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COSACNAIFY
9 apresentação Pedro Fiori Arantes
1 PROPOSTA
2 CORTE
3 ESBOÇO
4 TESE
5 GRENOBLE
7 COMENTÁRIOS FINAIS
1 Fala aos estudantes na fauusp, fevereiro de 2002, citada em Pedro Fiori Arantes.
“O retorno de Sérgio Ferro”, em Arquitetura e Urbanismo, n. 118, pp. 55-57, out. 2005.
2 A ponto de, apenas quatro anos após formado, ter um número especial da principal
revista de arquitetura do país dedicado ao seu trabalho e de seus dois companheiros,
Flávio Império e Rodrigo Lefèvre.
3 Foi, por isso, responsabilizado pelo fato de parte de uma geração — nos anos 1970 e início
dos 1980 — ter, supostamente, “abandonado o desenho”. Esta versão simplista, que estig
matizou Sérgio e seus simpatizantes à época, não reconhece a importância do contexto
histórico em que opções foram tomadas, marcado pela luta política contra o regime
militar e, ao mesmo tempo, pelo crescimento vertiginoso das cidades — e, na confluência
destes dois elementos, o nascimento de movimentos sociais urbanos (indicando a possibi
lidade da aliança entre técnicos e povo organizado). Para profissionais e estudantes não
conformistas, a militância contra a ditadura não apenas era legítima como necessária; e
a percepção de que o acesso formal à terra e à habitação era negado à maioria da popula
ção exigia dos arquitetos uma nova postura diante da cidade e de suas enormes periferias
clandestinas e autoconstruídas em expansão (o que os levou a ver o projeto de edificações
como tema menos relevante e, por esse motivo, a se distanciar posteriormente da própria
discussão desenho/canteiro de Sérgio Ferro). Por fim, os textos de Sérgio aqui apresenta
dos se encarregarão de desmistificar afirmações que tomam a arquitetura como desenho.
ie doenças do trabalho etc.) pode tornar-se já o lugar de uma das mais belas
exnressões do espírito, da comunidade livre”.4
Os textos de Sérgio Ferro aqui reunidos, ainda que ensaios críticos sem con
cessões, não promovem um réquiem da prática arquitetônica. Ao contrário, da
lucidez de sua formulação nasce a disposição para o novo — como se verá.
No primeiro capítulo, PROPOSTAS, apresentamos dois textos escritos entre
1963 e 1965, que estabelecem o programa estético e político para as expe
riências em arquitetura daqueles anos de Sérgio, Flávio Império e Rodrigo
Lefèvre. O primeiro, “Proposta inicial para um debate”, é um manifesto
redigido por Sérgio e Rodrigo, então os dois mais jovens professores da Facul
dade de Arquitetura e Urbanismo (fau) da Universidade de São Paulo, com
24 anos, convocando estudantes e professores a se definirem na escolha de
uma orientação clara, participante das transformações sociais em curso no
país — naquele momento, no auge do debate político das reformas de base. Os
dois adotam, já nesta primeira intervenção, uma perspectiva marxista para a
crítica e a intervenção no campo da arquitetura e questionam a possibilidade
de uma confluência “harmônica” entre um projeto popular, que responda às
necessidades vitais do povo, e o desenvolvimento das forças produtivas, por
meio da industrialização, planejamento e racionalização da construção. Ou
seja, põem em dúvida a premissa moderna de que progresso e democratização
andariam juntos, afirmando que, ao avanço nas forças produtivas, pode não
corresponder maior igualdade social, pelo contrário. Os dois jovens cobram
dos demais arquitetos, diante da percepção de que a contradição entre capital
e trabalho se aguçava no Brasil, uma “tomada de posição” na luta de classes.
Noutros termos, propõem uma aliança entre técnicos e trabalhadores — mote
de toda a produção futura de Sérgio —, e um programa estético (ainda frágil)
para o campo da construção, “a poética da economia”: a formulação de uma
nova linguagem, a do absolutamente indispensável, estabelecida inteiramente
com base na nossa realidade, para responder às necessidades do povo brasileiro.
A apresentação de projetos de Sérgio, Flávio e Rodrigo na Revista Acró
pole — casas dirigidas a amigos e familiares — rebatizada aqui de “Arquitetura
experimental”, nos faz compreender melhor o que na prática entendiam por
“poética da economia” e no que se diferenciavam do programa moderno.
Depois da experiência fracassada na utilização de componentes industrializa
dos para vedação de uma de suas casas, os três arquitetos decidem explorar as
possibilidades da racionalização das técnicas e materiais populares e tradicio
nais, despreocupados com qualquer “modernidade construtiva” — “a melhor
5 O que eles menos podiam esperar era que a apresentação na Acrópole fosse antecedida por
um texto de Artigas que se opunha claramente a esta sensação de crise e frustração, com o
título “Uma falsa crise”. Nele, Artigas pretende demonstrar que tanto o funcionalismo em
arquitetura quanto a modernização não estavam sendo interrompidos pelo Golpe.
6 O crítico literário Roberto Schwarz foi um dos primeiros a notar seu valor e a lhe dar
sequência, em “Cultura e política: 1964-1969” (O pai defamília. São Paulo: Paz e Terra,
1978), ao inserir a interpretação de Sérgio numa análise mais ampla e sistemática da
cultura brasileira no período posterior ao Golpe.
S-ergio nota ali uma contradição, impulsionada pelo Golpe, entre forma
e$:eíica e conteúdo social na arquitetura. O corte de perspectivas não impli
cou de imediato um retrocesso formal (os militares não exumaram estilos
do passado), mas o aprofundamento, numa afirmação renovada e acentuada,
das posições originais. Entretanto, a violenta inversão do seu conteúdo social
produziu o impasse de uma forma artística que seguiu adiante, num contexto
truncado, no qual foi sendo progressivamente desautorizada pela situação
histórica, até deformar-se por completo. No caso da arquitetura, essa plasti
cidade será investigada por Sérgio na crítica ao falseamento das estruturas,
uma distorção que se torna, ao fim, adaptação à situação dada. O resultado é
uma arquitetura que, deslocada no contexto e desvinculada de um programa,
apresenta-se sob o signo da auto-referência (autismo do qual até hoje não
escapou), produzindo a dissociação completa entre progresso técnico e qual
quer promessa de avanço social. Esse é o campo no qual irão aflorar tanto a
venda privada de um conhecimento até então tido como coletivo quanto, na
crítica, interpretações imanentistas, que subordinam a análise a uma suposta
significação e verdade internas à obra.
Nos anos seguintes, 1968-69, Sérgio ministra um curso de pós-gradua
ção na FAU, do qual suas anotações de aula são aqui apresentadas no capítulo
ESBOÇO — notas que servirão como rascunho para “O canteiro e o desenho”
(197^)j mas cuí° valor é notável, principalmente o das partes suprimidas por
Sérgio na versão acabada (como “A casa popular” e “A mansão”). Nesses
esquemas de aula, rebatizados aqui como “A produção da casa no Brasil”, já
se percebe o aprofundamento na formação marxista de Sérgio, decorrente
sobretudo de sua participação naqueles anos no grupo de leituras de O capital,
de Marx, e na Revista Teoria e Prática, ambos com colegas da Faculdade de
Filosofia da usp, na rua Maria Antonia.7
Em “A produção da casa no Brasil” há um deslocamento progressivo da
8 Uso aqui a inversão livre da expressão de Roberto Schwarz “As idéias fora do lugar”,
proposta por Francisco de Oliveira e adotada por Ermínia Maricato para descrever outra
zona de sombra: a cidade clandestina, oculta aos olhos do urbanismo moderno, do Estado
e dos direitos da cidadania. Cf. A cidade do pensamento único. Petrópolis: Vozes, 2000.
metodicamente pela crítica de Sérgio, que descreverá o canteiro como um lugar
importante na luta de classes, na extração de mais-valia e na alienação do traba
lho, local onde se forma e se dá forma ao fetiche da mercadoria-arquitetura.
“A produção da casa no Brasil” é, assim, tanto uma leitura introdutória
fundamental a “O canteiro e o desenho”, pois nos prepara a enfrentar a
atmosfera mais rarefeita da teoria, como também possui luz própria. Nele,
por exemplo, Sérgio interpreta com particular interesse a questão da moradia
no Brasil, tema não mais abordado nos textos posteriores. Foram suas ano
tações sobre a “Casa popular” que deram as principais coordenadas para
toda uma geração de críticos da autoconstrução nos anos 1970. Sérgio foi o
primeiro a apontar que o caráter atrasado da autoconstrução nas periferias
estava diretamente associado ao padrão de industrialização do país, e que esta
forma rudimentar de provisão habitacional, baseada na economia e esforço
próprio dos trabalhadores, colaborava para a redução de seus salários no setor
/
moderno. E deste modo que a produção de um valor de uso, a casa feita pelo
morador, aparece socialmente como valor de troca — pois permite que se
abrigue a baixíssimo custo uma mercadoria especial: a força de trabalho.
E assim que “a produção aparentemente marginal revela o sistema total
mente inclusivo”.
Ainda neste texto, Sérgio caracteriza o atraso da indústria da construção
no Brasil e avalia suas causas, tema igualmente não mais retomado. Em
linhas gerais, as razoes por ele apontadas são: a abundância de mão-de-obra
(diferentemente da Europa na reconstrução do pós-guerra, quando a escas
sez de trabalhadores impulsionou a pré-fabricação); a estrutura arcaica do
campo, estimulando uma migração ininterrupta para as cidades; o interesse
dos empresários em manter uma baixa composição orgânica do capital no
setor (elevada taxa de capital variável, isto é, muita força de trabalho e redu
zido capital constante — meios de produção, como máquinas), o que torna a
construção fonte generosa de mais-valia; a posição retrógrada dos operários
em relação à técnica, como estratégia para garantir o emprego; a irrigação do
estreito mercado de classe média por operações financeiras, como a criação do
Banco Nacional de Habitação (que mobilizou fundos dos trabalhadores para
“impulsionar com novo vigor o desumano processo tradicional da construção
civil”); e, por fim, um interesse geral dos demais setores da economia em
manter áreas atrasadas de produção, uma vez que a mais-valia excedente ali
produzida alimenta a todos por meio de mecanismos de compensação.
Percebendo semelhanças entre o quadro de atraso que descrevia no can
teiro de obras e nossa condição de economia subdesenvolvida, Sérgio faz uma
provocadora analogia ao comparar a posição da construção civil na economia
nacional com o papel que cumprem os países subdesenvolvidos na economia
mundial. Subdesenvolvimento e atraso na construção, por isso, não devem ser
entendidos como anomalias ou etapas a serem vencidas, mas como parte coex-
tensiva do próprio desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo.
Extraindo as conseqüências desta interpretação, Sérgio não acredita que
a industrialização da construção ocorrerá de modo consistente no Brasil
enquanto questões mais fundamentais da sociedade não forem enfrentadas
— reforma agrária, pleno emprego, melhores salários, universalização da edu
cação, moradia etc. Ou seja, a superação do atraso na construção só se daria,
de fato, num quadro de superação do próprio subdesenvolvimento. E nada,
naquele momento de reação conservadora, permitia afirmar que, no Brasil,
tais reformas iriam ocorrer dentro do capitalismo.
Nesses anos, Sérgio participa da luta armada, integrando a ALN (Ação
Libertadora Nacional), de Marighella. Realiza ações de guerrilha urbana, é
preso, torturado e exilado.
Na França, já como professor da Escola de Arquitetura de Grenoble,
finaliza o que denominamos, na estrutura desta coletânea, sua TESE, a qual
envia para a revista Almanaque — uma publicação animada por professores de
filosofia e crítica literária em São Paulo — em 1976, ainda durante os anos de
repressão (sairá em livro, pela editora Projeto, em 1979). Sérgio justifica em
parte 0 hermetismo notório do texto como forma de enganar a censura. Entre
tanto, a dificuldade de leitura pode ser atribuída à forma como ele aborda seu
objeto pelo método dialético, e da grande quantidade de novas referências, não
apenas marxistas, como também vinculadas ao debate francês pós-1968 — com
binando sociologia do trabalho, estruturalismo, pós-estruturalismo, antropolo
gia, psicanálise e teorias da percepção e do desejo.
“O canteiro e o desenho” é a obra central de Sérgio Ferro. Nela, estabe
lece uma nova dimensão para seu trabalho: a tentativa de produzir, de forma
consistente, uma teoria crítica da arquitetura. Em torno dela gravita toda
sua produção teórica e prática (inclusive no campo da pintura). Seus escritos
anteriores podem ser entendidos como esboços preparatórios dessa formula
ção essencial e, o que se seguirá, não importa se variando as obras estudadas
ou ampliando e renovando as referências, é uma obstinada reiteração dessa
versão original.
Em “O canteiro e o desenho”, Sérgio pretende decifrar o mistério da “farsa
da construção” e demonstrar que a elaboração material do espaço é mais uma
função no processo de valorização do capital do que fruto de alguma coerência
técnica ou artística interna à obra. Sua hipótese central é de que o desenho
de arquitetura é o “caminho obrigatório” para a extração da mais-valia e não
pode ser separado de qualquer outro desenho para a produção de mercado
rias — um “detalhe” sintomaticamente esquecido pelas teorias hegemônicas.
Segundo Sérgio, cabe ao desenho dar ligadura, servir de molde onde o trabalho
idiotizado é cristalizado — por isso ele é mais fôrma do que forma.
Sua convincente caracterização da produção da arquitetura como organi
zação do trabalho em forma de manufatura9 — sucessão de operações, divisão
acentuada do trabalho, habilidade técnica do produtor no uso de ferramentas
simples e ausência de máquinas comandando a produção (ou seja, a chamada
indústria da construção não é uma indústria) — lhe permite diversas interpre
tações interessantes. Na manufatura, o capital divide o trabalhador, separa suas
ações em pedaços, numa decomposição forçada dos ofícios. As equipes são orga
nizadas para tarefas limitadas nas quais a compreensão do conjunto do pro-
/
cesso, presente no artesão, é dispensada. E na divisão manufatureira do traba
lho que surge a figura do arquiteto com seu “desenho separado”, encarregado
da concepção da totalidade do objeto. No canteiro de obras, a fragmentação e a
hierarquização criam uma pirâmide que define o grau de acesso a informações,
partindo do mestre capacitado a ler os desenhos até os inúmeros serventes que
apenas transportam cargas sem saber de nada — são energia em estado puro. As
separações também procuram enfraquecer o poder político dos trabalhadores,
através de demissões e transferências freqüentes, evitando a formação de fortes
identidades em cada equipe de trabalho.
A todas essas separações corresponde o seu contrário: uma re-totalização
forçada sob o comando do capital. Forma-se o “trabalhador coletivo”, que é a
reorganização dos trabalhos separados em função da produção da mercadoria
definida a priori. O desenho, por sua vez, determina a convergência das diversas
ações num produto final - ajudado, é claro, pelo capataz. Assim, o trabalho é
separado e reunido por uma dupla violência, uma vez que não há livre associa
ção entre os trabalhadores. Sob a aparência da neutralidade técnica ou da liber
dade formal, ele segrega, degrada e idiotiza o trabalho, ao mesmo tempo que
fornece o molde em que se coagula o trabalho separado.
A combinação contraditória entre técnica de produção e técnica de domi
nação, própria ao capitalismo, expressa-se, desse modo, de forma mais nítida
nos canteiros de obra do que na indústria, afirma Sérgio, pois a ausência da
mediação mecânica deixa transparecer com clareza o comando arbitrário da
exploração. A especificidade da divisão do trabalho na manufatura é, por isso,
a violência — e uma instabilidade sem tréguas —, num setor que, teoricamente,
deveria buscar a estabilidade e o acúmulo de experiência e saber. Por sua vez,
na ausência das distâncias impostas pela mecanização da indústria, são ins
tauradas outras distâncias, a “mediação arquitetônica” (formalismo, jogo de
12 Uma aplicação mais extensa e sistemática desse método é feita por Sérgio em sua inter
pretação da capela Mediei, comparando Michelangelo escultor e arquiteto. Michel-Ange:
architecte et sculpteur de la Chapelle Medieis (igg8). Grenoble: Plan fixe édition, igg8.
e experimentais articulando o ensino das escolas de arquitetura, engenha
ria e belas-artes de todo o país. O pólo aposta numa “pedagogia do fazer”,
explica, e não é uma escola substituta às existentes, mas um espaço peda
gógico complementar, que colabora na investigação da dimensão prática. A
noção de “material”, em seu sentido amplo, como já comentado, também é o
alicerce do programa de ensino, entendido “como objeto físico (com pressões
de forma, de força, de materiais) e como objeto econômico (com pressões de
produção, de manipulação, de ambiente, de uso)”. O Ministério da Constru
ção, para aprovar e financiar o pólo, entretanto, alterou a proposição original,
esvaziando seu conteúdo crítico, e Sérgio abandonou o projeto.
A partir da segunda metade dos anos 1980, com as mortes de Rodrigo
Lefèvre, Vilanova Artigas e Flávio Império, Sérgio passa a ser convidado,
no Brasilia realizar balanços sobre sua trajetória e de sua geração por meio
de entrevistas, depoimentos e novos textos, alguns deles reproduzidos em
RECAPITULAÇÕES BRASILEIRAS. É assim que Sérgio retoma a interlocução entre
a experiência brasileira e a forma geral de reprodução do capital no ambiente
construído, presente no texto de 1969 (“A produção da casa no Brasil”). As
suas idéias voltam a assentar-se sobre seu lugar concreto, de origem — a
periferia do capitalismo —, e a encontrar aqui o espaço onde, de fato, estão
enraizadas e são enunciadas. Mesmo no centro, na França, foi sua condição de
arquiteto da periferia que lhe permitiu perceber no canteiro de obras aspectos
próprios ao subdesenvolvimento, e entender a economia política da constru
ção como alegoria do desenvolvimento desigual e combinado.
Nas três entrevistas aqui apresentadas Sérgio discute nosso “brutalismo
caboclo” — expressão que foi por ele empregada em “Arquitetura nova” para
“chatear e agredir”, mas que servia, depois da análise de La Tourette, como
ironia às avessas, isto é, como forma de afirmar que aqui o brutalismo era um
programa mais verdadeiro do que lá, no sentido de uma proposta coerente
com os problemas locais da periferia, e daí sua sinceridade construtiva, em
oposição ao decor de Le Corbusier —, suas afinidades e diferenças com Vila
nova Artigas, o trabalho em conjunto com Flávio e Rodrigo, a militância polí
tica, as críticas a “O canteiro e o desenho”, a opção pela pintura, as iniciativas
pedagógicas na França, e sua esperança na luta dos movimentos populares,
em especial do MST. Mas, sobretudo, Sérgio retorna à grande experiência da
arquitetura moderna no Brasil: a construção de Brasília.
O depoimento sobre o significado da nova capital, concedido em 2005,
investiga em detalhes os impasses e contradições da ação dos arquitetos bra
sileiros. Sérgio reconhece em Brasília, experiência que viveu de perto (como
jovem construtor, filho de político do PSD e incorporador imobiliário da
22 capital), uma espécie de subsolo nacional que fundamenta toda a sua crítica
futura. Ao olhar para o canteiro de Brasília, Sérgio percebe que a arquitetura
moderna — e, no limite, o próprio capitalismo periférico — reitera (a seu favor)
as condições de atraso que prometia superar. Nota, na contradição em grande
escala entre formas arrojadas que expressavam o desejo nacional de equipa
rar-se rapidamente aos países centrais e seus canteiros de obra em evidente
situação de atraso na evolução das forças produtivas, uma disparidade entre
aparência de modernidade e base econômica real que expõe, por extensão, o
caráter próprio da modernização periférica.
/
tais. E por isso que, por outro lado, Sérgio não hesita em afirmar que a crítica
radical ficará sempre aquém de si mesma se não for acompanhada de uma
prática transformadora — mesmo que ele, pessoalmente, tenha sido impedido
ou se impedido de realizá-la. Contudo, é preciso lembrar que, nas circunstâncias
atuais, não há como promover uma prática alternativa que de fato realize todas as
transformações desejadas — trata-se de fazer aproximações sucessivas. Apenas não
se pode deixar de mirar o alvo: a produção livre da arquitetura.
Sérgio Ferro, sem dúvida, nos faz pensar e anima a agir.
Sérgio Ferro e Rodrigo Lefèvre, casa Helladio Capisano, c. 1961 (brise do pátio interno).
PROPOSTA INICIAL PARA UM DEBATE: POSSIBILIDADES DE ATUAÇÃO
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E preciso deixar claro, contudo, que não houve, aqui, defesa de qualquer
irracionalismo básico na atividade criadora: garantimos, quase, a possibilidade
da orientação claramente estabelecida. Os conflitos que percorrem a nossa
realidade são de tal magnitude, neles estamos de tal modo mergulhados que a
consciência que temos de nós mesmos e da situação real sofre destas incoerên
cias e as contém. A síntese social destas contradições todas, não tendo sido rea
lizada ainda, não podemos pretender possuí-la no pensamento: isto envolveria
t
uma posição de ilusória autonomia da razão que nos recusamos admitir. E
com a consciência clara desta situação-no-conflito que devemos atuar. A lógica
absoluta não pode ser nossa característica: mais que soluções reais, são proble
mas que levantamos. Entretanto, por serem confusas e obscuras as possibilida
des, mais se torna necessário o esforço de conscientização dos vários aspectos e
a procura da segurança das atitudes tem que ser maior. A certeza de um pro
cesso em andamento, garantida pelo exame do passado, nos encaminha para a
criação de acordo com as suas prováveis necessidades atuais. Não é só modo de
conquistarmos clareza para nós, não é só meio para superarmos nossas contra
dições pessoais, mas, através desta intenção, atingiremos o geral e ajudaremos
a clareá-lo e resolvê-lo em parte. A angústia da escolha pessoal, pela indeter-
minação aparente das possibilidades, só será diminuída na medida com que se
perceba suas diferenciações, pela predominância de algumas.
Assim, no momento, todo o complexo desencontrado do meio se reflete no
nosso trabalho. São maneirismos, positivo e negativo, que nos impregnam e
que, por distração ou inadvertência, deixamos tingir nossos estudos. As razões
que nos conduzem, por vezes, se obscurecem em outras implicações que não
estavam em nossos planos. As previsões e antecipações de uma solução, por
mais que tentem se fundamentar, não passam de meras hipóteses e, pela
insistência nestas visões de futuro, a obra se torna freqüentemente inade-
para o caso presente. E o que é grave, sobretudo, as nossas respostas às
solicitações, mesmo que opostas nos interesses e nas finalidades, são seme
lhantes no seu geral.
Apesar de tudo, no essencial, um nítido otimismo aparece: a confiança no
andamento do processo num sentido progressista. Sabemos que as contradi
ções surgidas vêm principalmente das situações de conflito refletidas em toda
ideologia do tempo, onde as várias direções se mancham de suas contrárias,
onde nem sempre é fácil determinar suas origens e seus compromissos. Sabe
mos que a nossa incapacidade de responder diferentemente aos chamamentos
opostos vem mais da nossa participação em uma orientação, que nos envolve
totalmente e contém, em si, os elementos da necessidade histórica. Sabemos
que as simplificações a que somos levados se originam da imensa renovação
que se propõe, onde cada passo deve ser cuidadoso; donde em lugar de sim
plificação, é de “economia” que deveríamos falar, “economia” de meios para
54 formulação da nova linguagem.
NOSSAS OPÇÕES
Esse processo, a que nos referimos, é passível da maior apreensão. Apesar dos
contornos nem sempre claros, no fundamental, dele podemos tirar as linhas
mestras situadas na evolução das bases econômicas da nossa sociedade, das
suas forças de produção e na evolução paralela e dependente da consciência das
oportunidades, que estas forças oferecem, de uma vida mais harmoniosa, una
e total. Por um lado, a produção necessitando de grandes complexos sociais, de
centralização e planejamento da economia, para seu pleno desenvolvimento;
por outro, esta mesma evolução é requerida pelas camadas do povo, tendo em
vista, principalmente, suas necessidades vitais e a humanização das relações
sociais. São exigências comuns a ambos, produção e sociedade, e que, no campo
específico da arquitetura são: o planejamento em todos os níveis, do nacional e
regional ao de pequenos aglomerados, enquanto organização de espaços; a indus
trialização da construção envolvendo os problemas de quantidade e qualidade
em que se produza os materiais de construção, os problemas de módulos e
de pré-fabricados, os problemas de diferenciação das funções, considerando a
necessidade de eficaz divisão do trabalho em que é fundamental o especificar
progressivo da produção; a racionalização da construção, eliminando inter
ferências, na obra, entre as várias etapas de montagem; preparo de pessoal
capacitado e sua devida utilização; a conveniência dos espaços às novas condições
de vida social e individual: o fornecimento, antes de tudo, de sistemas gerais de
construção, de estrutura, de vedação, de uso dos materiais e de espaços, dos quais
os casos particulares sejam só adaptações mais ou menos diferenciadas.
Porém, este andamento harmonioso é impedido pelas contradições maiores
da nossa estrutura; por exemplo, a tendência cada vez maior da produção ser feita
por grandes complexos sociais envolvendo no produzir e no consumir a popula
ção a se expandir, em contraposição ao fato de ser realizada com o fim único de
lucro, deixando de lado as reais necessidades de produtores e consumidores; por
exemplo, a necessidade de planificação nacional e regional da produção agrícola
e industrial, das condições de habitação e trabalho, circulação e lazer tendo em
vista a coletividade, a sociedade como um todo e o atendimento de todos, em con
traposição ao fato de esta planificação ser dificultada por interesse das classes não
necessitadas; por exemplo, os nossos técnicos e intelectuais, com provadas capaci
dades, utilizados indevidamente dentro ou fora de seus reais campos de atividade,
pelo desencorajamento e desvio provocados pela necessidade e possibilidade de
maiores ganhos; e enfim, no sentido mais geral, a divisão entre capital e trabalho
originadora de classes de possuidores de capital e de possuidores de trabalho.
É, portanto, graças à tomada de posição participante no desenvolvimento
35 contínuo, do processo que nossas propostas são mais no sentido de acompa-
nhar esta evolução, apesar da mesma estar sendo truncada no presente por
aquelas contradições, e de nossas obras adquirirem um caráter contraditório
com a situação atual. Assim é que surgiram as propostas de ocupação do lote
urbano, esclarecedoras da urgência de planej amento. Assim é que surgiu a
preocupação, na obra individual, não genérica, do emprego dos materiais
de construção como quando utilizados em larga escala, sempre considerados
como produtos de um processo e destinados a uma função. Assim é que foi
feita uma experiência de pré-fabricação, imprópria no caso, pela pouca quan
tidade de unidades produzidas, e de modulação injustificada pela ausência de
harmonia industrial. Assim é que se diferenciaram as funções — cobertura e
equipamento, estrutura e vedação, etc. — para favorecer economia na produção
e no consumo, tanto dos materiais empregados como da obra acabada, e que
só em conjunto tomam sentido. Assim é que foram gerados os novos espaços,
mais adequados às próximas relações sociais, e sua mobilidade, como fator de
economia no futuro, ao permitir a múltipla utilização de um mesmo local, e
no presente, ao enfrentar as dificuldades de transferência de habitação com
a adaptação desta às condições variantes. Assim é que se impôs uma unidade
dos espaços, tendente a aumentar, baseada em uma unidade fundamental da
atividade humana, por enquanto irrealizável. Assim é que, desta atitude cria
dora positiva, acreditamos, numa tentativa de substituir, pelo vigor da afirma
ção, a falha quase total de conteúdo instantâneo, deriva o caráter didático das
soluções, por vezes a razão primeira da insistência na clareza dos espaços, na
diferenciação acentuada desnecessariamente do uso dos materiais, etc.
Assim é que do mínimo útil, do mínimo construtivo e do mínimo didático
necessários, tiramos, quase, as bases de uma nova estética que poderíamos cha
mar a “poética da economia”, do absolutamente indispensável, da eliminação de
todo o supérfluo, da “economia” de meios para formulação da nova linguagem,
para nós, inteiramente estabelecida nas bases de nossa realidade histórica.
CONCLUSÃO
Esta apresentação não pretende ser mais que uma colocação de problemas e
dúvidas. Não há outra intenção que a de fornecer elementos dos quais partir
para um debate aberto da atividade profissional. Nenhuma conclusão é ina-
/
36
ARQUITETURA EXPERIMENTAL •
1965
Flávio Império
Rodrigo Lefèvre
Sérgio Ferro
RESIDÊNCIA NO SUMARÉ
projeto: Rodrigo Lefèvre e Sérgio Ferro, arquitetos
construção: Cenpla
proprietário: Marietta Vampré
local: Rua João Moura e Rua Praxedes de Abreu, São Paulo
40
RESIDENCIA NO ITAIM
projeto: Rodrigo Lefèvre e Sérgio Ferro, arquitetos
construção: Cenpla
proprietário: Albertina Pederneiras
local: Rua Eduardo de Souza Aranha, São Paulo
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RESIDÊNCIA EM PERDIZES
projeto: Rodrigo Lefèvre e Sérgio Ferro, arquitetos
construção: Cenpla
proprietário: Helladio Capisano
local: Rua Monte Alegre, São Paulo
Para ganhar em perspectiva o espaço quase inexistente, a construção foi elevada. Envol
vendo o pátio interno (núcleo do qual participam todos os ambientes) os vários níveis,
volumes, materiais, texturas se desenvolvem num espaço contínuo, em contraponto. A
luz é controlada na cobertura de cristal por placas móveis; salienta, alternadamente, os
vários detalhes, originando contínuas modificações no conjunto.
42
RESIDÊNCIA NO BUTANTÃ
A cobertura, apoiada em quatro pilares centrais, protege uma área maior que a da
casa, formando vários terraços cobertos. Sua regularidade facilita o emprego das placas.
Quando necessário, é ampliada por lajotas pré-moldadas. As placas organizaram livre
mente o espaço, apesar da rígida modulação. As instalações elétricas aparentes facilita
ram o trabalho e foram fator de economia.
RESIDÊNCIA EM COTIA
projeto: Sérgio Ferro, arquiteto
construção: Cenpla
proprietário: Bernardo Issler
local: Granja Viana, Estrada de Cotia
Uma abóbada circular, construída de vigas retas de tijolo furado, com o auxílio de
cambotas simples de madeira. Foi erguida em poucos dias por um só homem. A inde
pendência da cobertura permite, simultaneamente, o rigor estrutural e o livre manejo
do espaço interno, a distribuição de funções e áreas de acordo com um sistema de vida
mais integrado e dinâmico, a mobilidade e economia espacial, podendo cada ambiente,
desprovido de desnecessários excessos, ter mais de um uso. São, também, de tijolo, as
divisões internas e os “móveis”, já incluídos na obra (camas, mesas, pias, bancos e
armários). A experiência teve custo bastante baixo: o preço do metro quadrado de cons
trução não ultrapassou a metade do preço em São Paulo.
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CORTE
Mas, este exagero tem ainda outras fontes. E que aquelas propostas, ape
sar de não se terem concretizado no nível em que foram pensadas, serviam,
porém, para finalidades distintas, e até opostas. Assim, os estudos sobre pla
nejamento ou sobre nossa limitação construtiva hoje são utilizados, depois
de convenientemente deformados, pelas forças mesmas que estas intenções
modificadoras, em essência, contrariam: a ditadura e o imperialismo. O
planejamento, de exigência de máximo aproveitamento de recursos se trans
forma em aparelhamento para restrições internas e subserviência aos senho-
res da técnica mais evoluída (e do capital) que a impõem sem qualquer con
sideração pelas condições brasileiras que violentam e desconhecem. Um dos
resultados é a indigestão e mais a paralisação do empenho por um desenvolvi
mento autônomo e apropriado, isto é, o contrário dos propósitos originais que
orientam aqueles estudos. Por outro lado, a indústria da cultura (o sub-dese-
nho industrial, as revistas “especializadas”, a arquitetura decorativa ou imi-
tativa, etc.) e mais a especulação imobiliária, selecionando habilmente entre
as propostas, souberam também inverter em seu proveito as que não eram por
demais agressivas. A inesgotável capacidade antropofágica do sistema baseado
no comércio forçado pela propaganda de mercadorias frequentemente supér
fluas, com sua crônica carência de novidades estimulantes, deglutiu, com faci
lidade, o que parecia conter todos os requisitos de uma atitude modificadora,
e a arquitetura brasileira, castrada, serviu de agente de vendas.
Este consumo contínuo e voraz da linguagem, permanentemente enfra
quecida em sua agressividade pela banalização espúria que dilui a carga
expressiva, somada às reduções do campo profissional provocadas pela crise,
explica melhor o absurdo concreto que são as manifestações principais da
nova arquitetura. Trancados cada vez mais nas obras isoladas e particulares
(de tipo residência burguesa, loja ou clube, por exemplo) os arquitetos foram
duplamente pressionados a aproveitar esta deturpação profissional, que é a
venda privada de um conhecimento coletivo, como angustiada e contradi
tória oportunidade para a afirmação insistente de suas teses mais genéricas.
Obras isoladas, mesquinhas no seu significado próprio, e, por fugirem ao
controle direto do sistema, obras que retêm os mais amargos contrastes do
mesmo sistema. A presença chocante de teses gerais na particularidade vazia
destas obras, demonstra, claramente, o impasse a que chegaram arquitetos e
a prática da profissão: sua afirmação só é possível dentro de um projeto que
os compromete.
A somatória das duas solicitações adversas, a particular e a teórica modi
ficadora, produz construções híbridas, desconexas, cuja mensagem se emba
ralha a si própria pela retórica que deve empregar. Quando a oposição não
é escondida, mas evidenciada com veemência, então esta oposição entre o
que os arquitetos sabem, e propõem, e o que lhes permitem assume objetiva
mente, na construção, as características da denúncia. Mas a distância entre
a consciência de sua capacidade e a prática sem substância pesa e marca a
tentativa. E, na denúncia, aparecem sinais da contradição não superada. Os
arquitetos bloqueados nas direções que deveriam tomar experimentam vencer
a limitação pintando os limites com as formas das direções. Alienados de sua
função real por um sistema caduco, reagem dentro da faixa que o sistema lhes
50 atribui, aprofundando, com isto, a ruptura entre sua obra e a situação objetiva
a ser combatida. Para enfrentar as forças negativas que os diluem, aceitam a
fragmentação da particularidade, o que é outra forma de diluição. Adensando
seus projetos, revestindo-os de malabarismos expressivos para agredir, afas-
tam-se mais e mais do objeto da agressão e da possibilidade da agressão: com
plexos demais, já não são ouvidos. Para desalienarem-se aumentam a própria
alienação. Dentro da arquitetura, este é o limite da atitude crítica: a radicali
zação da contradição até o absurdo. Esta situação, obviamente, é insuperável
por caminhos arquitetônicos.
Mas, muitas vezes, a contradição instaurada é quase insuportável. A cer
teza do absurdo da atividade profissional nestas condições e da ingenuidade
da reação provocam o mal-estar e a insegurança entre os novos arquitetos.
Para escapar, surgem os disfarces compensatórios para a frustração original.
Ora, o processo mesmo de reação — retomada enfática das posições anteriores
em qualquer ocasião — fornece os meios de escape e com a vantagem suple
mentar de ainda parecer reação. Sinteticamente, o escape aberto é o seguinte:
a repetição constante das propostas exageradas, agora utópicas e, portanto,
descarnadas, desagregam a intenção global agressiva de desenvolvimento
maior que as estruturava. E desagregam exatamente pelo exagero de cada
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Outro exemplo.
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A CASA POPULAR
1 A pesquisa do professor Carlos Lemos, em andamento (1969), ainda não foi publicada.
Seus resultados provisórios aparecem resumidos no relatório feito para o fap (Fundo de
Amparo à Pesquisa), cuja cópia está no Departamento de História da fauusp. [A pesquisa
coordenada por Carlos Lemos e Maria Ruth Sampaio foi publicada em 1978, pela
FAUUSP, com o título Habitação popular paulistana autoconstruída. (n.O.)]
aglomerante, a madeira não aparelhada de 3a para estrutura do telhado.
Portas, janelas de tábuas, sem vidro.2 Algumas vezes, são materiais usados:
31 das 122 casas pesquisadas pelo professor Carlos Lemos empregaram mate
rial de demolição. Chão apiloado, por vezes atijolado, raramente cimentado.
Nenhum emboço ou revestimento. Em tese, outros materiais poderiam ser
empregados. Mas uma série de restrições orienta a escolha: 0 preço reduzido
do material é básico, ele precisa estar disponível perto para evitar o transporte
oneroso, deve possibilitar compra parcelada com as reservas de cada salário ou
com o pequeno crédito do depósito suburbano, verdadeiro BNHzinho popular.
não pode requerer mais do que um indivíduo para sua manipulação e, final-
/
mente, não deve exigir nenhuma técnica especial no seu emprego. E evidente
que todas estas limitações se resumem na estreita margem econômica que
envolve o operário. A vinculação, portanto, de tais materiais à casa popular
não é questão de gosto, higiene, estabilidade ou conforto: é resultado do baixe
nível de consumo permitido por seu salário.
3 K. Marx, Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Martins Fontes, 2003,
P- 237-
4 Em certas zonas, como Santa Catarina e Paraná, a madeira substitui o tijolo. A única
constante na casa popular, com relação aos materiais, é seu baixo preço e possibilidade
de aquisição parcelada. Em país subdesenvolvido, isto é sinônimo de produtos com
baixíssima composição orgânica do capital, isto é, muita força de trabalho.
A taipa, por sua vez, só foi superada pelo tijolo depois que este foi suficientemente
provado aqui e de escassearem os bambuzais. A cobertura da casa popular fornece ótimo
exemplo do conservadorismo técnico. A passagem do sapé à telha e da taipa ao tijolo foi
suave, contínua, sem grandes inovações. O tijolo, entretanto, permite a cobertura em
abóbada, mais barata e eficaz que a telha. A técnica disponível na tradição, entretanto,
não possibilitou o seu surgimento. Novamente, o compromisso popular com determinac
técnica é baseado em condições históricas de formação desta camada, no nível simples
que possua, nos materiais disponíveis. Não há uma técnica popular: a abóbada, aqui
desconhecida, foi a cobertura tipicamente popular na Argélia.
nos proprietários urbanos ou almeja dela participar, continua a aceitar para os
outros, o ser mercadoria.5
A MANSÃO
A CASA COMO mercadoria Mas, olhemos melhor esta imagem, esta seme
lhança. Para “fazer sua casa”, comprou matéria-prima, técnica, projetos e,
sobretudo, força de trabalho. Esse procedimento não lhe é desconhecido ou
novo: as relações de produção da mansão estão próximas da que estabelece na
sua indústria ou outro negócio qualquer. Como aqui, lá a mercantilização está
implícita na produção. Mais-valia acumulada compra os meios para ficar grá-
vida de nova mais-valia, só que aqui, sob a forma da produção de um objeto
específico, seu lar, doce lar. A semelhança de atuação nos dois casos traz, como
automática conseqüência, comportamento semelhante diante dos produtos.
Ambos são, para ele, mercadorias. As de lá, há que vender imediatamente, a
de cá, permanecerá em seu poder.
Se for necessário ou conveniente, venderá. Mas para garantir esta possí
vel venda, deverá zelar para que o produto, sua casa, possua um valor de uso
social. Nas discussões com o arquiteto, nas modificações que introduz na obra,
tem sempre um olho no mercado. E, consciente da dignidade de sua pou
pança, restringe o que fez de extremamente pessoal para que não contagie a
validade social de sua mansão. Restringe mas não elimina todas as originali
dades: afinal, a mercadoria é feita sob medida.
o USO CONSPÍCUO A sua imagem e semelhança também tem que atentar para
as conveniências sociais. É homem de prestígio, posse e visão. Sua aparência e
a de seus objetos precisam responder às imposições de sua posição. É mesmo
forçado a isto.
7 Thorstein Veblen, A teoria da classe ociosa. São Paulo: Pioneira, 1965, pp.43 e 48.
8 Karl Marx, O capital. Tradução de Regis Barbosa e Flávio Kothe. São Paulo: Abril
Cultural, col. Os Economistas, 1983, v.i, t.2, p. 173.
As formas particulares do consumo conspícuo foram fartamente descritas por
Thorsteln Veblen. Evlâentemente elas se especificam numa situação diferente
da que usou como modelo de suas observações (a sociedade norte-americana
no fim do século XIX; o livro The Theory of the Leisure Class é de 1899). Mas.
para o que nos interessa aqui, pouca importância tem esta especificação, meras
alterações superficiais derivadas de nossa situação colonial, nossa burguesia
procurando sempre identificar-se com a internacional, buscando nos restos
portugueses os ares de aristocratização pretendida, tudo enfatizado com traços
de inquietação que a própria posição intermediária entre as cortes da metró
pole e o resto da miserável população brasileira provoca. Como todo objeto
ou serviço consumido exclusivamente pela classe A (burguesia), a mansão
torna-se objeto de uso suntuário. O uso suntuário é diferenciador de classe, ja
que o objeto luxuoso é a materialização da riqueza. A fartura de materiais
requintados, a complexa equipe mobilizada já mesmo durante a obra, expõem
0 poder do proprietário. A obra concluída, sua aparência, dimensão e cuidado
prosseguem revelando-o. Esta demonstração, além das vantagens psicológicas
que proporciona, é fundamental, não esqueçamos, para o bom crédito na praça.,
Receber bem, hospedar bem, divertir bem, são obrigações do bom burguês.
Quem esbanja e pede empréstimos não pede para si, pede para ampliar sua
potência, que a mansão prova. Logo merece o empréstimo.
Mas, o consumo conspícuo e o uso suntuário tem suas regras. Em primeir:
lugar, as coisas usadas exclusivamente por uma classe e que se prestam a um
uso suntuário não envolvem, evidentemente, a vida privada: como todos a
possuem — a não ser os que estão excessivamente afastados na escala social,
‘lumpens” e baixos proletários com os quais nem importa competir — não
serve como diferenciação importante.9
Como conseqüência, a vida privada, que eliminaria o efeito da distinção,
já que é elemento comum, é escondida. Assim, na mansão burguesa, grande
porcentagem da área se destina à exposição de poder e riqueza: entrada social
‘hall”, sala de visitas, sala de jantar, biblioteca, lavabo social, jardins, terraços.
“Ao mesmo tempo, o efeito sobre o consumo é de concentrá-lo sobre as linhas mais evidez.
tes aos observadores, cuja opinião favorável é almejada, enquanto as inclinações e aptidoe?..
cuja prática não envolve gastos honoríficos de tempo e de substância tendem a ser religa-
das ao desuso. Através desta discriminação em favor do consumo visível se verifica que a
vida doméstica da maioria das classes é relativamente mesquinha em comparação com a
parte ostensiva da sua existência que se desenrola perante os olhos do observador. Como
uma segunda conseqüência da mesma discriminação, as pessoas geralmente escondem ái
observação pública a sua vida privada.” T. Veblen, op.cit., pp. 111-112.
salas de jogos, do música, muros cie. Outra parle substancial, entretanto, e
destinada a disfarçar a inevitável vida privada: circulação paralela de serviço,
sala de almoço, entrada e pálio de serviço, sala íntima etc. Note-se que isto
não pretende simplesmente esconder empregados — que, afinal, são demons
tração móvel de riqueza, mas suas ocupações ligadas à vida privada.
Agora, o instrumento abrigo — que malgrado a sobrecarga sunLuária, é
ainda função da casa — é intruso componente de um todo maior, o ambiente
demonstrador de riquezas. A exibição segue regras de comportamento radi
calmente distintas das espontâneas maneiras de viver. Os milhares de tiques,
gestos, etiquetas, cuja função é demonstrar que quem os exibe possui suficien
tes recursos para desenvolver estas atividades totalmente inúteis, tem cenário
determinado: salas, espaços, móveis, tapetes, quinquilharias que não devem
ser usadas. Aos caros comportamentos aleatórios, correspondem depósitos de
trabalho dirigidos para a produção de objetos sem serventia. A prodigalidade
se manifesta melhor quando não é necessária.
Mas, se o objeto por sua intrínseca razão servir, deverá servir contrariado:
se for obrigado a sentar ou habitar, deve ficar patente que se senta ou habita
revestido de normas e desconforto específicos: surge óbvia uma riqueza que
pode diluir-se em objetos e espaços absurdos.
Mas, o industrial contemporâneo sabe o valor e o prestígio da técnica eficaz,
da automação que dispensa a presença desagradável do operário e o explora
somente através de mediações complexas. E o trabalho desperdiçado terá
duas oportunidades preferenciais de surgimento: nos produtos de mórbido
artesanato e nos produtos de tecnologia avançada, empenhados em serviços
dispensáveis. Paredes figurando taipa, formas minuciosamente desenhadas de
concreto, molduras de gesso patinadas escondem alto-falantes mudos,
“high-fidelities”, interfones, controles remotos. Tudo em tom morno, discreta
mente aparente.
Discrição para evitar o “nouveau-richismo”, aparência para afirmar riqueza,
mormaço para espalhar fastio e indiferença. O tema é imenso e asquerosa
mente variado. Bastam essas referências. Percebemos já, com maior acuidade,
a imagem e semelhança que a casa reflete: a sua casa, como ele próprio, existe,
para os outros. Ou melhor, para oferecer aos outros uma imagem de si, ima
gem esperada, pré-estabelecida. Não uma imagem real, atual, mas a imagem
do papel social a que pode, por sua situação econômica, pretender. A casa é o
cenário convencional para a representação de seu triunfo. Imagem e original
começam a inverter suas posições. Pois sua “imagem e semelhança”, seu lar,
é componente essencial de sua definição mesma e lhe empresta o sucesso e
honrabilidade que espelha.
TESOURO Ora, a mansão, vimos, é mercadoria. Declara no imposto sobre a
renda entre os “bens” imóveis e sabe que pode realizá-la quando bem enten
der. Para isso, entretanto, deve preservá-la, garantí-la contra a usura que
poderá corroer seu valor. Logo, é parcimonioso no seu emprego. Tem que
garantir a permanência do valor de troca do imóvel e mesmo a continuidade
do valor de uso social.
Como o operário de Veleiros jamais penetrará neste mercado, o “social”
aqui, em oposição radical ao que ocorre em Veleiros, é sinônimo de “society
a mansão só tem valor de uso para os VIPs. Conseqüência: há originalidades
que se permitem — completamente objetiváveis, agora —, mas que não devem
ser incompatíveis com o uso requerido a uma casa por quaisquer das famí
lias “society”. Ora, o que podem ser tais originalidades possíveis? Vimos, a
vida privada está eliminada. Sobram graciosos jogos de salão, ou talvez uma
estufazinha para cultivar suas flores preferidas, as orquídeas parasitas ou, se e
intelectual, uma biblioteca para livros reais ou uma galeria para seus primi
tivos, ou qualquer outro “hobby” do gênero. Tais originalidades, entretanto,
se transpirarem na organização da casa, de modo algum interferirão no seu
eventual uso por outros, mesmo ao contrário, poderão ser somadas às outras
manifestações de consumo conspícuo, já que, para o novo proprietário, terão
a mesma essência, a inutilidade intrínseca dos gastos honoríficos e suntuosos.
Portanto, a originalidade não corromperá sua mercadoria e isto possibilita a
concreção de sua aspiração: que a casa seja diferenciadora, particular.
Mas, não basta afirmar-se como parte de uma classe, deseja afirmar-se
dentro dela, na hierarquia menor, incluída na maior, como superior aos
outros membros.
Uso parcimonioso de um valor de uso de alto valor de troca, retido em
sua posse: é a definição de tesouro. Sua casa é uma reserva substancial, posta
à margem da circulação. Ouro feito concreto, conhece a alquimia que devol
verá o ouro — a venda. O aspecto ostentatório colabora com a função tesouro:
porque a ostentação é basicamente a exposição de trabalho inutilizado, mas
concentrado. O tesouro em qualquer de suas formas tem valor determinado
pelas horas de trabalho médio social posto nele. O objeto suntuário é denso
e farto em trabalho coagulado, sem prestimosidade imediata, é verdade,
mas sempre procurando pelos aspirantes ao prestígio social. É mesmo seu
resultado. Daí, inclusive, o horror, entre eles, a qualquer objeto produzido
em série, o que indica, quase sempre, baixo custo unitário, comparado com
o artesanalmente produzido. As formas ousadas ou rebuscadas, revestimen
tos difíceis, caixilhos especiais etc., como arcas, cadeiras e santos velhos, são
prova dc produção ariesanal, com alto dispêndio de força de trabalho e, por
tanto. valiosas. Porque é suntuária, a casa é excelente acúmulo de riqueza
social, isto é, trabalho. É excelente tesouro, portanto. (Há razões mais deter
minantes para que o proprietário da mansão a veja como tesouro. Adiante
voltaremos a isso).
“O tesouro não tem somente uma forma bruta, tem também uma forma
estética”: os objetos, espaços e requintes todos repletos de trabalho social
depositado, constituem os componentes da mansão, tesouro suntuariamente
exposto. Se o consumo conspícuo procura o que não tem serventia, o tesouro
exige o consumo cuidadoso, reduzido. Casamento perfeito: a riqueza reser
vada está depositada no que não estimula o uso, na inutilidade imediata, que
constitui a maior parte da mansão. O entesourador não precisa ter cuidados
maiores: como a casa, que fez para si, é fundamentalmente inútil, seu con
sumo será, forçosamente, mínimo.
E os criados, estas outras corporificações de riqueza, encarregar-se-ão de
retocar e arrumar quaisquer desarranjo provocado pelo raro uso.
A sua casa, fruto de sua vontade, feita à sua imagem e semelhança, des
tinada basicamente a assinalar não somente a sua classe, mas sua posição
dentro dela, sua personalidade, sua originalidade, para cuja produção criou
equipe a seu gosto, que comandou e submeteu, que fez penetrar na sua inti
midade à procura de seus desejos específicos, a sua casa, na parte visível, não o
particulariza.
[Ao entesourador] só lhe interessa a riqueza na sua forma social e é por issc
que na terra a poe fora do alcance da sociedade [...] Na sua sede de prazer
ilusória e sem limites, renuncia a qualquer prazer. Por querer satisfazer
todas as necessidades sociais, quase não satisfaz as suas necessidades de
primeira ordem.10
Deixemos agora os extremos. Motivos diversos nos forçaram seu exame, par
ticularmente a nitidez de posições contraditórias — que coexistem, entretanto,
na classe média. O extremo Morumbi pouco nos interessa em si, mas pesa nas
expectativas que a pequena burguesia alimenta. O outro, Veleiros, o que mais
pede atenção, é, por algum tempo, ainda marginal. Mas hoje, é na marginali
dade que se refugia a pouca verdade sobrante. Importa-nos como contraste de
amarga autenticidade em meio à pantomima. Examinaremos a mercadoria
resultado da construção civil em sua forma mais pura, isto é, onde é produ
zida em massa para mercado massificado, a produção para o consumo pela
classe média.
Servem como exemplo as primeiras tintas e colas plásticas aqui produzidas. Desde o
precursor do Epox, fabricado pelo Sr. Pini, que não conseguia aderir às paredes; e a cola
de belo nome Dupont AE 704, que não cola, às pequeninas indústrias que pululam.
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O O C ^ C D IO O
Vidro
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Plástico
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Metal
Cimento
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Cerâmica e olaria
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to \n
í
Madeira
t
Mármore e granito
-HQO
Tf-
MÉDIA
Dados extraídos do Relatono áa Cooperação Industrial para o Plano Habitacional - ciphsb. Estudo n. 10.
ii. 19Õ-. p. 264.
e sucesso ser conhecida de todos; gostar de um disco de sucesso é quase o mesmo que
nhecê lo. O comportamento valorativo tornou-se uma ficção para quem se vê
cercado de mercadorias mmsiçais padronizadas.” (p. 165).
Desenho e o canteiro na concepção do convento de La Tourette”, pp- 214-21
desta coletânea [Nota do autor em 2005]
devem corresponder ao que é comum às casas da burguesia da classe média: a
forma mercadoria, simplesmente.
manutenção.27
Os serventes, cuja ocupação é ser pura energia física auto-movente, são alta
mente instáveis, trabalhando dias, meses, raramente anos em uma obra e
f
numa empresa. Ultimo dos empregos, salário-mínimo, nenhum direito traba
lhista respeitado, sua posição é disputadíssima: constitui ponto privilegiado de
pressão do exercito de reserva de jforya de trsbalk<r. A stténztc&z&usra
seguindo seus cronogramas e gráficos “Pert” contrata e descontrata ininter
ruptamente os operários desta área sem preocupações, pois sabe que a oferta é
51 itrrr™
E
*w -—»* *»
^ uabhhado™ d. civil.
Compensam com a habilidade particularizada a extensão perdida do ofício.32
Mas, mesmo amputado, vê o produto como realização com a qual tem a ver
pessoalmente. A maneira de produzir, arcaica e pré-industrial, exige con
tato direto com a matéria a que dá forma, sem a mediação distanciadora da
máquina. São suas mãos, e mais um instrumento primário, pá, colher, prumo,
que organizam, equilibram, levantam; durante um, dois anos acompanha a
obra, trabalha-a — e passa a se ver presente, tenuemente, é verdade, na própria
corporificação de sua exploração. Esta visão não é pura ilusão: de fato, a maté
ria informe só adquire forma através de seu esforço pessoal, de sua habilidade
continuamente aplicada. Mas esforço e habilidade só são exercidos quando não
se pertence, quando é assalariado, força de trabalho de ações impessoais, abs
tratas, frias. Operário e capital coexistem com a pTesença frágil de meia-obje-
tivação, exigida pela forma primária de produção. O contraste dá mais cor e
peso à exploração: o processo necessita que permaneça atento e sensível, senhor
de seus poucos gestos específicos, que seja sujeito, limitado mas ativo e hábil,
durante o tempo mesmo em que é pura mercadoria, útil enquanto para si é
valor de troca, objeto das determinações do mestre, sempre preservando o que
levanta, apesar de estar sempre levantando sua própria negação encarnada.
O semi-oficial, dono de reduzido campo tem com ele laços mais deter
minantes que a fugaz sensação de realização suspensa, pois sua ocupação
parcelada é que lhe garante sustento e salário pouco maior que o mínimo,
representando semi-qualificação que aumenta o valor social de seu trabalho.
Sua minúscula reserva é sua vinculação única com um pouco mais de huma
nidade: sua alimentação supera levemente a do ajudante. Há resquícios de
^ente no que faz. Desapareça sua função, superada por algum progresso, e
seu horizonte é o retorno ao subsolo dos serventes. Há que prezar, valorizar,
defender o que faz. Mistificar mesmo, envolvendo de mistérios e imputando-
Ihe sabedoria tradicional, adquirida em anos de prática segura. A qualquer
inovação, instintivamente reage: a mudança, ameaçando seu domínio inelás-
34 Houve tempo em que o concreto aparente não era moda e tinha razão de ser: razão
econômica. Seu emprego, entretanto, atraia forte reação Dos proprietários, para os
quais o concreto aparente aparenta%,a economia - 110 que acerlavarn — corrompendo o
efeito “estético” que o gasto conspícuo sem [ire produz na burguesia. K dos operários,
que temiam a inovação: sujeira era deixada nas formas, ferros pressionados para
aparecerem, tintas ou batidas intencionais procuravam impedir a permanência do
concreto aparente. Sabotagem mesmo. Com o tempo, virou moda, o operário teve que
se submeter. E até aproveitou: hoje é uma nova especialidade para o operário que já
consegue reproduzir perfeitamente, lisinho-lisinho, as graciosas filigranas dos projetos.
E, como conseqüentemente ficou bem caro, destruindo sua intenção original, pode ser
incorporado avidamente ao Morumbi: tornou-se “estético”.
35 Tecnicamente conservador, nào politicamente. Aliás, o Sindicato dos Operários da Cons
trução Civil sempre foi, enquanto existiam sindicatos, dos mais ativos. Isto ganha maior
significado se lembrarmos novamente que o servente é pouco sindicalizado: o sindicato
reúne semi-qualificados e ajudantes. O apego estruturalmente requerido do operáno por
sua habilidade particular, ao produto desta habilidade, retrógrado tecnicamente, o faz
sentir com amargura e revolta mais nítidas a apropriação de seu trabalho pelo capital.
Uma vez que a habilidade artesanal continua a ser a base da manufatura e que o meca
nismo global que nela funciona não possui nenhum esqueleto objetivo independente dos
proprios trabalhadores, o capital luta constantemente com a insubordinação dos traba-
adores. K. Marx, O capital, op. cit., v. 1,1.1, p. 2-76. Dai, inclusive, a importância nas
ras do mestre, que sempre associa ao seu papel técnico as funções de guarda e zelador
dos propósitos do capital contra a insubordinação operária.
Vimos: tanto o capitalista — o empreendedor imobiliário, o construtor, o
incorporador ou qualquer outro nome sob o qual se disfarce — quanto o ope
rário semi-qualificado têm um interesse comum (milagre): conservar, manter
enquanto for possível. O processo de produção da construção civil, no Brasil, é
/
56 A respeito, entre a imensa bibliografia, ver: K. Marx, O capital, op. cit., 1.1; K. Marx,
Manuscritos económico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004; G. Friedmann, O traba
lho em migalhas. São Paulo: Perspectiva, 1972. Do operário, Taylor exige, sintetizando
o comportamento do capital, “não produzir mais por sua própria iniciativa, mas exe
cutar prontamente as ordens dadas nos menores detalhes.” F. W. Taylor, La direction
des Ateliers, Paris: Dunod 1930, p. 137. Na manufatura ou mesmo na indústria sob o
capitalismo, tudo o que é coletivo — mesmo a produtividade maior do trabalho, fruto de
sua divisão e da cooperação dos trabalhadores — é atribuído ao capital, quer haja ou não
verdade nisso. Organização, planejamento, decisões são funções que a todos envolvem
e, “naturalmente”, direito do capital. Logo, a força conservadora do capital investido
na manufatura é infinitamente superior à do operário. Num trecho dos “Grundisse”,
apresentado como introdução ao Livro II do Capital, diz Marx: “Sejam quais forem as
formas sociais da produção, trabalhadores e meios de produção continuam sempre seus
fatores. Mas uns e outros só o são em potencial quando estão mutuamente separados.
Para que haja produção ao todo, eles precisam combinar-se. O modo específico de levar
a efeito essa combinação distingue as diferentes épocas econômicas da estrutura social.
No presente caso, a separação do trabalhador livre de seus meios de produção é o ponto
de partida dado.” O capital, op. cit., v. II, pp. 32-3. Ora, tal separação dos meios de produ
ção implica necessariamente na separação das razoes da produção, mediatas e imediatas.
No caso específico, 0 operário da construção civil não somente é afastado de seu produto,
mas desconhece mesmo, freqüentemente, suas razões de projeto, cálculo, oportunidade,
etc. Não tem, nem pode ter, portanto, qualquer influencia que pese nos seus rumos. Nos
manuscritos, Marx é explícito: “Até aqui examinamos 0 estranhamento, a exteriorização
, . aTltn a Je todos os modos de produção anteriores
revolucionária, enquanto a de ton
era conservadora.
do trabalhador sob apenas um de seus aspectos, qual seja, a sua relação com os produ
tos do seu trabalho. Mas o estranhamento não se mostra somente no resultado, mas
também, e principalmente, no ato da produção, dentro da própria atividade produtiva.
Como poderia 0 trabalhador defrontar-se alheio ao produto da sua atividade se no ato
38 Ver, a respeito, O. Niemeyer. Minha experiência em Brasília. Rio de Janeiro: Vitória, 1961.
39 Ver a respeito, Francisco Julião. Que são as ligas camponesas? São Paulo: Civilização
Brasileira, 1962.
esperar, há carência total de informações exatas a respeito nos vários órgãos
públicos, uma de cujas funções é obtê-los. Somente o DIEESE, entidade vincu
lada aos sindicatos operários, possui alguns dados e análises que apresentamos
em anexo. Suponhamos que o especulador possua um capital de 100 (mil,
milhões de dólares ou cruzeiros, não importa) o qual, aliás, é freqüentemente
realizado pelos compradores. E que para a construção divida, em média, estes
íoo em duas partes: 75% aplica em matéria-prima e bens de produção (areia,
cimento, pás, canteiro, etc.) e 25% em mão-de-obra (isto é, com 25 compra
força de trabalho e paga as leis sociais). Nenhum especulador que se preze
aceita participar em algum negócio imobiliário se seu lucro líquido, descon
tados a desvalorização da moeda, a inflação, custos etc., não atinge 100% no
mínimo em dois anos em média. Portanto, o incorporador paulista de 1969,
se põe 100, retira 200. Ora, sabe-se que as trocas, fora flutuações de preço
determinadas pelas variações da oferta e da produção, são feitas pelo justo
valor no mercado, pelo valor real. O iludido, portanto não é o comprador que
teria adquirido por 200 0 que valeria somente 100. O objeto produzido, a casa
ou apartamento, vale realmente 200. Entretanto, se pudéssemos examinar 0
registro de gastos, 0 preço de custo, só encontraríamos 100. íi que, 110 processo
de produção, 100 é acrescido aos 100 minais — o trabalho de transformação da
matéria prima em casa ou apartamento gera um valor novo, cuja expressão
monetária é igual a 100.
Em esquema:
40 Karf Mar, Le Capitai Pans.- Plêiade, i968, p. gio e nota p. gi, [Referência
42 André Gunder Frank, Capitalism and Undervelopment in Latin America. Nova York: M.R.
Press, 1967.
43 André Gunder Frank. “El desarrollo del sub-desarrollo”, Monthly Review, n. 46-47,
ano V, jan./fev. 1968.
. „a„ rivil urna característica que diminui ligeira-
Há, entretanto, na cons ruç sistema, no seu conjunto, de sua superior
mente o efeito compensa or p Esquematicamente, capitais produ-
““ de lucro: o tempose seu tempo de giro for menor,
zem lucros reais (nao os ap ) Fntretanto devemos conside
sunondo-se composições orgânicas semelhantes. Entretanto devemos conside
ro seguinte: e!n primeiro lugar, poucos capitais empregados em outros seto
Tar
res principalmente industriais, têm composição orgamca tao baixa. Somente
res
outros ramos atrasados senam comparáveis. Mas, entre estes ramos atrasados,
poucos têm a característica específica da construção civil: a quase ausência de
capital fixo, investido em bens pesados de produção.
Isso traz duas “vantagens”: não há que contabilizar nenhum desgaste des
tes bens inexistentes e o capital investido é integralmente recuperado a cada
giro. Quase todo o capital da construção civil investido em matéria prima e
força de trabalho é circulante. A flexibilidade aí é bastante elevada, portanto.
Se assim não fosse, parte importante do capital deveria permanecer imóvel
sob a forma daqueles bens. Ora, esta flexibilidade permite rápidos desloca
mentos, evitando em épocas de crise sua paralisia, que resultaria, em largos
períodos de tempo, na depreciação da taxa de lucros total em setores alta
mente imobilizados.
Mas, não há dúvida que o tempo de gestação do produto é o grande obs
táculo para que a construção civil seja o néctar aspirado. Não é por acaso que,
progressivamente, vemos construtores fazendo cursos de pert etc., e a reto
mada dos cronogramas e dos vários turnos de trabalho.
Entretanto, este obstáculo não destrói o dado fundamental, somente o
atenua: a construção civil produz mais-valia excedente que vai alimentar
outros setores. O problema de tempo de giro do capital aplicado na construção
civil, entretanto, está acarretando importantes modificações no campo. Em
primeiro lugar a pressão, nas obras públicas e privadas, sobre o prazo de cons
trução, fator que vem progressivamente determinando as concorrências. Mas,
p a uma uiesma produção, supondo-se a mesma qualidade, as possibilidades
d« eliminação do. “poros" durante o processo de trabalho são restritas. Dal
a .mediani consequência: é necessário diminuir , qualidade do produto par.
obter melhore, pratos - j* q„e a mdustradiaaçào é sempre evitada. Ora, d,nu
l::; ? ™P ° mrrC‘ÍO P'k d» setores de pequeno
pIZ ITh * ' T°r “d* "“^'“dos da classe média.
«Xá r Í T° 7 "dU2Ír ° temp° de e™ é eliminar o que
«muo ,°1 ^ Si° d° ProdU,° “b a de dinhL.
rS7JISÍÍSmí<i mn^gsomente era vendida pronta. Peneis começou ,
vendajiapiama^que permitia dímTnmFbTímtãlTár-ÃT-----------
os financiamentos dorm
------ ----------—_ _ ____ 7 realização imediatiTdo produto
para o capitalista, as desvantagens da prestação transferidas para o governo.
Ora, juntando baixa qualidade com financiamento caracterizamos a vaidade
maior do poder atual: o BNH. Mas o governo também não quis ficar com as
desvantagens do financiamento tradicional: e criou o sistema do BNH, uma das
maiores explorações oficiais, que utiliza um fundo dos trabalhadores e terá,
como vantagem suplementar a longo prazo, o rebaixamento dos salários reais.
Filippo Brunelleschi, cúpula da catedral Santa Maria del Fiore, Florença, 1422-'ini
O CANTEIRO E O DESENHO ' > V —
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A FORMA DA FORMA-MERCADORIA
Eu não parto [...] de “conceitos” [...] meu ponto de partida é a forma social
mais simples que assume o produto do trabalho na sociedade contemporânea:
a mercadoria.1
1 Karl Marx, “Notes Critiques sur le Traité d’Économie Politique d’Adolph Wagner”, em
Oeuvres. Paris: Plêiade, t. II, 1968, p. 1.543.
2 Paul Singer, “Aspectos econômicos da habitação popular”, em Seminário de habitação
popular. Publicação 9 do Museu, FAUUSP, 1962, p. 29.
Viabitacão - mas ainda o escritório, a loja, a usina, a
E não somente a casa, a n v distinções decorrentes da posição na pro-
ponte, a praça, o monument0- ^ reprodução da força de trabalho
dução (componente do capi ’ nesse nível de generalidades.
ou o entesouramento burguês) ainda nao P resultados do pro_
Todo e qualaueLobjeto^rqu^----------------------- *
^^^v^orizaçi^dõpapitf
S2j5E3Í2Ii£â£l2_, t forma manufatureira atual da produção
Descreveremos rapidamente, adiante, a torma r v*
do objeto arquitetônico. Convém resumir, para o que nos interessa neste momento,
mtínuo, heterogêneo^rieteronomu, uu
^ ^ t,—~Ao tnra Ho ladodo
^^T^íz^vern mevig.vel™^te^de^QraTdo doproprietário
nroDnetario
trabalhadorcoieti
dos meios de produçà^S^iiriSd^^
mento e acefaba impostas à produção, não há produto - e mercadoria, portanto.
Recordemos algumas passagens de Marx que nos serão essenciais:
A FORMA DE TIPO-ZERO
é claro: reúnem
Zfe 7 H C7,nh°’ qUe fabricação
° haPel destes papéis
i
acéfala à finalidade funcional fnõ'J t Í Í° * mstrumento> atividade feita
éroenõscíarãsuainõtívãçSft
vam essas separações que fingem reparLÍ
%*£."“'l" ^ ^ P “ fat° dt? existirem’ agra'
~9 Jl w \,j IMI r
tJ Jy corps productif. Paris- Main, 1972, pp 39_40
J «tris. iviame,
No canteiro, no momento da produção, portanto, a razão prioritária do
desenho é introduzir ligadura, comunicação e estrutura. Do que resulta que
pode ser comparado ao que Lévi-Strauss chama de forma de “tipo-zero”:
Mas não é a primeira vez que a pesquisa nos apresenta formas institucionais de
tipo zero. Estas instituições só teriam uma propriedade intrínseca: introduzir as
condições prévias à existência do sistema social do qual revelam e que se impõe
como totalidade pela sua presença — em si mesma desprovida de significação.7 8
9 L. Brion-Guerry, Jean Pélerin Viator, Sa place dans Vhistoire de la perspective. Paris: Les
Classiques de L’Humanisme, 1962, p. 210 e p. 226.
Assim, para a obra, o desenho não é representação de um objeto de uso.
Representa, ou melhor, impõe sincretismo ao trabalho parcelado, que deixa
esfarelado para preservar sua missão unificadora. E como o trabalho foi idio-
tizado, e como para o capital, na produção, mais que nada interessa a reunião
dos trabalhos atrofiados pela desunião que ele mesmo provoca antes como con
dição para a extração de mais-valia, sua coagulação sucessiva no mesmo objeto,
em tese o desenho que possibilitar essa coagulação numa totalidade formal
pode ser qualquer: forma de “tipo-zero” cuja presença, em si mesma despro
vida de significação, permite, ao processo de trabalho na construção, de se pôr
como totalidade.
Mas, porque pode ser qualquer, o desenho será uniforme e totalitário. É o
que comentaremos, depois de um giro pelo canteiro.
O CANTEIRO
OBSTINAÇÃO: A MANUFATURA
1 12 io “Aquele que pode dizer como arde, só vive uma pequena paixão”. Petrarca, Soneto 137.
máquinas somente auxiliares nas tarefas pesadas; nenhuma operatriz que
reúna os instrumentos particularizados.
Um mestre transmite as instruções, organiza a cooperação, fiscaliza,
impede atrasos: é, também, feitor.
A descrição — de um quadro freqüente em país subdesenvolvido como o
Brasil — é de típica manufatura serial. Simplesmente, na produção do espaço,
a manufatura é móvel, não seus produtos.
Há sinais evidentes de outras formas de produção. Por exemplo, vários
produtos industrializados intervêm, no canteiro, seja como materiais de base
( cimento, aço, isolantes etc.), seja como componentes (equipamento elétrico,
hidráulico, caixilharia, paredes ou lajes pré-fabricadas etc.), seja como com
plemento instrumental (guinchos, betoneiras etc.). O conjunto da produção e
cada etapa, porém, são dominados pela estrutura da manufatura. E essa domi
nante estrutural define a produção do espaço, mesmo se não é a mais avançada
/
técnica ou historicamente. E por isso, aliás, que as diferenças na organização
do canteiro em país subdesenvolvido e em país desenvolvido, como a França,
fora casos pontuais, podem ser limitadas às que distinguem a manufatura
serial (baseada principalmente no trabalho interno e cumulativo) da manu
fatura heterogênea (baseada principalmente na montagem de elementos pré-
fabricados). Não negamos a importância dessas diferenças, sobretudo para a
análise das empresas, da diluição de sua identidade e fechamento, no caso da
manufatura heterogênea. Não é a mesma coisa somar tijolos ou montar pai
néis, malaxar o concreto no canteiro ou recebê-lo pronto, preparar as fôrmas
no local de utilização ou construí-las em galpão. Nada disso, entretanto, justi
fica as exclamações de industrialização a cada aumento das dimensões ou da
quantidade dos guinchos, da pré-fabricação. A transformação da manufatura
em indústria, se chegar ao canteiro, pressupõe ruptura mais funda.
Mas, mesmo reconhecendo a importância das diferenças que isolam a
manufatura serial da heterogênea, não nos preocuparemos com elas neste
texto. Nosso objetivo é outro, mais esquemático e pré-científico - razão pela
qual utilizamos exemplos e informações sem cores nacionais ou locais.
Entretanto, se nos desviássemos de nosso tema — as relações do desenho de
arquitetura com a organização do trabalho no canteiro —, encontraríamos em
outros critérios de avaliação, como a composição orgânica do capital, índice
relativo de salários, composição da força de trabalho etc., elementos indiretos
de apoio para a nossa caracterização.11
li Ver, além dos conhecidos estudos de C. Topalov, F. Ascher e J. Lacoste, Les producteurs du
cadre bati., 4 vols. Paris: Cordes, 1972, e A. Touraine, La conscience ouvrière. Paris: Seuil, 1966.
Repetimos: a manufatura da construção, feita de equipes inl.ernainerite
hierarquizadas, provoca uma divisão avançada do trabalho - avançada corno
se diz de um estado patológico. Vejamos primeiramente alguns aspectos orga
nizacionais dessa divisão tida como técnica, isto é, neutra. Voltaremos depois
para outras observações.
Na indústria, a divisão é em grande parte regulada pelo processo objetivado
de produção, pela cadeia de montagem, por exemplo. Ou, mais modernamente,
pelo sistema de empregos que dissolve a importância do posto de trabalho na
nova estrutura industrial.12 Aparentemente, o que a provoca são as necessidades
suplementares do maquinário, os momentos da produção ainda não automati
zados — momentos de escolha, reparo, readaptação etc. Aparentemente: o glacis
do capital, que é o real suporte, colore todas estas figuras, com perdão para a
metáfora de pintor.13 Em conseqüência, ou o trabalho é “desqualificado”, enco
lhido em alguns comportamentos regulares e simplórios14 ou se faz mais trans-
setorial, vinculado a uma série horizontal qualquer do complexo tecnológico
disponível.15 Em todo caso, o trabalhador industrial tem mobilidade possível,
escapa das amarras do ramo produtivo exclusivo.
Na manufatura, ao contrário e apesar do mesmo glacis, o essencial é a des-
teridade, a habilidade, a presteza e a quantidade de esforço compatíveis com a
unidade de produção, o trabalhador, sua equipe e seu instrumento, postos sob
a pressão do mestre. A produção não abandonou seus fundamentos muscula
res e nervosos, não adotou a independência relativa dos processos mecânicos
e automáticos. Prisioneira, em grande parte, de fatores subjetivos, aprisiona
necessariamente os que a constituem tecnicamente. Seu núcleo é o trabalha
dor coletivo, trabalhadores parcelados em colaboração forçada:
Mas nem por isso há manutenção das tradicionais divisões dos ofícios, campos
diferenciados de técnica ampla e homogênea. É como se houvesse fratura-
mento desses ofícios (se imaginássemos uma história imanente das forças de
produção), conservando, entretanto, uma característica importante de sua
22 A. Buarque de Holanda, Novo dicionário da língua portuguesa. São Paulo: ENF, 1975.
23 Ver André Gorz, “Técnica, técnicos e luta de classes” em Crítica da divisão do trabalho.
São Paulo: Martins Fontes, ig8o.
chama a si o que o envolve. 0 oul.ro da segregação não é o bloco monolítico,
mas as mil flores. Sua rejeição é necessariamente divergente.) () que foi des
feito não pode mais dispensar a preparação minuciosa de sua exploração
a partir daí, as “necessidades técnicas” justificam o comando. Na verdade, o
comando é a conseqüência da oligofrenia forçada e da irresponsabilização
dos produtores imediatos por todas as formas que a violência sabe tomar.
Mestres, planos, memoriais, cronogramas, a hierarquia estrangeira, tais
como os conhecemos, formam o contrapeso de uma ação dependente porque
feita acéfala. Retomemos: “é o trabalhador coletivo... que constitui o meca
nismo específico” da manufatura. Os gestos e procedimentos do trabalho
não estão exteriorizados na máquina: são homens que os carregam na sua
carne, na sua experiência. Por outro lado, entretanto, esses mesmos homens
vêem seu trabalho espicaçado em momentos absurdos sob o comando alheio
e devem, a quem compra sua força de trabalho, um comportamento de oli-
gofrênicos. A inabilidade de nossa exposição nos obriga a seguir um lado e,
depois, o outro: o salto constante seria fatigante. Mas tal é o ritmo exigido
do canteiro. Em cada passagem, a oposição entre a ancoragem subjetiva do
saber prático e o desmembramento do trabalho manufatureiro está pre
sente. A separação polimórfica não tem data e sua reabertura sem tréguas
alimenta cotidianamente a produção enquanto processo de valorização e
reprodução do capital.
COLA E RACHADURA
Operários i e 2: (carrinho)
o i. Recepção do concreto no carrinho
-> 2. Transporte até o guincho
D 3. Espera
o 4. Recuperação do carrinho vazio de volta do andar
118 O 5. Fixação do carrinho cheio
> 6. Volta à betoneira com o carrinho vazio
D 7. Eventualmente, espera na betoneira
Operário 3: (guincho)
D 8. Espera pelo descarregamento do carrinho vazio e pelo carregamento
do carrinho cheio
-> 9. Subida
D 10. Espera pelo descarregamento do carrinho cheio e pelo carregamento
do carrinho vazio
11. Descida
D 12. Espera eventual pela chegada do carrinho cheio
28 E. Olivier, Organisation pratique des chantiers, 2 vols. Paris: EME, t. II, pp-75_77-
da não-qualificação ou a qualificação perde a especificidade do poslo de tra
balho. De qualquer modo, o operário é transformado em uma espécie de com
plemento disperso da máquina. Os laços fomentados pelo saber e pela prática
cotidiana são relaxados pela mediação mecânica. Ora, o estreitamento desses
laços é espontaneamente provocado pela natureza da marmfaLura. Ocasião de
alarme para o sistema, pois esse gênero de aproximação entre trabalhadores
é considerado como potencialmente ameaçador. Assim, por exemplo, as tradi
cionais organizações de compagnons, típicas da construção, tiveram de escapar
pela oposição clandestina ou foram quase forçadas a adotar cobertura política
reacionária. Nunca, porém, foram constatadas sem aversão.29 Por isso, o medo,
associado aos requisitos da dominação, provoca reação — constituída funda
mentalmente por uma série de medidas desconexas, focalizadas no aprofun
damento da divisão. E é fatal que seu emaranhado esbarre em contradições
intensificadas pela ansiosa pressão.
Apesar dos riscos e da ameaça latentes, entretanto, a forma manufatureira
de produção do espaço é mantida — por mil razões que não discutiremos neste
texto. E, com ela, permanecem também ameaça e riscos, representados pela
quantidade e qualidade dos laços evocados entre operários. Como precaução,
há hemorragia de investidas preventivas: insistência na sucessão das equipes
separadas; impedimento, enquanto possível, de toda simultaneidade (o que
contraria a propensão para acelerar a rotação do capital); estruturação diversa
das equipes, mais rígida, por exemplo, nas situadas sobre o caminho crítico
dos pert e proporcionadamente enfraquecida na medida do afastamento;
determinação heteróclita dos ligamentos externos que definem funcional
mente cada equipe; quase individualização dos salários (multiplicidade de
taxas horárias, variação do número de horas, horas suplementares irregula
res, faltas, taxas de produtividade, prêmios... a lista é inesgotável); dispersão
espacial; rotação entre canteiros; qualificação extremamente complexa apesar
de achatada (oito níveis para os empregados em alvenaria e concretagem na
França); hostilidade promovida pela superposição dos tempos de trabalho;
a hierarquia sempre exasperada... etc. etc. A direção do canteiro estimula a
separação com orientações que reclamam acrobacias paira caberem na “racio
nalização” tecnológica. Um populismo teatralizado tenta imagem inversa de
companheirismo “profissional” — mas sua hipocrisia se denuncia ao menor
contratempo. Quase que a teatralidade mesma já assinala o que quer escon
der: muita cola trai a rachadura.
12 + 29 Ver E. Coornaerl, Les Corporations ern France avant 1789. Paris: Ed. Ouvrières, 1968.
A ânsia em segregar é tão forte, que, por vezes, chega a contrariar o sacros
santo critério da rentabilidade imediata, geralmente hegemônico na cons-
/
30 Ver, a respeito, G. Friedmann, O trabalho em migalhas. São Paulo: Perspectiva, 1972, caps. m-rv.
31 Ver D. Pignon e I Querzola, “O despotismo de fábrica e suas conseqüências”, em Crítica
da divisão do trabalho. São Paulo: Martins Fontes, 1980.
32 E.A. Poe, “A carta roubada”, em Os assassinatos da rua Morgue/A carta roubada. São
Paulo: Imago/Alumni, 1999, p. 8.
A ausência de objetivarão mecânica na manufatura, do aparei hamcnto cuja
aparência sugere à nossa credulidade o rigor da razão, num tempo em que
a razão foi feita adequação de meios a fim, sem julgamento do fim,15 não
facilita a confusão entre técnica de dominação e técnica de produção.54 O
arbitrário do comando e a exploração tendem a transparecer, ao contrário do
que se passa na indústria. O rosto frio do maquinário não pode iludir lá onde
os meios de produção são de carne. Os estudos sobre a construção muito facil
mente esquecem essa particularidade que a marca. Como explicar de outro
modo o que dissemos sobre as equipes, em particular sobre as equipes “por
tarefa”, ou ainda a instabilidade sem tréguas nesse setor que, teoricamente,
deveria buscar estabilidade e acúmulo de experiência? Os obstáculos ao apro
fundamento do saber para a produção só podem ser interpretados como sin
tomas da emergência temida e sempre eminente do conflito entre a imagem
da técnica de produção e as correntes polimórficas da técnica de dominação.
Ainda uma vez: no canteiro, são homens que carregam os gestos e procedi
mentos, gravados por contínuo exercício coletivo, que compõem o núcleo do
trabalho. Poderíamos esperar que a prática depositada nessas equipes, nesses
operários fosse cuidadosamente resguardada — mas o que observamos é a sua
sistemática de corrosão. Curiosamente, para subsistir, essa reserva de domínio
formal do capital, para vencer sua fragilidade crônica, deve continuamente
enfraquecer os que a sustêm.
A corrosão da prática depositada na força de trabalho da construção, entre
tanto, não pode chegar a rompê-la totalmente. A defesa, mesmo mórbida,
sabe que será inútil desembocar no suicídio. Ora, o controle direto do corpo e
de seus movimentos, a separação física, apesar de comporem os meios privile
giados para a exploração, são insuficientes para garantir a segurança (o ideal
seria a conivência) desejada. Portanto, se a submissão total é inviável, mas o
gesto submisso indispensável, por que não tentar uma lobotomia um pouco
menos grosseira, uma afemia operária sem laringotomia? Caminhos mais
insinuantes, menos esperados, mas talvez mais persistentes. Instalar hiatos
diáfanos, cesuras quase elegantes... São conhecidos os instrumentos adequados
para talhar tão manhosamente: são os do gosto, da harmonia, da linguagem.
Para esquizoidar uma cabeça, dar-lhe forma de cebola, romper ligamentos,
nada melhor que a injeção de seu mistério serviçal: afinal, toda teofania para
lisa, fulmina as reivindicações de entendimento.33 34 *
O que são transpira na obra que os inclui. Neles, na sua aplicação, a obra
conta sua história.
Ora, a maioria dos materiais de revestimento é dispensável, se 0 critério
for a economia de meios ou a funcionalidade imediata. Constituiria trabalho
inutilizado se não fosse “produtiva” de vários resultados interessantes (outros
que o puro resultado econômico; sabemos que são essenciais para a forma
tesouro do espaço produzido, enquanto valor concentrado em objeto arredio
ao uso: tesouro é o que não é usado, não “se” usa ou tem uso contrariado,
como, por exemplo, a boa residência burguesa).
O que são esses materiais? Fruto de produção áspera como qualquer outra
em nosso sistema, trabalho duro coalhado abundantemente em mercado
ria — mas de valor de uso escorregadio. Esse tipo de produção, freqüente em
países subdesenvolvidos, espelha com crueza a indiferença pela utilidade
urgente e a estima exclusiva pelo trabalho enquanto trabalho social médio,
enquanto valor (de troca), típicas do capital. Nele, o capital quase se mostra
como é, fornicador em permanente parto de filhos que engole, semeados por
pais que aniquila. Sem finalidade próxima reconhecida, o trabalho aí resvala
para a pura quantidade pela qual, de qualquer modo, sua qualidade é sempre
orientada. Sua vacuidade tendencial encontra eco adequado na aparvalhada
indecisão do consumidor, a ciscar motivações para o aleatório nas banalidades
do pseudogosto.
35 Jó, 36,*9-
36 Resumo tirado de um outro texto, escrito em 1968, sobre a “Casa Popular”, GFAU, 1972.
[Reeditado nesta coletânea com 0 nome de “A produção da casa no Brasil” pp. 61 -101 (n.o.).
37 K. Marx, Manuscritos econômico-filosóficos. Tradução de Jesus Ranieri. São Paulo:
Boitempo, 2004, p. 82.
Contraditoriamente1, o revestimento de núcleo anêmico, consumido
aparentemente por delicadezas de aparência, na obra nada conta enquanto
aparência: a motivação eficaz para seu uso vem de sua essência. E que no tra
balho coalhado nesse parasita, quase “tipo-ideal” da não concordância entre
trabalho “produtivo” e utilidade (cujo conceito, não por azar, anda em crise
universitária), será nela empregado com a precisão e a fineza dos movimentos
inconscientes. Fará máscara. Tudo se passa como se fosse questão de gosto.
Mas que gosto? O gosto hoje está morto, não há mais subjetividade solta que o
sustente e sua elasticidade semântica sublinha sua função substitutiva.58 Tudo
se passa como se fosse questão de gosto — mas é questão de segurança e de
ocultação.
Por baixo do revestimento há concreto, colunas, lajes, vigas, tubulações...
Há alguma lógica — mesmo se deformada, como veremos. Há, pelo menos,
indicações de compromisso com a estática, com a resistência dos materiais. E
mais: há marcas precisas do trabalho necessário, do empenho, do esforço, da
habilidade do operário. Ele fica obrigatoriamente no que faz: mão, inteligên
cia, sensibilidade, ainda que contidas, deixam rastros — a menos que, como
nas histórias de crime, sejam apagados. Triste história dos objetos-mercadoria,
principalmente dos de luxo: ora há frustração porque o valor não toma corpo,
ora a presença inquietante do trabalho concreto, outra face da abstração que
funda o valor, impede atribuir-lhe transcendência purificadora. Ora, o misté
rio, jogado sempre sobre sua natureza pelos que querem denegar sua indig
nidade original, pode sumir se a bruma do revestimento for levantada. Por
baixo do revestimento, a obra revela o trabalho em colaboração, o trabalho
não transubstanciado completamente ainda, gravado no que aspira à sua total
transubstanciação. Muito da plástica perturbadora de Le Corbusier decorre da
franqueza com que o concreto deixado aparente registra os azares da matéria
resistente amoldada pelo trabalhador coletivo.
Ora, o revestimento não pode ser questão de gosto - mas é comum a todas
as casas da burguesia e da pequena burguesia. Esse componente homoge-
neizador, em princípio desnecessário, não é suprimido como fariam com a
vida privada, se pudessem, os que procuram a distinção social.19 Sua variação
superficial (ambigüidade gostosa) é pobre, feita dos difusos intervalos que
distinguem a massa corrida do reboco médio, o artesanal da contrafação
industrial ao passarmos de camada a camada social. As semelhanças que38 39
42. Ver S. Freud, “La Negación”, em Obras Completas. Madri: Biblioteca Nueva. 1968. v
pp.i.i34-l.l36.
sempre possível para o operário manufatureiro, o conflito entre essas espe
cialidades é aspirado (depois de provocado) como lugar das intervenções do
comando exclusivamente. Não é à toa que a centralização das informações
impede as trocas laterais. O comando, hoje, se favorece a separação, age depois
como se introduzisse seu contrário. E assim que se justifica. Esse contrário,
entretanto, não é a livre associação; já mostramos: é a amarração autoritária
e suas múltiplas conseqüências. O comando manipula o vazio que separa
o separado cumprindo os mandamentos de uma lógica exigente: enche o
vazio com as figuras da superposição, do cruzamento, do emaranhamento, da
repulsa... Comandar, aqui, é pôr hífens avinagrados nos hiatos.
Diz-se que a arquitetura é a arte do espaço — verdade que é verdadeira
como a verdade dos sintomas. Isto é, a ser procurada na literalidade do dito.
Porque é para manter o espaçamento entre operários e equipes que há que
propor volumes, massas, que há que relacrax duramente, materialmente, o
vazio. Diz-se que arquitetura é a arte do espaço — e pensamos no outro, no
descrito por um Zevi. Mas o que efetivamente guia a mão nos seus desenhos e
o espaçamento cuja compressão espaça mais, como a argamassa que aglutina
os tijolos separando-os definitivamente. Deslocamento e metonímia. A barra
que separa as oposições no canteiro tem de ter espessura. O separado negado
pelo desenho globalizante é mantido pela aplicação de cunhas que o próprio
desenho globalizante promove. As parcelas do trabalhador coletivo se enrodi
lham ainda mais em torno de si mesmas, constringidas pelo desenho que as
aperta e sobrepõe em pegajosa colaboração com a organização do trabalho.
Assim, se volume e revestimento (e mais) figuram o inverso da prática
cotidiana dos canteiros, se a série das categorias totalizantes esconde a sepa
ração que engendra, tais oposições se apoiam num terceiro termo que, na sua
forma mais geral, é a luta cotidiana de classes no canteiro. Se luta é oposição
imediata, ela mantém, enquanto dura, o que opõe: o trabalho separado, de
um lado; de outro, o poder separador, inicialmente uno, o capital. Mas man
tém contaminando cada oposto com seu inverso, em escorregadias transações,
fazendo mais complexa a oposição — por exemplo, injetando o poder separa
dor como enchimento nos intervalos do separado.
Menos abstratamente: é necessário rejuntar com atrito o separado, pôr
“um” no disperso com reserva para que a fissura não suma. E a força rejun-
tadora deve ser proporcional à força dispersora. Ou melhor: como “a força
não seria se não existisse sob esses modos contrários”,43 como o momento de
Basta.
Exemplos semelhantes são numerosos: do Deutscherwerkbund ao ciam,
da Bauhaus e do De Stijl às relações de Gropius, Breuer, Neutra, Saarinem
com o New Deal, de Tony Gamier a Reidy, os mesmos comentários poderiam
ser feitos. A arquitetura moderna precisa descer de sua euforia para um triste
balanço. Mas continuemos.
Dizíamos: quanto maior for o impulso exercido para separar a base da
produção, maior será o impulso diversamente oposto (sendo que esse aumento
simultâneo corresponde ao agravamento da luta de classes, ao aprofundamento
da técnica de dominação). Será, aliás, o mesmo invertido. A unidade “supri-
Se o que Freud descobriu, e redescobre com um gume cada vez mais afiado,
tem algum sentido, é que 0 deslocamento do significante determina os sujeitos
em seus atos, seu destino, suas recusas, suas cegueiras, seu sucesso e sua sorte,
não obstante seus dons inatos e sua posição social, sem levar em conta 0 caráter
ou o sexo, e que por bem ou por mal seguirá o rumo do significante, como
armas e bagagens, tudo aquilo que é da ordem do dado psicológico.50
BALANÇO E PARÊNTESE
51 Cf. E. Balibar, Cinq études du matérialisme historique. Paris: Maspero, 1974; Ch.
Bettelheim, Revolução cultural e organização industrial na China. Rio de Janeiro: Graal,
1979; Ch. Bettelheim, Cálculo econômico eformas de propriedade. Lisboa: Dom Quixote.
1970; A.D. Magaline, Luta de classes e devalorização do capital. Lisboa: Moraes, 1977.
ilusões quanto a fundões mais dignas. O interesso do sistema volta a ser
aqui dirigido para o baixo valor unitário. Se não há promoção oficial, raso
mais geral, a “autoconst.rução” das favelas e dos bairros operários, aparen
temente marginal, é responsável indireta mas considerável por aumento
da mais-valia relativa.
C.3. Habitação “popular” (operária) em país desenvolvido: caso seme
lhante ao anterior, mas atravessando por espessa ambigüidade decorrente
da situação específica da luta de classes.
Alguns (poucos) comentários.
Em A, há empenho no sentido de racionalizar a produção e as lentas ino
vações tecnológicas na construção sempre surgem nesse setor; exemplos: o
ferro e o concreto armado no século XIX, a generalização da pré-fabricação
e da industrialização de componentes pesados no século xx etc. O interesse
em baixar o valor unitário comparativo serve a múltiplas causas mais ou
menos convergentes (cuidados com a composição orgânica do capital, pres
são para a desvalorização do capital constante, redução do valor unitário das
mercadorias que entram no custo da produção e da reprodução da força de
trabalho etc.).
Em B e c.i, o empenho, raramente consciente, é inverso. Enquanto tesou
ros, são produtos que não entram na composição do valor da força de trabalho.
As modificações tecnológicas que impliquem baixa de seu valor unitário não
reaparecem como aumento da taxa de mais-valia. Inversamente, como a taxa
de lucro no setor entra — e como parte de peso — na perequação da taxa média
de lucro, importa manter aqui uma baixa composição orgânica do capital, um
dos freios para contrabalançar a queda tendencial da taxa de lucro.
Em C.3, é a pressão das lutas sociais que faz com que a burguesia deva
atribuir a parte do operariado metropolitano (sobretudo à “aristocracia”
operária) um pouco do que antes era exclusividade sua. Entretanto, como
essa concessão tem reflexos no valor da força de trabalho, torna-se indis
pensável diminuir sua extensão. Daí alguma pré-fabricação e “racionaliza
ção”, o que provoca o desvio da média do Cc (Capital constante), que passa
de 70% a 85% nesses canteiros. Ora, a diminuição é perigosa: por um lado,
o “tesouro” conquistado (e que, por isso mesmo, deixa de ser tesouro) deve
sugerir vestígios de verdade, como obrigam as intenções políticas. Por outro,
o sistema não pode prescindir dessa área excepcional de valorização e con
centração do capital. Diante da ambigüidade inevitável, geralmente é neces
sária a regulamentação e intervenção estatal. E o peso da habitação “popu
lar” não industrializada sobre os salários — sempre menor que o aumento
real do valor da força de trabalho “favorecida” — é equilibrado pelo desvio
140 de verbas que pertencem aos próprios operários em conjunto: BNH coin fun-
dos do FGTS no Brasil, HLM na França. (Aliás, coisa semelhante e feita em i.
a grande parte da infra-estrutura — energia, estradas etc. — encontra assim
“financiamento”, compondo um poderoso recurso contra a tendência de
crescimento do Cc.)
Em C.2, basta grotesca figuração do “tesouro”. Como é pouca coisa o que
conceder para dividir, amarrar e afastar uma classe operária extremamente
explorada e de problemática consciência de classe, sempre cuidadosamente
envolvida por enorme exército de reserva de força de trabalho — e outros
exércitos —, não há razão para maiores preocupações. Aqui, a regra é ainda
a estudada por Engels: fora a mínima concessão, nada melhor do que deixar
o item habitação descer até quase a ficção na composição do valor da força
de trabalho através do relançamento da “autoconstrução” imposta (favelas e
zonas operárias) e dos cortiços vária vezes amortizados.
Mais “racionalizada” e geralmente heterogênea em A e C.3, serial e mais
inerte tecnologicamente em B e c.i, a manufatura, entretanto, não foi jamais
/
Sobre cem acidentes com interrupção do trabalho, mais de 22% têm por
vitimas trabalhadores imigrantes, apesar de não representarem senão 9,4o c
da totalidade dos trabalhadores [...] As razoes são múltiplas. São eles que sã:
empregados nas indústrias mais perigosas, como a da construção.53 54
A MA O
55 Ver KW. Taylor, La direction des ateliês. Paris: Dunod, 1930, p. 137.
56 “Por vezes, diríamos que ela pensa”. H. Focilon, “Éloge de la main”, em Vie desformes.
Paris: PUF, 1943, p. 103.
E somos então forçados a supor uma espécie de inversão, porque o Autômato
joga precisamente como um homem não jogaria. Essas idéias, uma vez aceitas,
bastam por elas mesmas para sugerir a concepção de um homem escondido
no interior.57
Edgar Allan Poe, “Le Jouer d’echecs de Maelzel”, em Nouvelles histoires extraordina.~:
Paris: L. Joseph Gilbert, 1947, p. 276.
específicos, tonalidades, transparências: a hora é de carne ainda. A duração se
desdobra na mão em harmônicos, ressonâncias — e furor.58
Freud introduziu a construção no vocabulário da psicanálise.59 Com a
responsabilidade que sempre marca suas metáforas, utiliza o canteiro do
arqueólogo e do construtor para aclarar a (re)construção do passado enterrado.
Curiosamente, as poucas restrições que faz à metáfora se referem a efeitos de
sua exploração atual: por exemplo, afasta a sucessão linear, constante, das eta
pas. No mais, a adequação, a concordância são sublinhadas pela supressão do
prefixo: prefere construção como termo suficiente, não reconstrução. O acerto
da construção — que não é interpretação — depende de seu poder estruturador,
imantador, evocador. Será eficaz se atrair rememorações, associações, restos: se
acordar, revelar, reunir.
A construção acertada acorda, revela, reúne. Mas, mesmo na nossa cons
trução explorada e cujo objetivo não é o acerto, o operário não pode evitar que
nele alguma coisa acorde, se revele e reúna. Manufatureiro, carrega em si
uma técnica obrigatoriamente próxima do acerto, da eficácia. Uma pequena
ilustração disso: essa técnica lembra ainda muito a que nós “construímos”
como a da era dos primeiros utensílios (aqueles que serviam ainda).
Ao agir o sujeito orienta a maior parte de sua atividade com a ajuda de séries
de programas elaborados no discurso da evolução do grupo étnico e que
a educação inscreve na sua memória motriz. Ele desenvolve essas cadeias
numa situação em que a consciência lúcida... segue uma senóide em que as
depressões correspondem às séries maquinais enquanto os picos marcam os
ajustamentos das séries às características em que a operação se desenrola [...]
As operações complexas de preensão-rotação-transladação, características
da manipulação, tendo sido as primeiras a surgir, atravessaram o tempo
sem sofrer qualquer transposição. Ainda constituem a base gestual mais
corrente, privilégio da mão mais do que arcaica e pouquíssimo especializada
do homem... O apanágio da duração, que em paleontologia se liga com as
espécies não especializadas, aplica-se também às operações da mão nua, às
quais permaneceram ligadas até aos tempos atuais as formas mais perfeitas
da construção arquitetônica, da cerâmica, da cestaria e da tecelagem.60
I 4(i Gi Ver J. Lacan, O seminário: Livro //. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, pp-79-81).
7 romove essas miragens como condição indispensável — mas não para que
se am esboçadas as premissas de alguma poética da mão. Se no interior do
rutòmato alguém respira, seu gesto deve ser precisamente como o de nenhum
rornem, truncado, anguloso, sob pena de fracasso, ofensa às regras e desem-
rrego. Contradição doída: sua função é atender às lacunas da manufatura,
preencher o não mecanizado sempre novo, cobrir as laterais da estereotipia só
:endencial, coisas às quais o homem é o único a poder responder. Mas o gesto
ronveniente é o do autômato — no interior do qual alguém deve respirar, para
poder ser o que não pode ser.
Mais: a abertura dc canais secundários que contornam os diques da repres
são psicológica, o retorno peneirado por transferência do submerso estimulam
efusões e soltam energias que são aspiradas pelo material que espera valori
zação. Oposto à planificação consciente no processo de produção, o operário
e posto em situação de transbordamento da “fonte eminentemente constru-
:ora... do processo primário”.62
Separadas as representações “perversas” originais dos atuais modos de seu
apelo no canteiro, a energia a elas associada escoa-se na prática substitutiva
controlada. Bastam associações mais ou menos vagas para permitir seu des
locamento. A vida do canteiro, tentamos indicar, é farta em imagens e opera
ções que as favorecem. A “economia” psíquica, em sublimação programada,
também serve à economia política no canteiro.
Se o tapume-paliçada protege o vazamento das “perversões”, determi
nando um espaço carceral,63 apóia o controle. Se a de-diferenciação64 alimenta
em energia o canteiro, a seriação do de-diferenciado suporta o poder da pro
dutividade dominada. Se a liberação de energia parece caos, o plano, ar sério,
civilizado e evangelizador, repõe ordem. Mas, assim como figurando coopera
ção acentua a divisão, o plano, assumindo o papel de “princípio de realidade”,
solta o operário construtor para as delícias oceânicas do caos — e para logo
capturá-lo enriquecido e desprevenido, renovado e indiferente ao seu objeto, a
serviço da valorização. Muito refinamento inverossímil? Afinal, a construção
representa 50% do Cc social, merece cuidados especiais. Não dissemos que
tudo isso é objeto de planificação consciente, nem que é atributo exclusivo da
construção. Só que nela aparece com maior força.
(Cedo no canteiro — antes do horário contabilizado —, a distribuição de
tarefas. A um qualquer cabe, suponhamos, a execução de um muro: dimen-
A mão humana é humana pelo que dela se separa e não pelo que é... 63
Ora, se é verdade que a obra carrega em si traços do passado, eles não estão
(estruturados) em nenhum outro lugar. A obra não traduz, deformando, a
lembrança; ela a constitui fantasmaticamente. Ela é uma memória original
e o substituto da memória psíquica infantil [...] A obra é uma inscrição
originária, mas que é sempre um substituto simbólico. Podemos dizer que,
ARREMATE
Pararemos por aqui nosso giro pelo canteiro, giro rápido, superficial (portanto,
cheio de grosserias), incompleto (quase que só nos ocupamos com alguns
modos de separação).
Sem que haja pretensão a sínteses, recordemos algumas das tônicas que
sustem seu funcionamento. (Talvez toda tentativa atual de síntese seja pre
matura. Como imaginá-las anteriores ao movimento de sua real superação,
de sua “negação determinada”? No tempo de sua rejeição efetiva, única
forma de projeto que não é projeção no futuro do agora a negar, sua possibili
dade nascerá de sua necessidade assumida pelos atuais produtores imediatos
enquanto se transformam em produtores globais.)
Essa grave e triste produção, que acena com reflexos imaginários de um
outro trabalho, encontra contraponto e fim numa estereotipia que vive de seu
69 S. Kofman, L'enfance de VarL une interpré tation de Ve sthé tiquefreudierme. Paris: Payoi,
O DESENHO
HISTÓRIA
Voltemos ao desenho.
Com a aproximação da total hegemonia burguesa e a adaptação induzida
das forças produtivas (isto é, a “revolução industrial”), com o desenvolvi
mento encomendado do maquinário e da organização do trabalho, métodos
e instrumentos para o comando e a comunicação reclamam reformas. Lem
151 bramos: como corporificações da união/des-união do trabalho, promovem
aumento da mais-valia, principahnente relativa. Os erros decorrentes de
ordens frouxas, as irregularidades que exigem uma correrão posterior, as
hesitações e pausas que a informação imprecisa ou insuficiente engendra
impedem o bom rendimento. Assim, a exatidão e a homogeneidade, a
repetição e a limitação compõem os novos objelivos: condições para o enca
deamento regrado da produção dividida, afastam os poros da manufatura,
agora grosseira, para a fome agravada do capiLal. Entre esses instrumentos,
o desenho.
No fim do século xvni, começo do xix, o desenho geométrico aparece, no
discurso dos que vislumbram novos tempos — em toda a ambigüidade da
expressão —, como uma de suas bases mais férteis.70 A geometria projetiva,
marginalizada desde sua primeira formulação sistemática, é retomada: o
Brouillon projet de Désargues de 1639 só será efetivamente desenvolvido com
a Géométrie descriptive de Monge em 1799- Ele e seus continuadores, como
Poncelet (Traité des propriétès projectives des figures, 1822) e Farish, prepa
ram os esquemas de representação convenientes e oportunos para o modo
de produção que atinge o poder completo. Fundados sobre a homogeneidade
postulada do espaço, articulados a partir da projeção ortogonal, da imóvel dis
posição dos diedros, da infinita distância do observador e, em parte, da homo-
logia, a ocultação de sua arbitrariedade encontra sintoma na decadência da
anamorfose, feita curiosidade de feira. Mas tais esquemas servem ao comando
mais seco e detalhado do capitalismo industrial — e é o que conta. Favorecem
a mensuração, a ordem, a estereotipia, a verificação (associados a outras pro
vidências que escapam ao nosso tema — cuja penetração, entretanto, provoca
ecus mesmo em Stendhal, na sua inclinação por uma linguagem depurada
como a dos médicos, ou em Ingres, na sua adesão à linha nítida como a tra
çada por buril).
Acompanhamos o resumo de história do desenho de Y. Deforge:
Os primeiros desenhos técnicos [...] que remontam à Idade Média não expri
mem senão as principais intenções do autor; comportavam poucas informa
ções precisas e sugeriam globalmente alguns temas para reflexão... tais dese
nhos estavam longe de trazer uma informação unívoca, tudo era possível e 0
bom artesão deveria encontrar como pudesse as intenções do autor [...]
A partir do século XVII, a necessidade de fabricações repetitivas provoca
Coisa curiosa: por longo tempo, até o século.XIX praticamente, o desenho foi
raramente um documento de trabalho; não era senão a transcrição das formas
do ser acabado, uma imagem geralmente ingênua e exterior das coisas.74 75
0 CONSULADO DA REPRESENTAÇÃO
A indicação vira reflexo quando o objeto não é senão imaginário, toma carne
de empréstimo e manifesta o que o deveria indicar, redobrando sua tendência
a vir a ser “sempre” (isto é, hoje) manifestação de si. Nesse avesso, o indicado r
reaparição do aparecer próprio à representação, além de apresentação da repre
sentação de si mesmo, confirmando que “indicar é o experimentar que agora
é [um] universal”.07 Jogo turvo: a presença da obra, cuja realização é passiva,
apresenta sua representação que, assim, se mostra ser um “universal” vazio. E
por isso que a dimensão ainda potencialmente simbólica dos esboços é coada
pela norma em uso da rede dos significantes plásticos — e no coador fica o que
não convém à produção dividida. Gilbert Durand insiste a propósito do caráte*
não convencional indispensável ao rearranjo simbólico dos significantes.88 E e
90 Ver R. Barthes, L’empire des signes. Genebra: Skira, 1970, pp. 30-34.
importa qual edifício de nossas cidades. Mas evitemos idealizações: os exem
plos de Freyssinet e Maillart são isolados.
No começo de sua história, o concreto foi moldado nas mesmas formas e
funções que as usuais em outros materiais, com missão de substituição. Das
caixas de flor de Monier (1849) ou barca de Lambot (1848), passando pelos
brevets de Barret e Coignet, até primeiras investidas comerciais (com a Actien-
Gesellschaft für Béton und Monierbau, que, de 1887 a 1891, construiu 320
pontes e barcos), seu aproveitamento foi híbrido e secundário, seja na França,
seu país de origem, seja na Inglaterra, apesar de Tall e Drake, ou nos eua,
apesar de Ward. Entretanto, já nesse período, a teoria e as experiências domi
nantes adotam diretivas extranaturais para esse material. Exemplos: o brevet
para uma viga (1865), os estudos de Bauschinger sobre colunas (1885), as teo
rias de Koenen (1886) sobre vigas e lajes. Sabemos: o conhecimento do con
creto armado se procura e empresta de fora, da região da madeira e do ferro,
caminhos batidos. Mas esse modo de pensar ficou e, mesmo, se exacerbou.
E ele que a organização de F. Hennebique, graças à qual a técnica do concreto
armado chega a 31 países, entre 1894 e 1906, divulga. Em traços grossos, ele
orienta a ebulição teórica do fim do século xix e início do nosso (Coignet,
Melan, Rabut, Bauschinger, Thuille, Christophe, Ritier etc.). Ao que respon
dem em eco as propostas nascentes para a generalização de seu recurso, como
os planos para uma cidade industrial de Tony Gamier (1902), e a primeira
aplicação dita coerente do princípio da ossatura, no imóvel na rua Franklin, n.
25 bis (1903), pelos irmãos Pérret: estruturas cúbicas em cujo esteio segue a
parte maior da arquitetura contemporânea. Material de substituição em que
são substituídas suas férteis possibilidades intrínsecas pelas convenientes para
a extração de sobretrabalho, o concreto não será aproveitado sem deformações
senão em trabalhos de exceção como os já indicados: os de Maillart a partir de
1901, de Freyssinet a partir de 1907.
O poder escorregadio do nosso sistema se revela mais claramente se esca
varmos nas pseudobizarrias que são, no fundo, sintomas “falantes”. Pontalis
aconselha, repetindo uma velha verdade da psicanálise:
E certo que nunca se pôde explicar por que o capitel repugna tanto, hoje, à
sensibilidade estética do artista, o qual se deleitou durante séculos com sua
forma esculpida.93
96 Ver S. Marglin, “Origens e funções do parcelamento das tarefas (para que servem os
patrões?)”, em Crítica da divisão do trabalho. São Paulo: Martins Fontes, ig8o.
97 R. Banham, Teoria e projeto na primeira era da máquina. São Paulo: Perspectiva, pp. 511-512.
cado em ossatura, substituindo o ferro, sofreu as deformações (ou a especiali
zação condizente com sua “rentabilidade” em larga escala). Nos desenhos, o
reticulado ortogonal seleciona suas formas e compõe o espaço como a priori
sem data. De tempo em tempo abre brecha para alguma variação. Mas nem
por isso desvia seu espraiamento irresistível por vários setores. Por sua ubi-
qüidade e transubstancialidade, sutilmente, arma um modo de regulação
interno e recíproco que, com seus ares de coisa imanente ao lugar em que se
aloja, aluga ao que é comandado farda de comandante. Qualquer tentativa de
rompimento em algum dos setores constitui sedição, perturbação da ordem
geral — e a reação dos outros logo abafa o desgarre, desenlouquece o trânsfuga.
Os dramas qualificados como heróicos da arquitetura e da técnica construtiva
moderna não contam revolta ou subversão — mas ajustamentos do sistema a si
mesmo, isto é, aperfeiçoamento da violência.
Se fosse o caso de encontrar um índice para o que somente roçamos, pro
poríamos a rigidificação da ossatura em concreto armado por triangulação
— esse resto de um enfoque bidimensional, aspirado pelo plano da representa
ção, estas barras em X que a má consciência dos projetistas, reconhecendo a
marca tradicional do erro, mascara sob o revestimento. Mas os revestimentos,
cedo ou tarde, racham.
A crítica da técnica e de sua objetividade de casca, entretanto, não é o
nosso tema. Voltemos uma outra vez à realidade de papel do desenhista.
Resumimos a razão de seu posto: a divisão da produção em componentes
antagônicos, resultado de sua gravitação em volta da mais-valia e não de
alguma a-histórica necessidade, abre um corte que pede o curativo traiçoeiro
do projeto, do partido, do desenho para que a produção seja ainda viável.
O posto do desenhista, portanto, fica fora da produção imediata, lá de onde
remete o complemento da divisão, complemento que pode também querer
dizer “o que falta para”.
(Nota, aproveitando a deixa: há polissemia do tipo indicado por O. Mannoni9®
nas palavras-chave da arquitetura: ao lado dos deslocamentos da cúmplice poe
sia em moda, outros, menos exaltantes, as envolvem em sombra. “Projeto” pode
ser o sartriano se aceitarmos a acepção dos puros; é, também, ao mesmo tempo,
o que se joga com força, lança lá adiante para os outros: as épuras que ordenam,
imagem arremessada, projétil burguês na luta de classes cotidiana; “desenho”
é, como já foi observado, desígnio, intento, ordem (de serviço), prescrição — e
designar é nomear, pôr em código, dar nome, dedo em riste; “partido” é o que
deixou o lugar da produção, do verbo partir, ir-se embora, depois de parti-la,98
O artista que traz em si a obra de arte não é o indivíduo que em cada caso
a produz: por seu trabalho, por sua passiva atividade, o artista se faz lugar-
tenente do sujeito social e total; submetendo-se à necessidade da obra de
arte, o artista elimina dela tudo o que pudesse dever pura e simplesmente à
acidentalidade de sua individuação."
104 Ver Palladio, Thefour books of architecture. Nova York: Dover, 1965.
105 Ver G. Galilei, Sensate espenenze e certe dimostrazioni, Antologia a cura di F. Brunetti
e L. Geymonat. Bari: Laterza, 1971: “[...] o universo [...] é escrito em linguagem mate
mática, e os caracteres são triângulos, círculos e outras figuras geométricas”, p. 248.
106 Ver A. Ehrenzweig, A ordem oculta da arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
ao desenho da obra — paralisia que é mais uma face do despotismo — impede
qualquer metabolismo. No produto, o desenho continua em si, opaco e obtuso.
O desenho é o que é em função da separação entre meios e força de tra
balho, separação que gera juntos desenho e projetista, agentes seus. Filhos
do mesmo ventre, guardam laços de origem. A existência de um é o aval do
outro. Se o pensar separado pressupõe o desenho que comanda, o desenho,
como é, pressupõe o pensar separado. No produto, a separação é contada pelo
desenho. Porque os laços de origem que guardam do ventre da separação per
duram nas cicatrizes que ambos carregam. Cheguemos um pouco mais perto
dos vestígios da separação no desenho, folgado no corpo que reveste como
roupa de empréstimo, emparedado pela tarefa que lhe coube.
O DESENHO SEPARADO
log Ver S.A. Kurtz, “Eclectic Classicism”, em Progressive Architecture, n. 7, 1970, p. 94.
110 Ver R. Arnheim, Arte e percepção visual. São Paulo: Pioneira, 1980.
escape para gozação nesse ponto, não fosse a dor que ronda embaixo sufocada.
Porque o retraimento em autocolimação que os arquitetos imaginam para a
obra, penoso como ginástica em barra, tenso contra o estreitamento dos lábios
de seu vão, descamba logo em miserável homogeneidade não tencionada. A
pseudo-individualização, a tara do caracol, refinada no desenho, é denunciada
instantaneamente. E pelo próprio desenho — que pode ser tudo, menos deixar
de ser desenho de representação: teatro, ausência do que mostra.
Ora, essa ênfase toda, esse enroladinho desandado ficam ainda mais esqui
sitos se considerarmos que tal efeito epidérmico, mesmo sem a redundância
maníaca, é resultado inevitável: a construção hoje; enfiada em negócios
picados, não tem como não andar aos saltos. Entretanto, o isolamento acar
retado (que, por outro lado, as leis do ego valorizado pelo sistema obrigam à
percepção) ganha novo impulso, requalificado por um formalismo exacerbado.
A crise pressentida provoca uma reação, próxima da mancha fóbica, em que
a reiteração dos mecanismos defensivos tenta desesperadamente esquivar
sua evidência crescente. Mais, e continuando a acusar a instabilidade da har
monia sobreposta, o isolamento (que não é distinção) é outra vez bisado, em
geral, por uma margeação da forma que podemos associar à ação dos bordos
em pintura, cesura e suporte da regra. Façamos mais uma volta.
O suporte, o campo tal como é definido por um contorno, tem sido pouco
examinado pelas teorias da pintura. O que é? O plano limitado dentro do
qual situamos o fato plástico. Sua função primeira é separar o que transmite,
o que contém, do resto, recurso de comunicação que corta interferências
do ambiente.111 Mas que corta também o que é comunicado daquilo que o
envolve — o que abre espaço para muita peripécia. Exemplo: um anúncio
qualquer, através dos efeitos do seu campo, empurra para além dele o que
possa conturbar sua mensagem. Clareza didática, supressão de ruídos — e, ao
mesmo tempo, fermento: o elemento isolado cresce, centra a atenção, chama
com eloquência maior.112 Sutil modo de valorização, age como se não agisse,
dissolvido na enganosa atonia do retângulo comum ou de outra configuração
qualquer. Além disso, induz estruturas e forças, secretamente, sem deixar
patente sua regulação. O campo, na comunicação visual, é negação ativa
in Ver M. Schapiro. “Champ et véhicule dans les signes iconiques” em Critique n. 315-316,
pp. 843-866.
112 Efeitos de centraçao estudados por J. Piaget; ver “O desenvolvimento da percepção em
função da idade”, em Tratado de psicologia experimental: 6—A percepção. Rio de Janeiro:
Forense, 1969: “...os elementos escolhidos ou encontrados [pelo olharj seriam superestimados
em relação àqueles que não são”, p. 7.
— mas furtivamente ativa, como se não houvesse paradoxo, imperceptível. Joga
forte, orientando a distribuição das formas no seu interior, mas sem quase
se fazer notar. Ora seus estímulos reanimam os da composição, como na Dis
puta do Santo Sacramento de Rafael (Vaticano); ora os contrariam sugerindo
desconforto, como no Retábulo de Issenheim de Grünewald (Colmar). Sua
sensibilidade especial, em grande parte devida à inconsciência com que é
manipulado, descreve em detalhes as vascilações de nossas posições históricas
fundamentais — e estas posições. Aparentemente, um dado, é capaz de todas as
modulações e astúcias. Referência calada, determina subterraneamente.
Em síntese, esse branco ordenador, cujos efeitos são equivalentes aos da mol
dura e das margens, implanta sob o que é figurado uma base que lhe garante,
indiferente ao que seja, algumas vantagens:
í. isolamento (formal, com repercussão favorecida pela centração);
2. disciplina (dada pela trama das estruturas induzidas que importam refle
xos, ilusórios mas convenientes, segundo o caso, de “necessidade” — de le:
— a realçar ou transgredir);
3. penetração (através da fenda aberta em nossos critérios corriqueiros de jul
gamento).
O vazio do fundo, quebrando o contato da imagem com o que a rodeia,
consegue que mesmo o absurdo, se proposto, nos persuada. Afirma: não é real.
é representação. Suspende, por não virem ao caso, as resistências do hábito.
Os anjos voam em pintura “naturalmente”, para o desconsolo de Courbert.
Mas, atenção, a suspensão é só da resistência: assim não há mais por que não
ouvir o apelo plástico, sob o abraço descontraído de suas evocações. Um cartaz
a star romanceia com o sabonete; como nos abrimos, entram e se instalam.
Desviado o olhar, continuam dentro — sem ter passado por nenhuma alfân
dega. De certo modo, a cena enquadrada jamais alucina, pois a pirueta de suz
penetração vem de nunca se confundir com o real. Mesmo quando se trata de
trompe-Voeih nos atrai justo no momento em que nos damos conta que nos
engana. Nesse ângulo, a anamorfose parece inversa: diz a verdade quando nos
ilude. Só que a ilusão é tão evanescente quanto a verdade.
EPIFANIA
114 Ver I Laplanche e I B. Pontalis, Vocabulário de psicanálise. São Paulo: Martins Fontes,
1970.
antigos de batismo de achados duvidosos em templos ou palácios, não legi
tima seu uso novo — mas põe sombra no uso antigo que a pátina do tempo
talvez tenha dourado demais.115 116No desenho — e, portanto, na obra que dirige
—, uma espécie abastarda de homeomorfose estica ou encolhe as dimensões
convenientes das coisas buscando acordos deslocados: a trave de uma porta vai
procurar o plano horizontal da base de uma janela distante de mais de 10 m;
um cilindro, não se sabe porque envoltório de um sanitário, assume o papel de
cheio que vem do buraco de uma escada; dois planos laterais, empenas, conti
nuam além do paralelepípedo em que, por um a priori, a casa fica contida, até
a vertical que dá fim ao beiral; os blocos de um conjunto se perfilam em para
lelismos ou desfilam em variações de 30o, 45o ou 60o... (a enumeração dos
tiques, cacofonias, redundâncias, ecos-plásticos, nomes que quadram melhor
que os nobres, é desnecessária e nauseante. Basta olhar em volta e ver.)llfi
Ritmos primários (do tipo V2, cheio/vazio, +/-), simetrias candidatas a refi
nado dinamismo, eixos, banais jogos de espelho, inundação de ângulos retos,
alinhamentos kleinianos: eis a sintaxe dominante. (Observação: sem que fosse
nosso propósito, indicamos ponto por ponto o gênero de estruturação formal
à qual R. Mucchielli, no teste da aldeia imaginária, atribui o valor de índice
de “sistematização completa do pensamento”, “ausência total do realismo, de
adaptabilidade”, “geometrizaçao esquizofrênica do pensamento”.)117 A rede
de tais acordos (?), correspondências (?), cesuras, estereotipia da representa
ção gráfica espacializada, se espalha indiferente ao que cobre, do detalhe ao
plano de massa, assim como guia a produção sem a penetrar realmente. Todo
o receituário para a “boa” forma arquitetônica pode ser condensado num
rígido sistema de primárias relações abstratas que ignoram toda particulari
dade e ligam exteriormente o que, na verdade, nada tem a ver entre si.
Por outro lado, essa sintaxe, estrangeira ao que desenha, desqualifica.
A brutalidade autoritária homogeneiza os que submete, fazendo-os seres-do-
medo; do mesmo modo, as normas autistas da representação todo-poderosa
corroem a diferença. Arquitetura = jogo sábio de volumes, independente
A relação que, numa obra de arte... associa elementos díspares tanto por sua
origem natural como por sua importância no conjunto figurado é, antes de
mais nada, uma relação exterior à significação própria dos elementos.110
/
E claro, se há “dissolução semântica”, há também redução a uma sintaxe
unidimensional; sua invasão não encontra a oposição dos elementos esva
ziados. Não é preciso muito procurar para achar a raiz isomórfica do nosso
desenho — o valor enquanto valor de troca. Se o tempo é aplainado pela “hora
118 P. Francastel, Lafigure et le lieu — Uordre visuel du quattrocento. Paris: Gallimard, 1967,
P- 125-
119 M. Horkheimer, “Conservation de soi” em Eclipse de la Raison. Paris: Payot, 1974,
p. 220. [Este texto não consta na edição brasileira (n.0.)]
120 M. Horkheimer e T.W. Adorno, Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
i985> P-23-
social média”, o espaço é homogeneizado pela trama imutável; inversamente,
se toda particularidade espacial é marginalizada, o tempo variegado dos tra
balhos concretos não é o contado. O cheiro que exala essa malha urdida pelo
capital é necessariamente uma das ressonâncias do trabalho abstratizado. Não
há mistério, aparentemente: o desenho que possibilita a mercantilização atual
do espaço é, coerentemente, o desenho do trabalho seco da unidade universal.
Esperamos já ter posto alguma clareza (fraca, sabemos) nesses temas. Conti
nuemos, retomando algumas considerações de Marx:
186 126 G. Durand, Imaginação simbólica. São Paulo: Cultrix, 1988, p.ig .
da moeda, ser a propriedade de cada valor de troca. O suporte no qual esse
símbolo é representado não é indiferente, porque o que é exigido do símbolo
está contido nas particularidades — características conceituais, proporções
determinadas — da coisa a simbolizar [...]
As propriedades que a mercadoria possui como valor de troca, e às quais
suas qualidades naturais não são adequadas, exprimem o que temos o direito
de exigir das mercadorias que são por excelência a matéria da moeda.127
O produto é mercadoria. Sua forma, de início, sobre isso nada nos fala. A
troca transfere sua universalidade enquanto encarnação do trabalho abstrato
para um produto particular, o suporte da moeda. Por um movimento inverso,
esse suporte particular vira a abstração coisificada, cortesia do universal que
comparece ao baile das coisas. Mas, com a percepção das fissuras crescentes
do sistema, complemento da prioridade indisputada do valor, essa única
coisificação não basta mais. A impossibilidade de torná-lo tangível em cada
mercadoria — a não ser mediatamente, na moeda fetichizada — aguça tensões
irremediáveis (por algum tempo ainda). Ora, essas tensões excitadas, essa
angústia provocada por sua onipresença escapadiça, por sua teimosa finta,
essa ameaça de morte brandida pela mania que tem de desguiar impelem
o desenho a procurar modos para simbolizá-lo (ou pelo menos alegorizá-lo).
Atacado de misofobia (não é separação?), o valor escorre sem se deixar acari
nhar, sem securizar, levantando maus presságios e rancor. Temos de agarrá-lo
(é o nosso fundamento!): que o desenho nos ajude a diminuir sua esquivança.
Sobretudo quando os objetos que projeta concentram grande massa (de valor)
como os objetos arquitetônicos: o símbolo, que é meia encarnação, fica facili
tado por sua densidade.
A redundância, nos disse Durand, é natural na busca de adequação sim
bólica. Ora, vimos, a perseidade do desenho acompanha seu espalhamento
horizontal — o que nos lembra de sua insistência “perpendicular” notada por
Foucault, da aparição de si mesmo que sempre indica fazendo a “experiência
que o (isto) é um universal”. Pois bem, no desenho que anula redundan
temente a especificidade da coisa (sem se pôr muito a claro), o valor, nega
ção também da particularidade da coisa, de suas “qualidades naturais”, se
apresenta em miragem. Miragem: inesgotável inadequação da encarnação.
Assim, é no modo da ruptura do objeto que o valor tenta aparecer, na capa
que, agora já agressiva porque embebida de angústia, espezinha sua positi-
188 128 Ver F. de Saussure, Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 2004.
de nossa prática, dotadas de quase evidência, de simulacro de substância pró
pria, de ares de razão imanente (assim como o desenho separador produz os
universais plásticos, cuja positividade, vimos no exemplo de Cézanne, é feita
de vazio). Partes e componentes que se propõem hoje “naturalmente” ao
projeto, à produção: estrutura ~ paredes — revestimentos — pintura; concretar
— levantar — cobrir - pintar etc. No mesmo passo em que são delimitadas, se
estruturam em seqüências e séries alternativas regulares (em sintagmas e
paradigmas). Tais e tais tarefas e peças devem se suceder numa certa ordem
(exemplo, os transportes de concreto que discutimos), sendo que há possibili
dade, em geral, de trocá-las por outras mais ou menos associadas e/ou equi
valentes (substituição do carrinho por preparação no local, do guincho por
esteiras etc.). Forçando a conhecida tese, diríamos que a produção do espaço
se estrutura como linguagem. Mesmo sua linearidade (discutível) encontra
par na sucessão inerente a essa manufatura. Observemos novamente, porém,
que a “evidência” das unidades que manipulamos é o resultado de duplo
movimento separador orientado pelo capital — e nada mais. Toda motivação é
procurada a posteriori Notemos ainda que o significado do signo (plástico) é
um conceito, e não uma coisa imediatamente referida. Assim, a ordem de ser
viço propõe uma abstração: reencontramos aquela distância do canteiro que
já apontamos ao comentar a realidade de papel do projetista, entre caroço de
receitas e limites do desastre.
O desenho é desenho para a produção, “para” - e não “da”. Não foi retirado
dela como momento seu, como negação determinada. Ao contrário, a viola. Seria
menos componente de técnica de produção que peça central de técnica de domi
nação — se houvesse como distingui-las. Uma ilustração, a nosso ver, modelar.
Manfredo Tafuri, Bruno Zevi, Robert Klein, Nicolaus Pevsner, Pierre
Francastel, Erwin Panofsky, Anthony Blunt,130 131 quase todos os historiadores
da arte são unânimes em situar a cúpula de Santa Maria del Fiore (Florença)
como o ponto em que a arquitetura gira na direção que é a nossa. Curiosa
mente, só Tafuri fala, e de passagem, do canteiro — apesar de a fonte comum a
todos, Vasari, dele se ocupar longamente.132 Ocultação de hábito.
Vasari, no seu entusiasmo por Brunelleschi, conta anedotas que propõe à
imitação de seus leitores. A desordem aparente, o jeito descontínuo apoiam
seu valor sintomático. Vejamos algumas delas.
A perspectiva (nosso desenho de então) já surge com dupla função. Por um
lado, reduz a enorme obra a uma escala que permite o controle de todos os
seus momentos e partes: código para a centralização, registro e memória para
as ordens de serviço. Por outro, arma contra os operários que, impedidos de
examinar o projeto, não podem mais colaborar inteligentemente — e contra
os outros arquitetos. Para provar sua eficácia nessa função, Brunelleschi não
hesita, por exemplo, em encenar doença, fazendo o detestado Ghiberti perder
a direção da obra por desconhecer as manhas de seu desenho. A perspectiva
entra na arquitetura e, imediatamente, se põe em guerra.
É conhecida a primeira experiência de Brunelleschi com a perspectiva.
Desenha uma cena de Florença composta unicamente por edifícios (o Batisté-
136 1378; ver E. Mollart e P. Wolf, Ongles Bleus, Jacques et Ciompi, Les revolutions populaires
en Europe aux XIVet XVsiècles. Paris: Calman-Lévy, 1970, pp. 143-163.
137 Ver X Gimpel, La revolution industrielle du moyen age. Paris: Senil, 1975, pp. 93-112.
138 Ver K. Marx e F. Engels,^ ideologia alemã. São Paulo: Ed. Moraes, 1989, p.70.
139 VTer E Jaccard, História social do trabalho. Lisboa: Horizonte, 1974.
140 Ver II. Pirenne, “As cidades como centros econômico” em História econômica e social da
195 Idade Média. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1966, pp.175-184.
2. do sentido da multiplicidade de normas (caso típico, o do sistema de medi-
àas-, 'çròerva. sei xe^àax was esftxxftxxras ^axa.ia.c^\\ax e içrtmas^
armações e cálculo; modulado nos componentes produzidos fora do can
teiro, como portas e caixilhos; mas fluido e não modulado no resto; a uni
dade de produção é o trabalhador de imprecisão intrínseca — raramente,
fora etapas semelhantes às apontadas, a exatidão e a repetição convém);
3. do princípio da clareza construtiva (que facilitaria a produção pelo enten
dimento, a todo momento possível, do objeto a ser produzido; razão que
levaria também à manutenção dos traços do trabalho, transformando cada
obra num veículo pedagógico);
4. do princípio da prioridade das condições de trabalho (que visaria a segu
rança e a preservação do conhecimento).
(Deveria, naturalmente, seguir mais outras orientações do mesmo gênero.
Mas estas são suficientes para o que queremos mostrar no momento.)
Ora, é quase impossível encontrar desenho arquitetônico assim determi
nado. Um ou outro de Le Corbusier, alguns de Tátlin, os primeiros de Nie-
meyer talvez e, em geral, só parcialmente. Exceção: Gaudí, sempre margina
lizado como bizarro pela arquiteturologia oficial.
Já discutimos alguns pares de oposições desenho/canteiro anterior mente:
entre a heteronomia do canteiro e a aparência de autonomia que persegue
o desenho; entre a sucessão dos trabalhos e a atemporalidade da harmonia e
do equilíbrio prezados; entre a descontinuidade da produção e a totalidade
fechada do partido; entre o modo manufatureiro de construir e as séries
padronizadas; entre os volumes arquitetônicos e as equipes em induzida diás-
pora; entre o código do desenho e 0 trabalhador que a ele não tem acesso;
entre a estereotipia das formas e a mão. Essas oposições caracterizam o dese
nho atual. Em vão procuraríamos vestígios de nossa hipótese absurda (supre
macia da técnica de produção sobre a técnica de dominação); ou inexistem ou
são totalmente absorvidos pelos contrários. Entretanto, é ela que arquitetos e
técnicos, quando se metem a falar, afirmam como a que os inspira. Compre
endemos: criados dedicados, são dispensados de coerência.
O desenho não mostra facilmente o que é. Reconhecemos que é impelido,
de começo, na direção da resistência. Sua função, pela enésima vez, é fornecer
esqueleto em torno do qual possa se cristalizar o trabalho separado: nasce, por
tanto, como seu inverso. Mas, sob a aparência de vínculo, na verdade agrava a
separação por ser separado. O que o desenhista denega, insistindo na aparência
— sublinha, se paramenta. Sem maiores hesitações: confusamente percebe que,
desenhando, já cumpriu seu dever principal. Existe, logo pensa (no lugar dos
que domina). Os desenvolvimentos seguintes necessários ao bom andamento
196 da produção, as microscópicas subdivisões, estão potencialmente contidos no
ato mesmo de sua constituição, no destino que a venda da força de trabalho lhe
atribui: impedir autodeterminação. A alienação econômica da força de trabalho
sofre remate definitivo com a acefalia em que arquitetos e técnicos a confinam;
o resto vem como corolário “espontâneo” — quase. E é o que não poderia ser
revelado de cara, esta castração que bisa a primeira. Mas, malgrado a insistên
cia, o desenho obrigatoriamente mostra o que é esticando o próprio impulso
da inversão, no desenrolar dos trejeitos harmônicos assim azedados, na exaspe
ração da máscara que ganha translucidez. A totalidade enfatizada não é tota-
lização em processo jamais concluído — é a mentira do se paramentar dizendo
a verdade, foz do mentar separação, mal mentir não separação do qual não se
livra, força chata das coisas. A ferida que ajuda a afundar, fica nela atestada.
Vamos recordar, antes de terminar.
Há dupla paramentação: a do projetista e a do desenho. Deixaremos de
lado a do projetista, assunto triste de uma tristeza triste demais. Uma obser
vação, entretanto.
Seu protótipo é Michelangelo (apesar de ter sempre tentado desabusar
seus fiéis): “Vossa função é talhar a pedra, trabalhar a madeira, erguer as
paredes. Fazer vosso ofício e executar as minhas ordens. Quanto a saber o que
tenho na cabeça, vós não o sabereis jamais — isso seria contrário à minha dig
nidade”, declara aos operários hostis à sua direção no canteiro de São Pedro,
em 1551. E, numa discussão com o papa Marcelo il, acrescenta em 1555:
Eu não sou e não quero ser obrigado, por nenhum preço, a dizer nem a Vossa
Senhoria, nem a ninguém, 0 que eu devo e quero fazer. Vosso papel é juntar
dinheiro e fiscalizar roubalheiras. Quanto ao plano, eu vos peço deixar a mim
0 cuidado.14-1
POSFÁCIO
Este texto não teve prefácio: seria redundância introduzir uma introdução.
Nem apresentação: não há conveniência (de tipo diverso) em comprometer
alguém com ele. Nem dedicatória: os que a merecem, meus dois companhei
ros de arquitetura, sabem que a eles caberia, em outra hora. O registro de sua
presença deixei para o plural do “nós” — que me agrada também por seu ar
mofento. Creio que gostaríamos, os três, de ainda oferecê-lo aos trabalhadores
da construção, não o tivesse eu tornado tão obtuso e banguela.
Mas, à guisa de fecho e marcando que não é texto acabado, reabro sem ter
finalizado — e me calo em gancho, atirando algumas provocações lá no nó em
que seu tema toma forma, nó que já podemos começar a construir,
199 í. Michelangelo. (Pietà de Rondanini) Cristo — de quem a vida foi tirada
— e a Mãe: dois corpos. Em seguida, do ombro da Mãe sai o novo corpo de
Cristo: dois feitos de um, um que é dois, dois procurando um. Sobra, pen
dente, o braço cortado do primeiro corpo.
2. Palladio. A fenda da simetria, produtora do fantasma do todo, vinco de
inversão, grita a elipse da castração.
3. Rafael. 0 ponto da fuga comanda o debate dos sábios. Furo, vórtice, vácuo.
Cézanne o elimina — multiplicando.
4. Correggio. Corrige, isto é, tapeia. Põe o ponto da fuga no centro do céu,
tampa com nuvens, espalha anjinhos nos bordos — todo bordo é ávido de
carne macia. O fetichista denega com meias.
5. Br amante. No centro do mundo, o Vaticano. No centro do Vaticano, o altar.
No centro do altar, a hóstia. “Tomai, isto é o meu corpo” (Marcos, 14,22). É
que lá se cruzam as fendas da simetria.
6. Bernini. Abre a colunata em duas pernas. No meio, um obelisco. No eixo
que une altar e obelisco, da janela, o papa ergue o dedo: “Em nome-do-
pai...”.
7. Sansovino (praça de São Marcos). As diferentes espessuras das paredes —
cortes — servem de pretexto para cornijas. Laços: um enorme cordão amar
rando a enorme colunata — e dividem na vertical para juntar na horizontal.
Ritmo: cesura.
8. Michelangelo. Na biblioteca de Florença cava vales para colunas que nada
sustentam.
No Juízo Final, Cristo separa uns dos outros: o espaço se aplaina na dor.
Os condenados entram na terra, os chamados saem, como condenados.
No canto oposto às serpentes — neutralizadas pela visão da serpente da lei do
Pai —, Amã trai a iconografia: em vez da força, crucificado num cepo. Lapsus.
Na outra extremidade, Judite corta a cabeça de Holofernes, Davi a de Golias.
200
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V
GRENOBLE
INTRODUÇÃO
AS TAREFAS FUNDAMENTAIS
dução deve ser o único guia da explosão de uma totalidade. E necessário bus
car os signos da objetividade nas totalizações parciais e homogêneas. Assim, o
esfacelamento não deve nos preocupar, ao contrário, o momento negativo da
falsa totalidade não pode coexistir com uma ligeira positividade.
Mas seria ilusório esperar que a pura racionalidade seja suficiente para
vencer o que o uso prolongado, deformado e deformante, produziu. A isto é
necessário associar a crítica radical e a prática modificadora.
CONCLUSÃO
RESUMO
213
DESENHO E CANTEIRO NA CONCEPÇÃO DO CONVENTO DE LA
TOURETTE 1988
I i
inventadas por Jeanneret na índia. Quase todo o resto, sempre segundo eles,
foi obra dos dois, sendo Wolgensky o menos ambicioso nas reivindicações.
Xenakis assume a autoria de muito mais — mas, felizmente, 0 que o exame
216 dos desenhos guardados na Fundação Le Corbusier mostra é que muitas pro
postas suas não foram executadas, como o auto-falante gigante na cobertura,
o extravagante órgão central e as tristes piramidezinhas para o tratamento do
som, tudo na Igreja, assim salva dos impulsos do músico. Quando foram acei
tas, Wolgensky diz serem suas também, como os “canhões de luz” — repente
de Xenakis emborcando um balde — ou madura reflexão de Wolgensky. Vá
saber. O mito tomou conta de todos os depoimentos. Os padres se lembram de
um mundo angélico, cheio de gracinhas místicas. Quizemos ter a versão ope
rária. Procuramos muito, achamos alguns, até um preso na Argélia. Mesmo
panegírico inflamado, lembranças do dia em que L.C. deu bom dia para um,
abraçou um outro, disse isso ou aquilo.
Ora, estudando cartas, relatórios, etc., ficamos sabendo que não foi assim:
confusão permanente, desenhos chegando após a execução ou não chegando
nunca, atrasos, desentendimentos de equipes de trabalhos, disfuncionamen-
tos, crises, etc. A tal ponto que Xenakis associou o que se passava no canteiro
com seus “glissandi”: escreve o começo de um trecho musical e seu fim, dei
xando a orquestra, cada musico por si, se virar no intervalo, o que, em si, não
é uma má idéia.
\
218
Como numa enorme montagem mecânica, peças menores são coladas a
dois sólidos simples (um retângulo e um U tripartido). O ar prometeico, acen
tuado pela aspereza da matéria, provém também da junção crua das peças ao
núcleo. Os cubinhos do método Frõbel que L.C. conheceu na sua formação
talvez ressurj am aqui.
O paradigma da montagem sem transições de sólidos fortes desce
aos detalhes.
i
estrutura fictícia estrutura real
1994
A PROBLEMÁTICA
HIPÓTESE PEDAGÓGICA
A Obra não é, pois, para si o todo efetivamente animado, mas ê este todo somente
quando ela é tomada com seu próprio devir. [Hegel]
ESTRUTURA PEDAGÓGICA
Forma
O universo das formas tem suas próprias leis e uma eficácia específica. Teo
rias e metodologias variadas elaboraram um saber que já pode ajudar a
concepção com pertinência e firmeza. Essa autonomia de base, entretanto,
é sempre sobredeterminada por múltiplos fatores — pela modelização que
a informa, por exemplo. Os instrumentos de representação e as referências
imaginárias colorem a forma, limitam sua autonomia.
Ora, a distância excessiva entre concepção e realização provoca, atual
mente e com freqüência, a exclusão do imaginário construtivo eficaz e uma
dependência exagerada do desenho em relação aos meios de projeção.
Uma das vocações do pólo é renovar a inervação da forma através da
“idéia construtiva”, restaurar sua atenção para as possibilidades expressivas da
correção técnica, assegurar a objetividade de sua função prescritiva. A forma
cai na parcialidade autoritária e perde sua aura ética quando não se estende
ao conjunto de suas finalidades, de seus deveres.
Ainda que nunca se deva descartar o ensino sistemático em torno da rela
ção entre o desenho e o fazer, a expressão adequada das potencialidades da
matéria implica a imersão profunda nos momentos da realização. A operação
de estruturar não pode dispensar a experiência da efetividade, do vivido.
Os caminhos obscuros da retroação do operar sobre o conceber cruzam habi
lidades e competências numerosas, heterogêneas, pouco teorizadas ou, em
geral, descartadas do ensino. Eles implicam, através da análise, a compreen
são da prática.
Forcao
Em cada grande período cultural, elaboraram-se e fixaram-se paradigmas
de pensamento técnico em uso. Não faz muito tempo, o edifício era pensado
como a adição de paredes vazadas por portas e janelas, coroadas por um teto.
Tal paradigma ainda está vivo em muitas regiões, colorido, aqui e ali, por par
ticularidades econômicas, logísticas, sociais etc. Hoje, se tende antes a dividir
diferentemente o construído, em estrutura, revestimento, repartições inter
nas, fluxos, entrecruzamentos etc. Em alguns momentos, domina a constru
ção maciça; em outros, aquela voltada para as estruturas leves. A concepção
dos esforços, o cálculo das estruturas, a seleção das propriedades consideradas
pertinentes aos materiais, as normas de conforto, a atitude para com o meio
ambiente etc., numa palavra, a_ cultura construtiva, sob todos os seus aspectos,
...sofre constantemente a injunção de situações diversas, mais ou menos felizes,
jque a levam para o uso de certos modelos e para a exclusão de outros. Seu
conhecimento é indispensável, associando estreitamente a história da cons
trução e da técnica à sua formulação teórica.
- • ■ ” • • - • •• / »*•••*
Porém, ainda uma vez, a abordagem através das regras, esquemas, inter
pretações e princípios (o que a semiologia identifica como diagramas) dá
demasiada importância unicamente ao pensamento. Mesmo na hipótese
mais favorável a esse pensamento, não é possível eliminar a experiência
direta daquilo sobre o que ele pensa. A representação técnica, a “teoria”, é
sempre seletiva, empobrecedora, e o “real” a supera amplamente. O tipo de
pensamento implicado por esses paradigmas técnicos — grosso modo, o enten
dimento — é um dos mais sujeitos aos encantos da ideologia. Raramente ele
é puro, exclusivamente técnico como se imagina. A economia política, aqui
também e por inúmeros reveses, o sobredetermina amplamente.
A experimentação crítica, aberta às potencialidades não exploradas e
atenta às diversas “lógicas de situações”, é indispensável. A arquitetura deve
retomar seu direito de proposta técnica inovadora, seu papel de prospec-
ção estrutural inteligente e responsável. A utilização correta dosjnateriais
segundo suas_ virtualidades intrínsecas é um dos caminhos privilegiados para
responder às.necessidades crescentes de construção,'obedecendo à ecologia e
às dificuldades econômicas.
No pólo, o ensino prático das culturas construtivas será muito desenvolvido,
o que é essencial. Em suas etapas mais evoluídas e na pesquisa, seus paradig-
_rnas devem ser_expliçita.dos1r^lativizados, criticados. Toda transformação fun
damental em arquitetura passa prioritariamente por sua revisão lúcida e pela
abertura a outros paradigmas.
226
Material
Entre os objetivos do pólo, o conhecimento multiforme do material ocupa
um lugar privilegiado. O estudo e a experimentação das qualidades próprias
aos diferentes materiais, como a pedra, o aço, o concreto, a madeira, o vidro,
os polímeros devem voltar à base da composição arquitetônica. A noção de
“resistência do material”, habitualmente formulada em fim de programa, é
proposta no início, pois se trata de criar “com” os materiais.
Desse modo, são introduzidas no pólo as questões ligadas às propriedades
mecânicas dos materiais e ao dimensionamento, o problema de sua longevi
dade, as questões ligadas às disposições arquiteturais, às técnicas de constru
ção e às lógicas construtivas.
Nos materiais, há uma “memória cultural”1 *cuja diversidade e estabilidade
superam amplamente as de nossa memória habitual. Essa “memóriajcultural5’
dos materiais traz rastros das competências, mas ultrapassa as fronteiras con
junturais entre as equipes de trabalho. O material, sratese-de matéria e história
condensada da produção, traz em si as potencialidades e.as contradições do
^construir: é preciso, entretanto, reconhecê-lo. Ele é a ponte que une o saber e a
experiência universitária às indústrias da construção, os interesses dos setores
da produção aos interesses em jogo dos trabalhadores e dos usuários.
No pólo, cada material de base é assim dotado de um equipamento ade
quado, capaz de responder à totalidade desses níveis.
Produçãoo
/
i Cf. Lumsden e O. E. Wilson: Genes, mind and culture: the coevolutionary process.
227 Cambridge, MA: Harvard University Press, 1981.
ção (ação das forças mecânicas e humanas de trabalho) deveria, em retorno,
orientar sua conveniência técnica, plástica e cultural. O momento do fazer
testa a validade das hipóteses de projeto.
Uma das características estéticas fundamentais desde o Renascimento — o
rastro {trace) — falta cruelmente na arquitetura. A encenação teatral, a execução
musical, a pincelada do pintor dão vida aos textos, partituras, esboços.
0 abafamento e a submissão do momento produtivo privam a arquitetura
de um de seus mais férteis meios de expressão.
Pelo mergulho na produção, o pólo quer facilitar, simultanecimente, a
compreensão do fazer no projeto antecipador e a expressão vivificante do tra
balho feliz em torno do traçado responsável.
COMISSÃO
CIENTÍFICA E
PEDAGÓGICA
GRANDE ATELIÊ GRANDE ATELIÊ
PEDAGÓGICO f°rma EXPERIMENTAL
força
materiais
produção
As unidades de base
Cada unidade de base do pólo — de forma, de força, de materiais, de produ
ção (conforme o esquema) — deve estar apta a responder à totalidade de suas
missões, do ensino elementar às experiências de ponta. Além do equipamento
coletivo (salas de aula, de trabalho prático, biblioteca etc.), cada unidade dis
porá de um equipamento específico, adaptado ao seu conteúdo (ateliê, mate
rial, espaços de pesquisa etc.). Em torno dessas unidades, laboratórios, equipes,
professores, pesquisadores poderão desenvolver atividades especializadas
ligadas às diversas missões do pólo. Cada unidade de base funciona de maneira
228 autônoma ou em relação com outras unidades. Desse modo, serão abordadas
em suas particularidades as diferentes fases de concepção (forma e força), de
transformação de uma matéria-prima desde a elaboração inicial até sua apli-
caçao e conservação (materiais) e de realização (produção). Em cada unidade
de base (principalmente nos ateliês específicos), será possível propor exercícios
de manipulação e de análise, mas, igualmente, a execução dos exercícios de
construção em diferentes escalas, os quais tornam mais explícitos e mais com
preensíveis os princípios de forma, de estrutura, de matéria e de agrupamento.
Do mesmo modo, as experiências derivadas das pesquisas específicas encon
trarão, em torno dessas unidades de base, o equipamento indispensável. Essas
unidades produzirão, ainda, modelos de realizações exemplares, destinados à
montagem e à desmontagem para diversos módulos de ensino.
PROGRAMA
O pólo não é uma escola que viria colocar-se ao lado das outras escolas existentes.
Ele tem uma dupla vocação: ser um instrumento a serviço de todas as missões das
esc&las ívò rasupo úa construção e ser um centro de pesquisa e de experimentação
com objetivos operacionais e uma influência em âmbito europeu.
Enquanto instrumento a servirji das. escAl&s,, wí “programa” não tem
independência nem representação organicamente completa. Nesse nível, o
pólo é complementar: insiste apenas na dimensão do “fazer” no ensino da
construção, o qual, fundamentalmente, continuará a ser oferecido no interior
das escolas. Desse modo, esse “programa” será alimentado pelos diversos
ensaios já iniciados dentro das escolas e instituições associadas, nacionais ou
internacionais, pela tecedura desses ensaios. Terá sempre a aparência de uma
lista de serviços oferecidos e cuja lógica implica a consideração dos programas
pedagógicos das escolas.
Entretanto, é necessário assinalar que a experiência dos atuais associados
do pólo na área já é bastante importante2 e essa experiência é a fiadora da
factibilidade e da qualidade das atividades futuras.
É evidente que o pólo não é só um instrumento passivo. O funcionamento
em rede de seus parceiros, por exemplo, deve modificar, ampliar, aperfeiçoar
as contribuições iniciais que, em geral, emanam das equipes isoladas. Além
disso, o preenchimento progressivo de sua trama organizadora (forma, força,
materiais, produção) faz aparecer carências e aspectos de questões não trata
dos. O pólo terá, então, que propor atividades de pesquisa, experiências e estu
dos destinados a preencher essas lacunas.
Enquanto centro de pesquisa e de experimentação, o pólo tem associados:
da Universidade, como La Chambre, a EPFL-I Bois, a EPHE etc.; de organismos
internacionais, como o iccrom, a UNESCO, o CDI, a fao etc. de indústrias, como
USINOR-SACIOLOR, FNTB, CNDB, VIA-CODIFA etc., que esperam do pólo contribui-
230 2 Ver o catálogo da exposição: Arquitetura e culturas construtivas, set. de 1993’ P32^ UNESCO.
ções para a realização de suas missões. Para levar a bom termo essas contri
buições, o pólo sera chamado a propor e a elaborar programas de pesquisa e
de formação, a realizar experiências próprias.
Nessas relações com profissionais e industriais, o pólo não é tampouco
um puro instrumento de serviço. Além da seleção estrita das colaborações, as
quais devem sempre apresentar um valor universitário (de formação ou de
pesquisa), a função prospectiva implícita em seu projeto deve levar o pólo a
exercer uma atividade crítica e proposicional lúcida e permanente.
O pólo é, pois, uma entidade com dupla vocação: comporta-se como um
instrumento de serviço, alimentado pela experiência particular de seus par
ceiros e suas trocas, mas como centro de pesquisa e de experimentação (com
parável a uma escola que forma doutores), o pólo deve elaborar programas
próprios, múltiplos, evolutivos para responder às diversas necessidades dos
parceiros no campo da construção.
Para levar a bom termo e em tempo hábil o conjunto dessas propostas, é
indispensável a prefiguração do pólo na casa Levrat, na Cidade Nova da Isle
d’Abeau: para a listagem dos serviços, para o cruzamento criativo desses servi
ços e para iniciar seu próprio programa de pesquisas e experiências.
PESQUISA
1 T. W. Adorno, Teoria estética. São Paulo: Martins Fontes, 1982, pp. 27-28 e 237-247.
2 Ibidem, pp. 58-60, por exemplo.
241 3 T.W. Adorno, Essai sur Wagner. Paris: Minuit, 1966.
Essa precaução é mais útil ainda quando os resultados formais são aparen
temente muito próximos. Na verdade, o que leva procedimentos produtivos
distintos a um mesmo tipo de solução? A crítica, no entanto, se deixa seduzir
pela convergência: esta parece demonstrar de modo irrefutável o postulado
da comunidade das artes. Em compensação, o impacto da congruência formal
sobre cada domínio artístico fortalece uma espécie de presunção de autentici
dade que desvia a análise e desmobiliza o estudo das condições de produção.
A tendência ao homeomorfismo provoca uma corrente de ilusória legitimação
recíproca que nos faz admiti-los como emanações fiéis e diretamente inter-
cambiáveis do espírito objetivo. A identidade de aparência torna-se o fiador
de seus testemunhos: se eles falam a mesma coisa é porque dizem a verdade.
No caso de arquitetos/pintores (ou escultores), o esquecimento das coer
ções produtivas é uma regra quase geral. Será que o poder do gênio de um
Michelangelo, de um Aleijadinho ou de um Le Corbusier não é suficiente o
bastante para superar os obstáculos da heterogeneidade produtiva e para
encontrar soluções que sejam, ao mesmo tempo, convergentes em suas formas
e válidas nos dois domínios?
Parece evidente que Le Corbusier deve enfrentar uma situação deter
minada e específica dos materiais e das técnicas correspondentes quando se
lança, primeiro, na pintura e, depois, na arquitetura. Examinemos rapida
mente tais situações e sua maneira de intervir.
A PINTURA
Tornou-se manifesto que tudo o que diz respeito à arte deixou de ser evidente,
tanto em si mesma como na sua relação ao todo, e até mesmo o seu direito
à existência. A perda do que se poderia fazer de modo não refletido ou sem
problemas não é compensada pela infinidade manifesta do que se tornou pos
sível e que se propõe à reflexão. O alargamento das possibilidades revela-se
em muitas dimensões como estreitamento. [...] por toda a parte os artistas se
alegravam menos do reino da liberdade recentemente adquirido do que aspi
ravam de novo a uma pretensa ordem, dificilmente mais sólida. Com efeito, a
liberdade absoluta na arte, que é sempre a liberdade num domínio particular,
entra em contradição com o estado perene de não-liberdade no todo.4,
242 4 T.W. Adorno, Teoria estética. São Paulo: Martins Fontes, ig82, p. 11.
sua autonomia, necessária, cujo conceito só é apropriado ao sujeito, degrada-
se na autotelia do quadro. É o que pretende traduzir a absurda expressão
“autonomia da arte”. Essa autotelia conjuga-se com os vestígios autistas do
eu. A exigência (mais ética do que estética) imposta à arte — testemunhar a
respeito da “absoluta liberdade” no seio da “absoluta não-liberdade” fecha-
a numa contradição sem saída. Tecnicamente, isso implica em sua imersão
solitária no material “histórica e socialmente pré-formado”,5 sob o risco de
ser modificado pela obra sem que sua determinação heterônoma jamais possa
desaparecer totalmente. Alguns, então, se adaptam imaginando, por exemplo,
que essa exigência ainda é respeitada pelo fechamento do produto, na ilusão
de uma ausência de dívida em relação ao exterior, na ilusão de uma imanên
cia total. Ou, invertendo aparentemente o procedimento, na completa submis
são da arte aos arrebatamentos do eu em posição de senhor absoluto; “acabar
com a coisa, e aquietar-se no gozo”.6 Mondrian ou Pollock, por exemplo. Mas
é possível que a exigência ética radicalizada seja insustentável.
A fuga freqüentemente ingênua para a “abstração”, ou a deformação exa
gerada são, hoje, manifestações banais dessas evoluções. Decorrem de uma
relação frágil com a semiótica. Desse modo, a recusa da imagem pretenderia
afastar a semelhança, vivida como uma dependência do exterior. E dado que
a imagem é signo e que todo signo remete a outra coisa que não ele próprio,7
essa recusa às vezes se amplia, estranhamente, em recusa do sentido — sempre
para garantir a “autonomia da arte”. Uma certa tolice dos motivos na arte
contemporânea é o reflexo dessas simplificações. A futilidade de tais esforços
é evidente: toda forma, imagem ou não, é signo, representamen que pode,
através de um interpretante qualquer, remeter a um objeto dinâmico, sempre
exterior ao representamen.6 Essas escapatórias são como uma fuga diante da
responsabilidade da significação objetiva e necessariamente induzida.
Ibidem, p. 108.
o> ox
9 Ver: W. Morris, Political Writings. Londres: Lawrence and Wishart, 1979; Ph.
Henderson, William Morris, his wife, work andfriends. Nova York: McGraw-Hill, 1967;
M.M. Elia, William Morrisy la ideologia de la arquitectura moderna. Barcelona: GG,
/
1977; H. Van de Velde, Déblaiement d’art. Bruxelas: Edit, des Archives d’Architecture
moderne, 1979.
10 No sentido de Peirce; ver Ecrits sur le signe, op. cit., “(os hipoícones) que representam
as relações, principalmente diádicas ou consideradas como tais, partes de uma coisa por
relações análogas em suas próprias partes”, p. 149. No Commentaire de G. Deladalle: “os
diagramas [...] representam relações principalmente diádicas”, p. 233.
11 G.W.F. Hegel, La Science de la logique. Paris: Aubier, 1970, Introdução (à edição de
1817), §10, pp. 159/161.
12 T. W. Adorno, Dialectique Negative. Paris: Payot, 1978, p. 121; B. Bourgeois explica em
sua “Apresentação” a La Science de la logique, de Hegel: “O entendimento do empirismo
que se quer científico e, portanto, em seu agir separador, quer unificar a riqueza da
intuição, procede privilegiando (separando) uma determinação que, na seqüência, ele
procura impor a todas as outras tentando derivá-las dela com ‘conseqüência’, isto é,
seguindo a identidade formal redutora da diversidade do conteúdo; é por isso que Hegel,
a partir daí, vem a fazer o elogio da inconseqüência que preserva esta diversidade que
/
13 Como todo signo, 0 diagrama também “[...] está no lugar de alguma coisa [...] não sob
todas as relações, mas como referência a uma espécie de idéia que chamei algumas vezes
de fundamento do representamen.” Ch. S. Peirce, Ecrits sur le signe. op. cit., p. 121; este
fundamento é sempre ideologicamente determinado.
14 Intuição, de qualquer forma, preferível às pseudoteorizaçoes de G. Apollinaire,
Chronique d Art, 1902-1918. Paris: Gallimard, i960; M. Raynal, Quelques intentions
du cubisme, Paris: Editions de L’Effort Moderne, 1919; A. Gleizes e J. Metzinger, Du
Cubisme. Sisteron: Éditions Présence, 1980; mas insuficiente diante dos esforços de
consciência necessários para tratar as contradições da arte contemporânea.
15 Le Corbusier, Depois do cubismo. São Paulo: Cosac Naify, 2005, p. 43.
dade imposta ao sujeito da arte requer um material recolhido no “ponto
cinza” de P. Klee,16 totalmente disponível e abstrato. 0 método da arte não
pode ser senão o registro contemporâneo do processo de desdobramento do
material na construção do conteúdo por um sujeito que se esvazia para acom
panhá-lo — sabendo, entretanto, que “por trás da assim chamada cortina [...]
nada há para ver; a não ser que nós [o sujeito da arte] entremos lá dentro —
tanto para ver como para que haja algo atrás que possa ser visto.”17
Através da classificação, Le Corbusier fecha cada uma das camadas dos
“componentes” em torno de si mesmas por meio de um duplo procedimento:
primeiro, pela radicalização da oposição, cada uma reunida numa espécie de tipo
ideal, de rima insistente que a condensa; segundo, pela busca de uma auto-sufi
ciência que faz de cada camada uma pequena composição quase independente.
VERTICAIS E
HORIZONTAIS CREME
V 4-
18 Cf. Tim Benton, “Le Corbusier et la loi Loucheur”, texto apresentado no seminário Le
Corbusier, CEuvre et raise en ceuvre, Grenoble, dez. 1987.
247 19 Cf Schwarz, Roberto. Que horas são? São Paulo: Cia. Das Letras, 1987.
a multiplicidade tópica como tema, a qual corresponde melhor ao sujeito da arte,
necessariamente fragmentado, incompatível com qualquer integração.
Em resumo, fora a produção pós-cubista afastada das armadilhas da repro
dução, a obra pictórica de Le Corbusier oferece-nos um exemplo curioso de
inversão metodológica. De modo geral, seus quadros resultam de etapas (teó
ricas) de produção que deveriam ser as de um canteiro de obras ideal: a super
posição e a sucessão de “componentes” separados (ou seja: a série de seqü-
ências produtivas da construção) que raramente se sobrepõem, permitindo,
portanto, que cada um (cada uma das seqüências produtivas) se desenvolva
segundo sua própria lógica (a autonomia desejável de cada especialidade cor
respondendo a um corpo profissional).
Infelizmente, o canteiro aqui tem importância fora de seu campo: ele estru
tura inadequadamente o artesanato da pintura com o que seria a lógica da
manufatura, se esta não escutasse primeiro os diktats da técnica de exploração.
A ARQUITETURA
20 Le Corbusier, “Un seul corps de métier”, em Les arts de la maison. Paris, 1925.
21 M. Ficino, Théologie platonicienne de Vimmortalité des âmes. Paris: Belles-Lettres, 1970,
248 PP-176-177-
sob o mesmo revestimento branco. Porém, mesmo em suas obras consideradas
“brutalistas” persiste uma clara distância em relação à técnica. No convento
de la Tourette, por exemplo, a compressão prévia do concreto para aumen
tar sua resistência só foi introduzida para manter algumas formas pensadas
abstratamente e dificilmente realizáveis com concreto tradicional. A igreja,
depois da definição de seu volume, foi estudada sucessivamente em metal, em
bloco de concreto, para, finalmente, ser feita em concreto moldado. As janelas
“ondulatórias”, cujo princípio descoberto na índia por P. Jeanneret respondia
a necessidades econômicas e às dimensões de fabricação do vidro, foram com
postas a partir das medidas do modulor22 e... da música de Xénakis!23 Quase
sempre, a estrutura que esse “racionalista” nos convida a admirar não tem
ligação alguma com a estrutura real. Vejam-se as casas Jaoul, a vila Shodan,
Ronchamp ou, ainda, o convento de la Tourette: em nenhum lugar a estrutura
efetiva é perceptível, coberta que está pela figuração de uma outra estrutura,
principalmente no pátio interno. O material submetido às injunções do imagi
nário deve, com frequência, assumir posturas tais que Le Corbusier é obrigado
a defender o contrário da evidência técnica.24
Ora, a arquitetura, ao contrário da pintura, parte de um material predetermi
nado. Séculos de progresso e de estratificação na divisão técnica e social do traba
lho o estruturaram completamente, selecionaram seus usos pertinentes, ordena
ram convenientemente as sequências de sua utilização. O poder prescritivo
poderia dispor de um saber operacional que deveria impor respeito. A arquitetura
poderia ser resultado da articulação progressiva (e progressista) de seqüências
produtivas nitidamente distintas ou, em outros termos, o resultado de implica
Para fazer um quadro, é necessário pegar uma tela ou uma prancheta, traçar o
desenho, pegar a tinta e espalhá-la com os pincéis. A recompensa para quem se
dedicou a uma longa preparação é que ele não busca mais na tela: ele executa.26
251 28 Ver “O canteiro e o desenho”, cap. Pour fmir encore, p.125 desta edição.
RECAPITULAÇÕES BRASILEIRAS
Como você explica o fato de os arquitetos de São Paulo escolherem o brutalismo entre
as várias tendências surgidas após a Segunda Guerra?
Tenho uma hipótese. Acho que foi por causa do Artigas, embora ele não gos
tasse da palavra brutalismo. Um pouco antes de esse movimento aparecer, Artigas
já fazia um tipo de plástica, de estruturação do espaço e até de manipulação da
técnica que ia nesse sentido. O curioso é que o brutalismo no Brasil tomou uma
direção oposta à de sua origem, o convento de La Tourette. O proj eto de Le Corbu
sier, embora não tenha sido o primeiro, foi uma espécie de símbolo do movimento.
Recentemente, em Grenoble, terminamos uma pesquisa sobre essa obra onde
aparece nitidamente a diferença de postura entre Artigas e Le Corbusier, sobre
tudo quanto à estrutura.1 Enquanto na obra do Artigas a estrutura é clara, bem
pensada e aparente, no convento o que se vê não é a estrutura real. Desse modo,
aquela espécie de sinceridade construtiva da obra do Artigas toma um sentido
inverso no convento, onde há muito dêcor, muito reboco e argamassa. No Brasil,
nesse período, principalmente através do Artigas, a tese de base era aproveitar
cada componente da técnica construtiva com a máxima clareza e honestidade.
Por que você falou numa espécie cabocla de brutalismo? Se naquele momento era uma
crítica, hoje essa nomeação não revela uma atitude transformadora?
Cabocla naquela época era para chatear, para agredir. Mas fazia parte do
nosso brutalismo a reapropriação e a diferenciação do brutalismo europeu
e japonês. Principalmente através da posição do Artigas de construir com os
meios locais e não com uma tecnologia ou um modo de fazer que não corres
pondia às possibilidades daqui. A nossa divergência com o Artigas é que ele
nunca queria cair num miserabilismo. A nossa tendência era mais radical e
orientada para a casa popular.
256 2 Ver Vilanova Artigas, Caminhos da arquitetura. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
dois clubes, um para um sindicato operário e o outro bem chique. Ele dizia,
então, que não conseguia fazer dois projetos diferentes, um pobre e outro rico.
A nossa inclinação, pelo menos fazendo casas, era projetar, como num labora
tório, outra arquitetura. Essa atitude experimental marcou esse tipo de arqui
tetura que geralmente era inadequada ao cliente.
Como era o contato dos arquitetos de São Paulo com o brutalismo inglês?
Sempre foi menos presente que Le Corbusier e a corrente francesa. Após
a publicação do livro The New Brutalism: Ethic or Aesthetic, de Reyner
Banham, em 1966, o brutalismo inglês passou a ser mais conhecido aqui.
A atividade de arquitetura tão ligada à militância política foi uma especificidade brasileira
ou aconteceu no mundo todo nessa época?
Em certas áreas sim, mas a nossa crítica à organização do trabalho é daqui,
não existia fora. Em maio de 1968, inicia-se a discussão do projeto a partir do
usuário. Nesse período desenvolvem-se trabalhos sobre o canteiro como o lugar
da exploração. Mas uma crítica que pretenda informar o projeto e transformar
257 a técnica de projetação é rara. Quando acontece, é mais sobre a divisão do
projeto em etapas, onde cada equipe realiza sua parte sem interferência das
demais, para diminuir a confusão no canteiro. Mas a recolocação do operário
enquanto capacidade de trabalho, de saber fazer e de técnica é pouco estudada.
A arquitetura brutalista inglesa buscava a cada obra recuperar o conteúdo ético proveni
ente das raízes populares. Qual era a questão ética da arquitetura paulista?
Voltar-se para o tradicional é um aspecto apenas formal. Não queríamos recu
perar o que já havia sido feito, mas nos apropriar, utilizar e valorizar a tecno
logia que está na mão do operário, além de seu saber.
Mas essa abóbada total, o arquiteto Marcei Breuer já fazia nos Estados Unidos. Existe
entre elas alguma relação?
Existe uma relação apenas formal, pois, quando projetamos a abóbada, nossa
preocupação era o que acontecia no canteiro. Por ser uma tecnologia simples,
barata e facilmente generalizável, era ideal para a casa popular. Além disso, a
abóbada permite a construção no canteiro em condições bem melhores. Uma
vez realizada a cobertura, o resto é feito dentro, de maneira mais cômoda. Há
também uma mudança na maneira de proj etar. A abóbada exige uma trans
formação na planta, na organização do espaço interno e no modo de viver. A
abóbada, praticamente, força a se fazer isso. Não se pode executar uma casinha
com três quartos, um banheiro e uma cozinha como num apartamento e cobrir
com uma abóbada, fica completamente absurda. Outro aspecto a considerar é a
simplicidade do material empregado. Na primeira casa que projetei em abóbada,
houve uma dificuldade enorme para encontrar um calculista. Ninguém queria
fazer, até o Ugo Tedeschi topar. O projeto de estrutura era uma fórmula mate
mática numa folhinha demonstrando não ser preciso colocar ferro. A fôrma de
madeira já era a estrutura da casa, nesse sentido inclusive é que fica baratíssima.
Quais são?
Uma corrente seguiu o Artigas no lado formal, na organização de plantas, no
espaço, no uso do concreto, e foi refinando. Você há de reconhecer aí dois ou
três arquitetos. E o nosso grupo seguiu o Artigas na crítica política e ética que
ele fazia da arquitetura anterior. Deste modo, empregamos os mesmos ele
mentos formais, mas os desenvolvemos em outra direção.
Por outro lado, por volta dos anos 1950, arquitetos como Rino Levi e Miguel Forte
construíram casas simples, muito rigorosas enquanto desenho e bem adequadas aos
materiais tradicionais que se encontravam na praça. Essas casas são extremamente
agradáveis para se viver. E representam alguma coisa que não se encontra na escola do
Artigas. É espantoso que esses arquitetos, porque não se afinavam politicamente com
a vanguarda paulista, tenham caído numa espécie de esquecimento. Quando realizei o
levantamento arquitetônico dessas casas, vi então como são bem-feitas e até a lição de
arquitetura que encerram.
Eram arquitetos bem formados, técnicos excelentes, mas que praticamente
não tinham uma teoria sobre arquitetura e sobretudo não tinham uma visão
política da arquitetura. A renovação do Artigas foi mostrar que na arquitetura
há uma enorme dimensão política que todo mundo esquece. Na minha for
mação isso foi supervalorizado; em contrapartida, o arquiteto construtor e seu
261 mêtier não. Essa era a burrice.
As casas de Carlos Millan, por exemplo, são tão bem detalhadas que nunca precisam
de manutenção. O Millan é da escola do Rino Levi e do Miguel Forte. Será que o grupo
do Artigas valorizava esses aspectos?
Nosso grupo valorizava enormemente a técnica. Acontece que, quando você
vai interferir nas relações de produção no canteiro, as formas, os detalhes,
a tecnologia têm que mudar, se adaptar a essa alteração. E aquele foi um
momento de experiência, de tentar, de dar com a cabeça na parede. Projetei
casas completamente absurdas. Mas esse era um tempo de experiência, de ver
como, empregando certo material, técnica ou sistema de montagem, se pro
duzia outro objeto.
diam no mercado. Obvio que essas bacias não eram feitas para suportar o sol,
para a mudança de temperatura — assim, seis meses depois estavam podres.
Isso é fundamental, porque, se parecia uma arquitetura que era política no
discurso e desleixada no real, era exatamente o contrário. O que se perdia de
tempo, ou sei lá, ganhava-se de tempo, para procurar um jeito de fazer um
detalhe, é incalculável.
E duraram?
Algumas sim, outras não. A casa do Juarez é uma que se mantém perfeita
mente. A casa de Cotia foi abandonada pelo proprietário, ele mudou, casou,
depois descasou e a casa ficou vazia anos a fio. Depois foi habitada por outro
pessoal que quase a massacrou. Era uma época bonita, mas tinha que haver
continuidade. Não era organizada, nem muito sistematizada, nem muito
pensada, mas lembro que as aulas da FAU iam até sexta-feira e, praticamente
todos os sábados de manhã, o Artigas, o Paulinho e os outros professores iam
às obras com a turma. Havia, então, discussão da obra no canteiro. Princi
palmente porque se tratava de uma tecnologia de ensaio. O Rino Levi e o
Miguel Forte aplicavam aquela tecnologia conhecida no maior nível de per
feição. Então, é claro, essa maneira quase secular de fazer não tem jeito de
não funcionar.
264
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1988
1 Ver Francisco de Oliveira, “Critica à razão dualista” (1973), em Crítica à razão dualista e
268 o Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.
debates de 1968: oposição entre a exclusiva valorização do avanço das forças
produtivas e nossa critica à divisão do trabalho.
O que propúnhamos tem inúmeras conseqüências práticas para a proje-
tação e a conduta do canteiro. A manufatura se estrutura a partir da articu
lação de equipes de trabalho especializadas e bem diferenciadas — e poucos
instrumentos sofisticados. Há duas formas de manufatura: a heterogênea, que
monta componentes já elaborados (a “pré-fabricação”) e a serial, que sobre
põe, pouco a pouco, o trabalho quase todo realizado no canteiro. Nos anos
1960 a “pré-fabricação” engatinhava e, fora as iniciativas de Lelé em Brasília,
pouco se fazia nesta direção. Minha experiência, em 1962, na residência Boris
Fausto em São Paulo mostrou que ainda era cedo para tais caminhos.
Fundamentalmente nossa manufatura era (e ainda é) serial: trabalho
dominantemente interno e cumulativo. A manutenção da dominação impu
nha: pouca clareza na distinção das equipes e um desenho de arquitetura que
exaltava não importa qual “valor estético” (?) — mas jamais o acúmulo sábio
dos trabalhos. Nós adotamos a via inversa: absoluta, quase maníaca atenção à
sucessão lógica dos trabalhos (o que meus alunos na França chamaram mais
tarde de “estética da separação”); afastamento de todo gesto convencional
mente considerado artístico (salvo a didatização do procedimento, aplicando
o conselho de Benjamin para o qual todo romance deveria ensinar a escrever
outro romance); a exposição clara de todos os trabalhos (que reduzia 0 reves
timento ao mínimo indispensável). A “estética da separação” permitia ainda,
a cada equipe de trabalho, não dividida pelos cronogramas habituais, não
mutilada pelo desenho formal e autoritário, o desenvolvimento das melho
res virtualidades de sua lógica imanente e 0 uso dos materiais adequados. As
economias que fazíamos evitando as incoerências de programação e projeto
sempre nos permitiu o uso do mais apropriado no canteiro — e, nos casos que
dirigíamos diretamente, considerável aumento de salários sem acréscimo de
orçamento. Todas as equipes eram informadas e documentadas sobre todos os
trabalhos e sabiam o porquê de cada traço do projeto. Nossa metáfora de bolso
era o jazz: um tema comum, algumas passagens obrigatórias (os nós, quando
há cruzamento inevitável de competências) e, no mais, liberdade criadora de
todos. Dreams — mas que víamos de perto.
Chega. Mas seria impossível compreender a arquitetura do Flávio sem
lembrar as raízes do que fazíamos.
Em 1967, nós três projetamos varias escolas, graças ao terno apoio de
Mayumi Souza Lima. Prefiro não comentar estas obras, sendo também co-autor.
Em 1967 ainda, Flávio desenhou uma casa para Amelinha e Wolf, irmã e
/ /
Dizia que o arquiteto sustentava os outros. E possível. Talvez por isso sua
obra de arquitetura é pequena, como a minha. Rodrigo insistiu mais — porém
terminou também saindo de lado, foi organizar o serviço de saúde da Guiné
Bissau. Quanto mais nos convencíamos que nossa analise da construção era
(é) justa, menos nos adaptávamos à profissão. Seria preciso ter a má-fé que
não tínhamos para continuar a servir o que condenávamos. Fomos parando,
espaçando os trabalhos, esperando o milagre da obra realmente experimental
ou, menos provável ainda, o da transformação social.
Se o arquiteto sustentava os outros, os outros, todos os outros Flávios certa-
mentc embaraçaram o arquiteto. Eles sabiam o que é pôr-se lá no fazer para
se achar, embrenhar-se na matéria para perder a desesperante ligeireza de ser,
pensar fora do pensamento dado: tudo que é arte enfim. Eles experimentaram
tudo isto bem demais para não sentir amargamente o que a arquitetura “nor
mal” impede aos que a servem, os operários da construção. W. Morris dizia: arte
é manifestação da alegria no trabalho. Os Flávios viveram esta alegria séria e
sabiam que ela não mais visitava os canteiros desde a Renascença.
Pouco depois de nos conhecermos (1957) fui ao Vergueiro assistir a uma
peça (O boi e o burro ?) cujo cenário era dele. Quando cheguei, ele alfinetava
nuvens de papel manteiga num céu de cobalto. Sempre achei este oxímoro a
cara dele. Ora, em arquitetura é proibido alfinetar nuvens.
Este texto foi publicado no Brasil posteriormente: Roberto Schwarz, “Cultura e política
(1964-1969)” em O pai defamília. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. [n.o.]
DEPOIMENTO A UM PESQUISADOR
2000
Como foi que você, Rodrigo Lefèvre e Flávio Império começaram a trabalhar juntos?
O Rodrigo, eu já o conhecia há muito tempo, nós estudávamos juntos desde
o ginásio. O Flávio, encontramos na faculdade. Havia outros no começo que
trabalhavam conosco, depois ficamos só nós três. O regime era sempre de
total e absoluta igualdade, nunca tivemos um desenhista, e era absolutamente
impossível saber quem tinha tido uma idéia ou outra, pois tudo circulava
sem parar. Nós queríamos praticar a arquitetura, teorização, ensino, tudo ao
mesmo tempo, e cada um ainda com uma outra prática diferente. Na época, o
Flávio fazia muito mais teatro do que pintura, eu pintava, o Rodrigo se inte
ressava muito por técnica. Aliás, o mais técnico de nós três era o Rodrigo, o
único que sabia fazer o desenho de uma tubulação de esgoto, essas coisas todas.
Nós também tínhamos uma participação na universidade bastante intensa,
um pouco depois — isso já mais em 1967 — em revistas etc. Nós estávamos nos
aproximando de 1964, o período era de bastante movimentação política no
Brasil, e sobretudo um pouquinho de esperança. Quando 0 golpe veio, cortou-
a violentamente e provocou de imediato uma grande radicalização política.
A universidade, toda ela, esquentou bem. Nós, de uma maneira ou de outra,
já tínhamos uma participação política de tipo diferente: eu logo entrei para o
Partido, o Rodrigo um pouco depois, e o Flávio tinha um trabalho diferente,
r
lá no Vergueiro. E difícil, com tanta distância, descrever isso no miudinho
assim, com datas precisas...
Me parece que essa experiência no Vergueiro foi decisiva para a prática de vocês, não?
274 O Vergueiro era um teatro muito bonito mas paupérrimo, não tinha nada.
Tudo que o Flávio fazia lá era tirado do nada: papelão, alfinete, enfim, real
mente uma utilização do material mais pobre possível, mais elementar, e com
aquilo ele fazia maravilhas, coisas lindíssimas. Isso estava um pouquinho no
ar do tempo, comecinho do Cinema Novo, do CPC, e era possível transferir
esse espírito, não o detalhe, mas o espírito da coisa, para a arquitetura. Foi
uma influência importante, mostrando como a partir dos elementos mais
simples não era apenas possível fazer qualquer coisa, mas fazer qualquer
coisa muito bem. A riqueza dos meios não tem nada a ver com a qualidade do
resultado, ao contrário — era tempo do Artacho Jurado, prédios riquíssimos, e
horrorosos, medonhos.
Nas primeiras casas de vocês, que são muito próximas do Artigas, houve uma tentativa
de dar um passo adiante, fazer uma experiência com componentes industrializados,
como foi?
Foi um desastre. Primeiro porque as medidas eram todas variáveis, não
tinham rigor, chegavam peças meio tortas. Eu também fiz uma besteira, por
que a laje da casa do Boris Fausto tem quatro pilares centrais e um balanço
muito grande, e lá na ponta ela balança demais. Para resolver isto, eu tive que
fazer juntas elásticas e não havia materiais — as juntas foram todas embora na
primeira chuva. O canteiro de obras também não é igual, você precisa de ope
rários montadores, e não de operários produtores, a organização é diferente.
Mas um dia eu acho que será possível uma experiência industrial.
Me parece que vocês indicavam que a democratização da casa paulista, do Artigas, não
passaria pelas mãos dos industriais, como os modernos sempre acreditaram...
Exatamente. Essa possibilidade estava cortada. Havia duas entradas diferen
tes aí. Primeiro uma análise que vinha do tomo III d’O capital, a questão da
queda da taxa de lucros. Era evidente, a construção civil não caminhava para
a industrialização; ao contrário, mesmo que pudesse, ela não se industriali
zaria rapidamente — a construção civil “atrasada” é essencial para frear esta
queda da taxa de lucros. Para industrializar, teria que haver também uma
reforma fundiária, da propriedade do solo, um monte de transformações
que até hoje não foram feitas e que se fôssemos esperar, não faríamos nada.
Em segundo lugar, uma vez que a manufatura iria ainda permanecer, nós
estávamos dispostos a trabalhar dentro dela; afinal, trata-se de um meio de
produção como outro qualquer, não tem virtudes nem defeitos intrínsecos,
depende da forma como é utilizado. Essa nossa posição entrava em choque
com uma certa interpretação hegemônica do Marx naquele período, sobre a
276 evolução das forças produtivas, “socialismo mais eletricidade” etc. Por isso
fomos várias vezes criticados, mesmo pelo Artigas, de quase reacionários neste
aspecto, de não nos engajarmos no desenvolvimento das forças produtivas,
que no fim iria resolver tudo.
Pelo olhar do Partidão e do Artigas, vocês eram uma regressão em diversos níveis,
regressão na técnica e regressão à questão da habitação popular, que era anti-revolu
cionária naquele momento.
Estas críticas foram fortes. Nós éramos conhecidos como arquitetos de tijolo
e areia, quase que com desprezo. Ao mesmo tempo já havia toda a crítica da
divisão do trabalho, sobretudo na França, textos muito bonitos do Gorz, do
Lefebvre, que nos davam uma certa base — não estávamos assim tão isolados.
Mas aqui na faculdade foi o grande divisor de águas.
É impressionante como depois do Golpe, mesmo tendo sido preso, o Artigas ainda
acreditava invariavelmente no desenvolvimento das forças produtivas, e nesse sentido
reconhecia as afinidades entre o projeto moderno e o estado autoritário.
O Artigas não era stalinista no sentido negativo da palavra, mas era o sujeito
da autoridade. No Fórum de 1962, quando houve o debate sobre o ensino da
FAU, ele várias vezes me disse “siga-me”, um comando mesmo, do Partido. Eu
morava bem pertinho dele e ele me chamava para irmos juntos pra escola,
para dar bronca, quando eu saía da linha do Partido. Isso, repito, não era de
jeito nenhum violência, era o modo de direção do Partido.
Não deixa de ser inusitado que apenas depois do Golpe o Artigas tenha começado a
pensar em habitação popular, num momento em que 0 próprio regime assumia isso
como grande projeto seu, de legitimação política e modernização conservadora. Como
vocês viam isso?
A habitação naquele momento era instrumento de legitimação, mas tinha sobre
tudo como objetivo movimentar a economia: pegava-se bastante gente e punha
a trabalhar com meios elementares em grandes canteiros de obra. Isso é indis
pensável para manter o capital indo para a frente, aquela massa de dinheiro
vindo da construção civil, a questão da taxa de lucro etc. Construir tudo, não só
casa popular, era fundamental para o sistema, do ponto de vista puramente eco
nômico, como reservatório privilegiado de extração de mais-valia.
Mas o Artigas acreditava estar fazendo alguma coisa para além disso, certamente...
Eu lembro quando vimos a maquete de Guarulhos, houve quase um constran
gimento. O Artigas é uma arquiteto magnífico e de repente, quando chega a
oportunidade... Porra! Um projeto desses, uma oportunidade daquela e ele
continuava fazendo o mesmo tipo de coisa. Não modificou o que interessava
modificar, não pensou em mudar o canteiro — propunha um desenho impera
tivo, de alto a baixo, enfim...
Você náo respondeu: quando a casa popular tornou-se bandeira do regime, como ficou
a posição de vocês?
Aí nossa radicalização foi rápida. Nesses anos houve um estremecimento
muito forte, mesmo com o Artigas, um racha bastante grande, que aparecia
em todos os níveis: na concepção do ensino, na arquitetura, em relação ao tra
balho e mesmo quanto à missão dos arquitetos. Foi quando começamos a ser
totalmente rejeitados.
Você tem um quadro em homenagem ao Marighella que ficou inacabado porque você
acabou preso, não é?
/
0 Roberto Schwarz, que participou dos dois grupos, comenta que o marxismo brasileiro,
seja o da Maria Antonia ou o do Partidão, sempre esteve a favor da industrialização,
do progresso, enfim, entendendo isso como superação do atraso. Parece que você
(como ele também) seguiu outro caminho, bastante incomum por aqui, não? É outra
tradição crítica?
A crítica do Adorno, da Escola de Frankfurt, nunca entrou no Partidão. É
uma crítica muito mais radical, menos esperançosa nesse quase automatismo
do desenvolvimento, do progresso que vai salvar a humanidade. É muito mais
atenta às deformações presentes, que de certa maneira não se resolverão com
um automatismo progressista qualquer.
A crítica de vocês não aparecia como reacionária, uma vez que não estava preocupada
em resolver o atraso, as mazelas sociais?
O impasse para nós era mais ou menos evidente. Um outro autor daquela
época, o Gunder Frank, já falava do “desenvolvimento do subdesenvolvi
mento”. Não era nem desespero nem uma recusa do desenvolvimento, ao
contrário, mas uma crítica da ingenuidade dessa posição, que pode rapida
mente se transformar no seu inverso, em crime.
isso. E óbvio que a origem não explica tudo, e que nós depois de termos sido
formados, separados, podemos fazer outra coisa. O mesmo vale para a pintura,
ela também se separou pelas mesmas razões, no mesmo período, e está desde
o início carregada pela contradição de ser a afirmação do trabalho livre num
mundo em que todo o trabalho se torna oprimido. A pintura também é filha
da mesma questão. Não é possível ficar cego. O Marx começa O capital anali
sando o quê? A mercadoria. Daí ele desmancha todo o sistema e mostra como
ela está em tudo, percorre tudo, determina tudo. Como é possível praticar
arquitetura ou pintura esquecendo isto, que é a marca do sistema em que nós
vivemos, que é a base de tudo? O que não quer dizer que não se possa fazer
uma outra arquitetura, uma outra pintura, com outras relações de produção.
Outra crítica freqüente ao seu livro é que você acabaria "diabolizando" o desenho do
arquiteto, sobrecarregando-o de responsabilidades e atribuindo a ele a divisão e parceli-
zaçáo do trabalho que foi produzida, em última instância, pelo capital.
E preciso situar um pouquinho. O Artigas e o Flávio Motta falavam com um rom
pante poético sobre desenho, desígnio, design, dasein, tudo virava um bolo só. Mas
o desenho como elemento necessário para a constituição da mercadoria, ninguém
mencionava. Aquele texto foi escrito num momento muito tenso, e às vezes ele dá
peso demais a certas coisas. Mas o desenho tem um lado diabólico, terrivelmente
criativo e ao mesmo tempo de castração, de imposição, sobretudo. Desenhamos
tranquilamente, mas a violência que existe naquele risquinho, que pode ser bonito
ou feio, manifesta-se depois, quando é feito. O sistema de medidas, por exemplo:
custa dar as medidas em tijolos e não em metros, o que significa que ao menos a
metade das fieiras não vai ser quebrada? São coisas que podem ser banais, elemen
tares, mas o fato de que isso nunca apareça na preocupação do desenho, do arqui
teto, é terrível. A quantidade de acidentes que nós poderíamos evitar, a quantidade
de doenças do trabalho que nós poderíamos evitar com o desenho e as recomen-
/
Na sua proposta para um novo canteiro você foi acusado de estar pretendendo uma
regressão ao canteiro medieval, como queriam Ruskin e Morris. Não há uma certa pre
tensão sua em voltar a uma produção pré-moderna, da arquitetura como obra artesanal,
um pouco idealizada, que seria a produção das catedrais góticas, por exemplo?
Essa crítica é ligada ainda ao mito da evolução das forças produtivas. Eu não
estou convencido de que se precisa passar por uma industrialização violenta
para chegar a alguma coisa positiva. A Revolução Chinesa, o seu lado bom,
porque foi uma merda também, mostra que às vezes a sociedade ganha muito
mais ao dizer “pára, vamos cuidar de outra coisa”. A defesa que o Marx faz
da industrialização, eu sempre tive dificuldade em aceitar. Ele só consegue
ver o trabalho como sofrimento, o ideal de homem comunista para ele é o
homem que tem férias, que pode ter o lazer e se refazer. Não sei se pelo fato
de eu ser pintor, mas o trabalho, quando você faz o que quer e trabalha com
alguma autonomia, é uma beleza, é euforizante. E eu vi isso em canteiro de
obras também. O canteiro onde eu acabei de fazer o meu ateliê em Grignan
foi desse jeito. Quando o trabalhador está solto, entrosado, discutindo com os
outros, e ninguém o obriga a fazer isso ou aquilo se ele não tiver de acordo, há
alegria, beleza, satisfação. Essa valorização do trabalho que eu ainda guardo
está sendo muito mal vista hoje. Eu tenho horror de férias, eu não suporto
férias. A imagem do homem comunista para o Marx me dá enjoo. Se o para
íso comunista for aquilo, merda, eu vou me sentir mal. Adoro ler, mas não
consigo também não fazer, não transformar a matéria. Ainda Hegel e Marx:
nada se desenvolve aqui (na cabeça) se não se desenvolve aqui (nas mãos). É
essencial que tudo que está aqui (na cabeça) passe, se “perca” totalmente.
Nesse sentido Hegel é muito mais radical do que Marx, essa “perda” da
cabeça na matéria tem que ser total, não é fazer só “hobby” para ajeitar a
mão, tem que haver mergulho na matéria, a fundo, e quando volta, aquela
matéria não é mais matéria, é material, é coisa viva, na qual você está dentro.
Ela o reconstrói, modifica, e você remergulha. A troca do homem e do mundo
é a meu ver de uma fertilidade extraordinária, rica, alegre. E eu vejo que isso
é possível todo dia no meu ateliê, eu vejo que é possível no canteiro de obras.
E essa idéia: “vamos botar tudo na máquina, fazer rápido, para ir jogar fute
bol”, eu não consigo achar maravilhosa. Nesse sentido eu sou meio reacioná
rio, se você quiser.
Na Red House do Morris, o trabalho era empregado sem a idéia da economia, no sen
tido capitalista....
Era troca direta: eu dou um livrinho para ele, ele me dá um móvel. Aquele
romance lindo dele, Notícias de lugar nenhum é totalmente babaca, parece
romance para mocinha, mas eu gosto. Um lado meu romântico, meio reacioná
rio, não sei, mas prefiro ver uma humanidade que produza ainda, mas produza
desse jeito. Aliás, do ponto de vista da produtividade, ela pode até aumentar, e
se essas coisas fossem utilizadas pelo sistema, seria uma merda total.
A crítica inversa à da que lhe acusa regressão a um canteiro medieval seria a de que
sua defesa de um trabalho mais solto, em equipes que dialogam, criativas, com auto
nomia, esse ideário ligado a Maio de 1968 e à libertação do indivíduo, acabou em parte
sendo reaproveitado pelo capital na reorganização do trabalho pós-fordista, dos anos
1970/80 para cá. O que você acha do fato de que essa formas de produção, imaginadas
como "autonomistas" estarem se difundindo no interior da "heteronomia" isto é, nas
grandes empresas, como estratégia de ampliação dos lucros?
O que acontece de fato é que está aumentando a exploração e diminuindo o
salário. Está aumentando enormemente a angústia no mundo do trabalho,
porque a instabilidade é total. Agora, na França mesmo, há uma briga nesse
sentido entre o sindicato dos patrões e o sindicato dos operários: os patrões que
rendo flexibilizar, mobilidade de horas etc, o que teoricamente seria excelente,
e o sindicato reagindo, quase que parecendo reacionário, querendo oito horas
de trabalho por dia, entrar as oito da manhã e sair às cinco da tarde. Entretanto,
por enquanto, isto está penetrando mais na parte alta da pirâmide do trabalho
e embaixo o massacre continua igual, aliás pior, porque está aumentando enor-
/
Me parece que no seu livro, ao propor o canteiro livre, você separa as relações de
produção dos fins, da casa popular, por exemplo, criando uma forma autônoma, sem
história. Isso não acabaria reforçando a impressão desta convergência estranha entre o
que você pretendia e as novas formas de dominaçáoPAfinal, a que servem os resulta
dos do trabalho, da produção?
Não quero me desculpar, eu acho que aí há um erro. Agora, eu só posso tentar
explicar por quê. Primeiro, foi um momento de crítica geral do canteiro que
precisava existir, do fato de que não vai resolver nada só fazer casa popular se
não considerarmos esse outro lado também. Eu tinha que afirmar isso. Mas
afirmei demais e esqueci o resto. Talvez na época eu nem tivesse percebido
essa falha, estava insistindo tanto que não percebia. E depois, há pontos do
marxismo a serem criticados: o Marx nunca se interessou muito pelos fins.
Sempre a produção, a produção, a produção, e, ele mesmo afirma, a distri
buição e o consumo são conseqüências. O que não está errado mas, sobretudo
depois dele, os trabalhos do Adorno e outros, mostram como há outros lados.
A respeito da estética que você propõe, você considera fundamental que os rastros
(traces) do trabalho empregado em cada obra estejam evidentes ao observador. Dentro
da produção capitalista esta seria a forma de "denunciar as contradições da produção
no canteiro" como diz. Você ainda continua achando esta estética reveladora das
contradições fundamentais? Não teria ela reduzido seu poder de revelação e denúncia
no momento em que o capital, sem receios, expõe de forma obscena e triunfal suas
vitórias sobre o trabalho?
O conceito de trace é uma das melhores coisas que eu tirei do Charles Peirce.
Não há possibilidade de presença do sujeito sem trace, o rastro, a marca do
trabalho. O sujeito, o eu da frase é necessariamente um índice, pronome ou
seja o que for, e a figura básica do índice é a marca. Pode ser outras coisas,
mas o grau zero do índice é a marca, e não há possibilidade de haver um
espaço, uma matéria humanizada em todos os sentidos da palavra sem que
haja essa presença efetiva do sujeito na obra. Essa, eu acho, é uma das críticas
mais fundamentais a se fazer à arquitetura hoje. A única pessoa que deixa
uma marca na obra é o arquiteto, e entretanto ele trabalha uma matéria que
não é a matéria da obra, a subjetividade que aparece na obra é transcrita. O
sujeito não aparece da mesma maneira num desenho e na argamassa, no
tijolo, no concreto. A troca é uma troca fundamental, essencial, há tanto
determinação do sujeito sobre a matéria quanto da matéria sobre o sujeito.
E o que se vê na arquitetura hoje, quando há presença de indicialidade, é a
indicialidade do arquiteto, que se superpõe, domina e apaga todas as outras.
Quando o arquiteto deixa aparecer na obra um mínimo de indicialidade, o
concreto aparente ou coisas desse tipo, ele se encarrega imediatamente de
fazer um joguinho de linguagem e pôr em oposição um ao outro, o liso e o
crespo, o branco e o preto, o quente e o frio, “o jogo sábio dos volumes sob a
luz”, cuja primeira conseqüência essencial é fazer desaparecer o valor indiciai
do índice e transformar esse valor em valor oposicional. Não desaparece fisi
286 camente, mas desaparece totalmente na percepção, no seu uso.
Os "azares da matéria'' de que você fala no livro, na verdade podem ter sido total
mente planejados pelo arquiteto. No prédio da fau, por exemplo, o concreto por fora é
crespo e por dentro é liso como mármore....
Exatamente. Ainda o Hegel: quando você opõe uma coisa a outra, essas coisas
passam a falar entre elas; uma determina a outra e a outra determina uma.
O diálogo fica então um diálogo entre materiais, entre texturas, entre coisas,
não mais um diálogo entre trabalhos, entre homens produtores. Há um esva
ziamento total. Isso é muito parecido com a fetichização da mercadoria: tudo
aquilo que foi encontro de trabalho, relação de trabalho, passa a ser automati
camente relação entre coisas.
Pouco se sabe aqui no Brasil do que você tem feito na França nestes quase trinta anos.
Você deu continuidade à experimentação em arquitetura?
As experiências lá foram muito mais reduzidas. A primeira razão é que meu
diploma não é reconhecido e, assim, não posso fazer arquitetura de jeito
nenhum. Em segundo lugar, a França tem um sistema de controle muito mais
rígido, detalhado e chato que o Brasil. Seria praticamente impossível fazer
lá experiências do tipo da casa do Bernardo — aqui havia uma flexibilidade,
uma moleza nas estruturas que nos permitia experimentar. Lá, cada porta
de banheiro, cada botão hidráulico tem uma medida, senão o financiamento
desaparece, senão você tem que destruir e refazer, um calhamaço de regras. Lá,
ainda, a ordem dos arquitetos é extremamente reacionária, é uma corporação
vinda de Vichy. Depois de conseguirmos um projeto para um conjunto de casas
perto da faculdade, a ordem caiu em cima, não deixou fazer de jeito nenhum.
Por isso, foi muito pouco o que fizemos, pequeninho, no canto da escola, tudo
em escala pedagógica. Era um canteiro pedagógico, não tinha que seguir a
legislação, mas também não tinha impacto social nenhum, coisinha fechada.
Você também participou de uma outra iniciativa de canteiro experimental, em 1994, na
Isle d'Abeau, junto ao governo francês, como foi?
Foi uma iniciativa muito bonita e que depois foi roubada. Participei da cria
ção de um “centro de experimentação em arquitetura”, reunindo diversas
escolas de arquitetura, de belas-artes e de engenharia. Na verdade, o primeiro
programa fui eu que escrevi, ele era todo baseado no meu trabalho de crítica,
não mais em escala pedagógica mas agora em grande escala. O Ministério
da Construção, para aprovar e financiar, porque é caríssimo fazer um negócio
destes, foi pouco a pouco tirando, tirando, e hoje o programa não tem mais
nada a ver com o original. Virou um centro experimental do tipo Liceu de
Artes e Ofícios: pegar ferro, misturar com concreto e fazer três bolinhas. Esva
ziaram o conteúdo crítico completamente e só então deram dinheiro. Eu já
estou fora.
Como foi sua experiência no laboratório de pesquisa que você coordenava em Grenoble,
o Dessin/Chantier?
A nossa tentativa era ver a história da arquitetura pelo lado do canteiro, das
relações de trabalho, a evolução da divisão do trabalho. Isso produziu estudos
bastante interessantes: uma história da arquitetura que, ao invés de ser pela
crista, é a história vista por baixo. Sempre em relação, lógicos tal tipo de arqui
tetura, tal tipo de desenho, corresponde a tal tipo de trabalho. Começamos
a pressentir e ver que a história é quase inversa da que se conta. As grandes
mudanças da arquitetura são, na realidade, respostas a grandes mudanças na
divisão e na exploração do traballm. A arquitetura moderna não é filha do
vidro, do ferro e do concreto, como se conta. O concreto é filho de uma crise
enorme no canteiro, uma resposta ao sindicalismo. O sindicato da construção
civil na França, no século XIX, tem uma história muito bonita. Sobretudo o
sindicato dos maçons, os pedreiros, e também o dos carpinteiros, que tinham
uma força danada, paravam a produção na França toda quando queriam. O
concreto é uma resposta a eles, um material que não precisa nem de pedreiros,
nem de carpinteiros. O sindicalismo naquele período era totalmente dirigido
pelos operários da construção civil. Um operariado lindo, que não reclamava
maiores salários, aumento de férias, eles queriam gerir o canteiro eles mesmos,
e sobretudo, saber por que é que eles estavam fazendo aquilo e para quem.
Esse sindicalismo foi arrebentado completamente pela Primeira Guerra
Mundial e pela mudança da orientação dos partidos de esquerda. Logo depois
da guerra eles começam a pedir salários, férias, o que hoje aparece como con
quista operária e que a meu ver já é sinal de um abandono: se você começa a
reclamar férias é porque já desistiu de pedir o essencial.
288
Como era a relação desse sindicalismo radical, que defendia práticas autogestionárias,
com os arquitetos?
Eles não queriam expulsar o arquiteto, como se pensa, mas assumir o controle
da produção. A arquitetura moderna, Le Corbusier, a primeira avant garde de
arquitetura é uma resposta a eles — a mesma resposta do Brunelleschi: aban
donar e destruir o saber deles, o saber gótico, no caso. Os operários do gótico
/
Em Paris há atualmente alguma agitação devido ao movimento dos sem-teto, com ocu
pação de prédios, como aqui. Você tem acompanhado isso?
As preocupações deles são as mesmas. Não é só ocupar o lugar, entrar e
morar. Há uma organização outra, copiada um pouco daqui, tenho impressão.
Quando eles ocupam, tanto quanto podem, organizam-se, têm vida coletiva,
desde a cozinha, saúde, limpeza, ajuda-mútua etc. Depois a polícia chega e
expulsa. Mas ainda não fazem isso como uma coisa sistemática, coletiva, que
se reproduza. Eu acho que eles estão começando, por enquanto é uma explo
são aqui, outra ali.
Os prédios são ocupados também por artistas, por pintores sem ateliê...
Mas é diferente — são os “squats” —, há muita mistura. Não há moralismo
nenhum meu, mas há droga, aquela coisa toda, um perigo. O cuidado que
existe aqui dos sem-teto quando eles fazem uma ocupação, em manter uma
289 espécie de imagem quase moralista, eu acho fundamental. Nesses “squats”
não há nenhuma constância, eles entram e saem, não há nenhum grupo, uma
organização coletiva, são só indivíduos que ocupam o mesmo espaço.
Como você vê o movimento dos sem-teto e dos sem-terra no Brasil? Você acha que é
possível esperar deles algo de novo ou eles são apenas manifestações de um passado
que o país ainda não resolveu?
Eu tenho uma admiração profunda e acho que agora vão conseguir alguma
coisa. A diferença entre o que está acontecendo agora e o que aconteceu
no meu tempo é exatamente essa organização linda, essa paciência, essa
tenacidade, essa real solidariedade. Eu espero, rezo, acredito que agora
está vindo outra coisa, com eles. Acho importante o fato mesmo deles não
entrarem no jogo clássico, ficarem na luta deles, essa luta funda, miúda,
permanente, constante, esse alastramento. Não me admiraria muito se
daqui a pouco vier um golpe — os donos do poder também não são cegos.
A força que começam a ter, a ameaça que eles começam a ser no joguinho
tranqüilo do poder hoje é grande.
Não é a mesma ameaça que começou a se constituir nos anos I960, antes do Golpe?
Não. As Ligas Camponesas, por exemplo, eram compostas por 2, 3 mil cam-
/
poneses, hoje os sem-terra são 500 mil. Não há comparação. E outra força.
E fazendo o que sempre devia ter sido feito: implantação na base. Talvez
não tenha sido culpa nossa, mas nunca tivemos essa base, essa ligação efe
tiva. Parece que são vocês agora que estão levantando essa questão de uma
maneira completamente diferente. E também isso é sinal bom, de mudança,
não é mais uma política governamental que vem de cima, assistencial, inte-
grativa, mas é outra política, a construção deles por eles mesmos. Eu estou
muito otimista com isso, mas é coisa de velho.
Você citou a construção do seu ateliê em Grignan. 0 que houve de novo lá?
/
Pedreiros de profissão?
Sim. Curioso que depois da experiência eles tentam levá-la para outros can-
/
A pintura foi o caminho principal que você seguiu nestes últimos 30 anos e, no livro
O canteiro e o desenho, o seu grande contraponto à arquitetura, ao "desenho para a
produção'.' Segundo você, a pintura é liberdade, rebeldia e acena para uma outra forma
de trabalho. Como você imagina a expansão desta liberdade e deste outro trabalho para
além do ateliê? É possível pensar ainda um projeto político a partir da arte?
Eu acho que a arte tem um papel fundamental e talvez mais até a pintura do
que as outras artes, porque é um trabalho artesanal. A pintura é um trabalho
livre reservado a privilegiados mas, mesmo assim, nós temos que defendê-la,
porque é o único, o último lugar em que há esse vestígio de trabalho livre.
Eu sei a maravilha que é, mesmo sabendo que a liberdade que estou usando,
é liberdade que é privilégio, que é luxo, mas eu sei como isso pode ser bom,
magnífico. Só que tudo isto é feito sozinho, tudo que é feito com um grupo
no canteiro, na pintura é feito sozinho. Onde entra o outro na pintura? Não
só ele está em mim e eu sou todo mundo, mas sobretudo fazendo aquilo que
a crítica não faz mais hoje, que é ouvir as pessoas, simplesmente. Pintar e
mostrar: olha.
Quando você faz as rupturas, aqueles cortes na tela, eles não vêm como uma deseco-
nomia?
Eles perguntam o por quê: “Rasgou? Foi de propósito ou não?”. As perguntas
são ingênuas apenas na aparência, porque eles captam direitinho aquilo como
trabalho, como construção, como linguagem, como ruptura de linguagem. Os
temas também, o representar a dor do trabalhador não interessa a mínima
para eles, isso eles conhecem na pele, não estão lá para se rever no espelho.
Adoram mitos, historinhas de fada, de mitologia grega e também não por
ingenuidade. Esse trabalho livre, o elogio do trabalho livre, tem que se apre
sentar de uma maneira cativante.
292
Ao mesmo tempo a arte não parece cada vez mais bem administrada e o mundo da cul
tura cada vez mais associado ao dos negócios? Um ministro do Mitterand, por exemplo,
dizia que a cultura era o petróleo da França.
Não dá mais para separar. A arte se transformou num tesouro excepcional,
uma reserva de dinheiro extravagante, porque o trabalho livre é a coisa mais
rara, está desaparecendo completamente, mesmo na arte. Nesse sentido, a
contradição está dentro da arte, totalmente penetrada pelo capital, pelo
dinheiro, mas é ao mesmo tempo o último lugarzinho onde resta uma sombra
de alguma coisa que escapa ainda ao capital, uma sombrinha de liberdade e
de autonomia. Uma boa economista francesa que escreve sobre o mercado de
arte (Nathalie Moureau, Analyse économique de la valeur des bien d’art) conta
que hoje só a assinatura vale, o quadro não tem mais o menor interesse. Você
vende a assinatura Picasso e não mais tal quadro de Picasso. Você vende Maliê-
vitch e não tal quadro de Maliêvitch. E a assinatura vale como índice, como
sinal, como indicação de que ele é livre. Picasso fez o que quis e mostrou a
língua para todo mundo. Essa liberdade não virou apenas mercadoria, mas a
mercadoria mais cara.
Por que você não faz mais referências à sua pintura dos anos 1960?
Eu acho que aquele tipo de pintura valeu naquela hora, porque estávamos
provocando o outro, vendo se ele reagia, e íf eqüentemente reagia, fechava
peça de teatro, tirava quadro de exposição. Tinha o sentido de provocação
imediata à ditadura que eu acho válido e bom ainda. Quando eu mudei para
a França, fui na mesma linha. O primeiro mural que eu fiz lá foi em homena
gem ao Marighella, ao Lamarca e à Iara. Esse mural foi exposto num museu
em Grenoble, eu fiquei bonitinho expondo na França, mas me senti um
urubu, vivendo de sangue alheio, meus amigos morrendo aqui e eu expondo
em museu lá a dor deles aqui. Eu tive uma vergonha danada.
Num texto seu publicado no livro Futuro-Anterior você explica porque faz variações em
torno de Michelangelo e sua concepção de "pintura dialética'.' Como seria essa pintura?
Uma pessoa também muito importante para nós naquele período foi o Mário
Schenberg, uma das mais belas inteligências que eu já conheci, físico extraor
dinário — o que ele escrevia era compreendido por mais duas ou três pessoas
no mundo — e ao mesmo tempo um sujeito com uma grande sensibilidade
para a arte. Ele falava muito em duas cabeças, o que hoje é um pouco tema da
moda, a cabeça da ciência, o pensamento dedutivo, linear, e a cabeça do artista
plástico, pensar por figura, por massa, uma espécie de pensamento estrutural,
que ele dizia usar muito em física. Ao contrário do que parece, esse pensa
mento estrutural é muitas vezes mais eficaz e preciso do que o pensamento
dedutivo matemático. Ele contava a história das estrelinhas. Quando ele saiu
da universidade foi contratado por um observatório para localizar estrelas,
fazer continhas, e ele fazia as continhas com as formulinhas, tudo certinho, e
sistematicamente ele errava, a estrela que ele calculava deveria estar lá e apa
recia acolá. A partir de um momento, ele disse: “já que eu erro mesmo, não
vou mais fazer continha, vou dar uma olhada e dizer que está lá e pronto”. E
aí começou a acertar a posição das estrelas, graças a esse outro pensamento
estrutural, pela forma, pela massa, que é de uma riqueza extraordinária, de
t
uma precisão enorme. E por isso que a pintura deveria ir para a universidade,
ser guardada, ser desenvolvida, inclusive porque hoje há um monopólio do
pensamento linguístico, oral. E o que você vê também no mundo do trabalho:
a dificuldade para obter a colaboração do pessoal, do pedreiro, para ele entrar
no jogo, vem muitas vezes porque você quer passar só pela discussão, pelo oral,
e como a expressão privilegiada deles é o trabalho, é a mão, há dificuldade,
impasse. Desde que você mude de campo e vá para a plástica, a coisa engrena
quase que imediata m ente. Eu acho que uma das missões fundamentais
da arte hoje, não mais como privilégio do trabalho livre, mas como pensa
mento plástico puro, que não tem as intereferências da utilização imediata, é
desenvolver o conceito plástico e que é muito próximo da idéia de conceito
do Hegel na Lógica. O Hegel sofria como um desgraçado para escrever e ele
mesmo dizia, “não estou conseguindo, não é isso, eu tenho que trair a gramá
tica...”. E tudo aquilo que para ele era uma ginástica oral é de uma evidência
plástica total.
para depois recolher tudo. E linda a arte, e todo o trabalho, sobretudo todo o
trabalho físico, pode ser isso.
É comum dizerem que a sua pintura é pós-moderna, de abuso das citações, você con
corda?
/ v
E o oposto. Citação tem muita e você precisa jogar com ela, mas quando faço,
nunca é irônica, eu tenho horror da ironia à la Botero. A citação, para mim,
tem a mesma humildade do aprendizado artesanal. O artesanato se forma
com a cópia, não tem outro princípio, é cópia e transformação da cópia. Essa
a minha citação. Há um vocabulário enorme na história da arte, uma biblio
teca à disposição e eu, num certo sentido, fico feliz, porque toda a experiência
do século xvi ao século xix, abandonada hoje, fica para mim. Mas é a citação
sempre como apropriação modificante, aprendizado e alteração. Eu aprendo
muito estudando, com a citação.
As duas últimas perguntas: uma sobre o Flávio, outra o Rodrigo. 0 Flávio permaneceu
pintando e dando aulas nas décadas de 1970 e 80 e também fez uma grande viagem
pelo Brasil, que o marcou muito. Que contato você teve com ele nesse período, quais
discussões vocês ainda mantinham?
Eram as mesmas, muita decepção, muita tristeza, não dá para dizer, foi um
puta fracasso. De pintura falávamos muito. O Flávio também tratou essas
coisas de um outro jeito, com a cultura popular. Ele fez o que nem eu nem o
Rodrigo fizemos, ele saiu de ônibus por aí para tudo quanto é canto, ele viu.
Ele tinha uma relação muito mais próxima com o interior brasileiro do que
nós. Eu e o Rodrigo éramos muito urbanos, rapazes de grande cidade. Mas
era mais ou menos o mesmo caminho, feito com a personalidade dele, feito
com a minha, a intenção era a mesma. O Flávio era um gênio, uma pororoca,
uma coisa. Um dia a mãe brigou com o pai e ele tocou piano. Sentou e tocou e
nunca tinha tocado antes. Ele não parava, aquela criação, quase descontrolada.
i Nos anos 1960, os situacionistas procuraram constituir uma nova forma de crítica
cultural e ação política, em oposição aos cânones do Partido Comunista Francês, o que
acabou inspirando a “práxis revolucionária” do Maio de 68. Cf. Anselm Jappe, Guy
297 Debord Petrópolis: Vozes, 1999, col. Zero à Esquerda. [n.O.]
Por que é que o Rodrigo foi o único que não abandonou a arquitetura?
Ele tinha uma paixão fundamental pela arquitetura. Até na Hidroservice, ele
nunca esqueceu seus princípios. No Hospital das Clínicas, no edifício do DNER
em Brasília, a possibilidade estava sempre aberta, essa arquitetura poderia
ter sido feita de outra maneira, se não foi é porque não havia condições. Ele
estava cercado, fiscalizado, e assim mesmo ia pondo, pondo, pondo. Durante
todo o tempo em que estava na Hidroservice, o Rodrigo procurou os projetos
onde ele pudesse fazer coisas nesse sentido, abertas, acenando para outra rea
lização. E não foi pouca coragem aceitar ir para a Guiné Bissau, não existia
cocô de merda mais fedido do que aquele. Rodrigo foi para lá para trabalhar,
para fazer a coisa do zero, abandonando tudo aqui, com uma coragem, com
uma generosidade que não podem ser esquecidas. Eu tenho a impressão de
que ele era o mais radical de nós três, o mais puro. Ele foi até o fim. Eu e
o Flávio no meio de pintura, inteleca, escrevendo artiguinho, teatro, sem
pre coisa que facilita amolecer. Ele não, aquele chinês radical, vixe-maria,
bebendo pinga e não whisky, lindo. Eu tenho ainda lá em casa os livros do
Mao que ele lia em Grenoble, tudo anotadinho, página por página. Ele passou
um ano lá comigo e teve a sabedoria de voltar...
298
O FETICHISMO NA ARQUITETURA
2002
Em 2003 me aposento.
A direção da Escola de Arquitetura de Grenoble me pediu, como trabalho
final, que preparasse uma edição comentada do meu antigo livro O canteiro
e 0 desenho, base de todo meu ensino.1 Tenho por isso andado entre aquele
texto e o que hoje poderia ser corrigido. Pouca coisa fundamental. Mas, às
vezes, me parece que algumas passagens envelheceram, sem realmente enve
lhecerem.
Por exemplo, um de meus argumentos centrais para a crítica do desenho
praticado até hoje gira em torno do fetiche em arquitetura. Lembro as pala
vras clássicas de Marx: “O que há de misterioso na forma mercadoria consiste
simplesmente no seguinte [...] ela transmite [...] a imagem da relação social
dos produtores no trabalho global como uma relação social existente fora
deles, entre os objetos.”
Tal deslocamento é o fetiche. Mas ele pode continuar seu impulso, pene
trar na carne dos objetos, na obra de arquitetura, por exemplo. A relação
entre suas partes também se substitui, então, à imagem da relação social de
seus produtores. A história da produção efetiva se esvai sob a capa das rela
ções plásticas. Há uma forma (plástica) da forma mercadoria dos produtos
que assegura, reforça e prolonga sua fetichização sob o capital.
É mesmo possível seguir a evolução da forma (plástica) fetichizante
fetiche invertido a propósito desta atual arquitetura. Acho que acertou. Tudo
se passa como se a castração voltasse à vista e as meias fossem escondidas.
Mostra-se o maior escárnio pela produção, disfarça-se a atenção indispensável
que é preciso ter com ela (afinal, o capital financeiro vive do produtivo, que
vive da produção, que vive da exploração, etc.). De certo modo torto, as meias
do fetiche/desenho-de-arquitetura antigo ainda remetiam à produção, apesar
de todas as difrações: o fetiche não fora ainda invertido.
As artes plásticas já se enterraram neste processo. Um recente relatório
elaborado por Alain Quemin (2001) para o ministério francês das Relações
Exteriores mostra isto claramente. Há cerca de 70 megacolecionadores
(financistas, publicitários, golden-boys etc.), menos de 50 curadores interna
cionais controlam as vinte ou trinta grandes feiras e bienais, vinte ou trinta
galerias centrais. Tal é o mundo das artes que controla o mercado. 34,9% dos
artistas vivem nos Estados Unidos, 27% na Alemanha, 6% na Inglaterra,
4,4% na Itália e 4,1% na Suíça. Total: 76,7%. E o resto do mundo divide o que
sobra. Os casamentos financista-curador que conhecemos no Brasil recente
percorrem e dirigem todo 0 conjunto. A pintura e a escultura foram total-
mente marginalizadas: cheiram a terebintina e suor, lembram vagamente
o trabalho. A instalação, a performance, a foto, o vídeo invadiram todas as
exposições que contam. São mais maleáveis, mais adaptáveis aos “conceitos”
dos curadores, mais efêmeros, mais “ins”, mais próprios para ostentar o gasto
absurdo tão necessário para a saúde econômica do capitalista financeiro.
O mesmo começa a ocorrer com a arquitetura. Sintomaticamente, em pri
meiro lugar com a dos museus que abrigam tal arte, além das sedes de grandes
empresas. O que reúne seus projetos (que formalmente recorrem ao falso kitsch,
à não-transparência das transparências acumuladas, ao retro, ao hyper-tech
etc.) é a gratuidade (só aparente), a insistência com que desafiam as normas
mais evidentes do bom senso construtivo, o que, em si, já é bastante duvidoso.
Seu objetivo é a hipóstase da irracionalidade — que é a ideologia que nos que-
304
BRASÍLIA, LUCIO COSTA E OSCAR NIEMEYER
2003
O Lucio, sobretudo num primeiro momento, fez parte de uma passagem polí
tica bastante específica. Com a primeira grande guerra, a crise de 1929 que se
arrasta até a segunda, as grandes potências se esqueceram um pouco de nós,
deixaram um pouquinho mais de liberdade para cuidarmos de nós. Surgem
então projetos de desenvolvimento nacional, de formação do país. Surgem
estudos sobre o que poderíamos contar como nosso — na economia, na antro
pologia, na sociologia — mas também nas artes, música, literatura, pintura,
Vamos falar um pouco sobre a questão do trabalho em Brasília. Mais uma vez
uma voltinha para trás. Até os anos 1930, havia bastante gente qualificada
nos canteiros. A própria arquitetura eclética exigia isto, a colaboração inteli
gente dos executantes. Boa parte dos trabalhadores vinha da Itália, egressos
do sindicalismo revolucionário que deixou algumas marcas aqui. Não posso
me estender, mas é bom lembrar que uma das causas do modernismo foi a
reação contra este sindicalismo — que pregava a autogestão — e contra a arqui
tetura eclética européia — que respeito muito por sua rara qualidade técnica.
Com o projeto de desenvolvimento nacional, este quadro muda.
Objetivamente, há urgência em acumular; subjetivamente começa a se
agitar o instinto mimético colonial. Lentamente no começo dos anos
1930, mas rapidamente no fim, são elaborados os modelos de arquitetura
adequados à mudança. A arquitetura adota linhas mais sóbrias, crê se
despir do ornamento condenado (na verdade, dos detalhes que implicavam
mão-de-obra qualificada e das didatizações de procedimentos construtivos
corretos), busca formas geométricas simplificadas, com o que pode utilizar
força de trabalho menos qualificada e mais submissa, pois as novas
orientações sindicais, tendo afastado as tendências revolucionárias, não
reclamavam mais poderes, mas salários, férias etc. Pouco a pouco, com a
banalização dos novos modelos, a parte qualificada do canteiro é reduzida.
Este processo atinge o ápice em Brasília, quando a cidade recebe massas de
candidatos a qualquer emprego (formando um permanente e numeroso
exército de reserva de força de trabalho), quase sempre desqualificados. A
associação dos dois, exército de reserva e desqualificação, permite a redução
de salários e cria condições para a violência mais descarada. Mestres de boa
formação são trazidos pelas empreiteiras, atuam simultaneamente como
professores e feitores, ensinando os procedimentos indispensáveis e o bom
comportamento. Pouca semelhança resta com os canteiros dos anos 1920:
agora são enormes, inflexíveis, ultra-centralizados; eram menores, flexíveis,
mais abertos (mas nem por isso ideais).
O desenho de arquitetura muda correlativamente. Quase poderíamos esbo
çar uma regra (a qual, como toda regra, tem várias exceções): a arquitetura
que deixa sua lógica construtiva apropriada às claras, precisa de trabalho mais
/
Todas as iniciativas que procuraram dar corpo ao que deveria ser uma forma
ção nacional estruturada queriam ter raízes antigas, impulsos anteriores que
já se mostrassem nossos. O novo faria sua inclusão num todo de alguma preg-
nância. As artes, principalmente, colheram prenúncios e os misturaram com
coisas da hora. A emancipação nacional pedia fundamento autóctone. Villa
Lobos, Oswald, Mário, Di etc., vasculharam os antepassados — de preferência
populares, já que 0 projeto era de elite. Lucio também, Lucio pescou larga
mente no passado colonial. Fiel ao costume, usou a trama da colcha de fuxico
para a fachada de condomínio de luxo. Mas, na medida mesma em que o pro
cesso de desenvolvimento nacional começa a ficar cariado, há tendência para
engatar uma marcha a ré ao contrário. Em vez de memória, a prospecção. São
plantados os rastros do que deverá vir a ser, as pegadas do amanhã (foi assim
com a arte francesa na virada do século xx. Manet volta para Goya e Rafael,
Picasso para a arte catalã e negra. Com o desencanto a propósito da mudança
desejada, Mondrian, Pevsner etc, emitem diretamente do depois). Quando
a descrença na construção do futuro se intromete, há como que a hipóstase
do desacreditado. Em vez da construção a partir do presente (e seu passado),
a adivinhação propiciatória. “Vamos virar o Brasil para dentro, substituir as
importações” (enquanto se instalavam as multinacionais de automóveis para
exportação): os slogans ganhavam ênfase com o pressentimento de sua irrea
lidade. As astúcias com a palavra projeto, pro-jeto, jogar para frente, são deste
tempo. Mas foi o para trás, disfarçado em seu contrário, que vingou.
Entretanto, o projeto de formação de uma arquitetura nacional, que o
Lucio encarna no começo, e que acompanha o desenvolvimentismo, teve suas
ousadias. Carregada pelas rupturas sociais com a tradição, nossa arquitetura
abandona pouco a pouco o ecletismo de luxo, preguiçoso e de casca, e acom
panha como pode a passagem do plausível ao voluntarioso, do passo razoável
à birra arriscada. Começa limpando o terreno, arrumando o bom material
disponível, ensaiando variações no seu uso. Continua por aí, mas pressentindo
o pouco chão do desenvolvimentismo segue também sua deriva no sentido do
autoritarismo. A comedida coragem inovadora do arquiteto não pode resistir
à sua promoção a manda-chuva urbanista: a seca chegou para ficar.
Se o desenvolvimentismo teve, até quase Brasília, algum chão firme, não
311 há como exagerar: é uma ideologia otimista capenga. A prova é a facilidade
com que se transforma em voluntarismo autoritário, em programa da dita
dura. Exagerando um pouco, passamos de uma situação em que tinha um
assentimento largo para outra em que precisou de violência para se afirmar
— mas, em si, pouco mudou.
Fala-se sempre da ruptura de 1964 como o momento em que a violência se
instala. Mas é preciso não esquecer que esta violência já estava nos canteiros
de Brasília. O fortalecimento da dimensão autoritária favoreceu na arquite
tura 0 desenvolvimento do risco, mas num outro sentido, do traço, da mão
que comanda, da arbitrariedade mesma do seu movimento que, por força de
vontade, quer impor aquilo que já na realidade começa a esmaecer. Essa necessi
dade do pólo autoritário, demandada pela urgência do acúmulo de capitais, a
meu ver, foi o que levou a que a violência ainda disfarçável de Brasília passasse
a não poder mais ser escondida a partir da ditadura. Os movimentos de reivin
dicação, as lutas sociais, começavam a ser fortes e o básculo, a mudança, exi
giam descaradamente que aquela violência latente aparecesse com mais nitidez.
Essa transição ocorre entre o fim de Brasília e o começo da ditadura.
Até agora fiz uma crítica bastante ácida de Brasília. E preciso criticar a crítica.
Como negar a importância, mesmo que só simbólica, do desejo de mudança?
Como não reconhecer valor à vontade de formar um outro Brasil, sair do papel
de ex-colônia exportadora e ainda dependente? Tais propósitos, em si, são
respeitáveis. Várias causas da falha do processo esboçado nem são internas. O
espantoso crescimento dos modelos metropolitanos chega a níveis impossíveis
515 de alcançar. A volta do interesse econômico das grandes potências por nós, peri-
feria um tempinho esquecida, minou a pouca base de nossos planos. O tempo
de Brasília é também o da penetração do capital externo — e a falência do mito
da burguesia nacional, a cocheira suposta do caleche desenvolvimentista. Este
retorno e seu acompanhamento pelas adesões internas solapa o passo curto que
tentávamos. A meta almejada não só se mandou para a estratosfera, mas os de
lá em cima precisavam que o Brasil continuasse subdesenvolvido, fornecendo
matéria-prima e mais-valia disfarçada em royalties, dívidas etc.
Talvez a imobilidade do plano seja também sinal de tenacidade, um movi
mento em memória do que foi castrado, teimosia orgulhosa. A rigidez de
Brasília poderia ser a hipérbole, a hipóstase de resistência amarga diante da
perda dos possíveis. Falando contra mim mesmo, a exaltação do traço e o des
conhecimento das condições de produção que tanto critico, podem, em certos
casos, se aproximar destas reações à frustração, o que ajuda a explicar, jamais
a justificar (mas reações deste tipo sendo sintomas logo fazem tomar gosto,
hoje são causa de júbilo, de gozo egótico, de reação de orgulho ferido, viram
denegação e terminam como escárnio).
Brasília também valeu como experiência. Seu urbanismo e sua arquitetura
mostraram os limites do voluntarismo — mesmo do bem intencionado, a boa
reação deslocada não leva longe.
E, é preciso lembrar: há edifícios magníficos em Brasília. Penso, por exem
plo, na primeira escola de arquitetura, modelo de simplicidade inteligente e
bela. Ou no Itamaraty e o Palácio da Justiça, cujos esquemas (no sentido kan
tiano) são de grande fertilidade.
Tenho certos princípios (talvez pueris) que não abandono. Sobre o uso cor
reto de materiais, chego a extremos quase ridículos. Por exemplo: não con
sigo aceitar a Câmara dos Deputados. O Rodrigo Lefèvre analisou esta obra.
Há um contraste doloroso entre o desenho apurado e elegante e o canteiro
absurdo. Sob o ponto de vista do cálculo, a cúpula invertida é problemática.
Foi muito difícil construí-la. Exigindo muito concreto derramado sobre uma
espessa camada de vergalhões em trama estreita. Quando se amarra o ferro,
os milhares de nós e pontas apertadas machucam, ferem sem dó. Um traba
lho colossal, dolorido para levantar uma estrutura estaticamente duvidosa.
Ali, esbarrão entre desenho e canteiro é frontal.
Já na cúpula do Senado, a laranjinha virada pra baixo, ao contrário, é uma
das formas mais corretas para a utilização de um material apropriado à com-
514 pressão. Pode-se reduzir a uma casquinha se acompanhar a curva de compres-
são. Exige pouco material, é possível construí-la sem fôrmas, sem nenhum
risco. Ao lado, seu eco invertido, fica ainda mais deslocado. A cúpula invertida
não tem nenhuma destas vantagens.
Ora, o deregramento técnico quase sempre implica em deregramento
produtivo. O respeito à linguagem própria da matéria, das formas que natu
ralmente assume com maior pertinência, é o primeiro passo para o respeito à
produção e ao produLor — se isso interessasse a alguém hoje.
Parecem bobagens essas manias minhas, mas creio que o respeito aos pro
dutores começa por estas coisas bem elementares. A fabricação do cimento, por
exemplo, é pesada. Polui tudo: o ambiente em volta e os pulmões dos traba
lhadores por dentro. Não proponho que cesse sua produção, mas pelo menos
que não se use este material desnecessariamente, em consideração aos seus
produtores e utilizadores futuros no canteiro. Ora, os materiais têm comporta
mento específico e têm suas formas de uso ideais, nas quais opera segundo suas
melhores possibilidades. Necessariamente, nestes casos, a quantidade requerida
é menor — o que, no caso do cimento, trás vantagens ecológicas e diminui a
nocividade sobre os trabalhadores em todos os planos de produção. Não é pouco.
E evidente que o desencontro entre a forma que quer empurrar para a frente
e a técnica que perde o fôlego correndo atrás acarreta freqüentes problemas. Essa
atitude, entretanto, não é exclusiva do Niemeyer. A valorização da evolução acele
rada das forças produtivas, tão comum na esquerda aliada ao Partido Comunista,
favorece esta estratégia de desafios. O que pode ocorrer com as práticas antecipa-
tórias, entretanto, é que elas saiam do seu leito e se alarguem além do devido. É o
caso de algumas paredes curvas que projeta. Poderiam, no caso de uma produção
mais livre, já que não têm maiores compromissos com outras equipes da produ
ção, abrir-se para alguma improvisação, um mínimo de participação operária.
Mas a mão habituada a forçar o passo da produção não está acostumada a abando
nar nada a ela, considerada como retardada. Traça então, no papel, as curvas sol
tas que se impõem às mãos amarradas. E a coisa vira paradoxal. O movimento da
mão no papel se congela no material da obra — e o movimento próprio da reali
zação, a história e a memória do trabalho são apagados pela imobilidade do gesto
congelado na transposição. Os dois movimentos — o do desenho e o da produção
— somem, um por tradução traidora, o outro por abafamento.
Outro ensinamento de Hegel: a matéria tem sua forma, não há hylé vazia.
O traçado no papel, “livre”, sem outros determinantes que ele e a mão, se não
for adaptado à transposição por outras mãos num outro material, perde sua
veracidade, torna-se aleatório e impositivo. O que pode ser considerado liber
dade do autor vira arbitrariedade posuda.
Qual é a boa poética? E a que começa pelo mais simples, pelo momento do
trabalho em que a mão hábil elabora corretamente o material. Com o avanço
feliz, aparece o contentamento. Pouco a pouco este bem fazer o necessário vai
se inflamando, capricha ainda mais. E logo a coisa encanta tanto que quer
mostrar-se, ser admirada. A forma começa a se deleitar com ecos harmônicos
da que resultaria da pura necessidade, espécies de sublinhadores indicando a
conveniência do feito. E abre-se o campo que podemos chamar o da decoração
autêntica — que nada mais é que a exaltação do gesto técnico satisfeito com
sua pertinência. Então, a forma didatiza, se prolonga em variações sempre
próximas da fonte. Liberdade cantando a necessidade, necessidade desabro
chando em liberdade, sem se perderem de vista. Quem procedesse assim seria
517 “gênio” — ou seja, trabalhador livre, porta-voz singular do universal através
de seu ofício particular. E evidente que estamos longe disto tudo. Mas é o que
me faz defender a ornamentação (no sentido indicado aqui), contra o falso
puritanismo da arquitetura moderna, este sim, decoração enganosa.
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K*
2001 2003
INTRODUÇÃO
Desconfio de quem justifica idéias por meio da história pessoal. Isso parece
intervenção ortopédica para soldar as fissuras do raciocínio; porém, diante da
aproximação de meu crepúsculo, tenho vontade de enraizar as minhas em seu
tempo. O que, ao contrário, pode até relativizá-las. E terei, assim, a oportuni
dade de voltar a seus dois co-autores, Rodrigo Lefèvre e Flávio Império, que
não podem mais testemunhar, bem como ao laboratório Dessin/Chantiery que
desapareceu sem um balanço. Mas garanto-lhes: não se trata de autocelebra-
ção. O mérito, se mérito existe, quase não é meu. Eu estava lá no momento
certo. Lá — no Brasil; momento — a década de i960. Há passagens em que o
conteúdo aflora com total falta de modéstia: basta olhar.
No início daqueles tempos, vivia-se na esperança. Sua legitimidade bas
tante contestável não impedia o contágio, principalmente entre jovens de
vinte anos. Acreditava-se, com mais ou menos intensidade e com variações
de esquerda e de direita, que o país tinha saída. Deslanchar o desenvolvi
mento, chegar a uma “formação nacional” bem sucedida — por meio da
industrialização e por meio da modernização da sociedade. As receitas varia
vam: “substituição das importações”, desenvolvimento “associado”
(às grandes metrópoles, nosso ideal do eu), fim do “feudalismo” agrário
321 através de sua reforma, formação do mercado nacional etc. Propostas fre-
qüentes em países que se pensavam ainda em vias de desenvolvimento e de
cura. Discretamente, aconselhava-se que os oprimidos esperassem: a mãe
pátria lhes pagaria sua parte após o milagre anunciado. Era-se pelo social
— mais tarde.
A construção de Brasília foi o ponto culminante dessas crenças — e o teste
do real. Ela queria corrigir o perfil geopolítico herdado do colonialismo e da
dependência. Substituir a seqüência das redes locais voltadas para os portos
exportadores pela centralidade de Brasília e seus eixos rodoviários de inte
gração nacional. Formar o país voltado para si. Objetivo grandioso, épico. O
plano de Lucio Costa, em forma de pássaro, já ilustrava o novo voo. A plástica
animada de Niemeyer parecia fundar uma outra linguagem, a nossa. Ao
mesmo tempo em que ele tirava fotos confraternizando com os trabalhadores
da nova capital, o presidente “criava” a indústria automobilística. Quase no
coração do símbolo, a catedral sintetizou isso com perfeição: um mandala
puro, representação da diversidade na unidade e vice-versa. Suas parábolas
saídas da terra e vindas de todas as direções do território nacional, reunidas
aqui em seu centro, retornavam pelo alto para as mesmas direções. No inte
rior, uma explosão de claridade depois do escuro corredor que desce (a histó
ria passada) da entrada para o ventre branco incrustado docemente na terra
mãe acolhedora. Um hino ao futuro da unidade paradisíaca.
Nenhum outro canteiro de obras foi tão violento quanto o de Brasília
— embora a conivência patriótica da mídia censurasse então toda informação.
Seria um escândalo estragar o brilho da promessa com coisas tão prosaicas. Os
operários vinham de muito longe, de todas as direções das parábolas, atraídos
pelo sonho de um bom emprego no extraordinário projeto. A volta, entre
tanto, era quase impossível: a região árida ainda estava totalmente isolada
por baixo. Se contratados, eram confinados em acampamentos provisórios
cercados pelo exército ou pela polícia privada das empresas. A comida, fre-
qüentemente estragada, provocava diarréias intermináveis. Debilitados, eles
agüentavam longas jornadas de trabalho cheias de acidentes e de mortes: a
aproximação da data de inauguração obrigava a isso. A menor resistência, na
ausência de sindicatos mediadores, era resolvida na base de tiros e cacetadas
— e mais mortes. Para escapar dessa situação, alguns se jogavam embaixo dos
caminhões. Depois da inauguração, foram expulsos para “cidades satélites”
(sic) a 50 km de distância. Seus acampamentos provisórios ou favelas não
podiam empanar o brilho do plano pássaro (para os que chegavam de avião)
— e não fora prevista nenhuma habitação para eles. Nossa arrancada para um
mundo admiravelmente novo retirava seu impulso de estranhos cinismos. Sob
o sonho, o pesadelo.
322 Desde 1958, assisti a essas coisas de perto — e dos dois lados. Mesmo sendo
estudante, no segundo ano da faculdade de Arquitetura, tínhamos, Rodrigo e
eu, vários projetos em realização na futura capital (dois prédios de escritórios,
um conjunto de lojas). Eu ia sempre para lá — naquele tempo, o arquiteto fre-
qüentava o canteiro de obras. Eu não podia não ver o que acabo de descrever.
Também escutava a conversa dos de cima, pois meu pai era um dos promoto
res da nova Jerusalém (foi ele quem nos confiou os projetos citados). A elite
do PSD, o partido do governo, reunia-se, às vezes, em minha casa. Impossível
não constatar ao vivo a enorme distância entre as palavTas e os fatos.
A irrupção da ditadura em 1964 interrompeu bruscamente os amanhãs
que cantam, versão populista. A ilusão foi por água abaixo.
Mas constatar, mesmo com o privilégio da ubiqüidade no início e no fim
do processo, não é compreender. Começou então para nós — Rodrigo e eu pri
meiro, Flávio logo depois — um período de pesquisas tateantes, de esboços de
hipóteses. A leitura de O capital nos ajudou muitíssimo. Essa leitura se afas
tava daquela do PCB (que dela retirou conceitos bizarros para nosso “desenvol
vimento” a partir de uma inencontrável burguesia nacional) e daquela dos
seminários eruditos, demasiado filosofantes. Interessava-nos principalmente
a análise de Marx sobre os processos materiais de produção, sobre os proce
dimentos de extração da mais-valia — tudo o que nos ajudasse na abordagem
do canteiro de obras. A miséria do operário inglês do século XIX permitia-nos
compreender a que eu havia visto em Brasília — e que se encontrava em
outros canteiros. O capital, apesar de sua evolução e de suas acomodações a
nosso subdesenvolvimento de ex-colônia escravista exportadora de matérias-
primas, passava ainda, grosso modo, pelas mesmas engrenagens complicadas
de seu fundamento.
O primeiro avanço foi a caracterização da produção da construção: trata-
se de uma manufatura. E uma questão absolutamente essencial, apesar da
indiferença por parte dos textos sobre a economia do setor (fala-se neles
da “indústria” da construção) e por parte dos textos da crítica, inclusive de
esquerda, em relação a esse ponto. Marx, principalmente nos capítulos XII e
XIII do volume I de O capital, detalha uma série de diferenças importantes
que separam artesanato, cooperação simples, manufatura e indústria quanto
às formas de exploração, de direção, de submissão do trabalho (formal ou
real), de divisão do trabalho, de tecnologia etc. Tudo isso é precioso, cheio de
conseqüências para o projeto. Apesar da impressão de generalidade abstrata
de nossos textos — pouco hábeis, reconheço — eles traduziam, com decalagem
/
Mas o que fazer? Meu próprio objeto é vulgar. E pequena a distância entre a
mão que desenha e a que segura a pá — embora tenham sido gastos séculos
de engenhosidade para ampliá-la. É sua própria proximidade que provoca a
superabundância das cunhas e a aparência de indiferença é sintoma de pro
funda intimidade.
Minha crítica do papel do projeto nunca foi admitida pelo meio profis
sional — e por razões evidentes. Como admitir que esse receptáculo dos mais
altos propósitos, esse veículo de arte e pensamento, pudesse ser grosseira
mente reduzido a uma das formas técnicas da dominação do capital? Como
aviltar assim a capela Mediei, o palácio Thiene, La Tourette? Fui excluído
do concerto dos pares, perdendo, desse modo, qualquer esperança de legi
timidade moderna, dita científica. Ainda hoje os arquitetos chamam-me
de pintor e os pintores, de arquiteto. E desapareço lentamente da história
dessas atividades. (A crítica que faço da pintura é semelhante à que faço da
arquitetura — nas condições do artesanato — o que leva a outros afastamen
tos). Minha análise do desenho operou como que um thaumatzein da
poética de Aristóteles, “choque de surpresa que abala as expectativas do lei
tor e introduz uma forte curvatura”, como diz K. H. Rosenfield. Meu thau
matzein despedaça a trajetória nobre do desenho e abre-a para o escândalo.
Continuemos a escandalizar — e a apontar para um outro desenho.
O DESENHO SEPARADO - DO CLÁSSICO AO NEOCLÁSSICO
(Observação: a oposição entre canteiro de obras e desenho, que meu texto cons
tata, tem uma história e uma memória ainda ativas. Durante vários anos, estu-
dei-as em meus cursos. Hoje posso apenas resumir seu esquema, pois a idade e
a preguiça são obstáculos à revisão de notas espalhadas na desordem de minhas
gavetas. Aqui e ali, vou incluir artigos que escrevi neste últimos anos.)
A oposição ainda atual entre canteiro e desenho foi precedida por sua relativa
unidade. Os trabalhos dos especialistas confirmam isso. Podemos caracterizar tal
união como a da cooperação simples: um grupo de trabalhadores que tem prati
camente o mesmo nível, competências muito abertas e muito pouca hierarquia. O
desenho, muito elementar, ainda é seu atributo. Esse tipo de cooperação dura apro
ximadamente até o apogeu do gótico. Como o desenho ainda não tem vida inde
pendente do canteiro de obras, as analises existentes baseiam-se no trabalho e no às
vezes mítico construtor de catedrais. Depois, praticamente não se faia mais disso.1
Depois do apogeu do gótico, vai surgir no meio da massa mais ou menos
homogênea dos trabalhadores, destacar-se e dominá-los, o esboço do arquiteto
e de sua arma, o desenho separado.
1 Ver os trabalhos de Colombier, Kimper, Suckale, Haas, Banner, Recht etc. Com nuances,
suas análises convergem para o modelo da cooperação simples, embora seu vocabulário
seja outro. Ver especialmente, de W. Schõller, “Le dessin d’architecture à 1’époque gothi-
que”, em R. Recht (ed.), Les bâtisseurs des cathédrales. Estrasburgo: 1989, pp. 226-236.
2 “Não é digno do título de arquiteto quem não é especialista em desenho e
350 representação”. W. Horman, Vulgaria, 1519.
arquitetura é um fenômeno que acompanha a emancipação do arquiteto em
relação aos outros membros do canteiro de obras.3
Ora, no início do século XIII, muitas das grandes catedrais, complexas e mara
vilhosas, já estavam construídas. Podemos pensar, então, que a complicação
crescente do gótico, a divisão e a especialização das tarefas de que fala Recht
devem ser associadas à “multiplicação dos desenhos” — mas na ordem inversa.
Visto que se sabia fazer “edifícios ambiciosos” sem divisão e especialização,
a “complicação” introduzida pela “multiplicação dos desenhos”, cuja trama
de entrelaços provém do pequeno compasso, é que foi determinante. O afas
tamento crescente do arquiteto do mundo do “contramestre” acompanha a
evolução do gótico para seu momento tardio, o flamboyant. O que marca essa
passagem consiste nisto: a perda da possibilidade de elaboração do projeto
pelo canteiro de obras. “A idéia arquitetural” não podia mais “assumir sua
forma definitiva... à medida que se ergue o edifício”. A figura do produto
acabado se impõe no início, afastando ao máximo a intervenção autônoma
dos trabalhadores. 0 canteiro perde seus modos de expressão. Bastou um des
locamento aparentemente anódino, o do desenho para além do tapume, para
que um bom número de coisas mudasse radicalmente. A título de exemplo, as
relações teleológicas ancestrais: o fim cristalizado comandando a produção de
maneira constrangedora — em vez de um devir aberto com fim flexível. Isso
já obriga ao abandono de algumas “tradições artesanais” precisas, aquelas
ligadas à competência construtiva autônoma. O desenho muito detalhado da
fachada da catedral de Estrasburgo, guardado no Musée de L 'Oeuvre bem ao
lado, prescreve uma filigrana de colunetas a ser sobreposta ao maciço cons
trutivo; seu próprio perfil alongado impede que elas sejam feitas só de pedra.
Centenas de pequenos braços de metal ligam-nas ao maciço — e provocam, no
inverno, o arrebentamento das colunetas que, até hoje, têm que ser constante
mente restauradas. 0 saber fazer dos talhadores de pedra — se tivessem direito
r
O processo que cria a relação capitalista não é nada mais que o processo que
separa o trabalhador da propriedade das condições de seu trabalho.6
O sistema das corporações desaparece em seu conjunto, o mestre bem como o
artesão, quando o capitalista e o trabalhador aparecem.7
A separação dos trabalhadores das “condições de seu trabalho”, a abolição das coer
ções corporativistas e a “coerção do sobretrabalho” já formam sistema no tempo
de Brunelleschi, o pai fundador de nossa profissão de arquiteto. Sua “vida” por
/
334 8 K. Marx, Aíat.ériaux pour Véconomie. Paris: Plêiade, 1968, t.II, pp. 369-370.
astúcias para divulgar as maravilhas da nova “ciência”, comentadas ad
nauseara pela literatura sobre a arte. Um quadro que se coloca no lugar de
uma construção existente, mistificação ótica. Ele nos ludibria — mas o ato é
cheio de ambigüidades. O quadro é cópia, mas nada impede o contrário. A
construção pode imitar um quadro, um projeto, a ponto de confundi-los.
A perspectiva, pelo próprio efeito de ilusão antecipadora, prepara a hegemo
nia do resultado a ser admirado em relação ao processo que entra em crise. Se
olhar pelo buraco preparado por Brunelleschi no centro do quadro/constru-
ção, o expectador admirativo vê toda a cena se ordenar segundo sua visão. Ele
está no centro, na base, na origem do espetáculo — e, dissimuladamente, pela
imagem do pequeno buraco no espelho (o ponto de fuga da perspectiva), ele
/
vê seu próprio olho — ou o de Brunelleschi. E o olho do mestre que põe ordem
no visível. Do núcleo da imagem (que da representação ilusionista pode pas
sar à antecipação minuciosa), o gênio nos olha — nos cede passageiramente
seu lugar, aquele para onde tudo deve convergir. A disposição clara das cons
truções colocadas conforme a trama ortogonal do piso exibe a força da con
cepção do projeto contra os imprevistos da produção livre. Como certificar
melhor a garantia da direção que pela regularidade e pela iteração dos espa
çamentos, das bases, dos fustes, dos capitéis, das arquitraves etc — o todo com
um único ponto de vista? Como soldados bem comandados e igualmente cons
tituídos, bem posicionados para o desfile correr bem.
A essência da ordem é isto: em vez da livre manifestação das partes no
todo coletivamente determinado, a submissão das partes à totalização deri
vada de um só núcleo, de uma regra impositiva. Em vez das perspectivas
múltiplas (magistralmente esmiuçadas na pintura por Panofsky — porém
mal interpretadas), a perspectiva central de um só ponto de vista. No lugar
da mobilidade dos olhares sucessivos, a imobilidade da visão imperativa. No
lugar das aventuras do caminho, a retroação normativa do fim imobilizado.
A associação da ordem e da perspectiva central não é aleatória: esta assegura a
proeminência de um só; aquela sufoca a livre expressão dos outros.
Brunelleschi importa uma e outra numa conjuntura especial. Florença
saía de um momento difícil para a elite: revolta dos trabalhadores da manufa
tura têxtil, os “unhas azuis”, o primeiro dos motins operários; depois a revolta
dos Ciompi que, na passagem do século xiv para o XV, tomaram o controle
da cidade. A construção do Duomo festejava a volta à “ordem” — momento
propício para estendê-la a outros setores, como o da construção. A arma para
garantir a nova ordem foi... a antiga ordem, ou melhor, as ordens revistas
durante sua peregrinação a Roma.
Os especialistas podem continuar a procurar causas elevadas para o retorno
às ordens: nada, mas nada mesmo no mundo das idéias legitima esse renasci
mento do antigo. As razões dadas para isso são extremamente fracas: Roma foi
a maior, a mais sensata; todos os homens cultos gostavam de seus monumentos
que tinham belas proporções matemáticas; descendiam, através dos gregos, dos
períodos mais arcaicos da humanidade (a casa de Adão!) etc.9 De todo modo,
“essa questão do porquê não preocupava muito as pessoas até o século xvil”,10
só aparece com os tratados de Freay (1650), Perrault (1676), Cordemoy (1706)
e, sobretudo, Laugier (1753). Antes, durante mais de 200 anos, ninguém ten
tou justificar-se. A eficácia prática era o melhor argumento.
E, no entanto, o clássico re-nascente foi, em boa parte, uma invenção do
Renascimento. Roma e Vitrúvio ofereciam um material heteróclito, cheio
de variantes e casos únicos. Cada arquiteto podia fazer sua leitura do texto
confuso e sem imagens de Vitrúvio e dos monumentos que lhe agradavam
— e elaborar, assim, sua própria versão. O conjunto canônico das cinco ordens,
seus componentes, detalhes, proporções, espaçamentos e usos foi obra de uma
série de tratados, cada um corrigindo e completando o outro: Alberti (1452),
Serlio (1537/47), Vignola (1562), Palladio (1570), Scamozzi (1615) etc.
O importante nessas ordens é o fato de conjugarem um ar de sistema e a aber
tura às adaptações e inovações. Era possível inspirar-se no Coliseu para a fachada
de um palácio (Rucellai, Florença, Alberti), nos arcos triunfais para as igrejas (S.
Andrea, Mântua, Alberti), no Panteão para outras igrejas (S. Maria deli’Assunta,
Ariccia, Bernini) ou bibliotecas (Virginia, Charlottesville, Thomas Jefferson) — ou
partir para combinações novas: andares com ordens sobre embasamento “rústico”
(casa Raphael, Bramante), criar ordens gigantes (mais de um andar, Campidoglio
e Vaticano, Michelangelo), sobrepor fachadas (St. Giorgio Maggiore, Veneza,
Palladio), fazê-las se interpenetrarem (St. Andrea Al Quidinale, Roma, Bernini)
etc., etc. Era possível até ultrapassar os cânones, observando, entretanto, suas
estruturas de conjunto (capela Mediei, Florença, Michelangelo) — o que foi feito
até o século xx (Perret, Abramovitz, Bofill... Niemeyer).
Assim, 0 sistema permitia, por um lado, a adesão de todos, a constituição
da linguagem do ofício por consentimento dos pares; por outro lado, aceitava a
diferença, a “originalidade”, tão indispensável à concorrência desses mesmos
pares entre si. A ordem garantia tanto a construção do clube fechado quanto
a do campo de batalha entre seus membros. Essa dupla função — tratado de
entendimento e pretexto de luta — reaparece transposta nos usos que a pintura
faz dela: decoração faustuosa em Véronèse; emblema da decadência em Man
tegna. Sua dualidade é constitutiva e seu sentido varia conforme a ocasião.
E um pouco antes:
13 Ver A. F. de Mello, Marx e a globalização. S. Paulo: Boitempo, 1999, cap. 2, pp. 51-81.
14 Ver F. Moretti, “Conjunturas Sobre a Literatura Mundial”, em Contra Corrente. Rio de
Janeiro: Record, 2001, pp. 45-64 e R. Schwarz, Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas
338 Cidades, 1977.
A forma do clássico, portanto, é realmente uma abstração das relações
sociais (R. Schwarz) — relações necessárias no regime da manufatura da cons
trução, da submissão formal do trabalho.
Por outro lado, o clássico está particularmente adaptado à economia do
capital nessa fase. O que quer ele da construção, principalmente da de luxo?
A produção de uma generosa massa de valor — que poderá voltar à construção,
para um novo ciclo, ou ir para outros setores da produção. Ora, a manufatura
clássica da construção é ideal para isso (e suas formas modernas prolongam
esse modelo). Sua estrutura dual permite produzir duas vezes a construção
— e sempre com uma composição orgânica do capital bastante suculenta. Pri
meiro, uma massa de trabalhadores com uma força de trabalho desvalorizada,
dispondo de uma técnica tradicional, faz a parte “construção” (a que resiste).
(Porém, eles podem ser escravos: a hegemonia do capital redetermina as
outras relações de produção à sua imagem; a técnica é a tradicional no local,
qualquer uma, desde que formalmente subordinada). O material custa pouco:
tijolos, algumas pedras, entulho, terra, madeira, palha — alguns guindastes
simples, andaimes precários etc. A relação Cc/Cv é, assim, das melhores e a
violência despótica do enquadramento garante um bom ritmo nas jornadas
que se tornam mais longas. Em seguida, trabalhadores mais qualificados, e
mesmo artesãos de nível, tecem a ordem sobre o “construído”. Trabalham
com alguns materiais caros (porém, pode-se trapacear com lâminas douradas
sobre estuque ou madeira) — mas gastam muito tempo. A relação Cc/Cv é
menos impressionante que a primeira — mas ainda muito vantajosa (sem
contar o que a ordem traz para a técnica de dominação: a palavra tradicional
desaparece sob o manto da ornamentação estrangeira, nada do que aparece,
cuidadosamente detalhado pelo arquiteto, vem diretamente jdojteahailvp
creio e mesmo o artesão de luxo tem a obrigação do anonimato). Resultado,
duas massas de mais-valia em vez de uma. O que mais pode desejar a avidez
do capital?
Retomo. Nada, mas nada mesmo, legitima o renascimento do antigo
— exceto a necessidade de submeter o trabalho à exploração do capital, a
necessidade de instaurar a manufatura no lugar da cooperação simples. Não
digo que o clássico bastou para tal, longe disso. Muitas outras violências
foram necessárias. Mas nosso tema é o desenho — e ele colaborou com todas as
suas forças para essa instauração e sua continuidade. O gótico tardio preparou
o caminho afastando o desenho do canteiro de obras. Ele o atribui a um per
sonagem separado dos outros trabalhadores, o arquiteto, e passa do desenho
construtivo ao desenho que começa a se alimentar apenas de si mesmo. Mas
os entrelaçamentos traçados com o pequeno compasso eram metonímias
359 ainda bastante próximas das curvas do grande compasso. Variações que torna-
vam mais complexas as operações envolvendo a especialização das qualifica-
ções; talvez elas aumentassem a massa de sobretrabalho, mas não cortavam a
continuidade com o canteiro tradicional — exceto, e isso é importante, quanto
à possibilidade de decisão.
Com o clássico, dá-se o salto, o corte. Mudam-se os hábitos, os usos, o hori
zonte e as formas, o vocabulário. Decreta-se abominável o estilo “germânico”,
dos goths bárbaros. Desacreditam-se as tradições artesanais “partilhadas por
todos os operários”, desprezam-se os acordos de canteiro — ou melhor, deseja-se
suprimi-los. Passa-se da gratidão para com os “construtores de catedrais” à
difamação dos marginais incompetentes do século xvi cujo salário, evidente
mente, desaba. Do outro lado, o do desenhista, buscam-se favores, privilégios e
isenções que o afastam das corporações. Aliás, ele não é mais mestre, formado
segundo as regras do ofício, mas vem, agora, da pintura, da escultura, da ouri
vesaria etc. Passa para a linhagem das artes do desenho, abandona a do canteiro
de obras. E ganha a simpatia dos grandes de quem merece também a gratidão.
Porém embaixo, esse baixo cuidadosamente rebaixado, a produção ainda
tinha os mesmos braços, redivididos e acompanhados por uma grande quan
tidade de serventes. A construção então se constitui de forma paradoxal. Ope
rários da manufatura, submetidos à tutela da mais-valia absoluta, forçados
ao sobretrabalho, dirigidos por pessoas que se imaginam artistas liberais, se
pensam, preparam e evoluem no interior da corporação ultrapassada e deca
dente, pressionados por baixo pelo exército de reserva dos sem-qualificação.
Esse amontoado híbrido nunca se equilibra e suas disfunções são constantes.
Sua imagem impossível nunca se estabiliza — e divide-se constantemente
em duas. Os arquitetos, se desenham as grandes linhas da construção, deta
lham somente a ornamentação, utilizando para isso todo tipo de instrumento,
esboço, maquete, desenhos em pequena escala ou em 1:1, em pergaminho ou
nas paredes. O resto, o que resiste, continua a ser utilizado como antes, sob a
responsabilidade dos contramestres. Portanto, uma certa autonomia persiste,
ainda que incomparável à da cooperação simples — na parte que deve desa
parecer totalmente. A ruptura maior se dá com a instauração do classicismo:
desenha-se, então, em latim codificado, fechado aos trabalhadores. Ele é
primeiramente uma “crença” arbitrária com regras infundadas cuja função
é cobrir as das tradições corporativistas, uma espécie de paulada psicológica
para ajudar a submissão do trabalho à manufatura. Mas as técnicas cobertas
pelo desprezo continuam a ser praticadas: a submissão do trabalho é apenas
formal. Assim, a nova “crença” prima pela ambigüidade: de um lado, brilha,
expõe-se ricamente; de outro, depende do que quer negar e que, entretanto,
ela faz viver clandestinamente. Através desse compromisso, garante perfeita
540 mente sua tarefa: servir, a seu modo, à acumulação.
Uma das características da submissão apenas formal do trabalho (antes
de sua redeterminação pelo aparecimento da submissão real) é o fato dela
exigir sua restauração permanente. Nenhuma exterioridade no equipamento
da produção garante sua durabilidade. A pressão pelo sobretrabalho deve
ser exercida sem descanso, sempre retomada. Uma das formas dessa pressão
é o desenho que solapa todo respeito em relação aos hábitos dos que devem
fornecer o sobretrabalho. A desmoralização e o desânimo facilitam a submis
são, diminuem a resistência. Donde a insistência, a repetição, a retomada da
difamação, da ironia: ridiculariza-se e deixa-se arrastar o saber anterior, pois
depende-se disso. Felizmente para o desenho, que não tem outro apoio a não
ser sua própria reiteração. Os arquitetos são, então, duplamente obrigados a
defender interminavelmente seu credo — enquanto essas condições permane
cerem. O inesgotável debate acadêmico para encontrar a norma soberana da
ordem para servir ao soberano e a hemorragia dos tratados mostram a obses
são para dar base à fé hipostasiada.
Acompanhemos os deslocamentos inseridos na necessidade da coisa: per
correm estranhos meandros. No inicio, nosso herói sai de seu domicílio natal,
o desenho emigra do canteiro de obras. Aspira a um rico futuro. Distingue-se
do canteiro, marca sua diferença. Não cola mais ao canteiro que ele enuncia,
que ele anuncia. Perambula um pouco nos arredores, quer saborear sua par
tida. Não é mais, então, simplesmente o outro do canteiro de obras, idêntico a
ele na diferença, j á tem outros amigos. Essa diferença aumentada, que acen
tua ainda mais sua separação, deve ser manifestada por ele, uma essência sua
não pode dispensar a manifestação, sem o que ela nao é essência. O canteiro é
o outro ao qual ele não é mais tão idêntico assim. Ele deve marcar esse ângulo
de não-identidade, uma relação de força obriga. Precisa diferenciar-se clara-
/
outra coisa. Mas a “aura” baseada no rastro teria ido água abaixo. E preciso
ainda, portanto, que sua diferença da diferença permaneça em seu lugar, no
mundo da construção. Mas não como retorno à presença do que fora apa
gado, o rastro não é vestígio (e eis que surge Derrida). Portanto, não se trata
absolutamente de se referir ao canteiro de obras abandonado. Ao contrário, é
o ausentamento, o não-ser aí que deve atraí-lo. Restam então duas saídas: o
“neo” ou o “não ainda”. O neo-antigo — o clássico — ou a utopia, as duas tetas
do desenho do... renascimento (palavra que reúne os dois, passado e futuro, o
passado como futuro).
Em outros termos: o desenho assume sua forma interiorizando a forma de
sua relação com o canteiro, a serviço do capital manufatureiro. Trata-se para
ele de ajudar, através de seus meios específicos, a submeter o trabalho sem
mudá-lo substancialmente. Para dominar, ele não pode ficar na dependência
de um canteiro de obras que, em si, não precisa dele (enquanto separado).
Se permanecer como desenho adaptado, como momento que apenas reflete,
ele não sairá da dependência. Duplica, pois, a separação. Vai olhar em outro
lugar. E impõe, por meio de seu poder prescritivo, um desenho que não é
sequer parecido com aquele que o canteiro teria podido desenvolver por
seus próprios meios. Cria, assim, uma dependência inversa propondo formas
incoerentes com as virtualidades do canteiro de obras e que não possam ser
facilmente absorvidas. Portanto, um desenho de uma outra arquitetura — o
clássico. Como só é apto ao que sabe fazer, o canteiro faz em seus termos tradi
cionais o que deve resistir. Questão elementar de prudência. Quanto ao resto,
a ornamentação, ele não tem nenhuma responsabilidade técnica. Pode, pois,
ser realizado por imitação, com objetos heteróclitos, com os recursos da ilusão
— prolongados indefinidamente pelo estuque e pela pintura.
545
Essas seqüências cumulativas, seus detalhes, suas proporções e espaçamentos
constituem a gramática das ordens e são bem codificadas. Pode-se discutir
sobre isso ou aquilo (se é necessário um ábaco sobre o equino, gotas ou o
tríglifo, dentículos ou não etc). Mas a estrutura dividida em cinco ordens
mantém-se permanente. Em toda parte, encontra-se essa seqüência desconti
nua de elementos que sustentam e são sustentados e que formam o todo.
Alguém um pouco familiarizado com o canteiro de obras “sente” ime
diatamente o parentesco dessa estrutura com a da progressão da construção
numa manufatura serial ideal (aliás, a função de um esquema em Kant é
assegurar o trânsito entre apercepção e conceito): acumulação ordenada da
sucessão das equipes de trabalho especializado, cada uma servindo de apoio
para a seguinte e apoiada na anterior — ou no solo. Ideal porque a técnica de
dominação do canteiro de obras atrapalha obrigatoriamente essa seqüên
cia ideal.15 Portanto, estrutura limpa, purificada — no entanto, estrutura da
manufatura. As ordens contam o que a construção teria podido ser se... Nesse
exemplo (que não deve ser generalizado), mesmo a construção real, a que
resiste efetivamente, submete-se aos mesmos princípios. Mas duas coisas
denunciam o artifício: a profundidade do pilar, fixado por considerações de
resistência e não pelas proporções da ordem, e a repetição, denunciando dis-
cretamente o desdobramento da edificação.
A “aura” está garantida. O arquiteto não é nem um louco genial, como
Gaudí (que, além disso, morava no canteiro de obras), nem um megaloma
níaco sempre tentando ultrapassar as normas, como Michelangelo, mas \im
respeitável arquiteto que conhece todos os meandros de seu ofício (Vignola).
A separação do desenho é desviada (e negada) por essa volta ao construtivo
— que, contudo, não é o efetivo. Afastamento e afastamento do afastamento.
O desenho serve para retornar — alhures mas no local, o que Foucault teria
podido identificar com uma heterotopia. Igualmente, os hermeneutas de
Vitrúvio destacam sempre o mito da casa primitiva de madeira cuja transcri
ção de pedra seria o templo grego. A função substitutiva das ordens faz parte
da memória que elas carregam desde a origem — elas são renascimento de
um antes mítico. Colocam um pressuposto do qual são a transcrição ideali-
zadora. Philibert de 1’Orme, que viveu pessoalmente a passagem do mestre
talhador de pedra a arquiteto, ainda bastante inexperiente nas sutilezas do
ofício, cometeu o lapso de desenhar uma coluna/tronco de árvore, não com
preendendo que o importante é a transcrição, a distância em relação ao verda
deiro texto. Mais próximo de nós, Artigas o fez de verdade, em um momento
348
Cada vez que o talho real não é apagado (por sua própria precisão ou pelo
revestimento), o talho aparente se desloca para a pura imagem: a arquitrave
lisa não está ali.
Ou ainda como para a colunata de Perrault no Louvre ou para o pórtico
de Soufflot no Panthéon: o “construído” mostrado é sempre digno de crédito,
embora nenhuma pedra possa suportar as pressões correspondentes. O dese
nho gravado captura, atrai convicção. Escapa às provas da realidade. Há tantos
anjos na arquitetura quanto nos tetos de Pozzo. Como no caso do quadro, a
imagem é percebida. Mas novamente a transposição se efetuará de viés.
No primeiro estrato icônico, a imagem do desenho que Palladio faz gravar
/
RASTROS16
E no século xvi que o rastro tem acesso ao status de signo e somente depois
de seu necessário deslocamento para um outro campo plástico. Michelangelo
e Tintoretto são os primeiros a utilizar os vestígios do processo de produção
como um significante múltiplo: índices de mestria, ícones de um movimento
/
16 Dentre as várias possibilidades para se traduzir a palavra “trace”, optamos por “rastro”
349 de acordo com a tradução da obra de Walter Benjamin para o português [n.t.].
outros rastros. Indica um saber que comanda, um poder que torna o canteiro
de obras heterônimo, uma regularidade oposta às aproximações típicas da
manufatura da construção.
Observemos que esses três níveis são necessários para a leitura da trama
de significações que o rastro contém. As deteriorações do tempo, se nos aju
dam no palácio Thiene, nem sempre são indispensáveis. Em San Giorgio (de
Veneza), o próprio Palladio mostra-nos os três níveis (oposição entre fachada
principal e lateral): por economia sem dúvida, mas todo ato humano é sobre-
determinado. Como em Michelangelo, apenas no terceiro nível a transcen
dência é indicada.
No nível simbólico, que as explicações embaralhadas das iconologias na
moda tecem inextricavelmente, a Ordem, mais que um universo semântico
preciso, assinala a exclusão dos que desconhecem a convenção que a funda
menta. No mito claudicante do tipo “o coríntio e a moça”, o jargão privado
serve apenas para criar a ilusão de positividade e para dar corpo à sua oposição.
ÍCONE
Mas, entre os estratos icônicos, resta-nos mencionar que se esconde uma dis
puta de interesses mais determinante. Enquanto diagrama (segundo estrato
icônico, conforme Peirce), o desenho apresenta-se como signo que teria
assumido em si as características abstratas de seu hipotético objeto dinâmico.
Este objeto implica uma racionalidade sugerida pelo jogo das proporções, dos
módulos, das modinaturas etc. e, por sua estruturação fechada, gama de rela
ções de dependência, de exclusão, de oposição. Em outros termos, o desenho
apresenta-se como um modelo para o que mais falta aos arquitetos: o saber.
Um modelo conceituai (e não apenas operatório) como aqueles que Lévi-
Strauss identifica na raiz da estrutura dos mitos.
O desenho no Renascimento pode reduzir-se, em parte, a essa função. Ele
insiste em seu papel de signo (“imagem”): presença aspirada por um alhu
res. Tem uma conformação que se impõe à mente e tende à invariância, mas
deixa fluido seu universo semântico. Ele é plausível, mas evita confundir-se
com a construção efetiva. Seu ar de eficácia relativa encontra a pertinên
cia “acolchoada” (cf. Lacan) do simbólico: emergindo da evidência, mas
autônoma em sua formação. No interior de sua quase total tautologia (todo
desenho de arquitetura se volta para a autotelia), uma artimanha o salva da
insignificância: se ele prescreve a precedência do que anula em parte seu pri
meiro emprego prescritivo (isto é, da “imagem” sobre a construção “verda
deira” que, entretanto, ele comanda), o resultado em palimpsesto preserva a
350 diferença exigida por todo conceito.
A idéia construtiva que o desenho exalta — e que nunca é a que faz a
construção resistir — é mantida num status intermediário. Por um lado, ela
se propõe como objetivaçao da estrutura formal dos termos descritivos de
uma teoria suposta existente; por outro, como esquematização da realidade
— posição intermediária que convém aos modelos. Através de algumas de suas
marcas, ela se impregna do pathos da matéria em formação; através de outras,
aproxima-se da abstração do logos. Essa pulsação própria de seu ser a predis
põe aos jogos do desejo: a modelização formal seria a ponte por onde um além
fantasmado viria corrigir a ilegitimidade do arquiteto.
E é então que intervém a possibilidade mais deliciosa — mas também a
mais exigente — do desenho; por intermédio da equação metafórica (terceiro
estrato icônico), seu pathos formal, sua imposição ao espírito toma o lugar do
logos que ele deveria apenas anunciar. Simples questão de um significante no
lugar de um outro. Exceto que o segundo significante é somente uma fabula-
ção. A metáfora torna-se então uma peça de encaixe por onde o desenho vem
a ocupar o vazio do saber desejado. O modelo que ele oferece, figura da media
ção entre teoria e realidade, cai para o lado do ídolo propiciatório... Mas o
divino logos permanece mudo. A tensão, apesar dc todo o apoio das argúcias do
talento eventual, não é suficiente para fazer surgir ex nihilo o termo ausente.
Porém, a promoção do desenho/modelo acima do esquivamento do saber
fascina. O aspecto de evidência do desenho ganha até uma aura na incerteza
de sua posição: o mistério enfeitiça. E é essa aura que garante a eficácia rela
tiva da metáfora, único aval da profissão.
Infelizmente, a claudicação que marca impede a assunção efetiva da arqui
tetura à dignidade de sujeito ao qual corresponderia por direito o domínio
lúcido do construído. Ela o condena, ao contrário, à sujeição aos mecanismos
do eu autoritário. A violência não se retrairá sob a sedução do mérito.
“Palladio” substitui “de la Gôndola” por Andrea como, mais tarde, “Le
Corbusier” apagará “Jeanneret”.
Não se brinca com a metáfora.
351 17 F. Nietzsche, Ecce Homo: como alguém se torna o que é. São Paulo: Cia das Letras, 1995.
também da verdade (questão de aparência, com freqüência) desse expediente
vicioso, o revestimento.
Porém, mesmo descobertas, essas paredes nos confundem. Como em
sobreimpressão, duas aparelhagens propõem-se à nossa leitura. A mais apa
rente, marcada pelos recuos profundos das guarnições, descreve-nos uma téc
nica erudita do talho e da junção da “pedra”, exuberante como em Giuglio
Romano, co-autor ou inspirador desse projeto.18 Embaixo, entretanto, uma
outra aparelhagem, desta vez de tijolos, mais discreta, informa-nos em sur
dina sobre o saber fazer dos pedreiros italianos do século xvi.
Dois saberes, duas técnicas. Por quê?
Por que essas “pedras” gravadas na terra dos tijolos? Por que esse palimp-
sesto?
Palladio, em seu comentário a respeito do palácio Thiene, chama a
atenção para a oposição entre o rústico do primeiro nível e o compósito do
segundo.19 Oposição radical, nítida, que assume os termos extremos na série
das Ordens e afasta as mediações, as passagens, as atenuações.
As motivações que apoiam tal oposição são claras mesmo para Palladio (ver
ainda o Livro Segundo, no início). O código das ordens, depois de Alberti, e
principalmente depois de Serlio, era de uso corrente. Desse modo, o compósito
(essa ordem “extremamente bela”, nos diz ele) só deve servir como ornamenta
ção para o andar dos senhores, como “substituto” de metáfora de sua grandeza.
E pouco — mas é tudo o de que ela dispõe para garantir sua dominação. Só
a posse assegura a supremacia, mesmo que assuma, para se tornar intocável,
todos os meandros do engodo.
Impõe-se, pois, uma dupla implicação: afirmar o ter (o poder deve mos
trar-se) mas, igualmente, tentar ampliar suas conotações. Em outras palavras,
manifestar fundamentalmente o ter (riqueza) e, por meio das aliterações, dos
espelhos e de outras farsas, usurpar significados mais apreciáveis.
Voltemos às coisas mais elementares. A fonte mais copiosa de mais-valia
é a manufatura da construção — os construtores de catedrais já sabiam disso.
O conceito bastardo de “especulação” quase sempre foi impróprio para per
ceber as questões da construção (é por isso, sem dúvida, que se fala tanto de
especulação). Uma parte imensa do que constitui a substância do ter vem do
canteiro de obras. E o que é verdade hoje era muito mais verdadeiro então,
quando os outros setores da produção eram pouco numerosos e/ou pouco
desenvolvidos. Mais ainda: é nos palácios que a composição orgânica do capi
tal é mais favorável para os que conservam a posse do trabalho morto acumu
lado. O luxo aqui, ao contrário do que diz a crítica de Veblen,22 se é ostensivo,
nao consiste em desperdício e, sim, no mais rentável dos negócios.
Qual seria então o meio mais adequado para ostentar o poder de uma
classe, se não do próprio edifício, simultaneamente fonte e quadro da riqueza?
Qual a melhor promoção da riqueza que a ostentação manifesta de sua fonte:
o trabalho condensado na construção, o esforço suado daqueles que, precisa
mente, são desprovidos da riqueza? E ainda que a proveniência da riqueza seja
outra, como não louvar essas pedras que a frutificam magnificamente?
354 23 M. Ficino, Théologie platonicienne, I, Livro vil, cap. 13, pp. 282-83.
Tudo está aí — mas não funciona.
Não falemos dos senhores: é o capital que age por trás de sua máscara. O
palácio Thiene passa, sem mudar um único de seus vestígios, do conde Marco
Antônio ao conde Otávio (e depois a muitos outros). Os palácios são muito
distintos, mas nunca personalizados: quando os senhores querem se mostrar, é
apenas sua posição que aparece.
Os arquitetos também estão envolvidos nisso. Delegados do capital, são
apenas um intermediário por onde deve passar necessariamente a explora
ção do canteiro de obras. A heteronomia a que submetem os trabalhadores
ricocheteia e volta sobre eles. Seus desenhos organizam-se em torno de uma
denegação, a que incide sobre a mutilação do trabalho que essas paredes
esfoladas mostram. Como não podem se reconhecer na figura de um dos
responsáveis pela violência, como sujeitos dessas prescrições castradoras, eles
abandonam, em toda parte, essa posição.
Tal abandono está inscrito na própria estrutura das relações que tecem
com o canteiro.
O poder que, finalmente, os arquitetos obtêm no tempo de Palladio só se jus
tifica através de um suposto saber — que eles anunciam, do qual se vangloriam,
que pretendem dominar (basta ler os tratados da época). Ora, esse saber é vazio.
Lembremos que, para justificá-lo bem, esse saber não pode ser o dos operários
(nem mesmo sua soma: apenas a síntese semicientífica do século xrx se prestará
a tal utilização). Ele precisa, portanto, vestir-se com as armadilhas do engodo.
Olhem novamente essas fachadas. O assentamento dos tijolos já segue um
desenho estranho a esse material. Mas depois, pedreiros (talvez os mesmos)
devem voltar e revestir, desfigurar o que fizeram com entalhes de uma falsa
aparelhagem, de uma estereotomia de faz de conta. Fazer e desmanchar,
construir e disfarçar: essa aparente futilidade quer, de fato, humilhar, aviltar.
Enquanto permanecer apenas como uma fantasmagoria, como uma retomada
exaustiva do mesmo inventário das ordens, o saber arquitetural só poderá
se impor através da oposição ao saber fazer operário, e sua dominação será
somente o corolário da degradação que ele impõe ao trabalho. Os perfumes
arqueológicos, por exemplo, servirão somente para marcar com desprezo os
que delas são excluídos.24
Podemos admitir que Brunelleschi ou Alberti (que, aliás, tinham outros
trunfos na manga) ainda acreditavam na universalidade e na consistência
do clássico como resposta oblíqua à carência de um saber. Mas cedo, e muito
cedo mesmo no Renascimento, desde que os arquitetos se debruçam mais lon-
25 R. Klein, “Os sete princípios da arte segundo Lomazzo”, em Aforma e o inteligível Sàc
356 Paulo: Edusp, 1998.
porque tem a matéria sob a forma dos meios de produção e/ou de tesouro. E
mais: desse ter, apesar do paradoxo, ele quer fazer seu ser. Se não toca a maté
ria com suas mãos, é porque comprou outras mãos. Por outro lado, se o traba
lhador a toca, sua mão se torna a mão de um outro.
Não há mais metáfora aqui. Seria necessário, talvez, falar de significantes que,
por seu vazio, por sua opacidade, por sua tolice, estruturam separações com seu ser
de pura oposição. Significados não se infiltram neles senão por eponímia (porém
com uma eficácia perigosa: eles imobilizam o contraditório na oposição, reduzindo
a diferença a uma questão de + ou de —, abismo da luta de classes). A metáfora
supõe a articulação significante, impedida aqui pelos efeitos da denegação —
exceto para cair no chavão. As portas abertas são fechadas, como as da vila Barbaro.
Parolles — Nay you need not to stop your nose, sir; I spake but by a metaphor.
Clown — Indeed, sir, if your metaphor stink, I will stop my nose; or against
any man’s metaphor. Prithee, get thee further.26
ABERTURA
Que uma porta serve para passar, é uma evidência que pode enganar por
excesso de bom senso. Funciona principalmente como fronteira, sobretudo
/
a6 “Parolles — Vocc não precisa assoar o nariz, senhor, pois falei por uma meláfora.
Palhaço — Na verdade, senhor, se sua metáfora for desastrosa, assoarei meu nariz, assim
como o farei para a metáfora de qualquer outra pessoa. Mas peço-lhe que prossiga”. W.
Shakespeare, All’s Well that Ends Well, Act v, sc.II, 10-15.
357 27 Ver J. Delumeau, Rome au Xvie siècle. Paris: Hachette, 1975.
o que protege ela? Uma sociedade fortemente organizada (Roma), cuja socia
bilidade interna é baseada num sistema de trocas regulamentadas, na trama
de relações culturais e produtivas que mantêm a cidade em sua singularidade
própria e lhe garantem uma identidade perene. Mas para quem deve a Porta
marcar tudo isso? Para os que entram na cidade ou para os que dela saem?
Roma é uma cidade de dupla fronteira. A mais próxima é a que Pio IV. err
1561, esforça-se por remanejar; a outra é a do mundo cristão. Porque Roma
irradia muito além de suas muralhas. Chega a Londres, a rebelde; a Madri,
a arrogante. Quem entra em Roma vem para admirar e aprender; quem sai
dela exporta a palavra e o poder da capital. O único artigo exportado continue
sendo, no fundo, a romanidade\ fora isso, tudo o que atravessa a Porta serve
para o consumo imediato: alimentos, vestuário e pedras para os palácios em
construção. Certa de seu poder e de seu charme, a cidade se deixa percorrer
livremente, envolve todo mundo com sua eficaz alquimia. Pio IV, Clemente
VII e Sisto V organizam as vias de acesso aos pontos cruciais da cidade; o brilh:
e a riqueza da capital soberana, seus espetáculos e suas orações, os favores ofe
recidos e as diretrizes dadas, convertem peregrinos e embaixadores em repre
sentantes de Roma, de sua Lei.
Quando Michelangelo foi encarregado do programa da Porta (1561), a
quem dirige seu projeto? Aos peregrinos que entram ou aos emissários que
saem? Sabemos que produziu diversos estudos, particularmente para outras
portas de Roma e, também, para o exterior da Porta Pia; mas só a parte
interna — olhando a cidade — foi executada. Acaso ou opção, é aos que partem,
portanto, que ele se dirige, aos novos representantes da capital do mundo cris
tão. O que deve compor em seu projeto é, à sua maneira, um último discurso,
uma espécie de recomendação final: é, verdadeiramente, o epílogo, no sentia:
retórico do termo, de um percurso cujo sentido está inteiramente relacionadc
com a romanidade em glória.
Epílogo: rerum repetito, posita em affectibus. Repetir e emocionar.
nem fim. E a norma, a normalidade, a tutora inevitável dos deveres e dos pen
samentos. Desconhece a singularidade, o sujeito do hic et nunc, o reduz à indife
rença, o acostuma à legalidade. Da Lei, pois, é preciso ocultar os fundamentos.
O clássico, como mostrou Wõlflin, é todo adição. Ora, a adição supõe a
redução do diverso ao mesmo; o adicionar tem por corolário a redução isotó-
pica: retorno, a mesmice, recorrência; redundância do clássico: a totalização já
está inscrita em seus elementos. Por outro lado, se o Clássico remete, de certa
maneira, à Lei,28 a Lei pode, por sua vez, utilizar o Clássico como metáfora.
Bastará que seja retomado ou evidenciado seu tema comum, isto é, a anteci
pação da mesmice. A ordem Clássica e a Lei desconhecem seus fundamentos
e exigem em comum uma necessária isotopia. Paradoxo: a identidade abso
luta, exclusiva, deve basear-se na indiferença generalizada.
O desenho para a Porta Pia, conservado na Casa Buonarotti, é percorrido por
uma rede de linhas que atravessam e seccionam os constituintes desenhados
(frontão, colunas...). Essa rede constitui uma espécie de trama feita de linhas
horizontais, verticais e oblíquas, cuja resultante gráfica confunde todo o dispo
sitivo arquitetural representado num conjunto linear homogêneo. O desenho
desfaz a oposição dos diversos componentes num mesmo plano gerado pela
trama. A diferença (a matéria arquitetural representada e referida) é trazida ao
mesmo nos termos de um retículo elementar. Como mostra um outro desenho
da Casa Buonarotti, a mesmice, nascida de uma simetria cujo eixo é sintoma
ticamente dissimulado, devora sistematicamente a diferença que, no entanto,
traz ao ser a “riqueza” plástica da Porta feita arquitetura,
Rerum...
359 28 Ver R. Barthes, O grau zero da escrita. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
uma segunda que, claramente, impõe sua “superioridade” em dórico. Barbárie
depois a razão. Quanto à parte superior da porta, nela se sucedem cinco ele
mentos diferentes: o lintel quebrado, o cimbre de madeira, o friso direito, o
arco cortado e o tímpano triangular. Não é mais uma porta que se atravessa,
mas um amálgama de portas: confundidas, sobrepostas, incrustadas.
Rerum repetito — síntese do discurso da cidade — retoma o tema da Lei e
do que é excluído por ela. Se a desordem e a barbárie se situam além da aber
tura, significadas pelo rústico da primeira porta, necessariamente a ordem
dórica enquadra o rústico.
POSITA EM AFFECTIBUS
Se, para a praça do Campidoglio, Michelangelo opta sem hesitar pela primein
solução (maniera moderna), a questão se apresenta de forma mais complicada
para a Porta. Ele não faz deliberadamente, como no caso da fachada do palá
cio dos Senadores, uma abertura disposta segundo as exigências da maniera
moderna. De fato, visto da rua Pia, o espetáculo parece ser do mais puro clas
sicismo; quando se aproxima dele, a transição estilística torna-se evidente. A
franja goticizante dos pináculos, no cimo da obra, faz transição entre a mura
lha de Aurélio, romana, e a porta propriamente dita, renascentista. Além disse,
a hierarquia frontal dos três planos: 1) antigo, 2) pseudogótico, 3) renascentista
inverte o percurso da cronologia. Não é, aliás, a primeira vez que Miche
langelo nos faz percorrer o sentido da história de forma inversa. Inversão e
conformità imbricam-se como na capela Sistina: Michelangelo sempre evita
as soluções simples. Vejam, igualmente, como a conformità do Campidoglio
é nuançada pelo plano trapezoidal da praça. Para a Porta, outros elementos
ainda constroem a transição, como a nítida solidez da parede (de tijolo) sobre
pujada por suas ameias, lembrando, de certa forma, a muralha antiga. Mas
se há também uma terceira solução comumente utilizada, não é ainda a de
Michelangelo: este sempre fugiu das regras. Desse modo, à seqüência romano,
pseudogótico, clássico, sucede... 0 rústico (bestiale). Portanto: 1, 2, 3, ..., o. A
FISSURA
Entremos mais profundamente nos meandros da cisão. Esse face a face entre
desenho e canteiro de obras (que, juntos e numa autêntica relação reflexiva,
formariam a substância verdadeira do construir) os imobiliza e degrada.
Paradoxalmente, o canteiro, momento do agir, parece ser o pólo passivo,
inerte, submetido à “atividade”, à determinação do desenho. Este, ao contrá
rio, parece ser o pólo positivo, motor: coloca seus efeitos na disponibilidade do
canteiro. Não sendo o agente de sua própria articulação, o canteiro é colocado
sob a tutela de uma necessidade, para ele mecânica, aquela cuja razão vem de
fora, do desenho, e assume isso com indiferença, apatia. Entretanto, o dese
nho, pressupondo necessariamente o canteiro de obras como sua própria con
dição, cai também no imbroglio. Apesar de seu porte “ativo”, sua razão de ser
o que é e sem o qual não é nada, o canteiro de obras permanece-lhe exterior:
também ele cai no regime da necessidade mecânica. O processo indispensável
de reflexão de um no outro, cujo dinamismo os arrastaria à superação de sua
oposição, permanece bloqueado pelo fato de que o capital vive de tal bloqueio.
Desenho e canteiro não retornam a seus pressupostos (respectivamente, can
teiro de obras e desenho): o desenho “ativo” esquece seu momento “passivo”,
seu condicionamento pelo canteiro de obras — ao passo que este, nunca se
colocando como tal pressuposto, esquece sua própria “atividade” acima do
projeto. Nada disso impede que, na visão comum, a “necessidade”, que assim
se tornou mecânica e cega, seja reservada ao canteiro (que, desse modo, se
torna objeto da “ciência” da organização do trabalho) e a “liberdade”, reser
vada ao desenho (que passa a ser objeto dos exercícios de criatividade). Uma e
outra se arruinam — uma no empirismo limitado, a outra no aleatório.
O desenho, tal como é na cisão, permanece na pré-história de uma auto
consciência do construir. Vê o canteiro de obras como um outro e não como
seu outro, com o qual seria idêntico na diferença. Mesmo assim, representou
um imenso progresso. As considerações de Lévi-Strauss sobre as maquetes
e modelos reduzidos são válidas para ele — ao menos como possibilidade. As
vantagens da abstração que ele mobiliza (no sentido positivo) não podem e
não devem ser negligenciadas. O que ele permite como antecipação do obje
tivo, como esboço do resultado, como economia do fim — e, ao contrário, como
formatação do programa, como correção e complementação da demanda é
mais que respeitável. Se não falo sobre esses aspectos é porque são muito bem
tratados nos textos e no ensino. Entretanto, tudo isso continua contaminado
pelos efeitos da cisão. As implicações do desenho separado são inúmeras e
produzem expectativas por toda parte, muito fortemente ancoradas no que se
363 insiste em chamar de “estética” arquitetural. O slogan da profissão — arqui-
tetura é construção mais alguma coisa — diz muito sobre isso sem dizer nada.
pois o que falta à construção é exatamente o desenho, mas o seu. Porém, isso e
inadmissível. Pede-se ao arquiteto, o “mais”, o supplément cL'ame. E eis que se
abrem outras bifurcações: porque o supplément d’ame que cobre a alma proi
bida não pode ser senão a “parerga”, ornamento, decoração, falsa aparência
— quando o que falta é a aparência, mais exatamente, a aparência da aparência.
Avancemos passo a passo, a coisa é escorregadia.
Loos decretou que o ornamento é um crime — e até Adorno o felicitou
por isso. Deixemos, pois, a decoração clássica ou acadêmica de lado agora.
Porém, onde classificar a rigidez dos volumes de Loos, a arquitetura toda
branca e lisa dos primeiros modernos, a austeridade puritana das formas que
ele pregava? Esta sobriedade, como sempre e como todas as outras decorações
clássicas ou barrocas, cobria o bordel do construído. Também é ornamento,
maquilagem de pureza. Sodoma também — cujo nome indica práticas fora
da pintura — vestia-se de branco. E dizer desenho separado é dizer decora
ção — supplément d 'ame. O que irritava Loos no ornamento é que este é a arte
popular por excelência. William Morris o havia dito por toda parte, o primeirc
Van der Welde o repetia na vizinhança. A mão trabalhadora que deixa seu
gesto técnico derivar no prazer de si mesmo — tal é a essência do ornamento.
Ele é sempre, se autêntico, o alargamento, a “didatização”, a explicitação, o
comentário desse gesto. Enquanto tal, como dizia Morris, é a expressão da
alegria no trabalho (o que pressupõe uma boa dose de liberdade). É escanda
loso, evidentemente; só faltava isso! Alegria no canteiro de obras! Acabava-se
de sair do eclelismo, cuja inocência distraída baseava-se nas competências dos
operários, exaltava-as mesmo em ornamentos construtivos, dando força, desse
modo, às reivindicações do sindicalismo revolucionário. A mão trabalhadora
torna-se perigosa quando, através de seu canto no ornamento, apóia a exigên
cia operária de autodeterminação, a exigência daquele momento. É necessário
que ela se dissipe... atrás da decoração do não-ornamento. Depois da derrota
desse sindicalismo e da acomodação da década de 1920, foi possível voltar às
formas ostensivas de ornamento, até o kitsch pós-moderno, seguindo o declive
do aniquilamento da luta operária. Mas cuidado: a mão trabalhadora agora é
exclusivamente a do arquiteto. Ela se torna eufórica em torno de suas tramas,
alinhamentos, módulos, dos seus jogos de linguagem (a agonística aqui é tris
temente válida, Sr. Lyotard), da elegância ou da brutalidade de seus traços: seu
“ego” explode como fogos de artifício. A plástica oficial tornou-se a expressão
sarcástica, depreciativa e rancorosa (sem saber disso) da liberdade proibida ao
trabalho. E uma das razoes do masoquismo que a leva à autodestruição — por
ironia (pós-modernismo) ou por catastrofismo (desconstrutivismo).
364 Entretanto, se o desenho separado se desvia rumo à ornamentação por
hipóstase do gesto projetual, é a aparência que continua proibida. Precisemos.
No fim da lógica objetiva, na passagem à lógica subjetiva, Hegel escreve:
O rastro começa como vestígio, índice do que produz no produto. Saber, saber
fazer, instrumento, gesto etc. manifestam-se em seu resultado — se for conve
niente, junção de causa e efeito, concordância entre meio e fim. Para que ha] a
índice, é preciso captar uma relação. Uma mancha, quando não se consegue
atribuir-lhe uma causa, é somente uma mancha. Sempre lhe é necessário
um interpretante, para continuar com Peirce. Para que haja rastro, deve-se
ir mais longe: é preciso, primeiro, que o índice se abandone à sua razão de ser.
que o gesto do fazer vá em direção a seu fim — mas também que a marca da
colher do pedreiro mostre sua adequação à parede em devir, que a viga evi
dencie sua resposta à função de sustentar. Em resumo, que o índice exponha
às festas... E por isso também que só ele é o porta-voz do sujeito cujo tempo
serve de coluna vertebral. Esse tempo pode ser o da palavra — e ele é “shifter”
— ou aquele ultrapassado do registro do gesto feito. Porém, para que o passado
veiculado seja o de um sujeito, é preciso que o índice passe para o plano do ras
tro. Repito — aquele que é testemunha de ação intencional. O que, mesmo assim,
não lhe assegura uma virtuosidade especial. O ventre de Sileno é um rastro
— mas não do melhor gosto. Ora, na construção séria, contam apenas os rastros
positivos, exatos na economia do todo. A arquitetura tem uma limitação que
pode engrandecê-la. Não tem como entregar-se à ironia, ao sarcasmo, à denún-
/
cia, à crítica etc. E afirmativa — ou nada. Não tem a distância que possibilita pro
por retratos não atraentes da sociedade, como a literatura, a música ou a pintura.
Porque ela se imbrica em sua produção, verifica em si mesma as relações de
produção. Em termos já antigos, liga em sua carne infra e supra-estrutura, como
numa síntese do todo social. Mais, seu papel na economia política é enorme.
Donde a dificuldade da crítica arquitetural, obrigada incessantemente a ir de
um a outro destes universos — todos submetidos à determinação da economia
que os “sobredetermina em última instância”. A crítica unicamente “supra-
estrutural” é sempre vesga. Dessas considerações decorre o postulado número
um e essencial para mim: só é válida a arquitetura que corresponde a princípios
justos — portanto, de razão — na produção. Diante de situações detestáveis, a
575 arquitetura não pode ficar na crítica: sua única missão justa é a alternativa. As
boas intenções “supra-estruturais”, que não tocam os fundamentos, são talvez
simpáticas, generosas — mas sem peso efetivo. Voltemos então ao rastro, àquele
que corresponde à positividade inevitável da arquitetura.
A única positividade que pode convir ao conceito global de arquitetura
é a da racionalidade livre da produção. Evidentemente, já hoje, aqui e ali,
emergem seqüências operativas racionais. Mesmo aviltada, é preciso que a
construção resista. São esses intervalos de razão que o rastro notifica — e que e
necessário, pois, escamotear.
Sempre considerei a idéia da obra autônoma uma bobagem. Somente o
sujeito pode pretender ter autonomia. E ele não passa senão por rastros, sua
enunciação objetiva pelo enunciado bem conduzido; para considerá-lo, para
avaliar sua conveniência, é necessário um esforço hermenêutico, superficial
ou rigoroso, segundo o alvo da leitura. Isso necessariamente através dos ras
tros: os documentos, as memórias cristalizadas do processo de produção do
sujeito, barrado ou não, do corpo produtivo. Desse modo a obra, no melhor
dos casos, se for válida, atesta a autonomia desse corpo.
O deslizamento da autonomia do sujeito para o objeto tem causas profun
das. Examinemos de perto. A espacialização que nega o tempo, que apaga os
rastros que aqui remetem à produção por manipulações semióticas, convém
perfeitamente ao que, em toda parte, nos cega, a fetichização da mercadoria,
a ocultação de alguns rastros da produção e atribuição de valor à coisa. Todo
sistema baseado na apropriação da mais-valia busca a reificação — conceito
sintomaticamente marginalizado. O que pode ser mais oportuno que a cons
trução sem história (não falo dos “monumentos” históricos, é claro), auto-
referenciada, fechada em seu espaço, centrípeta — em resumo, “autônoma”,
isto é, autista? Isso é mais apreciado ainda à medida que as construções estão
em toda parte e que é por seu intermédio que crescem as mais atraentes mas
sas de mais-valia.
Acompanhem o encadeamento da coisa. Para dominar o corpo produtivo,
instaurar a manufatura, o desenho se separa, se coloca à parte. Ele desdobra a
separação descolando-se do efetivamente construído para confundir a força de
trabalho, enfraquecer seu saber e seu saber fazer. Por conseqüência, desenha
construções artificiais que não correspondem à realidade do corpo produtivo.
Este não deve deixar nenhum vestígio de intervenção em nome próprio na
obra-mercadoria, nenhum vestígio do tempo de elaboração no objeto que
finge ter valor por si mesmo. Senão o efeito fetiche se esvai — e é a ruína. Fal
tam ainda alguns passos. Voltaremos a isso.
Detenhamo-nos um pouco sobre os ajudantes plásticos da fetichização
(cujo universo, é evidente, tem outros trunfos).
576 A plástica destemporalizante, a que dissolve a sucessão lógica sob a simul-
taneidade fascinante tem graves implicações. O tempo ilógico é uma duração
sem consistência. Toda memória respeitável se dá, pelo menos, uma estrutura
narrativa mais ou menos consistente. O conceito exige um tempo lógico — e
uma lógica operando no tempo. Sem isso, só há deriva de sensações. Paulo
Arantes tratou bem dessas questões.33 A espacialização destemporalizante
elimina a mediação sob o imediato, o advindo sob o em si sem memória, a
produção sob o produzido. Ela tem seus motivos: após ter vendido “livremente”
/
E importante insistir nesse aspecto, dado que toda nossa crítica decorre
dele. A atividade arquitetural, desde o Renascimento pelo menos, contribui
fortemente para a valorização do capital investido na construção. Desde os
primeiros passos da projetação, o horizonte do valor comanda. (Evidentemente,
há um outro projeto possível. E já se anuncia em torno do Movimento dos Tra
balhadores Rurais Sem Terra (mst) no Brasil — voltaremos a isso. Porém, aqui,
falo da arquitetura chamada normal — aquela que devemos decompor).
Mas dizer e repetir isso parecem minha inútil obsessão, pois hoje tudo
se torna mercadoria, tudo é concebido como mercadoria — ou seja, crista
liza-se em torno do valor. E sair de seu mundo, depois da falência da farsa
do socialismo, parece um sonho utópico. Mas esquecer isso, fazer de conta
que se trata de uma constante inofensiva, desconsiderá-la porque dema
siado universal, é avalizar a usurpação sob o pretexto de que ela existe em
toda parte. A prática surda à evidência prolonga-a sem remorsos, mas não
evita a co-responsabilidade. E isso apesar dos vôos da crítica, que sublima os
estigmas da irracionalidade indispensável à pilhagem em traços de beleza
— ou que, desvirtuando completamente seu conceito, exalta a “liberdade”
de criação dos “egos” cheios de arrogância dos encarregados de encontrar
idéias novas. Esse movimento cego atinge o clímax quando o uso confirma
a vocação (mercantil) da produção: em torno do Banco de Hong-Kong ou do
Guggenheim de Bilbao, um outro templo do valor como se tornaram todos
os nossos museus.
O procedimento tecnológico próprio de todo projeto derrama o peso da
causa final (aqui, o valor) sobre o conjunto do processo. A mercantilização
do construído não é uma etapa, não acontece após a construção e a projeta
ção — mas se infiltra por toda parte, em todas as etapas. Esse fundamento é
pressuposto desde o início. E, nas atuais condições de produção, a arquitetura
ocupa uma posição estratégica. Sendo mediação, contém em si os extremos, a
579 programação usurpadora e o fazer acéfalo, o desenho exterior e a realização
submissa. Mas sua mediação é opaca, afastadora: mantém os extremos separa
dos e é um agente de tal separação.
Evidentemente, tudo isso é mais ou menos verdadeiro em toda parte, é
próprio do sistema capitalista. Mas acredito que um dos méritos deste texto
é o fato de se propor a acompanhar a aplicação dessa universalidade na par
ticularidade da produção do construído. Acompanhar no detalhe, às vezes
bastante modesto, os confrontos variados e específicos que, aqui, dão forma
à luta de classes. A posição operária é determinada como em todos os luga
res: pela não posse das forças e dos meios de produção a que, no entanto, ela
deve servir. Tal sujeição passa por meandros incessantemente reconduzidos
ou renovados e típicos, em grande parte, de cada setor da produção. Um dos
erros mais graves do pseudo-socialismo resultou do desconhecimento disto: só
a posse coletiva dos meios de produção não basta para transformar de modo
eficaz as relações de produção. Essa posse pode coabitar com a sujeição, com
formas despóticas de organização do trabalho — e deslizar para o discutível
“capitalismo de Estado”. Sem modificações radicais da organização do traba
lho, não há superação possível das milhares de figuras da dominação. Donde a
necessidade absoluta de conhecer a fundo as engrenagens, pequenas ou gran
des, que escondem o universal da exploração na particularidade.
Depois da elaboração deste texto, no interior do laboratório de pesquisa
que eu dirigia em Grenoble (Laboratório Dessin / Chantier), estudos de histó
ria demonstraram amplamente a constância desse processo desde (aproxima
damente, digamos) o século XV e sua permanente adaptação às condições da
luta de classes. Esboçamos uma outra história da arquitetura, vista de baixo (e
que, talvez, tivesse o aval de Marx). As grandes transformações da arquitetura
parecem, então, obedecer menos às hipotéticas kunstwollens e mais a etapas
de confronto das classes na produção. A história do movimento operário não
f
pode ser separada dos refinados debates estéticos. E essa montagem histórica,
onde se embaralham domínios tradicionalmente separados (morfologia, eco
nomia, organização do trabalho etc.), que devemos desmontar se, realmente,
quisermos mudar alguma coisa.
E necessário apenas que ele saia de seu eu, que abandone a posição demiúrgica
do criador diante de uma hylé pretensamente amorfa para chegar à posição de
sujeito no espírito objetivo. Isto é, aqui, sujeito do que é objetivamente efetivo e
ativo no corpo produtivo — o coletivo — seu saber, seu saber fazer e seus materiais.
Ao invés de comandar em posição de necessário desconhecimento, pois seu pen
samento é exterior, mergulhar na coisa e levá-la à existência da melhor maneira
/
37 P. E. Arantes, Hegel, A ordem do tempo, op. cit., pp. 193-194. As passagens entre aspas são
385 de Hegel.
regressivo do projeto sob o domínio do capital tem aqui seu ponto de ancora
gem: esse componente do trabalho, de unificação das tarefas, interpõe-se entre
o trabalho produtivo e o produto, bloqueia a autonomia da relação entre a ação
e seu objetivo, entrava, impede que o ato se torne o ato de um sujeito. Somente
os que têm olhos para ver e não veem podem dizer que a assinatura do arqui
teto representa o sujeito da obra; nenhuma identidade do sujeito e do objeto é
mais possível aí, desde que o capital se apropriou do “meio-termo” e o modifi
cou à sua imagem. Ao contrário, há degradação, des-subjetivação, recuo do “re
unificado”; não se pode passar liricamente do desenho ao propósito e ao dasein.
Entre o projeto e o projetado, a força produtiva do trabalhador do trabalho
/
parcelar torna-se meio. E ela — e somente ela — que, objetivamente, faz a pas
sagem de um a outro. E então:
O fim se revela ser apenas o meio: inversamente, o meio se revela ser fim.58
Hegel parece aqui, como observa o jovem Marx, pressentir a economia polí
tica. No mau infinito do fim que se torna meio (para a realização da mais-
valia, da mercadoria) e do meio que se torna fim (para a extração da mais-
valia), nessa viravolta da relação teleológica reside toda a astúcia do processo.
Porque a mola fundamental não é o produto unitário próximo — casa, palácio,
escritório —, momento transitório e passivo do capital, mas a recondução do
meio como fim, momento ativo do capital, a exploração contínua do corpo
produtivo. Imediatamente após o fim de um canteiro de obras, o promotor
imobiliário lança um outro.
O projeto opera nessa ambigüidade da relação teleológica: no sentido da
ida, configura o objeto a ser construído; no da volta, aquele que faz do meio
o fim, ele é documento prescritivo. O que deveria ser “razão agente” torna-se
desprovido de razão: a razão implica, como momento, a consciência de si. O
projeto toma o lugar dessa consciência, os que trabalham (o “sujeito”) não
são os que decidem quanto à forma (do “objeto”), sua identidade é falseada.
O projeto é retirado, subtraído, proibido aos “meios” para que não se tornem
duçao por seu próprio fim, o pro para onde ducere. E tudo isso que deve ser
corrigido, caso se queira mudar alguma coisa.
Entre as duas citações, Hegel associa o mecanismo àquilo que tem uma causa
apenas eficiente — e o teleológico, ao que tem uma causa final. Tudo isso faz
de nossa manufatura um ser híbrido, monstruoso. A causa final hegemônica é
o valor, na ótica do capital. O projeto exterior confirma a não autodetermina-
t
[...] da relação entre as diferenças e seu ser, determinados uns pelos outros, a
forma (a teleologia) distinguiu a unidade refletida em si, um determinado
em si e para si e, portanto, um conteúdo.42
Idem, p. 52.
Idem, p. 76.
Idem, p. 72. Ver, a respeito, J. Derrida, La véritê en peinture. Paris: Flammarion, 1978.
Immanuel Kant, op. cit., p. 88.
Idem, p. 78, nota 64.
Idem, p. 80.
Idem, p. 11, ed. fr.
Idem, p. 82, nota 73.
592 Idem, p. 251-256.
A finalidade pode ser sem fim “na medida em que não pomos as causas desta
forma em uma vontade”,54 nos diz Kant. Cheguemos um pouco mais perto:
“O gosto”, diz ele, “enquanto faculdade de juízo subjetiva contém um princípio
da subsunção, mas não das intuições sob conceitos e sim dafaculdade das intui
ções ou apresentações (isto é, da faculdade da imaginação) sob afaculdade
dos conceitos (isto é, o entendimento), na medida em que a primeira em sua
liberdade concorda com a segunda em sua conformidade a leis”.55 Ora, o “fim é
o objeto de um conceito, na medida em que este for considerado como a causa
daquele (o fundamento real de sua possibilidade); e a causalidade de um con
ceito com respeito a seu objeto é a conformidade a fins (formafinalis)” 56
Para o juízo de gosto, portanto, só a aparência de finalidade conta (sem
examinar se essa aparência é uma aparição efetiva) e, ao contrário, é impor
tante que não se verifique se a essa finalidade corresponde ou não um conceito.
A imaginação que fabrica a beleza concorda somente com a “legalidade” da
faculdade dos conceitos (o entendimento), isto é, com a abstração de uma fina
lidade, seu fantasma. Ela deve parecer ter uma finalidade — mas não a ter.
Não se trata aqui de discutir a pertinência do conceito de belo defendido
por Kant. Mas apenas de sublinhar seu status isolado, separado. Lembremos
de que talvez se trate da estética mais difundida depois de Ficino e do neo
platonismo. A venustas é totalmente auto-orientada e, por ser pura, nunca
deve aproximar-se demais da soliditas nem da utilitas (ver a oposição entre
a beleza “livre” — Pulchritudo Vaga — e a beleza “simplesmente aderente”
— Pulchritudo Adhaerens 57 Embora Kant reconheça que
54 Idem, p. 65-
55 Idem, p. l33~134-
56 Idem, p. 64.
57 Idem, p. 75-
593 58 Idem, p. 76.
No entanto, se é possível isolar no objeto o que corresponde a soliditas (a
idéia construtiva) e a utiiitas (o funcional), é impossível, em contrapartida,
fazê-lo em relação a venustas. O próprio Kant está convencido disso — e o mos
tra quando, a respeito do ideal de beleza, afirma que este só pode ser, só pode
existir se “em concordância com esses fins” — portanto, “aderente”. E escla
rece (o que para nosso propósito é essencial) que “somente aquilo que tem o
fim de sua existência em si próprio [...] é, pois, capaz de um ideal da beleza,
assim como [...] do ideal de perfeição”.59
Ora, é exatamente isso que será a justificativa número i do desenho de
/
arquitetura, dar corpo ao que, em si, não tem. E venustas que fornecerá a des
culpa para o desenho separado, separador. O projeto, necessário para reunir
o “corpo” produtivo que ele ajuda a separar, recupera sua missão essencial de
uma aura prestigiosa: encarnar a beleza — que os serviços do entendimento •>
sua figura central, o juízo) oportunamente separaram da utiiitas e da solidita.:-
Separado, entretanto, o conceito de beleza permanece desesperadamente
vazio. Façamos um exercício um pouco artificial mas esclarecedor. Retome
mos as definições de Kant sobre a beleza e proponhamos um enunciado posi
tivo para os “sem”:
í. Com não-interesse.
2. Com não-conceito.
3. Com não-representação-de-um-fim.
4. Com não-conceito.
Quatro juízos infinitos, na terminologia de Kant e de Hegel. Ou seja, a inde-
terminação total. O que é simplesmente não-isto pode ser qualquer coisa
que não isto. Não-branco é toda uma gama de cores, de tonalidades etc (é
somente quando o não-ser é refletido, quando à negação segue uma outra
que isso muda).
Tais juízos estão na base da arte separada: a arte plástica é não-artesa-
nato; a arquitetura separada, não-cooperação simples (é quando a pintura se
torna não-não-artesanato, quando ela nega o que nega efetivamente o arte
sanato — a corporação, a rotina, a exploração etc. —, quando a pintura se põe
como trabalho-artesanal-livre, que ela produz seu verdadeiro conceito. Do
mesmo modo, somente quando negar o que nega a cooperação simples — isto
é, quando negar a manufatura subjugante do capital —, quando se puser comc
cooperação manufatureira livre é que a arquitetura produzirá seu verdadeiro
conceito. Só que não há trabalho livre se não forem todos livres. A arte e a
arquitetura vivem o adiamento de seu conceito. O tempo presente dos ver-
394 59 Idem, p. 78
bos, quando falo de pintura, quer dizer apenas que, nesse domínio, já há uma
certa consciência de si.
O distanciamento dos arquitetos em relação à cooperação simples para
avançar como elite )á foi bem estudado.60 0 que tento apenas sublinhar aqui é a
negatividade estática, sistematicamente não superada, que a constitui — e a esté
tica vazia que disso resulta. Só a forma da finalidade é solicitada. A beleza ade
rente é proibida em geral, pois a finalidade efetiva, o obj etivo hegemônico deve
permanecer excluído. Ao contrário do que diz Kant, a arte do trabalho verdadei
ramente livre será aquela que tiver toda a razão de ser em si, será, pois, conceito,
simultaneamente livre e necessária (essas noções, separadas em Kant, identifi
cam-se em Hegel sem perder sua diferença), portanto “bela” e finalizada. E se é
universal e necessária (digo: ‘se’), é porque a beleza é simultaneamente o eco do
trabalho e da linguagem — as duas bases de tudo o que é humano.
Voltemos ainda um pouco à separação entre fim e meios. Esses meios,
^xorçaa ,msèíü sAitrp âLteiiáisrparecenr ái ,~coniu
dados indiferentes que o projeto configurará de fora. Quase todo projeto
entra em oposição a eles: a mão-de-obra é ruim, o material é decepcionante
etc. O arquiteto, com freqüência, fica frustrado com “sua” construção. Ora,
esses meios são o que são — bons ou ruins — porque foram postos como tais
pelo “espírito objetivo” — por todas as determinações do modo de produção,
particular mente pelo da construção. Eles não são “dados” mas, sim, uma das
formas objetivas do mesmo conteúdo, o processo que implica — como se não
fossem senão momentos separados, como se não se identificassem, como se
cada um deles não fosse a totalidade — projeto, meio e fim. Esses dados falhos
são o retrato exterior do projeto — e inversamente. Os materiais têm uma his
tória, são tais ou quais em função de uma conjuntura sócio-econômica, foram
produzidos, circulam etc. A mesma coisa a respeito das divisões das especia
lidades, níveis de competência e formação da mão-de-obra. A mesma coisa
ainda em relação às máquinas e ferramentas. E a mesma coisa também para
o projeto. (A manufatura no Brasil é predominantemente serial e, na França,
é heterogênea. O custo da força de trabalho é a principal causa: no Brasil, o
SMIC — salário mínimo interprofissional de crescimento —, é quarenta vezes
inferior. Ora: os projetos, os detalhes, a plástica etc. trazem a marca dessa
diferença). Projeto e meios pressupõem-se mutuamente — ainda que isso seja
inconsciente. A um determinado tipo de projeto corresponde um determi
nado tipo de meio, no interior de uma determinada conjuntura sócio-econô-
6o Ver, por exemplo, Paulo Bicca, Arquiteto, a máscara e aface. São Paulo: Projeto, 1984.
395 livro que apresenta idéias bastante próximas das nossas.
mica. O objetivo que o projeto anuncia já está inscrito nos meios. Nos meios
inscrevem-se os possíveis, isto é, aqueles únicos que podem tornar-se efetivos.
O projeto que tentar ir além será trazido de volta aos possíveis pelo maldoso
empresário. O arquiteto pressente o que foi feito com os meios (e, portanto,
com ele próprio), e o demonstra por sua própria inadaptação (que encontra,
assim, uma motivação positiva dessa vez). Mas nenhuma mudança é possível
sem o reconhecimento de sua identidade.
O fim [leia-se lucro], enquanto [...] conceito que existe livremente diante
do objeto [leia-se meio] e de seu processo [...] sendo dado que ele é [...] a
verdade em e para si do mecanismo, nesse mesmo [objeto, leia-se ainda
meio] coincide apenas com ele mesmo. O poder do fim sobre o objeto é a
identidade que existe por si, e súa atividade é a manifestação dessa mesma
[identidade].61
399 66 Ver S. Ferro, Ch. Kebbal, C. Simmonet, Ph. Potié, Le couvent de la Tourette. op. cit.
Rodrigo Lefèvre e eu — é ter elaborado um pequeno paradigma com nossas
casas em abóbada com mezanino ou não, sendo o primeiro protótipo a casa de
Cotia, de 1961. Grosso modo também: elimina-se a cobertura de Taliesin — e a
fundação se projeta como cobertura. (Há mais, a crítica das relações de produ
ção atinge — e recompõe — todos as equipes).
Terceira afirmação, ausente do texto mas deve ser incluída aqui. A crítica
do modo de produção e das relações de produção da construção leva-nos a dei
xar de lado a da destinação da produção.
Raros são os textos tão definitivos sobre a construção quanto A questão
da habitação, de F. Engels. Nem uma virgula que não seja atual. No fundo,
e mesmo que tal constatação aflija nossa consciência política, a habita
ção “popular” não é a questão central: ela até pode pesar negativamente
(ancoragem, dependência etc.). Ou há transformação das relações de produ
ção — e então a questão da moradia e dos equipamentos sociais terão uma
solução — ou, nas condições atuais, essas questões não têm solução. O que
o MST faz de verdadeiramente revolucionário é constituir, com algumas de
suas iniciativas, micro territórios livres onde as relações de produção já são
outras, o que muda radicalmente a situação em relação àquela do tempo em
que este texto foi escrito, isto é, fim da década de i960. Hoje, ela se inverte:
nessas micro-regiões livres, é prioritário construir segundo outras relações
de produção como, por exemplo, as que propomos — moradias e equipamen
tos sociais populares. Trata-se, aqui, de provar a possibilidade de eficácia,
de beleza, de racionalidade, de liberdade, de escolha etc., de uma outra
maneira de fazer.
Portanto, correção fundamental do texto. Nos microterritórios ocupados, é
necessário praticar uma outra arquitetura, voltada para os interesses popula
res, prefigurando outras relações de produção. Estas passam pela autonomia
radical dos produtores — isto é, pela livre autodeterminação do objetivo, da
finalidade da produção. Somente assim esse objetivo informará os meios, seus
meios, e o momento teleológico inicial, o projeto, seu projeto. E cuidado: só
a estrita racionalidade (= liberdade) deve guiar aqui. Qualquer consideração
“estética” não fará senão esconder o que tenta nascer com as muletas de hoje.
A rigorosa lógica construtiva sozinha, purificada de tudo o que nela decorra
da técnica de dominação, isto é, a racionalidade ótima de cada passo no seio
da sucessão manufatureira garantirá a eclosão de uma outra beleza, o que
deve vir não tem necessidade de máscara: as formas de seu aparecer serão as
de sua essência — a razão livre (o que é quase tautológico).
400
0 CANTEIRO
chama arte. E também apenas assim que um espaço produzido pode ser dito
“humano”, quente, belo, acolhedor. Estamos na posição oposta à do “gênio”
de Kant (figura da natureza!), estamos mais na posição considerada por ele
como arte “mecânica”.
As conseqüências positivas da livre cooperação das diversas equipes de pro
dução (coordenada pelo arquiteto) são muito numerosas. Várias resultam da
economia gerada pela racionalidade interna das equipes autônomas. Assim,
por exemplo, são eliminados os custos importantes dos múltiplos disfuncio-
namentos, necessários hoje às técnicas de dominação. Também se reduzem
os excessos de material devidos a prescrições contrárias à sua lógica ou às
maquiagens pseudo-estéticas. Desaparecem os sobretrabalhos que o fato de
esconder certas especialidades — eletricidade, encanamentos etc. — provoca:
todos têm o direito de aparecer.
Outras conseqüências decorrem da melhoria das condições de trabalho:
eliminação ou redução de produtos nocivos empregados irresponsavelmente
pela produção corrente, diminuição dos acidentes de trabalho causados pela
fadiga psíquica devida à heteronomia etc.
E ainda, e principalmente, possibilidade efetiva, dadas as economias reais
importantes, de um substancial aumento dos salários.
AS CATEGORIAS DA PRIMEIRIDADE
os ÍCONES
A imagem
Na arquitetura comum, aquela em que o processo produtivo deve ser negado
em função da extração de mais-valia, o construído é a imagem de seu dese
nho e este nao sai de si.
Porém, na estética da separação, o desenho é absolutamente diferente: é
registro de um processo, projeto de uma acumulação progressiva de trabalhos.
O construído é sempre imagem do desenho. Mas o desenho não se fecha em
si, nao é um “jogo complicado de volumes”, planos, texturas em seu envio
recíproco e exclusivamente plástico. Ao contrário, ele é tecedura de equipes,
percurso dos trabalhos e, amiúde, um ponto de partida que se deixa modificar
durante sua realização. A relação desenho/objeto não é de reflexo, mas de
superação, de conservação, de identidade e, ao mesmo tempo, de diferença, de
modificação.
O diagrama
Talvez a categoria central (com o índice) da outra prática. Falaremos sobre
isso depois, a respeito de nosso desenho, da importância para nós da noção
kantiana de “esquema”, essa interface da imaginação e do entendimento que
permite a passagem de um a outro, do sensível ao inteligível, do conteúdo à
forma, do conceito à existência etc.
Cada especialidade, cada corpo de profissão dispõe de “esquemas” onde
seu saber específico toma forma, espacializa-se. O desenho e o canteiro de
obras são montagens de “esquemas”, corporificaçÕes que, pela indicialidade
acrescentada durante a realização (ver abaixo), constituem o principal dos
predicados (que são sempre ícones) cujo movimento constitui o “sujeito”. Na
verdade, esses esquemas são manifestações privilegiadas do “espírito objetivo”,
da matéria modelada pelo pensamento e pela prática do ofício, do material (=
matéria + cultura) — da história do trabalho e dos conhecimentos gravados em
meios concretos, de uma situação sócio-econômica dada. Esse estado presente
de uma memória cumulativa coletiva, assumido pela retomada atual de seu
407 “esquema” pelo “corpo produtivo” que se tornou autônomo, livre, que o rea-
nima por meio de seu trabalho e o faz avançar um pouco mais — eis a essência
do “sujeito” que pode então, autenticamente, identificar-se com seu “objeto”
e por um espaço verdadeiramente humano. Só assim a arquitetura torna-se
arte em seu sentido mais nobre. Nada em comum, como vemos, com a farsa
de arte que são as espacializações dos saracoteios do ego dos arquitetos stars.
O sujeito aqui é, primeiro, coletivo; depois é conceito, idéia. Aproxima-se do
sujeito da psicanálise, do sujeito de Freud, de Lacan — sempre “oposto” (mas
aqui há heterotopia) ao eu de superfície, o ego: ele é sujeito do A, o grande
outro. Esses “esquemas” são condensações operacionais dos progressos da
razão técnica, o substrato do que está disponível como base para o fazer atual.
Herança de pensamento — o vocabulário formal da estética da separação.
As metáforas
É delicado falar de metáfora aqui. Com efeito, a metáfora supõe a inclusão,
num todo de sentido relativamente homogêneo, de um elemento exterior
/
0 ÍNDICE
dizer que não expropria. E a base de seu prazer, a força de sua estética: o que
agrada no julgamento de gosto. Aliás, a estética kantiana insiste bastante, dá
um excesso de argumentos, volta incessantemente à questão da “finalidade
sem representação do fim” — como se alguma coisa aqui se recusasse a se
deixar apreender realmente, apenas se mostrasse perturbando sua imagem.
Alguma coisa que avança mascarada. Um sintoma que diz sem dizer (finali
dade... sem fim), censura (negação 1) e revela (negação 2) ao mesmo tempo.
Isso serve aos deslizes do prazer perverso, aos quiasmas das pulsões sublima
das, das elevações muito prazerosas. Isso corresponde à estética da ironia de
Friedrich Schlegel e seus descendentes (deve ser ouvido literalmente) de hoje.
Lacan alertava para o fato de que a beleza é a última cortina diante do horror.
Os julgamentos de gosto daqueles que dominam (e que, somente por isso, são
“universais” e “necessários”) fedem. É a hipocrisia como belas-artes. Rimbaud
tinha razão: ele mijou na beleza.
Um exemplo: uma cúpula pode ter vários perfis, todos estruturalmente corre
tos; segundo as necessidades determinadas por essa ou aquela destinação, ela
será mais ou menos achatada, mas seguindo sempre um bom perfil. Numa
situação dada, os materiais apropriados disponíveis e sua técnica de execução
(concreto, tijolos, pedra...) definirão ainda a cúpula, sua espessura, o embasa
mento necessário etc. Finalmente, a equipe adequada de pedreiros realizará o
conjunto de suas decisões, segundo o saber fazer adaptado e correspondente ao
saber e aos meios determinados. Em nosso canteiro de obras ideal, a “própria
idéia concreta traz seu princípio de fenomenalização em si mesma...”, o saber
ainda abstrato (“a” cúpula) se define, se determina pouco a pouco (forma,
material, técnica de execução...). Até a “fenomenalização” completa na conti
nuidade, sem deslocamentos de leitura, sem travesti mentos exteriores porque
a determinação progressiva do objetivo é o movimento autônomo (portanto
livre, portanto tendo todas as razoes de ser em si mesmo, portanto absoluta
mente racional, portanto necessário) do corpo produtivo completo.
Ao contrário do que ocorre atualmente, aqui há a assunção pelo sujeito (o
corpo produtivo) do que ele é obj etivamente — espírito gravado no material,
nas técnicas, no saber e no saber fazer — e que constitui a memória concreta
do construir, o todo posto em movimento no fazer atual.
Isso aparece claramente na indicialidade — que se torna rastro. A marca
do trabalho descreve, ao mesmo tempo, os meios aplicados e o esquema que o
orienta, remete a um duplo passado, o do ato e o do pensamento determinante
deste ato, sua conveniência recíproca. Os saberes separados pelo entendimento
(a estática, a ciência dos materiais, as técnicas de execução, a economia, a
organização do trabalho etc.) abandonam seu isolamento, refletem-se uns nos
outros, identificam-se sem eliminar sua diferença na totalidade concreta de
seu movimento, o construir. O desenho que desenha somente o construtivo e
seu “ornamento” - a didatização, a expressão do procedimento - faz da obra
um traço único mas muito rico, a apresentação de si do construtivo na apresen
tação do pensamento (do projeto) que o determinou, a passagem do em-si do
corpo produtivo (gravado em seu material, no sentido de Adorno) ao para-si
de sua autoconsciência, à sua posição como outro na obra.
Dissemos que o jovem Marx criticava Hegel porque este não considerava
71 Hegel, G. W. F. Cursos de estética. Tradução de Marco Aurélio Werle. São Paulo: Edusp,
411 1999, vol. I, p. 90.
senão o lado positivo do trabalho. Em certa medida, a nova prática retoma
Hegel: partindo da constatação do horror que se tornou o trabalho, ela lhe opõe,
novamente, uma perspectiva otimista. Em Hegel, como demonstrou P. E. Aran-
tes, o conceito de trabalho é central (posição dividida só com a linguagem), abre
a via para a humanização, para a identificação do sujeito e do objeto, para a
/
exteriorização do espírito etc. E essa posição que ele deve, que ele pode retomar.
A sequência central aqui, em termos muito genéricos, é a seguinte: auto
nomia (portanto fora do controle do capital), liberdade (ter todas as razoes
da determinação dos fins em si mesmo — portanto, finalidade social inte
riorizada), razão (= necessidade = ter todas as razões de ser o que se é em si
mesmo, portanto, toda a série unificada: saber, saber fazer, técnica, material...).
Nada pode faltar nessa seqüência — e somente assim a arquitetura novamente
se tornará arte.
Nota: Após haver reconhecido a posição fundamental do trabalho e da lin
guagem no movimento do espírito, Hegel parece esquecê-la ao falar de arte
no curso de estética. Algumas passagens são muito próximas das que descre
vem a Bildung do escravo na fenomenologia:
O SIMBÓLICO
77 Idem, p. 97.
414 78 Idem, p. 129.
comum, refletido, interiorizado e realizado por cada equipe, no âmbito de sua
melhor lógica independente, reaparece como objeto construído em que se lê
tanto a autonomia de cada uma quanto sua livre cooperação para o efetuar.
A arquitetura da estética da separação é, assim, simbólica do Geist — do
espírito. Da comunidade, representada aqui pelo “corpo produtivo” que, em e
através de sua liberdade, tornou-se “espírito produtivo” ou idéia (no sentido
de Hegel) construtiva.
Pensamos reconhecer aqui uma dessas passagens em que Hegel passeia
“de cabeça para baixo”. Não, a arquitetura (livre) não é a arte particular
menos desenvolvida, simbólica por falta de elaboração do conceito (cujo pro
gresso tece a passagem do simbólico ao clássico — e, depois, deste ao românico,
quando a arte é superada pela religião revelada e pela filosofia). Ao contrário,
é a arte por excelência, a única talvez em que seja evidente que beleza e ver
dade “são, por um lado, a mesma coisa”,79 onde o sujeito (o do corpo produ
tivo) não se faz valer “contra o ser e as propriedades das coisas”,80 ou ainda
onde “ele não mais se distingue em intenções subjetivas, em seu material
/
e meio”.81 E o objeto da arquitetura livTe em que, principalmente, “devem
aparecer tanto o conceito, sua finalidade e sua alma assim como sua determi-
nidade, multiplicidade e realidade exteriores em geral”.82 O que parece a fra
gilidade relativa da arquitetura em relação às outras artes (a “pesada massa
mecânica” etc.) é, na verdade, o que a torna mais digna: ela não tem que
“superar” seu material. Ele já é, desde o início, informado, penetrado, preen
chido pelo saber e pelo saber fazer, “subjetividade”. Ele não tem que quase
desaparecer, como o “ponto” sonoro da prosa, para deixar passar a verdade de
seu conceito. Aqui a arte (plástica) fica colada a seu fundamento, o trabalho
livTe. A dispersão regulada dos materiais é quase análoga à espacialização
da sucessão das equipes — e sua coabitação racional, à unidade do processo: a
encarnação total não deixa restos não manifestos. Aqui “... natureza e liber
dade, sensibilidade e conceito encontram seu direito e satisfação em um só
termo”.83 O fazer e as razões do fazer gravam sua imagem no material — e se
rigozijam consigo mesmos.
Se a arquitetura, entretanto, é especialmente simbólica (ler sempre:
arquitetura livre), é sobretudo na perspectiva kantiana (portanto, destoa em
79 Idem, p. 126.
80 Idem, p. 127.
81 Idem, p. 129.
82 Idem, ibidem.
415 83 Idem, p, 78.
nossa semiologia peirciana heterodoxa; nada é perfeito). Ela remete à regra
do esquema, mas seu conceito (o corpo produtivo livre) é conceito de razão
ao qual nao convém nenhuma intuição sensível. Ela é, pois, para Kant e para
/
Hegel, sublime. E o fundamento mesmo de sua essência — a comunidade dos
livres construtores — que não tem intuição sensível adequada. Donde a ina
dequação apontada por Hegel — mas que não é absolutamente sinal de infe
rioridade. A forma global do construído opera então “como” um esquema do
corpo produtivo — “como” somente: ela é símbolo.
Assim, nessa forma, reproduz-se a progressão da razão. A articulação
seqüencial dos esquemas, onde se condensam as equipes e seu saber dividido
do entendimento (saber que se diz “científico”), compõe uma unidade supe
rior que identifica e mantém as diferenças, unidade de razão da consciência e
de consciência de si. Do entendimento dominante das partes à razão totaliza
dora. Dos esquemas ao símbolo. Dos trabalhos parcelares ao coletivo produtivo,
417 85 S. Opiela, Le reel dans la logíque de Hegel. Paris: Beauchesne, 1983, p. 207.
verdadeiro. Se o artista transformou completamente esta razão objetiva em
algo seu, sem misturá-la ou contaminá-la a partir do interior ou do exterior
com particularidades estranhas, então unicamente ele também se oferece a si
mesmo em sua subjetividade a mais verdadeira no objeto configurado, sub
jetividade que apenas quer ser o ponto de passagem vivo para a obra de arte
em si mesma acabada. Pois em todo poetizar, pensar e atuar verdadeiros, a
autêntica liberdade deixa o substancial imperar enquanto uma potência em
si mesma, a qual é ao mesmo tempo de tal modo a mais própria potência do
pensamento e querer subjetivos mesmos, que não pode mais sobrar nenhuma
discórdia na completa reconciliação de ambos. Assim, a originalidade da arte
certamente consome cada particularidade casual, mas ela apenas a devora
para que o artista possa seguir completamente o traço e o impulso de seu
entusiasmo do genius preenchido unicamente pela coisa e, em vez do bel-pra
zer e arbítrio vazio, possa expor seu verdadeiro si mesmo [selbst^ em sua coisa
realizada de acordo com a verdade. Não possuir nenhuma maneira foi desde
sempre a única grande maneira.86
O DESENHO HOJE
419 i H. Albert, De Babylone aux FILM, le logement social à travers lês ages, Paris, 1963.
dos materiais progrediram bastante, mas não conseguiram superar no can
teiro a experiência milenar depositada no saber-fazer operário — a trincheira
de sua resistência. A manobra mais astuciosa foi a tentativa de substituir a
exteriorização das forças produtivas industriais por uma troca de materiais, o
ferro e o concreto. Nada disto foi programado, é claro. Mas não funcionou...
logo. A lógica da coisa é simples e ardilosa. Se a dita experiência milenar do
operário estava vinculada à terra, à pedra e à madeira, ela perderia sua força
se fossem empregados materiais novos, sem tradição.
421
Hoje não podemos ser criadores, mas somos pesquisadores. Não queremos
parar de procurar as formas futuras [...] Assim que a nova concepção da
vida se manifestar, veremos igualmente seu símbolo, a arquitetura. Sejamos
voluntariamente “arquitetos imaginários”.3
construtiva. E bem verdade que têm tudo para corresponderem, filhotes todos
do mesmo entendimento classificatório. As variantes decorrem sem dúvida de
variáveis bem determinadas. Prestam-se razões superiores aos simples jogos de
volumes, às alternâncias de massas, vazios, texturas. Tudo tem que ser lógico,
medido, objetivo — mesmo se o arremate final não pode deixar de lado o tal do
belo. Por outro lado, o desenho soma partes, adiciona componentes, divide em
módulos, com-põe, põe junto como se o arranjo obedecesse a algum princípio
imanente. Os cinco princípios de Le Corbusier, o pilar que atravessa livre
mente a casa, a ossatura autônoma com relação à alvenaria, a planta livre, a
fachada livre, o teto-jardim, roçam de perto o que seria a transposição plástica
da lógica da manufatura associada à lógica dos componentes arquitetônicos
— mas o que logo acorre para justificar as proporções não é o trabalho constru
tivo e sim os traçados harmônicos, a regra de ouro e a altura do policial inglês.
Entretanto, a montagem raramente toma como guia o que esta à mão, o mais
próximo, o mais simples e justo: o da produção inteligente. Sabemos porquê.
Com a atual invasão galopante do capital financeiro, fruto e causa da terceira
revolução industrial, a da informática globalizante, as coisas parecem mudar em
cima e embaixo, mas tudo fica onde está. Embaixo, o novo suporte do desenho,
o computador, aumenta sua força por permitir novas figuras que eram penosas
demais para o desenho apoiado no compasso e na régua T. Hoje, a mais chã das
construções pode embaralhar tramas, inclinar em ângulos estranhos pilares
ou paredes, propor curvinhas rebeldes, etc. Os arquitetos que mais se destacam
possuem os computadores mais sofisticados e os programas mais complexos.
Gehry em Bilbao adota um programa criado pela indústria aeronáutica que lhe
permite detalhar curvas absconças, a amontoar volumes irregulares. Libeskind
pode fugir do diedro comum, suas horizontais e verticais, enviezar assustadora-
mente tudo, rasgar fendas dissonantes. Herzog conseguiu propor uma enorme
423 macarronada em Pequim. Zaha Hadid tem como cruzar um emaranhado de
fachadas, etc. Em todos esses casos, a presença do desenho solto, agora apoiado
no computador, salta aos olhos. Mas seu sucesso midiático vem sobretudo de
sua perfeita conveniência ao comportamento do capital financeiro, hoje em pole
position lá em cima. Ambos exibem, sem nenhum recato, sua indiferença pela
produção. Mal ou bem, o desenho anterior teve que mostrar alguma reverência
a seu patrão, o capital produtivo: suas ficções eram sempre “construtivas”. Agora,
com o capital financeiro saltando sem remorsos de setor em setor, que suga
enquanto sua taxa de lucro for interessante e não murchar, a produção perdeu
seu antigo prestígio. Prometeu saiu de moda, Midas tomou seu lugar. Para que
isso fique bem claro, a arquitetura das stars up to date tem que ostentar, enfatizar
seu desrespeito irônico pelas mais elementares conveniências da construção, da
estática — e do bom senso. Desprestígio da produção — sem a qual, entretanto,
nem o capital financeiro, nem sua arquitetura sequer existiriam.
No caso dos arquitetos high-tech — Piano, Foster e cia. —, a coisa é mais
escorregadia. Eles utilizam o computador, em geral, para resolver questões
técnicas complexas. A cobertura do aeroporto de Kansai, de Piano, por exem
plo, adota a forma ideal para resistir aos furacões, determinada por simulações
exigentes. Outras vezes, Piano prepara a pré-fabricação correta. O que causa
problema é o exagero do procedimento: a concepção absorve sem deixar restos
/
Não se legifera para ofuturo [...] Tudo o que podemos é adivinhar as tendências
essenciais e limpar o caminho. [Kropotkin]
E claro que nosso desenho não é ainda o apropriado para outras relações
de produção. O que o justifica, o trabalhador coletivo livre, fundamento destas
outras relações, ainda está por vir. E não há como antecipá-lo sem cair nos
mesmos impasses das vanguardas modernistas prospectivas que criticamos
antes. Sò nos bolsões que os novos movimentos sociais (dos sem-terra e sem-
teto) começam a abrir na rede do sistema podemos esperar que se esboce.
Nosso desenho, entretanto, já prepara sua vinda por sua função crítica-prática.
O ilhamento de cada etapa em busca de sua própria coerência e autonomia é
indispensável para afastar o que a técnica de dominação nelas depositou, as
deformações da lógica produtiva necessárias para a exploração. O desmonte
do desenho separado e autoritário, dos costumes que nos incutiu, a crítica prá-
/
Creio (não asseguro) que o outro desenho virá por aí — se não considerarmos
obras necessariamente complexas. Um desenho informado, correto — mas
pronto a se retirar —, com menos prescrições desnecessárias e mais aberturas:
um tema para debates. Que retome a posição que tinha no tempo da coo
peração simples (tempo do românico e do primeiro gótico), fortalecido pela
lógica que a crítica do período manufatureiro pode trazer à construção. E
que favoreça, num primeiro momento, a humildade, o despreendimento e a
paciência do arquiteto, que não carregue, diluído em sua carne, os germes do
autoritarismo. Há oito séculos o corpo produtivo acéfalo é esmagado. Não se
constituirá livremente com facilidade. E carregará, como todos nós, muitos
ranços de hoje. Um dos pedreiros do nosso canteirozinho, encantado com a
obra que também era sua, plantou no encontro de duas cumieiras uma pedra
que achou parecida com uma casinha, lembrança das que vê nos jardins com
anõezinhos. Horrível — mas comovente. Pôs sua marca satisfeita no topo da
construção sua, marca que, por uma vez, não é defeito ou sujeira, mas assi
natura. Kitsch talvez. Mas se kitsch é a degradação de conceitos plásticos res
peitáveis, os nossos elegantes critérios formais talvez sejam ainda mais kitsch:
derivam de uma produção martirizada, não são em nada respeitáveis. Porque
nós, com a imposição prescritiva de nosso projeto, é que degradamos o que
deveria ser a arte da arquitetura.
Volto, assim, ao que adiei lá atrás — a exclusão, por princípio, de qualquer
interferência estética do projeto crítico. Porque na arte, a concepção é pouca
coisa se isolada — como dizia Mallarmé a Degas que, apesar de ter muitas
idéias, não conseguia escrever um soneto. O desenho só conta quando se
perde na matéria e volta outro, transformado pelo trabalho que o redescobre
transubstanciado. Querer enfiar vibrações estéticas no desenho leva obriga
toriamente à sua perda. Pela milésima vez: arte é manifestação de alegria no
trabalho. Para que esta alegria seja autêntica, o trabalho tem que ser livre. Se
for realmente livre, autônomo, o trabalho terá em si mesmo todas as razões
+29 para ser o que é, sem depender de nada exterior, é o necessário.
Façamos agora o caminho inverso: um projeto que só contenha o absoluta
mente necessário racionalmente, completamente colado à lógica produtiva e
à do produto, é condição para uma produção racional, necessária, que só assim
pode se abrir à liberdade — que é a expansão alegre do necessário além de si
mesmo. Arte é a expressão enfática do gesto justo. Daí minha defesa do orna
mento autêntico, a verdadeira arte de todos: a exaltação, o canto que amplia a
necessidade autônoma do fazer livre, o único humano. A recusa a uma impo
sição estética a priori vem do respeito à arte que é o nome da inscrição no pro
duto da ação produtiva livre. Estamos acostumados demais com a arte sepa
rada, com a dor ou a melancolia que as belas-artes exprimem, fruto de sua
semi-liberdade abortada. E hoje engolimos como se fosse arte a manifestação
do escárnio-pânico com que o capital suicidário tenta esconjurar o que teme
nascer de seu fim, a alegria do trabalho enfim livre. Mas isso passará, espero.
Enquanto esperamos, vamos limpando o caminho como aconselhou Kro
potkin: há ainda tanta sujeira por aí!
“Não se legifera para o futuro”, certo.
Mas podemos tentar “adivinhar as tendências essenciais” — adivinhar, lan
çar hipóteses sem a segurança ilusória das vanguardas, sem nenhuma inten
ção normativa. De minhas magras experiências — e de outros — penso que é
possível extrair algumas inferências, algumas indicações de princípios, alguns
temas para ensaio no período de transição.
0 desenho poderia adotar as seguintes orientações:
431
POSFÁCIO
2005
1 Pedro Fiori Arantes, Arquitetura nova: Sérgio Ferro, Rodrigo Lefèvre e Flávio Império
436 — de Artigas aos mutirões. São Paulo: Editora 34, 2002.
papel de jornal, palitos, roupa velha etc., materiais que são quase nada, se
nada for o que está aquém do preço e não circula no mercado. Por aí, há um
parentesco também com a “estética da fome” de Glauber Rocha e com o
clima geral do Cinema Novo. São relações importantes, em que a pobreza
brasileira suscitava respostas intelectuais e artísticas ousadas, de vanguarda,
que reatualizavam o espírito antiburguês e revolucionário das grandes van
guardas do primeiro decênio do século xx.
Seja como for, em 1964 houve a inversão da corrente, inversão aprofun
dada em 1968. As perspectivas da esquerda estavam cortadas. No que dizia
respeito aos intelectuais, um conjunto amplo de apostas no futuro e alianças
de classe efetivas, de convicções políticas, sociais, artísticas e outras, além de
possibilidades profissionais e garantias materiais, foi posto em xeque, pas
sando a se modificar em função das circunstâncias. Sérgio foi rápido para assi
nalar, num grande artigo, que a promessa de modernização, tão importante
para o prestígio político dos arquitetos, mudava de horizonte ao separar-se,
ou ao ser separada, do combate pelo progresso social.2 A aura moderna da
profissão não ia desaparecer, mas perdia o voo e trocava o rumo. Na mão dos
mais fiéis, ou mais frustrados, o padrão estético moderno passava a funcionar
como uma objeção cheia de quinas, moralista e simbólica, além de impotente,
ao curso das coisas. O funcionalismo deixava de ser funcional, pois “o equilí
brio dinâmico entre ser e dever-ser”, em palavras de Sérgio, se havia rompido.
Para outros, a parafernália moderna era sobretudo a justificação da autori
dade social de quem sabe, ou seja, dos tecnocratas em que eles mesmos se
transformavam. Para outros, enfim, ela conferia o cachê do requinte a quem
pudesse pagar. Diante do que considerava o esvaziamento da sua profissão,
Sérgio concluiu que a luta não se podia confinar aos limites dela e acompa
nhou a parte da esquerda que se empenhou na luta armada. A facilidade com
que esta foi derrotada, apesar da conseqüência pessoal dos que se engajaram,
é um dado importante para a reflexão.
Não há tempo nem eu teria os conhecimentos para recapitular a luta con
tra a ditadura e para especificar as causas do recuo desta. O fato é que ao longo
da resistência, e do processo da abertura, um bom número de figuras destaca
das da esquerda se qualificou socialmente para a liderança em vários planos,
inclusive o plano político. Assim, em pouco tempo e sem que o país no essen
cial tivesse virado à esquerda, tivemos um presidente da República de boa for
mação marxista, outro de boa formação sindical, para não falar de ministros,
senadores e deputados ex-comunistas e ex-guerrilheiros. Não custa lembrar
443
BIBLIOGRAFIA SELECIONADA
ENTREVISTAS E DEPOIMENTOS
ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura nova: Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo
Lefèvre — de Artigas ao mutirões. São Paulo: Editora 34, 2002 (2aed, 2004).
____ . “O retorno de Sérgio Ferro”, em. Arquitetura e Urbanismo, n.118, pp. 55-57,
out. 2003.
____ . “Reinventing the Building Site” em andreoly, Elisabetta e forty, Adrian
(editors). BraziVs Modern Architecture. Londres: Phaidon, 2004. Edição em
português distribuída pela Martins Fontes.
____ . “O crítico e os arquitetos” em cevasco, Maria Elisa e ohata, Milton (orgs.),
Um crítico na periferia do capitalismo — a obra de Roberto Schwarz. São Paulo:
Cia. das Letras, no prelo.
BICCA, Paulo. O arquiteto, a máscara e aface. São Paulo: Projeto, 1984.
____ . “Apresentação”, em Sergio Ferro, O canteiro e 0 desenho. São Paulo: Projeto,
2005.
BRUAND, Yves. “Os discípulos de Vilanova Artigas” em Arquitetura Contemporâ
nea no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1991 (2a. ed), pp. 505-319.
KOURY, Ana Paula. Grupo Arquitetura Nova. São Paulo: Romeno-Guerra /Edusp,
2003.
____ . “Documento: Arquitetura Nova” em Arquitetura e Urbanismo, n.89, pp. 68-
72, abr. 2000.
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era
da TV. Rio de Janeiro: Record, 2000.
rocha, Angela Maria. “No horizonte do possível”, em Arquitetura e Urbanismo,
n.18, 1988.
SEGAWA, Hugo. “A afirmação de uma hegemonia / A diluição do modelo e a crí
tica” em Arquiteturas no Brasil ijoo-iyyo. São Paulo: Edusp, 1998, pp. 153-157.
SCHWARZ, Roberto. “Posfácio” em ARANTES, Pedro. Arquitetura nova... op.cit.,
2002.
_. “Cultura e política 1964-1969”, em O pai defamília. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1978.
_. “O progresso antigamente”, em Que horas são? São Paulo: Cia. das Leiras,
ÍNDICE REMISSIVO
374
Bardi, Lina Bo, 271, 431 Camilo, Giuglio, 356
Barone, Júlio, 270 Capisano, Helladio, 42
Barret, P. R, 164 Caravaggio, Michelangelo Merisi, dito.
Barthes, Roland, 129,163, 240 296, 371
Baudot, Antoine de, 165 Cassirer, Ernst, 159
Castiglione, Baldassare, 388-89 Fabriano, Gentile da, 183
Castro, Josué, 86n Farish, William, 152
Cézanne, Paul, 137,155,162,189, 200, Fauran, Jacques de, 331
245 Faure, Elie, 166
Changeux, Jean-Pierre, 223 Fausto, Boris, 43, 269, 275-76, 324
/
452
Agradecemos a Vicente Wissenbach pela
gentil disponibilização de O canteiro e o
desenhopwa publicação nesta coletânea.
Bibliografia.
ISBN 85-7503-420-0
05-8948 CDD-720.1
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João Batista Viianova Artigas
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