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2~ Edição
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\aZES
Petrópolis
1996
ças denominacionais e faz coincidirem exegetas que dificilmente descoroçoados" (Is 61,ld) por "pôr em liberdade os oprimidos"
concordariam em alguma coisa, é uma boa indicação do grau em (Lc 4,lBe, que em Isaías aparece em 5B,6). Omite também a
que as correntes exegétícas estão de fato determinadas pelo segunda parte de Is 61,2 ''O dia da vingança de nosso Deus" para
espírito da época"." concluir lapidarmente com a proclamação do ano da graça do
Para os pobres que não têm a vida garantida não é nada Senhor, "apresentando assim a salvação ... como o ano jubilar em
esotérico e misterioso o fato de o reino de Deus oferecer esse que se realiza a libertação dos escravos". 63E esta é a primeira
mínimo. E para Deus também não, pois se trata de esse mínimo conclusão importante: ao conteúdo religioso da boa-nova com-
de sua criação tomar-se realidade. E preciso falar, sem dúvida, pete "a libertação material de qualquer tipo de opressão, fruto
da escatologia plenificante, mas sem esquecer a protologia da da injustiça'V" .
criação; é preciso falar da vida em plenitude, mas sem esquecer A segunda conclusão é a que mais queremos acentuar agora.
a vida básica. Apelar para o mistério e a vida plena, para Já o sentido comum nos adverte que anunciar uma boa-notícia
desvalorizar Q básico e o mínimo de vida, supõe uma compreen- aos pobres deste mundo não pode ser coisa só de palavras, pois
são errada do Deus de Jesus. "Avontade de Deus não é nenhum estão fartos e desenganados delas. O que os pobres necessitam e
mistério, pelo menos no que toca ao irmão e no que se refere ao esperam é uma nova realidade. E é nisto que implica "anunciar
amor. O criador que entra em conflito com a criatura é um Deus a boa-notícia" em Is e Lc: "só será boa-notícia na medida em que
falso".62Não se pode opor reino de Deus e criação, pois, embora se realizar a libertação dos oprímidosv." ~
aquele vá além desta, por aí deve começar um reino de Deus que Não que do conceito "levar a boa-notícia" queiramos deduzir
é boa-notícia para os pobres. especulativamente a necessidade de que Jesus levasse a cabo
uma prática, mas tanto o sentido comum como o significado do
3.4. Tornar real a boa-notícia termo em Lc exigem isso. E com isso entramos na próxima seção.
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que, se o ser humano não fosse ser da esperança, simplesmente 4.1. Os milagres: clamores do reino66
não poderia compreendê-lo, Mas, numa lógica pura, essa espe-
rança poderia ser mera expectativa da vinda do reino sem que Dum ponto de vista histórico é verossímil que Jesus tenha se
uma prática a acompanhasse - a que parecem reduzir-se certas desligado cedo de João Batista e da prática do batismo para
cristologias - ou poderia ser uma esperança acompanhada por empreender sua atividade própria de milagres, contraste que
tal prática. Por isso é importante averiguar que tipo de esperança ficou plasmado na resposta aos enviados de João: Jesus cura
Jesus tinha e gerava, se puramente expectante ou ativa, se Jesus cegos, surdos, coxos e leprosos (Mt 11,5; Lc 7,22). E de fato assim
pensava que o reino de Deus viria gratuitamente e por isso a ficou plasmado nos sumários: "À tarde, depois do pôr-do-sol,
única coisa que as pessoas podiam fazer era pedir na oração sua trouxeram-lhe todos os enfermos e endemoninhados ... Ele curou
aproximação ou se exigiu também algo de seus ouvintes. muitos doentes de enfermidades diversas e expulsou muitos
Para começar, podemos fazer estas perguntas puramente demônios" (Mc 1,32.34).
hipotéticas. Se Jesus pensava que o reino viria logo e gratuita- Não se pode duvidar historicamente que Jesus fez milagres
mente, para que uma prática? Por que não aceitar a situação de na primeira grande etapa de sua vida, que as tradições os foram
seu mundo se bem que logo tudo iria mudar com a chegada do ' aumentando em número e espetacularidade e que diminuem
reino? Estas perguntas puramente lógicas só têm uma resposta depois da chamada crise galilaica. E, como ocorre com outros
histórica. Jesus anunciou o reino e fez muitas coisas relacionadas temas centrais do Jesus histórico, os demais escritos do NT
com o reino. E os sinóticos mostram isso programaticamente ao apenas os mencionam. A conclusão é que "Jesus realizou curas
apresentar, já no começo de sua missão pública, não só o sumário que foram assombrosas para seus contemporâneosv." Também
do anúncio do reino mas também sumários da atividade de Jesus. não se pode duvidar da importância que o próprio Jesus atribui
"Jesus percorria toda a Galiléia, pregando em suas sinagogas e a seus milagres, ao ponto de poder resumir sua atividade com
expulsando demônios" (Mc 1,39). "Jesus curou muitos doentes estas palavras: "Eu expulso demônios e faço curas hoje e ama-
de enfermidades diversas e expulsou demônios" (Mc 1,34; Mt nhã" (Lc 13,22).
8,16; Lc4,40s).E no sumário de AtlO,38 se diz que Jesus "passou
fazendo o bem e curando todos os oprimidos pelo diabo". Os a) Os milagres como sinais libertadores da presença do reino
evangelhos falam, pois, clara e basicamente dos "ditos" e "feitos"
de Jesus, como diz o Vaticano 11. Na terminologia do reino Se os milagres dizem algo do que é o reino, é preciso'
podemos dizer que Jesus é anunciador e iniciador do reino de perguntar antes o que são, e para isso é preciso evitar dois
Deus. mal-entendidos. O primeiro provém da concepção moderna-oci-
Para a hermenêutica isto significa que o "reino" não é só um dental segundo a qual a formalidade do milagre consiste numa
conceito "de sentido", neste caso, de esperança, mas é também violação das leis da natureza e, por isso, o milagre é expressão
um conceito ''práxico'', que conota a colocação em prática do que de um poder supranatural. Mas, como se s~be,~sta_ não a é
se compreende dele, quer dizer, a exigência de uma prática para ~~pção bíblica de milagre, no AT. O judeu não conce,h.ia a
iniciá-l o e, ao fazer isso, gera uma melhor compreensão do que natureza como um sistema fechado e por isso os milagres não
é o reino. (E digamos de passagem que é fazendo-se o reino que eram importantes pelo que tivessem de supranatural, e-sim pelo
se conhece mais claramente a existência real de seu contrário: o que têm de ação salvífica poderosa de Deus. Por isso nos relatos
anti-reino. Isto pode explicar também por que algumas teologias evangélicos nunca se usa para descrevê-los o termo grego teras
que falam a respeito do reino e o analisam biblicamente silen-
ciam, no entanto, praticamente a realidade do anti-reino.) Mas 66. J.1. González Faus, Clamor de! reino. Estudio sobre Ias milagros de Jesús.
aqui vamos analisar a prática de Jesus como modo de averiguar Salamanca, 1982,
o que é o reino. Analisaremos concretamente suás "atividades" 67. J. Jeremias, o.c., p. 115. O autor pensa que se trata sobretudo de doenças
de milagres, expulsão de demônios e acolhida aos pecadores, de origem mental, mas também de curas de leprosos (entendidos no sentido amplo
suas ''palavras'' em parábolas e suas "celebrações". daquele tempo), paralíticos e cegos. "Trata-se de doenças que estão na linha do
que a medicina chama de 'terapia de superação'", o,c., p. 115.
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que indica o aspecto extraordinário de um fato incompreensível ras podem ser derrotadas. E por isso, formalmente, são sinais do
(no NT só aparece em Hb 2,4), nem o termo thauma, que seria reino de Deus.
o equivalente grego do termo "milagre" (embora se mencione O próprio Jesus deu grande importância aos milagres, pois
que o povo se admirava e se surpreendia). Em lugar deles são eram sinal da proximidade do reino; negar-se a eles era negar-se
usados os termos semeia (sinais, com os quais o acontecimento à proximidade misericordiosa de Deus. Por isso se queixou
é atribuído a Deus) dynameis (atos de poder) e erga (obras, as amargamente dos que não viam a vinda de Deus nesses sinais.
de Jesus). Jesus não aparece, pois, como um taumaturgo profis- "Se em Tiro e Sidônia houvessem sido feitos os prodígios que
sional daqueles que eram freqüentes em sua época. foram feitos no meio de vós, de há muito que teriam feito
O segundo mal-entendido consiste na precipitação de consi- penitência com cinza e cilício" (Mt 11,21). Fechar-se aos mila-
.r derá-los logo cristologicamente pelo que expressariam de des- gres como sinais do reino é como fechar-se para Deus.
continuidade com relação a outros seres humanos, como se os
milagres em si mesmos dessem acesso inequívoco à realidade de b) Os milagres como salvações plurais para os pobres
Jesus, neste caso a seu poder supranatural, a sua divindade, como
antes era costume interpretar. Nos evangelhos Jesus cura doenças de diversos tipos de
Os milagres se referem em primeiro lugar ao reino de Deus. pessoas, mas como diz E. Schillebeeckx de maneira muito bela,
lSão antes de tudo "sinais" da proximidade do reino. Como "na tradição dos milagres nos deparamos com uma lembrança
indicou J.1. González Faus, são só sinais, quer dizer, não trazem de Jesus de Nazaré baseada na impressão que causou particu-
a solução global para a realidade oprimida; mas são sinais reais larmente no povo simples rural da Galíléía, que era menospreza-
da proximidade de Deus e por isso geram esperança de salva- do por todos os movimentos e grupos religiosos". 69
ção.68 Neste sentido os milagres não tomam real o reino de Deus Nos milagres os pobres vêem salvação. e é a partir dos pobres'
enquanto transformação estrutural da realidade, mas são como que devem ser entendidos. É preciso sublinhar isso não só porque
que seus clamores que indicam a direção correta do que será o o destinatário ajuda a compreender os sinais do reino, mas
reino em seu advento. também porque, depois da ressurreição, o termo salvação será
Estes sinais acontecem numa his.tória de opressão. Os mila- absolutizado e ela será apresentada como uma realidade índívi-
gres não são, pois, só sinais benéficos, são também sinais liberta- sível e escatológica expressa no singular: a salvação (dos peca-
dores. Ocorrem numa história onde se dá a luta entre Deus e o dos). Mas nos evangelhos a salvação não aparece assim.
maligno, pois para a mentalidade judia também as enfermidades, Aparecem salvações plurais na vida cotidiana, conforme são as
no sentido mais amplo do termo, significavam estar sob o opressões concretas. "Assim, salvar é curar, exorcizar, perdoar, J
domínio do malignoJOs milagres são - e isto aparecerá com mais por meio de ações que afetam o corpo e a vida" .10
~laÍeza na expulsão dos demônios - sinais contra a opressão. Os pobres que precisavam da salvação de seus inumeráveis
fQuer dizer, os milagres, como todas as atividades e práxis de
Jesus, não devem ser compreendidos só a partir do reino, mas
males cotidianos são os que entenderam os milagres de Jesus. O
mesmo não aconteceu com os grupos apocalípticos que espera-
também - dialeticamente - a partir do anti-reino. Por isso é vam prodígios portentosos como sinais da vinda do reino. Para
preciso acentuar seu aspecto não só benéfico em favor de algúem, compreender, portanto, os milagres de Jesus como sinais liber-
mas também libertador contra alguém ou algo. E isto é impor- tadores do reino - e para compreender seu significado perma-
tante para compreender por que os milagres de Jesus geram
esperança e não só alegria. Geram alegria porque são benéficos, 69. Op. dt., p. 168. o argumento exegético que aduz é que os relatos de
mas geram esperança porque manifestam que as forças opresso- milagres provêm da atividade de Jesus na Galiléia, onde aparece cercado de
multidões de pessoas simples. A partir desse núcleo original, de milagres de curas
de pessoas, a tradição foi elaborando milagres mais interessantes.
70. B. Lauret, Cristología dogmática. In: B. Lauret e F. Refoulé (eds.) ,
68. Dp. cit., p. 157. Inidaci6n a Ia práctica de Ia teologia. Dogmática 1. Madrid, 1984, p. 309.
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nente - é preciso situar-se no lugar histórico em que acontece- córdia diante das multidões pobres, desprotegidas, humilhadas,
ram, os pobres, pois fora deles os milagres perdem sua relação é algo primigênio e último, a nada sujeitado para Jesus.
intrínseca com a necessidade peremptória de salvação cotidiana. A misericórdia de Jesus não é um mero sentimento, mas é
uma reação - ação, portanto - diante da dor alheia motivada pelo
c) Dimensão cristol6gica dos milagres: a misericórdia de Jesus simples fato de essa dor estar diante dele. Misericórdia não é,
portanto, uma virtude a mais, mas atitude e prática fundamentais
A importância cristológica primária dos milagres é que mos- de Jesus. É isso o que os evangelhos sublinham e Jesus acentua,
tram uma dimensão fundamental de Jesus: a misericórdia." Os conforme o evangelho de Lucas, ao definir o homem cabal a partir
milagres mostram não só o poder de Jesus, seja qual for sua da misericórdia: o samaritano "movido pela misericórdia" (Lc
capacidade de realizar curas, mas também principalmente sua 10,33), e a definir o próprio Deus a partir da misericórdia: o Pai
reação à dor dos pobres e fracos. Repetidas vezes se diz nos do filho pródigo "movido pela misericórdia" (Lc 15,20). E é isso
sinóticos que Jesus sentiu compaixão e misericórdia diante da que Jesus exige de todos: "sede misericordiosos como o Pai é
dor alheia, sobretudo das maiorias simples que o acompa- misericordioso" (Lc 6,36).
nhavam. ''Viu uma grande multidão e, sentindo compaixão, Aparece de diversas maneiras nos evangelhos que essa mise-
curou os seus enfermos" (Mt 14,14). Diz-se que sentiu compaixão ricórdia é algo primeiro e último. Jesus se mostrará contrariado
de um leproso (Mc 1,41), de dois cegos (Mt 20,34), dos que não quando os leprosos curados não lhe agradecem a cura, mas a
tinham o que comer (Mc 8,2; Mt 15,32), dos que estavam como razão para curá-los não é a busca de agradecimento, mas a
ovelhas sem pastor (Mc 6,34; Mt 9,36), da viúva de Naim cujo misericórdia. O pai da parábola se alegrará com a vinda do filho,
filho acabava de morrer (Lc 7,13). E pelo menos em quatro mas a razão para abraçá-Io não é uma tática sutil para facilitar
narrações de milagres Jesus cura depois do pedido ''tem miseri- o que na verdade lhe interessaria - que o filho lhe pedisse perdão
córdia de mim" (Mt 20,29-3Op; 15,22p; 17,15; Lc 17,13). e pusesse sua vida em ordem -e sim a misericórdia. O bom
É esta misericórdia que, ao mesmo tempo, explica e se samaritano é apresentado como quem cumpre o mandamento
expressa nos milagres de Jesus, e que o define em aspectos bem fundamental, mas na parábola ele não aparece agindo para
fundamentais. Jesus aparece como quem se sente profundamen- cumprir um mandamento e sim por misericórdia.
te comovido pela dor alheia, reage diante dela salvificamente e A atitude prática da misericórdia não é a única coisa de Jesus,
faz dessa reação algo primeiro e último, critério de toda a sua mas é o primeiro e o último. A partir de sua imensa compaixão
prática. Na dor alheia Jesus vê algo de último ao que só se pode para com a dor dos pobres e aflitos se compreenderão outras
reagir adequadamente com ultimidade. É importante lembrar atividades suas, também as que apontam para as transformações
que o verbo com que se descreve a atitude de Jesus nas passagens da sociedade como tal, mas a partir da misericórdia se compreen-
citadas é splagchnizomai, proveniente do substantivo splagchnon, derá a ultimidade de sua motivação. Para Jesus a misericórdia
que significa ventre, entranhas, coração, símbolos da realidade tem a ver com o que há de último e portanto com Deus. E algo
última do ser humano. A realidade da dor externa é o que penetra teologal, não simplesmente ético. Esta misericórdia é o que a
no mais profundo de Jesus e por isso reage com ultimidade desde carta aos Hebreus elevará a princípio cristológico ao definir a
o mais profundo de si mesmo. Cristo (junto com sua total disponibilidade a Deus) como o
Nessse sofrimento alheio, no sofrimento histórico, material, homem da misericórdia. Lembrar isto continua sendo de suma
corporal, do qual agora estamos falando, Jesus vê algo último, importância para o trabalho eclesial hoje.72
não só algo penúltimo diante de outros males - os espirituais, o
pecado - que por fim seriam os definitivos. Ambos são males e
de ambos Jesus liberta, mas o misereor super turbas, a miseri-
72. Não é incomum que a Igreja propicie "obras" de misericórdia. Mas que a
misericórdia ante o sofrimento do mundo seja critério primeiro e último de sua
71. Ver as belas páginas de A Nolan, Quién es este hombre? Jesús antes deZ ação, quer dizer, que não se ponha a si mesma como o critério último e que mostre
cristianismo. Santander, 1981, p. 49s. isso na disposição a correr graves riscos pelo exercício da misericórdia, é muíto
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o valor permanente dos milagres de Jesus apóia-se em serem disse ao paralítico ... Eu te digo: levanta-te, toma a maca e vai
expressão de misericórdia: são sinais poderosos que surgem da para casa" (Mc 2,5.11).
dor perante o sofrimento alheio e, especificamente, das maiorias O que nos parece mais notável, contudo, é a repetida sentença·
pobres que o rodeavam. E isto é válido e absolutamente neces- I
de Jesus: "Tua fé te curou" (Mc 5,3-1:e;10,52p; cf. Mt 9,28s; Lc
sário até o dia de hoje, tanto para poder compreender os milagres
em culturas secularizadas, que não sabem o que fazer com eles,
como em culturas religiosas, nas quais é preciso desentranhar o
17,19; Me 5,36p; Mt 8,13; 15,28), radicalizada e elevada a tese I
naquela outra afirmação: "tudo é possível para quem crê" (Mc
9,23). O que significa aqui "fé", que estritamente falando não é
I
re~mente cristão deles. Jesus "indicou claramente uma direção
nem condição nem conseqüência do milagre, mas aquilo que o
válida para a fé na salvação, a de que a mitigação e ulterior realiza?
supressão de toda miséria humana, da enfermidade, da fome, da
ignorância, da escravidão e da inumanidade de todo tipo consti- Não há dúvida que aqui "fé" não tem nada a ver com aceitação
tuem a permanente e mais importante tarefa do homem para de verdades doutrinais, nem sequer com uma confissão cristoló-
com o homem".73 Mas, lembremos, os milagres não são só o que gica relacionada a Jesus. Aqui parece que fé tem a ver com Deus,
atualmente se entende por "obras de misericórdia", ajudas bené- e de uma maneira bem precisa. É a aceitação e a convicção
ficas; são simultaneamente obras que suscitam a esperança de profunda de que Deus é bom para o fraco e que essa sua bondade
que a libertação é possível. E isto significa que os atuais milagres pode e há de triunfar sobre o mal. Essa fé não é óbvia historica-
têm que ser realizados na presença e contra algum poder opres- mente, e por isso sua realização é conversão, mudança radical
sor?4 na própria compreensão de Deus, e assim Jesus relaciona o
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vam em contato com ele,,?6 Mas é preciso ser mais exato: a fé é forças agiam sobretudo através da enfermidade e especialmente
num Deus que, ao se aproximar, faz crer em novas possibilidades das enfermidades de tipo psíquico, de tal maneira que os demô-
ativamente negadas na história aos pobres. É fé que supera o nios possuíam suas vítimas real e totalmente. A enfermidade
fatalismo. É fé num Deus do reino contra os ídolos do anti-reino. física e a psíquica não eram só um mal cuja eliminação era
Por isso se diz que, ali onde não havia fé, Jesus não podia fazer benéfica, mas uma escravidão da qual era preciso libertar.
milagres (Mt 12,38s; 16,ls; Mc 11,5; Lc 11,29s). Jesus faz sua aparição nesse mundo escravizado pelos demô-
A fé teologal é dom de Deus, mas de um Deus que vitoriosa- nios. No entanto o NT partilha desta visão que, ao mesmo tempo,
mente se impõe diante da não-fé, e então o crente, já curado, se radicaliza e transforma. Radicaliza ao unificar as diversas forças
converte ele mesmo em princípio de salvação para si mesmo. E maléficas plurais no Maligno, assim adquirindo este uma dimen-
nisto está - contra todo patemalismo milagreiro - o específico são totalizante. Se ojudaísmo conheceu os demônios individuais,
dos milagres de Jesus e a suma delicadeza de Deus: curar, Jesus acentua a unidade de todos eles em Satanás. O mal atuante
fazendo que os homens se curem a si mesmos." não é, pois, só uma ação isolada de demônios isolados, mas é
algo que permeia tudo. É a força negativa da criação, que a
4.2.1~~ul~o de dem6nios: vitória sobre o
destrói e a toma capaz de destruir, a qual se expressará histórica
e socialmente como anti-reino. Jesus afirma também que o mal
Maligno -
tem grande poder e sabe que diante dele os homens se sentem
Reflexões semelhantes às que fizemos sobre os milagres indefesos e impotentes." Mais ainda, o poder do mal não atingiu
poderiam ser feitas também a propósito das expulsões de demô- ainda seu ponto culminante: o Maligno se erigirá em Deus (Mc
nios. Diremos aqui só uma breve palavra a respeito do que 13,14). E este ponto culminante é escatologizado: no final dos
expressam - melhor do que os milagres - a respeito da dimensão tempos mostrará todo o seu poder, com o que é magnificado o
de luta e de triunfo da vinda do reino de Deus sobre o antí-reíno." paralelismo formal entre reino e anti-reino.
Mas, por outro lado, Jesus transforma a visão demonológica
a) A realidade do Maligno: dimensão última do anti-reino ao afirmar que essas forças, superiores ao homem, não são
superiores a Deus nem mais fortes do que Deus, mas pelo
No mundo antigo, no AT e no tempo de Jesus, existia a contrário. A escravidão ao Maligno não é o destino último do ser
convicção de que o mundo estava povoado por forças desco- humano; a libertação é possível. O próprio Jesus ''vem com a
nhecidas que estavam muito presentes na vida das pessoas e lhes autoridade de Deus não só para exercer a misericórdia, mas
eram prejudiciais. A visão do mundo estava impregnada e até também, e principalmente, para empreender a luta contra o
dominada pela demonologia. De fato, no tempo de Jesus "reinava Maligno".81 A atuação de Jesus é a resposta à pergunta angus-
um terror extraordinariamente intenso dos demônios"." Estas
76. Op. cit., p. 180-181. 80. Na América Latina não só existem calamidades inenarráveis, mas também
o sentimento de indefesa e impotência. Os pobres se sentem indefesos e impotentes
77. Na experiência latino-americana há analogias que podem ajudar a com- às vezes diante das doenças - o que lembraria as narrações evangélicas -, mas
preendero que foi dito. Monsenhor Romero ajudou muito os pobres e os estão assim, sobretudo, diante das calamidades históricas, que não somente
movimentos populares, e fez muitas coisas concretas em seu favor. Mas o mais sofrem mas também lhes são impostas em total impotência e desesperança. Deste
importante que fez foi possibilitar-!hes uma fé neles mesmos: "vocês podem, vocês ponto de vista e para expressar essa indefesa e impotência, propusemos a seguinte
são". E um camponês de Aguilares pôs esta experiência nestas palavras simples: definição de pobres: "Pobres são os que têm todos os poderes deste mundo contra
"Antes não éramos, agora somos". Essa mudança é o fundamental e para ela si: oligarquias, governos, forças armadas, partidos políticos e, às vezes, Igrejas,
apontam os milagres de Jesus. instituições culturais". Cremos que o impacto mais profundo da teologia da
78. Ver J.I. González Faus, Jesús y los demonios. Introducción cristológica a libertação consiste precisamente em ajudar os pobres a superarem esse sentimento
Ia lucha por Ia Justicia. Estudios eclesiásticos, 52 (1977): 487-519. Muito do que de indefesa e impotência, a crerem que é possível a libertação das forças opresso-
dizemos a seguir é tirado deste artigo. ras.
79. J. Jeremias, O.C., p. 115. 81. J. Jeremias, O.C., p. 117;
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tiante do povo simples pela possibilidade da superação do Ma- está endemoninhado (Mt 12,24; Jo 7,20) e louco, e Marcos e João
ligno. agrupam as duas acusações (Mc 3,21s; Jo 10,20).
É preciso escolher, pois, entre Jesus e demônios, o que
b) Expulsão de demônios e caractertsticas do anti-reino significa que é preciso escolher entre Deus e o Maligno e também
entre o que ambos geram: entre reino e anti-reino.
Como fato histórico não se pode duvidar que Jesus expulsou A dimensão duelística - o que um faz contra o outro - aparece
demônios. Mas, assim como não apareceu como taumaturgo descrita com primitivismo cru nas narrações de expulsão de
profissional, embora fizesse milagres, assim tampouco se mos- demônios. Os demônios resistem e lutam porque não querem ser
trou como exorcista profissional. Novamente, a análise dos ter- aniquilados, quer dizer, são antagonistas d'! Jesus. Nessas narra-
mos pode ajudar a compreender isso. os evangelhos não ções Jesus aparece vencendo-os majestosamente durante a pri-
aparece a terminologia comum naquele tempo para designar os meira etapa de sua vida. Mas se das narrações de expulsão de
exorcismos: exorkidzo em grego e gaâasar em hebraico, termos demônios se passa para outras narrações mais existenciais, como
que aparecem nos exorcismos judeus e designam a função de a das tentações, então se mostra claramente a luta de Jesus
magos e bruxos. Em seu lugar se descreve a ação de Jesus como contra o Maligno, e, no final de sua vida, o aparente triunfo do
ekballo (mandar, expulsar), epitimao (ameaçar) os demônios. Maligno sobre ele.
O que as ações de Jesus mostram não é, pois, diretamente a Então, o que a expulsão de demônios esclarece é que a vinda
aparição de um grande exorcista, mas algo muito mais radical. do reino é tudo, menos pacífica e ingênua. Acontece na luta
Com Jesus começou a aniquilação no Maligno (Mc 1,24) e, contra o anti-reino e, por isso, seu advento é vitória. Esclarece
precisamente por isso, o fim das tribulações está próximo. Em também de maneira muito importante - embora ainda estiliza-
palavras de Jesus: "se expulso demônios é porque chegou o reino damente - que a prática de Jesus é luta. Isso aparecerá com maior
de Deus" (Mt 12,28p), mas chegou porque tem poder para vencer clareza na confrontação de Jesus com os adversários históricos,
o anti-reino. E o mesmo se pode dizer da importância que Jesus mas aqui essa luta é elevada a um nível transcendente: construir
dá ao fato de os discípulos terem tido êxito (Lc 10,17) quando o reino implica necessariamente lutar ativamente contra o anti-
foram enviados a expulsar demônios (Mc 3,14s; 6,7p; Mt 10,8; reino. E se este não reage é porque de fato o reino não foi
Lc 10,19s). construído (lembrança sempre necessária para planejar e com-
A expulsão de demônios mostra, pois, que o reino de Deus se preender a missão da Igreja).
aproxima, mas com características específicas que aparecem com
mais clareza do que nas narrações de milagres. Antes de tudo, o
4.3. A acolhida aos pecadores: libertação de si
próprio fato de que o reino se aproxima diante de um anti-reino
mesmo e da marginalização
que o permeia todo, não a partir de uma tabula rasa. A chegada
do reino é, portanto, não só benéfica, mas também libertadora. Nos evangelhos Jesus aparece com freqüência se relacio-
Mas, além disso, expressa que reino e anti-reino são realidades nando com pecadores ou com pessoas tidas por tais na sociedade
formalmente excludentes e duelísticas. Na expulsão de demônios religiosa de seu tempo, e são narradas também duas cenas nas
isto aparece a nível dos mediadores do reino e do anti-reino, Jesus quais Jesus aparece dando perdão dos pecados. O importante
e os demônios; subjetivizam-se, portanto, as características dessa para nosso propósito é analisar o que significa tudo isso para
relação. Mas através do que ocorre aos mediadores se pode saber compreender o reino de Deus.
algo do que acontece com a mediação (o reino e o anti-reino).
Que ambos são excludentes é expresso na interpretação que a) Acolhida aos pecadores ou perdão de pecados?
se faz da própria atividade de Jesus: ou provém de Deus ou
provém dos demônios. Jesus interpreta esta atividade a partir de Em muitas narrações Jesus aparece junto com pecadores.
Deus, pois em seu nome expulsa os demônios. Para seus adver- Come com publicanos (Mc 2,15-17p), fâla:-com uma prostituta e
sários, porém, Jesus faz isso em nome do demônio, ele mesmo até se deixa tocar por ela na casa de um fariseu (Lc 7,36-50),
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