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ensaio 8e.

pesquisa

Preservar não é tombes; Os conceitos de cidade e mercado são daqueles imbri-


cados desde a origem. Não estou me referindo ao mer-
cado das trocas materiais e da razão prática, caracte-
rístico do capitalismo. Este só tomou de assalto os meios

renovar não é pôr tudo abaixo urbanos e os submeteu às suas lógicas em meados do
século XIX. A partir daí, tudo vira mercadoria negociá-
vel por quem mais possa pagar. Não escapam a terra
e, numa esfera muito mais abstrata, as diversas locali-
zações intra-urbanas, valorizadas de forma diferente no
tempo pelos vários grupos que vivem nas cidades. Meu
mercado aqur é mais amplo. Para começo de história,
sua meta principal é promover, através do estabeleci-
Texto Cartos Nelson F. dos Santos mento de uma cadeia de obrigações de reciprocidade,
o máximo de equilíbrio na estrutura social. Quer redis-
a sua história. Não há maneira de pensar espaço signi- tribuir, não acumular. Em vez da mesquinha óptica da
Este artigo foi encomendado (e pago ...) para publica-
ção na Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Na- ficativo desacompanhado de história que o explique produtividade, permite as múltiplas ordens da criativi-
cional. (quando se trata dos chamados "povos sem história" dade. Por suposto, sempre foi mais idealizado que rea-
substitua-se história por mito ...). Da mesma forma, é im- lizado, mas, através da história, com a cidade e na ci-
Quando ficou pronto, foi vetado pelo editor, sob o pre- dade, foi se concretizando através das práticas possí-
possível imaginar história ou mito não referenciados a
texto de que ofendia os brios da arquitetura nacional. veis. Até que, por força dos individualismos da cultura
espaços reais ou imaginários.
Procedimento dos mais estranhos, em se tratando de desagregadora do Ocidente moderno, teve seu papel
trabalho assinado, escrito e desenhado no capricho, 2. Desde que, há uns 10 000 anos, a cidade surge na apequenado, foi reduzido. Ficou tudo mais fácil de usar
após insistentes convites. Não sei, não... deve ter ido história, coroando a revolução do neolítico, passa a ser e mais eficiente, é bem verdade. O preço. pago, porém,
muito direto ao alvo. Paciência. Carrego a honra de ter o lugar preferencial para realização (e percepção ...) da foi a esquizofrenia de que, hoje em dia, o mundo intei-
sido censurado pela Nova República bem antes de Go- própria história. ro parece atacado.
dard (Rio, 1984).
Há cidades que param. Deixam de se transformar atra- A cultura burguesa praticou o feito inédito: submeteu
Toda cidade resulta da agregação de trabalho humano vés dos diálogos, nem sempre mansos, entre espaço as outras que lhe eram contemporâneas. Na maioria dos
a um suporte natural. Isto quer dizer que, uma vez fun- e tempo. A rigor, não deveriam mais ser chamadas de casos, destruiu-as por completo. Apropriou-se de tu-
dadas, as cidades vivem se refazendo, jamais estão cidades. No dizer de Oriol Bohigas, viram museus, ce- do, simplificando significados complexos. O que inte-
prontas. Talvez esse enfrentamento do espaço e do tem- mitérios, cenários de turismo, o que se quiser ... Não me- ressava era aplainar caminhos para a existência e ope-
po através de ações sociais se pudesse chamar com recem mais ser consideradas centros urbanos reais. Ele ração de empresas e do Estado nacional... Entidades
mais propriedade de história - de história urbana pelo entende bem do que está falando: além de eminente totalizadoras que se esforçam por "descomplicar" o que
menos. De todas as formas, estou quase convencido arquiteto urbanista, é cidadão de Barcelona. Justo a Es- podem, para melhor controlar ou melhor mandar. As ci-
de duas coisas: panha foi um dos países onde, nas últimas décadas, dades, indispensáveis à difusão e implantação dessas
houve mais controvérsias sobre o muito que preservar novas ordens desde o renascimento europeu, foram
1. A história do homem acaba sendo enquadrada pe- e o muito que destruir, face a novas imposições da so- suas grandes vítimas.
los espaços que inventou para que neles acontecesse ciedade e de suas atividades econômicas.
A cidade/mercado do capitalismo está longe, porém, de
15 existir como um absoluto. Além da principal razão de
~ ser - produtividade de mercadorias e disciplinas -, con-
~ tinua abrigando muitas outras vocações. Técnicos, es-
i> pecialistas e o status quo de um modo geral costumam
.g classificar essa persistência como anacrônica e desvian-
~ te. São desordens frente à ordem que sonham existirá
~ um dia, perfeita e imutável. Não percebem que são os
espaços fora das convenções, as atividades econômi-
cas fora de controle e as relações sociais fora dos mo-
delos aceitos oficialmente que permitem e viabilizam
seus ideais de ordem. Em síntese, só pode haver um
positivo à custa de muitos negativos. Aqui no Brasil en-
tão, país de poucos recursos e inúmeros problemas no
cenário urbano, que deu um salto espetacular em no-
venta anos, só algumas áreas chegam mais perto do
ideal. Fazem-no, entretanto, à custa de outras que es-
poliam. A regra é que nos bairros cêntricos se promo-
va a concentração de benesses urbanísticas para uso
cada vez mais exclusivo dos mais ricos e das ativida-
des mais nobres. O resto, a maioria das pessoas e de
suas ações, vai se distribuindo como pode em espa-
ços tanto mais pobres e desprovidos quanto mais dife-
renciados dos núcleos cheios de privilégios.

Usei a expressão diferenciados em lugar de distantes


porque o contraste se deve a fatores que podem incluir
ou não descontinuidade física. Estar longe das áreas
centrais é condição suficiente mas não necessária ou
única de separação e segregação. Há favelas em mui-
tas cidades brasileiras que, do ponto de vista da locali-
zação, ocupam posições invejáveis. Periferias e subúr-
bios parecem o "habitat natural" para as camadas de
menor renda e para os negócios de menor prestígio. Em
muitos casos, porém, basta virar uma esquina da ave-
nida de maior movimento para encontrar casarões ve-
lhos transformados em cabeças-de-porco, hospedarias,
oficinas ... No quintal de edifícios com ótima aparência
podem existir barracos e construções precárias. Isto sem
falar nos bairros chamados decadentes, que costumam
cercar a área mais central das maiores cidades. Exten-
sões contínuas de casario antigo, ruas, praças ... que o
governo costuma ver como resíduos, como enclaves
que já não servem para nada. Daí, passa a considerá-
Seções inteiras das cidades Ias como reservas que, assim que for possível, será pre-
não estariam de pé se não ciso pôr abaixo e reconstruir nos padrões desejáveis.
fossem usadas no
Nas cidades o espaço fala. Cheios e vazios, edificações
cotidiano, "a retalho':
e logradouros, público e privado formam UIJI código. As

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ensaio &:. pesquisa
i6 (um conhecer ...) tão bom como outro qualquer, com a
~ vantagem de ser muitíssimo acessível. Os espaços ur-
~ banos são livros abertos, que a cada instante dizem aos
~ que estão neles não só onde estão, mas quem são e
:§ quem são os outros. Uma jornada comum, que implica
~ deslocamentos, passagens por ambientes dos mais pri-
~ vados aos mais públicos, ida a lugares onde se produz,
se consome, se circula, se descansa, equivale a uma
carga informativa das mais completas. A diversidade
complementar de atividades é a matéria-prima da idéia
de cidade. Faz com que se modelem determinadas ex-
pressões físicas enquanto se estampa, se expõe e é
transformada através delas.
Eis por que, quanto maior a diferenciação de lugares
e de edificações no meio urbano, melhor. Mais do que
isso: tudo o que facilite intercâmbio, mistura e reformu-
lação é bem-vindo. Graças a Deus, começam a ser su-
perados os tempos em que pensadores e executivos
A excepcionalidade, a consideravam que o melhor a fazer era separar, organi-
sacralidade mesma do zar e deixar transparente. O lé-com-Ié e o cré-com-cré
momento.
das tentativas de zoneamento das cidades brasileiras
ao longo do século XX só produziu empobrecimentos
e rupturas. Com os pretextos da renovação, do progres-
so, da higiene, das razões do mercado, da circulação
ete., foram quebradas continuidades, sob todos os pon-
tos de vista (exceto o do arbítrio de minorias) expressi-
vas e desejáveis. Urbànístas e arquitetos chegam ao fi-
nal de quase noventa anos de "revoluções" goradas bas-
tante desencantados. Já perceberam que foram coni-
ventes. Com as técnicas e ideologias "inovadoras" que
touxeram para cá ajudaram a destruir o irrecuperável.
Entre as muitas novidades urbanísticas de que fomos
apóstolos no início do século está a idéia da preserva-
ção de sítios e monumentos urbanos. De repente, ar-
quitetos e outros intelectuais notáveis (e sonhadores ...)
descobriram que até já tínhamos alguma história e que
ela se exibia, sem proveito, através de edificações des-
prezadas, caindo aos pedaços ou (pensavam ...) conser-
vadas 'por milagre. É tempo de estranhos surtos nacio-
nalistas carregados de internacionalismo, tudo bem en-
A avenida Presidente caixado no grande sonho do país jovem, empenhado
Vargas ainda está cheia de em realizar seu grande futuro e em fixar alguma identi-
terrenos desocupados. dade que lhe irradiasse um passado pouco ealorizado,
Da descoberta à prática bastou um passo. Os pionei-
muitas articulações possíveis dos diversos elementos lugares ordenados segundo convenções que, para os ros partiram para a cruzada, bem-sucedida, aliás, co-
em cada sítio constituem uma linguagem peculiar. Da membros daquele grupo, são referências estruturais. mo quase tudo em que se meteram. Era um campo de
perspectiva analítica, o fenômeno não é muito fácil de Muito bem. Se, nos espaços urbanos, as formas físi- idéias articuladas que visavam e lograram uma virada
registrar e entender. Os produtos arquitetônicos e ur- cas falam das formas econômicas e das sociais, não de cabeças na elite e depois no conjunto da sociedade
banísticos por si mesmos permitem poucas precisões, haverá dificuldades de tradução? Termos irredutíveis, brasileira: arte moderna, arquitetura e' urbanismo racio-
são ambíguos; talvez excessivamente poéticos. Mas é tempos e objetivos diversos, divergentes até? Há sim. nalistas, nova música, nova literatura e... nova interpre-
aí que reside sua maior força - nessa resistência à frag- A melodia não é harmônica, nem cantam todos no mes- tação de velharias.
mentação. Os conjuntos urbanos costumam ter gran- mo diapasão. De um campo para outro existem super- As novidades fizeram boa carreira dos anos 30 para cá.
de poder expressivo. São sínteses fortes. Mesmo para posições, é verdade, mas são abundantes os desencon- Hoje já existe alguma consciêracia sobre o assunto.
quem conhece pouco uma determinada cidade é fácil tros e as autonomias. Creio mesmo que nessas faltas Quando se pensa em preservar, alguém logo aparece
fazer demarcações a partir de balizamentos sumários. de precisão contraditórias se estabeleçam os domínios falando em patrimônios e tombamentos. Também se
Habituar-se a um território desconhecido implica clas- de um quarto código, indispensável para que nas cida- consagrou a crença de que cabia ao governo resguar-
sificar lugares: onde há confusão; onde há calma; on- des coexistam, com o mínimo de desgaste, os outros dar o que valia a pena. Como? Através de especialistas
de se trabalha; onde há segurança; onde vão os ricos; três. As falhas, as brechas, os brancos são o território que teriam o direito (o poder-saber) de analisar edifí-
onde se adquirem bens úteis ou supérfluos ... e assim dos entendimentos políticos. Nosso modelo urbano J cios e pronunciar veredictos. Esses técnicos praticariam
por diante. a polis ocidental dos cidadãos e de suas assembléias uma espécie de ação sacerdotal. Atribuíam caráter dis-
A síntese espacial urbana tira das relações metafóricas representativas e equalizadoras - exige que existam. Eles tintivo a um determinado edifício e logo tratavam de
sua maior eficiência. Os lugares, por serem como são, servem para explicar o ininteligível, conciliam a intole- sacralizá-lo frente aos respectivos contextos profanos.
dizem de uma só vez uma porção de coisas para um rância das ópticas exclusivas, tornam a ambigüidage útil. Como ninguém é seguro o suficiente para inventar ri-
monte de gente. Apresentam conformações cumulati- Mais do que isso: fazem dela um instrumento de acer- tuais a partir do nada, trataram de seguir o caminho mais
vas. Estão no presente, mas podem demonstrar como tos. Quando o coro de mil vozes consegue o encontro fácil: impuseram as suas mãos sobre o que, por outras
já foi e como, talvez, será. Assim, não só com-formam. da assembléia, tenta se afinar, se ajeita para dar chan- razões, já estava consagrado. Não foi muito difícil de-
Também in-formam. Disse, um pouquinho antes, que ce aos timbres mais fracos, respeitando as limitações clarar dignos de preservação COnventos, mosteiros, igre-
na cidade o espaço fala. Fala de quê? De uma organi- e racionalidades da maioria e permitindo os solos na jas, palácios, fortalezas, sedes de fazenda ... De raro em
zação econômica, sem dúvida. Esta, por sua vez, se re- hora certa. Há outras possibilidades também: criar uma raro uma pequena construção antiga justificada como
fere a uma estruturação social que se realiza através falsa e fácil disciplina da exclusão; fazer com que qua- "curiosa": capelinhas. casas rurais, hesitantes exceções
de um modo de vida característico. A última expressão se todos se calem e conceder o privilégio da expres- confirmadoras da regra cômoda. Os símbolos do po-
pode, sem favor, ser substituída por cultura. A cultur~ são a um grupo que pode tudo. Quando esse excesso der não eram, por natureza, distintos? Não foram pro-
é constituída por esses milhares de obviedades que todo de autoritarismo acontece, é raro que os resultados se- postos como contrapontos desde o começo? Não ex-
mundo tem de saber, se deseja sobreviver, se não qui- jam bons para as cidades, não importando abeleza ou plicitavam quem mandava? Para não comprometer a no-
ser ser um Kaspar Hauser,*_ incapaz de dizer de onde o alcance das vozes. Já diziam os homens da Idade Mé- breza das boas intenções com estes aspectos menos
veio e a que veio no ambiente em que deveria se senti dia que o ar urbano era bom porque nele se respirava excelsos, .decidiu-se esfriá-Ios com a antiguidade. Quan-
à vontade. Pois é, participar de uma cultura é "estar em. liberdade. Percebiam bem duas coisas naqueles tempos: to mais perto dos séculos XVII ou XVI melhor, porque
casa" dentro dela. Isto corresponde a dominar uma certa 1. que a meíhõr maneira de viver consistia em reafir- assim as relações entre a forma e aqueles outros códi-
quantidade de códigos classificatórios que, quanto mais mar as semelhanças e compreender as diferenças em gos ficavam mais amenizadas. Não é por outra razão
gerais e abrangentes sejam, mais básicos são. Entre os conjunto (o que equivalia a trocar experiências); 2. que que, ainda há bem pouco tempo, era difícil provar o va-
conhecimentos básicos que permitem a convivência de a liberdade estava embutida nas ações de todos os dias lor de edificações do século XIX. No nosso prój)rio sé-
milhares de pessoas e interesses, nos espaços tão re- e que nelas se revigorava. culo, então, só o que já nascesse sob o signo da eter-
duzidos das cidades modernas, está a atribuicão de um Pensar na cidade e no que expressa li partir de suas nidade, isto é, como expressão definitiva e irrecorrível
mínimo de significados coincidentes a uma coleção de formas e lugares é ser morto-lógico. Um entendimento da transcendência do poder.j-' '.
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essas considerações não entravam dúvidas sobre o ~ Enquanto isso, a Rio


que moradores e usuários valorizavam nos espaços que .~ Branco se renovava sem
constituíam seu dia-a-dia. Não interessavam os meca- ~ parar.
nismos criadores 'de significado em sentido amplo, obri- :..
gatoriamente sociais. Também não causava maiores ~
preocupações a escalada crescente de uniformizações
físicas e funcionais de seções inteiras dos territórios ur- ,f2
banos. Os especialistas deviam achar que tamanhas vul-
garidades não estavam no seu alvo nem eram de sua
alçada. Não perceberam, talvez pelas condições do mo-
mento e por estarem absorvidos pelas importantes ta-
refas que praticavam, que aí residiam os mais insidio-
sos fatores: os que levavam as cidades a se descarac-
terizar e geravam decadência.
As cidades brasileiras no século XX cumprem a fun-
ção de diques. Têm de absorver e dar destino às vagas
de migrantes. São escolhidas como as sedes favoritas
das aventuras do capital e dos programas de governo.
São maltratadas à exaustão e o mau exemplo vem de
Vai-se embora o cinema
cima. Sofrem grandes reviravoltas. As provas de desa-
que alinhavava pessoas e
mor, observáveis em todas as partes, não devem es- grupos diferentes.
pantar ninguém. São fáceis as explicações para quem
não for. hipócrita. A ausência de surpresa não deve, po- ~
rém, implicar desinteresse: a falta de afetividade pelos
lugares e pelo que representam é um caminho reto pa-
ra a pobreza cultural. As pessoas ficam desorientadas
quando não conseguem mais entender a linguagem es-
pacial que vivem no cotidiano e que Ihes diz que, neste
presente particular, há passados respeitáveis e futuros
esperançosos. Ficam perigosamente desorientadas; per-
dem um dos mais importantes parâmetros morais.
A versão mais pragmática da afetividade pelo espaço
- a demanda por condições mínimas de habitabilidade
- aj)arece bem clara em várias cidades do Brasil. Em que
pese a notoriedade presente, o assunto não é novida-
de. Já no início do século XX, no Rio de Janeiro, por
exemplo, havia muitas sociedades de amigos de bair-
ros pobres pressionando o governo por melhorias. No
passado próximo, algumas lutas de favelados e de as-
sociações de vizinhos se fizeram notórias. Mais ainda
porque aconteceram em épocas nada propícias. Tais mo-
vimentos já mereceram vários estudos. Relativa novi-
dade são as organizações de moradores de classe mé-
dia e alta. Estão, junto com as organizações dos de me-
nos recursos, se alastrando por todo o país. Sugerem
a politização geral dos habitantes das cidades a partir
da temática dos respectivos cotidianos. O caminho
pontado se apóia em dois extremos: de um lado há
ma retomada de individualidades - os grupos sociais
se reconhecem através da identificação de um espaço
que Ihes serve de base comum; do outro há uma ten-
dência, bastante embrionária, à conquista coletiva de
direitos universais de cidadania. O exemplo dos transportes é só uma tentativa de ilus- valente. O bairro ou setor urbano onde foi realizada a
tração. Como o bonde, podem sumir a estátua que fun- renovação fica privado de serviços, pequenos negócios,
Frente a tais mobilizações, aragem renovadora nas can- cionou durante décadas como referência, as árvores, oferta de trabalhadores, segurança. Tudo isto correspon-
sativas articulações políticas que parecem eternas, ca- a praça inteira. Em seu lugar (nem há mais curiosidade de a uma perda econômica real. Não vejo argumento
bem alguns questionamentos às idéias assentadas. Na ou esperanças ...) vem sempre coisa pior ou mais feia. de maior peso, capaz de sensibilizar mais os que tomam
verdade, já não é tão prioritário tombar edifícios monu- Assim, vão-se embora o bar favorito, o cinema que ali- decisões. No entanto, nada. Talvez porque só se perce-
mentais. Ninguém sabe o que fazer com eles e come- nhavava pessoas e grupos diferentes, a calçada onde be e avalia o que aconteceu depois de totalmente acon-
ça a ficar difícil inventar e conservar tantos museus. Mui- se realizavam as intermediações rituais casa/rua, os edi- tecido, quando já não há mais volta.
to mais urgente é manter as cidades vivas, oxigenar a fícios onde se podia trabalhar e morar ao mesmo tem-
sua água, em vez de trocá-Ia de vez, deixando apenas Espaços centenários ou bicentenários são substituídos
po. São substituídos por uma geografia de fantasmas
os peixes e alguns enfeites fixos no aquário. Os urba- sem parar nas cidades brasileiras. Suportavam bem to-
e nostalgias. A violência é tão explícita que, mesmo con-
nistas começam a duvidar de ações revolucionárias que tra todas as chances e nos momentos menos propícios, do tipo de uso. Os novos são inferiores, mesmo no ca-
viram tudo de pernas para o ar, mas que deixam into- houve gente que não se conformou. Partiu para a briga so excepcional de serem bem desenhados. A razão é
cada a sua capacidade de designar, de decretar sim ou simples: excluem a mistura, especializam, isolam e tor-
contra as fantasias mentirosas de renovação urbana,
nãa Começam a entender o que Gaudi queria dizer com nam as variações difíceis. Há situações mais graves,
enfrentou as onipotentes razões do mercado e os arbí-
"ser original é voltar às origens". quando, onde antes havia quarteirões e bairros carre-
trios políticos, travestidos de argumentos técnicos ir-
respondíveis. Em alguns casos registraram-se ganhos gados de vitalidade, são criados apenas vazios e esta-
Do jeito que vem sendo praticada, a preservação é um cionamentos.
estatuto que consegue desagradar a todos: o governo heróicos, tamanha a desproporção entre os contendo-
fica responsável por bens que não pode ou não quer res. Talvez por esse filão se possa encontrar novos ar- As áreas imediatamente periféricas aos centros das ci-
conservar; os proprietários se irritam contra as proibi- gumentos e novas maneiras de preservar. dades grandes foram as maiores vítimas. Teorias de ur-
ções, nos seus termos injustas, de uso pleno de um di- De preservar ou de renovar. Os americanos dizem ur- banismo, pouco testadas, ajudaram a implantar uma po-
reito; o público porque, com enorme bom senso, não ban renewal means negro removal. Aqui a mesma fra- lítica de terras arrasadas. Imaginava-se que, abrindo cla-
consegue entender a manutenção de alguns pardieiros, se poderia ser usada, desde que se trocasse negro por ros, a pujança e a valorização de núcleos hiperconges-.
enquanto assiste.à demolição inexorável e pouco inte- pobre. Os planos de "renovação urbana" não deslocam tionados iriam se alastrar. Crença ingênua, pois as leis
ligente de conjuntos inteiros de ambientes significati- apenas os condenados pelo "crime" de estarem ocu- do crescimento urbano não correspondem à dos vege-
vos. Sem que peçam suas opiniões, acabam com os pando lugares tornados bons demais para eles. Carre- tais no trópico. Apenas surgiram estoques de baldios,
meios de transporte convencionais e que ainda servem gam junto uma quantidade enorme de hábitos cultu- favoráveis a complicadas obras no sistema viário, que
bastante, para substituí-Ios por outros "modernos" e rais e de atividades econômicas, julgados tão despre- atraíram maior número de veículos para o centro. Os
"eficientes" logo superados, incapazes de cumprir o pro- zíveis que nem são levados em conta. A conseqüência vazios, provocados através de demolições e alterações
metido. Ou deixam que sistemas ótimos se deteriorem são destruições em muitos planos. Nas áreas transfor- completas dos tecidos urbanos, favoreceriam a expan-
a ponto de parecer lógica sua erradicação. É bem o que madas, os antigos moradores não encontram mais on- são imobiliária com os conseqüentes acréscimos nas
aconteceu com as redes de bondes no início dos 60. de ficar. Pior: não têm mais chance de localização equi- densidades e as mudanças do uso do solo.
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As lógicas que presidem o crescimento das cidades são ~ Teorias de urbanismo.
outras. O Brasil viu uma coleção de fracassos urbanos tf pouco testadas. ajudaram a
a partir de expectativas que não se cumpriram. A vio- implantar uma política de
terras arrasadas.
lência das intervenções criou valores concentrados mui-
to altos. A solvabilidade é lenta. O capital especializa-
do não se motivou. Preferiu investir em lugares onde
externalidades já existentes e demanda social efetiva
garantiam lucros mais rápidos. Resultado: centros
cheios de "zonas cinza" e "brancos", perigosos e con-
taminadores, ótimos exportadores de decadência para
tudo o que estiver em volta.
O Rio de Janeiro, desde o início do século, se constitui
em um triste exemplo. Sofreu tantas experiências e pa-
rece que ninguém se dispôs a aprender com elas! A ave-
nida Presidente Vargas, aberta nos anos 30, ainda está
cheia de terrenos desocupados. No mesmo período, ali,
bem juntinho, a Rio Branco se "renovava" sem parar.
Como e por que o contraste e o paradoxo? Antes que
alguém buscasse respostas, foram desenhados e exe-
cutados projetos ameaçadores para os bairros circun-
vizinhos: Lapa, Catumbi, Estácio, Cidade Nova, Man-
gue, Zona Portuária ... Alguns desses IU:;Jaresdeixaram
Considero os núcleos, as áreas de maior concentração cidade a espaços. Sobrepunham-se a fundos que se es-
de existir, foram apagados não só do mapa, mas tam-
bém da vida afetiva, social e econômica de milhares de e movimento das grandes cidades, os casos mais dra- truturavam para e a partir de sua diferença. Explicavam
cariocas. A justificativa não deixa de ser terrível: não máticos. Verticalizados em alguns pontos, cheios de re- ~ e aliviavam as monotonias da igualdade. Perdeu-se tal
prestavam mais; compensava eliminá-Ias. Lá havia ri- mendos desfiguradores do tecido urbano, transforma- ciência. Ela anda ausente das modernas realizações do
quezas arquitetônicas, simbólicas e materiais (parece dos em desnorteantes colchas de retalhos ... e envolvi- 'urbanismo brasileiro, cheias de evocações individualis-
que estas pelo menos deviam ser mais comoventes na dos por escombros, vazios e bairros antigos cuja deca- tas e desagregadoras. Soluções egoístas, que apostam
dência é provocada. O pior mesmo são os vazios, ruins no divórcio e que não querem saber de nada de dife-
nossa cultura ...). Foram declaradas desimportantes. No
seu lugar existem agora hectares e hectares de esta- em todos os sentidos. Até porque excitam os governan- rente por perto de cada edificação, tornada um mundo
cionamentos e arremedos de auto-estradas. Para não tes, sempre ansiosos por preenchê-Ios com as obras isolado, uma mensagem magnífica por si mesma. Bra-
ficar de rodeios, é pouco. É nada, se comparado com faraônicas que tanto nos deliciam. Não sou um conser- sília ou a avenida Chile no Rio são assim.
o que havia antes. vacionista rançoso e reacionário. Isto contraditaria mi-
nhas opiniões sobre o que mantém as cidades vivas, Renovação urbana só é aceitável se feita em ritmo pau
Vinte anos de observação profissional das mais notá- sobre a mistura, a complementaridade e o mercado de latino. Se respeitar o timing da simbiose espaço/popu
veis cidades brasileiras enchem-me de melancolia. O Rio, todos os intercâmbios possíveis. Cidades, com as hu- lação/atividades compatíveis. O mesmo poderia dizer
Belo Horizonte, Salvador, São Paulo... só podia ter sido mildes necessidades do dia-a-dia, com as negociações a respeito de preservação. Para falar a verdade, com o
assim? Deve ser a pergunta que todos os meus com- milimétricas que têm de sustentar, podem e devem ser respeito devido às nossas Ouros Pretos e Paratis, prefi-
patriotas, especialistas ou não, devem fazer, desde que constituídas por contra pontos e descontinuidades. En- ro ver as cidades fora do boião de formol, correndo os
gostem de cidades. Passados os delírios do desenvol- tendo a excepcionalidade, a sacralidade mesma do mo- riscos que, mais cedo ou mais tarde, teremos de enten-
vimento, da construção do futuro a qualquer preço, já numento. Ele, porém, só cumprirá bem a sua função se der como nossos riscos. Conheço alguns casos onde
podemos fazer o balanço dos preços que pagamos de resultar de um diálogo entre os que estão no poder e se realizaram, sem estardalhaço, os melhores sonhos
verdade. Um dos mais altos foi a alienação e a indife- a massa dos cidadãos. Tal harmonia já existiu em de- dos técnicos do Patrimônio Histórico. Como, por exem
rença em relação aos ambientes onde se passa a vida terminados níveis da representatividade urbana brasi- pio, em um restinho de rua que sobrou da demolição
da maioria. Já somos 70% de brasileiros urbanizados. leira. do bairro do Catumbi, no Rio, e que chamávamos d
Destes, dois terços têm de usar juntos uns poucos cen- a rua azul. Aí, em duas quadras fronteiriças, havia cor
tros e aglomerações (não mais do que cinqüenta). Apos- Nos centros coloniais, carregados de religiosidade, igre- reres de casas que foram sendo reconstruídas durant
to que, em quase todos, houve retrocessos: o espaço jas de ordens, capelas, oratórios faziam as vezes de mar- mais de 150 anos. Edifícios térreos que foram ganhan
está pior, a habitação mais precária, os transportes mais cos que. continuando o casario homogêneo, quebravam- do acréscimos, águas-furtadas, segundos e terceiros a
deficientes, os serviços mais elitizados ... lhe o ritmo. Preenchiam os vazios, conferiam dramati- dares. Em alguns pontos as fachadas foram modifica

Basta virar a esquina em


avenidas de maior
movimento para encontrar
casarões em uso.

fi?
Corredor Cultural
Projeto de Revitalização de
Quarteirão (autor: arquiteto
Augusto Ivan Freitas
Pinheiro).

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das: frontões acrescentados, ornamentos art-nouveau, de tentar retribuir-Ihes o favor, dignificando os espaços de lazer. Naturalmente juristas e financistas terão tam-
geometrismos art-déco, perqulados modernos. Não era em que vivem e trabalham, sem espoliá-los, bém de contribuir para resolver os problemas de pro-
incomum que nas partes superiores aparecessem esti- priedade, de empréstimos, de relações entre senhorios
los ao gosto dos anos 50 e 60. O que era extraordiná- As soluções possíveis são muitas. No Brasil quase to- e inquilinos ... E os governos municipais e estaduais te-
rio é que os ritmos se preservaram. Onde havia arcos das são apenas hipóteses. Um bom caminho seria o uso rão de estar muito dispostos. Existem experiências exi-
de portadas de granito embaixo, se fazia uma varanda do estatuto da preservação ambiental. Este instrumento tosas no estrangeiro que podem servir de exemplo, Aqui
com arcos de alvenaria por cima. Onde corriam mol- seria um desafio para os urbanistas que deveriam bus- mesmo já foram tentadas algumas.
duras e platibandas, elas eram repetidas em versões car propostas físicas, jurídicas e fiscais que harmoni-
atualizadas. Os cheios e vazios eram renovados ou re- zassem sítios e edificações preexistentes com novas O gue disse a respeito de habitação também sé aplica
produzidos, mantidas as proporções de antes. Sendo obras. Usando a preservação ambiental, teriam de le- a outros fins. Há usos institucionais que cabem muito
as paredes mais velhas revestidas de azulejos azuis e var em consideração os laços entre os espaços e as ati- bem em edifícios ou quarteirões recuperados. Secreta-
brancos, o padrão foi perpetuado através do tempo. vidades econômicas e sociais que já suportam, antes rias, institutos, universidades ... Ah, se, em lugar dos iso-
Quem teve menos recursos pintou nessas cores. Quem de pensar no que se deseja para o futuro. Teriam, por- lados e inviáveis centros administrativos e cidades uni-
pôde mais usou azulejos mesmos, incluindo prosaicos tanto, de observar com cuidado como é a vida onde que- versitárias de que nossas capitais estão cheias, tivés-
azulejos de banheiro e cozinha. O resultado é bonito, rem intervir e entrar no seu fluxo. Isto significa enorme semos as unidades soltas, entremeadas com outras
comovente. Os moradores conseguiram manter o "es- contato com moradores e usuários, esclarecendo-os, le- construções em bairros velhos que valesse a pena con-
pírito" de sua rua, sem deixar nunca de lhe dar contri- vando-os a descobrir e cultivar os valores do lugar, per- servar! Desde que haja cuidado em não criar guetos,
buições. Como o fizeram? Vivendo nela e gostando do mitindo que participem das decisões. é ótimo conjugar muitos usos (trabalho, lazer, residên-
que possuíam. Eram todos descendentes de açorianos, cia) em uma única área. O que é de todo indesejável
alguns há cinco ou seis gerações no Brasil. Faziam a Uma última observação: todos sabem que nossos pro- é que as soluções urbanísticas sempre gerem conflito,
sua festa do Divino durante quarenta dias, todos os blemas habitacionais são sérios. As tentativas oficiais agridam a paisagem e a arquitetura remanescente de
anos. Memória, festa, casa, rua, família, vida armavam de resolver a moradia dos mais pobres e mesmo da clas- outras épocas e prejudiquem a população. Que sejam,
um campo único de significados. se média levaram a um impasse. As cidades estão cheias em suma, violências, produtos bem ou mal-intenciona-
de bairros velhos que constituem um excelente esto- dos de insensibilidade cultural. •
É pena que, em geral, quando se pensa em "preservar" que, na maioria dos casos em uso. Destruí-Io equivale
uma área urbana qualquer, tudo o que se invente logo a destruir riqueza, prática absurda em um país onde nem
Nota - Agradeço as idéias e sugestões do arquiteto Augusto lvan de
implique tirar aquela gente pobre que está lá, encardindo, sequer são produzidas casas suficientes para atender Freitas Pinheiro. cujo excelente trabalho no Corredor Cultural no Rio
incomodando. Ninguém pensa que seções inteiras de ao acréscimo da demanda. Arquitetos e engenheiros po- de Janeiro é um exemplo do que deveria ser feito no centro das gran-
nossas cidades não estariam aí, em pé, se não fossem dem encontrar nesse campo terreno fértil para experi- des cidades.
usadas por hoteizinhos, oficinas, lojinhas, prostitutas, mentações. Palacetes e mansões podem ser desmem- Carlos Nelson F. dos Santos formou-se pela Universidade do Brasil. em
bares, depósitos, manufaturas, clubes e associações, brados internamente como edifícios de apartamentos. 1966. É mestre em antropoloqia social e doutor em planejamento ur-
bano.. Atualmente é chefe do Centro de Pesquisas Urbanas do Institu-
cabeças-de-porco ... Pardieiros sim, mas vivos, funcio- Casinhas mínimas podem ser intercomunicadas, segun- to Brasileiro de Administração Municipal e professor.da Universidade
nando. Se alguém quiser saber a diferença, deixe uma do padrões não convencionais, resultando unidades Federal Fluminense.
casa nova em folha vazia, sem uso nenhum por uns cin- maiores. Vilas e avenidas particulares podem ser rea-
"Célebre personagem que surge na sociedade alemã do século XIX,
co anos. Virará uma ruína. Temos de agradecer, portanto, bilitadas. Os pátios internos podem ser desimpedidos, já adulto, sem ter sido devidamente socializado. A procedência desco-
às camadas mais pobres. Há quase duzentos anos são virando praças públicas ou semipúblicas, integradas ao nhecida e a falta de domínio dos códigos de comportamento criam em
os maiores guardiães do nosso patrimônio. Já é tempo desenho do bairro, servindo a atividades de trabalho e torno -dele um clima insuperável de desconfiança e mal-estar.

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