Você está na página 1de 9

CENTRO UNIVERSITÁRIO BARÃO DE MAUÁ

Patrimônio Cultural:

entre a especificidade e a possibilidade

Camila Maria de Oliveira

Karoline S. Rodrigues

Maria Cláudia Dadamos

HISTÓRIA

RIBEIRÃO PRETO/SP

2016
Trabalho orientado pela Profª Drª Lilian
Rodrigues de Oliveira Rosa, ministrado
na disciplina de Patrimônio Cultural.
Patrimônio Cultural: entre a especificidade e a possibilidade*

Camila Maria de Oliveira

Karoline Da Silva Rodrigues

Maria Cláudia Dadamos

RESUMO: O presente trabalho tem o intuito de analisar a produção das


bonecas indígenas Karajá e a das bonecas afrodescendentes Abayomi e suas
relações com a realidade dos povos as quais se referem e como ambas se
comportam diante da legislação brasileira.

PALAVRAS-CHAVE: diversidade; Karajá; Abayomi; patrimônio.

INTRODUÇÂO
O reconhecimento da identidade cultural de determinado grupo faz-se
necessária para a formação “das idéias e das práticas contidas em cada um
dos termos e a adoção de uma visão ou pensamento complexo, que evite a
sedução da simplicidade reducionista” (BARROS, 2008, p.15). Compreender
que as construções simbólicas abrangem diferentes esferas sociais é o
primeiro passo para entender a importância dos bens imateriais para a
permanência das características que compõem e formam uma sociedade no
conjunto de Diversidade Cultural.
Deste modo, explicitaremos este conceito a partir da contextualização da
preservação dos conhecimentos indígenas das bonecas Karajá 1 – incluída no
rol do patrimônio cultural brasileiro no ano de 2012 - e da produção das
bonecas Abayomi2, de origem afrodescendente, criando uma relação de como
estas manifestações se comportam na geração de referenciais étnicos e sua
1
Trabalho de Conclusão da Disciplina Patrimônio Cultural Centro Universitário Barão de Mauá, 2016.
O grupo indígena karajá e habita a região do rio Araguaia nos estados de Goiás, Mato
Grosso, Tocantins e Pará. Sua língua, a língua carajá, é pertencente ao tronco linguístico Macro-
Jê. origem existe um mito que conta que eles eram povos que viviam ao fundo do rio e depois que
vieram à superfície se espalharam pela margem do rio. Consideram-se que sejam mais de vinte aldeias
registradas e em média 3 mil pessoas.
2
A palavra abayomi tem origem iorubá e siginifica “encontro precioso” (abay = encontro; omi =
precioso). Provinda do continente africano, sua utilização é mais comum na África do Sul, Togo e Costa
do Marfim.
relação com o desenvolvimento humano, fomentando a aplicação ou não dos
preceitos descritos no processo de patrimonialização sobre estas atividades.

1. Uma breve trajetória pela legislação.

Primeiramente é importante frisarmos os conceitos e as diferenças entre


patrimônio e patrimônio cultural. O primeiro termo nos revela o sentido de algo
particular a alguém, ou seja, privado, enquanto o segundo adquire um
significado de coletividade onde “as coletividades são constituídas por grupos
diversos, em constante mutação, com interesses distintos e, não raro,
conflitantes.” (FUNARI, 2009, p.10). As práticas utilizadas atualmente pelo
Instituto do patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) na proteção do
patrimônio imaterial estão ligadas as ideias presentes na semana da Arte
Moderna de 1922 e com as políticas redigidas em 1936 por Mário de Andrade,
onde elaborou um anteprojeto em que propunha uma concepção integrada do
patrimônio que englobava lugares, fazeres, objetos, saberes e manifestações
desde o popular ao erudito, sendo assim, pela primeira vez foi posto em pauta
a necessidade de conceber proteção para os bens imateriais.
No governo de Getúlio Vargas, com o Decreto-Lei 25, de criação do
SPHAN, aprovado em 1937, houve a rejeição da proposta de Mário de Andrade
no que diz respeito à proteção dos bens imateriais. Este decreto passou a
proteger e zelar apenas para os bens materiais - móveis e imóveis - que tinham
uma carga de importância histórica nacional, desprezando todos os bens
“menores”, ou seja, bens materiais e imateriais que compunham o campo
regional da população, pois Vargas desejava por uma exaltação do
nacionalismo visando incutir nas massas uma história nacional, criando uma
perspectiva de unidade brasileira.
Porém, os ideais de Mário de Andrade implementaram uma mudança na
forma de se observar o bem cultural que, além transmutar seu valor intrínseco
para o da significação, encontrará sustentação através do Centro Nacional de
Referência Cultural (CNRC) criado pelo administrador cultural Aloísio
Magalhães, na década de 1970 onde as características que “se propunha a
apreender eram as da cultura em sua dinâmica (produção, circulação e
consumo) e em sua relação com os contextos socioeconômicos. Ou seja, um
projeto bastante complexo e ambicioso [...]” (FONSECA, ,p.116) A partir de
então, diversos trabalhos tomarão a frente que resultarão na elaboração do
Decreto-Lei nº 3.551/2000 onde afirma “o registro de bens culturais de
natureza imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o
programa nacional do patrimônio e dá outras providências.”
Deste modo, seria possível afirmar que, embora a lei de
interpretação do patrimônio cultural brasileiro tenha evoluído nas suas
percepções diante a diversidade, a legislação tenha preenchido todos os vãos
existentes no caminho para o reconhecimento? Se observarmos o artigo nº 216
da Constituição Brasilera: “Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de
natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto,
portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes
grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I) formas de
expressão; II) os modos de criar, fazer e viver.”
Assim, colocando-se de um lado as bonecas Karajá (também
conhecidas como “Ritxoko”, uma expressão cultural dos Povos Karajá) que
hoje tem seu modo de fazer e forma de expressão registrados pelo IPHAN e,
de outro, as bonecas Abayomi que não possuem reconhecimento legal pelos
órgãos responsáveis por tal procedimento, é possível pontuar algumas
referências deste cenário.

2. Uma aproximação simbólica

O modelamento do barro realizado pelas “ceramistas mestras” e os


grafismos inseridos, marcam nas ritxoko a idade, gênero e a fase do individuo
em casa ciclo de vida. São a partir destas diferentes séries de bonecas - feitas
para representarem atividades tradicionais dentro da aldeia e as práticas
ritualísticas que configuram uma memória coletiva do grupo - que tornam desta
atividade parte de sociabilização feminina “associado ao aprendizado das
representações sobre o próprio corpo feminino.” (SILVA, 2008, p.15), da qual a
produção é acompanhada pelas crianças – no caso as meninas - que além de
aprender a modelar o objeto, aprendem os mitos que configuram a identidade
do grupo. Entretanto, esta condição também se encontra presente na
representação da boneca afrodescendente, onde sua referência à memória
encontra-se na diáspora africana para o continente americano, momento em
que as mulheres negras, com intuito de acalentar suas crianças durante o
penoso trajeto dentro dos navios tumbeiros, rasgavam a própria saia para
criação destas bonecas.
Por outro lado, a confecção das bonecas indígenas acontece no espaço
doméstico (apenas pelas mulheres que enquanto modelam as bonecas narram
os mitos e histórias e eles associados), a predominância feminina na
organização da Cooperativa Abayomi na cidade do Rio de Janeiro (fundada em
1988 e idealizada pela artesã Lena Martins 3), além de reunir a arte com as
reivindicações externas dos movimentos negros do mesmo período, também
trabalha com a narrativa do contexto histórico durante a confecção das
bonecas, onde se pode observar que “é em torno da mulher que se enreda
historicamente o grupo familiar estabelecido pela escravidão e outros
processos de dispersão provocados por questões sociais e econômicas.”
(SILVA, 2009, p.11) Deste modo, a associação faz desta prática um
instrumento de socialbilização e conscientização contra a segregação, seja ela
étnica ou de predileção.
Com relação à elaboração destes símbolos, a atividade indígena 4
baseia-se na decoração que marcam a pintura corporal do Karajá, das quais as
peças de vestuário e adorno consideradas tradicionais complementam a
representação figurativa das bonecas, que identificam o Karajá homem ou
mulher, solteiro ou casado a partir dos atributos da cultura Karajá. O pigmento
preto e vermelho usado na pintura são obtidos respectivamente das sementes
de urucum e das fuligens de carvão que se desprende das panelas quando
manuseadas com pedaços de borracha queimada misturada com extrato de
cascas de madeira xarurinã ainda verde.
Esta singularidade manifesta-se também nas Abayomi, uma vez que
3
Nascida em 1950 em São Luís do Maranhão, mudou-se em 1958 para o Rio de Janeiro onde cresceu,
formou família e criou os dois filhos. Em 1987 uniu-se ao Movimento de Mulheres Negras e trabalhou
como coordenadora de animação no Centro Integrado de Educação Pública (CIEP). No mesmo ano
desenvolveu a técnica das bonecas que denominou Abayomi criando a Cooperativa Abayomi.
4
De uma forma geral a fabricação da boneca compreende as seguintes fases: coleta da madeira para
preparar ao antiplástico; queima da madeira e preparação da cinza para ser usada como antiplástico;
coleta do barro (ou compra no caso de Buridina); preparação da massa para modelagem – mistura do
barro com a cinza; modelagem; alisamento da peça; secagem; primeira queima; segunda queima; coleta
da semente de urucum e em alguns casos,do fruto do jenipapo; preparação dos pigmentos preto e
vermelho; preparação do pincel com lascas de madeira; aplicação do grafismo com pigmento preto;
aplicação do grafismo com pigmento vermelho.
eram feitas com tecidos e malhas, sem o uso de qualquer estrutura rígida
interna, sendo basicamente estruturadas a partir de nós e trançados.
Propositalmente, a boneca não possui demarcação de olho, nariz nem boca
para favorecer o reconhecimento da identidade das múltiplas etnias africanas,
mas a dinamização da construção de suas vestimentas e acessórios
demarcam diferentes esferas da sociedade negra, como capoeiristas e as
baianas.
Mas ainda assim é fulcral a verificação da importância que estas
manifestações têm na esfera econômica destes grupos mencionados, uma vez
que a imaterialidade do patrimônio cultural significa reforçar a ideia de que ele
é composto por várias esferas e é caracterizado por sua complexidade, mais
especificamente, pelos processos sociais e culturais que transformam
diariamente o convívio humano. Exemplo disso é a transposição do caráter
lúdico que comporta das bonecas Abayomi que, além de serem
comercializadas pelas artesãs do Rio de Janeiro, também possuem o mesmo
caráter de troca dentro da comunidade quilombola Morro do Boi 5, localizado no
estado de Santa Catarina, onde a venda destas, através de sua sede, compõe
um dos mais importantes pilares de sustentabilidade deste grupo. Neste
mesmo contexto, se depara a suplantação do significado cultural e identitário
as bonecas Ritxoko para o povo Iny, que representam uma importante fonte de
renda da comunidade que, em geral, são comercializadas nas próprias aldeias,
em lojas de decoração da região e feiras de artesanato.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O patrimônio imaterial é, portanto, um conjunto de representações
culturais de um determinado grupo social que caracteriza a vivência de um
povo. É importante ressaltar que tais representações possuem uma origem
histórica e coletiva.
A presença de algumas características congêneres entre as duas

5
Localizada na cidade de balneário Camboriú, no estado de Santa Catarina e às margens da BR-101, a
comunidade do Morro do Boi é uma das poucas comunidades descendentes de escravos da região.
Atualmente, encontra-se em um processo de reconhecimento do qual já possui a primeira etapa
concluída: o estudo antropológico encomendado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (Incra). Além disso, o estudo cruzou dados da memória oral dos moradores da comunidade do
qual o relato é a base para o reconhecimento do grupo pelo governo federal.
culturas como a presença econômica promovendo uma melhoria na
sustentabilidade nas diferentes situações; a representação das diferentes
esferas da sociedade no fortalecimento da identidade destes povos; a
predominância feminina na confecção destas bonecas, favorecendo o
reconhecimento da posição feminina e aceitação de seu corpo; e a narrativa
histórica presente no decorrer da produção destes símbolos, remetendo o
indivíduo à memória étnica, demonstra que a não correspondência de alguns
requisitos legais julgados como necessários pode resultar na não aceitação da
legitimidade de um determinado ofício por parte dos órgãos oficias, mas que
dispõem das mesmas peculiaridades se observado no cenário cotidiano.

 
 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FUNARI, P. P.; PELEGRINI, S. C. A. Patrimônio histórico e cultural.2.ed.Rio
de Janeiro: Jorge Zahar,2009.

SILVA, S. M. Experiências Abayomi: coletivos, ancestrais femininos,


artesaniando empoderamentos.

FONSECA, M. C. L. Referências Culturais: Base para novas políticas de


patrimônio.

SILVA, T. C. Modos de fazer Boneca Karajá, circulação de conhecimento e


a construção do território.

BARROS, J. M. (Org.) Diversidade cultural: Da proteção à promoção. Belo


Horizonte: Autêntica Editora, 2008.

Você também pode gostar