceituar como
sobredeterminação: o conceito da contradição sobredeterminada. Esse novo conceito, por sua
vez, vai demandar a existência e operação de novas categorias para a análise metodológica,
que o nosso autor vai buscar principalmente em um texto de Mao Tsé-tung - "Sobre a
Contradição"85, e também das análises de Lênin já referidas: contradição principal;
contradição secundária; aspecto principal da contradição; aspecto secundário da contradição;
contradição antagônica; contradição não-antagônica; e, por fim, a lei da desigualdade do
desenvolvimento das contradições, que podemos classificar como mais um conceito da
dialética marxista86.

A apropriação e o uso dessas categorias e conceitos, formulados por Mao e Lênin, merecem
algumas palavras de esclarecimento. A princípio, Althusser nos diz que elas foram forjadas e
aplicadas na análise crítica de processos históricos sem que tenham sido fundamentadas

84 ALTHUSSER, Louis. A Favor de Marx. ZAHAR Editores. 1979. Pág. 99.


85 Em Mao, segundo Althusser, essas categorias, embora corretamente enunciadas, permanecem com um caráter
demasiado descritivo ("os seus conceitos correspondem a experiências concretas"; 1979, pg. 80) ou demasiado
abstrato ("esses conceitos, novos e fecundos, são antes apresentados como especificações da dialética em geral do
que como implicações necessárias da concepção marxista da sociedade e da história"; 1979, pg. 80). Em relação à
recusa que se faz do caráter parcialmente abstrato dessas categorias em Mao, podemos ver a rejeição de Althusser
quanto ao projeto de querer encontrar a dialética marxista, que deve se ater ao campo da análise histórica e
sociológica, na chamada dialética da natureza, ou seja, como estrutura universal que está presente em todas as
dimensões da vida material, orgânica e inorgânica. Nesse sentido, para exemplo, podemos citar a seguinte passagem
de Mao: "Com efeito, mesmo o movimento mecânico, provocado por uma impulsão exterior, realiza-se por
intermédio das contradições internas dos fenômenos. No mundo vejetal e animal, o simples crescimento, o
desenvolvimento quantitativo, são também provocados fundamentalmente pelas contradições internas. Do mesmo
modo, o desenvolvimento da sociedade é devido, sobretudo, a causas internas, e não externas". (Mao, 2001, pg. 42).
Mao, portanto, dá o nome das categorias, mas elas ainda estão muito vazias do seu autêntico conteúdo conceitual.
86 Embora muito de passagem e apenas para fazer uma referência, sem desenvolver em nenhum momento nem
aprofundar, Althusser cita Gramsci como um teórico marxista de grande importância para o estudo do problema das
superestruturas, fazendo descobertas novas e fecundas e que levam, também, à formulação de novos conceitos de
análise metodológica, tal como o de hegemonia: "Infelizmente quem retomou e prolongou, pelo menos na França, o
esforço teórico de Gramsci?" (A Favor de Marx. ob. cit. pág. 100).
teoricamente pelos seus criadores:

"Dão-nos esses conceitos na forma do 'é assim'. Dizem-no que são essenciais à dialética marxista, porque são o
específico dela. Nós é que devemos procurar a razão teórica profunda dessas afirmações."87

Por conta disso, temos inicialmente apenas alguns apontamentos muito resumidos e gerais sobre o
significado dessas categorias, como, por exemplo, a lição refletida por Mao segundo a qual a
contradição, embora exista universalmente, existe sempre de alguma forma específica, ou então a
afirmação de que as contradições antagônicas são as que provocam um efeito explosivo,
revolucionário. Depois de tais comentários sucintos, começam a aparecer novas interpretações e
aportes de Althusser, que vai desenvolver o significado conceitual dessas categorias, sem longo
alcance, com pouco fôlego, mas de um modo altamente significativo para nós. Nosso autor começa
definindo a diferença de função operativa dos dois pares de categorias que ele define como
categorias de distinção entre as contradições:

1) contradição principal x contradições secundárias: categorias encarregadas de estabelecer a


relação de hierarquia e subordinação entre as diversas contradições presentes e atuantes em um
determinado momento histórico. Na linha de Mao, Althusser nos diz que em cada momento
histórico determinado há sempre uma única contradição principal, regente do processo de
articulação e desenvolvimento das contradições. Além dessas relações de hierarquia e subordinação
entre as diferentes contradições, Luiz Eduardo Motta ressalta ainda, na leitura dos textos sobre a
contradição em Mao Tsé-tung88, o princípio dinâmico da interdependencia, que processa a dança das
posições que cada contradição ocupa em um determinado momento:

"Ademais, todas as contradições são interdependentes. Essa interdependência decorre do fato de que a contradição
fundamental influencia e determina as contradições principais e secundárias, tornando-as ou agudizadas, ou resolvidas,
ou atenuadas parcialmente/temporariamente, enquanto outras vão nascendo. Por isso, de acordo com Mao, haveria
distintas etapas do processo revolucionário, haja vista que haveria a formação de uma nova contradição principal em
relação às secundárias." (MOTTA. A Favor de Althusser. pág. 46)

2) aspecto principal x aspecto secundário da contradição: categorias com a função metodológica de


determinar a relação de hierarquia e subordinação que se estabelece entre as questões internas de
cada uma das contradições envolvidas em um momento histórico;

87 ALTHUSSER, Louis. A Favor de Marx. ZAHAR Editores. 1979. Pág. 170.


88 Não se pretende, no contexto da presente dissertação, aprofundar o detalhamento sobre a leitura de Mao em relação
à dialética marxista. Para tanto, pode-se recorrer ao livro de L.E. Motta, já referido, principalmente o tópico do
capítulo 2, intitulado: "A influência do pensamento de Mao Tsé-tung no marxismo althusseriano".
3) Por fim, a lei do desenvolvimento desigual das contradições, que opera mais com a função de um
conceito do que de uma categoria, na medida em que se encarrega de postular o princípio
epistemológico segundo o qual cada uma das contradições presentes e atuantes em um determinado
momento histórico se desenvolve desigualmente, e disso o que podemos inferir é a desigualdade em
relação à velocidade do desenvolvimento, grau de amadurecimento, maior ou menor grau de
identidade lógica com os fundamentos da sociedade burguesa e o grau de sua generalização.

Luiz Eduardo Motta, no seu "A favor de Althusser", vai denominar a dialética marxista, tal como a
entende definida por Althusser no exercício do corte epistemológico, como uma dialética
destruidora, de natureza histórica, ao contrário da dialética hegeliana, definida como dialética
conciliadora, de natureza lógica. Para operar com o princípio lógico da destruição, a dialética
marxista assume uma forma diádica, que Motta entende ser a forma percebida não apenas por
Althusser, mas também por Mao e Lênin:

"...a dialética defendida por Althusser no marxismo contém a negação por meio das rupturas, o que o aproxima das
posições do maoísmo no campo teórico político. Como afirma Mao, partindo de Lênin, "um dividi-se em dois - esse é
um fenômeno universal e isso é a dialética". De acordo com Riccardo Guastini, tanto Marx, Engels e Lênin não
operavam com a dialética triádica, mas com a diádica, já que a dialética sempre traz dois elementos: relações de
produção e forças produtivas, classe dominante e classe dominada, poder proletário e estado burguês, marxismo e
revisionismo, etc." (L. E. Motta. A Favor de Althusser. pág. 29)

Já a dialética hegeliana, por sua vez, faz uso da forma triádica e dos conceitos de superação e
negação da negação, que implicam na operação de um outro tipo de princípio lógico regendo a
dialética, o da conciliação:

"A tríade hegeliana implica necessariamente na superação, mas não na ruptura, i.e, na destruição do modo de produção
capitalista. A superação significa a supressão da independência recíproca que os momentos anteriores contêm a
conservação dos elementos próprios, irredutíveis, de cada um, e a resolução da contradição por meio da conciliação dos
contrários. Conforme destaca Naves, a "negação da negação" implica, portanto, num procedimento pelo qual se nega a
negação conservando o que fora negado. Isso implica na permanência e na continuidade do elemento inicialmente
negado: ele não é extinto nesse processo de superação, mas elevado a um nível superior." (L. E. Motta. A Favor de
Althusser. pág. 30)

Achamos válida a crítica de Motta à forma lógica triádica da dialética hegeliana, bem como aos
conceitos de superação89 e negação da negação. Mas querer, com base nisso, colocar a dialética

89 Muito embora o uso conceitual de tais termos possa ser mais complicado do que se supõe. Há uma nota da tradução
brasileira de "A Ideologia Alemã", onde se definem os diferentes significados e a escolha do contexto de uso de
dois conceitos dialéticos: superação e suprassunção: "O verbo aufheben possui três sentidos principais: 1) levantar,
sustentar, erguer; 2) anular, abolir, destruir, revogar, cancelar, suspender, superar; 3) conservar, poupar, preservar
marxista dentro de uma forma diádica, de contradições antagônicas nas quais um dos polos deve
destruir o outro, para caracterizar o princípio destruidor que diferencia a dialética no marxismo, é
correr um risco muito alto, para dizer o mínimo, de empobrecer a dialética no sentido inverso ao
pretendido pelo conceito althusseriano de sobredeterminação. De tornar a dialética mecanicista e
fatalista. É jogar um peso excessivo nas formulações maoístas sobre a dialética e esquecer que, na
conjuntura dos seus escritos (de Mao), haviam muitas limitações que exigiam uma apresentação
talvez excessivamente didática sobre o tema. Uma dialética para camponeses.

Nessa altura, Althusser retoma, sem explicitar nominalmente, a analogia metodológica com
conceitos e procedimentos retirados da psicanálise, fazendo uso de noções tais como
"deslocamento", "condensação", e "ponto nodal". Esses usos se fazem para a fundamentação da
ideia de que, dentro de um todo complexo entendido como uma estrutura com dominante (a
determinação em última instância. Essa noção de estrutura com dominante será explicada no tópico
seguinte), o que se observa no processo histórico é um movimento de mudança de lugar entre as
contradições secundárias e a contradição principal - princípio do deslocamento -, assim como
momentos nos quais a contradição principal absorve uma quantidade maior de efeitos das
contradições secundárias, levando-a à beira do colapso e da explosão revolucionária -
princípio da condensação:

"...se essa distinção é essencial à prática e à teoria marxista - é que, observa Mao, ela é necessária para fazer face à
realidade concreta, à realidade da história que vivem os homens para tomar conhecimento de uma realidade onde reina a
identidade dos contrários, isto é: 1) a passagem, em condições determinadas, de um contrário para o lugar de outro, a
troca de papéis entre as contradições e seus aspectos (chamamos a esse fenômeno de substituição de deslocamento); 2)
a 'identidade dos contrários' em uma unidade real (chamaremos a esse fenômeno de 'fusão' a condensação). De fato, a
grande lição da prática é que, se a estrutura com dominante permanace constante, o emprego dos papéis muda: a
contradição principal torna-se secundária, uma contradição secundária toma o seu lugar, o aspecto principal torna-se
secundário, o aspecto secundário torna-se principal. Há sempre uma contradição principal e contradições

secundárias, contudo trocam de papel na estrutura com dominante que permanece estável."90

Dessa passagem decisiva e impactante podemos sistematizar a seguinte conclusão: a sociedade


histórica, em um determinado tempo e lugar, é um todo complexo, uma estrutura com

(cf. Michael Inwood, "Suprassunção", em Dicionário Hegel, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1997, p. 302). Marx, do
mesmo modo que Hegel (e Shiller), emprega comumente a palavra nas acepções 2 e 3 combinadas, mas também a
emprega, muitas vezes, simplesmente na segunda acepção, dando ênfase ao aspecto negativo da "superação".
Traduzimos aufheben, aufgehoben, Aufhebung por "superar, superado, superação" quando se trata da segunda
acepção, e por "suprassumir, suprassumido, suprassunção" quando é evidente se tratar de uma combinação da
segunda com a terceira acepção. (N.T.)" (Marx. A Ideologia Alemã. nota 10. pág. 548). A ambivelência no uso do
conceito de superação na Ideologia Alemã, que na tradução brasileira se desdobrou em dois, poderia ser um dos
temas para a Leitura Sintomal, como vimos.
90 ALTHUSSER, Louis. A Favor de Marx. ZAHAR Editores. 1979. Pág. 186. Negrito nosso.
dominante estável, e essa é a reafirmação do axioma marxiano da determinação em última
instância. Dentro dessa estrutura, contudo, existem múltiplas contradições, que atuam,
permanecem em estado passivo ou latente, desempenhando papéis formalmente distintos:
como contradição principal ou contradições secundárias, sendo que pode haver mudança na
incorporação desses papéis. O que equivale a dizer, portanto, que a contradição principal não
se resume a ser o equivalente da determinação em última instância (a contradição entre as
forças produtivas e as relações de produção). O impacto potencialmente explosivo dessa
conclusão em relação aos postulados mais convencionais da metodologia marxista será explicitado
no último tópico do presente capítulo.

Resta ainda, para terminar a caracterização das categorias da dialética marxista, uma última palavra
que vai nos permitir definir a função das noções de contradição antagônica e não antagônica:

"...essa contradição principal produzida por deslocamento só se torna 'decisiva', explosiva, por condensação (por
'fusão'). Ela é que constitui esse 'elo decisivo', que é preciso apreender e trazer para o nosso lado na luta política, como
diz Lênin (ou na prática teórica...) para que toda a cadeia venha, ou empregando uma imagem menos linear, é ela que

ocupa a posição nodal estratégica, que é preciso atacar para 'desmembrar a unidade' existente".91

A contradição principal, portanto, pode ou não se tornar explosiva do ponto de vista revolucionário,
dependendo do acúmulo de efeitos de condensação. Quando isso acontece, temos diante de nós a
categoria da contradição antagônica. Além disso, a contradição principal assume o significado de
"ponto nodal estratégico", base metodológica para o desdobramento das contradições secundárias,
assim como, no sonho, para Freud, cada um dos seus elementos é um ponto nodal, resultado da
fusão de múltiplos pensamentos oníricos.

91 ALTHUSSER, Louis. A Favor de Marx. ZAHAR Editores. 1979. Pág. 186.


Capítulo III
Limitações e dificuldades no uso do conceito de sobredeterminação em Althusser

3.1. Monismo x pluralismo: a dialética entre a ordem e o caos


Como foi pontuado na explicação acima, Althusser postula uma descontinuidade radical - o corte
epistemológico - entre a dialética hegeliana e a marxista. Esse corte epistemológico é representado
principalmente pelo nosso conceito de sobredeterminação, epistemológicamente encarregado de
recusar a ideia de uma contradição simples operando todo o conjunto de fenômenos históricos que
estão presentes na vida de um povo, e de afirmar, em oposição, a autonomia relativa, a lógica
própria e a derivação de instâncias específicas para as diferentes formas e contradições que fazem
parte da estrutura e da superestrutura de uma sociedade.

Ora, é evidente que essa mudança de conceituação sobre a contradição e a determinação na dialética
deve acarretar um profundo dilema para a instância designada como contradição fundamental ou
determinação em última instância. De acordo com a contextualização feita por Walter J.
Evangelista, no seu estudo histórico-crítico já referido (Althusser; 2000), o questionamento a esse
dilema foi um dos principais motivos de contestação dos textos de Althusser por intelectuais
comunistas ligados ao PCF. No entendimento convencional que havia sobre essa matéria, as formas
da superestrutura eram reconhecidas e admitidas como tendo uma eficácia própria, em que a
contradição fundamental fazia o papel de determinar diretamente as suas formas e a sua lógica de
funcionamento, e, indiretamente, as suas instâncias concretas de existência. A dialética marxista,
nessa modalidade, tal como a dialética hegeliana, faziam parte de uma filosofia que se pode
designar como monista. Pelo entendimento de Althusser, no entanto, a eficácia própria é
substituída pela ideia de autonomia relativa, ou seja, as formas e contradições da superestrutura
existem em razão de outras determinações além da contradição fundamental, e são, portanto,
regidas por outras lógicas além daquela determinada pela contradição fundamental. A dialética,
nesse caso, deixa de ser uma filosofia monista e passa a ser uma filosofia pluralista92.

Luiz Eduardo Motta, no seu livro já indicado "A Favor de Althusser", é um dos que se posicionam
no sentido de afirmar o valor da formulação althusseriana em quebrar com o monismo, identificado
com as formas mais reducionistas do determinismo. Assim, por exemplo, a seguinte passagem:

"A introdução desses conceitos servia para a compreensão da Revolução Russa...e rompia com o viés reducionista
econômico, ou concepção monista, haja vista que essa concepção operaciona exclusivamente com a contradição entre as

92 Para um maior detalhamento dos termos usados nesse debate em torno dos textos de Althusser, ver o estudo de
Walter J. Evangelista no livro citado (Althusser; 2000, pág. 24-25).
relações de produção e forças produtivas, como a única determinante às demais instâncias do modo de produção. Ao
incluir a teoria de Mao sobre o conceito de contradição, Althusser rompe criticamente com a concepção
monista/redutora ao definir a existência de uma multiplicidade de contradições, e que a partir da fusão delas, numa dada
conjuntura de uma formação social, possibilitaria a explosão revolucionária." (MOTTA. A Favor de Althusser. pág. 52)

Essa mudança implica como resultado, no mínimo, uma perda de importância epistemológica
relativa do papel operativo atribuído à contradição fundamental, muito embora, de alguma forma,
esse papel continue existindo (de que forma é o dilema que temos presente). O fato é que ele deixa
de existir como o operador exclusivo, ou o único que importa desvelar, na análise dos
acontecimentos históricos, tendo de conviver, nessa função operativa, com outras determinações.
Nesse sentido, Althusser aponta mais o caminho de uma pesquisa em aberto do que uma resposta
que pretenda fazer sumir esse dilema:

"Não há dúvida de que essas relações específicas entre a estrutura e a superestrutura ainda merecem uma elaboração e
pesquisas teóricas. No entanto, Marx nos dá muito bem as 'duas pontas da cadeia', e nos diz que entre elas é que é
preciso buscar...: de um lado a determinação em última instância pelo modo de produção (econômica); do outro, a
autonomia relativa das superestruturas e a sua eficácia específica."93

O artigo de Althusser intitulado "Sobre a Dialética Materialista", publicado em "A Favor de Marx",
se explica em linhas gerais como uma resposta de Althusser para reafirmar as teses do seu artigo
anterior ("Contradição e Sobredeterminação"), e também para refutar as críticas que lhe foram
dirigidas às ideias que se vinculam ao conceito de sobredeterminação94. Essas críticas são
explicitadas na reação de Althusser às acusações de "pluralismo", "hiperempirismo", "teoria dos
fatores", nos quais, segundo seus críticos marxistas, Althusser teria incorrido ao elevar,
equivocadamente, a análise histórica empreendida por Lênin sobre o acontecimento da Revolução
Russa, ao status de formulação teórica de categorias e procedimentos metodológicos da dialética.
Althusser recusa essa crítica:

"Esses textos de Lênin não tem, de fato, o sentido de uma simples descrição de uma situação dada, de uma enumeração
empírica de elementos diversos, paradoxais ou excepcionais: tem, ao contrário, o sentido de uma análise de alcance
teórico."95

Para além dessa reafirmação de suas teses anteriores, Althusser também procede a um reforço que
muda um pouco os termos utilizados para a sua argumentação sobre a sobredeterminação. Afirma,
nesse novo momento, que a unidade estruturada de uma sociedade histórica, embora carregada de
93 ALTHUSSER, Louis. A Favor de Marx. ZAHAR Editores. 1979. Pág. 97.
94 Althusser cita como seus críticos, no início desse artigo: Guy Besse, em La Pensée, Fevereiro de 1963; R. Garaudy,
em Cahiers du communisme, Março de 1963; e G. Mury, em La Pensée, Abril de 1963.
95 ALTHUSSER, Louis. A Favor de Marx. ZAHAR Editores. 1979. Pág. 154.
múltiplas contradições e determinações divergentes e convergentes, é uma estrutura que possui um
fator dominante, uma contradição principal que domina e subordina todas as outras (a mudança de
terminologia reside principalmente aqui: na ideia de uma estrutura com dominante):

"A dominação não é um simples fato indiferente, é um fato essencial à própria complexidade. É por isso que a
complexidade implica a dominação como essencial a si: faz parte da sua estrutura...É afirmar que o todo complexo
possui a unidade de uma estrutura articulada com dominante."96

O problema é que, como foi visto no tópico acima, o tiro acaba saindo pela culatra: na hora de
definir uma estrutura com dominante, ao desenvolver o significado das novas categorias da dialética
marxista, Althusser acaba postulando uma divergência de identidade entre a contradição principal e
a determinação em última instância, o que mantém em aberto a possibilidade de uma forte limitação
epistemológica dessa última.

Sendo assim, podemos chegar à seguinte conclusão provisória: nomear a contradição


fundamental, ou a determinação em última instância, significa dizer, aqui, que ela está
presente e operante em todas as formas e contradições que fazem parte da estrutura e
superestrutura de uma sociedade. No entanto, ainda não é o suficiente para o trabalho
metodológico. Quando dizemos que essas outras formas e contradições possuem autonomia
relativa, uma lógica própria e instâncias derivadas que não são redutíveis à contradição
fundamental de uma formação social, indicamos que, para cada uma delas, deve-se descobrir
e fixar as outras determinações que estão operando. Até que ponto a contradição fundamental
predomina ou está subordinada em uma forma ou contradição da superestrutura, é um dado
que deve ser produzido pela análise crítica de cada acontecimento histórico.

3.2. O exílio interno provocado pelo fechar-se em um círculo hermenêutico, ou o milagre da


partenogênese
Já nos referimos ao livro de E. P. Thompson, "A miséria da teoria", que empreende uma crítica
muito contundente a diversos dos temas elaborados por Althusser e seus discípulos. É uma crítica
carregada de ressentimento, indignação e revolta pois o autor, classificando-se dentro da categoria
dos historiadores marxistas, se sente, como tal, diretamente atacado por determinados postulados
althusserianos, contra os quais o seu livro é, ao mesmo tempo, uma defesa do estatuto científico da
historiografia e da pesquisa empírica e, também, um ataque ao que define como investida
imperialista de um certo tipo de filosofia que não sabe se conter dentro dos seus limites. É esse
sentimento de sentir-se agredido e querer revidar que explica, em boa medida, o modo como

96 ALTHUSSER, Louis. A Favor de Marx. ZAHAR Editores. 1979. Pág. 177-178.


Thompsom chama o "estruturalismo althusseriano", ou seja, uma "aparição fantasmagórica", um
"monstro intelectual", que não desaparecerá, como poderiam acreditar certos historiadores
marxistas, com um simples fechar de olhos, ao modo de crianças pequenas obrigadas a dormir num
quarto escuro, ou então com um negligente dar de ombros (Thompson. A miséria da teoria. pág. 10).
Também ajuda a explicar a completa falta de interesse do crítico em querer reconhecer méritos e
virtudes nos escritos de Althusser, "Pois Althusser nunca se dispôs a qualquer tipo de compromisso
e certamente não com o "historicismo", o "humanismo" e o "empirismo."" (Thompson. ob. cit. pág.
11). Essa postura é interessante por aquilo que faz representar, uma guerra de vida ou de morte
entre, de um lado, a historiografia, que se alimenta de métodos de pesquisa empírica, e, do outro, a
modalidade de filosofia que produz teoricamente com base em outras produções teóricas. Na leitura
de Thompson, vemos a primeira sendo assediada e dominada pela segunda, a pretensão imperialista
de subordinação sendo executada pela filosofia sobre a historiografia, e esta, por sua vez, recusando
aceitar esse papel servil. Dessa disputa resultou, no livro de Thompson, entre as suas diversas
batalhas conflitivas, uma crítica de Althusser que nos parece das mais pertinentes.

Essa crítica diz respeito ao que já foi exposto no primeiro capítulo da presente dissertação, sobre a
diferença construída por Althusser, com base nos textos metodológicos de Marx, entre o objeto real
e o objeto de conhecimento. Já mostramos como essa diferença, tal como a formula Althusser,
serviu de ponto de apoio para a crítica, ao nosso ver parcialmente equivocada, que enxergou um
suposto descolamento radical entre os dois objetos, correndo como duas paralelas em um espaço
plano, sem nenhum ponto de correspondência. Thompson vai se servir dessa crítica também para
jogar luz em uma grave limitação e dificuldade epistemológica que está presente em um dos
desdobramentos mais importantes da teoria da diferença dos objetos: a teoria da prática teórica.

Em seu artigo já citado "Sobre a dialética materialista", presente em "A favor de Marx", Althusser
faz um esforço para sintetizar a sua teoria da prática teórica formulando uma concepção dessa
prática que compreende uma hierarquia composta por três momentos ou instâncias: Generalidades
I (G I), Generalidades II (G II), e Generalidades III (G III).

As G I97 representam aquilo que, em Marx, vai ser chamado de concreto representado, e que
Althusser vai definir fazendo uso do conceito econômico de matéria-prima da produção teórica, ou
seja, o concreto ou o real já elaborados conceitualmente, mas ainda num nível muito primário, por
meio de procedimentos de abstração que Althusser vai definir como empiristas, e que estão em

97 "Os efeitos de conhecimento chegam, na forma de "matérias-primas" (Generalidades I, que já são artefatos da
cultura, com maior ou menor impureza ideológica), obedientemente como "o discurso científico da prova" exige."
(Thompson. ob. cit. pág. 14)
maior ou menor medida ainda carregados de formas e conteúdos ideológicos. É aí que se encontra,
por exemplo, a Economia Política, bem como o que vai ser chamado em Althusser por historicismo
(e que Thompson entende como sendo todo o campo da pesquisa histórica baseada em métodos de
pesquisa empírica, incluindo aí toda a tradição da historiografia que até então tem se orientado pelos
postulados do materialismo histórico). Entende-se o motivo da irritação e da revolta de Thompson,
que, como historiador, se vê jogado ao nível de G I, de produção conceitual do concreto
contaminada por impurezas ideológicas.

As G II representam, por sua vez, o que em Marx vai ser definido como método de pesquisa, e em
Althusser como trabalho ou produção teórica, o processo epistemológico de depuração ideológica
e de apuração conceitual dos materiais recebidos em G I. Aqui entraria, por exemplo, o método de
leitura extrativa de Marx para a crítica da economia política e os procedimentos de Leitura
Sintomal, tal como definidos por Althusser, muito embora, como é lembrado por Thompson, as
dificuldades acarretadas pela reflexão sobre os procedimentos metodológicos em G II ficam sem
exame mais detalhado em Althusser, que se contenta com as indicações apenas "esquemáticas"
(Thompson. ob. cit. pág. 19). A própria obra de Marx não escapa a esse esquema, entrando,
também, em certa medida pelo menos, como objeto nas G I, o que faz com que Thompson lance
sobre Althusser a condenação de querer ser mais marxista do que o próprio Marx:

"É tarefa de Althusser realçar o conhecimento que ele tem de si mesmo, bem como rejeitar várias impurezas ideológicas
que cresceram nos silêncios de seus interstícios. Assim, um conhecimento dado (a obra de Marx) conforma os
procedimentos de Althusser em cada um dos três níveis de sua hierarquia: a obra de Marx chega como "matéria-prima"
- por mais elaborada que seja - em G I; é interrogada e processada (G II) de acordo com princípios de "ciência"
derivados de seus aperçus maduros, suposições tácitas, metodologias implícitas, etc.; e o resultado é confirmar e
reforçar o conhecimento concreto (G III) que as partes aprovadas da obra de Marx já anunciam." (Thompson. ob. cit.
pág. 21)

G III, por fim, o concreto pensado, o conhecimento científico depurado de conteúdos e formas
ideológicas, o fim ao qual se chega por meio da prática teórica.

O que Thompson vai criticar nesse esquema hierárquico de três momentos ou instâncias é o erro de
pretender identificar, de forma exclusiva, um determinado procedimento específico de pesquisa
acadêmica em filosofia - a exegese de textos teóricos - com o método de produção do conhecimento
científico em geral. Thompson vai dizer que Althusser comete a impostura de alavancar o seu
método específico de trabalho acadêmico ao nível de forma universal do processo de produção do
conhecimento científico:
"...está agora nos limites da École Normale Supérieure. Os dados chegaram, obedientemente processados por graduados
e por assistentes de pesquisa, num nível bastante inferior de desenvolvimento conceitual (G I), foram interrogados e
separados em categorias por um rigoroso seminário de professores aspirantes (G II), e os G III estão na iminência de
subir à tribuna e propor as conclusões do conhecimento concreto." (Thompson. ob. cit. pág. 16)

Mas essa suposta impostura, de querer universalizar e tornar exclusiva uma forma muito particular
do método de trabalho científico, não é ainda, por si mesma, o erro mais grave cometido por
Althusser. O problema maior, derivado desse erro, é o de excluir dos procedimentos metodológicos
implicados na produção de conhecimento científico, dos modos da pesquisa e da demonstração, as
formas da pesquisa empírica, os dados do conhecimento histórico empírico. Thompson nos diz que,
por conta disso, Althusser confunde as formas de pesquisa empírica com a corrente ideológica e
equivocada do empirismo:

"...mesmo um espírito destituído de rigor filosófico não deixará de perceber que Althusser continuamente confunde e
combina o modo (ou técnicas) empírico de investigação com a formação ideológica, inteiramente diferente, o
empirismo, e, além do mais, simplifica suas próprias polêmicas caricaturando até mesmo esse "empirismo" e
atribuindo-lhe, indiscriminada e erroneamente, processos "essencialistas" de abstração." (Thompson. ob. cit. pág. 14)

Por esse motivo, segundo Thompson, Althusser, ao excluir as formas da pesquisa e da comprovação
empírica dos processos de demonstração e validação do conhecimento científico, que ficam
relegadas a G I, onde permanecem contaminadas de formas e conteúdos ideológicos, produz uma
forma de círculo hermenêutico que o prende em um tipo de exílio interno 98, ou seja, os
procedimentos teóricos e formais rigorosos da leitura exegética em filosofia se convertem em
suficientes e exclusivos para fazer a prova e a demonstração do conhecimento científico verdadeiro,
depurado de ideologia. Os critérios de validação teórica da teoria que operam internamente estão
dados, por sua vez, pelos conceitos e categorias do método marxiano, depois de terem sido
depurados e formalizados em G II. A partir daí, a teoria postula critérios exclusivamente teóricos de
validação do conhecimento científico, que é Teoria (G III) produzida sobre teoria (G I), por meio da
teoria (G II):

"Não parece necessário insistir em que esse procedimento é totalmente autoconfirmador. Ele se movimenta dentro do
círculo não só de sua própria problemática, mas também de procedimentos autoperpetuadores e auto-elaboradores. Esta
é (aos olhos de Althusser e seus seguidores) exatamente a virtude dessa prática teórica. É um sistema fechado dentro do
qual os conceitos circulam interminavelmente, reconhecem-se e interrogam-se mutuamente, e a intensidade de sua
repetitiva vida introversiva é erroneamente tomada por uma "ciência"." (Thompson. ob. cit. pág. 21)

98 Sobre o exílio interno, ver: Thompson. Miséria da Teoria. pág. 4.


É desse modo que Thompson faz a sua crítica em relação à condenação althusseriana da
historiografia e de todas as modalidades de pesquisa empírica a G I, mera matéria-prima para o
trabalho filosófico, sem valor científico próprio. Essa crítica é também o apontamento da ausência
de um procedimento metodológico de controle, validação e demonstração das teorias sobre o real
produzidas pelo processo de pensamento, do objeto de conhecimento, que deveriam cuidar de certas
modalidades de estudo empírico sobre o objeto real, tal como o pretende a historiografia marxista
que, segundo Thompson, cumpre um papel fundamental não só para a validação e demonstração de
teses teóricas, mas também para a produção de conhecimentos científicos depurados de ideologia.
E, nessa linha, se justifica a falta indicada por Thompson, na epistemologia althusseriana, da
categoria de "experiência", que seria capaz de construir essa ponte entre a pesquisa empírica e a
elaboração teórica do objeto de conhecimento.

Consideramos essa crítica de Thompson contra Althusser de grande valor e importância


epistemológica. Sem dúvida, ele consegue identificar, com muita clareza e argúcia, uma tendência
lógica possível e nefasta dentro da proposta epistemológica do marxismo althusseriano, ou seja, a
possível tendência a reduzir stricto sensu a posição que, no texto marxiano, é formulada como
"concreto de pensamento", "síntese de múltiplas determinações" - movimento do abstrato para o
concreto - , em suma, a ordem lógica das categorias determinantes de uma formação social (o objeto
do conhecimento) em uma coisa radicalmente distinta do objeto real - a ordem histórica de
constituição, organização e operação das categorias de determinação 99. Althusser, de fato, caminha
muitas vezes no sentido de um reducionismo que, em última instância, acabaria por jogar o objeto
real em um plano metafísico do incognoscível100, fazendo do processo de conhecimento científico
um processo puramente teórico, de Teoria trabalhando sobre teoria (representações ideológicas) 101.
Essa tendência pode ser caracterizada como uma forma de reducionismo pois, ao nosso ver, embora
esteja fundamentada na exploração de uma das possibilidades lógicas de entendimento de certas
formulações em Marx, também nos deparamos, nos escritos marxianos, em diversos momentos,
com ocasiões nas quais Marx nos deixa ver que sempre admitiu a possibilidade de um

99 Como dissemos no primeiro capítulo, essa é também a crítica de Giannotti, do ponto de vista formal. Em relação ao
conteúdo, porém, Thompson nos parece muito mais pertinente e justificado, pois não deseja, como o filósofo
brasileiro, produzir uma identidade absoluta do objeto real com o objeto do conhecimento por meio do conceito de
ontologia, mas sim garantir e legitimar a pesquisa empírica como uma instância de controle, teste e demonstração
do objeto do conhecimento (a teoria) pelo objeto real (a experiência).
100 "A "cesura epistemológica", com Althusser, é uma cesura com o autoconhecimento disciplinado e um salto na
autogeração do "conhecimento", de acordo com seus próprios procedimentos teóricos, isto é, um salto para fora do
conhecimento e para dentro da teologia." (Tompson. ob. cit. pág. 43)
101 Como também o vimos já no primeiro capítulo, a possibilidade dessa tendência reducionista do conhecimento a
procedimentos puramente teóricos, é dada pelo próprio texto marxiano, na medida em que afirma o conhecimento
científico como o resultado do caminho que vai do abstrato para o concreto pensado, e que faz do concreto
representado o ponto de partida do processo de pensamento. É aí que se insere a possibilidade da problemática
kantiana, à qual também nos referimos.
conhecimento historiográfico e empírico com validade científica. Basta citar, como exemplos, obras
de conteúdo principalmente historiográfico tais como "O 18 de Brumário de Luis Bonaparte" e
"Guerra Civil em França", assim como, dentro da própria crítica da economia política, obra teórica
da maturidade por excelência, capítulos tais como "A Jornada de Trabalho", ou "A Acumulação |
Primitiva", do Livro I de "O Capital".

A crítica de Thompson pode nos servir portanto, nesse ponto em particular, como um dispositivo de
controle epistemológico, que impediria de cair no risco de levar às últimas consequências
determinados desdobramentos althusserianos decorrentes da diferença que se deve construir entre o
objeto real e o objeto do conhecimento. O que não precisamos, no entanto, é fazer como ele e
querer jogar na lata de lixo da história do marxismo a teoria de Althusser por inteiro 102. Inclusive
pelo motivo de que, justamente no meio do caminho que conduz o althusserianismo na direção
daquele reducionismo epistemológico, eis que surge o nosso conceito de sobredeterminação, o
elemento que faz do espaço plano a teoria um espaço curvo, e que representa um dos momentos
possíveis de encontro entre as duas paralelas, a do objeto real e do objeto de conhecimento. E
quando isso acontece o que se descortina é todo um conjunto de sinais e evidências de mudança
qualitativa na produção do discurso teórico e metodológico. O texto de Althusser, normalmente tão
rigoroso em se manter apegado às regiões mais elevadas e áridas da formulação de conceitos e
categorias, tão distante das formas mais empíricas do discurso, quando vai justificar o conceito que,
do seu ponto de vista, é o maior responsável por produzir o corte epistemológico da dialética de
Marx em relação à de Hegel, desce do seu vôo nas alturas, por assim dizer, e passa a caminhar pelo
chão da história, fazendo uso da leitura leninista das diversas contradições que estiveram implicadas
no acontecimento da revolução russa de 1917, e jogando um peso epistemológico muito grande nas
análises de conjuntura nacional e internacional, e em todas as novas categorias que devem
conformar a novidade da dialética marxista, demandantes de preenchimento por conteúdo histórico
concreto para poderem agir como formas lógicas operativas - contradição principal e contradições
secundárias, aspecto principal e aspectos secundários de cada contradição, desenvolvimento
desigual das contradições, etc... - formas essas que, por si mesmas, sem nenhum conteúdo histórico
concreto (ou sem conteúdo empírico, para falar com Thompson), de nada serviriam. A própria
necessidade de falar de contradições, e não de determinações, como já indicamos no primeiro
capítulo, evidencia que, aqui, ao se falar do conceito de sobredeterminação, estamos falando de
processos históricos concretos, e não de funcionamentos lógicos de categorias pura e
exclusivamente.

102 "Vimos que a rachadura central, que percorre todo o pensamento de Althusser é uma confusão entre os
procedimentos empíricos, controles empíricos, e algo que ele chama de "empirismo". Essa rachadura invalida não
uma ou outra parte de seu pensamento, mas o pensamento como um todo." (Thompson. ob. cit. pág. 42)
O conceito de sobredeterminação promove, portanto, o inusitado encontro de Althusser com a
história concreta, com o objeto real, e evita, pelo menos aqui, a última consequência do
reducionismo teórico da epistemologia da partenogênese, que é a da produção teórica (método de
pesquisa) sobre produção teórica (concreto representado, ideologicamente contaminado) que produz
Teoria (concreto pensado)...O conceito de sobredeterminação salva Althusser desse impasse.

3.3. O lugar de uma ausência


Em Marx, dificilmente encontramos em alguma passagem da sua vasta produção teórica uma
situação que poderia, de alguma forma, problematizar a teoria interpretativa do materialismo
histórico ou da dialética, seja no sentido de evidenciar algum modo de contradição entre o objeto
real e as proposições teóricas, seja no sentido de indicar alguma insuficiência da teoria diante de
determinadas contradições e aspectos do objeto de conhecimento. Há entretanto, em Marx, uma
dessas raras ocasiões em que se reconhece a dificuldade explicativa posta para a sua teoria
interpretativa, e é muito interessante para nós, nesse momento, ver de que modo Marx aponta um
caminho para a resolução de tal dificuldade.

Vamos voltar agora os nossos olhos para o último tópico da "Introdução à Crítica da Economia
Política", que é o que vem na sequência do que fala sobre "O método da economia política", e que
se intitula como: "4) Produção. Meios de produção e relações de produção. Relações de produção e
relações de intercâmbio. Formas de Estado e de consciência em relação às relações de produção e
de intercâmbio. Relações jurídicas. Relações familiares" (Marx. Grundrisse. pág. 61). Esse tópico
vai tratar, de um modo muito indicativo e sumário, de algumas importantes dificuldades que se
colocam para o estudo da história e das formações sociais do ponto de vista da formulação marxiana
do materialismo histórico, que, como vimos no primeiro capítulo, é regido pela lógica da
determinação econômica. Assim, por exemplo, a relação de desigualdade no desenvolvimento entre
determinados momentos das forças produtivas e determinadas formas jurídicas (o caso do direito
privado romano em relação à sociedade burguesa). Também, alguns comentários um pouco mais
elaborados sobre a relação de desigualdade no desenvolvimento entre o nível de desenvolvimento
das forças produtivas de uma determinada sociedade e o desenvolvimento de certas formas de
produção artística. São esses comentários que se fazem interessantes para nós.

Tais comentários se desdobram em dois momentos. No primeiro, reflete-se sobre o fato de que
determinadas formas artísticas, como a epopéia na antiguidade clássica, que é utilizada como
exemplo, só são capazes de surgir, se desenvolver e alcançar pleno vigor no contexto de uma
formação social que, de modo geral, ainda está pouco desenvolvida do ponto de vista das suas
forças produtivas materiais. Isso pode significar a aparente contradição que se pode estabelecer
entre uma forma artística altamente desenvolvida sobre uma base material e produtiva ainda muito
pobre. Mas, como diz Marx em relação à esse aspecto da questão, "A dificuldade consiste
simplesmente na compreensão geral dessas contradições. Tão logo são especificadas, são
explicadas." (Marx. Grundrisse. pg. 63). Ou seja, a teoria do materialismo histórico não enfrenta
nenhum grande problema para produzir a explicação:

"Sabe-se que a mitologia grega foi não apenas o arsenal da arte grega, mas seu solo. A concepção da natureza e das
relações sociais, que é a base da imaginação grega e, por isso, da [mitologia] grega, é possível com máquinas de fiar
automáticas, ferrovias, locomotivas e telégrafos elétricos? Como fica Vulcano diante de Roberts et Co., Júpiter diante
do para-raios e Hermes diante do Crédit Mobilier? Toda mitologia supera, domina e plasma as forças da natureza na
imaginação e pela imaginação; desaparece, por conseguinte, com o domínio efetivo daquelas forças." (Marx.
Grundrisse. pg. 63)

Mas há ainda um segundo momento na argumentação da dificuldade que referimos. Aqui se coloca
a seguinte questão: por qual motivo tais formas de arte, que com o fim da hegemonia cultural
orgânica da mitologia se tornaram impossíveis, que não mais correspondem ao estágio atual do
desenvolvimento das forças produtivas, ainda são capazes de proporcionar prazer artístico, e de
serem representadas e admitidas como "norma e modelo inalcançável"? Vejamos a explicação
esboçada por Marx:

"Um homem não pode voltar a ser criança sem tornar-se infantil. Mas não o deleita a ingenuidade da criança, e não tem
ele próprio novamente que aspirar a reproduzir a sua verdade em um nível superior? Não revive cada época, na natureza
infantil, o seu próprio caráter em sua verdade natural? Por que a infância histórica da humanidade, ali onde revela-se de
modo mais belo, não deveria exercer um eterno encanto como um estágio que não volta jamais? Há crianças mal-
educadas e crianças precoces. Muitos dos povos antigos pertencem a esta categoria. Os gregos foram crianças normais.
O encanto de sua arte, para nós, não está em contradição com o estágio social não desenvolvido em que cresceu. Ao
contrário, é seu resultado e está indissoluvelmente ligado ao fato de que as condições sociais imaturas sob as quais
nasceu, e somente das quais poderia nascer, não podem retornar jamais." (Marx. Grundrisse. pg. 63-64)

Ao nosso ver, essa passagem é extraordináriamente significativa pois evidencia, no texto de Marx,
uma possibilidade única para o reconhecimento de uma insuficiência teórica que está presente na
forma original da sua teoria da história, regida pela lógica da determinação econômica. E se esta
teoria, em relação a essa questão, não dá conta de produzir uma explicação satisfatória, qual é,
então, a indicação que Marx faz de um outro modelo teórico que ajudaria a nos dar uma resposta? É
a indicação de um modelo explicativo de conteúdo psicológico! Aqui se procede a uma analogia
entre a relação de uma sociedade moderna com uma sociedade antiga, de um lado, e a relação de
um homem adulto com sua infância, por outro. É o encanto, o prazer e a satisfação de se recordar e
reviver a infância nas suas formas mais belas, nos seus melhores momentos; é a nostalgia de se
reviver, mais uma vez, um tempo que está condenado a nunca mais voltar, um tempo perdido para
todo o sempre. O extraordinário nisso é também, entre outras coisas, que, olhando para a história da
pesquisa e da produção teórica de Marx, não há nada que nos possa indicar que ele tenha se
dedicado em alguma profundidade ao estudo da psicologia, que pudesse, de alguma forma, justificar
e fundamentar o uso de explicações psicológicas para a resolução de dificuldades enfrentadas pela
teoria do materialismo histórico. Essa explicação psicológica utilizada por Marx pode ser, portanto,
caracterizada como intuitiva e diletante103, efeito que causa um contraste radical com a sua forma
normal de proceder em relação ao seu objeto de conhecimento.

É claro que não podemos exagerar no uso dessas explicações dadas por Marx. Sabemos que o texto
da "Introdução à crítica da economia política" foi suprimido do plano de publicação ao qual se
destinava originalmente, da "Contribuição à crítica da economia política". E que muitas de suas
notas não passam de indicativos e apontamentos de questões que ficaram por ser resolvidas
teoricamente, com mais aprofundamento. Mas é justamente no indicativo e no apontamento dessas
questões, dessas dificuldades epistemológicas para a teoria da história de Marx, daquilo que a
poderia complementar como teoria explicativa, que reside o nosso interesse, não tanto pelo que diz,
mas, sobretudo, pelo que deixa de dizer. Pois pensamos que, nesse ponto onde aparece uma
explicação psicológica para dar conta de uma dificuldade teórica relacionada com o uso da teoria da
determinação econômica, poderia ter surgido o uso de alguma ideia, de alguma forma daquilo que
hoje designamos como sendo a sobredeterminação ou a autonomia relativa das estruturas que fazem
parte da superestrutura. Que essas ideias estivessem presentes e acessíveis no horizonte teórico e
epistemológico de Marx já nos foi devidamente evidenciado por diversos pronunciamentos de
Engels, que já reproduzimos na presente dissertação, e que se referem a noções tais como
"determinação em última instância" e autonomia relativa das estruturas (a carta de Engels a Bloch.
Ver a esse respeito, como já indicamos: Althusser. A favor de Marx. pg. 103-104). Que problema
colocado como tal pelo próprio Marx, o da contradição entre a formação social moderna com o
prazer artístico que ainda se pode sentir com formas artísticas determinadas pela formação social da
antiguidade, poderia ser mais pertinente e adequado para se pensar a questão fundamental da
103 A qualidade de "diletante" à qual nos referimos aqui se orienta pelo significado sociológico dado por Weber a esse
conceito, e que o diferencia do "especialista": "Cientificamente, a ideia de um diletante pode ter a mesma
influência, ou ainda maior, para a ciencia que a ideia de um especialista. Muitas de nossas melhores hipóteses e
visões são devidas, precisamente, a diletantes. O diletante difere do perito...apenas porque lhe falta um processo de
trabalho firme e digno de confiança. Consequentemente, ele habitualmente não está em posição de controlar,
estimar ou explorar a ideia em seus aspectos fundamentais." (Weber. A ciência como vocação. In Ensaios de
Sociologia. pág. 161). O "diletantismo" em Marx, como deve ficar evidente, se refere exclusivamente ao que
caracterizamos aqui como "explicação psicológica" do problema que está em foco. O contraste reside justamente no
fato de que, via de regra, Marx deve ser caracterizado como um "especialista", e se preocupa muito com tal.
autonomia relativa? Não poderia ter sido este o apontamento para um estudo mais aprofundado em
uma outra oportunidade? O indicativo de uma possível solução que desse conta de uma limitação
evidenciada pela teoria da determinação econômica?

Podemos pensar que sim, pelas evidências e conhecimentos que hoje possuímos, sobre a
experiência de vida e o horizonte intelectual-cultural dentro do qual Marx se encontrava. Já
mencionamos a evidência fundamental dessa possibilidade em Engels, que anunciou explicitamente
noções tais como as de determinação em última instância e autonomia relativa das estruturas que se
influenciam recíprocamente. E, para além disso, imaginamos que seria uma coisa relativamente
simples para Marx, no contexto da Europa Ocidental do séc. XIX, interrogar em uma outra direção
a contradição que ele mesmo se encarregou de problematizar. Faremos nesse momento apenas um
ligeiro exercício de raciocinar nessa outra direção, não pelo gosto particular de especular sobre
como alguma coisa poderia ter sido mas não foi, e sim por outros dois motivos que julgamos
importantes: 1) que Marx não tenha esboçado ou apontado uma resposta na direção de se pensar os
limites da determinação econômica e a autonomia relativa de outras estruturas, pode siginificar, ao
nosso ver, o esforço de concentração que era por ele despendido desde que iniciou os seus trabalhos
de crítica da economia política, ou seja, o esforço concentrado para fundamentar científicamente as
formas da determinação econômica, que eram ou deixadas de lado ou ideologicamente
distorcidas104. E, diante disso, considerando que tal esforço atingiu sua meta, e que as formas da
determinação econômica já estão estabelecidas em uma sólida base científica, já não se faz mais tão
perigoso e arriscado ampliar as margens do objeto de conhecimento para as formas da autonomia
relativa de outras estruturas; 2) Com as breves indicações que faremos a seguir, teremos uma base
mínima para fundamentar um último comentário crítico sobre Althusser, e que pode ser
caracterizado como uma limitação grave que afetou o desenvolvimento da teoria que se liga
diretamente ao conceito de sobredeterminação.

Façamos, portanto, um exercício de imaginação sociológica. Imaginemos que Marx poderia ter se
perguntado sobre o motivo pelo qual uma das formas da arte grega da antiguidade - a epopéia - e
Shakespeare, foram os exemplos pensados por ele para indicar a dificuldade que reside em um

104 É nesse sentido que Edmund Wilson procura explicar certas características da personalidade desenvolvida por
Marx: "É bem verdade que tinha um caráter dominador, uma personalidade arrogante, anormalmente desconfiada e
ciumenta; é bem verdade que era vingativo e tinha uma malignidade que nos parece gratuita. Mas, se essas
características de Marx nos repelem, devemos lembrar que dificilmente uma pessoa polida e simpática poderia ter
realizado a tarefa que Marx estava destinado a cumprir: uma tarefa que exigia a fortitude necessária para repelir ou
romper todos aqueles vínculos que, por nos envolverem na vida geral da sociedade, limitam nossa visão e nos
desviam de nossos objetivos." (Wilson. Rumo à Estação Finlândia. pg. 148). Ou seja, naquele momento, relativizar
a teoria com as ideias de "determinação em última instância" e "autonomia relativa da superestrutura" poderia
significar, de alguma forma, enfraquecer o empreendimento teórico de criticar todas as formas do idealismo e da
metafísica que dominavam o cenário das teorias sobre o processo histórico.
homem da modernidade ainda sentir prazer artístico com o seu consumo, e os tomar por modelo e
ideal inatingíveis. Perguntar-se-ia, então: por quais motivos não outras formas artísticas que
recuariam ainda mais no tempo - a pintura rupestre, por exemplo - ou que se derramariam mais no
espaço geográfico - como, por exemplo, algumas das formas da arte antiga chinesa ou da arte
indígena americana pré-colombiana? Essa pergunta poderia remeter ao problema da referência
cultural etnocêntrica, tão poderosa e determinante quando pensamos na história da Europa
Ocidental, e permitiria problematizar a razão pela qual sentimos prazer estético e prestigiamos
como modelos determinadas formas artísticas em detrimento de outras.

Com essa problematização posta, encontraríamos imediatamente uma outra questão fundamental:
por meio de quais formas históricas e sociológicas se dá o processo de preservação e reprodução do
gosto e do ideal de determinadas formas artísticas e culturais? Tal questão poderia conduzir a uma
reflexão sobre a função da escola, da universidade, da família, da mídia e de outras instituições 105.
Por exemplo, para dialogar com o último ítem que aparece no título do último tópico do texto de
Marx para a "Introdução à Crítica da Economia Política" - "Relações familiares" - imaginemos que
Marx, que podemos caracterizar como oriundo de uma família de classe média ascendente,
esforçando-se por prosperar social e econômicamente 106, também teve a oportunidade de conhecer a
experiência de família proletária e aristocrática, seja diretamente ou também por meio da história e
da literatura. Poderia, pois, ter problematizado no sentido de pensar a desigualdade na relação que
se estabelece entre determinados tipos de família e determinadas formas artísticas e culturais numa
mesma época e lugar histórico - a formação social burguesa na europa do séc. XIX - , como formas
diversas de relação com a cultura e de acumulação de capital simbólico distintivo, mediadas pela
acumulação histórica familiar e pelo acesso e vivência de outras experiência de vida tais como a
escola, a universidade, os museus, etc., e de como esse processo de preservação e reprodução
cultural se associa ao processo de reprodução da estrutura de classes na sociedade burguesa.

Podemos citar dois exemplos dessa desigualdade de relação, relacionados diretamente com a
experiência ou o conhecimento de Marx. Mais uma vez, em Edmund Wilson:

105 Nada disso é novidade. Sabemos que, de uma forma ou de outra, esse caminho já foi muitas vezes percorrido (por
Gramsci e Bourdieu, apenas para citar alguns exemplos). O que nos interessa nesse momento é que ele não foi
indicado diretamente por Marx, nem desenvolvido por Althusser, no contexto da teorização do conceito de
sobredeterminação.
106 "Hirschel Marx era um livre-pensador kantiano, que deixara para trás o judaísmo e os judeus. Morando em Trier, na
fronteita entre a Alemanha e a França, em sua formação entrara tanto a filosofia germânica quanto Rousseau e
Voltaire. Sob a influência da Revolução Francesa, algumas das restrições impostas aos judeus haviam sido
atenuadas; assim, Hirschel pôde estudar direito e ter uma carreira de sucesso. Quando os prussianos expulsaram
Napoleão e mais uma vez tornou-se ilegal um judeu ocupar um cargo público, ele mudou o nome para Heinrich,
batizou toda a família e subiu até a posição de Justizrat, tornando-se chefe do tribunal de Trier." (Wilson. ob. cit.
pág. 110-111)
Os vizinhos da família Marx em Trier eram a família Von Westphalen. O barão Von Westphalen, embora fosse um
funcionário prussiano, era também um produto da civilização do séc. XVIII: seu pai fora secretário e homem de
confiança do Duque Ferdinand de Brunswick, homem liberal, amigo de Winckelmann e Voltaire, que lhe concedera um
título de nobreza. Ludwig von Westphalen lia sete línguas, amava Shakespeare e conhecia Homero de cor. Costumava
levar o jovem Karl Marx para passear com ele pelos vinhedos das encostas das margens do rio Mosela, e falar-lhe sobre
Saint-Simon..." (Wilson. ob. cit. pg. 111)

E, no capítulo sobre a "Jornada de Trabalho", em uma nota de rodapé:

"O grau de instrução dessas "forças de trabalho" deve ser naturalmente tal como se revela nos seguintes diálogos com
um dos comissários de inquérito. Jeremiah Haynes, de 12 anos de idade: "[...] quatro vezes quatro são oito, quatro
quartos...são 16 [...]. Um rei é aquele que tem todo o dinheiro e ouro...Temos um rei, dizem que ele é uma rainha,
chamam-na princesa Alexandra. Dizem que ela se casou com o filho da rainha. Uma princesa é um homem". William
Turner, 12 anos: "Não moro na Inglaterra. Acho que é um país, mas não sabia disso". John Morris, 14 anos: "Ouvi dizer
que Deus fez o mundo e que todo mundo se afogou, menos um; ouvi dizer que foi um passarinho". William Smith, 15
anos: "Deus fez o homem; o homem fez a mulher"...." (Marx. O Capital. pg. 332)

Experiências distintas que estavam, de forma direta ou indireta, ao alcance de Marx, e que faziam
com que, para a maior parte das crianças e adolescentes que estavam sendo engolidos pela
gigantesca máquina de produção fabril no séc. XIX, a epopéia grega e Shakespeare, se lhes fossem
algum dia apresentados, apenas inusitadamente seriam capazes de provocar prazer artístico e
reconhecimento como formas ideais e inalcançáveis. Não havia ensino e direção para tanto, como
no caso do jovem Marx.

Eis, portanto, aquilo que pensamos ser o lugar de uma ausência em Marx, a falta de um
apontamento no sentido de se pensar noções de autonomia relativa das superestruturas e da
determinação econômica em última instância, com mediação. E, mais uma vez, para retomar a ideia
fundamental que está regendo esse nosso raciocínio, e que está muito bem fundamentada em
Althusser, embora tais noções não estejam explicitadas formalmente nos textos sobre o método e a
teoria da história, podem ser inteligidas como existindo e operando práticamente em diversos
momentos da obra marxiana, principalmente os textos de narrativa histórica aos quais já nos
referimos. Mas, de um certo modo, por não estar explicitada e elaborada conceitualmente, essa
dificuldade pode ser entendida como uma limitação no texto marxiano, a qual Althusser, com o seu
conceito de sobredeterminação, poderia ter ajudado a resolver, mas não o fez.

A limitação epistemológica que ora temos em mente se refere a uma dificuldade presente na teoria
althusseriana que já foi pontuada no primeiro capítulo, ou seja, a confusão no uso, por inexistência
de uma diferenciação sistemática, de dois conceitos distintos que carregam em si a sua
específicidade, quais sejam, a determinação e a contradição. Essa é, sem nenhuma dúvida, uma
questão demasiado espinhosa e complexa para o estudo da dialética, inclusive pelo motivo de que,
se nosso objetivo nesse momento é pensar a diferença que delimita o significado de ambos os
conceitos, não podemos nunca perder de vista que entre ambos existe também uma identidade
fundamental. Caso contrário, não se estaria falando da dialética. Sendo assim, não se pretende aqui
aprofundar as possibilidades de desenvolvimento teórico sobre a relação entre esses dois conceitos
no que eles carregam de valor metodológico, mas tão somente delinear a forma básica de uma
diferença que é de suma importância para que se possa pensar em uma questão teórica chave que o
conceito de sobredeterminação não nos ajuda a avançar.

Coloquemo-nos, portanto, diante da seguinte questão: de que modo é possível pensar a diferença
epistemológica existente entre os conceitos de determinação e contradição? O que muito nos
ajuda a pensar essa diferença é a função epistemológica que cada um deles é chamado a
desempenhar dentro do contexto teórico dos textos marxianos sobre o método e sobre a teoria da
história, assim como os textos que usamos como referencias para fundamentar o entendimento
sobre a dialética em Marx, todos eles já indicados no primeiro capítulo. Sendo assim, podemos
dizer que o conceito de contradição surge e opera, nesses textos, como um princípio ou uma forma
de relação que se estabelece e se processa entre diferentes categorias da determinação. Por
exemplo, a contradição que se processa entre as forças produtivas e as relações de produção, o
capital em geral que é entendido como autocontradição em processo, a contradição que se opera
entre o capital constante e o capital variável, pela forma do aumento da composição orgânica do
capital, etc. O que temos aqui, portanto, é a inteligência da relação de contradição que se dá entre
diferentes categorias, cuja existência e entendimento estão pressupostos.

O que seria, então, pensado na sua diferença, o conceito de determinação? Ao nosso ver, seria o
conceito que implica na investigação e na exposição das formas da positividade das categorias,
ou, nas palavras já citadas de Marx, "as formas do ser, determinações da existência". São as
categorias que operam a determinação das formas no real, construídas pelo processo do
pensamento científico, e apresentadas pelo método da exposição, entendido tal qual está formulado
no primeiro capítulo. Por exemplo, se na análise da contradição está presente o conceito de relações
de produção, este pressupões, por sua vez, categorias de determinação, tais como as classes
sociais e todas as outras que estão pressupostas para fazer a determinação da existência das
classes sociais, tais como mercadoria, valor, dinheiro, mais valor, etc. E achamos válido supor
que, quanto mais simples e abstrata a categoria de determinação, menor a possibilidade de encontrar
uma relação interna de contradição. O conceito de valor, por exemplo, considerado de modo
isolado, de forma simples e abstrata, não carrega em si mesmo nenhuma contradição. A quantidade
e a gravidade das formas da contradição estão, portanto, diretamente relacionadas ao processo de
caminhar no sentido do abstrato para o concreto, no processo de produzir o concreto de
pensamento, ou o concreto como síntese de múltiplas determinações. Se relaciona, portanto, ao
método da exposição, a construção da forma científica por excelência, como já vimos, e que
pressupõe, portanto, o momento de elaboração das categorias da determinação, e o momento de
elaboração das relações entre essas diferentes categorias da determinação.

De modo que, para tentar sintetizar o que foi dito, a determinação trata das formas, dos processos e
da lógica interna das categorias da determinação do ser, e a contradição, por sua vez, da relação
externa que se processa entre as diferentes categorias como determinações do ser. A contradição
pressupõe a existência das categorias como determinações do ser, mas estas, por sua vez, não
implicam necessariamente em relações internas de contradição. Implicam sempre em se pensar as
formas da sua positividade. E, se o conceito althusseriano de sobredeterminação nos fala,
essencialmente, sobre os conceitos e as categorias da dialética entendida como ciência das
contradições, não nos ajuda, por sua vez, a falar sobre essa mesma dialética como ciência das
determinações. Caminhando na direção de se pensar isso de um modo mais concreto, embora o
conceito de sobredeterminação trabalhe com a ideia de autonomia relativa das estruturas, bem
como com a ideia de mudança na posição de cada uma das relações de contradição que se
processam entre as diferentes estruturas em uma dada conjuntura nacional e internacional, não
pensa, por sua vez, nas categorias que operam internamente para determinar a autonomia
relativa que se desenvolve dentro de cada uma das estruturas que entram no jogo das
contradições. É a mesma falta que quisemos indicar no caso específico da contradição formulada
por Marx em relação ao fato de que ainda sentimos prazer estético com uma forma de arte antiga,
que hoje já não é mais possível.

Vejamos um exemplo. Althusser, com o seu conceito de sobredeterminação, nos ajudaria a pensar,
entre outras possibilidades, na autonomia relativa que a estrutura jurídica pode chegar a desenvolver
em uma determinada sociedade. Também nos ajudaria a pensar como, em determinado contexto, a
contradição que se processa entre a estrutura jurídica e, por exemplo, a estrutura política, pode
chegar a ocupar a posição de contradição principal. E poderia, até mesmo, nos ajudar também a
pensar no aspecto principal da contradição que se processa, num determinado momento, dentro da
própria estrutura jurídica, pensando, por exemplo, nos interesses e nas formas da luta de classes que
aí se desenrolam. Mas nada disso significaria ainda a produção de um conhecimento sobre "as
formas de ser, determinações da existência" da autonomia relativa dessa estrutura jurídica, as
formas por meio das quais ela chegou a desenvolver essa autonomia relativa, a determinação da sua
positividade, a exposição das determinações mais simples e abstratas na direção da autonomia
relativa entendida como uma das formas do concreto pensado, síntese de múltiplas determinações,
do modo como o fez Marx em relação à economia da sociedade burguesa:

"O diagnóstico histórico do capitalismo enquanto sistema total (na sua pretensão) de apropriação da natureza e de
dominação social pela lógica de valorização, possibilita uma reconstrução categorial de uma ciência social, a economia
política, que preenche, metodicamente, a exigência de considerar apenas (exclusivamente e integralmente) "o
desenvolvimento do conceito de capital", isto é, de organizar sistematicamente, sem hipóteses exteriores a ele, todas
as categorias da economia política enquanto "determinidades formais econômicas", do capital e do seu movimento de
autovalorização." (Muller. Exposição e método dialético em "O Capital"". ob. cit. pg. 37. Grifo nosso)

No caso da estrutura jurídica, portanto, a tarefa epistemológica seria o pensar as "determinidades


formais jurídicas", as hipóteses interiores a essa estrutura, as categorias que devem produzir o
concreto pensado de sua estrutura como síntese de múltiplas determinações, tal como o fez Marx
com o estudo da economia política burguesa. Só assim, ao nosso ver, teríamos a produção de um
conhecimento científico sobre as bases lógicas que determinam a autonomia relativa que pode ser
pensada para cada estrutura que é indicada como parte relativa na cadeia da superestrutura.
Conclusão

Na introdução a este trabalho, foi proposta a seguinte questão orientadora das nossas reflexões: de
que forma, e em que pontos, Althusser, com o seu conceito de sobredeterminação, avança em
relação a Marx? Essa questão foi sendo retomada e respondida ao longo de toda a argumentação
que elaboramos nesse estudo, mas não deixa de ter importância retomar aqui, topicamente, algumas
de suas mais importantes conclusões. A mais ampla de todas talvez possa ser formulada como sendo
a experiência teórica que sentimos, ao tentar aprofundar nas características mais importantes do
referido conceito, de que ele é sempre, de algum modo, fugidio. É fugidio quando pretende
demarcar o ponto mais alto de um corte epistemológico que Althusser enxerga entre a dialética de
Marx e a de Hegel, pois, no processo de desempenhar essa função, o que vai nos aparecendo, na
verdade, é um conceito que está muito mais relacionado com o pensar de uma teoria do processo de
desenvolvimento histórico concreto, e não com a lógica de produção de um conhecimento
científico. Neste último caso, que é o tema por excelência da epistemologia, o conceito de
sobredeterminação não faria muito mais do que dar um novo nome a uma coisa já existente, ou
seja, ao que Marx chama de "concreto pensado", "síntese de múltiplas determinações". Não haveria
aí, portanto, nenhuma novidade. É fugidio também ao se esforçar por caracterizar a lógica operante
dentro da teoria marxista da história, pois quando pretendemos nos aprofundar no conhecimento dos
critérios e fundamentos específicos de uma filosofia ou sociologia que produz o conhecimento das
bases estruturantes de uma autonomia relativa de outras estruturas que não a econômica, o que
acontece é que caímos no vazio de uma não problematização de tal questão. O processo de
estruturação das autonomias relativas é um pressuposto que não se evidencia nem como tal.

Mas, é em relação a essa última questão que podemos notar uma diferença em comparação com
Marx. E, sendo diferença, pode ser caracterizada ou não como um avanço, do ponto de vista de
quem olha, daquilo que se espera ou se deseja de uma teoria. Nessa linha, Althusser quebra a ideia
de uma determinação simples pela estrutura econômica como princípio operante da lógica do
desenvolvimento dos processos históricos, ideia que nos pareceu ser a espinha dorsal da teoria da
história em Marx, e que, ele mesmo, jamais chegou a relativizar por meio de noções tais como
"determinação em última instância" (Engels) ou "autonomia relativa das superestruturas", como se
procurou demonstrar no nosso trabalho. Mas é verdade também que, como também já ficou dito, a
problematização de uma determinação econômica simples pode ser apreendida, principalmente, nos
textos de Marx com função mais historiográfica, nos quais, em diversas passagens, pode-se
enxergar a operação de uma complexidade na relação entre diferentes estruturas, lógicas e valores,
que se poderia caracterizar como processo de complexificação das relações de determinação na
teoria da história, ou aquilo que Althusser procurou evidenciar e sistematizar por meio do conceito
de sobredeterminação. A formulação de um conceito para evidenciar essa lógica, contudo, vai
acarretar no expressivo ganho de força epistemológica para uma categoria e um princípio de
conhecimento, que, em Marx, existem, no máximo, de modo embrionário ou latente: a categoria
"análise de conjuntura", ou o exercício epistemológico de mapear e trazer à luz as múltiplas
contradições e o modo como se relacionam em um determinando momento e lugar histórico. Esse é
um conhecimento do tipo que em pouco tempo decai, pois as mudanças de conjuntura tendem a
ocorrer com relativa rapidez; e o princípio da "impreditividade", que não é explicitado por
Althusser, mas pode ser deduzido logicamente, pois acaba por se tornar virtualmente impossível
prever onde, em que momento, por meio de qual tipo de processo as contradições vão se condensar
ao ponto tal que chegue a provocar uma explosão revolucionária. O próprio exemplo utilizado por
Althusser para importar o conceito de sobredeterminação, a experiência histórica da revolução
russa, acaba por se converter em um modelo de análise à posteriori, que difere do caráter de certas
formulações preditivas que estão presentes e podem ser deduzidas da teoria da história tal como se
apresenta no texto marxiano. Enfim, o possível avanço que podemos enxergar com o conceito de
sobredeterminação operando no campo da teoria da história faz pagar o seu preço, exigindo o
esforço de uma leitura mais empírica e de "superfície" (conjuntura), condenada a um rápido
decaimento no seu valor epistemológico, que não se sustenta por muito tempo, e com uma drástica
redução de seu poder preditivo, no que tange às expectativas de uma teoria da revolução.

Há ainda um outro valor na teoria althusseriana, o último que desejamos ressaltar e sobre o qual
ainda não foi dita nenhuma palavra, muito embora já tenha sido pressuposto e talvez, quem sabe,
subentendido. Althusser não é um marxista que reduz e fecha a possibilidade do conhecimento
científico - considerando o campo das ciências humanas - exclusivamente dentro da corrente teórica
do marxismo. Althusser reconhece a possibilidade de outros objetos de conhecimento e de outras
disciplinas teóricas que podem ter o mesmo valor do ponto de vista da produção de conhecimento
científico. O lugar em que tal reconhecimento se evidencia com mais nitidez é nas suas
considerações teóricas sobre o estatuto científico da psicanálise 107, e é demasiado sintomática a
importação que faz, para dentro do marxismo, do conceito freudiano de sobredeterminação,
sintomática das possibilidades de troca teórica que podem existir entre disciplinas profundamente
divergentes no recorte do seu objeto e na forma da sua abordagem epistemológica. E é quase
incrível ver como Althusser se esforça, inclusive, para demonstrar a operação do princípio lógico da
sobredeterminação em um lugar tão inusitado como a "História da Loucura", de Foucault:

107 Aqui não nos interessa saber se Althusser estava certo ou errado em atribuir tal estatuto à psicanálise. O que importa
é a postura aberta e a troca que se proporciona entre dois mundos teóricos profundamente divergentes.
"...Foucault ao estudar o transformar-se desconcertante dessa formação cultural complexa que reúne em torno de um
termo sobredeterminado - "loucura" - nos séculos XVII e XVIII, um sem-número de práticas e ideologias médicas,
jurídicas, religiosas, morais e políticas numa combinação, cujas disposições internas e sentido variam em função da
mudança de lugar e do papel desses termos, no contexto mais geral das estruturas econômicas, políticas, jurídicas e
ideológicas da época..." (Althusser. Ler o Capital. ob. cit. pg. 47)

Em suma, terminamos com esse apontamento dado por Althusser, construído de um modo tão
sólido principalmente pela sua relação com a psicanálise, e que indica o caminho da busca e do
reconhecimento de outros conceitos e valores teóricos e epistemológicos, que estão fora do
marxismo, forjados em outros contextos teóricos, mas que podem ser importados e fundidos, de
alguma forma, dentro do corpo orgânico da teoria marxista, sem comprometer o fundamental da sua
identidade. É um outro tipo de relação com as teorias que estão "de fora", não só de combater e
questionar, mas também de aprender e incorporar, sem medo de "macular" o corpo que deveria
permanecer "purificado".
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