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ARQUITETURA ETRABALHO LIVRE

organização e apresentação Pedro Fiori Arantes

posfácio Roberto Schwarz

COSACNAIFY
9 apresentação Pedro Fiori Arantes

1 PROPOSTA

33 Proposta inicial para um debate: possibilidades de atuação [1963]

37 Arquitetura experimental [1965]

2 CORTE

47 Arquitetura nova [1967]

3 ESBOÇO

61 A produção da casa no Brasil [1969]

4 TESE

105 O canteiro e o desenho [1976]

5 GRENOBLE

203 Reflexões para uma política na arquitetura [1972]

214 Desenho e canteiro na concepção do convento de LaTourette [1988]


222 Programa para pólo de ensino, pesquisa e experimentação da construção [1994]

233 Questões de método [1996]


241 O "material" em Le Corbusier [1997]
6 RECAPITULAÇÕES BRASILEIRAS
*

255 Reflexões sobre o brutalismo caboclo [1986]


265 FAU, travessa da Maria Antonia [1988]
266 Flávio arquiteto [1995]

272 Sobre "Arquitetura nova" [1997]


274 Depoimento a um pesquisador [2000]

299 O fetichismo na arquitetura [2002]


305 Brasília, Lucio Costa e Oscar Niemeyer [2003]

7 COMENTÁRIOS FINAIS

321 Sobre "O canteiro e o desenho" [2003]


419 O desenho hoje e seu contra-desenho [2005]

435 POSFÁcio Roberto Schwarz

441 SOBRE O AUTOR

444 BIBLIOGRAFIA SELECIONADA

447 ÍNDICE REMISSIVO


A memória de Rodrigo Lefèvre e Flávio Império, autores

também do que possam ter de bom os textos aqui reunidos


APRESENTAÇÃO

Sérgio Ferro, como ele próprio se definiu, é um “suicida do metier”} Formado


durante a construção de Brasília, jovem arquiteto promissor,12 pintor habilidoso,
discípulo dileto de Vilanova Artigas e Flávio Motta, Sérgio foi, por décadas,
acusado de traição. Neste livro, que reúne quase toda sua produção sobre arqui­
tetura, temos agora a oportunidade de avaliar melhor as circunstâncias desta
“traição” e em nome do que foi feita — pois ela, de fato, ocorreu.
Se, em verdade, Sérgio foi o mais implacável crítico da profissão e seu ins­
trumento, o “desenho separado”,3 o fez, paradoxalmente, em nome da própria
arquitetura e do que ela pode vir a ser — como manifestação artística suprema
de uma comunidade livre de produtores. A “traição” de Sérgio é, deste modo,
ambígua e movida por um grande sentimento de amor pela arquitetura, pois
é nela que vislumbra o melhor campo estético e técnico para a expressão cole­
tiva do trabalho livre. Como afirma: “O que hoje concentra todas as desgraças
do mundo operário (o canteiro heterônomo da construção - os mais baixos
salários, a mais longa jornada de trabalho, as mais altas taxas de acidentes e

1 Fala aos estudantes na fauusp, fevereiro de 2002, citada em Pedro Fiori Arantes.
“O retorno de Sérgio Ferro”, em Arquitetura e Urbanismo, n. 118, pp. 55-57, out. 2005.
2 A ponto de, apenas quatro anos após formado, ter um número especial da principal
revista de arquitetura do país dedicado ao seu trabalho e de seus dois companheiros,
Flávio Império e Rodrigo Lefèvre.
3 Foi, por isso, responsabilizado pelo fato de parte de uma geração — nos anos 1970 e início
dos 1980 — ter, supostamente, “abandonado o desenho”. Esta versão simplista, que estig­
matizou Sérgio e seus simpatizantes à época, não reconhece a importância do contexto
histórico em que opções foram tomadas, marcado pela luta política contra o regime
militar e, ao mesmo tempo, pelo crescimento vertiginoso das cidades — e, na confluência
destes dois elementos, o nascimento de movimentos sociais urbanos (indicando a possibi­
lidade da aliança entre técnicos e povo organizado). Para profissionais e estudantes não
conformistas, a militância contra a ditadura não apenas era legítima como necessária; e
a percepção de que o acesso formal à terra e à habitação era negado à maioria da popula­
ção exigia dos arquitetos uma nova postura diante da cidade e de suas enormes periferias
clandestinas e autoconstruídas em expansão (o que os levou a ver o projeto de edificações
como tema menos relevante e, por esse motivo, a se distanciar posteriormente da própria
discussão desenho/canteiro de Sérgio Ferro). Por fim, os textos de Sérgio aqui apresenta­
dos se encarregarão de desmistificar afirmações que tomam a arquitetura como desenho.
ie doenças do trabalho etc.) pode tornar-se já o lugar de uma das mais belas
exnressões do espírito, da comunidade livre”.4
Os textos de Sérgio Ferro aqui reunidos, ainda que ensaios críticos sem con­
cessões, não promovem um réquiem da prática arquitetônica. Ao contrário, da
lucidez de sua formulação nasce a disposição para o novo — como se verá.
No primeiro capítulo, PROPOSTAS, apresentamos dois textos escritos entre
1963 e 1965, que estabelecem o programa estético e político para as expe­
riências em arquitetura daqueles anos de Sérgio, Flávio Império e Rodrigo
Lefèvre. O primeiro, “Proposta inicial para um debate”, é um manifesto
redigido por Sérgio e Rodrigo, então os dois mais jovens professores da Facul­
dade de Arquitetura e Urbanismo (fau) da Universidade de São Paulo, com
24 anos, convocando estudantes e professores a se definirem na escolha de
uma orientação clara, participante das transformações sociais em curso no
país — naquele momento, no auge do debate político das reformas de base. Os
dois adotam, já nesta primeira intervenção, uma perspectiva marxista para a
crítica e a intervenção no campo da arquitetura e questionam a possibilidade
de uma confluência “harmônica” entre um projeto popular, que responda às
necessidades vitais do povo, e o desenvolvimento das forças produtivas, por
meio da industrialização, planejamento e racionalização da construção. Ou
seja, põem em dúvida a premissa moderna de que progresso e democratização
andariam juntos, afirmando que, ao avanço nas forças produtivas, pode não
corresponder maior igualdade social, pelo contrário. Os dois jovens cobram
dos demais arquitetos, diante da percepção de que a contradição entre capital
e trabalho se aguçava no Brasil, uma “tomada de posição” na luta de classes.
Noutros termos, propõem uma aliança entre técnicos e trabalhadores — mote
de toda a produção futura de Sérgio —, e um programa estético (ainda frágil)
para o campo da construção, “a poética da economia”: a formulação de uma
nova linguagem, a do absolutamente indispensável, estabelecida inteiramente
com base na nossa realidade, para responder às necessidades do povo brasileiro.
A apresentação de projetos de Sérgio, Flávio e Rodrigo na Revista Acró­
pole — casas dirigidas a amigos e familiares — rebatizada aqui de “Arquitetura
experimental”, nos faz compreender melhor o que na prática entendiam por
“poética da economia” e no que se diferenciavam do programa moderno.
Depois da experiência fracassada na utilização de componentes industrializa­
dos para vedação de uma de suas casas, os três arquitetos decidem explorar as
possibilidades da racionalização das técnicas e materiais populares e tradicio­
nais, despreocupados com qualquer “modernidade construtiva” — “a melhor

4 Em “Sobre O canteiro e o desenho”, p. 416 desta edição.


técnica, em determinados casos, nem sempre é a mais adequada”. E com essa
posição heterodoxa, contrária ao que postulavam os modernos, que Sérgio irá
realizar então a primeira casa em abóbada do grupo, em 1961, em Cotia, com
intenção de investigar alternativas para a habitação popular.
O golpe militar de 1964 interrompe as expectativas dos três arquitetos
de que suas experiências viessem a servir a projetos de maior alcance num
período de transformações sociais no Brasil. As conseqüências arrasadoras
da contra-revolução farão com que os três progressivamente passem a ques­
tionar os fundamentos da prática profissional e a abandoná-la (com exceção
de Rodrigo). No texto de 1965, na Acrópole, já se nota a inquietação com a
suspensão abrupta de perspectivas.5 Esse é o tema do segundo capítulo, corte,
que apresenta 0 conhecido texto “Arquitetura nova”, de crítica à produção
arquitetônica pós-1964.
“Arquitetura nova” é um dos mais agudos ensaios de Sérgio. Escrito no
calor da hora, com caráter de intervenção, c também consistente em sua
estrutura, tem redação fina e resistiu ao tempo.6 Sérgio investiga aí porque,
após 1964, a celebrada arquitetura moderna brasileira não só se desfigura
como se conforma à nova situação - de modo dramático no caso da “escola
paulista”, cuja floração tardia desabrocha em pleno regime militar. Sérgio
constata o evidente “mal-estar” numa arquitetura que, naquele momento
adverso, teimava ainda em conferir aparência de ordem racional a um objeto
— a residência burguesa — de reconhecida insignificância, bem como a fla­
grante irracionalidade da encomenda individual, quando confrontada com
as soluções de massa que se faziam, de fato, necessárias. Sérgio analisa o
paradoxo com especial habilidade quando descreve os disparates que trans­
pareciam nas “estruturas” arquitetônicas de então. Tanto seu conteúdo — a
promessa de desenvolvimento que anteriormente enunciavam — quanto sua
lógica construtiva, passavam a sofrer deformações e desvios, escorregando
para uma “racionalidade mentirosa”, para “gestos ilusionistas”, acossados
pela urgência de camuflar seu próprio esvaziamento.

5 O que eles menos podiam esperar era que a apresentação na Acrópole fosse antecedida por
um texto de Artigas que se opunha claramente a esta sensação de crise e frustração, com o
título “Uma falsa crise”. Nele, Artigas pretende demonstrar que tanto o funcionalismo em
arquitetura quanto a modernização não estavam sendo interrompidos pelo Golpe.
6 O crítico literário Roberto Schwarz foi um dos primeiros a notar seu valor e a lhe dar
sequência, em “Cultura e política: 1964-1969” (O pai defamília. São Paulo: Paz e Terra,
1978), ao inserir a interpretação de Sérgio numa análise mais ampla e sistemática da
cultura brasileira no período posterior ao Golpe.
S-ergio nota ali uma contradição, impulsionada pelo Golpe, entre forma
e$:eíica e conteúdo social na arquitetura. O corte de perspectivas não impli­
cou de imediato um retrocesso formal (os militares não exumaram estilos
do passado), mas o aprofundamento, numa afirmação renovada e acentuada,
das posições originais. Entretanto, a violenta inversão do seu conteúdo social
produziu o impasse de uma forma artística que seguiu adiante, num contexto
truncado, no qual foi sendo progressivamente desautorizada pela situação
histórica, até deformar-se por completo. No caso da arquitetura, essa plasti­
cidade será investigada por Sérgio na crítica ao falseamento das estruturas,
uma distorção que se torna, ao fim, adaptação à situação dada. O resultado é
uma arquitetura que, deslocada no contexto e desvinculada de um programa,
apresenta-se sob o signo da auto-referência (autismo do qual até hoje não
escapou), produzindo a dissociação completa entre progresso técnico e qual­
quer promessa de avanço social. Esse é o campo no qual irão aflorar tanto a
venda privada de um conhecimento até então tido como coletivo quanto, na
crítica, interpretações imanentistas, que subordinam a análise a uma suposta
significação e verdade internas à obra.
Nos anos seguintes, 1968-69, Sérgio ministra um curso de pós-gradua­
ção na FAU, do qual suas anotações de aula são aqui apresentadas no capítulo
ESBOÇO — notas que servirão como rascunho para “O canteiro e o desenho”
(197^)j mas cuí° valor é notável, principalmente o das partes suprimidas por
Sérgio na versão acabada (como “A casa popular” e “A mansão”). Nesses
esquemas de aula, rebatizados aqui como “A produção da casa no Brasil”, já
se percebe o aprofundamento na formação marxista de Sérgio, decorrente
sobretudo de sua participação naqueles anos no grupo de leituras de O capital,
de Marx, e na Revista Teoria e Prática, ambos com colegas da Faculdade de
Filosofia da usp, na rua Maria Antonia.7
Em “A produção da casa no Brasil” há um deslocamento progressivo da

7 Iniciado às vésperas do Golpe e transcorrendo até 1969, o segundo Seminário esteve


permeado pelas tensões próprias a um novo “engajamento”, num momento de crise
profunda e radicalização política, de reversão da euforia desenvolvimentista e muita des­
confiança quanto ao “progresso” das forças produtivas. Foi influenciado pelas revoluções
chinesa e cubana, pela condenação do sistema soviético por Trótski, pelo existencialismo
sartreano, pela teoria crítica de Frankfurt e pelas novas análises do subdesenvolvimento
- com André Gunder Frank, Ruy Mauro Marini, Caio Prado Jr. e Regis Debray. Dele
participavam com alguma regularidade: Sérgio Ferro, Roberto Schwarz, Ruy Fausto,
Lourdes Sola, Emir Sader, Emilia Viotti da Costa, João Quartin de Moraes, Célia e José
Quirino dos Santos, Albertina e Cláudio Vouga.
perspectiva crítica, que terá continuidade em “O canteiro e o desenho”:
Sérgio parte da questão da moradia em direção à economia política da cons­
trução, numa análise mais geral do modo de produção da arquitetura.
O ponto de chegada deste primeiro texto, não por acaso, é o de partida do
segundo: a arquitetura como forma da forma-mercadoria. Seu movimento é,
assim, espelhado em relação ao da versão final. Sérgio realiza ali uma espécie
de dialética ascendente, do particular ao universal, do concreto ao abstrato,
passando da autoconstrução (não-mercadoria, a princípio) à mansão (a mer­
cadoria em sua forma-tesouro), até chegar à produção em massa para o
mercado de classe média no Brasil (quando a forma-mercadoria se apresenta
em seu estado mais puro). Em “O canteiro e o desenho”, como em O capital —
do qual Sérgio se inspira no método de exposição —, a lógica interna do texto
é inversa: parte-se da forma abstrata mais simples (a forma-mercadoria e sua
“forma de tipo-zero”) até se chegar ao concreto pensado, o trabalho na arte e
como arte, numa espécie de dialética descendente. No prefácio a O capital,
Marx explica as diferenças entre método de pesquisa e de exposição, o que, se
adotarmos os mesmos critérios, nos permite considerar que no ensaio acabado
Sérgio emprega claramente o procedimento de exposição de uma Teoria (abs­
trata), enquanto no esboço encontramos um texto exploratório, de pesquisa —
que mobiliza dados primários (como a pesquisa de Carlos Lemos e Maria
Ruth Sampaio sobre autoconstrução, dados do Dieese, experiências pessoais
com clientes, e outras fontes), utiliza referências espaciais concretas (os
bairros operários, o Morumbi das elites, a Consolação da classe média, Brasí­
lia e suas cidades-satélites) e deixa aparecer seu “canteiro” de redação,
impregnado da experiência brasileira e reverberando ainda a possibilidade da
praxis transformadora, naquele momento interrompida.
Nesse ensaio, Sérgio investiga pela primeira vez a condição efetiva do can­
teiro de obras. Ele encontra ali uma espécie de zona de sombra, um “lugar fora
das idéias”8 — o canteiro como um espaço até então não pensado, não simboli­
zado, sem história — um território intelectualmente invisível e materialmente
escamoteado (inclusive pelos tapumes). O mito da neutralidade da ciência e da
técnica — tão poderoso que até então a maior parte dos marxistas considerava
ainda as forças produtivas como uma categoria ideologicamente neutra e seu
desenvolvimento como intrinsecamente positivo — será a partir de então desfeito

8 Uso aqui a inversão livre da expressão de Roberto Schwarz “As idéias fora do lugar”,
proposta por Francisco de Oliveira e adotada por Ermínia Maricato para descrever outra
zona de sombra: a cidade clandestina, oculta aos olhos do urbanismo moderno, do Estado
e dos direitos da cidadania. Cf. A cidade do pensamento único. Petrópolis: Vozes, 2000.
metodicamente pela crítica de Sérgio, que descreverá o canteiro como um lugar
importante na luta de classes, na extração de mais-valia e na alienação do traba­
lho, local onde se forma e se dá forma ao fetiche da mercadoria-arquitetura.
“A produção da casa no Brasil” é, assim, tanto uma leitura introdutória
fundamental a “O canteiro e o desenho”, pois nos prepara a enfrentar a
atmosfera mais rarefeita da teoria, como também possui luz própria. Nele,
por exemplo, Sérgio interpreta com particular interesse a questão da moradia
no Brasil, tema não mais abordado nos textos posteriores. Foram suas ano­
tações sobre a “Casa popular” que deram as principais coordenadas para
toda uma geração de críticos da autoconstrução nos anos 1970. Sérgio foi o
primeiro a apontar que o caráter atrasado da autoconstrução nas periferias
estava diretamente associado ao padrão de industrialização do país, e que esta
forma rudimentar de provisão habitacional, baseada na economia e esforço
próprio dos trabalhadores, colaborava para a redução de seus salários no setor
/

moderno. E deste modo que a produção de um valor de uso, a casa feita pelo
morador, aparece socialmente como valor de troca — pois permite que se
abrigue a baixíssimo custo uma mercadoria especial: a força de trabalho.
E assim que “a produção aparentemente marginal revela o sistema total­
mente inclusivo”.
Ainda neste texto, Sérgio caracteriza o atraso da indústria da construção
no Brasil e avalia suas causas, tema igualmente não mais retomado. Em
linhas gerais, as razoes por ele apontadas são: a abundância de mão-de-obra
(diferentemente da Europa na reconstrução do pós-guerra, quando a escas­
sez de trabalhadores impulsionou a pré-fabricação); a estrutura arcaica do
campo, estimulando uma migração ininterrupta para as cidades; o interesse
dos empresários em manter uma baixa composição orgânica do capital no
setor (elevada taxa de capital variável, isto é, muita força de trabalho e redu­
zido capital constante — meios de produção, como máquinas), o que torna a
construção fonte generosa de mais-valia; a posição retrógrada dos operários
em relação à técnica, como estratégia para garantir o emprego; a irrigação do
estreito mercado de classe média por operações financeiras, como a criação do
Banco Nacional de Habitação (que mobilizou fundos dos trabalhadores para
“impulsionar com novo vigor o desumano processo tradicional da construção
civil”); e, por fim, um interesse geral dos demais setores da economia em
manter áreas atrasadas de produção, uma vez que a mais-valia excedente ali
produzida alimenta a todos por meio de mecanismos de compensação.
Percebendo semelhanças entre o quadro de atraso que descrevia no can­
teiro de obras e nossa condição de economia subdesenvolvida, Sérgio faz uma
provocadora analogia ao comparar a posição da construção civil na economia
nacional com o papel que cumprem os países subdesenvolvidos na economia
mundial. Subdesenvolvimento e atraso na construção, por isso, não devem ser
entendidos como anomalias ou etapas a serem vencidas, mas como parte coex-
tensiva do próprio desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo.
Extraindo as conseqüências desta interpretação, Sérgio não acredita que
a industrialização da construção ocorrerá de modo consistente no Brasil
enquanto questões mais fundamentais da sociedade não forem enfrentadas
— reforma agrária, pleno emprego, melhores salários, universalização da edu­
cação, moradia etc. Ou seja, a superação do atraso na construção só se daria,
de fato, num quadro de superação do próprio subdesenvolvimento. E nada,
naquele momento de reação conservadora, permitia afirmar que, no Brasil,
tais reformas iriam ocorrer dentro do capitalismo.
Nesses anos, Sérgio participa da luta armada, integrando a ALN (Ação
Libertadora Nacional), de Marighella. Realiza ações de guerrilha urbana, é
preso, torturado e exilado.
Na França, já como professor da Escola de Arquitetura de Grenoble,
finaliza o que denominamos, na estrutura desta coletânea, sua TESE, a qual
envia para a revista Almanaque — uma publicação animada por professores de
filosofia e crítica literária em São Paulo — em 1976, ainda durante os anos de
repressão (sairá em livro, pela editora Projeto, em 1979). Sérgio justifica em
parte 0 hermetismo notório do texto como forma de enganar a censura. Entre­
tanto, a dificuldade de leitura pode ser atribuída à forma como ele aborda seu
objeto pelo método dialético, e da grande quantidade de novas referências, não
apenas marxistas, como também vinculadas ao debate francês pós-1968 — com­
binando sociologia do trabalho, estruturalismo, pós-estruturalismo, antropolo­
gia, psicanálise e teorias da percepção e do desejo.
“O canteiro e o desenho” é a obra central de Sérgio Ferro. Nela, estabe­
lece uma nova dimensão para seu trabalho: a tentativa de produzir, de forma
consistente, uma teoria crítica da arquitetura. Em torno dela gravita toda
sua produção teórica e prática (inclusive no campo da pintura). Seus escritos
anteriores podem ser entendidos como esboços preparatórios dessa formula­
ção essencial e, o que se seguirá, não importa se variando as obras estudadas
ou ampliando e renovando as referências, é uma obstinada reiteração dessa
versão original.
Em “O canteiro e o desenho”, Sérgio pretende decifrar o mistério da “farsa
da construção” e demonstrar que a elaboração material do espaço é mais uma
função no processo de valorização do capital do que fruto de alguma coerência
técnica ou artística interna à obra. Sua hipótese central é de que o desenho
de arquitetura é o “caminho obrigatório” para a extração da mais-valia e não
pode ser separado de qualquer outro desenho para a produção de mercado­
rias — um “detalhe” sintomaticamente esquecido pelas teorias hegemônicas.
Segundo Sérgio, cabe ao desenho dar ligadura, servir de molde onde o trabalho
idiotizado é cristalizado — por isso ele é mais fôrma do que forma.
Sua convincente caracterização da produção da arquitetura como organi­
zação do trabalho em forma de manufatura9 — sucessão de operações, divisão
acentuada do trabalho, habilidade técnica do produtor no uso de ferramentas
simples e ausência de máquinas comandando a produção (ou seja, a chamada
indústria da construção não é uma indústria) — lhe permite diversas interpre­
tações interessantes. Na manufatura, o capital divide o trabalhador, separa suas
ações em pedaços, numa decomposição forçada dos ofícios. As equipes são orga­
nizadas para tarefas limitadas nas quais a compreensão do conjunto do pro-
/
cesso, presente no artesão, é dispensada. E na divisão manufatureira do traba­
lho que surge a figura do arquiteto com seu “desenho separado”, encarregado
da concepção da totalidade do objeto. No canteiro de obras, a fragmentação e a
hierarquização criam uma pirâmide que define o grau de acesso a informações,
partindo do mestre capacitado a ler os desenhos até os inúmeros serventes que
apenas transportam cargas sem saber de nada — são energia em estado puro. As
separações também procuram enfraquecer o poder político dos trabalhadores,
através de demissões e transferências freqüentes, evitando a formação de fortes
identidades em cada equipe de trabalho.
A todas essas separações corresponde o seu contrário: uma re-totalização
forçada sob o comando do capital. Forma-se o “trabalhador coletivo”, que é a
reorganização dos trabalhos separados em função da produção da mercadoria
definida a priori. O desenho, por sua vez, determina a convergência das diversas
ações num produto final - ajudado, é claro, pelo capataz. Assim, o trabalho é
separado e reunido por uma dupla violência, uma vez que não há livre associa­
ção entre os trabalhadores. Sob a aparência da neutralidade técnica ou da liber­
dade formal, ele segrega, degrada e idiotiza o trabalho, ao mesmo tempo que
fornece o molde em que se coagula o trabalho separado.
A combinação contraditória entre técnica de produção e técnica de domi­
nação, própria ao capitalismo, expressa-se, desse modo, de forma mais nítida
nos canteiros de obra do que na indústria, afirma Sérgio, pois a ausência da
mediação mecânica deixa transparecer com clareza o comando arbitrário da
exploração. A especificidade da divisão do trabalho na manufatura é, por isso,
a violência — e uma instabilidade sem tréguas —, num setor que, teoricamente,
deveria buscar a estabilidade e o acúmulo de experiência e saber. Por sua vez,
na ausência das distâncias impostas pela mecanização da indústria, são ins­
tauradas outras distâncias, a “mediação arquitetônica” (formalismo, jogo de

g Tendo como referência o capítulo xil, vol.i, de O capital.


volumes, texturas) e o apagamento das marcas do processo de produção, sobre­
tudo por meio da camuflagem dada pelo revestimento (“cujo segredo é fazer
do trabalho concreto trabalho abstrato”).
/

E justamente o caráter escancarado da direção despótica neste setor da


produção que possibilita, pelo avesso, caso a dominação cesse, ser um campo
de experimentação dos mais férteis. A superação da contradição produ­
ção/dominação na arquitetura permitiria aos canteiros de obra tornarem-se
grandes campos de experiência em trabalho livre, autogestão e produção
de conhecimento — nessas circunstâncias é que então a arquitetura poderia
voltar a ser entendida como arte, na definição de William Morris: art is joy
in labour. Para esse canteiro emancipado, onde arquitetura e trabalho livre
se encontrariam, Sérgio propõe o que denominou “estética da separação”:
a partir de uma liberação das tensões antagônicas e das repressões, deixar
o corpo produtivo “soltar-se nas suas atuais divergências” e, num segundo
tempo, de totalização, a cooperação entre os diversos trabalhos em diálogo
horizontal. Aqui uma diferença com a “poética da economia”: para além da
prescrição correta de um desenho atento aos materiais e técnicas locais, a
nova estética nasce da organização livre do trabalho e da conseqüente perda
de importância do desenho como ordem de serviço. Nos textos finais desta
coletânea, Sérgio retoma sua proposta estética para um trabalho livre na
arquitetura e a melhor qualifica, como veremos.
A arte, e a pintura em particular, a qual Sérgio se dedica intensamente
nesses anos, são o grande contraponto ao desenho prescritivo da arquitetura.
Sérgio encontra na arte uma espécie de “índice negativo da luta de classes na
produção”, por deixar de lado a divisão entre fazer e pensar, a hierarquia e o
parcelamento, fundamentais à dominação. Para ele, “pintura é rebeldia” e,
apesar de não escapar à torrente do sistema, procura suas margens ou resiste
por opção. As diferenças entre os dois tipos de representação são evidencia­
das quando Sérgio adota o exemplo de Cézanne. Na pintura, o intervalo e o
vazio são elementos construtivos — Cézanne foi um mestre em sua utilização —,
enquanto no desenho de arquitetura o intervalo e o vazio fazem parte de uma
notação cifrada, separação entre trabalhador e produto. Ou seja, são métodos de
projeto cujas lógicas são opostas, como bem explicou Argan em Projeto e destino.
E, pois, na interpretação da natureza do desenho de arquitetura no capi­
talismo (ou na modernidade) que se encontra o argumento central do ensaio:
a aproximação entre a forma-desenho e a noção marxista de valor. No capi­
talismo, explica Sérgio, o desenho de arquitetura tende a uma forma auto-
suficiente e auto-referente — que, em resumo, não é mais que o inchamento
das regras visuais da “boa forma”. O desenho fica trancado, assim, em seu
“em-si”, e o verbo desenhar aumenta sua tendência intransitiva. A “forma de
tipo-zero”, desprovida de significação por si mesma, pode ser entendida como
“uma das corporificações da forma valor”. Segundo Sérgio, é um desenho
que aplaina o tempo pela hora social média do trabalho abstrato — o espaço
é homogeneizado por uma espécie de “trama imutável” (de novo, o desenho
como molde) que permite a sua mercantilização. Toda particularidade espa­
cial é assim marginalizada, pois o desenho intransitivo não quer saber mais da
singularidade da obra, e passa a olhar somente para o que há de mais univer­
sal. E é, pois, como um universal, que o desenho “se achega a outro universal
— o valor”. O suporte particular revela, deste modo, o que verdadeiramente é:
“abstração coisificada” — cabe a ele a função simbólica de dar corpo ao capital.
Enfim, a análise da contradição desenho/canteiro realiza a demarcação
de um campo conceituai novo, um método para se interpretar a arquitetura e
indicar possibilidades. A crítica à forma-desenho e à forma-canteiro define os
fundamentos de uma interpretação da arquitetura para além das construções
ideológicas, daí que se constitua numa “teoria crítica” — distinguindo-se, por
oposição, das teorias convencionais.
Em contato com “O canteiro e o desenho” estão as demais iniciativas de
Sérgio no exílio, com novas formulações para o mesmo tema. Para o capítulo
GRENOBLE, foram escolhidos cinco ensaios relativamente curtos que pretendem
cobrir o arco das intervenções de Sérgio na crítica e no ensino de arquitetura na
França (Sérgio também publicou neste país dois livros, aqui não incluídos pela
sua extensão, sobre o convento de La Tourette, de Le Corbusier, em co-autoria
com outros pesquisadores, e sobre a capela Mediei, de Michelangelo).
“Reflexões para uma política na arquitetura” é seu texto de chegada na
França, um programa para formação de arquitetos encomendado pela Escola
de Arquitetura de Grenoble, uma das mais importantes do país, na qual Sérgio
passaria a ser professor a partir de 1972. Nele reencontramos, quase dez anos
depois, o tom provocativo do manifesto “Proposta inicial para um debate”.
O programa foi redigido logo após sua saída do presídio Tiradentes, ou seja,
antes de “O canteiro e o desenho”, e estabelece de forma implacável (e didá­
tica) uma proposta de crítica marxista ao atual “modo de produção arquitetu­
ral” e, concomitantemente, de tarefas fundamentais para uma nova prática,
incluindo a do ensino (ao final, apenas brevemente mencionada). Sérgio abre
o texto questionando as interpretações correntes dadas à tão discutida “crise”
na arquitetura: para ele, a crise não seria apenas de caráter formal, restrita
à dimensão cultural, mas do modo de produção como um todo. Aqui, nova­
mente, sua caracterização da arquitetura como, antes de tudo, um processo de
“produção de mercadorias”, no qual super-estrutura e infra-estrutura estão
intrinsecamente associadas — daí ser “impossível a confiança ingênua numa
racionalidade de conteúdo exclusivamente arquitetural”. Como explica, a
irracionalidade visível na produção da arquitetura não é uma anomalia, ela é
exigida objetivam ente pelas condições da produção em geral. Neste sentido,
Sérgio dá um passo adiante em relação ao texto “Arquitetura nova”: agora
afirma que a contradição entre arquitetura e técnica — dando origem àquela
deformação mútua - é só aparente e esconde a contradição verdadeira entre a
arquitetura e as eslruturas que impedem de fato o que poderia ser uma livre
expressão da força de trabalho. Ou seja, a “crise” não é super-estrutural, mas
decorre da própria “irracionalidade da exploração, onde a violência se traduz
tecnicamente na manutenção forçada de uma forma arcaica de produção.”
De forma mais ampla, Sérgio sustenta que, enquanto o processo pro­
dutivo da arquitetura não for obj eto de reflexão e transformação em um
sentido emancipador, a crença imperturbável na positividade do progresso,
tal como a exprimiam os modernos, irá reiterar a cada canteiro novos episó­
dios de retrocesso e violência social. A aposta nos desdobramentos positivos
do desenvolvimento das forças produtivas (no sentido de um salto qualitativo,
revolucionário), ao contrário do que prometia, se fez, em todo o mundo e espe­
cialmente na periferia, sob formas atrasadas de produção e mesmo tirando
partido dessa condição — daí o tamanho do descompasso entre as intenções dos
arquitetos e o que de fato realizaram. A virada de perspectiva dada por Sérgio,
nota Roberto Schwarz,10 rompeu a aura de nossas obras-mestras modernistas
consagradas e revelou-as, ao final, como verdadeiros “acintes”. Em resumo,
segundo Roberto, “à luz das realidades do canteiro, a imagem da arquitetura
moderna mudou: ela agora aparece como a irracionalidade encarnada”.
A partir de meados dos anos 1980, Sérgio Ferro esteve à frente do Labora­
tório Dessin/Chantier (deve-se ler, explica Sérgio: “desenho sobre o canteiro,
por cima do canteiro”), espaço de pesquisa em história da arquitetura na
Escola de Arquitetura de Grenoble. Apresentamos aqui três textos represen­
tativos da produção de Sérgio no Laboratório. O primeiro deles, “Desenho e
canteiro na concepção do convento de La Tourette”, é um resumo de seu livro
sobre a obra de Le Corbusier,11 trabalho que deu origem ao grupo de pes-

10 “Reflexões...”, publicado no Brasil em 1980, inspirou um novo ensaio de Roberto


Schwarz, “O progresso antigamente” (Que horas são? São Paulo: Cia. das Letras, 1987),
no qual o crítico percebe na crise da arquitetura moderna brasileira (visível, em seu
descompasso entre a evolução das forças produtivas locais e aquela demandada pela
arquitetura moderna internacional) uma manifestação do fenômeno mais geral da crise
da própria noção de progresso.
11 Le Corbusier: le couvent de La Tourette. Em co-autoria com Chérif Kebbal, Philippe
19 Poitié e Cyrille Simonnet. Marselha: Éditions Parenthèses, 1987.
quisa. 0 objetivo era interpretar o convento evitando sucumbir ao seu fascínio
estético, para olhar “atrás da cortina”, seu canteiro — por meio do estudo em
detalhe das plantas de execução, diários de obra, cartas, relatórios, entrevistas
e uma análise cuidadosa da forma construída. O que a equipe de pesquisadores
descobriu foi que, ao contrário do que exibe a plástica de precisão mecânica
e que nos faz crer numa espécie de “montagem em grandes dimensões”,
nos deparamos com uma manufatura “bagunçadíssima”, sem regularidade
alguma, praticamente só de casos particulares e adaptações. A obra teria sido
“uma confusão permanente, desenhos chegando após a execução ou não che­
gando nunca, atrasos, desentendimentos de equipes de trabalhos, disfunciona-
mentos, crises, etc”. Le Corbusier, entretanto, soube impor a seus intérpretes a
leitura de suas obras da maneira que lhe interessava. Convence pelo poder da
intensidade plástica, do arrebatamento estético, e de um certo tipo de discurso,
uma “retórica do verossímil”, que nos leva a ler a obra somente como apa­
rência, como casca. Mas, por trás da encenação, o canteiro, mesmo abafado, é
ainda quem escreve o roteiro, afirma Sérgio, daí a possibilidade de se detectar
a essência do construído a partir de uma história da sua produção — essa, aliás,
a novidade da perspectiva historiográfica do Laboratório Dessin/Chantier.
No texto “Questões de método”, Sérgio apresenta de forma mais sistemá­
tica as referências teóricas e pressupostos de pesquisa do Laboratório. Serve
quase como um roteiro para novas pesquisas em história da arquitetura que
tenham objetivos críticos semelhantes. Nele, nos deparamos com a nova gra­
mática da teoria crítica de Sérgio que, a partir do início dos anos 1990, passa
a associar à sua matriz marxista a semiologia do mais importante filósofo
norte-americano do século xix, Charles Sanders Peirce — e seus conceitos de
índice, ícone, símbolo e signo, como também suas categorias de primeiridade
(as qualidade puras, como a cor), secundidade (ocorrências reais na relação
entre coisas) e terceiridade (conexão entre fenômenos), entre outras. Entre­
tanto, o conceito chave em sua crítica ainda é de origem marxista: a noção de
“material”, emprestada de Adorno, mas organizada a partir de uma grade de
categorias inspiradas sobretudo em Peirce (e secundariamente em Heidegger,
Benjamin, Barthes, Lacan, Popper, etc). Como define Sérgio, “o material é
tudo o que serve para a construção da obra (...), é a matéria mais os homens
que a trabalham, é o suporte ativo do trabalho de concepção e de realização”.
Para interpretar a “ocorrência do material”, introduz nove categorias, agru­
padas em três grandes séries (como em Peirce): o material no interior de suas
determinações específicas (o que ele é em determinado momento histórico,
sua aplicação, a estrutura e a lei que o regem); 0 impacto das determinações
externas sobre o material (fatores que condicionam sua concepção funcional,
20 técnica, poética, vestígios do trabalho inscritos no material e aspectos sim­
bólicos a ele associados); e as diversas formas de discurso que compõem uma
constelação em torno do material (o vocabulário técnico, os procedimentos
habituais, os discursos e tratados).
Uma aplicação livre, sintética e esclarecedora de algumas das possibili­
dades do novo método é apresentada no terceiro texto, “0 ‘material5 em Le
Corbusier55, que compara o artista pintor com o arquiteto. A contraposição da
arquitetura com as outras artes, recorrente nas análises do Laboratório, tem
como objetivo contrastar a forma de ocorrência do material em cada um dos
campos, permitindo verificar claramente as diferenças entre seus modos de
produção — e questionando o postulado até então intocável da afinidade das
artes.12 Nesta nova análise sobre Le Corbusier, Sérgio procura demonstrar a
existência de uma espécie de “quiasma” no arquiteto-pintor, pois ele trata a
pintura como manufatura e a arquitetura como artesanato, invertendo seus
postulados produtivos. Na pintura, explica Sérgio, seus quadros resultam de
etapas (teóricas) de produção que deveriam ser as de um canteiro de obras
ideal: a superposição e a sucessão de “componentes” separados. Mas, infeliz­
mente, o canteiro tem ali importância fora de seu campo. Na arquitetura, ao
contrário, o desenho explora a diferenciação gradual de um material neutro
(um concreto idealizado) — procedimento que deveria nortear a pintura. Esse
material puramente imaginário faz com que, quase sempre, Le Corbusier nos
convide a admirar uma construção plástica na arquitetura sem ligação alguma
com a estrutura real, assumindo uma postura contrária à evidência técnica.
No âmbito do ensino, Sérgio Ferro também não se acomoda a uma situa­
ção dada. Além do programa-manifesto de 1972, participa, em 1994, da ela­
boração de uma nova proposta pedagógica, apoiada em sua teoria crítica — 0
“Programa para pólo de ensino, pesquisa e experimentação da construção”
em Isle D’Abeau, cuja versão inicial, aqui apresentada, foi por ele coordenada
e em grande parte redigida. Como afirmara no programa anterior (“Refle­
xões...”), é necessário associar a crítica radical à prática, pois “toda crítica,
mesmo radical, que não conduz a uma prática modificadora, é um exercício
acadêmico de pouco interesse”. Proibido de realizar obras na França por
não ter seu diploma de arquiteto reconhecido (a situação é esdrúxula, como
narra noutro texto, pois poderia ter sido professor de si mesmo e diplomar-
se), Sérgio investe seus esforços não apenas no Laboratório Dessin/Chantier,
mas também na elaboração de uma proposta de grandes ateliês pedagógicos

12 Uma aplicação mais extensa e sistemática desse método é feita por Sérgio em sua inter­
pretação da capela Mediei, comparando Michelangelo escultor e arquiteto. Michel-Ange:
architecte et sculpteur de la Chapelle Medieis (igg8). Grenoble: Plan fixe édition, igg8.
e experimentais articulando o ensino das escolas de arquitetura, engenha­
ria e belas-artes de todo o país. O pólo aposta numa “pedagogia do fazer”,
explica, e não é uma escola substituta às existentes, mas um espaço peda­
gógico complementar, que colabora na investigação da dimensão prática. A
noção de “material”, em seu sentido amplo, como já comentado, também é o
alicerce do programa de ensino, entendido “como objeto físico (com pressões
de forma, de força, de materiais) e como objeto econômico (com pressões de
produção, de manipulação, de ambiente, de uso)”. O Ministério da Constru­
ção, para aprovar e financiar o pólo, entretanto, alterou a proposição original,
esvaziando seu conteúdo crítico, e Sérgio abandonou o projeto.
A partir da segunda metade dos anos 1980, com as mortes de Rodrigo
Lefèvre, Vilanova Artigas e Flávio Império, Sérgio passa a ser convidado,
no Brasilia realizar balanços sobre sua trajetória e de sua geração por meio
de entrevistas, depoimentos e novos textos, alguns deles reproduzidos em
RECAPITULAÇÕES BRASILEIRAS. É assim que Sérgio retoma a interlocução entre
a experiência brasileira e a forma geral de reprodução do capital no ambiente
construído, presente no texto de 1969 (“A produção da casa no Brasil”). As
suas idéias voltam a assentar-se sobre seu lugar concreto, de origem — a
periferia do capitalismo —, e a encontrar aqui o espaço onde, de fato, estão
enraizadas e são enunciadas. Mesmo no centro, na França, foi sua condição de
arquiteto da periferia que lhe permitiu perceber no canteiro de obras aspectos
próprios ao subdesenvolvimento, e entender a economia política da constru­
ção como alegoria do desenvolvimento desigual e combinado.
Nas três entrevistas aqui apresentadas Sérgio discute nosso “brutalismo
caboclo” — expressão que foi por ele empregada em “Arquitetura nova” para
“chatear e agredir”, mas que servia, depois da análise de La Tourette, como
ironia às avessas, isto é, como forma de afirmar que aqui o brutalismo era um
programa mais verdadeiro do que lá, no sentido de uma proposta coerente
com os problemas locais da periferia, e daí sua sinceridade construtiva, em
oposição ao decor de Le Corbusier —, suas afinidades e diferenças com Vila­
nova Artigas, o trabalho em conjunto com Flávio e Rodrigo, a militância polí­
tica, as críticas a “O canteiro e o desenho”, a opção pela pintura, as iniciativas
pedagógicas na França, e sua esperança na luta dos movimentos populares,
em especial do MST. Mas, sobretudo, Sérgio retorna à grande experiência da
arquitetura moderna no Brasil: a construção de Brasília.
O depoimento sobre o significado da nova capital, concedido em 2005,
investiga em detalhes os impasses e contradições da ação dos arquitetos bra­
sileiros. Sérgio reconhece em Brasília, experiência que viveu de perto (como
jovem construtor, filho de político do PSD e incorporador imobiliário da
22 capital), uma espécie de subsolo nacional que fundamenta toda a sua crítica
futura. Ao olhar para o canteiro de Brasília, Sérgio percebe que a arquitetura
moderna — e, no limite, o próprio capitalismo periférico — reitera (a seu favor)
as condições de atraso que prometia superar. Nota, na contradição em grande
escala entre formas arrojadas que expressavam o desejo nacional de equipa­
rar-se rapidamente aos países centrais e seus canteiros de obra em evidente
situação de atraso na evolução das forças produtivas, uma disparidade entre
aparência de modernidade e base econômica real que expõe, por extensão, o
caráter próprio da modernização periférica.
/

E assim que Sérgio passa a apontar as afinidades eletivas entre moderni­


zação e funcionalismo na arquitetura. O centralismo autoritário na política e
na economia, que produz o clima geral de “inchamento do poder” típico do
desenvolvimentismo, chega à arquitetura como acentuação da hegemonia do
projeto, da autoridade do risco. A conseqüência é o aprofundamento da domi­
nação, com a crescente exploração e alienação dos trabalhadores. De um lado,
a plástica dos volumes puros, das capas brancas, encobre o fazer desqualifi­
cado dos candangos, numa autonomização da obra em relação aos produtores
(como afirma Sérgio, apenas a arquitetura que deixa à vista sua lógica cons­
trutiva apropriada exige trabalho mais qualificado e expõe sua presença).
De outro, os imensos canteiros de obra, onde se emprega muita força de
trabalho e paga-se pouco, são verdadeiros mananciais de extração de mais-
valia, não por acaso, contemporâneos ao programa de industrialização do país
— dali saía a massa de valor que alimentava os setores de ponta, ao mesmo
tempo que o suporte material para a produção automobilística que já, naquele
tempo, escoava riqueza para o capital internacional.
São essas algumas das constatações que fazem com que Sérgio, invertendo
a perspectiva de “Arquitetura nova”, passe a reconhecer no golpe militar de
1964 não mais uma ruptura, mas a própria continuidade da modernização
conservadora. Como diz, “exagerando um pouco, passamos de uma situação
em que havia um assentimento largo para outra em que precisou de violência
para se afirmar — mas, em si, mudou pouco.” A violência não se instala, assim,
em 1964, pois é intrínseca ao esforço modernizador: “Essa necessidade do pólo
autoritário, demandada pela urgência do acúmulo de capitais foi o que levou
a que a violência ainda disfarçável em Brasília passasse a não poder mais ser
escondida a partir da ditadura”.
Sérgio, entretanto, percebe no funcionalismo moderno inicial, especial­
mente no de Lucio Costa, um projeto equilibrado, sóbrio no arroubo pessoal,
atento aos materiais, próximo do canteiro real e procurando no passado do país
um fundamento autóctone, de preferência popular, para a emancipação nacio­
nal. Lucio, em 1951, já havia escrito sobre o divórcio entre canteiro e desenho
— embora nunca mais tenha voltado ao assunto —, numa passagem de “Muita
construção, alguma arquitetura e um milagre”, umflash que antecipa a crítica
de Sérgio. Lucio afirma que no Brasil, até o século XIX, a construção era resul­
tado “da iniciativa, do engenho e da invenção do próprio obreiro, estabele­
cendo-se assim um certo vínculo de participação” — “o povo artesão era parte
consciente na elaboração e invenção”. Depois disso, o processo criativo passou a
se restringir “àqueles poucos que concebem e elaboram o modelo original, não
passando a legião dos que produzem de autômatos, em perene jejum de parti­
cipação artística, alheios como são à iniciativa criadora”. Em seu depoimento,
Sérgio considera que a arquitetura de Lucio, diferentemente da de Niemeyer,
se aproxima destas questões — “não que libere o produtor, mas aproveitando os
elementos simples, corretamente aplicados, freqüentemente à vista, implanta
pelo menos as condições materiais para uma esperada poética”.
Essa também é a interpretação de Sérgio, guardadas as diferenças, para
a casa projetada por Flávio Império em Ubatuba, em 1961, e que emprega
abóbadas catalãs. Sobre elas há um teto-jardim — que torna a casa quase invi­
sível para quem a vê da praia. As águas da chuva que regam o teto gramado
saem por gárgulas situadas nos encontros das abóbadas e percorrem canais
até alcançar os pontos de captação — o caminho das águas produz sua cenogra­
fia. Seu trabalho “abriu picadas para a nossa arquitetura”, afirma Sérgio em
“Flávio arquiteto”, texto dedicado a recuperar a trajetória do companheiro.
Assistindo Morte e Vida Severina, em i960, Sérgio conta que ficou convencido
de que a cenografia e o figurino de Flávio estavam oferecendo uma “espécie
de confirmação” do que deveria ser feito em arquitetura: “materiais simples
(saco de estopa engomado e amassado nas roupas, papel e cola nas caveiras de
boi) transfigurados pela invenção lúcida convinham mais ao nosso tempo do
que a contrafação de modelos metropolitanos”. Sérgio lembra que a casa em
abóbada desenhada por Flávio em 1965 para a família de sua irmã, mas não
executada, concentrava “tudo o que queríamos em arquitetura”. O protótipo
teria sido “nossa contribuição mais original” — “em termos pedantes diria
que criamos um novo legi-signo”, uma nova lei que rege a “ocorrência do
material” (nos termos da nova gramática de Sérgio).
O ensaio mais teórico, e mais distante da experiência nacional, neste
capítulo, é “O fetichismo na arquitetura”, publicado em 2002. Trata-se
de um desdobramento preliminar da revisão de “O canteiro e o desenho”
— empreendida naqueles anos por solicitação da direção da Escola de Arqui­
tetura de Grenoble, e que apresentamos no último capítulo desta coletânea.
Aqui, Sérgio se detém na questão do fetiche, um dos argumentos centrais
de sua crítica, e avança em direção ao que caracteriza como “inversão do
fetiche” pela arquitetura contemporânea no capitalismo financeirizado. Para
24 Sérgio, estaríamos diante de uma nova simetria entre forma arquitetônica e
acumulação capitalista. O paradigma, neste caso, não é mais Mies e Le Cor­
busier, mas Frank Gehry e seu Guggenheim de Bilbao (entre outros). Na
fase anterior, mal ou bem, havia uma certa correspondência entre capital e
construção. Agora, com o capital financeiro, toda especificidade da produção
é secundária, “para a arquitetura star de hoje, o construtivo que se dane”.
Como afirma, sua arma é a exibição escancarada das aberrações mais elemen­
tares: “mostra-se o maior escárnio pela produção”, embaralham-se tramas,
inclinam-se pilares e paredes em ângulos inusitados, o desenho no computa­
dor aumenta sua força e permite figuras que antes seriam irrealizáveis com
régua e compasso. Outra diferença: a exploração não é mais refratada por um
discurso humanista, de ar generoso, embora com pouco peso prático; na arqui­
tetura pós-moderna a ideologia burguesa deu lugar ao cinismo — “o que está
mudando é que começa-se a perder a vergonha”.
Passados quase trinta anos de “O canteiro e o desenho”, todos nós, e não
apenas a direção da Escola de Arquitetura de Grenoble, gostaríamos de saber
como Sérgio Ferro releria (ou reescreveria) sua “tese”. Pois, disciplinado,
ele seguiu a sugestão da direção da Escola e agora nos apresenta seu balanço
inédito sobre o ensaio de 1976. Nestes COMENTÁRIOS FINAIS, Sérgio acabou, na
verdade, redigindo uma nova versão do texto original, de mesmo tamanho e
densidade, em que o foco principal se mantém, mas os argumentos, exemplos e
referências teóricas se diversificam. “Sobre O canteiro e o desenho” é composto
por quatro tipos principais de registro: uma auto-biografia intelectual, na qual
retoma sua experiência no Brasil dos anos i960; interpretações de passagens
cruciais da história da arquitetura e a crítica a suas narrativas laudatórias;
análises pontuais de obras de alguns dos principais arquitetos-demiurgos da
modernidade (Brunelleschi, Palladio, Michelangelo e Le Corbusier), ilustra­
tivas de suas posições teóricas e pequenas obras-primas do gênero; e, por fim,
momentos de construção teórica abstrata (e cada vez mais hegeliana), aprofun­
dando questões do texto anterior ou apresentando novas formulações — como o
conceito de trace (rastro), índice do sujeito da produção na arquitetura, a marca
final do trabalho na obra construída e matriz de sua dimensão estética.
São duas as grandes transições históricas investigadas por Sérgio: a pas­
sagem do primeiro gótico para o clássico, nos séculos XV e XVI; e a passagem
do ecletismo para a arquitetura moderna, nos séculos XIX e XX. A hipótese de
Sérgio é de que ambas as transições foram momentos importantes da luta
de classes no canteiro, ao longo das quais o capital impôs derrotas ao traba­
lho, por meio de mudanças na linguagem e nos materiais. No primeiro caso,
onde Sérgio mais se detém, dá-se a separação entre o desenho e o canteiro,
constituindo um novo profissional destacado do corpo produtivo, alterando
substancialmente o modo de produção anterior, coordenado pelas corporações
de ofício. O canteiro de obras passa “a não ter mais seu fim em si (não pro­
gride mais a partir de si) - mas deve realizar um dever ser freqüentemente
contrário à sua lógica própria”. Pirenne e Le Goff localizam essa transição
no momento em que a urbanização crescente, com a construção de muralhas
e catedrais, fez com que esses imensos canteiros se tornassem atrativos eco­
nomicamente (numa espécie de new deal medieval). Essa percepção do can­
teiro de obras como espaço de acumulação do capital e motor do crescimento
econômico fez com que se quebrasse o poder das corporações. Como explica
Sérgio, para pagar menos e fazer o operário trabalhar mais, destruiu-se a
autonomia do canteiro, dividiram-se e especializaram-se Larefas, misturaram-
se trabalhadores qualificados com migrantes recém chegados, etc. Começa,
assim, uma história na qual os tratados de arquitetura expressam enorme
desdém pelos trabalhadores da construção, agora transfigurada pelo herói
dos novos tempos, o gênio do artista-arquiteto. O estilo clássico, revivido, vai
tornar-se durante séculos a linguagem exclusiva dos arquitetos. Para Sérgio,
não há justificativa plausível para a exumação de regras, proporções e formas
das artes grega e romana, senão a necessidade de submeter o trabalho ao
capital. Por isso, descreve o estilo clássico como sendo expressão e uma das
molas da primeira fase do capitalismo, se espalhando por todo o mundo à sua
sombra — “o clássico é um universal do capital, com infinitas particularida­
des”. Com ele dá-se o salto, o corte, mudam-se os hábitos, os usos, o horizonte,
as formas e o vocabulário — decreta-se abominável o estilo “germânico”, dos
goths bárbaros e das corporações de ofício.
A segunda passagem histórica, do ecletismo ao moderno, também teria
sido uma resposta a outro momento da luta de classes no canteiro. A arquite­
tura moderna, nessa interpretação, pode ser vista como uma “reação assus­
tada” contra o avanço ameaçador do sindicalismo revolucionário do século xix
— que reclamava todo o poder de decisão e gestão (ao invés de férias e reposi­
ção salarial), em particular na construção. A força maior desse sindicalismo se
deu num momento até hoje menosprezado da história da arquitetura, o ecle­
tismo — uma “linguagem de reação ao clássico”, e que produziu, por exemplo,
o cinturão vermelho de Paris, com residências operárias de grande qualidade.
Mas a revolução industrial, a racionalidade técnica, o cálculo das estruturas,
os novos materiais queriam manter a marcha da história e provar que há
razões objetivas para continuar a dominação. O ornamento, um dos índices
do trabalho na arquitetura eclética, passa então a ser combatido pelos moder­
nos, como Adolf Loos. Neste ponto, Sérgio inverte o raciocínio da chamada
“estética arquitetural” e, em especial, da arquitetura moderna, valorizando o
ornamento — verdadeira expressão da alegria no trabalho —, em detrimento
26 do que chama de falso ornamento. Este, ao contrário do que se acredita, não
se restringe às formas ostensivas de decoração, mas se aplica também à arqui­
tetura branca e lisa dos arquitetos modernos, cuja austeridade puritana no
fundo vem a encobrir, com uma capa, o construído. O saber operário, base do
seu poder, torna-se perigoso e é preciso que ele se “dissipe atrás da decoração
do não-ornamento” da arquitetura moderna. A criação artística, exclusivi­
dade do arquiteto e de sua mão eufórica em torno de seus jogos formais e de
linguagem, não é mais, assim, do que a “expressão sarcástica da liberdade
proibida do trabalho”, transformada em “plástica oficial”.
Após esse percurso explicativo sobre o Desenho, Sérgio inverte a ordem do
texto original e passa aos comentários sobre o Canteiro. Partindo do pressuposto
de que a arquitetura é antes de tudo mercadoria, que seu fundamento é o valor,
recorre mais uma vez à análise da forma da forma-mercadoria e de sua aplicabi­
lidade no campo da construção. Em linha de continuidade com a argumentação
desenvolvida no texto de 1976, Sérgio considera que a forma na arquitetura
expressa e confirma a heteronomia do corpo produtivo e, por isso, “seu con­
teúdo é vazio”. A argumentação ideológica, entretanto, vai alçá-la à categoria
de venustas (na definição famosa de Vitruvius), em detrimento das duas outras
categorias: soliditas (correção técnica) e utilitas (função). Mais indeterminada,
a venustas (aparência) é que justificaria as escolhas no ato de projetar. Mas, em
nome do quê? Pretensamente, da beleza. O discurso estético passa, assim, para o
primeiro plano, acima da efetividade da soliditas, e da funcionalidade da utilitas
(seus opostos prosaicos). O que é negado na prática volta no desenho como mera
“fisionomia”. Neste passo, Sérgio recorre a Kant para expor o que se entende, ao
menos nestes últimos dois séculos, por beleza arquitetônica — embora Kant não
atribuísse tais definições da beleza à arquitetura, justamente devido ao caráter
utilitário desta, mas suas categorias se aplicam literalmente às alegadas virtudes
da venustas, ou daquele supplement d’âme, segundo a afirmação dos arquitetos
dc que arquitetura é construção e mais alguma coisa... Segundo a Critica do
Juízo, resume Sérgio, o juízo estético julga sem nenhum interesse, sem conceito,
sem representação de um fim, mas como objeto de uma satisfação necessária. E
ele se pergunta: de qual necessidade se trata, excluídos interesse, conceito e fina­
lidade, senão de uma “intersubjetividade” de uns poucos europeus cultivados?
Por isso, é importante que só a aparência da finalidade conte, ou que ela não
corresponda a um conceito — que ela pareça ter uma finalidade e não a tenha,
fazendo com que, por seu status isolado, a venustas seja totalmente auto-orien-
tada, tenha um fim em si mesma — desculpa para o desenho separado e sepa­
rador. Daí, inclusive, sua aura prestigiosa. Separado, entretanto, “o conceito de
beleza permanece desesperadamente vazio”.
Sérgio dedica-se então a imaginar o que seria uma produção da arquite­
tura na qual esse conceito estético fosse preenchido por um conteúdo real.
Não basta, como afirma, que os arquitetos estejam imbuídos das melhores
intenções, nem apenas uma mudança jurídica na posse dos meios de produção
— como demonstrou a trágica experiência do socialismo real. Para uma outra
prática da arquitetura seriam necessárias a mudança radical das relações de
produção e a supressão da venda da força de trabalho. Sérgio, a princípio,
decide pela conveniência do caráter manufatureiro na arquitetura - ao invés
de uma produção industrial, por exemplo — e pretende, paradoxalmente,
radicalizar a divisão do trabalho (pois só assim é possível a formação do tra­
balhador coletivo, ao invés da regressão à figura mítica do artesão), fortalecer
as equipes de ofício, sua autonomia e sua cooperação livre. Trata-se aqui de
um tópico controverso: Sérgio, de forma muito heterodoxa, não pleiteia a
“industrialização da construção” (pré-fabricação e montagem em canteiro)
como fazem os modernos, inclusive na sua vertente marxista, mas, ao contrá­
rio, defende que se tome partido do relativo atraso produtivo da arquitetura,
numa espécie de “manufatura corrigida” que negue a servidão ao capital e se
torne meio para a construção de um sujeito livre e sua poética.
Apenas como trabalho coletivo autonomamente organizado, como livre
razão coletiva, a arquitetura produzirá seu “verdadeiro conceito” e sua beleza
própria. Nessa transformação se dará a substituição do ego do arquiteto,
manifesto no virtuosismo de seu desenho, pelo sujeito coletivo que adquire
“consciência de si” como produtor do espaço. Esse sujeito deixará, como
índice de sua presença, o rastro {trace) da produção liberada impresso no
“material” — substrato que registra o tempo do trabalho. A restituição da
categoria de tempo à obra, em sentido hegeliano, é necessária para que ela
se forme como conceito, em oposição à plástica destemporalizante que nega
o trabalho e produz um deslocamento da autonomia do sujeito para o objeto.
Sérgio retoma Hegel enfaticamenLe, seja para afirmar que a arquitetura é
simbólica do Geist (Espírito) e portanto nela beleza e verdade são a mesma
coisa; seja para incorporar sua perspectiva, por assim dizer, otimista do traba­
lho (após a constatação do horror em que este se transformou no capitalismo).
Aqui, novamente, outro ponto polêmico, em choque com o marxismo mais
convencional: Sérgio considera que trabalho e emancipação caminham juntos,
ou seja, a libertação do sujeito não se dará pela conquista do tempo livre, no
ócio e na abstração intelectual, mas na re-significação do trabalho manual.
A negação do trabalho abstrato não será sua automação, o não-trabalho, mas
o retorno ao trabalho concreto útil, simultaneamente manual e intelectual, e
à sua expressão poética, o ornamento. Pensamento e trabalho livre não se dis­
sociam, são, como práxis artística, matéria modelada pela mão e pelo espírito.
Neste sentido, Hegel e Morris prevalecem aqui sobre Marx.
28 De outro lado, e ao contrário do que as suas afirmações poderiam ter dado
a entender, Sérgio afirma que esta prática emancipadora ainda exige que se
parta de um “projeto” — projeto que prefigure a união das equipes, enquanto
estas, por sua vez, devem se concentrar na sua própria racionalidade, bus­
cando otimizações específicas. “De modo geral, trata-se do melhor trabalho
utilizando a melhor técnica e o melhor material disponível segundo a melhor
forma do estado do saber e do saber fazer. Isso não se produz em condições de
heteronomia a não ser por acaso. E isso que se chama arte”. E a estética que
dela se ocupa seria uma verdadeira “estética da separação” (a mesma do texto
de 1976, agora ressemantizada). Sérgio dirá que é preciso entender a estética
da separação como resultante da estrita observação da lógica da produção, ou
melhor, uma estética em que a arte não é mais do que a expressão do trabalho
livre. O que, paradoxalmente, torna a arquitetura a mais digna das artes, pois
fica colada a seu fundamento: o trabalho, ou a comunidade dos livres cons­
trutores. A dimensão social da arquitetura faz parte de sua essência — se ela
for livre. A autonomia aparece assim como 0 oposto do autismo que comanda
o desenho intransitivo, pois trata-se do sujeito, coletivo, e não mais do ego do
arquiteto. Quando os trabalhadores souberem o que fazem e porquê, teremos
“uma nova poética, a da mão feliz, a que pensa efetivamente.”
Encerramos o livro com um ensaio curto e didático, “O desenho hoje e seu
contra-desenho”, no qual Sérgio resume os princípios que devem nortear um
novo desenho. Depois de fazer um balanço do estágio atual do desenho em arqui­
tetura, dito pós-moderno, cada vez mais descolado da construção — como o capital
financeiro, da produção —, temos nessa nota final uma espécie de espelhamento
do primeiro texto desta coletânea (“Proposta inicial para um debate”), como
proposta de chegada. Nela, Sérgio conta suas aventuras num mini-canteiro expe­
rimental de produção livre (seu ateliê em Grignan) e condensa em oito tópicos
quais seriam hoje as possibilidades de uma “prática modificadora”.
Sérgio descreve com algum entusiasmo e, sobretudo, com melancolia o seu
canteiro em Grignan, o vilarejo medieval onde mora no interior da França, o
que nos faz perguntar, diante do caráter absolutamente circunscrito daquela
experiência: qual, afinal, 0 lugar para uma nova prática em arquitetura, tal
como enuncia, na sociedade contemporânea? Para Sérgio o principal campo
de experimentação (aqui retomo também outros textos e intervenções) não
está no interior da produção dita convencional, das empreiteiras — interessadas
sobretudo 11a ampliação da produtividade do trabalho —, mas em territórios
“liberados socialmente” pelas organizações populares (como os assentamen­
tos de reforma agrária ou as zonas de habitação popular nos grandes centros
urbanos). Os envolvidos na produção social do espaço nessas áreas enfrentam,
paradoxalmente, uma situação de duplo atraso que, não obstante, surge como
favorável à invenção de novas práticas: primeiro, a possibilidade de tirar
partido da forma de produção relativamente elementar da arquitetura (ela
guarda o sentido experimental da autonomia produtiva melhor do que outros
setores da economia); segundo, a grande maleabilidade dessas áreas “libera­
das”, uma vez que o capital pouco se interessa por elas. Se sua condição de não
inclusão ou ligação frágil com os circuitos de acumulação é, evidentemente,
parte do fim de linha a que chegou a sociedade contemporânea, ela é também
a chance para a invenção de novas formas de organização social e do espaço.
/
E, assim, contraditoriamente, a partir do reconhecimento desse duplo atraso
como força para o surgimento do novo que Sérgio vislumbra o campo onde
deve se dar a aliança entre arquitetura e trabalho livre. Como afirma, “o outro
já germina no seu contrário e pode ser prefigurado sob forma de sua negação
determinada.” Tarefa para as novas gerações — é o que sempre responde.
A obra crítica aqui reunida é, por tudo isso, um forte estímulo para se ima­
ginar alternativas. Ironizando o estereótipo que foi construído a seu respeito,
Sérgio lembra a ocasião, numa de suas primeiras aulas na França, logo após a
derrota do movimento de 1968, quando se levantou indignado um aluno situa­
cionista e disse: “O senhor é um traidor! O senhor dá esperanças!”.
O que se lê, de fato, neste livro é um enorme elogio ao trabalho de cons­
truir, e é movido por esse respeito que Sérgio empreende sua crítica. Seu estí­
mulo à capacidade de questionamento das certezas e profissões-de-fé do nosso
métier não tem nada de paralisante, ao contrário do que se diz. Uma prática
informada e transformadora precisa ultrapassar o mundo das aparências, da
naturalidade e do senso comum. A construção de uma consciência avessa ao
conformismo é a única capaz de tornar-se força motora de uma práxis con-
seqüente e fundamentada. O conhecimento da realidade do canteiro e da
teoria crítica, ao invés de inibir, impulsiona a ação afirmativa de uma prática
apoiada no entendimento da sociedade contemporânea e de suas contradições.
Os arquitetos não conformistas, salvo em situações de toque de recolher,
sempre procuraram associar a tarefa da crítica à realização de ações experimen-
/

tais. E por isso que, por outro lado, Sérgio não hesita em afirmar que a crítica
radical ficará sempre aquém de si mesma se não for acompanhada de uma
prática transformadora — mesmo que ele, pessoalmente, tenha sido impedido
ou se impedido de realizá-la. Contudo, é preciso lembrar que, nas circunstâncias
atuais, não há como promover uma prática alternativa que de fato realize todas as
transformações desejadas — trata-se de fazer aproximações sucessivas. Apenas não
se pode deixar de mirar o alvo: a produção livre da arquitetura.
Sérgio Ferro, sem dúvida, nos faz pensar e anima a agir.

Pedro Fiori Arantes, agosto de 2005


PROPOSTA

Sérgio Ferro e Rodrigo Lefèvre, casa Helladio Capisano, c. 1961 (brise do pátio interno).
PROPOSTA INICIAL PARA UM DEBATE: POSSIBILIDADES DE ATUAÇÃO
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Nada mais angustiante e penoso do que a definição e a escolha de caminhos,


não só práticos mas, principalmente, teóricos, na arquitetura, quando se encara
o problema com a responsabilidade devida. Desde as soluções mais diretas
de qualquer caso, como na escolha de uma forma ou cor, ou das propostas um
Douco mais gerais, como a orientação no planejamento, o decidir os vários
elementos dc uma obra, até o enfoque global, a direção primeira do pensa­
mento, as inúmeras implicações de cada atitude, embaralham a intenção e
confundem o pensamento. No exame da historia das propostas que escolhemos,
as diversas razões por que foram criadas e desenvolvidas nem sempre apare-
cem como coerentes com o que pretendemos. Na escolha que somos forçados
a fazer, a determinação de quais as forças que a condicionaram nem sempre é
possível. As previsões carregam mais tendências pessoais ou de situação do que
se baseiam num andamento suposto e, por vezes, pouco informado. A dúvida é
constante em qualquer opção: a angústia originada se acentua pelas intenções
estranhas e mesmo desconhecidas com que se apresentam os caminhos.
Entretanto, a definição por um deles é necessária e está contida em qualquer
posição que se tome. Para nós, é claro que inclusive os maneirismos positivo ou
negativo, ambos não acompanhando a dinâmica do processo, aquele se desenvol­
vendo no sentido de refinamento formal e este se abandonando às fórmulas de
solução caracterizadas por formas deturpadas, maneirismos que hoje marcam a
arquitetura, por mais inconsciência ou indiferença que pretendam, não deixam
de se identificar, perfeitamente, com correntes discerníveis do pensamento.
/

E preciso deixar claro, contudo, que não houve, aqui, defesa de qualquer
irracionalismo básico na atividade criadora: garantimos, quase, a possibilidade
da orientação claramente estabelecida. Os conflitos que percorrem a nossa
realidade são de tal magnitude, neles estamos de tal modo mergulhados que a
consciência que temos de nós mesmos e da situação real sofre destas incoerên­
cias e as contém. A síntese social destas contradições todas, não tendo sido rea­
lizada ainda, não podemos pretender possuí-la no pensamento: isto envolveria
t
uma posição de ilusória autonomia da razão que nos recusamos admitir. E
com a consciência clara desta situação-no-conflito que devemos atuar. A lógica
absoluta não pode ser nossa característica: mais que soluções reais, são proble­
mas que levantamos. Entretanto, por serem confusas e obscuras as possibilida­
des, mais se torna necessário o esforço de conscientização dos vários aspectos e
a procura da segurança das atitudes tem que ser maior. A certeza de um pro­
cesso em andamento, garantida pelo exame do passado, nos encaminha para a
criação de acordo com as suas prováveis necessidades atuais. Não é só modo de
conquistarmos clareza para nós, não é só meio para superarmos nossas contra­
dições pessoais, mas, através desta intenção, atingiremos o geral e ajudaremos
a clareá-lo e resolvê-lo em parte. A angústia da escolha pessoal, pela indeter-
minação aparente das possibilidades, só será diminuída na medida com que se
perceba suas diferenciações, pela predominância de algumas.
Assim, no momento, todo o complexo desencontrado do meio se reflete no
nosso trabalho. São maneirismos, positivo e negativo, que nos impregnam e
que, por distração ou inadvertência, deixamos tingir nossos estudos. As razões
que nos conduzem, por vezes, se obscurecem em outras implicações que não
estavam em nossos planos. As previsões e antecipações de uma solução, por
mais que tentem se fundamentar, não passam de meras hipóteses e, pela
insistência nestas visões de futuro, a obra se torna freqüentemente inade-
para o caso presente. E o que é grave, sobretudo, as nossas respostas às
solicitações, mesmo que opostas nos interesses e nas finalidades, são seme­
lhantes no seu geral.
Apesar de tudo, no essencial, um nítido otimismo aparece: a confiança no
andamento do processo num sentido progressista. Sabemos que as contradi­
ções surgidas vêm principalmente das situações de conflito refletidas em toda
ideologia do tempo, onde as várias direções se mancham de suas contrárias,
onde nem sempre é fácil determinar suas origens e seus compromissos. Sabe­
mos que a nossa incapacidade de responder diferentemente aos chamamentos
opostos vem mais da nossa participação em uma orientação, que nos envolve
totalmente e contém, em si, os elementos da necessidade histórica. Sabemos
que as simplificações a que somos levados se originam da imensa renovação
que se propõe, onde cada passo deve ser cuidadoso; donde em lugar de sim­
plificação, é de “economia” que deveríamos falar, “economia” de meios para
54 formulação da nova linguagem.
NOSSAS OPÇÕES

Esse processo, a que nos referimos, é passível da maior apreensão. Apesar dos
contornos nem sempre claros, no fundamental, dele podemos tirar as linhas
mestras situadas na evolução das bases econômicas da nossa sociedade, das
suas forças de produção e na evolução paralela e dependente da consciência das
oportunidades, que estas forças oferecem, de uma vida mais harmoniosa, una
e total. Por um lado, a produção necessitando de grandes complexos sociais, de
centralização e planejamento da economia, para seu pleno desenvolvimento;
por outro, esta mesma evolução é requerida pelas camadas do povo, tendo em
vista, principalmente, suas necessidades vitais e a humanização das relações
sociais. São exigências comuns a ambos, produção e sociedade, e que, no campo
específico da arquitetura são: o planejamento em todos os níveis, do nacional e
regional ao de pequenos aglomerados, enquanto organização de espaços; a indus­
trialização da construção envolvendo os problemas de quantidade e qualidade
em que se produza os materiais de construção, os problemas de módulos e
de pré-fabricados, os problemas de diferenciação das funções, considerando a
necessidade de eficaz divisão do trabalho em que é fundamental o especificar
progressivo da produção; a racionalização da construção, eliminando inter­
ferências, na obra, entre as várias etapas de montagem; preparo de pessoal
capacitado e sua devida utilização; a conveniência dos espaços às novas condições
de vida social e individual: o fornecimento, antes de tudo, de sistemas gerais de
construção, de estrutura, de vedação, de uso dos materiais e de espaços, dos quais
os casos particulares sejam só adaptações mais ou menos diferenciadas.
Porém, este andamento harmonioso é impedido pelas contradições maiores
da nossa estrutura; por exemplo, a tendência cada vez maior da produção ser feita
por grandes complexos sociais envolvendo no produzir e no consumir a popula­
ção a se expandir, em contraposição ao fato de ser realizada com o fim único de
lucro, deixando de lado as reais necessidades de produtores e consumidores; por
exemplo, a necessidade de planificação nacional e regional da produção agrícola
e industrial, das condições de habitação e trabalho, circulação e lazer tendo em
vista a coletividade, a sociedade como um todo e o atendimento de todos, em con­
traposição ao fato de esta planificação ser dificultada por interesse das classes não
necessitadas; por exemplo, os nossos técnicos e intelectuais, com provadas capaci­
dades, utilizados indevidamente dentro ou fora de seus reais campos de atividade,
pelo desencorajamento e desvio provocados pela necessidade e possibilidade de
maiores ganhos; e enfim, no sentido mais geral, a divisão entre capital e trabalho
originadora de classes de possuidores de capital e de possuidores de trabalho.
É, portanto, graças à tomada de posição participante no desenvolvimento
35 contínuo, do processo que nossas propostas são mais no sentido de acompa-
nhar esta evolução, apesar da mesma estar sendo truncada no presente por
aquelas contradições, e de nossas obras adquirirem um caráter contraditório
com a situação atual. Assim é que surgiram as propostas de ocupação do lote
urbano, esclarecedoras da urgência de planej amento. Assim é que surgiu a
preocupação, na obra individual, não genérica, do emprego dos materiais
de construção como quando utilizados em larga escala, sempre considerados
como produtos de um processo e destinados a uma função. Assim é que foi
feita uma experiência de pré-fabricação, imprópria no caso, pela pouca quan­
tidade de unidades produzidas, e de modulação injustificada pela ausência de
harmonia industrial. Assim é que se diferenciaram as funções — cobertura e
equipamento, estrutura e vedação, etc. — para favorecer economia na produção
e no consumo, tanto dos materiais empregados como da obra acabada, e que
só em conjunto tomam sentido. Assim é que foram gerados os novos espaços,
mais adequados às próximas relações sociais, e sua mobilidade, como fator de
economia no futuro, ao permitir a múltipla utilização de um mesmo local, e
no presente, ao enfrentar as dificuldades de transferência de habitação com
a adaptação desta às condições variantes. Assim é que se impôs uma unidade
dos espaços, tendente a aumentar, baseada em uma unidade fundamental da
atividade humana, por enquanto irrealizável. Assim é que, desta atitude cria­
dora positiva, acreditamos, numa tentativa de substituir, pelo vigor da afirma­
ção, a falha quase total de conteúdo instantâneo, deriva o caráter didático das
soluções, por vezes a razão primeira da insistência na clareza dos espaços, na
diferenciação acentuada desnecessariamente do uso dos materiais, etc.
Assim é que do mínimo útil, do mínimo construtivo e do mínimo didático
necessários, tiramos, quase, as bases de uma nova estética que poderíamos cha­
mar a “poética da economia”, do absolutamente indispensável, da eliminação de
todo o supérfluo, da “economia” de meios para formulação da nova linguagem,
para nós, inteiramente estabelecida nas bases de nossa realidade histórica.

CONCLUSÃO

Esta apresentação não pretende ser mais que uma colocação de problemas e
dúvidas. Não há outra intenção que a de fornecer elementos dos quais partir
para um debate aberto da atividade profissional. Nenhuma conclusão é ina-
/

balável, nenhuma passagem é rígida. E com a convicção, entretanto, que só


um trabalho coletivo de síntese, exame e proposição, só com a colaboração dos
mais variados pontos de vista é possível uma orientação segura.

36
ARQUITETURA EXPERIMENTAL •

1965

Há quem se sinta profundamente moderno por afirmar que o nosso século é


“caótico” e que o mundo do nosso tempo é “non sense”.
Essa atitude subjetivista resguarda o sossego da neutralidade incentivando
o conforto heróico-masoquista dos dramas pessoais.
As relações humanas nunca foram cartesianas, a não ser em épocas cujos
limites são oficialmente definidos. Para isso é necessário que se empregue a
força, uma vez que o objetivo é reter a história.
O “caótico” nasce de uma comparação simplista da aparência dos fatos ou
duma ânsia idealista de significações finais para a “explicação” do Universo.
Os sistemas não finalistas e móveis permitem conhecimento. Conhecimento
como forma de participação e não como explicação definitiva, instrumento de
verificação e não “a verdade”.
Nosso esforço de análise procura uma estrutura de fatores que inclua
ocorrências, muitas vezes tidas como menores, num processo mais amplo de
significados.
A arquitetura dos últimos trinta anos desenvolve-se paralelamente a uma
aproximação crescente do aburguesamento da economia pré-capitalista bra­
sileira, apresentando aspectos altamente contraditórios se vistos à luz do seu
real significado, como atividade social e criadora.
Seu emprego como obra de arte restringe-se a uma colocação de classe
que a reserva para algumas obras especiais: a monumentalidade dos edifícios
oficiais e o refinamento das residências mais caras, etc., subestimando sua ori­
gem mais representativa.
A limitação do seu significado social afasta a arquitetura dos vínculos mais
objetivos com a realidade, permitindo distorções que a impedem de agir no
seu verdadeiro campo. Sua manifestação isolada esbarra, inevitavelmente, na
incoerência do seu isolamento, perdendo-se na irracionalidade do processo
de urbanização no seu conjunto. Brasília é o único momento mais amplo na
arquitetura brasileira e, assim mesmo, sua realização prende-se à colocação
de elite da obra de representação.

Flávio Império

Temos sido impedidos de agir porque qualquer proposta de solução em nossos


termos, em termos de arquitetura, só pode contar com atitude modificadora
no processo de desenvolvimento e atitude de não aceitação da infiltração de
métodos de análise e de técnicas características de países super-desenvolvidos,
que para nós assumem cunho de irracionalidade, por mais racionais que se
apresentem em sua origem.
A distribuição do real e precário mercado de trabalho se faz, então, de
forma irregular e absurda, o que provoca a dispersão da atuação de cada um
individualmente, no sentido de diversos campos que nem de longe permitem
contribuições ao nível de nossa formação, no sentido de campos afins à arqui­
tetura, ou da ampliação do nosso próprio campo.
Assim é que surge o arquiteto “dono de casa de boliche”, o arquiteto
“corretor de imóveis”, o arquiteto “vendedor de materiais de construção”, o
arquiteto empregado com funções de engenheiro, o arquiteto “decorador”, o
arquiteto “desenhista”, ou o que mais se possa ser, em conseqüência da neces­
sidade de sobrevivência nessa situação de “à margem da história”.
Para combater a marginalização mais diretamente, é forçado a penetrar
em setores não ligados à construção, como a comunicação visual, o dese­
nho industrial, etc.; é aumentada a atuação, pretensiosa em alguns casos,
em campos próximos, como a pintura, teatro, cinema, literatura, etc.; é
incrementado o interesse pelo levantamento e interpretação dos fatos de
nossa cultura e sentida a necessidade de maior difusão e discussão de nossa
arquitetura, através de publicações, debates, conferências, exposições, etc.,
numa tentativa de substituir a falha quase total de atuação pelo rigor de
cada atitude.
Essa dispersão pode assumir características comprometidas com as
condições do regime, subdesenvolvimento e subserviência: é a escolha mais
fácil e que tende a ampliar o conceito de arquitetura como artigo de luxo.
58 Mas, ao contrário, essa dispersão, se consciente, controlada e ordenada, ser-
vindo para aumentar o conhecimento da nossa realidade, aliada à procura
de interpretações coerentes, ajuda a estabelecer as bases para a superação
dessa situação.

Rodrigo Lefèvre

Da aceitação e compromisso com o falseamento da profissão instalou-se


o conceito de arquitetura como artigo de luxo, parâmetro de aferição do
grau de aburguesamento ou elemento de identificação de nossa “elite” com
os padrões de outras nações. O conceito se alargou e,Tioje, encobre outras
implicações. Associa-se a empreendimentos imobiliários, quando reúne o
“bom gosto” com uma funcionalidade “suspeita”, ao “design” meramente
estético, ao urbanismo plástico das paisagens agradáveis, etc.
Em nossas verdadeiras atribuições, temos sido impedidos de agir. A omis­
são oficial em relação à solução de problemas que nos dizem respeito ou à
interpretação deformada, tendenciosa, de alguns deles, resultam na adoção
de propostas em termos estritamente financeiros ou técnicos, ou, ainda, na
r

adoção de propostas de especialistas estrangeiros. E nesse sentido que têm


sido atacados os principais problemas, o habitacional e o do planejcimento dos
grandes centros urbanos.
As realizações concretas de arquitetura são poucas e restritas. As raras
oportunidades são exploradas em todos os sentidos que possam oferecer, reve­
lando uma ansiedade que procura compensar a frustração crescente.
Elas adquirem um caráter programático e militante com múltiplas inten­
ções. Denunciam as contradições mais graves em cada caso através da clara e
evidente expressão dos artifícios necessários para contorná-las. Simultanea­
mente, fazendo papel de arquitetura de laboratório, ensaiam inúmeras possi­
bilidades técnicas e espaciais, numa atitude de espera e estímulo de transfor­
mações sociais profundas.
A fisionomia geral é heterogênea — não há como encontrar linguagem
harmônica em tempo essencialmente desarmônico.
Mas, e é o essencial, procura participar, dentro de um pensamento emi­
nentemente crítico no momento presente.

Sérgio Ferro
RESIDÊNCIA NO SUMARÉ
projeto: Rodrigo Lefèvre e Sérgio Ferro, arquitetos
construção: Cenpla
proprietário: Marietta Vampré
local: Rua João Moura e Rua Praxedes de Abreu, São Paulo

O lote urbano, absurda conseqüência da propriedade privada da terra e do


atomismo absoluto das concepções de vida que orientam nossas estruturas,
freqüentemente exige artifícios arquitetônicos para a implantação de um
espaço que ofereça condições mínimas de conforto e salubridade.
Quando esses artifícios devem levar em conta ainda a mesquinharia das
áreas do terreno, a intenção de máxima economia no investimento e os inte­
resses imobiliários do proprietário, fica bem delimitada e equacionada grande
parte da área de trabalho do profissional arquiteto no Brasil.
No caso, o problema só oferecia solução fora das estreitas e vazias restri­
ções da propriedade individual; um jardim comum às duas residências permi­
tiria o grau de abertura e insolação necessários a articulações vivenciais mais
ricas que uma simples relação mecânica.

A exigência de máxima economia levou à absoluta racionalização da construção.


A dureza do espaço resultante deixa claro o significado da exigência.

40
RESIDENCIA NO ITAIM
projeto: Rodrigo Lefèvre e Sérgio Ferro, arquitetos
construção: Cenpla
proprietário: Albertina Pederneiras
local: Rua Eduardo de Souza Aranha, São Paulo

A racionalização da construção em todos os setores é fundamental para uma


arquitetura residencial econômica. A supressão de todos os elementos dispen­
sáveis na obra não é suficiente.
De significado maior é a organização do construir. A separação dos servi­
ços, por exemplo, em tempos diferentes, evitando superposição de trabalho e
as interferências possíveis, é fator de redução considerável nos custos.
Dependem do projeto muitas simplificações possíveis: o uso de módulos
que facilitam medições, o emprego de materiais de construção de dimensões
constantes (o bloco de concreto), a padronização dos caixilhos que auxilia a
produção, as instalações elétricas e hidráulicas aparentes e centralizadas, a sis­
tematização de detalhes de acabamento, etc. Todos estes procedimentos têm
conseqüências favoráveis.
Estas preocupações em nada prejudicam a caracterização arquitetônica
mais expressiva. Ao contrário, fazem surgir oportunidades formais inteira­
mente novas.

A racionalização dos elementos de construção estimula a criação de novas possibilidades


formais e expressivas. Nos menores detalhes, a austeridade do desenho imprime o sig­
nificado geral da obra. A regularidade dos materiais não impede a riqueza formal.

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RESIDÊNCIA EM PERDIZES
projeto: Rodrigo Lefèvre e Sérgio Ferro, arquitetos
construção: Cenpla
proprietário: Helladio Capisano
local: Rua Monte Alegre, São Paulo

Arquitetura é, além de ofício, atividade criadora que envolve a elaboração


de formas significativas, como a pintura. Afirma e apresenta os valores que a
orientam.
O limitado campo que o profissional novo encontra, força, muitas vezes, a
transformação de uma residência em descabido manifesto: a necessidade de
dizer, de comunicar, supera a de eficiência.
A arquitetura, hoje, poderia realizar o espaço de um outro tempo, mais
harmônico, mais franco, menos comprometido com a ordem de idéias vigente.
“Em tempo de guerra” talvez valham mais certas colocações, ainda que utópi­
cas, cuja configuração contenha anseios e perspectivas de futuro.

Para ganhar em perspectiva o espaço quase inexistente, a construção foi elevada. Envol­
vendo o pátio interno (núcleo do qual participam todos os ambientes) os vários níveis,
volumes, materiais, texturas se desenvolvem num espaço contínuo, em contraponto. A
luz é controlada na cobertura de cristal por placas móveis; salienta, alternadamente, os
vários detalhes, originando contínuas modificações no conjunto.

42
RESIDÊNCIA NO BUTANTÃ

projeto: Sérgio Ferro, arquiteto


construção: Cenpla
proprietário: Boris Fausto
local: Av. Afrânio Peixoto, São Paulo.

As possibilidades da “nossa” indústria tentam continuamente o arquiteto.


Os ensaios de incorporação dos progressos que realiza se repetem.
Economicamente nem sempre se justificam: são raros os projetos com
alcance necessário para um resultado compensador. Mas a formação univer­
sitária que a nova geração recebeu, orientada para as amplas tarefas, torna
difícil a espera e dá origem a prematuras experiências.
O próprio momento brasileiro pediu o exame de caminhos novos; um
leve indício, hoje desaparecido, de transformações sociais mais profundas,
sugeriam ao arquiteto preparar-se para um exercício diferente da profissão.
A racionalização de técnicas populares e a adaptação do desenho à produção
industrial eram necessárias para as prováveis e diferenciadas solicitações.
As principais dificuldades que surgiram no nosso ensaio não foram as de
mão-de-obra, que se adaptou facilmente às novas técnicas.
O produto industrializado, entretanto, não correspondeu às amostras, e
uma série de “defeitos” de fabricação prejudicou o conjunto da proposta, for­
çando inúmeros expedientes corretivos (as placas não isolam, pela economia
de material, o que a teoria faria supor, o mastique que desaparece sob a ação
da água, forçando o emprego de mata-juntas que não estavam previstas, etc.)

A cobertura, apoiada em quatro pilares centrais, protege uma área maior que a da
casa, formando vários terraços cobertos. Sua regularidade facilita o emprego das placas.
Quando necessário, é ampliada por lajotas pré-moldadas. As placas organizaram livre­
mente o espaço, apesar da rígida modulação. As instalações elétricas aparentes facilita­
ram o trabalho e foram fator de economia.
RESIDÊNCIA EM COTIA
projeto: Sérgio Ferro, arquiteto
construção: Cenpla
proprietário: Bernardo Issler
local: Granja Viana, Estrada de Cotia

A melhor técnica, em determinados casos, nem sempre é a mais adequada.


Há mesmo situações em que a modernidade construtiva é fator secundário.
Enquanto não for possível a industrialização em larga escala, o déficit habita­
cional exige o aproveitamento de técnicas populares e tradicionais. Sua racio­
nalização, despreocupada com sutilezas formais e requintes de acabamento,
associada a uma interpretação correta de nossas necessidades, não só favorece
o surgimento de uma arquitetura sóbria e rude, mas também estimula a ativi­
dade criadora viva e contemporânea que substitui, muitas vezes com base no
improviso, o rebuscado desenho de prancheta.

Uma abóbada circular, construída de vigas retas de tijolo furado, com o auxílio de
cambotas simples de madeira. Foi erguida em poucos dias por um só homem. A inde­
pendência da cobertura permite, simultaneamente, o rigor estrutural e o livre manejo
do espaço interno, a distribuição de funções e áreas de acordo com um sistema de vida
mais integrado e dinâmico, a mobilidade e economia espacial, podendo cada ambiente,
desprovido de desnecessários excessos, ter mais de um uso. São, também, de tijolo, as
divisões internas e os “móveis”, já incluídos na obra (camas, mesas, pias, bancos e
armários). A experiência teve custo bastante baixo: o preço do metro quadrado de cons­
trução não ultrapassou a metade do preço em São Paulo.

44
CORTE

Policiais e estudantes no centro de São Paulo, 1968.


ARQUITETURA NOVA - •'> r
1967

A obra realizada de arquitetura esconde e revela um projeto; como qualquer


realização, deforma-o atenuando ou alterando, na prática, suas propostas
iniciais. Mas guarda, mesmo assim, sua orientação básica. E, por isto, a obra
permite reconstruir, com razoável segurança, os traços mais significativos da
estrutura do projeto.
0 projeto, em arquitetura, envolve vários níveis: é particular, como solução
para determinado problema imediato, e é, também, parte e reflexo de uma
atitude global do seu autor e, através dele, do tempo que vive. Pela análise e
a observação da obra acabada, pela verificação da adequação ou incompati­
bilidade das partes e níveis que a compõem, é possível apontar as intenções e
atitudes mais profundas que guiaram a sua elaboração. Portanto, as eventuais
contradições objetivas de uma obra, verificáveis na construção, na utilização,
nas reações que provoca ou entre os instrumentos usados, explicitam defasa-
gens e incoerências internas do projeto particular e da atitude global que o
justifica e que nele se concretiza.
Projeto, em sentido particular ou como reflexo de uma atitude global,
é a articulação intencional do campo das possibilidades abertas por deter­
minada situação. No caso da arquitetura, o campo a ser articulado contém
limitações, como o padrão técnico disponível e o programa a resolver, cuja
maleabilidade é pequena, e uma região de opções mais livres que indepen­
dem de determinações imediatas e que, por esta razão, são mais capazes
de exprimir as flutuações ideológicas a cada momento. Por exemplo: a
reduzida quantidade de estruturas-tipo a que se pode recorrer aqui e agora
aceita diversas formas de utilização. Se a estrutura em si é índice evidente
de nosso estado construtivo, sua escolha, seu design, em cada oportunidade,
são expressivos das nossas necessidades, tendências e expectativas. E as
variações no tempo da escolha e do design acompanham, além de uma evo­
lução técnica nem sempre verificada, as variações da situação vivida e seu
impacto em cada um.
Se, com a atenção dirigida para estas mudanças freqüentemente sutis,
examinarmos os projetos de arquitetura realizados por grupos da nova gera­
ção brasileira e, em especial, pelos de orientação racional em São Paulo,
notaremos algumas características típicas. Em resumo, são propostas para
um desenvolvimento suposto provável que progressivamente se transfor­
mam, por uma inversão de função, em compensações para a frustração cres­
cente destas propostas, o que é conseguido pelo isolamento fictício da obra
que finge concretizar, no seu microcosmo, o desenvolvimento esperado. A ati­
tude agressiva e provocadora com relação à realidade presente que produziu
aquelas propostas é trocada, mansamente, pelo gesto de uma representação
substitutiva e conciliadora.
Toda arquitetura moderna atuante e responsável levanta propostas para
o atendimento de um progresso esperado e de necessidades coletivas — o que
é normal em uma atividade cujo núcleo, o projeto, inclui sempre o futuro
a ser construído por muitos. De Ledoux a Le Corbusier são constantes as
sugestões que avançam sobre seu tempo e elas importam mais que o simples
funcionalismo da rigorosa e comportada observação de um programa geral­
mente imposto. Estas antecipações hipotéticas, além de exporem o gênero de
desenvolvimento previsto, acusam, pelo que contrariam do presente que as
alimenta, suas limitações mais sofridas.
São raras as propostas aproveitadas ou cujo aproveitamento tenha sido o
desejado inicialmente. A diferença entre proposta e aproveitamento é propor­
cional à distância em que é visto o futuro esperado: quanto maior a distância,
mais fantasiosas as previsões e, portanto, mais cômodas as apropriações. Há
momentos, entretanto, como no Brasil entre 1940 e i960, em que os sintomas
de um provável desenvolvimento social, falsos ou não, mas que foram con­
siderados verdadeiros, estimularam uma otimista atividade antecipadora. O
futuro parecia conter promessas próximas que, em hipótese, requeriam novos
instrumentos. As propostas, supostamente passíveis de aproveitamento quase
imediato, procuraram colar-se às disponibilidades concretas do nosso meio e
às carências do nosso subdesenvolvimento.
t
E o que distingue os trabalhos de Niemeyer e Artigas: avançaram uma
arquitetura sóbria e direta, armada com todos os recursos adequados à situa­
ção brasileira. Equiparam-se com a clareza, a abertura e a coragem constru­
48 tiva próprias para as transformações vagamente anunciadas. Brasília marcou
o apogeu e a interrupção destas esperanças: logo freamos nossos tímidos e
ilusórios avanços sociais e atendemos ao toque militar de recolher.
Os arquitetos novos, preparados nesta tradição cuja preocupação funda­
mental eram as grandes necessidades coletivas, já desde i960 aproximada­
mente, no início da atual crise, sentiam o afastamento crescente entre sua
formação e expectativas e a estreiteza das tarefas profissionais. Seus trabalhos
dirigiam-se, ainda, para as mesmas finalidades. Entretanto, as oportunidades
de realização diminuíam, fechavam-se as perspectivas. Ora, suas propostas
continuavam as mesmas e não havia o que acrescentar: em tese, estavam
prontos os instrumentos para organizar 0 espaço de um outro tempo mais
humano, se bem que seu caráter antecipatório não permitisse senão uma
formulação abstrata. Os novos arquitetos as repetiam. Mas a consciência de
sua inevitável frustração imediata e do desmoronamento do “desenvolvimen-
tismo” começou a tingi-las de uma agressividade maior e a destruir o equilí­
brio e a flexibilidade que possuíam enquanto se acreditavam exeqüíveis. Ao
adiamento de suas esperanças reagiram, no primeiro instante, com a afirma­
ção renovada e acentuada de suas posições principais. Daí esta espécie cabocla
de brutalismo (oposto ao brutalismo estetizante europeu); esta didatização
forçada de todos os procedimentos; a excessiva racionalização construtiva;
o “economismo” gerador de espaços ultradensos raramente justificados por
imposições objetivas, etc.
Esses arquitetos, raspando já o maneirismo, refletiam o mal-estar que se
generalizava. De fato, há nas realizações desta fase, descontados os efeitos de
uma agressividade compreensível, um abuso de petrificação e esquematização
rígida que denuncia o aprofundamento da decomposição estrutural do país.
Repetindo: nos projetos elaborados por este grupo de novos arquitetos — o
mais significativo da atual geração —, a partir de i960, as propostas anteriores
que caracterizavam a arquitetura brasileira, feitas para um desenvolvimento
que parecia provável, são retomadas com a ênfase exagerada decorrente da
consciência de sua impraticabilidade presente e do desaparecimento de suas
tênues bases efetivas, desaparecimento selado pelo truncamento irracional do
nosso lento processo social.
/

Mas, este exagero tem ainda outras fontes. E que aquelas propostas, ape­
sar de não se terem concretizado no nível em que foram pensadas, serviam,
porém, para finalidades distintas, e até opostas. Assim, os estudos sobre pla­
nejamento ou sobre nossa limitação construtiva hoje são utilizados, depois
de convenientemente deformados, pelas forças mesmas que estas intenções
modificadoras, em essência, contrariam: a ditadura e o imperialismo. O
planejamento, de exigência de máximo aproveitamento de recursos se trans­
forma em aparelhamento para restrições internas e subserviência aos senho-
res da técnica mais evoluída (e do capital) que a impõem sem qualquer con­
sideração pelas condições brasileiras que violentam e desconhecem. Um dos
resultados é a indigestão e mais a paralisação do empenho por um desenvolvi­
mento autônomo e apropriado, isto é, o contrário dos propósitos originais que
orientam aqueles estudos. Por outro lado, a indústria da cultura (o sub-dese-
nho industrial, as revistas “especializadas”, a arquitetura decorativa ou imi-
tativa, etc.) e mais a especulação imobiliária, selecionando habilmente entre
as propostas, souberam também inverter em seu proveito as que não eram por
demais agressivas. A inesgotável capacidade antropofágica do sistema baseado
no comércio forçado pela propaganda de mercadorias frequentemente supér­
fluas, com sua crônica carência de novidades estimulantes, deglutiu, com faci­
lidade, o que parecia conter todos os requisitos de uma atitude modificadora,
e a arquitetura brasileira, castrada, serviu de agente de vendas.
Este consumo contínuo e voraz da linguagem, permanentemente enfra­
quecida em sua agressividade pela banalização espúria que dilui a carga
expressiva, somada às reduções do campo profissional provocadas pela crise,
explica melhor o absurdo concreto que são as manifestações principais da
nova arquitetura. Trancados cada vez mais nas obras isoladas e particulares
(de tipo residência burguesa, loja ou clube, por exemplo) os arquitetos foram
duplamente pressionados a aproveitar esta deturpação profissional, que é a
venda privada de um conhecimento coletivo, como angustiada e contradi­
tória oportunidade para a afirmação insistente de suas teses mais genéricas.
Obras isoladas, mesquinhas no seu significado próprio, e, por fugirem ao
controle direto do sistema, obras que retêm os mais amargos contrastes do
mesmo sistema. A presença chocante de teses gerais na particularidade vazia
destas obras, demonstra, claramente, o impasse a que chegaram arquitetos e
a prática da profissão: sua afirmação só é possível dentro de um projeto que
os compromete.
A somatória das duas solicitações adversas, a particular e a teórica modi­
ficadora, produz construções híbridas, desconexas, cuja mensagem se emba­
ralha a si própria pela retórica que deve empregar. Quando a oposição não
é escondida, mas evidenciada com veemência, então esta oposição entre o
que os arquitetos sabem, e propõem, e o que lhes permitem assume objetiva­
mente, na construção, as características da denúncia. Mas a distância entre
a consciência de sua capacidade e a prática sem substância pesa e marca a
tentativa. E, na denúncia, aparecem sinais da contradição não superada. Os
arquitetos bloqueados nas direções que deveriam tomar experimentam vencer
a limitação pintando os limites com as formas das direções. Alienados de sua
função real por um sistema caduco, reagem dentro da faixa que o sistema lhes
50 atribui, aprofundando, com isto, a ruptura entre sua obra e a situação objetiva
a ser combatida. Para enfrentar as forças negativas que os diluem, aceitam a
fragmentação da particularidade, o que é outra forma de diluição. Adensando
seus projetos, revestindo-os de malabarismos expressivos para agredir, afas-
tam-se mais e mais do objeto da agressão e da possibilidade da agressão: com­
plexos demais, já não são ouvidos. Para desalienarem-se aumentam a própria
alienação. Dentro da arquitetura, este é o limite da atitude crítica: a radicali­
zação da contradição até o absurdo. Esta situação, obviamente, é insuperável
por caminhos arquitetônicos.
Mas, muitas vezes, a contradição instaurada é quase insuportável. A cer­
teza do absurdo da atividade profissional nestas condições e da ingenuidade
da reação provocam o mal-estar e a insegurança entre os novos arquitetos.
Para escapar, surgem os disfarces compensatórios para a frustração original.
Ora, o processo mesmo de reação — retomada enfática das posições anteriores
em qualquer ocasião — fornece os meios de escape e com a vantagem suple­
mentar de ainda parecer reação. Sinteticamente, o escape aberto é o seguinte:
a repetição constante das propostas exageradas, agora utópicas e, portanto,
descarnadas, desagregam a intenção global agressiva de desenvolvimento
maior que as estruturava. E desagregam exatamente pelo exagero de cada
$

parte. A forma ampliada, esquematizada e retoricizada pelo esforço didático e


combativo corrompeu a economia da antiga intenção articuladora, seu equi­
líbrio dinâmico entre ser e dever ser, desfazendo sua significação essencial
que estava, precisamente, na sua adequação realista às possibilidades efetivas
do momento. As formas para um conteúdo são limitadas e um conteúdo não
resiste a infinitas variações formais, principalmente quando comprometido
com uma realidade oposta (a racionalidade substantiva das propostas anterio­
res com a irracional particularidade da encomenda individual, por exemplo).
Desfeita aquela perspectiva orientadora, sobram as propostas quase isoladas,
reorganizadas somente se vistas como parte da contraditória posição que exa­
minamos. Para uma observação mais desatenta, permanecem sempre isoladas
e, pela ausência, então, de qualquer outra justificativa aparente, favorecem as
interpretações imanentistas, isto é, interpretações que se subordinam a uma
suposta significação e verdade internas destas propostas. Favorecem, facilitam
a passagem, mas os arquitetos que abdicam de uma atitude consciente e res­
ponsável, que exigiria o aguçamento dramático das contradições inevitáveis,
rapidamente a transpõem.
A história — coagida e auto-destrutiva — de uma posição progressista e
sua linguagem passa a ser a evolução de uma técnica auto-suficiente. Os ins­
trumentos de uma agressão e de uma fase do nosso desenvolvimento hiper­
trofiados adquirem a autonomia de verdades em si. E mais, história e ins­
trumentos transfigurados em evolução interna e fetiches, guardando a aura
que a coerência da atitude agressiva anterior lhes emprestou, tranqüilizam
a quem quer parecer atuante não sendo. Por um mesmo giro reconquistam
auto-estima e respeito por ricochete e o conforto de uma “racionalidade” sem
perigo e sem muita exigência. O planejamento, antes pregação de racionali­
dade no caos brasileiro, vira receita que resolve qualquer desarranjo evidente
— principalmente porque uma só vez foi concretizado, o que permite larga
especulação fácil. Se antes o uso do concreto aparente, na sua rusticidade,
colaborava para uma construção mais franca e econômica, hoje comanda, por
razoes que ninguém examina, as mais rebuscadas filigranas. A organização
diferente de plantas e espaços, fruto de um pensamento atento, desemboca
no exotismo inconseqüente dos arranjos hiperbólicos. E tudo explicado em
função de cuidadosa observação da significação imanente de técnicas ou
materiais, sob a proteção da racionalidade própria de sua evolução. A técnica
cristalizada assume o papel ativo — ela contém a verdade. De instrumento
passa a motivação. Basta segui-la. A má-fé é evidente: as opções dos arquitetos,
cada vez mais gratuitas, são imputadas, agora, ao ser da obra, à sua natureza
intrínseca. Está pronta a transferência cômoda de responsabilidade, escondida
por uma filiação bastarda às árduas conquistas dos arquitetos pioneiros. O que
era agressão serve, hoje, como substituição compensatória. Estes arquitetos do
escape não se conformam, também, com a situação irracional em que vive­
mos. Mas fogem, mansos, em vez de radicalizar suas contradições até o desa­
bamento e, mesmo, de atuar sob qualquer forma.

Alguns exemplos desta inversão.

As estruturas foram sempre uma preocupação fundamental para o arquiteto


brasileiro e por varias razões: oposição ao primitivismo de nossos antiquados
métodos construtivos, necessidade didática de um movimento que buscava
afirmação, reflexo de uma visão de conjunto racionalizante estimulada pela
promessa de desenvolvimento, etc... Se eram escolhidas e proporcionadas
com algum excesso, respondiam a uma demanda de experiências. Hoje
assistimos, nas obras de muitos arquitetos da nova geração, à hemorragia
das pseudo-estruturas. Muitas apresentam um novo desenho das poucas
fórmulas estruturais compatíveis com as nossas limitadas possibilidades,
geralmente inadaptado às reduzidas dimensões do programa. Sublinhadas
artificialmente para evidenciar sua presença, deturpadas para figurar mais
“lógica” do que realmente contêm, estas estruturas escondem várias defor­
mações. Comparadas às anteriores, imediatamente revelam seu absurdo: a
simplicidade e a eficácia esquecidas pelo prazer do virtuosismo individual.
52 Mas um virtuosismo superficial, condicionado à abolição do equilíbrio entre
ser e parecer da estrutura. Vigas necessárias que se escondem; dimensiona­
mento arbitrário; abóbadas que são lajes; abundância de painéis de concreto
inúteis; demonstrações de robustez enganosa, são, praticamente, as ferramen­
tas principais. Não que se queira o rigor absoluto do cálculo matemático. Mas
a “licença poética” tem limites. Sem duvida são mais agressivas que as ante­
riores e respondem parcialmente à renovação forçada de linguagem: mas a
didatização de sua razão de ser (isto é, da racionalidade construtiva) passa
a ser sua quase única razão de ser — e se despreza sua real razão de ser, que
é estruturar. Elas são transformadas em aparato racional irracionalmente
empregado. A racionalidade substantiva desfeita escorrega para uma racio­
nalidade mentirosa, limitada e gratuita, denunciando a ausência de nova
racionalidade substantiva.
O fato dessas estruturas serem trocáveis umas pelas outras e, muitas vezes,
completamente absurdas — e quem conheça o processo pelo qual surgem nos
escritórios ou acompanhe os concursos não poderá negá-lo — não contraria
a ilusão de sua derivação de uma hipotética verdade imanente à técnica. Ao
contrário, a irracionalidade é sua conseqüência direta: é que, simplesmente,
esta verdade não existe. Existe uma ciência de resistência dos materiais,
existe um cálculo de estruturas. Mas o que não existe é significação ou valor
das estruturas em si que justifique a verdade que lhes é emprestada. Uma
estrutura só adquire significação ou valor quando sustentada por um projeto
autêntico, isto é, por uma intenção global que impregna com sua significação
a estrutura, por sua seleção e articulação com os outros elementos da obra e
com o que está fora dela.
Ora, a responsabilidade transferida, quando o arquiteto se abandona à
fragmentação das propostas organicamente coesas do período anterior, foi
a responsabilidade de optar pelos significados que sua linguagem (as pro­
postas exageradas) tomaria, isto é, renúncia ao ato consciente e criador de
seleção e rearticulação intencionada pela denúncia das contradições vividas.
Daí esta individualização fantasiosa das estruturas (ou de qualquer outro
elemento): se o significado é próprio das estruturas, há que procurar a estru­
tura cujo significado seja compatível com o significado do programa — tam­
bém reificado freqüentemente.
Como não existe este significado, o único guia fica sendo a “sensibilidade”
do arquiteto. Obviamente, quando esta “sensibilidade” se satisfaz, as razões
da satisfação são outras, já que a desejada correspondência de significados
é impraticável por não haver significados a corresponder. Como todo ato de
percepção, inclusive a percepção das estruturas, é significativo, reconhece,
inconscientemente, um significado que ele mesmo atribui, mas cuja origem
supõe ser, no caso, a estrutura. E como a relação não é controlada, quando esta
significação satisfaz desejos, necessidades ou ansiedades quaisquer, aplaude a
maravilhosa harmonia das mônadas, se entrega ao encanto das correspondên­
cias afetivas, sem atentar para a catarse subreptícia.
As opções e respostas armadas sobre o concreto, a seriedade de uma téc­
nica cuja retenção dentro das disponibilidades da situação brasileira era sua
melhor manifestação de liberdade ativa e consciente, desaparecem. A incons­
ciência disfarça a inconsistência culposa de uma atitude desfeita em gesto
ilusionista. Fugindo, se submetem aos significados parasitas que atribuem
cegamente ou que recebem por inércia, o efeito é o mesmo. A “sensibilidade”,
assim oca e vaga, nada tem a ver com uma aproximação estética da obra
arquitetônica. A arquitetura só abriga uma dimensão estética quando a coe­
rência responsável do projeto está profundamente ancorada num comprome­
timento prático. Ou seja, quando responde, como técnica, à necessidade obje­
tiva que a pressiona. A dimensão estética é o reconhecimento da síntese densa
e autêntica do seu projeto, isto é, da articulação dirigida que propõe dos dados
da situação para suas possibilidades mais amplificadoras. A dimensão estética
é o resultado das imensas implicações humanas que uma técnica pode possuir.
A má técnica fetichizada, essência da abundância estrutural deturpada de
muitos projetos da nova geração, é a aparência mascarada do medo da respon­
sabilidade, e não empenho estético.
Estrutura, em arquitetura, é, simultaneamente, resposta técnica a algum
problema imediato e reflexo de uma visão organizada da realidade em que é
proposta. Quando a consciência da contradição entre as oportunidades de tra­
balho e a capacidade potencial do pensamento arquitetônico brasileiro não é
clara e criticamente objetivada nas obras, as estruturas exageradas são, quase
exclusivamente, maneira artificial de estabelecer uma aparência de ordena­
ção racional num objeto — a residência burguesa, por exemplo — cuja insigni­
ficância todos reconhecem.
A falta da atitude crítica e agressiva tem a agravante de enfeitar, com a
figuração da racionalidade, o absurdo da particularização imposta da função
eminentemente social do arquiteto. E a continuação deste procedimento
revela que o desvio tem serventia também para o arquiteto que nele se empe­
nha: compensação. A maníaca acentuação da fantasia ridícula à angustia do
reconhecimento da inviabilidade de uma atuação coerente: nesta agressivi­
dade ou criatividade deslocada, apesar de tudo, este arquiteto se sente exis­
tindo, participando. A fantasia agressiva compensa a vacuidade sabida da obra.
Curiosamente, assistimos, aí, ao renascimento de expectativas mágicas.
Nestes casos, a obra se assemelha a um ex-voto invertido que procura
obter de si próprio, para o autor, a indicação de uma totalidade organizada
54 que atenue a carência de perspectivas orientadoras reais. Na ausência de
uma visão clara da situação, aspira-se, para fugir da insegurança, por uma
ordem qualquer. A operação é marcadamente mágica: se a realidade é con­
fusa, transbordante, no lugar do esforço de compreensão, surge a tendên­
cia confortável da deformação simplificadora por ato interno da vontade,
altera-se a visão sem alterar a coisa vista. Esta vontade arbitrária se adapta
■ fjmlquer solução: a natureza da ordem fictícia é indiferente desde que
ordene. Formalmente hipostasiadas, o conteúdo das antigas estruturas some;
sua materialidade, sua adequação são envolvidas pela repetição do seu dever
ser enquanto seu ser real se choca com esta coerência procurada. O estrutu-
ralismo de máscara, mudando a roupagem e guardando, ilusoriamente, os
princípios, esquece o fundamento da atitude anterior e sua base dependente
da interação do fato concreto — a obra a ser estruturada aqui e agora, com
seu conteúdo material e presente — e as possibilidades de uma mudança com­
patível. O resultado é a pantomima.

Outro exemplo.

A densidade, que antes derivava de uma economia espacial justificável num


pais subdesenvolvido e deficitário em construções, invade qualquer obra,
inclusive as “edificações de luxo”.
A lógica miúda da especificação de cada função em pormenor abarrota os
espaços de inúmeras formas, quase todas dispensáveis. Ora, se a densidade
raramente possui razões concretas, podemos supor, mais uma vez, que res­
ponde a outras necessidades. Paralelamente a esta produção farta e anormal
de detalhes e sub-detalhes rebuscados, sua petrificação nas formas geométri­
cas, o abuso de painéis de concreto que exibem artificiosamente as marcas de
seu processo somatório de produção (as tábuas e chapas que são desenhadas
uma a uma), as texturas sempre mais violentas, o retalhamento modular ou
livre das superfícies contínuas, etc., tudo claramente forçado na sua indivi­
dualidade e estratificado definitivamente, são sinais de uma atitude mórbida.
A coisificação desta verborragia analítica não pedida só é explicável pela
mesma causa do estruturalismo exagerado: pela urgência de iludir o próprio
esvaziamento. Assim, a complexidade de um trabalho concreto altamente
comprometido com o conjunto da sociedade é representada pela quantidade
de pormenores irrelevantes, caricatura de complexidade. Troca-se a relação
íntima dos processos orgânicos reais pela aderência mecânica da amorfa
vizinhança multiplicada. É o domínio da quantidade que povoa o fluido e
pegajoso mundo mental desestruturado do homem do tempo da massificação.
Sua aparência inquietante vem exatamente da consciência sempre latente do
seu caráter ilusório e artificial. Vem do mau-humor e do rancor pela mentira
sabida. E a petrificação procura afastar esta consciência. A coloração exces­
siva é sempre o contrapeso de alguma carência básica; a um desvio marcado
sempre corresponde outro inverso nas relações e produções humanas. A petri-
ficação da quantidade, a densidade falsa escondem o nada que é a arquite­
tura hoje se não for crítica. Aqui, o paradoxo do encontro de um movimento
humano com a opacidade da matéria, que é a obra de arte plástica, abandona
a sua abertura e perde o seu efêmero equilíbrio: fica, como se ainda fosse
objetivação humana, a obtusidade absoluta da coisa. Maneira primária e final
de afirmação por negação da própria liberdade e movimentação. A pedra
densa é o modelo perfeito da coisa-em-si; completa, cega, imutável, indife­
rente, faz o papel da segurança inexistente. Com a diferença da má fé e da
imensa obtusidade.

Atuahjiente, é moda ver a arquitetura como sistema de signos.

E inegável que assistimos à transformação de todos os elementos arquitetôni­


cos, e do conjunto, em signos de si próprios. Provas são, exatamente, a estru­
turação formal exagerada e descabida, a densidade e a petrificaçao, e mais
inúmeros aspectos paralelos, não examinados aqui, como a esquematização
funcional, os módulos e grelhas diretoras, o didatismo sempre excessivo, etc.
É necessário, entretanto, fazer algumas diferenciações. De inicio, é conve­
niente separar sinal e símbolo. O sinal é o resultado da adição arbitrária de
um conteúdo a uma forma. Os símbolos, ao contrário, são formas de partici­
pação. Sua estrutura produz ressonâncias que se aproximam das motivadas
pelos conteúdos simbolizados. Mas são também formas de representação. À
apresentação imediata dos conteúdos a que se referem, substituem sua trans­
posição no âmbito da metáfora. Neste sentido, qualquer atividade artística (e
arquitetura, apesar de tudo, ainda é arte, pelo menos nas obras de significação
adequada) é sempre simbolizadora. Ora, o símbolo autêntico desapareceu
na atual arquitetura da nova geração: os conteúdos desejados, cada vez mais
distantes, não se concretizam em nenhuma forma e as formas exteriormente
simbólicas encobrem, somente, a frustração das perspectivas tradicionais. Se
ainda são símbolos, são por inversão: indicam a necessidade dos novos conteú­
dos. Mas esta inversão corrompe a natureza do próprio processo simbolizador
que é apreensão de alguma coisa existente, de conteúdos dispersos mas reais.
O inverso é magia propiciatória.
Na verdade, entre nós, não há símbolos (o último foi o mandala inaca­
bado da catedral de Brasília): há sinais convencionais, extraídos do repertório,
meio correto, meio de ficção, das produções industrializadas e dos símbolos
anteriores diluídos e desestruturados pelo desaparecimento dos conteúdos e
necessidades que os sustentavam. E não poderia ser de outro modo: o símbolo
é sempre estrutural e o que não há é exatamente visão estrutural.
Quando se define a arquitetura como “linguagem com estrutura auto-
reflexiva, sem conteúdo semântico e cuja sintaxe se refaz em cada caso” (Eco),
soma de tautologias para dizer que arquitetura é o que é, na realidade quer-
se apontar para o fenômeno da introdução do sinal no objeto arquitetônico
contemporâneo, experiência que é generalizada arbitrariamente para toda a
arquitetura. Pela recusa em assumir a realidade difícil, acrescenta-se sobre
a evidência imediata do uso espúrio da arquitetura névoas distanciador as e
impalpáveis que sugerem outra realidade, diferente da concreta. E a névoa
dos sinais falseadores de uma racionalidade de fantasia retém e descarrega
uma insatisfação inevitável com o objeto e com a sociedade que o produziu.
Assim, por exemplo, na ausência de uma arquitetura industrializada, já tes­
tada, possível e teoricamente aceita, multiplicam-se os detalhes que seriam
típicos de um sistema de peças prontas, ou diversificam-se e explicitam-se
funções que não têm fundamento no processo artesanal de construção, ou são
propostos esquemas de programas socializantes para situações ultra-particu­
lares; fechaduras, montantes, peitoris, juntas têm a lógica de uma rigorosa
abstração, como se fossem testes para a generalização da experiência; os
detalhes são desenhados como se não possuíssem óbvia motivação — expli-
/

cam-se demais por necessidade de auto-justificação. E somente quando, para


se esquecer do que é, superpõe a imagem do dever ser, que a arquitetura se
reveste de signos que representam a si própria.
Perdida sua razão de ser hoje, arremeda sua utópica possibilidade. Sabe
que não é o que aparenta ser e sublinha o que sabe não ser. E seu projeto abor­
tado evidencia as marcas do aborto: assinala vagamente o que seria se pudesse
se desenvolver, mas o truncamento do desenvolvimento só permite uma pro­
messa monstruosa. A arquitetura representa um papel: é comediante. Percebe
que é atriz de um papel que a envolve, compromete e que continuamente lhe
escapa. E quanto mais perfeita é a representação, maior a frustração; quando
se vê a si própria representando, maior a frustração e o rancor. E o rancor
leva, para tentar superar a frustração, à petrificação para suprimir, magica­
mente, a distância entre comédia e concreção. Mas, como a tentativa é de
má-fé, reaparecem a frustração e o rancor, e o ciclo recomeça. A linguagem
soma-se a metalinguagem. O que constrói dentro de uma perspectiva con­
creta, projeta. Mas projeta proximamente, densamente armado pelo presente.
O projeto de quem projeta no vazio vê o futuro como improvável, distante,
utópico e irrealizável. Para procurá-lo as formas se fortalecem com caracterís­
ticas de ficção para se afastarem de hoje. Inventam para escapar. Criam, indi­
ferentes, a imagem de um futuro cujo principal requisito é não ser hoje, é ser
outro. E os acentos são morbidamente aplicados para acentuar sua alteridade.
Viciada, projeta virtude, para virtuosa encapar os vícios. O envolvimento a
que pretende, entretanto, fica atado ao envolvido, pois é o envolvido que pro­
põe o envolvente. Quer ser julgada a partir de sua imagem criada. Esquizofre­
nia, má-fé, compensação.
A compreensão da arquitetura como sistema de sinais é a generalização de
uma experiência limitada. A transposição do dado imediato, evidente por si
mesmo, que é a coisa utilizável, no nível do sinal, corresponde ao afastamente
da coisa e à intervenção, entre a coisa e o homem, de uma pseudo-realidade
convencional cuja única função é destruir a experiência do concreto. A media­
ção dos sinais quer iludir. Na prostituição o ato assinala um amor que não há.
Como na prostituição, a forma das teses esvaziadas é sinal de uma realização
abandonada. Na prostituição o signo aparece como máscara da prostituição.
O sinal na arquitetura mascara a própria prostituição. Fugindo à realidade
amarga e suja, enfeita-a com o doce embalo de uma mistificação tranqüi-
lizante. E o que no início fora agressão, agora é rendição. O gesto falseador
suprime a atitude positiva.

A repetição no artigo da mesma causa, compensação e fuga de uma realidade


que não se quer enfrentar diretamente, não é somente falha do autor. Os pro­
cessos de substituição são férteis nas formas de desvio, apesar da motivação
primeira simples.
Aliás, a própria multiplicidade de escapes faz parte do mecanismo de defesa:
a observação de qualquer um revela sua fragilidade, mas enquanto este é des-
mistificado, os outros, subrepticiamente, sustentam desapercebidos a mascarada.
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A CASA POPULAR

CONSTRUTOR Em qualquer bairro operário, Limão, Americanópolis, Veleiros,


Vila Carrão, Laranjal, Itaquera, Taguatinga, Núcleo Bandeirante, etc. a maio­
ria das residências foi construída pelos próprios moradores. Mesmo em Osasco,
bairro de operariado qualificado, estudo realizado para a elaboração de seu
Plano Diretor revelou grande porcentagem desta regra. Outra pesquisa,
orientada pelo professor Carlos Lemos sobre casas populares em São Paulo,
fornece as seguintes informações: de 122 moradias levantadas, 108 (88,5%)
foram construídas pelos proprietários; para as restantes 14, empreiteiros ou
pedreiros foram contratados enquanto os proprietários “às vezes, até se trans­
formavam em serventes solícitos.” Geralmente sós, com filhos ou a mulher,
raramente em mutirão, os operários mesmos levantam para si, nos fins de
semana, feriados, ou férias, seu abrigo.*1

materiais Os materiais, sempre os mesmos, são os de menor preço: o tijolo


e a telha de barro, feitos manualmente nas olarias neolíticas, o barro, como

1 A pesquisa do professor Carlos Lemos, em andamento (1969), ainda não foi publicada.
Seus resultados provisórios aparecem resumidos no relatório feito para o fap (Fundo de
Amparo à Pesquisa), cuja cópia está no Departamento de História da fauusp. [A pesquisa
coordenada por Carlos Lemos e Maria Ruth Sampaio foi publicada em 1978, pela
FAUUSP, com o título Habitação popular paulistana autoconstruída. (n.O.)]
aglomerante, a madeira não aparelhada de 3a para estrutura do telhado.
Portas, janelas de tábuas, sem vidro.2 Algumas vezes, são materiais usados:
31 das 122 casas pesquisadas pelo professor Carlos Lemos empregaram mate­
rial de demolição. Chão apiloado, por vezes atijolado, raramente cimentado.
Nenhum emboço ou revestimento. Em tese, outros materiais poderiam ser
empregados. Mas uma série de restrições orienta a escolha: 0 preço reduzido
do material é básico, ele precisa estar disponível perto para evitar o transporte
oneroso, deve possibilitar compra parcelada com as reservas de cada salário ou
com o pequeno crédito do depósito suburbano, verdadeiro BNHzinho popular.
não pode requerer mais do que um indivíduo para sua manipulação e, final-
/

mente, não deve exigir nenhuma técnica especial no seu emprego. E evidente
que todas estas limitações se resumem na estreita margem econômica que
envolve o operário. A vinculação, portanto, de tais materiais à casa popular
não é questão de gosto, higiene, estabilidade ou conforto: é resultado do baixe
nível de consumo permitido por seu salário.

TÉCNICA A técnica utilizada, mais do que aprendida, é vista, vivida, absorvida


por contínua vizinhança. Faz parte do conhecimento popular quase espontâ­
neo, que todos herdam, simples prática compatível com nenhuma especia­
lização. A pesquisa referida mostrou pequena impossibilidade dos operários
enfrentarem, eles sozinhos, a construção da própria moradia, apenas 11,5%.
Entre os 88,5% capazes, havia de todas as áreas de produção, têxteis, mecâ­
nicos, carpinteiros, serventes, faxineiros. Não há empenho, ou melhor, opor­
tunidade, para ousar alterações. Geralmente casados e com filhos, a casa do
arrabalde é a alternativa às sórdidas condições dos porões e quartos dos bair­
ros centrais em decadência. A urgência elimina a inovação, que poderá custar
tempo. Além disso, os poucos tijolos obtidos devem seguir o modelo garan­
tido, afastado de experiências potencialmente perigosas. Como na cozinha
popular, as receitas tradicionais poupam cuidadosamente os ingredientes da
casa. Contradição menor que repete as maiores: continuamente, este mesmo
operário lida com os mais avançados meios de produção, ao responder às suas
carências particulares, entretanto, dispõe somente de si e de pouquíssimos
instrumentos. Recorre ao que já foi largamente provado no local, adaptando

2 O nosso subdesenvolvimento está espelhado nestes materiais. A força do trabalho ainda


é o meio de produção mais barato, não porque sua manutenção, com o avanço das
forças produtivas, tenha baixado de custo, mas porque o nível desta “manutenção” é
baixíssimo. A respeito de sua insuficiência, ver Josué de Castro, Geopolítica dafome. Sãc
Paulo: Brasiliense, 1965.
somente a raquítica técnica aos materiais que pôde obter. Dispõe do tempo
parcelado, não emprega processo algum que exija trabalho continuado, inin­
terrupto, mas aceita o velho modo que é apropriado à renovação completa em
cada etapa da construção, o empilhar de tijolos. Desprovido de qualquer meio
de produção, é operário, recolhe a experiência feita sem equipamento pouco
mais complexo. Devendo contar somente com clc próprio, sem qualquer folga
para aprendizado, reencontra, cada vez, a mesma técnica pré-histórica.

produto Os próprios usuários, portanto, com a técnica absorvida, dispõem


do material de menor preço ou usado do melhor modo conhecido, o que, evi­
dentemente, é sempre precário. O produto obtido com tais limitações só pode
ser padrão. A casa mínima (entre as pesquisadas, 84 (70,5%) possuíam uni­
camente um quarto e 40,9%, apenas dois cômodos) é o utensílio abrigo puro
e elementar dotado exclusivamente do indispensável. A rudeza dos materiais,
a primariedade técnica geram o núcleo restrito ao atendimento franco, ime­
diato. A precisão imposta pela economia na produção ressurge como preci­
são no produto, precisão amarga, não resultado de engenho programado e
escolhido, mas depósito obrigatório de infinitas carências. Nenhum enfeite,
marca do “status” sobreposta: sua situação é evidenciada, exatamente por
sua ausência.

uso O utensílio elementar encaminha a uma utilização imediata, exata: assim


como o supérfluo não aparece na construção, o uso dispensa cuidados. Res­
tando no mínimo, não há excessos que se interponham entre objeto e sua
serventia. Da casa, o operário requer, inicialmente, pouco mais que proteção
contra chuva e frio, espaço e equipamentos suficientes para o preparo de ali­
mentos e descanso. Enfim, tem com ela a relação direta e não mediatizada,
como só surge entre homem e seu instrumento de trabalho pessoal. Não é
envolvido por qualquer fetiche, usa simplesmente, sem mistério ou respeito
exagerado. A casa é feita para servi-lo e serve-se naturalmente dela. Organiza
as áreas conforme sua utilização. A maior e prioritária é reservada ao local
onde prepara alimento, descansa, convive, os filhos brincam ou estudam: a
cozinha (65 casas (54,8%) entre as estudadas possuem cozinha com área
superior a 11 m2). O modo de usar evidencia a classe, tal como 0 produto
usado. Limitado econômica e tecnicamente, o produto gera sua forma de con­
sumo, direta, eficaz. Interiorizado, o produto retorna como hábitos ou com­
portamentos que o confirmam. A eficácia forçada na produção corresponde
à eficácia no consumo, que se propõe como móvel ideal para qualquer nova
produção. E a herança inevitável será transmitida íntegra, imutada.
A produção não cria somente um objeto para o sujeito, mas também um
sujeito para o objeto [...] Produz, por conseguinte, o objeto do consumo, o
modo de consumo e o instinto de consumo.3

O VALOR DE USO SOCIAL Ora forçado ao primário por pressões econômicas,


atinge o social: a eficácia, requerida ao pouco que tem, impõe a permanên­
cia da construção em torno do esquema válido quase universalmente para
os de sua classe. Portanto, apesar da forma de produção artesanal e arcaica,
apesar de construir para si, para atender às suas necessidades básicas parti­
culares, despreocupado com possível utilização por outros, o valor que cria
é um valor de uso social. O valor de uso particular na miséria é intrinseca­
mente um valor de uso social entre os danados da terra: não há excessos que
permitam a objetivação de idiossincrasias, a particularização. E como o níve
a que se deve ater é o da satisfação única de imperativos vitais elementares,
os resultados são praticamente os mesmos, sempre e em qualquer parte,
variando somente em função do estágio histórico dos materiais primários
(isto é, qual o mais barato a cada momento e local)4 compatíveis com a pro­
dução artesanal e individual.

A PEQUENA PROPRIEDADE Como ser em transição, o operário se determina


como sucessão de realizações (efetivas ou apenas aspiradas) gradativamente
‘superiores’ de ser mercadoria, no operariado e na categoria dos trabalhadores
não manuais assalariados; e, quando vem a participar da categoria dos peque-

3 K. Marx, Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Martins Fontes, 2003,
P- 237-
4 Em certas zonas, como Santa Catarina e Paraná, a madeira substitui o tijolo. A única
constante na casa popular, com relação aos materiais, é seu baixo preço e possibilidade
de aquisição parcelada. Em país subdesenvolvido, isto é sinônimo de produtos com
baixíssima composição orgânica do capital, isto é, muita força de trabalho.
A taipa, por sua vez, só foi superada pelo tijolo depois que este foi suficientemente
provado aqui e de escassearem os bambuzais. A cobertura da casa popular fornece ótimo
exemplo do conservadorismo técnico. A passagem do sapé à telha e da taipa ao tijolo foi
suave, contínua, sem grandes inovações. O tijolo, entretanto, permite a cobertura em
abóbada, mais barata e eficaz que a telha. A técnica disponível na tradição, entretanto,
não possibilitou o seu surgimento. Novamente, o compromisso popular com determinac
técnica é baseado em condições históricas de formação desta camada, no nível simples
que possua, nos materiais disponíveis. Não há uma técnica popular: a abóbada, aqui
desconhecida, foi a cobertura tipicamente popular na Argélia.
nos proprietários urbanos ou almeja dela participar, continua a aceitar para os
outros, o ser mercadoria.5

A pesquisa do professor Carlos Lemos revela que geralmente o operário vê


a própria casa como temporária. O que corresponde a fatos comprovados:
grande parte das que possuem três ou mais cômodos são ampliações de um
núcleo original de i ou 2 cômodos. E mais, a própria disposição no terreno
denota insatisfação com o que tem: 60% das casas de 2 cômodos são locali­
zadas no fundo dos terrenos, a frente permanecendo reservada para a futura
casa maior. A possibilidade concreta para alguns de ir acumulando lenta­
mente a área ocupada, por sua vez, permite explicar a constatação da exis­
tência de mais de uma casa no terreno ou de quartos que são postos a aluguel.
Então, o operário “ser em transição” atinge exemplarmente o que para a
maioria permanece aspiração irrealizada: a categoria do “pequeno proprietá­
rio urbano” e passa a usufruir de renda não proveniente de sua venda, mas da
venda de seus “bens”. Constitui cortiços de péssimas condições: o valor de uso
social que obtivera pensando em si, é visto e manipulado como mercadoria.
Entretanto, afirma o relatório da pesquisa, “raros são os que, a priori, já proje­
tam no próprio corpo da casa os cômodos destinados à locação”. O excedente,
eventualmente produzido, é explorado como valor de troca.
Em oposição ao funcionamento habitual da economia capitalista, não é
valor de troca que estimula a produção de valores de uso, mas valores de uso
excedentes são empregados como valor de troca. E o operário que teve a opor­
tunidade de acumulá-los realiza o pressuposto de suas aspirações de ascensão
à “categoria dos pequenos proprietários urbanos”: sua personalidade básica
capitalista não negadora do sistema, mas unicamente do status proletário.6
Pois bem, voltemos ao início. Nos feriados, fins de semana ou férias
quando ergue sua casa, o trabalhador produz para si. Não como o faz diaria­
mente, como força de trabalho vendida, empenhada na valorização do capital.
Não como mercadoria abstrata — força socialmente necessária — a produ­
zir valores genéricos encarnados em valores de uso a ele indiferentes, não
enfrentando os meios de produção como poderes materiais hostis e alheios.
Ao contrário, produz com seus instrumentos seu abrigo, meios de produção
próprios guiados por sua vontade e direção a construir um objeto para seu uso.
O guia da produção, seu motor interno, a carência que atende são particu-

5 Luiz Pereira, Trabalho e desenvolvimento no Brasil. São Paulo: Difusão Européia do


Livro, 1965, p. 208.
6 Cf. Luiz Pereira, op. cit., cap. ui.
lares e próximos. Mas, no afastamento das condiçoos de produção negativas
que encontra enquanto assalariado perde as conquistas que estas condições
lhe permitem. Pois é como trabalhador isolado, só, que enfrenta o que quer
superar, sua miséria. Vendo-se só, servente e operário semi-qualificado, quer
proteger-se só. Nega a universalidade atingida, parte do trabalhador coletivo
atuando com meios de produção em massa, nega a solidariedade orgânica
e coletiva fruto do trabalho comum e retoma o princípio da propriedade
que lhe é negada enquanto assalariado. E o que produz espelha, também
agora, como produz: o indispensável para sua subsistência, resultado tosco
de individualismo auto-suficiente, é a miniatura frustrante do lar burguês,
isolada, fechada, marcando nítidos os contornos de sua posse. Vai buscar as
mais distantes e precárias regiões, esquecido de toda higiene e conquistas
sociais, para poder manter resguardada a unidade obrigatoriamente desfeita
de sua família e a propriedade de sua angustiante moradia lentamente depo­
sitada na expectativa de transbordar sua racionada necessidade e afirmar
sua admissão a pequeno burguês senhor de capitalzinho. Sem dúvida, tudo
o impele a esta solução: a impossibilidade de sobreviver nos cortiços centrais,
onde a relação próxima com outros operários é mediada pela promiscuidade,
a pressão econômica dos salários insuficientes, hábitos rurais, fruto da vida
segregada ainda presentes na sua formação, a especulação imobiliária, o
sindicalismo ausente e oficial, o peso enorme do sistema, enfim. Mas não há
dúvida: a solução que encontram, talvez a única disponível, tem as marcas de
sofrida adaptação.

BAIXA de SALÁRIOS As conseqüências são imediatas: o barateamento da


moradia que obteve recorrendo a todas as suas mínimas habilidades e dispo­
nibilidades, o seu sacrifício, terá como recompensa automática o abaixamento
relativo dos salários, sempre determinados pelo custo menor do absoluta­
mente indispensável à sua manutenção. Seguramenfe, a economia feita na
obtenção da casa seguirá a redução de seu salário real. É a lei do sistema. E
o antagonismo é insuperável dentro dele: não pode permanecer sem casa, é
levado a construí-la. Faz com o que tem: nada, mil “jeitinhos”, economizando
na já magra mesa. Portanto, faz com pequeno custo — não paga administra­
ção, empreiteiro, mão-de-obra, adota materiais rudimentares ou usados, área
mínima, sem banheiro, pia, esgoto, água corrente, luz. É tão baixo o custo que
nem as barbaridades minuciosamente programadas no BNH conseguem com­
petir. Como conseqüência da multiplicação desta microscópica sub-produção,
associada à deterioração crescente das zonas centrais “modernas”, baixa a cota
do salário destinada à moradia. E, progressivamente, disfarçado sob aumentos
nominais totalmente inflacionados, baixa correspondentemente o salário ieal
do operário — baixa acentuada por novo gasto, o da condução. Bastam como
indicação deste fato as seguintes informações do DIEESE (Departamento Inter -
sindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos): no Boletim Informativo
n. 9, de Janeiro de 1968, p. 2, lemos “Levantamentos efetuados pelo DIEESE
mostram que o aluguel médio de casas na cidade de São Paulo, em Janeiro
(de 1968) foi de NCR$ 174,19, muito diferente da quantia de NCR$ 54,65 deter­
minada pelo referido decreto (sobre o salário mínimo)”. Ora, tal discrepância
somente se explica pela enorme economia marginal que o operário consegue
ao produzir a própria casa, justificando uma redução em relação à média que
0 governo decreta com satisfação.

RESUMO Em resumo, encontramos na casa operária uma exceção aparente ao


sistema. A produção, aqui, não é guiada pelo lucro, pelo valor de troca. O seu
imóvel é a produção de um valor de uso. Entretanto, o sistema e o modo de
produção capitalista estão presentes sob várias outras formas: no fato do valor
de uso particular na miséria tornar-se valor de uso social, e aparecer como
valor de troca, apontando a existência de mercado de outros miseráveis; na
contradição entre ser operário, expressão social de um sistema de produção
avançado, e o fato de ter que recorrer, no atendimento a pressões vitais, às
formas mais atrasadas, e mesmo reacionárias, de produção; na resultante de
sua poupança, 0 pouco conforto imediato, acarretando desconforto e preju­
ízo mediatos maiores. A produção aparentemente marginal revela o sistema
totalmente inclusivo.

A MANSÃO

introdução No outro lado da escala social, no Morumbi, por exemplo, o


“fazer sua casa” significa aplicar capital. E, ao invés do mínimo indispensável,
a construção contém o maior acúmulo de elementos supérfluos compatíveis
com o funcionamento e a sanidade mental. Os materiais, a mão-de-obra
especializada e a técnica não mais constituem limitações, ao contrário, se o
deus capital existe, tudo é permitido, tudo e todos estão disponíveis. Pedras
de Ouro Preto, tijolões desenhados, tábuas de jacarandá da Bahia de 50 cen­
tímetros, mármores, granitos polidos, fórmicas, vidros de 2 metros, metais
especiais, aço, alumínio, ladrilhos portugueses, massa corrida, “spots”, lumi­
nárias suecas, torneirinhas em forma de peixe — materiais de tradição nobre
ou requintadamente industrializados ou artesanais alimentam a imaginação
esgotada do decorador. Lajes, balanços, pergolados, rampas, abóbadas, robus­
tas lâminas de concreto de madeirit lixado, motores, engenhos eletrônicos,
treliças, taipas, pedrinhas — tecnicamente, qualquer ousadia é realizável.
Sugestões sutis, desejos remotos (como banheiros de teto de vidro, vaga satis­
fação exibicionista), detalhadas subdivisões de funções diáfanas, efeitos mág:
cos, surpresas, arranjos lúdicos encontrarão “designers” especializados aptos
para efetivá-los.

PRODUÇÃO Acompanhemos a produção. Adquire uma gleba grande em zona


altamente “valorizada” — “valorização” que não resulta de melhoramentos
extraordinários ou da localização economicamente estratégica, mas da garan­
tida seleção da vizinhança. A seguir contrata, isto é, compra vários gêneros
de força de trabalho e serviços, desde o engenheiro, o calculista, o arquiteto,
até serventes e vigias, passando por pedreiros, carpinteiros, mestres, técnicos
em hidráulica, eletricidade, eletrônica, decoradores, paisagistas, etc. Soma, he
obra, quantidade elevada de conhecimentos, técnicas, habilidades e energias
diversificadas. Fornece-lhes todo material pedido em qualquer instante, sem­
pre com a melhor qualidade. Enfim, reclama dos custos, pressiona nos contra­
tos e salários, mas põe na obra o desejado.
Guarda, próximos de si, o arquiteto, o decorador, o engenheiro, o paisa­
gista. A eles impõe o que quer, com a impressão de aspiração ainda não rea­
lizada. Faz com que convivam com ele, jantem, conversem com sua família,
revela pequenos hábitos, eventuais idiossincrasias, preferências estéticas, seu
amor à eficiência de alguns pormenores, frustrações domésticas que recla­
mam atendimento. Arquitetos e decoradores tiram suas medidas, interpretam
sua vontade, elaboram sua imagem. E traçam com largueza e generosidade
tudo o que puderem captar. Debates, alterações, redução de ousadias excessi­
vas. Neste momento o proprietário recebeu educação suplementar, pois pode
desconhecer a si próprio, as exigências de bom gosto e das normas sociais
convenientes a seu “status”. Sob medida, os planos recebem seu “imprima­
tur”. Engenheiros e calculistas põem suas equipes a dimensionar, precisar a
construção. Operários, supervisionados pelo mestre, transportam, levantam.
Enquanto a mansão cresce, o proprietário, insatisfeito com efeitos não previs­
tos e descobrindo hábitos não atendidos, faz derrubar, modificar, acrescentar.
Em dois anos a obra está terminada. A sua casa, fruto de sua vontade, foi feita
à sua imagem e semelhança. Passa a usá-la.

A CASA COMO mercadoria Mas, olhemos melhor esta imagem, esta seme­
lhança. Para “fazer sua casa”, comprou matéria-prima, técnica, projetos e,
sobretudo, força de trabalho. Esse procedimento não lhe é desconhecido ou
novo: as relações de produção da mansão estão próximas da que estabelece na
sua indústria ou outro negócio qualquer. Como aqui, lá a mercantilização está
implícita na produção. Mais-valia acumulada compra os meios para ficar grá-
vida de nova mais-valia, só que aqui, sob a forma da produção de um objeto
específico, seu lar, doce lar. A semelhança de atuação nos dois casos traz, como
automática conseqüência, comportamento semelhante diante dos produtos.
Ambos são, para ele, mercadorias. As de lá, há que vender imediatamente, a
de cá, permanecerá em seu poder.
Se for necessário ou conveniente, venderá. Mas para garantir esta possí­
vel venda, deverá zelar para que o produto, sua casa, possua um valor de uso
social. Nas discussões com o arquiteto, nas modificações que introduz na obra,
tem sempre um olho no mercado. E, consciente da dignidade de sua pou­
pança, restringe o que fez de extremamente pessoal para que não contagie a
validade social de sua mansão. Restringe mas não elimina todas as originali­
dades: afinal, a mercadoria é feita sob medida.

o USO CONSPÍCUO A sua imagem e semelhança também tem que atentar para
as conveniências sociais. É homem de prestígio, posse e visão. Sua aparência e
a de seus objetos precisam responder às imposições de sua posição. É mesmo
forçado a isto.

Aos olhos da comunidade, os homens de prestígio precisam ter atingido um


certo padrão convencional de riqueza, embora tal padrão seja de certo modo
indefinido [...] Para obter e conservar consideração alheia, não é bastante que
/

o homem tenha simplesmente riqueza ou poder. E preciso que ele patenteie


tal riqueza ou poder aos olhos de todos, porque sem prova patente não lhe
darão os outros tal consideração.7

Nos primórdios históricos do modo de produção capitalista — e cada parvenu


capitalista percorre individualmente essa fase — predominam a sede de
riqueza e a avareza como paixões absolutas. Mas o progresso da produção
capitalista não cria apenas um mundo de prazeres. Ele abre com a especulação
e o sistema de crédito milhares de fontes de súbito enriquecimento. Em certo
nível de desenvolvimento, um grau convencional de esbanjamento, que é ao
mesmo tempo ostentação de riqueza, e portanto, meio de obter crédito, torna-
se até uma necessidade do negócio para o ‘infeliz’ capitalista. O luxo entra nos
custos de representação do capital.8

7 Thorstein Veblen, A teoria da classe ociosa. São Paulo: Pioneira, 1965, pp.43 e 48.
8 Karl Marx, O capital. Tradução de Regis Barbosa e Flávio Kothe. São Paulo: Abril
Cultural, col. Os Economistas, 1983, v.i, t.2, p. 173.
As formas particulares do consumo conspícuo foram fartamente descritas por
Thorsteln Veblen. Evlâentemente elas se especificam numa situação diferente
da que usou como modelo de suas observações (a sociedade norte-americana
no fim do século XIX; o livro The Theory of the Leisure Class é de 1899). Mas.
para o que nos interessa aqui, pouca importância tem esta especificação, meras
alterações superficiais derivadas de nossa situação colonial, nossa burguesia
procurando sempre identificar-se com a internacional, buscando nos restos
portugueses os ares de aristocratização pretendida, tudo enfatizado com traços
de inquietação que a própria posição intermediária entre as cortes da metró­
pole e o resto da miserável população brasileira provoca. Como todo objeto
ou serviço consumido exclusivamente pela classe A (burguesia), a mansão
torna-se objeto de uso suntuário. O uso suntuário é diferenciador de classe, ja
que o objeto luxuoso é a materialização da riqueza. A fartura de materiais
requintados, a complexa equipe mobilizada já mesmo durante a obra, expõem
0 poder do proprietário. A obra concluída, sua aparência, dimensão e cuidado
prosseguem revelando-o. Esta demonstração, além das vantagens psicológicas
que proporciona, é fundamental, não esqueçamos, para o bom crédito na praça.,
Receber bem, hospedar bem, divertir bem, são obrigações do bom burguês.
Quem esbanja e pede empréstimos não pede para si, pede para ampliar sua
potência, que a mansão prova. Logo merece o empréstimo.
Mas, o consumo conspícuo e o uso suntuário tem suas regras. Em primeir:
lugar, as coisas usadas exclusivamente por uma classe e que se prestam a um
uso suntuário não envolvem, evidentemente, a vida privada: como todos a
possuem — a não ser os que estão excessivamente afastados na escala social,
‘lumpens” e baixos proletários com os quais nem importa competir — não
serve como diferenciação importante.9
Como conseqüência, a vida privada, que eliminaria o efeito da distinção,
já que é elemento comum, é escondida. Assim, na mansão burguesa, grande
porcentagem da área se destina à exposição de poder e riqueza: entrada social
‘hall”, sala de visitas, sala de jantar, biblioteca, lavabo social, jardins, terraços.

“Ao mesmo tempo, o efeito sobre o consumo é de concentrá-lo sobre as linhas mais evidez.
tes aos observadores, cuja opinião favorável é almejada, enquanto as inclinações e aptidoe?..
cuja prática não envolve gastos honoríficos de tempo e de substância tendem a ser religa-
das ao desuso. Através desta discriminação em favor do consumo visível se verifica que a
vida doméstica da maioria das classes é relativamente mesquinha em comparação com a
parte ostensiva da sua existência que se desenrola perante os olhos do observador. Como
uma segunda conseqüência da mesma discriminação, as pessoas geralmente escondem ái
observação pública a sua vida privada.” T. Veblen, op.cit., pp. 111-112.
salas de jogos, do música, muros cie. Outra parle substancial, entretanto, e
destinada a disfarçar a inevitável vida privada: circulação paralela de serviço,
sala de almoço, entrada e pálio de serviço, sala íntima etc. Note-se que isto
não pretende simplesmente esconder empregados — que, afinal, são demons­
tração móvel de riqueza, mas suas ocupações ligadas à vida privada.
Agora, o instrumento abrigo — que malgrado a sobrecarga sunLuária, é
ainda função da casa — é intruso componente de um todo maior, o ambiente
demonstrador de riquezas. A exibição segue regras de comportamento radi­
calmente distintas das espontâneas maneiras de viver. Os milhares de tiques,
gestos, etiquetas, cuja função é demonstrar que quem os exibe possui suficien­
tes recursos para desenvolver estas atividades totalmente inúteis, tem cenário
determinado: salas, espaços, móveis, tapetes, quinquilharias que não devem
ser usadas. Aos caros comportamentos aleatórios, correspondem depósitos de
trabalho dirigidos para a produção de objetos sem serventia. A prodigalidade
se manifesta melhor quando não é necessária.
Mas, se o objeto por sua intrínseca razão servir, deverá servir contrariado:
se for obrigado a sentar ou habitar, deve ficar patente que se senta ou habita
revestido de normas e desconforto específicos: surge óbvia uma riqueza que
pode diluir-se em objetos e espaços absurdos.
Mas, o industrial contemporâneo sabe o valor e o prestígio da técnica eficaz,
da automação que dispensa a presença desagradável do operário e o explora
somente através de mediações complexas. E o trabalho desperdiçado terá
duas oportunidades preferenciais de surgimento: nos produtos de mórbido
artesanato e nos produtos de tecnologia avançada, empenhados em serviços
dispensáveis. Paredes figurando taipa, formas minuciosamente desenhadas de
concreto, molduras de gesso patinadas escondem alto-falantes mudos,
“high-fidelities”, interfones, controles remotos. Tudo em tom morno, discreta­
mente aparente.
Discrição para evitar o “nouveau-richismo”, aparência para afirmar riqueza,
mormaço para espalhar fastio e indiferença. O tema é imenso e asquerosa­
mente variado. Bastam essas referências. Percebemos já, com maior acuidade,
a imagem e semelhança que a casa reflete: a sua casa, como ele próprio, existe,
para os outros. Ou melhor, para oferecer aos outros uma imagem de si, ima­
gem esperada, pré-estabelecida. Não uma imagem real, atual, mas a imagem
do papel social a que pode, por sua situação econômica, pretender. A casa é o
cenário convencional para a representação de seu triunfo. Imagem e original
começam a inverter suas posições. Pois sua “imagem e semelhança”, seu lar,
é componente essencial de sua definição mesma e lhe empresta o sucesso e
honrabilidade que espelha.
TESOURO Ora, a mansão, vimos, é mercadoria. Declara no imposto sobre a
renda entre os “bens” imóveis e sabe que pode realizá-la quando bem enten­
der. Para isso, entretanto, deve preservá-la, garantí-la contra a usura que
poderá corroer seu valor. Logo, é parcimonioso no seu emprego. Tem que
garantir a permanência do valor de troca do imóvel e mesmo a continuidade
do valor de uso social.
Como o operário de Veleiros jamais penetrará neste mercado, o “social”
aqui, em oposição radical ao que ocorre em Veleiros, é sinônimo de “society
a mansão só tem valor de uso para os VIPs. Conseqüência: há originalidades
que se permitem — completamente objetiváveis, agora —, mas que não devem
ser incompatíveis com o uso requerido a uma casa por quaisquer das famí­
lias “society”. Ora, o que podem ser tais originalidades possíveis? Vimos, a
vida privada está eliminada. Sobram graciosos jogos de salão, ou talvez uma
estufazinha para cultivar suas flores preferidas, as orquídeas parasitas ou, se e
intelectual, uma biblioteca para livros reais ou uma galeria para seus primi­
tivos, ou qualquer outro “hobby” do gênero. Tais originalidades, entretanto,
se transpirarem na organização da casa, de modo algum interferirão no seu
eventual uso por outros, mesmo ao contrário, poderão ser somadas às outras
manifestações de consumo conspícuo, já que, para o novo proprietário, terão
a mesma essência, a inutilidade intrínseca dos gastos honoríficos e suntuosos.
Portanto, a originalidade não corromperá sua mercadoria e isto possibilita a
concreção de sua aspiração: que a casa seja diferenciadora, particular.
Mas, não basta afirmar-se como parte de uma classe, deseja afirmar-se
dentro dela, na hierarquia menor, incluída na maior, como superior aos
outros membros.
Uso parcimonioso de um valor de uso de alto valor de troca, retido em
sua posse: é a definição de tesouro. Sua casa é uma reserva substancial, posta
à margem da circulação. Ouro feito concreto, conhece a alquimia que devol­
verá o ouro — a venda. O aspecto ostentatório colabora com a função tesouro:
porque a ostentação é basicamente a exposição de trabalho inutilizado, mas
concentrado. O tesouro em qualquer de suas formas tem valor determinado
pelas horas de trabalho médio social posto nele. O objeto suntuário é denso
e farto em trabalho coagulado, sem prestimosidade imediata, é verdade,
mas sempre procurando pelos aspirantes ao prestígio social. É mesmo seu
resultado. Daí, inclusive, o horror, entre eles, a qualquer objeto produzido
em série, o que indica, quase sempre, baixo custo unitário, comparado com
o artesanalmente produzido. As formas ousadas ou rebuscadas, revestimen­
tos difíceis, caixilhos especiais etc., como arcas, cadeiras e santos velhos, são
prova dc produção ariesanal, com alto dispêndio de força de trabalho e, por­
tanto. valiosas. Porque é suntuária, a casa é excelente acúmulo de riqueza
social, isto é, trabalho. É excelente tesouro, portanto. (Há razões mais deter­
minantes para que o proprietário da mansão a veja como tesouro. Adiante
voltaremos a isso).
“O tesouro não tem somente uma forma bruta, tem também uma forma
estética”: os objetos, espaços e requintes todos repletos de trabalho social
depositado, constituem os componentes da mansão, tesouro suntuariamente
exposto. Se o consumo conspícuo procura o que não tem serventia, o tesouro
exige o consumo cuidadoso, reduzido. Casamento perfeito: a riqueza reser­
vada está depositada no que não estimula o uso, na inutilidade imediata, que
constitui a maior parte da mansão. O entesourador não precisa ter cuidados
maiores: como a casa, que fez para si, é fundamentalmente inútil, seu con­
sumo será, forçosamente, mínimo.
E os criados, estas outras corporificações de riqueza, encarregar-se-ão de
retocar e arrumar quaisquer desarranjo provocado pelo raro uso.
A sua casa, fruto de sua vontade, feita à sua imagem e semelhança, des­
tinada basicamente a assinalar não somente a sua classe, mas sua posição
dentro dela, sua personalidade, sua originalidade, para cuja produção criou
equipe a seu gosto, que comandou e submeteu, que fez penetrar na sua inti­
midade à procura de seus desejos específicos, a sua casa, na parte visível, não o
particulariza.

particularização Nela, representa personagem anterior a si mesmo, mais


do que vive. Lá, como em todo tesouro, não é o uso que garante a troca, mas
a troca possível justifica o uso limitado. Seu maior valor de uso é o valor de
troca contido. No tesouro suntuário do lar — templo burguês — predomina o
valor sobre o uso, a forma abstrata do trabalho social puramente quantitativa,
sobre a conveniência pessoal. O ser medido, interpretado pelos projetistas, é
reflexo animado de suas coisas. Sua intimidade exposta, preferências estéticas,
frustrações, hábitos, idiossincrasias, são somente desvios, mais ou menos pró­
ximos, da fundamentação de seu ser, a magnitude do próprio capital. Mas a
casa híbrida do Morumbi se compõe de duas partes, a visível e a privada. Ora,
seria pouco provável que a vida privada não fosse largamente contaminada
pela ostentada: seus padrões são apenas pouco menos rígidos do que os públi­
cos. A superioridade a ser provada diante de criados, a ostentação diante dos
íntimos, o comportamento tradicional entre os próprios membros da família,
enfim, toda a ideologia burguesa comparece também aqui. A estereotipia da
família burguesa e seus hábitos internos gera uma configuração esteriotipada
da parte usável da casa que compõe, não esqueçamos, parte irremovível do
tesouro. E o dispêndio conspícuo se aproxima da esteriotipia privada pela rigi­
dez anônima de seus conteúdos.
Apesar, portanto, da possibilidade de consecução de todas as idiossincra­
sias, de todos os prazeres e de todo o conforto, só atravessa a complexa trama
do comportamento burguês em relação à sua casa a autoritária presença da
riqueza. Ha diferenciação: a esteriotipia da vida privada, do conteúdo da
ostentação, a ausência do prazer possível coexistem com a diferença, isto é, a
personificação não se dará através da adaptação do esquema a uma pessoa e
sua família, seus hábitos e desejos especiais, mas pela simples variação forma,
do objeto morado. A casa é marca, sinal, não utensílio particular e sua vincu-
laçao a tal proprietário é convencional, isto é, puramente jurídica. A diferença
entre duas mansões é a mesma que separa dois capitalistas, tantos ncrJí.

[Ao entesourador] só lhe interessa a riqueza na sua forma social e é por issc
que na terra a poe fora do alcance da sociedade [...] Na sua sede de prazer
ilusória e sem limites, renuncia a qualquer prazer. Por querer satisfazer
todas as necessidades sociais, quase não satisfaz as suas necessidades de
primeira ordem.10

O capital do proprietário é a mola e a chave deste enigma. Ele possui o poder


social acumulado em suas mãos. As forças várias de trabalho e serviços adqui­
ridos nada mais são que a forma nova, agora atuante, de parte deste poder. Sc
os adquire porque já possuía. Mas é possuidor caracterizado, pois o que faz, a
sua mansão, indica que pode isolar parte do que possui da produção e pô-la a
seu serviço. Reúne equipe e materiais para atendê-lo e não empreender uma
tarefa qualquer. Material e equipe devem servi-lo acompanhando sua espe­
cificidade. Ora, o que o define são suas possibilidades diferenciais, o que se
pode permitir e outros nao, conseqüência de sua posição na produção. E suas
possibilidades diferenciais são todas do mundo, proprietário que é do coringa
universal, o ouro. Sua especificidade nao é marcada por um ou outro possí­
vel, mas pela generalidade de seus possíveis, por suas quantidades e excessos.
São tantos que qualquer enumeração não os esgota. Somente sua opulência
os exprime, o ouro em excesso. A especificidade do proprietário, o que deve
ser atendido, é a mesma causa visível nas dimensões e qualidade da equipe e
materiais que adquire, mais-valia ociosa.
Origem da equipe, do material excessivo, o capital sobrante é a alma do
proprietário retratado, a estrutura do objeto produzido, a mansão.
A ostentação da riqueza é o mesmo que riqueza excessiva e suas regras
— eliminação do útil, do necessário — são meras manifestações de seu núcleo

IO Karl Marx. Contribuição à crítica da economia política, op. cit., p. 136.


Mas nem todo burguês tem a clarividência do Sr. Rotchild, cujo escudo
eram notas de não sei quantos milhares de libras. Há que atribuir uma
forma qualquer ao ouro feito concreto. Mas qualquer forma frustra. Sua par­
ticularidade estreita nega a universalidade latente no ouro. A forma limita
o conteúdo. Mas o conteúdo específico do proprietário, para cuja captação
e configuração tanto empenho requintado foi posto, é precisamente aquela
universalidade. Na ausência de forma concisa que a expresse, o sucedâneo
é a multiplicação de sua especificidade, a neutralidade anônima da riqueza
invade sua moradia inteira.
Tudo fez para que a imensa gama de seus possíveis, todos os prazeres do
mundo, fosse revelada e concretizada. Mas o triunfo final é de sua externa
raiz, a abstrata riqueza impessoal, revelada em cada canto de seu desandado
movimento. Gerado pelo capital, é Midas, irrecuperável, reproduz eterna­
mente sua origem. E mora na sua essência: no tesouro.

O ESTREITO MERCADO DE MASSA

Deixemos agora os extremos. Motivos diversos nos forçaram seu exame, par­
ticularmente a nitidez de posições contraditórias — que coexistem, entretanto,
na classe média. O extremo Morumbi pouco nos interessa em si, mas pesa nas
expectativas que a pequena burguesia alimenta. O outro, Veleiros, o que mais
pede atenção, é, por algum tempo, ainda marginal. Mas hoje, é na marginali­
dade que se refugia a pouca verdade sobrante. Importa-nos como contraste de
amarga autenticidade em meio à pantomima. Examinaremos a mercadoria
resultado da construção civil em sua forma mais pura, isto é, onde é produ­
zida em massa para mercado massificado, a produção para o consumo pela
classe média.

REVESTIMENTO Todos os padrões de consumo derivam, por gradações percep­


tíveis, dos hábitos de raciocínio e dos usos da classe social e pecuniária mais
elevada, a classe ociosa abastada.11

Na Consolação, na Aclimação, na Vila Buarque, os canteiros de obras expõem


materiais menos “nobres” que os do Morumbi, se bem que largamente
superiores aos de Veleiros ou Caxingui. Dois grandes grupos: os básicos
— ferro, cimento, brita, tijolos, tubos galvanizados etc. — e uma boa mostra

ii T. Veblen, A teoria da classe ociosa. São Paulo: Pioneira, 1965, p. 105.


dos incontáveis materiais — entre revestimentos e pastilhinhas, tacos, lam­
bris, azulejos, cerâmica, elementos vazados, rodapés, granilite etc. Não têm
a “qualidade” do Morumbi, mas são fartos, os de segundo grupo, fundamez.
talmente. A anarquia da produção é visível, nas suas dimensões: poucos têm
medidas compatíveis com as de outros. O tijolo de barro tem 11 centímetros
de largura, o elemento vazado 9,5, os ladrilhos e a cerâmica 15, ou 10, ou 12
Os vidros são múltiplo de 5, o caixilho de nada. As madeiras são cortadas em
centímetros, a tábua de pinho em polegadas. O sistema métrico predomina,
mas a tubulação é fiel à polegada de origem. Os restos inevitáveis freqüente-
mente vão para Veleiros. Abnegados “designers”, arquitetos enchem páginas,
anunciando que o módulo existe. Mas o disperso capital constante, posto em
máquinas de ocasião, está muito acima destes problemas secundários. Dizem
/

que o operário brasileiro tem baixo rendimento, cerca de 70%. E a raça,


também dizem.
A quantidade e diversidade dos materiais de acabamento que se dispõem
na construção civil média é altamente ilustrativa da classe média. Faz parte
da ostentação da burguesia fugir do padrão, do que é produzido industrial-
/
mente. E vulgar.12 A classe média também se preocupa com a ostentação. Mas
o faz nos limites de sua disponibilidade pecuniária menor. Tem que aceitar
a industrialização. Ora, assim como a mania da burguesia da colônia é ser
burguesia metropolitana — o que faz com que se comporte quase como classe
média metropolitana — a mania da classe média é ser burguesia. A burguesia
usa produtos artesanais, a classe média os copia industrialmente: formica
imitando jacarandá, fechaduras coloniais da La Fonte, portas Polidor almo­
fadadas no lugar do portal de igreja, lustres também coloniais da Pelotas etc.
Como a própria palavra afirma, a regra do revestir é a máscara e a máscara,
no caso, é moldada nas originalidades do Morumbi e reproduzida em série.
A máscara não tem originalidade. Logo, a mais precária também serve. Daí
várias conseqüências sobre os materiais de revestimento, os básicos, comuns a
quase todas as obras, assim como a vida privada a quase todas as classes, não
se prestando à ostentação: a) ficam limitados ao poder aquisitivo desta classe,
isto implica em pequena produção ou mais freqüentemente em péssima

12 Aqui, evidentemente. O produto industrializado no estrangeiro serve. Afinal, a burguesn


norte-americana é a mais alta classe brasileira. A nossa burguesia pode, portanto,
consumir os produtos da classe média abastada de lá. O seu “status” relativamente é o
mesmo, descontadas pretensões aristocráticas que se satisfazem com a arca ou o santo
velho e a imitação do colonial.
produção, por não atingir quantidade compatível com boas instalações, b)
substituem qualidade por efeito, a repetição enfática na propaganda de que
são duráveis é a melhor prova de que não são; c) quando são contrafação
de produtos industriais que a burguesia importa, justificam o emprego de
maquinário velho e já amortizado fora do país, concorrendo vantajosamente
com eventuais similares nacionais. Se são patentes metropolitanas baseadas,
portanto, em uma tecnologia desenvolvida — que não é e, provavelmente, não
será a nossa —, são aqui produzidas em condições inferiores de “know-how ,
, -V

mão-de-obra, organização de trabalho, equipamentos, matéria-prima etc., sao


obrigatoriamente de qualidade precária;14 d) multiplicam-se ininterrupta-
mente, de acordo com os últimos figurinos nacionais, subproduto dos interna­
cionais;15 e) etc.
E bom lembrar: tais revestimentos são, na maioria, absolutamente dispen-
aáYSsvátrpontú dg VTsta~tecnjcq. Raros são objetivãmehfe^êcessanos. Mas
consomem de 20 a 40% do orçamento de uma casa ou apartamento — a varia­
ção acompanhando os níveis da classe média atendida.
O tema revestimento parece detalhismo de crítica inóqua. Mas exa­
minemos seu papel econômico: em primeiro lugar, dizer que 30%, em
média, do capital empregado em construção civil massificada vai para
“acabamentos”, em país de imenso déficit habitacional, é caracterizar a
irracionalidade nuclear do sistema. A produção da construção representa
cerca de 10% do pib. Destes 10%. metade é de construção civil. Desta
metade, 30% é revestimento, isto é, 1,5% do PIB. E muito. Em seguida, este
mesmo fato pode ser associado a outro: não há déficit de materiais de cons­
trução no Brasil. As indústrias deste setor trabalham com 48% de capaci­
dade ociosa, em média.16

Servem como exemplo as primeiras tintas e colas plásticas aqui produzidas. Desde o
precursor do Epox, fabricado pelo Sr. Pini, que não conseguia aderir às paredes; e a cola
de belo nome Dupont AE 704, que não cola, às pequeninas indústrias que pululam.

H Exemplos: “pumex” (concreto expandido), “etemit” (fibro-cimento), vidros, louças etc.


15 O burguês do Morumbi compra Loeil ou o Connaisseur. Importa e copia. A Casa &
Jardim fotografa e traduz, e disso uma original industrieta de revestimentos pode surgir
tranqüilamente. Veja-se azulejo pintado, pedrinhas coladas (a Fulget faliu, passou a
moda).
Vê-se que a recente “crise do cimento” (em 1968) foi artificial. O cartel de produtos
agora sob investigação, fez desaparecer o produto para aumentar o preço
SETORES CAPACIDADE OCIOSA MÉDIA %

\D
O O C ^ C D IO O
Vidro

Tf-
Plástico

lO
Metal
Cimento

-+
Cerâmica e olaria


to \n
í
Madeira

t
Mármore e granito

-HQO
Tf-
MÉDIA

Dados extraídos do Relatono áa Cooperação Industrial para o Plano Habitacional - ciphsb. Estudo n. 10.
ii. 19Õ-. p. 264.

A capacidade ociosa elevada, de 48%, outra vez relacionada com o déficit


habitacional, exprime o que todos sabem: só comparece ativamente no mer­
cado brasileiro de 10 (dizem os pessimistas) a 30 (dizem os otimistas) milhce*
de pessoas dentro de uma população de 85 milhões de habitantes.17 Não
comparecem ativamente, repetimos, porque, na verdade, comparecem pas­
sivamente num imenso exército de reserva de 55 (diziam os otimistas) a 75
(diziam os pessimistas) milhões de miseráveis a garantir baixíssimos salários.
Sub-habitação e déficit habilacional de cerca de 9 milhões (850 mil de défi­
cit e 8 milhões de sub-habitações, diz o Relatório citado da CIPHSB, p. 269).
Num cálculo efetivamente arqui-otimista: 8.850.000 X 5 pessoas por casa =
44.250.000 marginais, número bem inferior ao otimista. De outro lado, uma
capacidade ociosa de 48%, ou 1,5 do PIB, em revestimento. Além de exprimir
a irracionalidade do sistema, sua monstruosa oligofrenia, revela que o estre:;.;;:
mercado está abarrotado. Subdesenvolvimento doído: ao lado da fome imensa,,
superprodução acompanhando a morte lenta da maioria nas choças, a publi­
cidade não consegue impingir todas as pastilhinhas ao consumidor saturado
Mas surge o generoso BNH para atender aos milhões de desabrigados. Compre
ende-se: os industriais de materiais para construção civil devem estar forma
dos com os construtores no mesmo horror, seu ócio se esvai nesta capacidade
ociosa. Mas a abundância de materiais superficiais não é somente índice da
economia ilhada: os materiais são a base da produção, o receptáculo do traba
lho transformador. A produção os transfigura, mas também guarda algumas

17 Dados da revista Conjuntura Econômica de dezembro de 1968, artigo de fundo.


de suas características, as fundamentais sobretudo. O que são transparecera
na obra que os incluir. A maioria é dispensável, concluiríamos, se fizéssemos
um exame rigoroso de sua razão de ser técnica. Constituiria trabalho inuti-i-
zado não fosse a constituição do consumidor, sempre preparado para consumir
qualquer absurdo, desde que preencha alguma função mágica ou compensa­
tória, dita “estética”.
O que são estes materiais: produção áspera como qualquer outra em nosso
sistema, resultado de trabalho pesado reunido superfluamente em merca­
doria de nenhum valor de uso real. Eles escarnecem o hipotético conteúdo
humano genérico que deveria animar qualquer trabalho e o atendimento de
necessidades objetivas. Somente o trabalho que preenche lacunas reais pode
t
pretender a dignidade em sua definição. E bem verdade que na produção capi­
talista nenhum trabalho atinge esta dignidade, está sempre distante, é mediato,
imposto, em si aleatório. Mas em nenhum local se espelha com tanta nitidez
a indiferença direta pela utilidade, a sua estima somente como trabalho social
médio, como valor (de troca) perseguido na mercadoria, que nas ocasiões em
que sua função preenchedora de carências reais inexiste ou é muito tênue. Aí
o sistema aparece em sua nitidez pornográfica, capital fornicador em gestação
permanente, que aniquila os pais desconhecidos que o semearam e só quer
filhos para alimentar-se. Sem finalidade, o trabalho, puro denominador comum,
é apreciado por sua quantidade. Emprega o produto de sua vacuidade que res­
surge, como contraponto obrigatório, na aparvalhada indecisão do consumidor,
ciscando nas banalidades do pseudogosto, motivações para o gratuito.
Contraditoriamente, estes produtos de núcleo vazio, consumidos pela
aparência, na obra nada importam enquanto exterioridade, sua razão está
na sua essência. Pois, o trabalho coagulado nos produtos será aí empregado
precisamente: na mascaração do trabalho significativo. Tudo se passa como
se fosse questão de gosto. Mas que gosto? O gosto hoje está morto, não há
mais subjetividade livre que o sustente, nota Adorno.18 Agora é sinônimo
de reconhecimento, re-afirmação, principalmente na classe média: importa

18 Ver Theodore W. Adorno, “O fetichismo na música e a regressão da audição”, em Os


pensadores: Benjamin, Adorno, Horkheimer, Habermas. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
“O próprio conceito de gosto está ultrapassado [...] já não há campo para escolha; nem
sequer se coloca mais o problema, e ninguém exige que os cânones da convenção sejam
subjetivamente justificados; a existência do próprio indivíduo, que poderia fundamentar
tal gosto, tornou-se tão problemática quanto, no pólo oposto, o direito à liberdade de
uma escolha, que o indivíduo simplesmente não consegue mais viver empiricamente ...
Ao invés do valor da própria coisa, 0 critério de julgamento é o fato de a canção ->
a 3.S normas do status, rcpctir os
nara o gosto contemporâneo reencontrar as no /
para og r «««laHos Dela maciça mteriorizaçao. Tudo se
sinais convencionalmente acumulado p v
passa como se fosse qnestão de gosto, mas é problema de segurança nactonal.
Por baixo dos revestimentos há concreto, colunas vrgas, lajes, tubulações.
Há técnica e a simplicidade tosca da estrutura calculada. Ha mdtcaçoes
sóbrias de compromissos com a estática, com a resistência dos materiais,
com a racionalidade enfim. E, associado_açsta racionalidade^marcas pre-
cisas do trabalho necessárioT^cTêmpenho,
no que faz, não se desfaz na aparência do que fez:
^TSião e sua inteligência, sua sensibilidade complementar deixam marcas
que não permitem ilusões.
Por baixo dos revestimentos a obra revela densa cooperação entre neces­
sidade, racionalidade, trabalho em pureza despreocupada. Mesmo o espaço
absurdo levantado não destrói o impacto inevitável desta revelação: muito
da profunda exaltação que a visão do conjunto de Marselha de Le Corbusier
provoca vem da inequívoca presença do trabalho que a obra conserva, inde­
pendentemente do conhecimento de seu desenho interno. À estética de Le
Corbusier é, praticamente, a didatização da técnica, do processo de trabalho,
as práticas efetivas das sólidas relações entre a necessidade estrutural, cons­
trutiva e de uso em suas reais dimensões.10 A densidade expressiva do con­
creto aparente (do concreto realmente aparente como Artigas emprega na
casa Bitencourt e não do concreto bem arranjadinho da moda) é conseqüência
da finalidade com que registra o modo de execução, os azares, a matéria resis­
tente amoldada a um projeto racionai, a cooperação entre a força física e o
domínio intelectual, a finalidade evidente.
Ora: o revestimento não é questão de gosto — ao mesmo tempo, é comum
a todas as casas. Curioso: este componente aparentemente desnecessário não e
suprimido, como fariam se pudessem com a vida privada aos que procuram a
distinção social. Sua variação superficial é pequena se descontarmos diluídos
intervalos que separam a massa corrida do reboco, o artesanal da contrafação
industrial, ao passarmos de classe para classe. À semelhança que aproxima
todos os revestimentos é mais forte que as oscilações que os distinguem. Não
servem, portanto, a não ser em casos excepcionais ao tesouro exposto. Logo,

e sucesso ser conhecida de todos; gostar de um disco de sucesso é quase o mesmo que
nhecê lo. O comportamento valorativo tornou-se uma ficção para quem se vê
cercado de mercadorias mmsiçais padronizadas.” (p. 165).
Desenho e o canteiro na concepção do convento de La Tourette”, pp- 214-21
desta coletânea [Nota do autor em 2005]
devem corresponder ao que é comum às casas da burguesia da classe média: a
forma mercadoria, simplesmente.

FETICHE A primeira vista, a mercadoria parece uma coisa trivial, evidente.


Analisando-a, vê-se que ela é uma coisa muito complicada, cheia de
sutileza metafísica e manhas teológicas. Como valor de uso, não há nada
misterioso nela, quer eu a observe sob o ponto de vista que satisfaz neces­
sidades humanas pelas suas propriedades, ou que ela somente recebe essas
t
propriedades como produto do trabalho humano. E evidente que o homem
por meio de sua atividade modifica as formas das matérias naturais de
um modo que lhe é útil. A forma da madeira, por exemplo, é modifi­
cada quando dela se faz uma mesa. Não obstante a mesa continua sendo
madeira, uma coisa ordinária física. Mas logo que ela aparece como mer­
cadoria, ela se transforma numa coisa fisicamente metafísica. Além de se
pôr com os pés no chão, ela se põe sobre a cabeça perante todas as outras
mercadorias e desenvolve de sua cabeça de madeira cismas muito mais
estranhas do que se ela começasse a dançar por sua própria iniciativa.20

A mercadoria, para continuar seu reinado, esconde o que é e toma empres­


tado o que não é. Esconde as relações humanas de que é pura intermediária e
faz parecer as relações humanas como conseqüência de sua autônoma movi­
mentação. Adquire ares de independência. O valor, reflexo do trabalho social
genérico, se transforma em sua propriedade intrínseca.
/

E fetichismo da mercadoria o nome destes seus “bizarros caprichos”.


Esta inversão, plenamente justificada pela aparência do mercado, tem
importante função entretanto. Pois é ela que permite as fabulaçÕes da forma
mantenedora do sistema. Ela alicerça a falsa a-historicidade da forma merca­
doria, pois o valor e suas leis surgem como propriedades naturais das coisas e
não como dos modos transitórios das relações humanas.
Sua importância é tal que, na proporção mesma em que o sistema se
desagrega, a mercadoria faz ginásticas para não mostrar que é produto do
trabalho humano, e persegue a aparência dos objetos naturais ou de objetos
resultado dos processos industriais afastados de qualquer presença humana.
“Argúcias teológicas”. Daí este desenho exato, de geometria perfeita moldada
em irrepreensíveis superfícies metálicas dos produtos mais avançados, tipo
Ulm e Cia. Procedentes de misteriosa e sobre-humana tecnologia, não têm

20 Karl Marx. O capital, op. cit., v. 1,1.1, p. 70.


porque temer o desmascaramento: não há homens na sua vizinhança. Ora,
por trás do revestimento, vimos, há sinais embaraçosos de sua indubitável
presença. Mesmo difuso e ffeqüentemente atabalhoado, o registro das mãos
do operário incomoda a periclitante paz do consumidor, cria problemas de
consciência, pois levanta perguntas a respeito dos anônimos e repelidos auto­
res do tesouro apropriado.
E isso é absolutamente daninho ao sistema. Num tempo em que as coi­
sas definem o homem, revelar que as coisas encobrem relações humanas
é subvener a ordem. Há que apagar o trabalho revelador, e para isto nada
melhor que o trabalho inútil, o revestimento. A essencia do revestimento
é magnificamente adaptada: nele o homem operário está ausente, só com*

teis. Necessidade, carência, finalidade objetiva, estes móveis de trabalho


humano significativo já faltavam na sua produção. A palavra mesma diz: re­
vestir, cobrir o que já está completo, mascarar. Ou a outra, acabamento, com
suas ressonâncias fúnebres. O revestimento que fantasia cada classe de suas
aspirações é o mesmo que encobre as marcas das razões que fundamentam
a mascarada: a alienação do produto da força de trabalho alienada. Voltare­
mos ao tema.

manufatura A areia, a brita são descarregadas. Um servente organiza os


montes no canteiro; outro transporta parte para o ajudante de pedreiro que os
mistura com cal ou cimento, trazido do depósito por um servente diferente;
o quinto põe a argamassa em latas ou carrinho; leva ao pedreiro que assenta
tijolos, reboca, fixa ou preenche uma fôrma, assistido por seu servente que
carrega o vibrador ou recolhe o excesso caldo.
Em cima, o carpinteiro prepara outras fôrmas com a madeira empilhada
perto, depois de caminho semelhante ao da argamassa com seus ajudantes
e serventes. O armador dobra as ferragens assistido do mesmo modo, e, por
toda a obra, vidreiros, marceneiros, pintores, eletricistas, encanadores, imper-
meabilizadores, taqueiros, faxineiros, sempre acompanhados de serventes
e mais serventes. Divisão miúda do trabalho, em cada etapa, divisão hie­
rárquica de funções. Pás, picaretas, talhadeiras, colheres, desempenadeiras,
baldes, varas, prumos, metros, níveis, linhas, serrotes, goivas, formões, enxós,
martelos, escadas, brochas, soldadores, rosqueadores etc. etc. Instrumentos
rudimentares adaptados às operações diversas. Raramente, uma betoneira,
um elevador, um guincho, um vibrador, uma serra elétrica, uma raspadeira.
Poucas maquinas de função auxiliar nas tarefas mais pesadas, nenhuma
operatriz. Um mestre transmite instruções, organiza a cooperação, fiscaliza,
impede demoras, aperta: é, também, feitor. Caracterizamos a típica manufa-
9
tura serial. Simplesmente, na construção civil, a manufatura é deslocada, não
seus produtos.21

A maquinaria específica do período manufatureiro permanece o próprio


trabalhador coletivo, combinação de muitos trabalhadores parciais.22

Uma quantidade enorme de operários subdividem as funções motora e


operacional. A força do servente alimenta a operação manual do pedreiro
carpinteiro, armador ou qualquer outro. O objeto imenso, o utensílio abrigo
em massa nasce em dezoito a trinta meses gerado pela energia pura do ser­
vente, a habilidade tosca dos semi-qualificados acompanhando as ordens do
projeto. Coluna e viga moldadas em tábuas individualmente, apesar de iguais,
sustentam milhares de tijolos diariamente acumulados; formando as figuras
desenhadas no projeto, tudo encapado, alisado, para parecer rigorosamente
produzido. Caixilhos, vasados, tubos, portas, tacos um a um, transportados,
encaixados, amarrados, adaptados, disfarçados. A força de trabalho, meio de
produção mais barato, é abundante, cria a massa uniforme de moradias com
técnica retrógrada. A produção massificada dos alveolozinhos particulares é
feita pela exploração em massa da energia individual.
A produção não se destacou, ainda, de seus fatores humanos, não adquiriu
a independência da linha de montagem automática e mecânica.
Seu núcleo é o trabalhador coletivo, trabalhadores individuais em cooperação.

DIVISÃO DO TRABALHO A divisão do trabalho, mais do que as exigências do pro­


duto, segue as conveniências dos produtores próximos. Assim, cada etapa da obra
pressupõe outra terminada, os serviços se sucedem no tempo. Há que terminar
as tarefas do pedreiro, antes que encanadores e eletricistas entrem na obra. A

21 O processo da construção civil é complexo, havendo combinação da manufatura serial


com a manufatura heterogênea e a indústria. Por exemplo: há sinais da manufatura
heterogênea na sucessão das várias etapas, quando saem os pedreiros da obra e entram
os pintores, ou ainda quando peças produzidas fora do canteiro são montadas na obra
(caixilhos, armários, etc ). Os produtos industrializados também comparecem, ou como
matéria prima (ferro, cimento) ou como peças a serem incluídas na obra (metais,
ferragens, louças de banheiro, luminárias, etc.). A produção no seu conjunto, ou no
interior de cada etapa, entretanto, é dominantemente do tipo da manufatura serial. E o
que caracteriza a forma de produção da construção civil é sua forma dominante, e não a
do componente mais avançado técnica e historicamente.
22 Karl Marx, O capital, op. cit., v. 1,1.1, p. 275.
simultaneidade raaamente é possivel e as vanas equ.pes se alternam, e cada
uma deve completar sen semço de «ma sò ves. A d.vtsao de funções, quando é
estabelecida n. pro,e.o, responde a este prindp.o econonnco. Ora, dar surgem
vánas consequências. Em pnme.ro lugar, o gêne^dmsap.dp.trabalho. Na
indústriaç a divisão é guiada pelo processo objetivo de produção determinado
pela linha de montagem mecânica. 0 que a determina são as necessidades com­
plementares da máquina, aqueles fatores de produção ainda não automatizados,
ou que requerem escolha, decisão, etc. Ao contrário, na manufatura, o determi­
nante é a destreza, a habilidade e a quantidade de trabalho compatível com,a
unidade de produção, o operário, dada uma velocidade do processo geral.
A divisão não é mais a do tradicional ofício, um campo de técnica dife­
renciada. É como se houvesse subdivisão destes ofícios - mas guardando uma
característica sua, a condensação de habilidades parciais no indivíduo, não
exteriorizada na máquina. A condensação é menos ampla que no ofício - a
repetição constante das mesmas operações parciais dispensa a generalidade
implícita nele. As equipes - c conseqüentemente em maior escala o operário
— se especializam em etapas parciais.
Cada etapa é reduzida às suas formas mais simples e o ideal sempre pro­
curado é o de absoluta autonomia. Os incontáveis choques entre estas etapas
— encanadores quebrando o serviço do pedreiro, o azulejista o do encanador, o
colocador de peças e de portas, etc. - se origina nesta tendência de autonomia
e economia das partes. (Tendência, aliás, que encontra poderosa resistência,
em conseqüência do fetiche-residência, que exige a aparência do nao produ­
zido). A própria organização do trabalho favorece esta autonomia, pois uma
equipe sai quando a outra entra, seu contato mútuo é mínimo, e praticamente
so se realiza pela mediação do mestre. Ao contrário da manufatura habitual,
aqui o trabalhador coletivo não chega a formar uma totalidade orgânica, mas
a totalização é função de um operário específico, o mestre.
Ha, portanto, incompatibilidade entre a divisão manufatureira do traba­
lho e a que requer a industrialização. Aqui, nao haveria razões fundamentais
para a nao superposição das etapas atualmente distintas e sucessivas. Encana­
dores, pedreiros e eletricistas poderiam estar presentes em torno de determi­
nada peça produzida ininterruptamente.
A sucessão substituiria a simultaneidade. Além disso, seguramente a divi­
são de trabalho seria acentuada, completando a decomposição dos ofícios ini­
ciada pela manufatura: a atual semi-qualificação tenderia à desqualificação e
a acentuaçao da separação entre as tarefas de pensar e as de fazer. Não haverá,
portanto, passagem espontânea, orgânica e contínua da atual técnica constru­
tiva para a industria da construção. Será necessária a interferência de fatores
externos.
Mas a própria manufatura atual não apresenta seu melhor rendimento.
Entre suas virtualidades técnicas e de eficácia, e sua atuação presente, interfe­
rem as inúmeras determinações da mercadoria que produz.
A necessidade falsa de pseudo-individualização pela posse do objeto dife­
rente, o fetiche da mercadoria e a aparência de não produzida geram “poros”
enormes na produção. A diferenciação inútil e parcialmente formal reclama
uma contínua adaptação das equipes às pequenas mutações e, conseqüen-
temente, gasto de tempo na compreensão dos desenhos específicos. A falsa
aparência exige cuidados suplementares que nada têm a ver com o produto
mesmo. Por outro lado, a estrutura urbana de lotes desiguais, o próprio sistema
de propriedade privada do solo e a subdivisão anárquica dos negócios impõe
deslocamentos, distâncias, arranjos, atrasos, etc., todos geradores de novos
“’poros” a diluir a já precária racionalidade da manufatura da construção civil.
A técnica disponível na construção civil massificada é toda a técnica do
mundo absorvida e aplicável. Métodos testados, aprovados, garantidos, entre­
tanto, só são incorporados em empreendimentos excepcionais e se difundem
estrebuchando, vencendo a imensa inércia sintomática. A aplicação de um
progresso técnico a um ramo da produção depende de vários fatores, o mais
anêmico sendo o gênio ou generosidade do empreendedor e os fundamentais
o mercado, o sistema, as condições da força de trabalho e o meio de produção.
Enquanto houver a possibilidade de venda de um produto produzido com
meios arcaicos baseados na força animal, o que significa, enquanto não for
imposto pelas regras da concorrência a redução do valor da unidade produ­
zida, não haverá progresso. O capital faz avançar as forças produtivas mas
“na marra” e a contragosto. Por que se arriscariam os capitalistas se, com o
“know-how” adquirido, hábitos depositados, equipamento amortizado, admi­
nistração e operários com comportamento conhecido e controlado produzem
e vendem? Para que tentar e ousar temerariamente?23 Além disso, a industria-

23 Experiência própria. Há alguns anos o IPESP pretendia financiar integralmente a construção


de 7 mil unidades habitacionais em Cotia. A população urbana de Cotia era, então, de quatro
mil habitantes, a nova cidade-dormitório teria de 30 a 35 mil habitantes. O projeto permitia
a pré-fabricação total ou parcial. Cálculos feitos na ocasião provaram que os empreendedores,
financiados pelo IPESP, isto é, sem aplicar o próprio capital para instalar uma indústria de
pré-fabricação, obteriam, ao final, a mesma massa de lucros que a obtida pelo processo
tradicional de construção e mais a dita indústria totalmente amortizada. Apesar de 0 risco
ser essencialmente do IPESP, a proposta de pré-fabricação foi rejeitada. A construção seria a
“provada e testada tradicional, que evitava aventuras no desconhecido”. Note-se: tratava-se de
uma das maiores construtoras paulistas, famosa por sua eficácia e modernidade.
llWo e da produtividade do trabalho introduz contra-
.»bora dtmmua a manutenção da força de trabalho,
SiLdo delicioso aumento n, ta» de sua exploração, aumenta , «.
posição orgânica do capital, diminumdo criminosamen.e , «X. del„»o.
A máquina substitui operários, e, como o lucro vem da força de trabalho _
não-paga e não da máquina, freqüentemente é preciso aumentar a produção,
complicar a administração, etc. para produzir o mesmo lucro absoluto
(massa de mais-valia) para um capital maior (com conseqüente diminuição
da taxa de lucro).
Esta resistência é mais operante na manufatura do que na indústria. Den­
tro de determinados limites, a indústria é obrigada a avançar: aplica capitais
em máquinas, por vezes custosíssimas, e a cada substituição imposta pela
usura escolhe as mais avançadas, de maior produtividade. As novas maquinas,
aplicadas por uma indústria, penetram necessariamente nas outras do mesmo
ramo e nas dependentes, forçadas pela concorrência, impiedosa coveira da
“lua de mel” da primeira. A manufatura aplica seu capital somente em maté­
ria-prima, pouquíssimas máquinas auxiliares para trabalho excessivamente
pesado e muita força de trabalho. A base da manufatura é, ainda, o traba­
lhador coletivo, isto é, trabalhadores em cooperação. E trabalhador, força de
trabalho, é sempre o mesmo, ou melhor, sua produtividade decresce com as
gerações, na mesma proporção de permanência de sua exploração, para tris­
teza dos tayloristas.24
A única possibilidade de avanço automático fica restrita às máquinas
auxiliares.
Paulo Bruna, em trabalho publicado pela fauusp,25 analisa o surgimento
da industrialização da construção civil em alguns países da Europa depois da
Segunda Grande Guerra e aponta os seguintes pré-requisitos:
^necessidade de reconstrução das moradias destruídas pela guerra, isto é,
deficit habitacional sério;
b) poucos capitais disponíveis, dada a prioridade de aplicações dirigidas

para setores básicos que também necessitavam reconstrução;

24 A :eSpeit° da Pr°êrCS51V“ decadência da força de trabalio moüvada pela fome


oiuca e a sub-alimentaçao prolongada por gerações, ver as obras de Josué de Castro,
prmcipalmente Geografia da Fome. Rio de Janeuo: O Cnazeiro, 1948 e Geopolíuca da
tome. Sao Paulo: BrasiUense, 1965.
■5 «di.* p.1. Perspectiva, ,m „m „ tltuk,
Atualização e desenvolvimento. [n.o.J
c) poucos materiais e equipamentos, também prejudicados pela guerra:
d) urgência na superação do déficit habitacional; e
e) carência de mão-de-obra, guerra outra vez.

Ora, no Brasil valem integralmente os itens a) e b): déficit habitacional


imenso (somos quase campeões mundiais) e pouquíssimos capitais. Quanto
aos materiais, há excesso (vimos: 48% de capacidade ociosa em 1967) mas,
como nota o relatório da CIPHSB mencionado, insuficientes se tivermos em
vista 0 nosso déficit. Equipamento quase inexistente. Temos que reconhecer
que não há urgência na superação do déficit habitacional: o operário que
more onde puder.
Entretanto, o pré-requisito que mais distingue a nossa situação da européia
drcqófcíçiierra é o relativo à mão-de-obra.26 Há excesso de mão-de-obra, sem­
pre houve: candango não falta. Principalmente hoje: um dos cuidados maiores
do nosso governo, sabemos, é manter exércitos e, com especial carinho e silen­
cioso pudor, o exército de reserva de mão-de-obra — desarmado, lógico.
O combustível básico da manufatura está garantido numa quantidade e a um
tal preço que dispensa quaisquer preocupações quanto à sua substituição.
Somente pressionado por violento empanturramento do mercado restrito
às faixas superiores, à classe média alta, poderíamos esperar alterações
significativas na construção civil. (Perdão, há uma alternativa: um gringo
construtor qualquer, forçado a substituir suas máquinas na metrópole pelas
razoes vistas, pode, a qualquer momento, desembarcá-las em Santos, aliando-
se ao nosso progresso). Mas, antes que isto ocorra, já foram providenciadas
medidas preventivas: o BNH foi criado.
Com a possível aproximação da crise no mercado imobiliário normal, isto
é, de classe média abastada, aproveitando a grita que o socialismo pequeno-
burguês sempre desenvolve, desde Proudhon, em torno da habitação operária
e suas precárias condições, como se fosse mal isolado de todos os outros da
condições proletária, este organismo surgiu. Oportunamente: permite sugerir
generosas intenções e, ao mesmo tempo, afastar as manchas de denúncia das
favelas. Afastar, não apagar.

26 “Nos países ditos ‘subdesenvolvidos’ [...] a abundância e o preço baixo da mão-de-obra


não incitam a substituí-la por um equipamento muito custoso, exigindo, além disso,
quadros de direção e de vigilância de alta tecnicidade”. Georges Friedmann, Le Travail
en Miettes. Paris: NRF, 1964, p. 210.
■ 1aT . pxistência de um proletariado
Ê do interesse da burguesia dissim : é indispensável à sua
eri,do pelas condições da produção capara e ,«. P

manutenção.27

Mas deixemos as mtençõ» Imporia „m o fa,o de o BNH criar, com os recur-


Ltodos do operariado peio Ftodo de G^mri. por Tempo d. Serv ç„, mr.
SOS
imenso mercado Lo e relarivamente arrificial de cias* meia-mod,a. (E bom
imenso
lembrar: apesar das oferiaa, qu.se não houve sindrcau. de mabalhadores que com
seguisse formar cooperativas habitacionais. Os operários nao suportariam as condi-
ções do “financiamento7’ feito com seus próprios recursos do Fundo). Sintomatica­
mente, os imensos recursos, que facilmente equipariam indústrias suficientes para
a superação real do déficit habitacional em poucos anos, com qualidade, são redi-
vididos, encaminhados a grandes empreendedores e construtores. Os quais, com
a garantia do “desenvolvimento do nosso subdesenvolvimento , de nenhum
gringo à vista com suas máquinas usadas, e da impraticabilidade de nova glo­
riosa guerra com o Paraguai, espalham, em doses homeopáticas, em salutares e
tênues despenhadeiros, suas casinhas, impulsionando com novo vigor o absurdo
e desumano processo tradicional da construção civil.
Mas há razões mais determinantes para a tranqüilidade na contradição
dos que discursam desenvolvimento e estipulam processos arcaicos de pro­
dução. Antes de mencioná-las, entretanto, há que examinar o combustível: o
operário da construção civil.

FORÇA DE TRABALHO A manufatura móvel que constitui a construção civil


emprega operários que podem ser reunidos em três gêneros: um pequeno

27 Fnpdnch VÍ questão da Sã„ pauio: Acadêmica, ig88 p ,8 Neste


mesmo trabalho de Eneels coWâneo a 9 o, p. 30. i^esie
Mulberger, são exammadal as relações IntreT **?*** ° P™dil°™"° A
flagelo isolável dos demais problemas do proletalTe T
Engels demonstra, ao contrário que “o, foe H •/ ““o pequeno-burguês.
qnats, node após noite, o modo de produção “ ÍmUnd°S P0™"
não são eliminados [pelos bnhs daquele temool n°SS°S trabalharforeS’
mesma necessidade econômica os faz nascer a ^ ' mudados de luêar! A
de produção capitalista, será loucura pretender^ C°m° E’ enqUant° subsistir 0 modo
habitação ou qualquer outra questão social qul ^SOlVer lsoladamente a questão da
solução reside, sim, na abolição deste modo de6 ^ ^P6110 à Sorte dos °pe«rios. A
classe operária de lodos os meios de nroducS 6 P™dUÇa0’ na aP™Pr'ação pela própria
S e de existência.” F. Engels, op. cit., p. 66.
grupo de semi-oficiais, seus ajudantes e grande quantidade de serventes. Na
proporção de 30% dos dois primeiros grupos para 70% do último (informa­
ção do Senai).

A manufatura desenvolve uma hierarquia das forças de trabalho, à qual


corresponde uma escala de salários.28

O sindicato patronal da construção civil em São Paulo forneceu os seguintes


dados sobre salários horários, no ano de 1968,29 que ilustram a composição e a
hierarquia dos três grupos:

MÉDIA DE SALÁRIOS HORÁRIOS EM NCR$ EM 1968

FUNÇÃO JULHO OUTUBRO


SETEMBRO DEZEMBRO

Pedreiro 1,02 1,06


Ajudante de pedreiro 0,71 0,71
Carpinteiro 1,08 1,11
Ajudante carpinteiro 0,77 0,77
Armador 1,03 1,06
Ajudante armador 0,75 0,73
Servente 0,58 0,58

Os serventes, cuja ocupação é ser pura energia física auto-movente, são alta­
mente instáveis, trabalhando dias, meses, raramente anos em uma obra e
f
numa empresa. Ultimo dos empregos, salário-mínimo, nenhum direito traba­
lhista respeitado, sua posição é disputadíssima: constitui ponto privilegiado de
pressão do exercito de reserva de jforya de trsbalk<r. A stténztc&z&usra
seguindo seus cronogramas e gráficos “Pert” contrata e descontrata ininter­
ruptamente os operários desta área sem preocupações, pois sabe que a oferta é

28 Kaxl Marx., O capital, op. cit., v. 1,1.1, p. 276.


29 0 salário horário médio do servente (ncr$ 0,58) corresponde ao salário mínimo,
aproximadamente. Os semi-oficiais portanto, recebem menos de dois salários mínimos
mensais. Segundo informações do DIEESE, o salário médio do operário da construção civil,
em 1968, foi de NCR$ 182,52 (Boletim citado).
m.c.ça . quaiquer momento

portamento do prhpn. servente,“ “““Adendo L “ser em

™ição”Pimpossibilitado, portanto, de aumentar o valor de sua força de tra-


balho pela aquisição de ma,or qualificação no prôpno trabalho procnra rea-
lira, 1 valor maior para sua força d. trabalho d.sqnahhoad, deslocando-se
entre setores e ramos de produção.- Ora, objetiva e sub^vamente instável,
sem nenhum laço forte ou interesse específico em relaçao a construção, k so
permanece enquanto sua animalidade, sua força, serve. A radical negaçao de
sua humanidade no trabalho impede qualquer vinculação nao contratual com
ela ou com o ramo. Constitui, assim, o operáno-padrão, somando à alienação
objetiva dos produtos de seu trabalho a alienação subjetiva com relaçao à pro-
dução especifica em que está envolvido.51
Os outros operários têm funções específicas na obra. Estas, entretanto, são
parte de ofícios decompostos: por exemplo, não há um oficial que trabalhe
madeira em geral, nas empresas médias e grandes. Há o carpinteiro para as
fôrmas de concreto, o especialista em tesouras e coberturas, outro em escadas
que não rangem, o marceneiro que faz armários, outro caixilhos, o colocador
de pisos de tábuas, o taqueiro, o aplicador de lambris, etc. A divisão do traba-
lho destajnanufatura móvel fragmenta os campos tradicionais, ainda visível
epar-casos mais^gstritos nas pequert^s empresas. INote-se que esta semi-qua-
lificação é distinta da semi-qualificação industrial. Neste, o conhecimento
adquirido no manejo do maquinário é generalizável em muitos casos dentro
de certos limites tecnológicos. Permite a ampliação e a transladação sem
maiores dificuldades. Entretanto, a semi-qualificação de alguns operários da
construção civil e intransferível para outros campos da produção - e a pró­
pria mdustriahzaçao do setor imporia a formação renovada, a experiência da
manufatura sendo praticamente inútil.
da operário deste grupo torna-se senhor de uma fragmento ou seqüên-
“! de de um oficio, nummovunento de decomposição e

g«,o,71pafBçShdo macetes”, selecommdo insnumeu.os, „is,„ de acordo


da, recomeudaçoe, me.o arcaica, d,
do speed as a skill, dos taylonstas. 6

30 Ver a respeito, Luiz Peretra, op. cit cap. tv, parücularmente

51 itrrr™
E
*w -—»* *»
^ uabhhado™ d. civil.
Compensam com a habilidade particularizada a extensão perdida do ofício.32

A unilateralidade e mesmo imperfeição do trabalhador parcial tornam-se sua


perfeição como membro do trabalhador coletivo.33

Mas, mesmo amputado, vê o produto como realização com a qual tem a ver
pessoalmente. A maneira de produzir, arcaica e pré-industrial, exige con­
tato direto com a matéria a que dá forma, sem a mediação distanciadora da
máquina. São suas mãos, e mais um instrumento primário, pá, colher, prumo,
que organizam, equilibram, levantam; durante um, dois anos acompanha a
obra, trabalha-a — e passa a se ver presente, tenuemente, é verdade, na própria
corporificação de sua exploração. Esta visão não é pura ilusão: de fato, a maté­
ria informe só adquire forma através de seu esforço pessoal, de sua habilidade
continuamente aplicada. Mas esforço e habilidade só são exercidos quando não
se pertence, quando é assalariado, força de trabalho de ações impessoais, abs­
tratas, frias. Operário e capital coexistem com a pTesença frágil de meia-obje-
tivação, exigida pela forma primária de produção. O contraste dá mais cor e
peso à exploração: o processo necessita que permaneça atento e sensível, senhor
de seus poucos gestos específicos, que seja sujeito, limitado mas ativo e hábil,
durante o tempo mesmo em que é pura mercadoria, útil enquanto para si é
valor de troca, objeto das determinações do mestre, sempre preservando o que
levanta, apesar de estar sempre levantando sua própria negação encarnada.
O semi-oficial, dono de reduzido campo tem com ele laços mais deter­
minantes que a fugaz sensação de realização suspensa, pois sua ocupação
parcelada é que lhe garante sustento e salário pouco maior que o mínimo,
representando semi-qualificação que aumenta o valor social de seu trabalho.
Sua minúscula reserva é sua vinculação única com um pouco mais de huma­
nidade: sua alimentação supera levemente a do ajudante. Há resquícios de
^ente no que faz. Desapareça sua função, superada por algum progresso, e
seu horizonte é o retorno ao subsolo dos serventes. Há que prezar, valorizar,
defender o que faz. Mistificar mesmo, envolvendo de mistérios e imputando-
Ihe sabedoria tradicional, adquirida em anos de prática segura. A qualquer
inovação, instintivamente reage: a mudança, ameaçando seu domínio inelás-

A portaria 1.005 de 23/9/1964 do Ministério do Trabalho acompanha, de certo modo,


Ij

a decadência tecnológica do trabalho na construção civil, reduzindo as ocupações


sujeitas a aprendizado neste campo de 68 para 37 e diminuindo para estas o tempo de
aprendizado.
Karl Marx, O capital, op. cit., v. 1,1.1, p. 276.
IO
tico pode ser sinônimo de carência.- O operário semi-qualificado da constru­
ção civil, como conseqüência do modo arcaico de produção manufatureira, é
tecnicamente conservador,- como defesa passiva de sua subsistência. Nisto,
o operário da construção civil difere dos de outros setores industrializados. A
pressão operária para maior qualificação de seu trabalho, o que acresceria seu
valor social, é generalizada. Entretanto, há ramos da produção em que esta
pressão é aleatória por não comportar, estruturamente, avanços tecnologicos
significativos e, portanto, não requererem maior quahficaçao do trabalho.
A qualificação promovida pelos empresários corresponde a complexidade
crescente do ramo. Na construção civil, a melhor situação superior almejada
e objetivamente possível para alguns poucos operários é a dos mestre autô­
nomo, o empreiteiro. (Daí a grande quantidade de pequenas empresas, que
representam, segundo o DlEESE, mais de —o /o do total). Ora, limitado quanto
aos recursos empregados, tem na defesa dos processos manuais tradicionais a
garantia de sua possibilidade de ascensão social.

34 Houve tempo em que o concreto aparente não era moda e tinha razão de ser: razão
econômica. Seu emprego, entretanto, atraia forte reação Dos proprietários, para os
quais o concreto aparente aparenta%,a economia - 110 que acerlavarn — corrompendo o
efeito “estético” que o gasto conspícuo sem [ire produz na burguesia. K dos operários,
que temiam a inovação: sujeira era deixada nas formas, ferros pressionados para
aparecerem, tintas ou batidas intencionais procuravam impedir a permanência do
concreto aparente. Sabotagem mesmo. Com o tempo, virou moda, o operário teve que
se submeter. E até aproveitou: hoje é uma nova especialidade para o operário que já
consegue reproduzir perfeitamente, lisinho-lisinho, as graciosas filigranas dos projetos.
E, como conseqüentemente ficou bem caro, destruindo sua intenção original, pode ser
incorporado avidamente ao Morumbi: tornou-se “estético”.
35 Tecnicamente conservador, nào politicamente. Aliás, o Sindicato dos Operários da Cons­
trução Civil sempre foi, enquanto existiam sindicatos, dos mais ativos. Isto ganha maior
significado se lembrarmos novamente que o servente é pouco sindicalizado: o sindicato
reúne semi-qualificados e ajudantes. O apego estruturalmente requerido do operáno por
sua habilidade particular, ao produto desta habilidade, retrógrado tecnicamente, o faz
sentir com amargura e revolta mais nítidas a apropriação de seu trabalho pelo capital.
Uma vez que a habilidade artesanal continua a ser a base da manufatura e que o meca­
nismo global que nela funciona não possui nenhum esqueleto objetivo independente dos
proprios trabalhadores, o capital luta constantemente com a insubordinação dos traba-
adores. K. Marx, O capital, op. cit., v. 1,1.1, p. 2-76. Dai, inclusive, a importância nas
ras do mestre, que sempre associa ao seu papel técnico as funções de guarda e zelador
dos propósitos do capital contra a insubordinação operária.
Vimos: tanto o capitalista — o empreendedor imobiliário, o construtor, o
incorporador ou qualquer outro nome sob o qual se disfarce — quanto o ope­
rário semi-qualificado têm um interesse comum (milagre): conservar, manter
enquanto for possível. O processo de produção da construção civil, no Brasil, é
/

intrinsecamente propenso à sua própria manutenção. E óbvio, entretanto, que


os interesses que se somam têm pesos diferentes pela própria posição no pro­
cesso de produção. O interesse do operário é, praticamente, não determinante.
Seria pura redundância repetir aqui toda a imensa carga de desumanização e
subserviência que representa o trabalho sob o capital.36 No sistema capitalista,
o capital, que se interpõe entre o trabalhador o os meios de produção, únicos
fatores da produção, é todo poderoso. O conservadorismo da construção civil é,
portanto, resultado de sua produção manufatureira sob o domínio do capital.

A indústria moderna nunca encara e nem trata a forma existente de


um processo de produção como definitiva. Sua base técnica é, por isso,

56 A respeito, entre a imensa bibliografia, ver: K. Marx, O capital, op. cit., 1.1; K. Marx,
Manuscritos económico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004; G. Friedmann, O traba­
lho em migalhas. São Paulo: Perspectiva, 1972. Do operário, Taylor exige, sintetizando
o comportamento do capital, “não produzir mais por sua própria iniciativa, mas exe­
cutar prontamente as ordens dadas nos menores detalhes.” F. W. Taylor, La direction
des Ateliers, Paris: Dunod 1930, p. 137. Na manufatura ou mesmo na indústria sob o
capitalismo, tudo o que é coletivo — mesmo a produtividade maior do trabalho, fruto de
sua divisão e da cooperação dos trabalhadores — é atribuído ao capital, quer haja ou não
verdade nisso. Organização, planejamento, decisões são funções que a todos envolvem
e, “naturalmente”, direito do capital. Logo, a força conservadora do capital investido
na manufatura é infinitamente superior à do operário. Num trecho dos “Grundisse”,
apresentado como introdução ao Livro II do Capital, diz Marx: “Sejam quais forem as
formas sociais da produção, trabalhadores e meios de produção continuam sempre seus
fatores. Mas uns e outros só o são em potencial quando estão mutuamente separados.
Para que haja produção ao todo, eles precisam combinar-se. O modo específico de levar
a efeito essa combinação distingue as diferentes épocas econômicas da estrutura social.
No presente caso, a separação do trabalhador livre de seus meios de produção é o ponto
de partida dado.” O capital, op. cit., v. II, pp. 32-3. Ora, tal separação dos meios de produ­
ção implica necessariamente na separação das razoes da produção, mediatas e imediatas.
No caso específico, 0 operário da construção civil não somente é afastado de seu produto,
mas desconhece mesmo, freqüentemente, suas razões de projeto, cálculo, oportunidade,
etc. Não tem, nem pode ter, portanto, qualquer influencia que pese nos seus rumos. Nos
manuscritos, Marx é explícito: “Até aqui examinamos 0 estranhamento, a exteriorização
, . aTltn a Je todos os modos de produção anteriores
revolucionária, enquanto a de ton
era conservadora.

O mais dramático exemplo deste comportamento operário surgiu em Brasí­


lia Alguns quilômetros separam a tentada harmonia de Lucio Costa e Nie-
meyer da carência completa. A miséria se espalha nos lodaçais das cidades
satélites (“cidade” não é a palavra apropriada para designar estes montes de
lixo, “satélite”, é: sub-homens gravitam em torno dos que têm o privilégio da
humanidade).
O núcleo Bandeirantes, antes acampamento vivo dos reais construtores
de Brasília campo de experiências e expansão de vida de retirantes
cobriam em si aberturas novas, hoje é a melancólica e doída marca de um
processo interrompido: guarda unicamente o cenário decomposto do que foi.
Conheceram os operários o que são capazes de fazer e como fazer: antes da
inauguração, no isolamento do chapadão. ensaiaram as primeiras possibili­
dades da criação coletiva, do projeto em que se empenharam todos. Fantasia
deslocada, não há dúvida. Mas que a todos perrorria diariamente, nas 24
horas de gigantesco e ininterrupto trabalho.
Havia empenho maior que o esj>erado de assalariados — ingênuo empenho
sordidamente estimulado pelo poder. A festa acabou, os donos chegaram. A
burocracia governamental, as agências do capital ocuparam a cidade.
O ritmo das construções diminuiu. Mas os candangos, que pressentiram
através da ilusão uma possibilidade concreta, não se arredaram. A volta à
vida crua do Nordeste não mais seria suportável, nem o “novo-horizonte” das
margens infernais da Belém-Brasília. Entretanto, o capital não requeria mais
seu entusiasmo e aborrecia, à sua racionalidade gelada, a insistência do ope­
rário: já havia roubado o que desejava. Por meses, os alpendres das capelas

do trabalhador sob apenas um de seus aspectos, qual seja, a sua relação com os produ­
tos do seu trabalho. Mas o estranhamento não se mostra somente no resultado, mas
também, e principalmente, no ato da produção, dentro da própria atividade produtiva.
Como poderia 0 trabalhador defrontar-se alheio ao produto da sua atividade se no ato

mesmo da produção ele não se estranhasse a si mesmo? O produto é, sim, somente o


resumo da atividade, da produção.” K. Marx, Manuscritos económico-filosóficos, op- cit,
p. 82. Em resumo, o operáno, apesar de tecnicamente conservador na construção civil,
é pouco determinante porque: a) não tem a posse dos meios de produção, b) a forma da
produção impõe, em certa medida compatível com o emprego de sua habilidade, a sua
alienação quanto ao produto, suas razões.
37 Karl Marx, O capital op. cit., v.i, t.2, p. 89.
das superquadras abrigaram centenas de famílias de candangos sem ocupação,
os antigos e os chegados, informados das antigas condições. Pouco a pouco
se retiraram para as favelas chamadas cidades satélites. Retirantes, haviam
apreendido um pedaço do ofício. Aguardam, definhando, que voltem a ser
necessários, que o capital os compre, novamente, e como magia propiciatória,
enfeitam suas choças com as colunas do Alvorada. 0 trágico lumpesinato
oscila entre duas mortes: por miséria em Brasília, por miséria no Nordeste ou
outro inferno qualquer. A política brasileira foi desenhada no espaço: branca
— ordem e conforto calculado para o senhor do capital e do poder e os que
cabem em suas reservas — e morte, marginalizaçao, fome, afastamento para os
excedentes. E ainda assim, o candango conserva o que fez, prova de sua capa­
cidade, não pisa na grama. Voltará.56
O que houve? O candango veio do campo-latifúndio — solidão, doença,
seca, terras boas cercadas, trabalho irregular quando havia.59 Em Brasília, um
salário e o aprendizado de uma ocupação que garantia o salário, esforço cole­
tivo cujo vazio dissimulado e o hipócrita feitio não percebia, a vida gostosa do
núcleo Bandeirante, com sua gente, cachaça e prostitutas importadas. Téc­
nicos, arquitetos, operários, e até o presidente em aparente cooperação con­
sentida. Na imprensa, nos discursos, o elogio pomposo, enganador. Depois, a
verdade do sistema, sua imensa indiferença: terminada a exploração, danem-
se os candangos. O candango resiste mudamente na amarga frustração:
achando-se possuidor de habilidade ontem prezada, espera novo chamamento.
Exige, por vezes, quando seu sindicato existia. O raquítico pegou elefantíase
e a exibe supondo saúde. Para nada mais serve. E se soma, enquanto aguarda
impotente novo capricho do capital, ao enorme exército de reserva de mão-de-
obra subocupada e desocupada, garantindo, exclusivamente, baixos salários
para os sorteados que conseguem ocupação. Estima pelo trabalho feito, vai­
dade pelo sub-ofício apreendido, vínculo insubstituível e intransferível com
sua subsistência, impotência diante das determinações do capital, colaboração
mediata na manutenção do processo de produção obsoleto e de alto grau de
exploração do trabalho.

mais-valia Estudemos numericamente as relações operário-empresário.


Apesar de serem simples índices, estes números indicam a média do funcio­
namento real da especulação imobiliária entre nós, hoje. Como poderíamos38 39

38 Ver, a respeito, O. Niemeyer. Minha experiência em Brasília. Rio de Janeiro: Vitória, 1961.
39 Ver a respeito, Francisco Julião. Que são as ligas camponesas? São Paulo: Civilização
Brasileira, 1962.
esperar, há carência total de informações exatas a respeito nos vários órgãos
públicos, uma de cujas funções é obtê-los. Somente o DIEESE, entidade vincu­
lada aos sindicatos operários, possui alguns dados e análises que apresentamos
em anexo. Suponhamos que o especulador possua um capital de 100 (mil,
milhões de dólares ou cruzeiros, não importa) o qual, aliás, é freqüentemente
realizado pelos compradores. E que para a construção divida, em média, estes
íoo em duas partes: 75% aplica em matéria-prima e bens de produção (areia,
cimento, pás, canteiro, etc.) e 25% em mão-de-obra (isto é, com 25 compra
força de trabalho e paga as leis sociais). Nenhum especulador que se preze
aceita participar em algum negócio imobiliário se seu lucro líquido, descon­
tados a desvalorização da moeda, a inflação, custos etc., não atinge 100% no
mínimo em dois anos em média. Portanto, o incorporador paulista de 1969,
se põe 100, retira 200. Ora, sabe-se que as trocas, fora flutuações de preço
determinadas pelas variações da oferta e da produção, são feitas pelo justo
valor no mercado, pelo valor real. O iludido, portanto não é o comprador que
teria adquirido por 200 0 que valeria somente 100. O objeto produzido, a casa
ou apartamento, vale realmente 200. Entretanto, se pudéssemos examinar 0
registro de gastos, 0 preço de custo, só encontraríamos 100. íi que, 110 processo
de produção, 100 é acrescido aos 100 minais — o trabalho de transformação da
matéria prima em casa ou apartamento gera um valor novo, cuja expressão
monetária é igual a 100.

Não é somente a mercadoria que é criada durante a produção, mas também


a mais-valia: e precisamente assim que o valor avançado se valoriza [...] Esta
mais-valia existia antes da troca. Ela não nasceu no curso da troca, mas no
seio da produção.40

Em esquema:

Capital dinheiro inicial = 100


Capital mercadoria final = 200
Lucro = 100 (mais-valia)
Mão-de-obra = 25 (capital variável)
Matéria prima e bens de produção = 75
(capital constante)

40 Karf Mar, Le Capitai Pans.- Plêiade, i968, p. gio e nota p. gi, [Referência

encontr"1^ 6 ^ PreParada e traduzida por Maximilien Rubel, pois não foi


por Engek traduzlda diretamente do alemão, de edição preparada
Taxa de lucro lucro — roais-valia “ 100 = 100%

cap. dinh. inicial cap. const. + cap. variável 100

Taxa de — lucro — mais-valia = 100 = 4 = 400%


Mais-valia salários cap. variável 25 1

A taxa de mais-valia expressa com maior aproximação o grau de exploração do


náuaVrio. A taxa àe lucro, dividindo a mais-valia, que è produzida exclusivamente
pela força de trabalho paga pelo capital variável, disfarça a magnitude desta
exploração ao dividi-la, também, pelo capital constante. Dizer taxa de lucro de
100% é dizer que a taxa de mais-valia é de 400%, é dizer que o sobre-trabalho
é 4 vezes superior ao trabalho necessário. Ou ainda, significa que o operário da
construção civil, durante sua jornada de trabalho de 8 horas por exemplo, produz
0 próprio salário em 1 hora e 36 minutos e o “lucro” nas 6 horas e 24 minutos
restantes não pagas. Repetimos: apesar de os números serem simples exemplos,
as relações se aproximam das reais. Ou, seja, os candangos trabalham 1 hora e 36
minutos para si e 6 horas e 24 minutos para o capitalista empreendedor — isto
em São Paulo, 1969. O lucro do incorporador é produzido diariamente, durante
a fase do processo de produção, durante a fase da construção. Sua realização, isto
é, a transformação do capital mercadoria em dinheiro, a transfiguração da forma
imóvel para a forma monetária é que se opera na venda. Lembremos ainda que
nos 25 % que representaram o capital variável estão incluídas as leis sociais.
Como estas leis representam cerca de go% da folha de pagamentos, em
verdade o operário recebe somente o produto de 48 minutos de seu dia de 8
horas de trabalho. Pode-se afirmar que, como tendência geral com o desen­
volvimento do capitalismo, as várias taxas de exploração do trabalho, as taxas
de mais-valia se aproximam nos vários setores de produção. Entretanto, essa
tendência é contrariada por certos fatores: em particular, no caso da cons­
trução civil, o fato do exército de reserva de força de trabalho exercer aqui,
prioritariamente, sua pressão, leva à acentuação inevitável desta taxa no setor.
Mas, a taxa de lucro real no setor deve ser ainda maior.

Em virtude da distinta composição orgânica dos capitais investidos em diver­


sas esferas da produção, portanto em virtude da circunstância de que, con­
forme a distinta percentagem que o capital variável representa num capital
global de grandeza dada, capitais de igual grandeza põem em movimento
quantidades muito diferentes de trabalho, quantidades também muito dife­
rentes de mais-trabalho são apropriadas por eles ou massas muito diferentes
de mais-valia são produzidas por eles. Conseqüentemente, as taxas de lucro
cue prevalecem nos diversos ramos da produção são originalmente muito
que prevalecem lcUaladas pela concorrência

numa taxa geral de lucro, que e a media de todas


de lucro.+l
0 grau de exploração do trabalho vana pouco de setor para setor de produção
numa região. Em compensação, varia enormemente a taxa de lucro em função
das diferentes composições orgânicas dos capitais investidos em setores diferen­
tes e de seu respectivo tempo de rotação. Alta composição orgamca implica em
pequeno capital vanável relativo e, portanto, em pequena taxa de lucro.
Ao contrário, baixa composição orgânica implica em capital variavel relativo
maior, e conseqüentemente em maior taxa de lucro. Entretanto, estas diferenças
pouco’aparecem na prática. Já que ocorre contínua compensação das diferentes
taxas de lucro, de tal modo que qualquer capital parece “produzir7 a mesma taxa
de lucro, independentemente de suas composições orgânicas. Ora, a alta compo­
sição orgânica do capital é conseqüência, através da alteração de sua composição
técnica, do progresso dos meios de produção, quando a imobilização de parte do
capital constante (fixo) em máquinas é elevada, como o corolário necessário ao
aumento do volume (e da massa de valor) de matéria-prima, associado à dimi­
nuição relativa da mao-de-obra empregada. Como vimos, o avanço tecnológico
é quase inevitável na indústria não monopolista - o que acarreta, portanto, uma
tendência geral do capital industrial paira o aumento de sua composição orgânica,
atingindo seu limite na automação quando, na realidade, o capital não mais
produz mais-valia, isto e, lucros. Ora, esta tendência inevitável, lei automática
e obrigatória do capital industrial, leva ao pesadelo maior do capitalista: a lei da
tendência decrescente da taxa de lucros. Aumento da composição orgânica, dimi-
nuiçao relativa da força de trabalho comprada, diminuição relativa da mais-valia
produzida e queda da taxa de lucro.
O capitalista, que bem conhece esta tendência assustadoramente decres­
cente, manobra de vários modos para freá-la. Entre as escapatórias achadas,
tres sao bem conhecidas nossas: monopólios, imperialismo e manutenção de
areas retrogra as e produção. Apesar de estarem intimamente associadas,
interessa-nos, em particular, a terceira.

MAIS-VALIA EXCEDENTE Ao procurarmne


produção dominante nas empresas de constr^ 6 0 Processo de
e grandes) para o estudo da mercadoria mora iT H , SlgmflCatlVaS (médiaS
adia de classe média, verificamos41

41 Karl Marx, O capital, op. cit., v.m, 1.i, p. 125


seu nível arcaico. Encontramos algumas explicações para este fato, internas
ao campo da produção da construção civil: o conservadorismo implícito no
comportamento do setor, com origem fundamental no capital, mas tam­
bém apoiado no operariado. Agora, entretanto, podemos apontar uma causa
externa, cuja presença, continuamente diluída na aparência do funciona­
mento do setor, tem, talvez, peso dominante.
Em tese, são áreas de produção arcaicas, como a construção civil, que garan­
tem uma taxa de lucro alta, num país subdesenvolvido, já que utilizam um
capital constante relativamente menor que o capital constante industrial. A
taxa de lucro aparente, na construção civil, 100% num giro de 18 meses, pouco
difere da taxa de lucro, também aparente, de outras áreas. Entretanto, devido à
baixa composição orgânica do capital que aí é empregado, isto é, devido à forma
arcaica de produção, a taxa real de lucro é forçosamente mais elevada que a
da indústria automobilística, por exemplo. Através de uma complexa série de
medições, que não nos importa examinar aqui, a taxa de lucro se homogeneiza:
parte da mais-valia, do trabalho não pago, produzida na construção civil e outros
setores atrasados de produção (agricultura, por exemplo) aparece como sendo
mais-valia produzida na indústria automobilística “nacional”.
E como a indústria (automobilística) “nacional” está para a indústria
metropolitana assim como a construção civil está para a indústria (automo­
bilística) “nacional”, podemos imaginar a densa e intrincada rede de fatores
interessados neste fato simples: a manutenção do modo arcaico de produção
na construção civil. Em outros termos:

O desenvolvimento e 0 subdesenvolvimento econômicos são as caras opostas


da mesma moeda. Ambos são o resultado necessário e a manifestação
contemporânea das contradições internas do sistema capitalista mundial [...]
0 mesmo processo histórico de expansão e desenvolvimento do capitalismo
através do mundo gerou, simultaneamente e continua gerando — tanto o
desenvolvimento como o subdesenvolvimento.42

Num sistema colonial, análogo a num sistema solar, em que o sol


metropolitano se alimenta de suas colônias planetárias que, na qualidade de
metrópoles nacionais, mantêm semelhante relação com suas próprias colônias
lunares.43

42 André Gunder Frank, Capitalism and Undervelopment in Latin America. Nova York: M.R.
Press, 1967.
43 André Gunder Frank. “El desarrollo del sub-desarrollo”, Monthly Review, n. 46-47,
ano V, jan./fev. 1968.
. „a„ rivil urna característica que diminui ligeira-
Há, entretanto, na cons ruç sistema, no seu conjunto, de sua superior
mente o efeito compensa or p Esquematicamente, capitais produ-
““ de lucro: o tempose seu tempo de giro for menor,
zem lucros reais (nao os ap ) Fntretanto devemos conside
sunondo-se composições orgânicas semelhantes. Entretanto devemos conside­
ro seguinte: e!n primeiro lugar, poucos capitais empregados em outros seto­
Tar
res principalmente industriais, têm composição orgamca tao baixa. Somente
res
outros ramos atrasados senam comparáveis. Mas, entre estes ramos atrasados,
poucos têm a característica específica da construção civil: a quase ausência de
capital fixo, investido em bens pesados de produção.
Isso traz duas “vantagens”: não há que contabilizar nenhum desgaste des­
tes bens inexistentes e o capital investido é integralmente recuperado a cada
giro. Quase todo o capital da construção civil investido em matéria prima e
força de trabalho é circulante. A flexibilidade aí é bastante elevada, portanto.
Se assim não fosse, parte importante do capital deveria permanecer imóvel
sob a forma daqueles bens. Ora, esta flexibilidade permite rápidos desloca­
mentos, evitando em épocas de crise sua paralisia, que resultaria, em largos
períodos de tempo, na depreciação da taxa de lucros total em setores alta­
mente imobilizados.
Mas, não há dúvida que o tempo de gestação do produto é o grande obs­
táculo para que a construção civil seja o néctar aspirado. Não é por acaso que,
progressivamente, vemos construtores fazendo cursos de pert etc., e a reto­
mada dos cronogramas e dos vários turnos de trabalho.
Entretanto, este obstáculo não destrói o dado fundamental, somente o
atenua: a construção civil produz mais-valia excedente que vai alimentar
outros setores. O problema de tempo de giro do capital aplicado na construção
civil, entretanto, está acarretando importantes modificações no campo. Em
primeiro lugar a pressão, nas obras públicas e privadas, sobre o prazo de cons­
trução, fator que vem progressivamente determinando as concorrências. Mas,
p a uma uiesma produção, supondo-se a mesma qualidade, as possibilidades
d« eliminação do. “poros" durante o processo de trabalho são restritas. Dal
a .mediani consequência: é necessário diminuir , qualidade do produto par.
obter melhore, pratos - j* q„e a mdustradiaaçào é sempre evitada. Ora, d,nu
l::; ? ™P ° mrrC‘ÍO P'k d» setores de pequeno
pIZ ITh * ' T°r “d* "“^'“dos da classe média.
«Xá r Í T° 7 "dU2Ír ° temp° de e™ é eliminar o que
«muo ,°1 ^ Si° d° ProdU,° “b a de dinhL.
rS7JISÍÍSmí<i mn^gsomente era vendida pronta. Peneis começou ,
vendajiapiama^que permitia dímTnmFbTímtãlTár-ÃT-----------
os financiamentos dorm
------ ----------—_ _ ____ 7 realização imediatiTdo produto
para o capitalista, as desvantagens da prestação transferidas para o governo.
Ora, juntando baixa qualidade com financiamento caracterizamos a vaidade
maior do poder atual: o BNH. Mas o governo também não quis ficar com as
desvantagens do financiamento tradicional: e criou o sistema do BNH, uma das
maiores explorações oficiais, que utiliza um fundo dos trabalhadores e terá,
como vantagem suplementar a longo prazo, o rebaixamento dos salários reais.

DUAS OBSERVAÇÕES finais Em primeiro lugar, repete-se constantemente,


inclusive com apoio de arquitetos e engenheiros “progressistas” que, no Brasil,
é importante a manutenção das características atuais da construção civil por­
que ela é um campo de absorção de mão-de-obra. Ora, vimos que a construção
civil realmente sofre tremenda pressão do exército de reserva de força de
trabalho. Mas, vimos também que este exército provém fundamentalmente
do campo e procura a construção civil como serventes que dispensam qual­
quer qualificação. Não seria mais racional — ao invés de remediar a migração
ininterrupta campo-cidade através da manutenção de um processo de produ­
ção absurdo, arcaico, altamente explorador, incapaz de resolver realmente o
enorme déficit habitacional — atacar a causa real de tal migração doentia: a
estrutura retrógrada do campo? Sabemos perfeitamente que esta estrutura
é intocável no atual sistema. Mas isto não justifica a adesão ideológica aos
remédios superficiais. Ao contrário, deveria encaminhar à crítica consciente
e ao esforço de transformação real. A pressão da força de trabalho sobre a
construção civil é derivada. Como conseqüência, se quiséssemos efetivamente
enfrentá-la, deveríamos resolver suas causas. E quando fizermos as imensas
transformações inevitáveis na sociedade brasileira, esta deverá ser a ordem de
atendimento: a construção civil deveria esperar a resolução de questões mais
fundamentais, o que não dispensa, desde já, o conhecimento de suas caracte­
rísticas e necessidades.
Segunda observação. O governo fala no “boom” da construção civil a partir
de 1967. A mão-de-obra no setor, diz ainda o governo, passou de 12% a 20%
(supõe-se que da mão-de-obra urbana-industrial). Imensos interesses se con­
centram: ora, para o industrial isolado que, no imediato, deseja uma “lua de
mel”, a industrialização do setor é uma perspectiva tentadora, apesar de con­
trariar seus interesses de classe. Já se pode apontar os primeiros investimentos.
Seguramente, a forma de produção arcaica será contestada por capitalistas
cuja fome próxima de mais-valia afasta a cautela a longo termo. Os prognós­
ticos, no caso, são bastante difíceis. O que é seguro é que haverá atrito entre os
capitalistas isolados e seus representantes no poder, que têm os olhos postos na
classe e menos no seu componente particular. Mas não ultrapassará, segura­
mente, a região das disputas cordiais. Afinal, eles se entendem.
TESE

Filippo Brunelleschi, cúpula da catedral Santa Maria del Fiore, Florença, 1422-'ini
O CANTEIRO E O DESENHO ' > V —
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A FORMA DA FORMA-MERCADORIA

Eu não parto [...] de “conceitos” [...] meu ponto de partida é a forma social
mais simples que assume o produto do trabalho na sociedade contemporânea:
a mercadoria.1

Do começo. Na afirmação de uso e senso comum, o objeto arquitetônico,


assim como a pá ou a arma, é um utensílio. Afirmação pelo menos destoante:
sem “má-fé”, todos pressentimos que o uso hoje não é muito mais que a con­
trafação de uso e a funcionalidade, álibi suspeito. No fundo, pouco importam
uso e funcionalidade, ex-noções perdidas em desencontros. A palavra utensí­
lio só aparece aqui por transferência. Porque, na verdade, a figura que tran­
sita é outra: o objeto arquitetônico, assim como a pá ou a arma, é fabricado,
circula e é consumido, antes de mais nada, como mercadoria.

No interior do regime capitalista em que vivemos, a casa, a habitação, é uma


mercadoria como não importa qual outra, que é produzida tendo por objetivo
a finalidade geral da produção capitalista, isto é, o lucro.2

1 Karl Marx, “Notes Critiques sur le Traité d’Économie Politique d’Adolph Wagner”, em
Oeuvres. Paris: Plêiade, t. II, 1968, p. 1.543.
2 Paul Singer, “Aspectos econômicos da habitação popular”, em Seminário de habitação
popular. Publicação 9 do Museu, FAUUSP, 1962, p. 29.
Viabitacão - mas ainda o escritório, a loja, a usina, a
E não somente a casa, a n v distinções decorrentes da posição na pro-
ponte, a praça, o monument0- ^ reprodução da força de trabalho
dução (componente do capi ’ nesse nível de generalidades.
ou o entesouramento burguês) ainda nao P resultados do pro_
Todo e qualaueLobjeto^rqu^----------------------- *
^^^v^orizaçi^dõpapitf
S2j5E3Í2Ii£â£l2_, t forma manufatureira atual da produção
Descreveremos rapidamente, adiante, a torma r v*
do objeto arquitetônico. Convém resumir, para o que nos interessa neste momento,
mtínuo, heterogêneo^rieteronomu, uu
^ ^ t,—~Ao tnra Ho ladodo
^^T^íz^vern mevig.vel™^te^de^QraTdo doproprietário
nroDnetario
trabalhadorcoieti
dos meios de produçà^S^iiriSd^^
mento e acefaba impostas à produção, não há produto - e mercadoria, portanto.
Recordemos algumas passagens de Marx que nos serão essenciais:

O que estabelece porém a conexão entre os trabalhos independentes do cria­


dor de gado, do curtidor e do sapateiro? A existência de seus produtos respec­
tivos como mercadorias. O que caracteriza, ao contrário, a divisão manufa-
tureira do trabalho? Que o trabalhador parcial não produz mercadoria._Só_o
produto comum dos trabalhadores parciais transforma-se em mercadoria.3 4

[...] a cooperação dos assalariados é mero efeito do capital, que os utiliza


simultaneamente. A conexão de suas funções e sua unidade como corpo total
produtivo situa-se fora deles, no capital, que os reúne e os mantém unidos.
A conexão de seus trabalhos se confronta idealmente portanto como plano,
na prática como autoridade do capitalista, como poder de uma vontade
alheia, que subordina sua atividade ao objetivo dela. Se, portanto, a direção
capitalista é, pelo seu conteúdo, dúplice, em virtude da duplicidade do
processo que dirige, o qual por um lado é processo social de trabalho para a
elaboração de um produto, por outro, processo de valorização do capital, ela é,
quanto a orma, despótica. Com o desenvolvimento da cooperação em maior
escala, esse despotismo desenvolve suas formas peculiares.*

In diretamente, nessas citações estão - -


comnreensãn Ao A u j ontidas as posiçoes suficientes para a
ZZ. tr t “,Une,”ra h°|e' El“ P™m afLaa

3 Karl Marx, O capital Tradução de Regis Barbosa e Flávi v i o


Cultural, 1983, v. 1,1.1, p. 279. ° K0the- Sao Paulo: Abril

4 Karl Maxx, op.cit, v.i, t.i, p.263.


desenho de arquitetura hoje é possibilitar aforma mercadoria do objeto arquite­
tónico que sem ele não seria atingida (em condições não marginais).
Com efeito, o desenho de arquitetura é mediação insubstituível para a
totalização da produção sob o capital. Dados seus pressupostos habituais (o
programa, enumeração geralmente descosida de peças e “funções” salpicada
de vagos propósitos; o “preço” limite; a técnica, menos escolhida que imposta
pela conjuntura da procura de mais-valia; etc.), é o desenho a partir de lá ela­
borado que orientará o desenvolvimento da produção. Nesse primeiro emprego,
conta pouco o que se queira chamar de qualidade ou adequação, ou ainda o fato
comum de ser continuamente adaptado a novos parâmetros, de fornecimento
ou de venda, de financiamento ou de caricatura do que foi, há tempo já, o gosto.
O que vale é que esse desenho fornece o solo, a coluna vertebral que a tudo con­
formará, no canteiro ou nas unidades produtoras de peças. Em particular — e é
o principal —, juntará o trabalho antes separado, e trabalho a instrumento.
Que esse desenho seja, em alguns de seus traços, dependente de poderes supe­
riores, que não nasça senão já submetido ao capital, não são restrições que amorte­
çam sua necessidade estrutural: é parte indispensável da direção despótica. Aliás,
falar de desenho como o conhecemos é conotar simultaneamente dependência
e despotismo, como na velha metáfora do ciclista: cabeça baixa e pés rancorosos.
Porque não é senão como razão separada da concreção, efeito da ruptura da pro­
dução pela violência, que foi feito o que é: parte que, por ser parte, é dominada e
transmite para baixo as formas da força sob a qual aparece, sofre e governa.
Esperamos mostrar, no nosso texto, que a elaboração material do espaço
é mais função do processo de valorização do capital que de alguma coerência
interna da técnica.5 Para nós, não há dúvida possível, é porque o canteiro deve

5 Na hipótese duvidosa de desenvolvimento técnico autônomo: de fato, aqui emergem os


efeitos da mesma causa. As relações sociais básicas de produção conformam a técnica às
suas imposições. A literatura sobre esse tema é vasta e dispersa. Somente como indicação,
ver: Crítica da divisão do trabalho, textos escolhidos e apresentados por A. Gorz. São Paulo:
Martins Fontes, 1980; A. Glucksmann, “Nous ne sommes pas tous prolétaires”, Les Temps
Modernes, n. 330 (jan. 1974), e 331 (fev. 1974); D. Pignon, “Pour une critique politique
de la technologie”, Les Temps Modernes, n. 345 (abr. 1975); Y. Maignien, La division
du travail manuel et intellectuel, Maspero, 1975; H. Marcuse, Ideologia da sociedade
industrial o homem unidimensional. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. G. Mendel, Pour une
autre société. Paris: Payot, 1975; para um ponto de vista discordante, ver J. Habermas,
Técnica e ciência como idelogia. Lisboa: Edições 70, 1986. Sobre a arquitetura e suas
relações com a organização do canteiro, ver M. Tafuri, Teorie e storia delVArchitettura.
Bari: Laterza, 1970; e ainda LArchitettura de Humanesimo. Bari: Laterza, 1972.
• 1 nue o desenho existe, chega pronto e de fora. 0
ser heterônoxno sob o capita q ^ ^ heteronomia do canteiro. Ou, para duer
^T^^r^^T^^^énhÕ^e^ãrquitetSã^cSninhoobnga-
^neSí^ÍÍ^-S Tmais VahT^pgÍjÍ^
tdriopesquecidcTpelas teorias

«q^”«>'Vé o quiserem podem exibir o tímlo de .r.balhad»-

L pr.duri.os, s. lhes agrade (rrabal),.dores produt.vos no sen.rdo d, eco,,.-


mia polihca do capital, é evidente).
Se nossa afirmação de que o desenho de arquitetura e momento que nao
pode ser eliminado do processo de valorização do capital aplicado na constru­
ção é quase óbvia, ela merece, entretanto, alguns desenvolvimentos. Em espe­
cial, a natureza desse desenho que não existe senão na separação, dependente
e autoritário, pede melhor exame.

A FORMA DE TIPO-ZERO

No canteiro, os planos e memoriais - dos arquitetos, dos engenheiros, da


“equipe-pluridisciplinar", tanto faz —. decodificados pelos mestres e comunica­
dos como ordens de serviço, comandam o trabalho dividido. Nesse momento,
repetimos, nao representam mais que uma forma particular do despotismo da
direção capitalista.

É, portanto, entre a força produtiva do trabalhador parcelado e seu produto


unitário que se interpõe o capital, sob a forma técnica do trabalho de
fiscalização e de unificação das tarefas.6

Esses planos e memoriais constituem, com efeito, os únicos laços imediatos


rScT dTrSaS de '^teiros, pintores) encanadores, pedrei-
o IfejTu t Pr ÇSO mater^- Eles designam o a-fazer (e assinalam

é claro: reúnem
Zfe 7 H C7,nh°’ qUe fabricação
° haPel destes papéis
i
acéfala à finalidade funcional fnõ'J t Í Í° * mstrumento> atividade feita

éroenõscíarãsuainõtívãçSft
vam essas separações que fingem reparLÍ
%*£."“'l" ^ ^ P “ fat° dt? existirem’ agra'

~9 Jl w \,j IMI r
tJ Jy corps productif. Paris- Main, 1972, pp 39_40
J «tris. iviame,
No canteiro, no momento da produção, portanto, a razão prioritária do
desenho é introduzir ligadura, comunicação e estrutura. Do que resulta que
pode ser comparado ao que Lévi-Strauss chama de forma de “tipo-zero”:

Mas não é a primeira vez que a pesquisa nos apresenta formas institucionais de
tipo zero. Estas instituições só teriam uma propriedade intrínseca: introduzir as
condições prévias à existência do sistema social do qual revelam e que se impõe
como totalidade pela sua presença — em si mesma desprovida de significação.7 8

Sabemos: a comparação é talvez exagerada e válida somente para o papel do


desenho no canteiro. Mas não nos precipitemos.
Ainda uma vez: o desenho pode assumir os padrões dominantes ou não,
seguir a “função” ou fazê-la seguir, ser qualificado como racional, orgânico,
brutalista, metabólico ou como se queira no interior da confusão das pseu-
dotendências, ser mais ou menos conformista em relação ao “utensílio” que
informa, ser modulado, modenado ou a-sistemático, ornar ou abolir o orna­
mento: a constante única é ser desenho para a produção.
Entretanto, a necessidade técnica do desenho, excluídos casos de complexi­
dade ou dimensões extraordinárias, só se mantém se embrulhada em axiomas
escorregadios. Note-se que as dimensões extraordinárias são raramente inocen­
tes. Não é sem motivo que a arquitetura, crescentemente, recorre ao discurso
como acompanhamento diplomático ao desenho. Afinal, na maioria das vezes,
a construção dos edifícios é simplória e monótona, quase mesquinha. Mesmo
essa espécie de “atenção flutuante” ou de atenção senóide de que fala A. Leroi-
Gourhan,® obrigatórias para o operário ainda que feito meio autômato, como
dizem, são suficientes para deslindar o mistério de farsa da construção — desde
que se oriente nesse sentido. Só que tal orientação é rara. E o contrário seria
aberrante: para que serviria na obra imposta o que não pede resposta, feita de
hora concreta apodrecida pela hora abstrata jugulante e que apaga a memória
da pena de que é filha, senão para rasgar mais a ruptura interna de cada um?
Assim, se não contarmos as exceções de evidência primária do que há que
fazer, o próprio trabalhador deixa que seja encoberta de promovida obscuridade
a significação para o conjunto dos atos que exerce. Sem dúvida, por curiosidade
deslocada ou dificuldade diante do embrutecimento requerido, alguns seguem
a “lógica” (generosidade das palavras) dos encadeamentos de etapas, das esperas,

7 C. Lévi-Strauss, “As organizações dualistas existem?”, em Antropologia estrutural. Rio de


Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p. 185.
8 Ver A. Leroi-Gourhan, O gesto e a palavra. Lisboa: Edições 70,1987.
dos cuidados de previsão etc. Mas a maioria — e com maior motivo os trabalha
dores sem qualificação ou novos no canteiro, cerca de 70% do total - não acorri
panha os porquês do que faz. Não por incapacidade, insistimos (hipótese que
implicaria o corolário de imbecilidade “natural” dos operários), mas por justo
desinteresse, por melancólico acantoamento defensivo na tarefa imediata e por­
que a compreensão global, por um a priori instaurador do sistema, é coisa que
não lhe cabe. A exclusão é intencional e suas conseqüências programadas.
Ora, retomemos ainda: essas condições de incompreensão e alheamento,
provocadas no interior do campo do trabalho e que implicam conseqüente-
mente o desenho exaustivo que o comanda, são as condições necessárias para
a produção enquanto produção de mais-valia. O desenho é assim nuclear para
a produção que é imediatamente mercadoria. Em outros termos, o desenho
do produto acabado, enquanto tal, só afeta — e relativamente — as etapas de
circulação e consumo. Antes do acabamento do produto, o desenho é meio
(mediação ambígua, veremos) para canalizar para 0 produto acabado, para 0
momento em que adquire forma mercantil, para o produto coletivo, o traba­
lho dos trabalhadores parcelados. No nível do canteiro, o desenho é o molde
onde o trabalho idiotizado (na expressão_de A. Gorz) é cristalizado. A configu-
raçaõ^^destirm particulares dessa cristalização são aleatórios aqui: o que faz
a lei é a deposição (em todos os sentidos da palavra) dos trabalhos decompos­
tos no mesmo objeto. O desenho do produto é sobretudo desenho para a pro­
dução e há contradições agudas entre esses seus dois papéis, o primeiro domi­
nado pelo segundo. A realização da mercadoria é etapa posterior e joga com
outros coringas que a pura (e problemática) adequação ao uso: publicidade,
carência, efeito-demonstração e a enrolada divergência entre a demanda e 0
desejo. Como a evidência é evasiva, reafirmamos: a finalidade do desenho np
canteiro, e que é hegemônica, é recolher a grande niassajje^trabalho disperso
(participi&paisadO'i'que’soifeu ação de dispersão)na manufatura da cons:
trução em um único objeto-mercadoria, sem que preocupe muito a natureza
desse bbjeta UsTaços entre as funções individuais dos trabalhadores e sua
unidade como corpo produtivo aparecem fora deles, no desenho inseparável
de outras manifestações do capital. Nele se exprime a potência de uma von­
tade que submete seus atos à sua finalidade, despoticamente. E essa vontade,
cuja finalidade mediata é a mais-valia, visa imediatamente, como pré-requi­
sito, a concreção da mercadoria.
Mies Van Der Rohe, quando propõe a não especificidade dos espaços, desce
à crueza enquanto arquiteto a serviço do capital (quase tautologia). Desenha
espaços vendáveis, cumpre sua missão; o que deles é feito não o ocupa. E, por
isso, é capaz de passar do monumento (felizmente destruído) a Rosa Luxem­
bourg e Karl Liebknecht ao Seagram’s building. É que nele encontramos como
que o arquétipo da forma de “tipo-zero”, paralelepípedos anônimos prontos
para qualquer — ou nenhum — uso.
A separação entre trabalho e trabalho, trabalho e instrumento, atividade
feita acéfala e finalidade funcional, assim como a separação entre trabalha­
dor e sua força de trabalho são manifestações de uma relação de produção
específica. No seu interior, inversamente, é como enganosa relação que a
separação se manifesta, do mesmo modo como no interior do espaço posto em
perspectiva, continente obtido por vazios e distâncias, os corpos isolados se
/
fecham em si mesmos, unidos somente no olhar que dispõe do espetáculo. E
figurando relações que o desenho revela a separação: a separação, negação da
unidade simples, é negada e, na negação da negação, no desenho, reaparece
— mas sem o movimento da aufhebung. Reaparece integralmente porque essa
negação da separação não é experiência de uma unidade superior: o separado
negado é mantido dentro de sua falsa negação.
A ligação que o desenho propõe é ligação do separado. Que se leia Viator,
para nos mantermos nos limites da metáfora, em nada arbitrária, da perspectiva:

Lesquelles plates formes sont commencées et dressées par les pavements


aptement pourtraiz adnombrez et considerez sur iceulx les espaces et
distances ou mesures opportunes.

E, na adaptação de JL. Brion-Guerry:

É começando por um desenho apropriado dos pavimentos que poderemos


erigir os planos, intervalos e distâncias sendo desenhados sobre eles e
representados com as proporções requeridas.9

É de intervalos e distâncias que se compõe o quadro da perspectiva (logo


voltaremos à questão da trama no chão). Para ela, como para o desenho de
arquitetura em geral, toda particularidade é aleatória (no tratado de Viator,
os corpos são esquemáticos, contornos simplificados): na função de ligação
exterior do separado (que mantém o separado enquanto separado) deve guar­
dar a mesma generalidade (universalidade abstrata) que a que fundamenta o
sistema. As perspectivas, como o desenho de arquitetura, são sínteses só for­
mais: baseadas na autoridade ou do olhar privilegiado ou da posição hierár­
quica do desenhista na produção: na submissão brutal, portanto.

9 L. Brion-Guerry, Jean Pélerin Viator, Sa place dans Vhistoire de la perspective. Paris: Les
Classiques de L’Humanisme, 1962, p. 210 e p. 226.
Assim, para a obra, o desenho não é representação de um objeto de uso.
Representa, ou melhor, impõe sincretismo ao trabalho parcelado, que deixa
esfarelado para preservar sua missão unificadora. E como o trabalho foi idio-
tizado, e como para o capital, na produção, mais que nada interessa a reunião
dos trabalhos atrofiados pela desunião que ele mesmo provoca antes como con­
dição para a extração de mais-valia, sua coagulação sucessiva no mesmo objeto,
em tese o desenho que possibilitar essa coagulação numa totalidade formal
pode ser qualquer: forma de “tipo-zero” cuja presença, em si mesma despro­
vida de significação, permite, ao processo de trabalho na construção, de se pôr
como totalidade.
Mas, porque pode ser qualquer, o desenho será uniforme e totalitário. É o
que comentaremos, depois de um giro pelo canteiro.

O CANTEIRO

OBSTINAÇÃO: A MANUFATURA

Chi puo dir com egli arde, è in picciolfuoco. [Petrarca]10

A areia, a pedra são descarregadas. Um servente as amontoa nos locais previs­


tos do canteiro; um outro leva parte para o ajudante de pedreiro que ajunta
água e cal ou cimento, trazidos do depósito por um ajudante diferente; um
quarto despeja a argamassa em baldes ou carrinhos e a conduz ao pedreiro
que coloca tijolos, faz um revestimento ou enche uma fôrma, seguido por seu
ajudante que segura o vibrador ou recolhe o excesso caído. Em cima, o car­
pinteiro prepara outras fôrmas com a madeira empilhada perto dele depois
de encaminhamento semelhante ao da argamassa e percorrido por ajudantes
e serventes próprios; o armador dobra as barras de ferro assistido do mesmo
modo e, por todos os lados, pintores, marceneiros, eletricistas, encanadores
etc., sempre rodeados por ajudantes e serventes, constituem equipes numero­
sas, separadas, especializadas, verticalizadas. Avançada divisão do trabalho e,
em cada parcela, hierarquia detalhada.
Pás, enxadas, desempenadeiras, colheres, prumos, esquadros, réguas, fios,
serrotes, martelos, alicates, goivas, plainas, rolos, espátulas etc. Instrumentos
simples, isolados, adaptados às diversas operações, resultado de lento aperfei­
çoamento e diferenciação para um uso preciso. Mais raramente, betoneiras,
elevadores, guinchos, vibradores, serras elétricas etc. Sempre, entretanto,

1 12 io “Aquele que pode dizer como arde, só vive uma pequena paixão”. Petrarca, Soneto 137.
máquinas somente auxiliares nas tarefas pesadas; nenhuma operatriz que
reúna os instrumentos particularizados.
Um mestre transmite as instruções, organiza a cooperação, fiscaliza,
impede atrasos: é, também, feitor.
A descrição — de um quadro freqüente em país subdesenvolvido como o
Brasil — é de típica manufatura serial. Simplesmente, na produção do espaço,
a manufatura é móvel, não seus produtos.
Há sinais evidentes de outras formas de produção. Por exemplo, vários
produtos industrializados intervêm, no canteiro, seja como materiais de base
( cimento, aço, isolantes etc.), seja como componentes (equipamento elétrico,
hidráulico, caixilharia, paredes ou lajes pré-fabricadas etc.), seja como com­
plemento instrumental (guinchos, betoneiras etc.). O conjunto da produção e
cada etapa, porém, são dominados pela estrutura da manufatura. E essa domi­
nante estrutural define a produção do espaço, mesmo se não é a mais avançada
/
técnica ou historicamente. E por isso, aliás, que as diferenças na organização
do canteiro em país subdesenvolvido e em país desenvolvido, como a França,
fora casos pontuais, podem ser limitadas às que distinguem a manufatura
serial (baseada principalmente no trabalho interno e cumulativo) da manu­
fatura heterogênea (baseada principalmente na montagem de elementos pré-
fabricados). Não negamos a importância dessas diferenças, sobretudo para a
análise das empresas, da diluição de sua identidade e fechamento, no caso da
manufatura heterogênea. Não é a mesma coisa somar tijolos ou montar pai­
néis, malaxar o concreto no canteiro ou recebê-lo pronto, preparar as fôrmas
no local de utilização ou construí-las em galpão. Nada disso, entretanto, justi­
fica as exclamações de industrialização a cada aumento das dimensões ou da
quantidade dos guinchos, da pré-fabricação. A transformação da manufatura
em indústria, se chegar ao canteiro, pressupõe ruptura mais funda.
Mas, mesmo reconhecendo a importância das diferenças que isolam a
manufatura serial da heterogênea, não nos preocuparemos com elas neste
texto. Nosso objetivo é outro, mais esquemático e pré-científico - razão pela
qual utilizamos exemplos e informações sem cores nacionais ou locais.
Entretanto, se nos desviássemos de nosso tema — as relações do desenho de
arquitetura com a organização do trabalho no canteiro —, encontraríamos em
outros critérios de avaliação, como a composição orgânica do capital, índice
relativo de salários, composição da força de trabalho etc., elementos indiretos
de apoio para a nossa caracterização.11

li Ver, além dos conhecidos estudos de C. Topalov, F. Ascher e J. Lacoste, Les producteurs du
cadre bati., 4 vols. Paris: Cordes, 1972, e A. Touraine, La conscience ouvrière. Paris: Seuil, 1966.
Repetimos: a manufatura da construção, feita de equipes inl.ernainerite
hierarquizadas, provoca uma divisão avançada do trabalho - avançada corno
se diz de um estado patológico. Vejamos primeiramente alguns aspectos orga­
nizacionais dessa divisão tida como técnica, isto é, neutra. Voltaremos depois
para outras observações.
Na indústria, a divisão é em grande parte regulada pelo processo objetivado
de produção, pela cadeia de montagem, por exemplo. Ou, mais modernamente,
pelo sistema de empregos que dissolve a importância do posto de trabalho na
nova estrutura industrial.12 Aparentemente, o que a provoca são as necessidades
suplementares do maquinário, os momentos da produção ainda não automati­
zados — momentos de escolha, reparo, readaptação etc. Aparentemente: o glacis
do capital, que é o real suporte, colore todas estas figuras, com perdão para a
metáfora de pintor.13 Em conseqüência, ou o trabalho é “desqualificado”, enco­
lhido em alguns comportamentos regulares e simplórios14 ou se faz mais trans-
setorial, vinculado a uma série horizontal qualquer do complexo tecnológico
disponível.15 Em todo caso, o trabalhador industrial tem mobilidade possível,
escapa das amarras do ramo produtivo exclusivo.
Na manufatura, ao contrário e apesar do mesmo glacis, o essencial é a des-
teridade, a habilidade, a presteza e a quantidade de esforço compatíveis com a
unidade de produção, o trabalhador, sua equipe e seu instrumento, postos sob
a pressão do mestre. A produção não abandonou seus fundamentos muscula­
res e nervosos, não adotou a independência relativa dos processos mecânicos
e automáticos. Prisioneira, em grande parte, de fatores subjetivos, aprisiona
necessariamente os que a constituem tecnicamente. Seu núcleo é o trabalha­
dor coletivo, trabalhadores parcelados em colaboração forçada:

A maquinaria específica do período manufatureiro permanece o próprio


trabalhador coletivo, combinação de muitos trabalhadores parciais.16

Mas nem por isso há manutenção das tradicionais divisões dos ofícios, campos
diferenciados de técnica ampla e homogênea. É como se houvesse fratura-
mento desses ofícios (se imaginássemos uma história imanente das forças de
produção), conservando, entretanto, uma característica importante de sua

12 Ver P. Rolle, Introduction à la sociologie du travail. Paris: Larousse, 1971.


13 Ver A. D. Magaline, Luta de classes e devalorização do capital Lisboa: Moraes, 1977.
14 Ver G. Friedmann, O trabalho em migalhas. São Paulo: Perspectiva, 1972.
15 Ver P. Rolle, op.cit.
16 Karl Marx, O capital, op. cil., v. 1,1.1, p. 275.
constituição: a condensação de gestos e procedimentos do trabalho no indiví­
duo e não exteriorizada na máquina. A condensação é menos larga que nos
ofícios (estamos longe das corporações): a repetição do mesmo gênero de ope­
rações miúdas no interior das equipes, às quais cabe o mesmo tipo de serviço
sempre na imobilidade quase secular do canteiro, dispensa ao conhecimento a
busca de generalidade. As equipes, e mais ainda o trabalhador, são acantona­
das em tarefas limitadas, reduzidas a uma área estreita. Tecnicamente esgar­
çado entre a autonomia nem sempre leve do artesão e a oca disponibilidade
do trabalhador industrial, o trabalhador manufatureiro parece servo de seu
ramo produtivo. Em particular, o conflito entre um certo orgulho “profissio­
nal” e as pressões da organização do trabalho, abafado sob a ameaça constante
de desemprego no setor, gera uma violência típica do comando que recorda a
da servidão. O enrijecimento da organização ante o subjetivismo de suas par­
tes provoca tensões permanentes que logo estudaremos.17
O ideal sempre aspirado pela manufatura da construção é o da unidade
de serviço e da separação cuidadosa das equipes. Os desencontros sem conta,
perceptíveis em quase todos os canteiros, têm origem, em parte, nessa tendên­
cia ao ilhamento dos vários passos que o compõem: os colocadores de portas e
peças que deterioram o revestimento, o qual, por sua vez, bloqueia as esperas
deixadas por eletricistas e encanadores, os quais são obrigados a reabrir as
paredes erguidas pelos pedreiros... No canteiro, cada etapa deve ser executada
de uma só vez e pressupõe outra anterior acabada: a simultaneidade rara­
mente é permitida (salvo se a intenção da simultaneidade é acelerar a suces­
são — é comum, por exemplo, fazer intervir uma equipe antes que outra tenha
esgotado seu tempo previsto e, portanto, sua tarefa. Assim, a segunda é apres­
sada pela primeira, cujo tempo também contado já corre. Dupla vantagem:
redução do tempo global e criação de hostilidade entre equipes).
Na indústria, é sabido, o princípio marcante é o da simultaneidade — o que,
lateralmente, provoca diffação na apreensão de seu objetivo, a apropriação da
hora abstrata. Marx sublinha a incompatibilidade entre a divisão manufatu-
reira e a industrial do trabalho:

A própria manufatura fornece ao sistema de máquinas [...] o fundamento


naturalmente desenvolvido da divisão e portanto da organização do processo
de produção. Aí se introduz, porém, imediatamente uma diferença essencial
[...] Embora o trabalhador seja adequado ao processo, também o processo é
adaptado antes ao trabalhador. Esse princípio subjetivo da divisão é suprimido

17 Ver A. Touraine, op. cit., pp. 53-54.


na produção mecanizada. O processo global é aqui considerado objetivarmoiic,
em si e por si, analisado em suas fases constituinl.es |... ] Se na manufatura o
isolamento dos processos particulares é um princípio dado pela própria divisão
do trabalho, na fábrica desenvolvida domina, pelo conLrário, a continuidade
dos processos particulares.18

Sucessão contra simultaneidade, isolamento dos processos particulares contra


continuidade, especialização dos estágios contra fluidez, sincretismo contra
osmose, somatório contra integral: pares de oposições fundamentais para o
entendimento do canteiro. E, se cruzarmos essas oposições com a cor viva do
princípio subjetivo da divisão na manufatura, a produção do espaço começará
a aparecer em sua especificidade — e violência.
Na verdade, aliás, a simples aproximação de um canteiro assustaria, não
fosse a preparação que nos habitua às aberrações. E, sobretudo, se são fami­
liares, cotidianas. Visto de uma certa distância, o canteiro é eminentemente
ação concatenada: os gestos de cada operário, compostos com os complemen­
tares de outros operários, seguem uma ordenação precisa. O axioma fundador
de um dos métodos mais utilizados para o controle dos tempos produtivos no
canteiro — o das observações instantâneas — é a evidência dessa ordenação.19
Mesmo se a ordenação não se deixa compreender com facilidade, sua pre­
sença é óbvia. E seu espetáculo, visto dessa distância, sustenta as corriqueiras
imagens que se querem positivas sobre os construtores, degradação para uso
retórico do mito de Dédalo.20 Porque, de mais perto, se procurássemos, em
nenhum momento localizaríamos o acordo que corresponderia a desejo de
cooperação. E notaríamos, entre outras decepções, que a totalizaçao do tra-
t
balhador coletivo é função particular, função do mestre. E dele que partem
as ligações entre as equipes — e cada equipe só de sua cobertura abrangente
recebe a substância que a mantém. Como em Liebniz, o caminho eficaz
entre duas mônadas passa pela monas monadum, por deus ou pelo mestre.21
E desde que haja “mestre” — em Hegel, na universidade ou no canteiro - há
“escravo”. Dédalo, artesão de e do brilho no mito, desdobrado irreconciliavel-
mente em poder e ação submetida, em saber e dever, inclui agora um talho
desfigurador.

18 Karl Marx, O capital, op. cit., v. i, 1.2, p. 13.


19 Ver E. Olivier, Organisation pratique des cfiantiers% 2 vols. Paris: EME, 1968, t. 11, pp. 84-85.
20 Ver F. Frontisi-Ducroux, Dêdale: Mythologie de Partisan em Grèce Ancienne. Paris:
Maspero, 1975.
21 Ver M. Serres, Hermes i; La communication. Paris: Minuit, 1968, pp. 154-164.
Mas mesmo o mestre, se é mestre no canteiro, não passa de elo secundário
/

na cadeia de poderes. E leitor submisso de planos, memoriais, cronogramas de


origem exterior e anterior à obra. O canteiro é só ação: visto de uma distância
um pouco menor, é ação heterônoma — e, portanto, monstruosa.
Heteronomia: “condição de pessoa ou de grupo que receba de um ele­
mento que lhe é exterior, ou de um princípio estranho à razão, a lei a que se
deve submeter”.22 Não inclui lei escolhida e assumida, razão própria: é deter­
minado por ausentes que, de algum ponto da seqüência de heteronomias,
impõem a cada um o movimento separado. Diminuída a distância, perdida a
imagem de concatenação endógena, o movimento mostra que é movimento
de quase ensimesmados teleguiados, desenha uma espiral cujo nó interior é a
solidão pendurada a uma vontade distante. Incoerentemente, ainda dessa dis­
tância menor, a ação conta passividade. O objeto à procura de corpo, o modo
e a cadência de sua incorporação são dados como que celestes, despejados das
alturas dos artistas, dos proprietários, dos sábios. Como barra, interpõem-se
entre operário e operário, entre equipe e equipe, entre sujeito e sua força de
trabalho. Como cadeia, ceifam o impulso nem bem esboçado ou já desistido
de nascer, retendo somente o programado ato — assim falho.
Atenção: há perigo de inversão de imagem, o que favorece muita ves-
guice teórica. No discurso autojustificativo da técnica, o resultado é posto
como causa. Estamos diante de um retorno bastante embaralhado, espécie
de feedback caolho, apresentado como o único trajeto de ida da questão. A
partir da separação entre ação e vontade determinante — separação que com
outras abre a brecha para a extração de mais-valia —, o trabalho escorrega
no sentido da tarefa absurda e sem conexão interna. A desagregação, exi­
gida pelo comando, de toda organicidade na base (organicidade que suporia
a responsabilidade autônoma) reduz a cacos estranhos uns aos outros os
momentos do trabalho, cujo princípio, contraditoriamente, é subjetivo.23 A
segregação de equipes e operários (em “grande número”, não esqueçamos)
requer, como efeito inverso da segregação, um catalisador exterior para che­
gar ao produto — que, enquanto mercadoria, é a “forma social mais simples
que assume o produto do trabalho na sociedade contemporânea”. Esse “sim­
ples”, portanto, integra ruptura, violência, descontinuidade. (Seu correlato
no sistema é, por um lado, o patronato; por outro, a “sólida unidade” operá­
ria, feita de vácuo introduzido que, fazendo vazio na matéria ou na “massa”,

22 A. Buarque de Holanda, Novo dicionário da língua portuguesa. São Paulo: ENF, 1975.
23 Ver André Gorz, “Técnica, técnicos e luta de classes” em Crítica da divisão do trabalho.
São Paulo: Martins Fontes, ig8o.
chama a si o que o envolve. 0 oul.ro da segregação não é o bloco monolítico,
mas as mil flores. Sua rejeição é necessariamente divergente.) () que foi des­
feito não pode mais dispensar a preparação minuciosa de sua exploração
a partir daí, as “necessidades técnicas” justificam o comando. Na verdade, o
comando é a conseqüência da oligofrenia forçada e da irresponsabilização
dos produtores imediatos por todas as formas que a violência sabe tomar.
Mestres, planos, memoriais, cronogramas, a hierarquia estrangeira, tais
como os conhecemos, formam o contrapeso de uma ação dependente porque
feita acéfala. Retomemos: “é o trabalhador coletivo... que constitui o meca­
nismo específico” da manufatura. Os gestos e procedimentos do trabalho
não estão exteriorizados na máquina: são homens que os carregam na sua
carne, na sua experiência. Por outro lado, entretanto, esses mesmos homens
vêem seu trabalho espicaçado em momentos absurdos sob o comando alheio
e devem, a quem compra sua força de trabalho, um comportamento de oli-
gofrênicos. A inabilidade de nossa exposição nos obriga a seguir um lado e,
depois, o outro: o salto constante seria fatigante. Mas tal é o ritmo exigido
do canteiro. Em cada passagem, a oposição entre a ancoragem subjetiva do
saber prático e o desmembramento do trabalho manufatureiro está pre­
sente. A separação polimórfica não tem data e sua reabertura sem tréguas
alimenta cotidianamente a produção enquanto processo de valorização e
reprodução do capital.

COLA E RACHADURA

Vejamos primeiro um pouco da (re)organização que condiciona a atividade


seccionada — com um exemplo entre muitos possíveis.

Supomos que um carrinho ligue, no solo, uma betoneira a uma plataforma


que sobe até o andar (em que o concreto é necessário), movida por um
guincho. O carrinho transportado pela plataforma distribui o concreto no
andar e desce novamente pelo guincho até o solo para ser carregado de novo
na betoneira. O sistema comporta três carrinhos. [...] O ciclo de trabalho
compor-se-á, pois, da seguinte maneira:

Operários i e 2: (carrinho)
o i. Recepção do concreto no carrinho
-> 2. Transporte até o guincho
D 3. Espera
o 4. Recuperação do carrinho vazio de volta do andar
118 O 5. Fixação do carrinho cheio
> 6. Volta à betoneira com o carrinho vazio
D 7. Eventualmente, espera na betoneira

Operário 3: (guincho)
D 8. Espera pelo descarregamento do carrinho vazio e pelo carregamento
do carrinho cheio
-> 9. Subida
D 10. Espera pelo descarregamento do carrinho cheio e pelo carregamento
do carrinho vazio
11. Descida
D 12. Espera eventual pela chegada do carrinho cheio

Operários 465: (carrinho)


0 13. Retirada do carrinho cheio da plataforma do guincho
o 14. Fixação do carrinho vazio
15. Transporte do concreto até o local de utilização
D 16. Espera eventual antes da utilização
O 17. Descarregamento no local de utilização
-» 18. Volta à plataforma com o carrinho vazio
D 19. Espera eventual pela chegada da plataforma trazendo um carrinho
carregado.24

Cinco operários. Os “nos 1 e 2” cumprem 7 fases (3 operações [o], 2 transportes


[-»], 2 esperas [d]); o “n. 3”, 5 fases (2 transportes, 3 esperas); os “ri5 4 e 5”, 7
fases (3 operações, 2 transportes, 2 esperas). “Operações”, para a work-simplifi­
cation, denota receber a argamassa num carrinho, amarrar e desamarrar o car­
rinho ao guincho, descarregar a argamassa. “Transportes”, empurrar o carrinho,
manobrar o guincho. “Espera”, suspensão vazia. Em média 1,5 minuto por fase,
6 ciclos por hora, 8 horas por dia (ou mais durante os períodos de concretagem)
e, assim, durante meses e meses. Uma equipe — de transportadores — como as
outras: os mesmos passos áridos e raquíticos, as mesmas pausas brancas, intermi­
navelmente a mesma asfixia, o mesmo vínculo externo — o transporte — frente
à massa de cunhas divisoras - origem, espaço (2 em cima, 2 embaixo, 1 no guin­
cho), salário (4 M2, 1 Ci), atividade, endormecimento, ritmo etc.
Gorz não exagera chamando de idiotizado esse tipo de trabalho. Mas nao
repetiremos as inúmeras e dolorosas análises já feitas, a partir de Marx, sobre

24 G. Paslrand, Sexploitation du chantier, 2 vols. Syndicai National du Béton Armé et des


1 19 Techniques Industrialisées, s/d, p. 34 e p. 37.
esse tema. Se insistirmos, entretanto, em anotá-lo é qur na construçào. como
veremos depois, esse íracionamento entra em conflito com outras exigências
simultâneas. Mas continuemos a seguir o canteiro.
Uma inlinidade de parcelas primárias de trabalho, quase Lodas do mesmo
gênero que as dos transportadores, é adicionada no interior das diferen­
tes e numerosas equipes. Bastaria esse parcelamento, que ultrapassa lodo
conjunto mínimo de comportamentos ainda organica e significativamente
coerentes, para assegurar o poder hierarquizador. Dividir para reinar e sugar,
lugar-comum nem por isso abandonado. Mas, na fobia por todo germe de
reação, os meios de controle são multiplicados. As várias legislações do tra­
balho, por exemplo, proporcionam ao empregador um prazo que chega a
trinta dias (28 na França) para testar os operários antes de aceitar qualquer
compromisso mais duradouro. E óbvio que o teste não verifica grande coisa
no nível da qualificação: 0 nosso transportador deve se mostrar capaz de
empurrar o carrinho em 1,5 minuto, oito horas por dia, sem atrasos, tarefa
de mula ritmada. De fato, é testada a subserviência — inevitável, aliás — aos
esquemas e critérios da produção, a abdicação de qualquer reinvidicação não
permitida. Testado durante um mês, o operário ganha direito a contrato
m

mais estável. Entretanto, mesmo provada a subserviência, o controle não


enfraquece. Todos os dias, o mestre anota, de manhã e de tarde, as horas de
trabalho efetuadas, atrasos, ausências, produtividade, os raros prêmios etc.
As normas do salário no canteiro provocam a insegurança indispensável para
a manutenção do domínio. Sob a constante ameaça, a paga de fome segue as
anotações freqüentemente aleatórias, suspensas à arbitrariedade do mestre
que é necessário abrandar com os mil jeitos da adulação. Envolvimentos
quase inúteis, fora o custo em dignidade: se o mestre, por deslize de compre­
ensão, ensaiar benevolência, os planos, orçamentos e cronogramas 0 denun­
ciarão por seu desvio. Não esqueçamos que as regras da boa direção obrigam
a vigilância do empresário sobretudo a propósito das falhas em relação à
previsão (regras de Fayol).
E, se nos detivermos no modo como a planificação é elaborada, sentiremos
logo que tais amolecimentos sao impossíveis. Sigamos mais uma vez Pastrand,
cujo estudo tem o peso de representante do Syndicat National du Béton Arme
et des Techniques Industrialisées (francês).

Suprimidos os tempos anormais [?], podemos ter os dois casos seguintes:


1. Primeiro caso: o número de tempos levantados é superior a 10. Por definição
[?] escolhemos como tempo (a figurar na planificação) o último tempo do
primeiro terço, depois de ter classificado os tempos em ordem crescente.
120 2. A operação que foi executada uma vez em três, em um tempo bem determi­
nado, deve poder ser feita constantemente neste tempo que é o mínimo standard.
_...] Quanto ao operário mesmo, é preciso não tolerar nenhum movimento
inútil...25

Assim é feita a planificação: o “último tempo do primeiro terço” e o que foi


realizado “uma vez sobre três” — nem mesmo a média em um trabalho já
submerso sob múltiplas pressões. A cadência acelerada aspira toda energia,
inclusive a nao disponível, e a canaliza para a execução centrada em torno da
orodutividade. Nenhuma reticência para a compreensão, para a crítica, para a
revolta. Como o tempo, escolhido “por definição”, não tolera “nenhum movi­
mento inútil”, a produção enquadra o corpo com censura repressora de qual­
quer impulso que não tenha por horizonte o valor. Durante o período em que
e proprietário da força de trabalho, o empreendedor zela contra sua usura e se
horroriza se seu suor escapa ao papel de esperma reprodutor, na boa tradição
cristã. Depois... Não é a fadiga que o preocupa, afinal o sono repõe a força de
trabalho em condições quase iguais às anteriores. Mas que o gesto não se grave
no material é pecado de perversão; 1,5 minuto na série sem limites — há mui­
tas pausas, entretanto. Os poros na produção, apesar de exprimidos pelo ritmo
‘’uma vez sobre três”, desarranjam ainda. E os programadores continuam:

Constatamos que o guincho espera durante as operações 405. Com os


operários 4 e 5, 0 guincho esperará ainda durante as operações 13 e 14, que,
como as operações 4, e 5, são relativas ao carregamento e ao descarregamento
da plataforma do guincho.
[...] podemos admitir que dando ordens precisas será suprimida toda espera
na betoneira (fase 7) que deve estar à disposição dos transportadores.
[...] Suponhamos que cada fase dure 1,5 minuto em média, o que, na
origem, pede sete fases por ciclo completo, seja 1,5 x 7 = 10,5 minutos,
correspondendo a seis ciclos por hora. Se o carrinho tem uma capacidade de
500 litros (correspondendo à da betoneira), vê-se que o rendimento horário é
vizinho de: 6 x Vi m3 / h = 3 m3 / h ou 3 m5 / h x 8 = 24 m3 / dia.
Reduzindo o número de fases a 6 ganha-se 1,5 minuto por ciclo ou por Vi m3,
o que dá um rendimento de:
i,5 x 6 = 9 minutos por ciclo e 3,5 m3/h e 3,5 x 8 = 28 m3/ dia.
Suponhamos agora que estabeleçamos um sistema permitindo reunir as
operações 4 e 5 e 13 e 14, seja, um ganho de 1,5 minuto ainda no nosso ciclo.
O novo tempo é:

25 G. Pastrand, op. cit, p. 34.


i,5 x 5 = 7,5 minutos, do que decorre um rendimento horário de 60 / 7,5 = 8
carrinhos por hora, seja 4 m3/h e, por dia, 4 x 8 = 32 m3.
No primeiro caso, obtemos uma melhoria de rendimento de:
4 m3/24 = 1 / 6 = 16,66%
No segundo caso, obtemos uma melhoria de:
8/24 = 1/3= 33,33%,
o que é considerável.26

“Melhoria de rendimento” tem um outro nome também, aumento da mais-


valia relativa. O qual, no caso, é mais que compensador, já que não implica
nenhuma aplicação nova em capital constante fixo, uma das vantagens fun­
damentais da forma manufatureira de produção.27 Nota: há aqui matéria para
uma confusão comum. O rendimento de um canteiro é obtido pela fórmula
(ideológica) M/m, em que Mé a “mão-de-obra” ema totalidade dos “mate­
riais produtivos” (grosseiramente, o capital constante circulante, descontados
os materiais de manutenção). Na França, em média, a relação é próxima de
1. O rendimento cresce com a diminuição do índice, o que quer dizer que a
mesma massa de salários manipula uma massa maior de materiais. Ora, fre-
qüentemente e de modo absurdo, a diminuição do índice é apresentada como
sinal de industrialização. Uma das razões dessa falta é simples: como a meca­
nização do canteiro é precária e não atinge o essencial (trata-se de manufa­
tura de modelo bastante tosco), a melhoria do rendimento vem, em geral, do
aumento da exploração do trabalho, o que encontra disfarce na referência
deslocada à industrialização.
De fato, as parcelas primárias de trabalho, decompostas e recompostas
pela lógica flutuante da organização da produção, são apertadas e reaperta-
das continuamente umas contra as outras para evitar quaisquer poros. Nesse
sentido, há “progresso” ainda possível; a organização do canteiro está “atra­
sada”. Basta citar, como exemplo, a impraticabilidade dos métodos mais
atuais de cronometria, indispensáveis já na indústria. A propósito, é curiosa
a elasticidade da matemática nessas programações “científicas”: sempre que
há vírgulas, as aproximações são feitas contra os operários, a favor da maior
densidade (no exemplo anterior, 10,5 minutos x 6 = 60 e não 63 minutos; 9
minutos x 7 = 60 também, pequenas incorreções que resultam em 24 minutos
por dia, 5% do dia de trabalho). É evidente que uma das causas principais do

26 G. pMirand, op. ciL, pp. $4-57.


122 37 Ver K. Marx, O capital op.cic, accçSo 4 do livro |.
f-SDicaçamento do trabalho na construção é preparar as condições para tais
recomposições serradas.

E preciso começar pelas tarefas simples, elementares, comportando um


número restrito de atividades, e proceder do seguinte modo:
í. Decompor toda tarefa em elementos simples: em atos elementares que
há de distinguir e localizar durante a observação [...] Note-se que:
— a única fase produtiva é a operação, que se executa no posto de trabalho,
quer se trate de uma ação direta modificando o material, o produto ou o
elemento da obra (trabalho eficaz), ou de uma ação indireta indispensável
para a realização da obra [...]
— a fase de controle é [...] necessária mas inútil se a montagem é correta;
— as fases de transporte, espera e estocagem não valorizam em nada o
produto acabado, mas, ao contrário, aumentam o tempo de execução, a fadiga
[?] e, portanto, o preço de custo.
A simplificação do trabalho procurará, pois, eliminar, ou ao menos reduzir
o mais possível, essas fases improdutivas.
[...] O estudo do trabalho se orienta assim para a observação minuciosa
e detalhada dos movimentos e elementos gestuais, cuja seqüência e
encadeamento constituem de fato o modo operatório. Será, pois, necessário
que o observador conheça perfeitamente os princípios da economia dos
movimentos, explorados na maior parte das indústrias e nos quais pode se
inspirar para simplificar o trabalho. Deve principalmente se interessar pela
amplitude dos movimentos, pela sua simultaneidade, sua continuidade, seu
encadeamento, sua intensidade, seu ritmo.28

Ritmo, intensidade, amplitude, distinguidos, classificados, são selecionados,


aprimorados, distribuídos nos gráficos para a caça ao trabalho “eficaz” (e para
o bem-estar do operário, quase acreditamos: segundo Olivier, as pausas fati­
gam). A eficácia engorda com a separação que domina, como categoria, todas
as perspectivas: temporais, espaciais, qualitativas etc. Separar para reinar faz
da separação a essência do reino.
Mas há mais: é forma de defesa também. A quantidade de meios mais ou
menos articulados que introduzem a divisão no interior do processo de pro­
dução, teoricamente caracterizado pela colaboração do trabalhador coletivo, é
enorme. Com a indústria, o parcelamento das atividades atinge os extremos

28 E. Olivier, Organisation pratique des chantiers, 2 vols. Paris: EME, t. II, pp-75_77-
da não-qualificação ou a qualificação perde a especificidade do poslo de tra­
balho. De qualquer modo, o operário é transformado em uma espécie de com­
plemento disperso da máquina. Os laços fomentados pelo saber e pela prática
cotidiana são relaxados pela mediação mecânica. Ora, o estreitamento desses
laços é espontaneamente provocado pela natureza da marmfaLura. Ocasião de
alarme para o sistema, pois esse gênero de aproximação entre trabalhadores
é considerado como potencialmente ameaçador. Assim, por exemplo, as tradi­
cionais organizações de compagnons, típicas da construção, tiveram de escapar
pela oposição clandestina ou foram quase forçadas a adotar cobertura política
reacionária. Nunca, porém, foram constatadas sem aversão.29 Por isso, o medo,
associado aos requisitos da dominação, provoca reação — constituída funda­
mentalmente por uma série de medidas desconexas, focalizadas no aprofun­
damento da divisão. E é fatal que seu emaranhado esbarre em contradições
intensificadas pela ansiosa pressão.
Apesar dos riscos e da ameaça latentes, entretanto, a forma manufatureira
de produção do espaço é mantida — por mil razões que não discutiremos neste
texto. E, com ela, permanecem também ameaça e riscos, representados pela
quantidade e qualidade dos laços evocados entre operários. Como precaução,
há hemorragia de investidas preventivas: insistência na sucessão das equipes
separadas; impedimento, enquanto possível, de toda simultaneidade (o que
contraria a propensão para acelerar a rotação do capital); estruturação diversa
das equipes, mais rígida, por exemplo, nas situadas sobre o caminho crítico
dos pert e proporcionadamente enfraquecida na medida do afastamento;
determinação heteróclita dos ligamentos externos que definem funcional­
mente cada equipe; quase individualização dos salários (multiplicidade de
taxas horárias, variação do número de horas, horas suplementares irregula­
res, faltas, taxas de produtividade, prêmios... a lista é inesgotável); dispersão
espacial; rotação entre canteiros; qualificação extremamente complexa apesar
de achatada (oito níveis para os empregados em alvenaria e concretagem na
França); hostilidade promovida pela superposição dos tempos de trabalho;
a hierarquia sempre exasperada... etc. etc. A direção do canteiro estimula a
separação com orientações que reclamam acrobacias paira caberem na “racio­
nalização” tecnológica. Um populismo teatralizado tenta imagem inversa de
companheirismo “profissional” — mas sua hipocrisia se denuncia ao menor
contratempo. Quase que a teatralidade mesma já assinala o que quer escon­
der: muita cola trai a rachadura.

12 + 29 Ver E. Coornaerl, Les Corporations ern France avant 1789. Paris: Ed. Ouvrières, 1968.
A ânsia em segregar é tão forte, que, por vezes, chega a contrariar o sacros­
santo critério da rentabilidade imediata, geralmente hegemônico na cons-
/

ciência dos empresários. E o caso, entre outros, do tratamento dispensado às


equipes “por tarefa”. De hábito, são mais produtivas, como provam os estudos
de job enlargement (estudos desenvolvidos sobretudo pelo movimento de work
simplification de A.H. Mogensen, do qual, aliás, Pastrand é adepto).30 Para os
Trabalhadores, esse tipo de equipe permite maior maleabilidade no ritmo e na
atribuição dos postos de trabalho, maior autonomia, menos fadiga, uma com-
nreensão alargada da produção etc. Mas é notável também um aumento na
coesão do grupo, o que facilita, pouco a pouco, a obtenção de pequenas vanta­
gens: transferência de algumas responsabilidades para fora da equipe, aquisição
de prêmios e reforços que são incorporados como parte normal do salário, com
o tempo etc. Conquistas, em si, bastante ambíguas.31 Ambíguas mas suficientes
>
para envolver esse tipo de equipe em desconfiança. A submissão que é somente
formal da manufatura da construção ao capitalismo tardio corresponde a pre­
ferência pela organização do trabalho que também somente na forma é subme­
tido (segundo a hipótese de D. Pignon e J. Querzola no artigo citado) — mesmo
se em outros setores da produção, menos dominados pelo trabalhador coletivo,
a submissão real fez suas provas. Aparentemente, o despotismo inerente à dire­
ção manufatureira tem como dever de eficiência que se mostrar, o que não é
incoerente com a teatralização populista, como vimos. Em conseqüência, provi­
dências de contra-ataque são adotadas e recomendadas pela work simplification
aplicada aos canteiros: não deixar ficar na obra, ao mesmo tempo que essas
equipes e sob nenhum pretexto, qualquer outro operário; impor o desmante­
lamento da equipe assim que cesse sua atividade contratual e antes que outra
equipe comece seu serviço. Os perigos de uma organização autônoma dos traba­
lhadores no seu interior são demais para a manufatura que deles é feita.
Mas o receio gera modos de segregação mais sutis.

POUR FINIR ENCORE

Talvez vocês estejam confusos com a própria simplicidade da coisa... Talvez o


mistério seja um pouquinho simples demais.32

30 Ver, a respeito, G. Friedmann, O trabalho em migalhas. São Paulo: Perspectiva, 1972, caps. m-rv.
31 Ver D. Pignon e I Querzola, “O despotismo de fábrica e suas conseqüências”, em Crítica
da divisão do trabalho. São Paulo: Martins Fontes, 1980.
32 E.A. Poe, “A carta roubada”, em Os assassinatos da rua Morgue/A carta roubada. São
Paulo: Imago/Alumni, 1999, p. 8.
A ausência de objetivarão mecânica na manufatura, do aparei hamcnto cuja
aparência sugere à nossa credulidade o rigor da razão, num tempo em que
a razão foi feita adequação de meios a fim, sem julgamento do fim,15 não
facilita a confusão entre técnica de dominação e técnica de produção.54 O
arbitrário do comando e a exploração tendem a transparecer, ao contrário do
que se passa na indústria. O rosto frio do maquinário não pode iludir lá onde
os meios de produção são de carne. Os estudos sobre a construção muito facil­
mente esquecem essa particularidade que a marca. Como explicar de outro
modo o que dissemos sobre as equipes, em particular sobre as equipes “por
tarefa”, ou ainda a instabilidade sem tréguas nesse setor que, teoricamente,
deveria buscar estabilidade e acúmulo de experiência? Os obstáculos ao apro­
fundamento do saber para a produção só podem ser interpretados como sin­
tomas da emergência temida e sempre eminente do conflito entre a imagem
da técnica de produção e as correntes polimórficas da técnica de dominação.
Ainda uma vez: no canteiro, são homens que carregam os gestos e procedi­
mentos, gravados por contínuo exercício coletivo, que compõem o núcleo do
trabalho. Poderíamos esperar que a prática depositada nessas equipes, nesses
operários fosse cuidadosamente resguardada — mas o que observamos é a sua
sistemática de corrosão. Curiosamente, para subsistir, essa reserva de domínio
formal do capital, para vencer sua fragilidade crônica, deve continuamente
enfraquecer os que a sustêm.
A corrosão da prática depositada na força de trabalho da construção, entre­
tanto, não pode chegar a rompê-la totalmente. A defesa, mesmo mórbida,
sabe que será inútil desembocar no suicídio. Ora, o controle direto do corpo e
de seus movimentos, a separação física, apesar de comporem os meios privile­
giados para a exploração, são insuficientes para garantir a segurança (o ideal
seria a conivência) desejada. Portanto, se a submissão total é inviável, mas o
gesto submisso indispensável, por que não tentar uma lobotomia um pouco
menos grosseira, uma afemia operária sem laringotomia? Caminhos mais
insinuantes, menos esperados, mas talvez mais persistentes. Instalar hiatos
diáfanos, cesuras quase elegantes... São conhecidos os instrumentos adequados
para talhar tão manhosamente: são os do gosto, da harmonia, da linguagem.
Para esquizoidar uma cabeça, dar-lhe forma de cebola, romper ligamentos,
nada melhor que a injeção de seu mistério serviçal: afinal, toda teofania para­
lisa, fulmina as reivindicações de entendimento.33 34 *

33 Ver M. Horkheimer e T. W. Adorno, Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1965.


34 Ver André Gorz, “Técnica, técnicos e lula de classes” em Crítica da divisão do trabalho.
126 São Paulo: Martins Fontes, 1980.
Acaso pode alguém entender o estender-se das nuvens, e os trovões do seu
pavilhão?35

Falaremos mais dessas coisas. Mas adiantemos alguns exemplos.


Primeiro: um comentário sobre o revestimento.36
Os materiais são o chão da produção, o receptáculo do trabalho trans­
formador. A produção os transfigura, mas guarda também algumas de suas
características, as fundamentais sobretudo, como nota Marx desde os Manus­
critos de 1844:

O produto é, sim, somente o resumo da atividade, da produção.37

O que são transpira na obra que os inclui. Neles, na sua aplicação, a obra
conta sua história.
Ora, a maioria dos materiais de revestimento é dispensável, se 0 critério
for a economia de meios ou a funcionalidade imediata. Constituiria trabalho
inutilizado se não fosse “produtiva” de vários resultados interessantes (outros
que o puro resultado econômico; sabemos que são essenciais para a forma
tesouro do espaço produzido, enquanto valor concentrado em objeto arredio
ao uso: tesouro é o que não é usado, não “se” usa ou tem uso contrariado,
como, por exemplo, a boa residência burguesa).
O que são esses materiais? Fruto de produção áspera como qualquer outra
em nosso sistema, trabalho duro coalhado abundantemente em mercado­
ria — mas de valor de uso escorregadio. Esse tipo de produção, freqüente em
países subdesenvolvidos, espelha com crueza a indiferença pela utilidade
urgente e a estima exclusiva pelo trabalho enquanto trabalho social médio,
enquanto valor (de troca), típicas do capital. Nele, o capital quase se mostra
como é, fornicador em permanente parto de filhos que engole, semeados por
pais que aniquila. Sem finalidade próxima reconhecida, o trabalho aí resvala
para a pura quantidade pela qual, de qualquer modo, sua qualidade é sempre
orientada. Sua vacuidade tendencial encontra eco adequado na aparvalhada
indecisão do consumidor, a ciscar motivações para o aleatório nas banalidades
do pseudogosto.

35 Jó, 36,*9-
36 Resumo tirado de um outro texto, escrito em 1968, sobre a “Casa Popular”, GFAU, 1972.
[Reeditado nesta coletânea com 0 nome de “A produção da casa no Brasil” pp. 61 -101 (n.o.).
37 K. Marx, Manuscritos econômico-filosóficos. Tradução de Jesus Ranieri. São Paulo:
Boitempo, 2004, p. 82.
Contraditoriamente1, o revestimento de núcleo anêmico, consumido
aparentemente por delicadezas de aparência, na obra nada conta enquanto
aparência: a motivação eficaz para seu uso vem de sua essência. E que no tra­
balho coalhado nesse parasita, quase “tipo-ideal” da não concordância entre
trabalho “produtivo” e utilidade (cujo conceito, não por azar, anda em crise
universitária), será nela empregado com a precisão e a fineza dos movimentos
inconscientes. Fará máscara. Tudo se passa como se fosse questão de gosto.
Mas que gosto? O gosto hoje está morto, não há mais subjetividade solta que o
sustente e sua elasticidade semântica sublinha sua função substitutiva.58 Tudo
se passa como se fosse questão de gosto — mas é questão de segurança e de
ocultação.
Por baixo do revestimento há concreto, colunas, lajes, vigas, tubulações...
Há alguma lógica — mesmo se deformada, como veremos. Há, pelo menos,
indicações de compromisso com a estática, com a resistência dos materiais. E
mais: há marcas precisas do trabalho necessário, do empenho, do esforço, da
habilidade do operário. Ele fica obrigatoriamente no que faz: mão, inteligên­
cia, sensibilidade, ainda que contidas, deixam rastros — a menos que, como
nas histórias de crime, sejam apagados. Triste história dos objetos-mercadoria,
principalmente dos de luxo: ora há frustração porque o valor não toma corpo,
ora a presença inquietante do trabalho concreto, outra face da abstração que
funda o valor, impede atribuir-lhe transcendência purificadora. Ora, o misté­
rio, jogado sempre sobre sua natureza pelos que querem denegar sua indig­
nidade original, pode sumir se a bruma do revestimento for levantada. Por
baixo do revestimento, a obra revela o trabalho em colaboração, o trabalho
não transubstanciado completamente ainda, gravado no que aspira à sua total
transubstanciação. Muito da plástica perturbadora de Le Corbusier decorre da
franqueza com que o concreto deixado aparente registra os azares da matéria
resistente amoldada pelo trabalhador coletivo.
Ora, o revestimento não pode ser questão de gosto - mas é comum a todas
as casas da burguesia e da pequena burguesia. Esse componente homoge-
neizador, em princípio desnecessário, não é suprimido como fariam com a
vida privada, se pudessem, os que procuram a distinção social.19 Sua variação
superficial (ambigüidade gostosa) é pobre, feita dos difusos intervalos que
distinguem a massa corrida do reboco médio, o artesanal da contrafação
industrial ao passarmos de camada a camada social. As semelhanças que38 39

38 Ver T.W. Adorno, uO felichismo na música e a regressão da audição”, em Os pensadores:


Benjamin, Adorno, Horklieimer, Habermas. São Paulo: Abril Cultural, igÔo.
128 39 Ver T. Veblen, A teoria da classe ociosa. São Paulo: Pioneira, 1965.
aproximam todos os revestimentos são mais pregnantes que as oscilações que
os afastam uns dos outros. Não servem, portanto, à magnificiência do tesouro
apropriado e a expor que é a casa não-operária, sempre ávida de distâncias.
Logo, devem corresponder ao que é fundamental nas casas da burguesia e da
z>equena burguesia: à forma de produção desse tesouro, à produção da forma
desse tesouro, à produção da forma tesouro.
À mercadoria, para manter a face, esconde o que é e empresta o que não
r. Esconde as relações de produção de que é fruto, intermediária e expres­
são. e põe as relações como epifenômeno dc sua movimentação que se finge
lutònoma. O valor, o trabalho social genérico, consta no seu discurso como
propriedade intrínseca, virtude endógena. A própria linguagem, dada a lar­
gueza com que espalha sujeitos, induz essas trocas: sem resistências, podemos
iranspor a mercadoria em sujeito, como fizemos. “Bizarros caprichos.” Mas
:om a imprescindível função de alimentar as fabulações mantenedoras da
ideologia (sem dominante, como quer Barthes). A falsa a-historicidade da
forma mercadoria também nesses caprichos encontra penetrantes aliados.
Proporcionalmente à perdição do sistema, introduzimos na forma da merca­
doria contorções para não mostrar que é produto de trabalho humano, para
-egar que é efeito e não causa. Perseguimos a máscara dos objetos naturais,
de resultado de processos exclusivamente automáticos, de elementos de uma
serie plástica qualquer em transes de harmonia.40 “Argúcias teológicas.” Ten­
tamos afastar desses supostos descendentes de sobre-humana tecnologia o
desmascaramento, sobretudo se, grandes tesouros, não podem compor um
destes ângulos sem sol dos “luxuosos apartamentos” descritos por Benjamin,
próprios para abrigar cadáveres.41 Sob o sol, sua pele não deve sugerir homens
na vizinhança.
Por trás do revestimento, vimos, há sinais embaraçosos de sua indubitável
presença. Mesmo diluído e atabalhoado, o registro das mãos dos operários
incomoda à periclitante paz do consumidor, cria problemas de consciência,
levanta perguntas a respeito dos anônimos e repelidos autores do tesouro
apropriado. E isso é daninho para o sistema. Num tempo em que as coisas
definem os possuidores, deixar aparecer que as coisas encobrem relações
de exploração e violência é subverter a ordem. Há que apagar o trabalho
revelador; mas, como para isso é necessário trabalho, nada melhor do que tra­
balhar com trabalho esvaziado. Como o vazio tem parentesco com o gratuito,
o roubo ricocheteia e cai em justa posse. A casca impessoal não entrava a

40 Ver J. Baudrillard, Le miroir de la production. Paris: Casterman, 1973.


41 Ver W. Benjamin, Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense: 1987.
apropriação despreocupada. O desrespeito pelo trabalho concreto na produção
dos materiais de revestimento serve à respeitabilidade da propriedade. A pala
vra mesma já diz: revestir, cobrir o que está completo, mascarar. Ou a outra
acabamento, com suas fúnebres associações, a recordar a hora mona que no
capital sempre suga a hora viva. O revestimento que fantasia cada classe com
cenário para suas aspirações emprestadas é o mesmo que encobre as marcas
do esbulho que fundamenta a mascarada: a expropriação do produto da força
de trabalho alienada.
Mas, dissemos, a razão eficaz para o uso dos materiais de revestimento não
está na sua aparência — mas na sua essência. Por uma reviravolta traiçoeira,
a máscara mostra mais do que esconde: mostrando-se, revela, já que revela a
máscara que é a face oculta do sistema. Todo o seu segredo é fazer do trabalho
concreto trabalho abstrato, da hora sempre nova, hora do mesmo. O impulso
geral do sistema no sentido da desqualificação do trabalho quer, entre outras
coisas, dar ao seu absurdo princípio uma ilusória tangibilidade. Reduzir a
maior parte do trabalho à dispensa de energia não diferenciada é aproximá-lo,
por vacuidade ou universalidade, da aberrante abstração da hora social média.
Na indústria, esse impulso pode iludir-se com alguma facilidade. Mas, no can­
teiro, o fundamento subjetivo da produção não deixa adormecer a percepção
de seu delírio. A técnica simples da construção requer ainda em demasia a
mão hábil, impede a crença agradável na ficção. Daí, contraditoriamente, o
valor atribuído ao mais trágico dos operários da construção, aquele cujo inelu­
tável destino é apagá-lo, ser um como se não fosse. Sua mão treinada, leve pela
carga de muita sabedoria, acaricia até o polimento a superfície em que desapa­
rece. Se reaparece, é como imagem virtual no espelho feito da lisura em que
ficou. Nos casos ideais, lustra até um ponto em que mais um gesto faz mancha,
mácula. Realiza o protótipo de si mesmo se de qualquer vestígio de sua pre­
sença fizer sujeira. Por habilidade refinada, joga sobre si a abjeção que limpa a
consciência de quem viola. Superfície desinfetada, mão auto-amputada, opró­
brio auto-gerado, hora de desrealização: valor na glória de sua quase encarna­
ção. O mais trágico dos operários da construção, o oficial do revestimento.
A possibilidade de revolta é mais atual quando a violência nao consegue
escorregar sem atritos para debaixo do manto sempre duvidoso da norma­
lidade. Por isso, na obra cuja essência é rebelde à sua dissolução, as atitudes
autoritárias ainda compatíveis com a operacionalidade são constantemente
exploradas para a manutenção da hierarquia e para que, entre ser e parecer,
as difrações cresçam até a inversão. E o que motiva, em parte, o revestimento
já sabemos. Mais alguns exemplos. De início, um de hierarquização forçada.
O desenho para o canteiro, “técnico”, como dizem, poderia empregar
130 diferentes códigos. (Não discutiremos aqui suas origens históricas e episte-
mológicas eminentemente capitalistas.) Não é evidente que o habitualmente
utilizado seja o melhor, se o julgarmos pelos critérios da eficácia produtiva
imediata: reduz o espaço a planos cuja escolha não pode evitar o arbitrário e
a confusão de leitura; emprega referências mongianas de difícil aplicação no
canteiro; confunde na simultaneidade da representação a sucessão das etapas;
seu sistema métrico e ortogonal não se adapta a vários materiais e formas;
etc. (nosso texto estudará vários desses temas). Entretanto, uma de suas fun­
ções é segregar — o que ajuda a explicar sua manutenção. Código é coisa de
comunicação, mas também de exclusão. Seu uso lembra inevitavelmente a
guerra, e o inimigo é o excluído. Uma das camadas do privilégio de arquitetos
e engenheiros provém do fato de que guardam a totalidade das informações e
ordens que são codificadas. Algumas são orientadas para a produção exterior e
não chegam ao canteiro senão sob a forma de componentes acabados. O mes­
tre, desse modo, tem menos informações que arquitetos e engenheiros — mas
mais que todos os outros no canteiro e, se não é a fonte das ordens, é seu por­
tador principal. E a posse das chaves para qualquer decodificação é a garantia
“intelectual” para sua posição. A partir dele, em desdobramentos afuniladores,
as informações descem empobrecidas, o código perde generalidade, e, em
degradações sucessivas, atingem os baixos da produção. O servente já recebe
ordens só orais — sua não-participação radical no campo do código assinala
sua dependência e inferioridade. Ora, é sabido mesmo pelos organizadores
da produção que a “democratização” da informação contribui para eliminar
várias dificuldades de coordenação do trabalho. Mas, no canteiro, há conflito
freqüente entre o aprofundamento da dominação e o acréscimo da exploração.
Mesmo se a finalidade da dominação é a exploração.
Entretanto, importantes resultados foram obtidos. Primeiro, a verifica­
ção “empírica” de que os homens são desiguais: há que haver os que sabem e
podem para comandar os que não sabem e... se danam. Em seguida, a margi-
nalização informativa crescente de cima para baixo em relação ao conjunto
da obra, inversa da participação material, repisando a separação entre pensar
e fazer, dá apoio ao movimento de desqualificação do trabalho na construção.
As medidas oficiais de redução dos perfis de qualificação no setor acompa­
nham, reconhecidas, essas tendências. Do que resulta, em retorno, outra justi­
ficativa para a seleção informativa. Não é por nada que a cibernética serve tão
direitinho aos nossos tempos.
Outro exemplo, agora de inversão útil entre ser e parecer. Por uma série
de causas (algumas das quais encontraremos mais tarde), o desenho de arqui­
tetura foi levado, gradualmente, a adotar um conjunto de trejeitos pouco
adaptado à forma manufatureira de produção. Lembremos, rapidamente, da
precisão reclamada da mão e de seus toscos instrumentos para a reprodução
das figuras geometrizadas, da permanente distorção que há (jm* imprimir nos
materiais e na técnica de sua utilização etc. Ou, ainda, dos volumes, de cujo
jogo sábio, dizem os sábios, é feita a arquitetura.
Para obter um desses volumes é necessário somar a atividade de equipes
diversas — e vimos que a técnica de dominação implica que tal soma seja indi-
t

reta, mediada. E necessário confundir na mesma forma o trabalho explodido


em miniespecializaçoes, em habilidades divergentes. E necessário re-unir
no mesmo objetivo anêmico o que é separado por meses no cronograma dos
/
serviços. E necessário fazer com que a sucessão estrutural desemboque na
/

a-temporalidade da forma fechada. E necessário fazer da descontinuidade de


produção o andaime da aparência una; da ruptura, da separação, o sustento
do simples. Há mais, veremos depois. Mas é já evidente que os volumes con­
tinuam a missão do revestimento: negação do trabalho concreto. Negação
paralela à que o transubstancia em trabalho abstrato. A pregnância dos efeitos
visuais dos volumes conota vínculos que só a autoridade e a hierarquia intro­
duzem no canteiro e o faz deixando crer que são manifestações de forças ima­
nentes. Em uma palavra, figuram o inverso da prática cotidiana dos canteiros.
Volumes, rigor geométrico, sistema de medidas (e a lista é bem mais
aberta) têm, entretanto, um outro efeito que nos importa mais agora: afas­
tam o trabalhador do que faz. Não para que se apóie em alguma perspectiva
crítica, mas para que se perca um pouco mais. Na heterogeneidade técnica
do canteiro, onde os laços imediatos entre trabalhadores são fracos e laterais
(não estamos falando dos laços de classe), esse estranhamento do produto
é fator de peso para a decomposição de seu produtor imediato. A complexi­
dade e a dimensão da aparelhagem mecânica, em geral, associadas à divisão
extrema do trabalho, são suficientes para garantir esse estranhamento nos
setores industrializados. Na manufatura da construção, se há divisão também,
a ausência da opaca mediação mecânica obriga a mediação arquitetônica a
engendrar outras distâncias. Quando o que poderia ser um traço de união
entre os operários de um canteiro, seu produto, assume ares autônomos,
quando a imagem especular é barrada, a possibilidade de consciência, mesmo
turva, dos interesses comuns é afastada mais um pouco. O que é essencial para
a direção, apesar, outra vez, dos arrepios na produtividade. No fundo, deveria
ser reconhecido: é para protegê-la que esses cuidados são tomados. Se a apa­
rência nega o ser, é para preservá-lo.
Entretanto, se afinarmos um pouco mais nossa atenção, escaparemos da
esquematização dualista. Sem dúvida, a denegação do canteiro, que manifes­
tam revestimento e volume (e muito mais, veremos), tem resultados impor­
tantes mesmo então. Assim, ao estranhamento dos operários em relação ao seu
132 produto corresponde uma reviravolta não desprezível do lado dos projetistas.
ienegação formal, reprimindo a percepção da própria responsabilidade nos
viiotes da violência separadora que estrutura a manufatura, permite quand
—J me o trato consciente com suas conseqüências operativas — trato desse modo
le-scarregado das tensões antagônicas que aquela percepção geraria se não fosse
reurimida.42 Volume e revestimento negam a produção assentada na separação
- que assim pode “tranquilamente” continuar a dominar. O discurso edulco­
rado dos arquitetos contém menos “má-fé” do que poderíamos suspeitar.
Mas a denegação tem funções menos indiretas — e que introduzem aber­
rara para o simbólico e um terceiro termo no esquema. Como caminho para
a demonstração, adotemos o modelo dito “por absurdo”: que se imagine o
inverso de nossos parâmetros. Uma estética da separação que deixaria o corpo
rrodutivo soltar-se nas suas atuais divergências (um F. Léger cubista sem
a mania de simetria). Sabemos que a forma mercadoria do produto estaria
comprometida. Faltaria a amarração autoritária que compõe o trabalhador
coletivo. Mas há mais.
Esse tipo de estética, curiosamente, só foi roçada nas épocas “heróicas” da
arquitetura moderna, como em Tátlin ou no Cassino de Pampulha de Nie-
meyer, por exemplo. Só roçada e logo abandonada. Porque, se uma tal estética
respeitasse rigorosamente seu princípio (a pura separação), desapareceriam,
necessariamente, os conflitos, as superposições entre equipes e áreas de tra­
balho diferenciadas. A “obra” (de difícil visualização para nós) seria, num
primeiro tempo, justaposição do separado, sem a cobertura das categorias tota-
lizantes (a harmonia, a simetria, o jogo de volumes, o partido etc.). A radicali­
zação da separação faria do projeto uma série de decisões sucessivas, contem­
porâneas de cada intervenção livre. Como cada parcela se manifestaria em sua
autonomia completa, não haveria razões para o desencontro. Afinal, o separado
simplesmente não se encontra — ou não seria separado. Num segundo tempo
— corolário fundamental — haveria tendência para o desenvolvimento do diá­
logo, para a troca horizontal, para a superação da separação e das relações de
produção que a sustentam. E, se nos lembrarmos que a oligofrenia operária é
tara do sistema e não dos operários, é evidente que os dois tempos fariam um
só. A estética da separação prepararia o terreno para uma espécie de autoges­
tão. O resultado de nossa hipótese “absurda” seria o desastre, é óbvio.
A separação, para render nos termos do sistema, requer o complemento
do conflito polimórfico entre o separado. E, portanto, o complemento do
comando. Se o domínio do reduzido campo atribuído a cada especialidade é

42. Ver S. Freud, “La Negación”, em Obras Completas. Madri: Biblioteca Nueva. 1968. v
pp.i.i34-l.l36.
sempre possível para o operário manufatureiro, o conflito entre essas espe­
cialidades é aspirado (depois de provocado) como lugar das intervenções do
comando exclusivamente. Não é à toa que a centralização das informações
impede as trocas laterais. O comando, hoje, se favorece a separação, age depois
como se introduzisse seu contrário. E assim que se justifica. Esse contrário,
entretanto, não é a livre associação; já mostramos: é a amarração autoritária
e suas múltiplas conseqüências. O comando manipula o vazio que separa
o separado cumprindo os mandamentos de uma lógica exigente: enche o
vazio com as figuras da superposição, do cruzamento, do emaranhamento, da
repulsa... Comandar, aqui, é pôr hífens avinagrados nos hiatos.
Diz-se que a arquitetura é a arte do espaço — verdade que é verdadeira
como a verdade dos sintomas. Isto é, a ser procurada na literalidade do dito.
Porque é para manter o espaçamento entre operários e equipes que há que
propor volumes, massas, que há que relacrax duramente, materialmente, o
vazio. Diz-se que arquitetura é a arte do espaço — e pensamos no outro, no
descrito por um Zevi. Mas o que efetivamente guia a mão nos seus desenhos e
o espaçamento cuja compressão espaça mais, como a argamassa que aglutina
os tijolos separando-os definitivamente. Deslocamento e metonímia. A barra
que separa as oposições no canteiro tem de ter espessura. O separado negado
pelo desenho globalizante é mantido pela aplicação de cunhas que o próprio
desenho globalizante promove. As parcelas do trabalhador coletivo se enrodi­
lham ainda mais em torno de si mesmas, constringidas pelo desenho que as
aperta e sobrepõe em pegajosa colaboração com a organização do trabalho.
Assim, se volume e revestimento (e mais) figuram o inverso da prática
cotidiana dos canteiros, se a série das categorias totalizantes esconde a sepa­
ração que engendra, tais oposições se apoiam num terceiro termo que, na sua
forma mais geral, é a luta cotidiana de classes no canteiro. Se luta é oposição
imediata, ela mantém, enquanto dura, o que opõe: o trabalho separado, de
um lado; de outro, o poder separador, inicialmente uno, o capital. Mas man­
tém contaminando cada oposto com seu inverso, em escorregadias transações,
fazendo mais complexa a oposição — por exemplo, injetando o poder separa­
dor como enchimento nos intervalos do separado.
Menos abstratamente: é necessário rejuntar com atrito o separado, pôr
“um” no disperso com reserva para que a fissura não suma. E a força rejun-
tadora deve ser proporcional à força dispersora. Ou melhor: como “a força
não seria se não existisse sob esses modos contrários”,43 como o momento de

43 G.W.F. Hegel, Fenomenologia do espírito. Tradução de Paulo Meneses. Petrópolis: Vozes


2003, p. 111.
desdobramento em partes mutiladas se opõe variadamente ao de unificação
no interior da força constituída pelas relações antagônicas de produção domi­
nantes, a lei dessa força responderá diretamente à situação dessas relações.
Dizendo de outro modo: quanto maior for o empenho do capital em separar
a base da construção, maior será também seu empenho oposto, sem que haja
anulação, pois pertencem a momentos diferentes — e sua história obrigatoria­
mente comum é determinada pela da luta de classes inscritas na produção.
Exemplo, ainda a propósito de Le Corbusier:
Em 1923, num período marcado pelo agravamento da luta de classes na
Europa, depois da Primeira Guerra Mundial e da Revolução de Outubro,
Le Corbusier lança o Vers une architecture,44 Numa enumeração aparente­
mente caótica, o elogio dos volumes, das superfícies simples, dos traçados
reguladores é seguido pelo dos materiais brutos, da economia de meios e da
produção em série. A. pressão das reivindicações operárias, somada às recons­
truções urgentes, faz da habitação uma das questões mais preocupantes — e
manipuláveis pelo poder. Produzida e distribuída habilmente, será fator
importante para a contenção e divisão do operariado, segundo a experiência
acumulada desde o último terço do século XIX (está claro que simplificamos).
Se a sua produção foi inferior, durante os anos 1920, na França à da Alema­
nha, da Inglaterra e, mesmo, à da Bélgica, sua problemática, entretanto, ocu­
pou o centro das elucubrações de Le Corbusier (e de outros) de 1914 a 1930,
das “Maisons Dom-ino” e “Monol” aos planos de Lège e Pessac. Ora, como
componente novo do salário de uma camada do operariado, a casa tem de ter
seu custo reduzido. O que, nas condições manufatureiras de produção, acar­
reta o uso de materiais de menor valor (os materiais brutos), diminuição de
área e equipamentos (economia de meios) e aumento de cadência, eliminação
dos poros, seriação e organização “racional” do trabalho (produção em série).
Le Corbusier, que nesse mesmo período se acreditou empresário,45 conhecia,
admirava e aplicava largamente os postulados do taylorismo.46 No mesmo
homem, portanto, purismo (plástico) e taylorismo respondem ao agrava-

44 Por uma arquitetura. São Paulo: Perspectiva, 1973.


45 Alfortville, Société d’enterprises indusürielles et d’êtudes — SEDE; ver também carta a Tony
Garnier de 14 de maio de 1919.
46 Ver B. Brace Taylor, Le Corbusier et Pessac. Publicação da Fundação Le Corbusier, 1972:
ver também a brochura publicada em 1925 por Michelin et alli sobre a taylorização
de seus canteiros em Clermont-Ferrand, do qual, afirma B. Brace Taylor, Le Corbusier
possuía um exemplar e que visitou com Pierre Jeanneret.
mom o da luta do classes. O jogo sábio dos volumes marc ha c*m roniraponto
coni a divisão para a manutenção da ordoin.47 48

Algumas citações, tiradas de Quand les cathedrales etaient blanches**

A arquitetura é uma ordenação; é no cérebro que a operação se efetua; a folha


de papel não acolherá senão os sinais técnicos úteis para manifestar e transmitir
esse pensamento. A arquitetura pode atingir o lirismo mesmo: a proporção é
o meio mesmo do lirismo arquitetural: volumes, cortes, superfícies, circulação,
capacidades, contigüidade, luz. A prancha de desenho exprimirá em épuras
precisas que pertencem à matemática onipresente (p. 133).
Esse magnífico e generoso trabalho de preparação, esses planos, são eles
que responderão a todas as questões, são eles que designarão as medidas a
tomar, as leis a fazer, os homens a colocar nos postos úteis (p. 237).
A obra requer a participação, a de todos, em ordem e não de pernas para o
ar, hierarquizada e não desnaturalizada por doutrinas de artifício (p. 16).
A experiência de Ford, repetida em mil atividades do mundo moderno, na
industriosa produção, nos dá a lição. Aceitemos a lição (p. 193).
A nós [arquitetos] [...] após maduros exames [cabe], propor planos aos
chefes (p. 202).
A harmonia é a causa do êxito (p. 51).
Porque é assim. Luzidia, impecável, sem uma mancha de óleo ou de graxa,
sem uma marca de dedos sobre 0 verniz brilhante, o carro partiu, desapareceu.
Nasceu como de uma epopéia mitológica, adulta imediatamente! Partiu na
vidal (comentário sobre uma visita às usinas Ford) (p. 191).

Basta.
Exemplos semelhantes são numerosos: do Deutscherwerkbund ao ciam,
da Bauhaus e do De Stijl às relações de Gropius, Breuer, Neutra, Saarinem
com o New Deal, de Tony Gamier a Reidy, os mesmos comentários poderiam
ser feitos. A arquitetura moderna precisa descer de sua euforia para um triste
balanço. Mas continuemos.
Dizíamos: quanto maior for o impulso exercido para separar a base da
produção, maior será o impulso diversamente oposto (sendo que esse aumento
simultâneo corresponde ao agravamento da luta de classes, ao aprofundamento
da técnica de dominação). Será, aliás, o mesmo invertido. A unidade “supri-

47 Ver P. Francastel, Art et technique. Paris: Denoél/Gonthicr, 1956, p. 33.


nc> 48 Le Corbusier, Quand les calhédrales etaient blanches. Paris: Gonihier, s/d.
mida” reaparece com o mesmo vigor investido para sua “supressão”. Mas, se
reaparece — e se é a mesma invertida, o inverso da mesma —, reaparece cindida,
já que o inverso da unidade é a cisão. Os que a assumem não a assumem como
um dos pólos da lei de seu próprio poder. Assumem o momento da unificação
do separado na base da produção como papel “objetivamente” dado. Não se
reconhecem na cisão que introduzem pela exclusividade de seu poder — e que
denegam, vimos. Inevitavelmente, de pólo de unificação passam a campo de
manifestação dos “universais” separados. Cada pólo da força constituída pelas
relações de produção dominantes, isolado irreconciliavelmente de seu oposto,
cai na fascinação de seu contrário abstrato. Já notamos que o “um” da base
separada é o “bloco monolítico” dos partidos que, na oposição, não passam de
imagem especular do que querem combater. Ora, o disperso inverso do “um”
do comando — e que o dominará completamente em função das condições mes­
mas da cisão — será, repetimos, composto pelos “universais” separados.
De Cézanne a Mondrian, de Ledoux a Niemeyer, qual o manifesto dos “racio-
nalistas” que não começa pela lista das formas primeiras a privilegiar? No caso
da construção, o “um” é o projeto global que, separado, será dominado por
conjuntos de “universais”: funcionais (exemplo: as três ou quatro funções fun­
damentais do urbanismo decretadas pelo CIAM), técnicos (exemplo: os conceitos
elementares do cálculo, a classificação dos materiais) e, o que nos interessa
mais aqui, plásticos. A plástica arquitetônica, enquanto plástica de um sistema
fundado em ruptura imóvel, será necessariamente aspirada pelos “conceitos
perceptuais” e “representativos” fundamentais (ou “universais” separados),
para usar a terminologia da Gestalttheorie:49 esfericidade, conicidade, retan-
gularidade, modularidade etc. (O que vale para a forma vale para a cor, para a
textura etc.). Os símbolos plásticos primeiros, os de forte pregnância estrutural,
se impõem como rede simbólica fundadora, instauradora, ao cantado imaginá­
rio arquitetônico com a potência de insuspeitada eminência parda.
Assim, em esquema: a separação em “trabalhadores parcelados” e equipes
de amplitude reduzida é condição para a dominação. Mas, para o crescimento
do “rendimento”, da mais-valia relativa, os poros devem ser ocupados, o sepa­
rado adensado — o que reafirma o poder, agora como mediação dos atritos pro­
vocados, como sede da reunificação. Entretanto, mantido o corte que instaura
a luta entre o trabalho vivo e o trabalho morto apropriado, a reunificação não
pode evitar sua submissão ao inverso de si mesma, aos “universais” separados.
Plasticamente, há império dos “conceitos representativos” ou, em outra lin­
guagem ainda, da rede dos significantes fundamentais.

49 Ver R. Arnheim, Vers une psycologie de Vart. Paris: Seghers, 1973.


Observação rápida: a denegação é denegação de um rapto, da castração dos
produtores imediatos, da usurpação da possibilidade (retrospectiva) de fundar
uma outra lei, a própria lei. A usurpação da totalidade (perdida na forma do
futuro anterior) faz do usurpador presa do usurpado. Seguirá como cordeiri-
nho sua legislação, inconscientemente. Os significantes da ligadura, enquanto
ligadura perdida (daí o futuro anterior), da anti-separação que só pode nascer
da separação, da memória do nirvana construída a partir de sua perda, na
rejeição do separado que projeta no futuro a esperança do retorno do que
nunca foi — os significantes do - <p dominam como rei de poder absoluto e em
Nome-do-Pai. O liso e o corrido, o fechado e o contínuo, as modulações de
contorno e o enquadramento — as normas de nossa estética têm por metro a
figura do todo vindo de sua perda. Normas homeomorfas da plenitude a que
aspira o separado. Sob o nosso conceito vulgar de harmonia, equilíbrio entre
tensões divergentes e convergentes, unificadoras e diversificadoras, paira
subjacente comandando a sombra da luta (entre convergência e divergência,
simplicidade e complexidade). “Nenhum particular vale por si mesmo, mas é
parte necessária do conjunto”, diz B. Taut em 1929, definindo a nova estética
arquitetônica. Da perda de autonomia das partes surge o fantasma do todo:
seu apoio está no seu inverso, na parte atrofiada, marcada de castração. Deslo­
camento da falha que, intangível, dirige.

Se o que Freud descobriu, e redescobre com um gume cada vez mais afiado,
tem algum sentido, é que 0 deslocamento do significante determina os sujeitos
em seus atos, seu destino, suas recusas, suas cegueiras, seu sucesso e sua sorte,
não obstante seus dons inatos e sua posição social, sem levar em conta 0 caráter
ou o sexo, e que por bem ou por mal seguirá o rumo do significante, como
armas e bagagens, tudo aquilo que é da ordem do dado psicológico.50

BALANÇO E PARÊNTESE

É hora para um balanço — que dá deixa para um parêntese.


1. O canteiro é heterônomo, sua determinação vem de fora...
Parêntese.
Essa afirmação só foi e será comentada, neste texto, no interior do campo
da construção. Mas há nela outras implicações evidentes cujo exame escapa
aos limites de nosso tema. Indicaremos, esquematicamente, as principais,

J. Lacan, “O seminário aobre ‘A carta roubada’”, em Escritos, tradução de Vera Ribeiro.


Rio de Janeiro: Zahar, 1998, pp. 33-34.
centradas todas em torno da forma manufatureira de produção do espaço.
O que nos permitirá expor algumas posições.
A forma manufatureira de produção do espaço não pode ser explicada e
modificada pela consideração exclusiva de fatores endógenos. A dispersão dos
canteiros, a pequena concentração dos capitais, a renda da terra, o “predomí­
nio” do mercado etc. são causas duvidosas e insuficientes para dax conta do
que é classificado como “atraso” (em função do que), falta de planejamento
(no reino do plano) ou anomalia (de qual lei?). A forma manufatureira de
produção do espaço só pode ser explicada como uma das manifestações locali­
zadas da luta de classes na produção, manifestação diversa e necessariamente
contraditória. E só pode ser modificada pelo aguçamento da luta de classes
generalizada, também, portanto, na produção. Em particular, é reserva contra
a queda tendencial da taxa de lucro e fonte privilegiada para a acumulação
e reprodução (aumentada) do capital — privilégio acentuado pela extrema
mobilidade possível para o capital no setor (custo fixo reduzido). Os variados
serviços que essa forma de produção rende ao capital não estão dissociados
entre si, e, principalmente, da luta de classes.51 Estas determinações gerais
encontram, obviamente, formas variadas de manifestação — quase sempre
contraditórias. Assim, ainda em esquema:
A. A construção que compõe, de um modo qualquer, parte do capital cons­
tante fixo industrial, comercial ou financeiro (galpões, depósitos, estradas,
lojas, escritórios etc.) deve ter, comparativamente, baixo valor unitário.
B. Se, no caso anterior, a “representação” ostentatória for procurada (algu­
mas lojas, sedes de banco ou empresas, por exemplo), há inversão: é favo­
recido o alto valor unitário, a construção é guardada como reserva aumen­
tada de capital.
c. As construções para habitação remetem a três casos principais:
C.i. Habitação burguesa e de classe média, sobretudo alta: caso em que
há tendência para o alto valor unitário, também guardado como reserva
aumentada de capital, tesouro.
C.2. Habitação “popular” (operária) em país subdesenvolvido: se há pro­
moção oficial, serve como instrumento manipulado para a divisão do ope­
rariado, para seu endividamento encarcerador, para a recuperação de áreas
valorizadas — suas ridículas quantidade e qualidade nulas não permitindo

51 Cf. E. Balibar, Cinq études du matérialisme historique. Paris: Maspero, 1974; Ch.
Bettelheim, Revolução cultural e organização industrial na China. Rio de Janeiro: Graal,
1979; Ch. Bettelheim, Cálculo econômico eformas de propriedade. Lisboa: Dom Quixote.
1970; A.D. Magaline, Luta de classes e devalorização do capital. Lisboa: Moraes, 1977.
ilusões quanto a fundões mais dignas. O interesso do sistema volta a ser
aqui dirigido para o baixo valor unitário. Se não há promoção oficial, raso
mais geral, a “autoconst.rução” das favelas e dos bairros operários, aparen­
temente marginal, é responsável indireta mas considerável por aumento
da mais-valia relativa.
C.3. Habitação “popular” (operária) em país desenvolvido: caso seme­
lhante ao anterior, mas atravessando por espessa ambigüidade decorrente
da situação específica da luta de classes.
Alguns (poucos) comentários.
Em A, há empenho no sentido de racionalizar a produção e as lentas ino­
vações tecnológicas na construção sempre surgem nesse setor; exemplos: o
ferro e o concreto armado no século XIX, a generalização da pré-fabricação
e da industrialização de componentes pesados no século xx etc. O interesse
em baixar o valor unitário comparativo serve a múltiplas causas mais ou
menos convergentes (cuidados com a composição orgânica do capital, pres­
são para a desvalorização do capital constante, redução do valor unitário das
mercadorias que entram no custo da produção e da reprodução da força de
trabalho etc.).
Em B e c.i, o empenho, raramente consciente, é inverso. Enquanto tesou­
ros, são produtos que não entram na composição do valor da força de trabalho.
As modificações tecnológicas que impliquem baixa de seu valor unitário não
reaparecem como aumento da taxa de mais-valia. Inversamente, como a taxa
de lucro no setor entra — e como parte de peso — na perequação da taxa média
de lucro, importa manter aqui uma baixa composição orgânica do capital, um
dos freios para contrabalançar a queda tendencial da taxa de lucro.
Em C.3, é a pressão das lutas sociais que faz com que a burguesia deva
atribuir a parte do operariado metropolitano (sobretudo à “aristocracia”
operária) um pouco do que antes era exclusividade sua. Entretanto, como
essa concessão tem reflexos no valor da força de trabalho, torna-se indis­
pensável diminuir sua extensão. Daí alguma pré-fabricação e “racionaliza­
ção”, o que provoca o desvio da média do Cc (Capital constante), que passa
de 70% a 85% nesses canteiros. Ora, a diminuição é perigosa: por um lado,
o “tesouro” conquistado (e que, por isso mesmo, deixa de ser tesouro) deve
sugerir vestígios de verdade, como obrigam as intenções políticas. Por outro,
o sistema não pode prescindir dessa área excepcional de valorização e con­
centração do capital. Diante da ambigüidade inevitável, geralmente é neces­
sária a regulamentação e intervenção estatal. E o peso da habitação “popu­
lar” não industrializada sobre os salários — sempre menor que o aumento
real do valor da força de trabalho “favorecida” — é equilibrado pelo desvio
140 de verbas que pertencem aos próprios operários em conjunto: BNH coin fun-
dos do FGTS no Brasil, HLM na França. (Aliás, coisa semelhante e feita em i.
a grande parte da infra-estrutura — energia, estradas etc. — encontra assim
“financiamento”, compondo um poderoso recurso contra a tendência de
crescimento do Cc.)
Em C.2, basta grotesca figuração do “tesouro”. Como é pouca coisa o que
conceder para dividir, amarrar e afastar uma classe operária extremamente
explorada e de problemática consciência de classe, sempre cuidadosamente
envolvida por enorme exército de reserva de força de trabalho — e outros
exércitos —, não há razão para maiores preocupações. Aqui, a regra é ainda
a estudada por Engels: fora a mínima concessão, nada melhor do que deixar
o item habitação descer até quase a ficção na composição do valor da força
de trabalho através do relançamento da “autoconstrução” imposta (favelas e
zonas operárias) e dos cortiços vária vezes amortizados.
Mais “racionalizada” e geralmente heterogênea em A e C.3, serial e mais
inerte tecnologicamente em B e c.i, a manufatura, entretanto, não foi jamais
/

abandonada. E preciso não cair na ilusão de industrialização que a multi­


plicação de gruas e outras máquinas secundárias pode sugerir à contempla­
ção distante de um canteiro. A forma manufatureira de produção continua
dominante. Provas disso constituem exatamente os casos A e C.3, em que a
inclinação para baixar o valor de Cc e da força de trabalho, antes de ensaiar
seriamente a industrialização, vai buscar os remédios do estado. Mesmo então,
os efeitos vitalizantes da manufatura da construção não traem o capital.
Fim do parêntese. Retomemos nosso balanço.
1. 0 canteiro é heterônomo, sua determinação vem de fora. O objeto a reali­
zar, o modo de realização, o tempo de realização são impostos à produção
imediata. Conseqüência, entre outras, da separação entre meios e força de
trabalho, entre vontade e ação, entre a finalidade aparente e a eficaz.
2. Da série de separações nasce a possibilidade primeiro, a “necessidade”
depois, do comando despótico cuja meta essencial é a mais-valia, princi-
palmente a relativa. O trabalho degradado, dispersão de movimentos idio­
tas e idiotizantes, mas fundado na habilidade, deve ser guiado a cada passo,
já que não há mais caminho permitido para autodeterminação. A organi­
zação do trabalho, tal como a conhecemos, é o controle e a imposição de
uma produtividade só benéfica para o capital.
3. A organização do trabalho, em geral, se esconde sob a aparência de neutra­
lidade técnica no processo de produção. Mas, no canteiro e do projeto ao

posto de trabalho, é difícil fazer-se aceitar como diferente do que é: violên­


cia que é condição para a reprodução aumentada do capital.
4 Para diluir a percepção e a reação diante do arbitrário e da violência cons­
tituintes do comando, várias formas de separação e distanciamento são
providenciadas e somadas às anteriores. Crescem as contradições, mas a
segurança (do capital) também.
5. Porque a segurança do operário é a única responsabilidade que lhe é reservada.
De fato, a não mecanização do canteiro, sua conformação descontínua
e estranha à interdependência intrincada da indústria fazem com que o
acidente não perturbe muito a lógica da rentabilidade. O operário perdido
é facilmente substituível nesse setor preferido pela pressão do exército de
reserva de força de trabalho. E sua perda não interrompe gravemente as
seqüências de produção na manufatura cuja substância é a cesura. Assim, na
França, onde a segurança no trabalho é das mais avançadas (não por deslo­
cado humanitarismo, mas por causa dos elevados custos financeiros que o
Estado deve suportar), a construção continua a apresentar os maiores índices
de acidentes.

A indústria da construção é a mais perigosa [...] 1.797 das 3.972 vítimas de


doenças profissionais eram trabalhadores da construção em 1971.52

Não representando mais que 14,7% dos assalariados, os trabalhadores da cons­


trução, na França ainda, tiveram 17,55% dos acidentes com interrupção do
trabalho em 1970. Como seria previsível, os trabalhadores imigrantes são os
mais expostos:

Sobre cem acidentes com interrupção do trabalho, mais de 22% têm por
vitimas trabalhadores imigrantes, apesar de não representarem senão 9,4o c
da totalidade dos trabalhadores [...] As razoes são múltiplas. São eles que sã:
empregados nas indústrias mais perigosas, como a da construção.53 54

Não há motivo também para espanto na observação da raridade dos acidente?


entre os técnicos: 4,5% contra 86,6% entre os operários. Como a tortura, os
acidentes conhecem as classes sociais.
Sabemos a causa mais freqüente dos acidentes: a fadiga muscular, ner­
vosa e mental ou psicológica.5* Para aproximá-la, é tempo de passarmos,
um pouco, para o outro lado da questão: quais são, para os operários, as
conseqüências interiores provocadas pela constante da manufatura (mais
uma vez. são homens que ai carregam, na sua carne, na sua experiência.

52 F. Hebert, ‘‘Quelques données statistiques”, em Après-De main, n. 160, jan. 1974.


55 F. Hebert, op. cit.
54 Ver P. Mosse, “Économie et sociologie de la santé”, em Après-Demain, n. 160, jan. 19-4..
os gestos e procedimentos do trabalho). Ou, de outro modo, quais são as
implicações da não realização completa ainda, na construção, dos desejos de
Taylor, já superados em outros setores da produção: atribuir ao brain-stajj
toda a massa de conhecimentos que, no passado, estava na cabeça e na habi­
lidade dos trabalhadores.55

A MA O

... parfois on dirait quelle pense. [H. Focilon]56


/

E preciso seguir o avanço da obra para sentir em ato as grotescas contradições


entre realização e seu resultado. A vasta massa de trabalhadores assume as
principais funções motoras e operacionais. A força minúscula do servente,
multiplicada, sustenta a operação parcial repetida do pedreiro, do carpinteiro
ou de qualquer outro: crua energia, é indiferente à sua aplicação. Mas, na
ponta oposta da equipe, o trabalhador que dá forma à matéria não pode dis­
pensá-la durante o exercício de sua própria habilidade apressada. A operação
semiqualificada de um requer a força informe do outro, numa complementa­
ridade sem modulações e mutuamente empobrecedora. Juntos geram o objeto
propositadamente imenso pela reprodução ilimitada das mesmas condutas
primárias. Vigas e colunas semelhantes suportam centenas de painéis ou
milhares de tijolos acumulados diariamente; portas, caixilhos, vidros, tubos,
um a um, interminavelmente um a um, formam as figuras obrigadas do pro­
jeto. A variedade possível, inscrita concretamente no fundamento subjetivo
da manufatura, é empurrada para fora de seu lugar, para a casca que apaga os
traços da produção que a permitiria efetivamente. O meio de produção menos
caro e mais disponível, a força de trabalho, assegura, com infinidade dos ins­
trumentos e gestos simples, a permanência da velha forma de produção — e
desaparece. A imprecisão da mão deve encadear-se em movimentos homo­
gêneos e artificiais para a fabricação da exatidão hipócrita que a dissolve: a
massa do produto não conta a massa de trabalho concreto que a faz. O tempo
da hora abstrata coagula o espaço e corrói o que não serve ao aumento e à
ênfase de sua quantidade.
Mas essa sombria manufatura adota ainda outros meandros e subterfúgios.
De novo Poe:

55 Ver KW. Taylor, La direction des ateliês. Paris: Dunod, 1930, p. 137.
56 “Por vezes, diríamos que ela pensa”. H. Focilon, “Éloge de la main”, em Vie desformes.
Paris: PUF, 1943, p. 103.
E somos então forçados a supor uma espécie de inversão, porque o Autômato
joga precisamente como um homem não jogaria. Essas idéias, uma vez aceitas,
bastam por elas mesmas para sugerir a concepção de um homem escondido
no interior.57

No interior do autômato a que uma ambígua literatura reduz o operário da


construção, que avança para a desqualificação, alguém respira. Sob a ilusão de
uma ação puramente heterônoma há que conceber os vestígios de um homem.
Porque necessariamente, entre a dispersão inicial no canteiro e a incor­
poração prescrita na obra acabada, os materiais e a técnica de sua utilização
recolhem e provocam variados cantos da subjetividade — e não há alter­
nativa possível na manufatura. As intervenções concretas fazem vibrar
diferentes registros. Mais: dependem dessas vibrações, sem as quais são
improdutivas.
Mas nos falta o costume no trato direto com as injunções mais sutis, fugi­
dias, do trabalho separado. Mistificado, muda de nome, vira arte. Elidido
geralmente em suas reais proporções, deixa paz a seus castradores. Que nos
sejam perdoadas a linguagem enroscada, contraditória e as alusões inábeis
que empregamos: junto à incapacidade, conotam o silêncio milenar que cobre
o trabalho. A ergoterapia sabe a profundidade mobilizada — mas sabe como os
físicos sabem alguns teoremas, aplicados rnas não demonstrados. Como des­
crever as muitas presenças latentes que o modo simples de produzir reaviva?
A dos “primeiros” tempos de nossa história, por exemplo?
De fato, há recomeço no fazer abrangente que começa. Ou melhor, no can­
teiro, todo começo propõe um recomeço. A lenta maturação e as múltiplas asso­
ciações do abrigo reanimam as gastas imagens de gênese — mesmo se o ventre
é amargo. Diz-se “abrir um canteiro”, em sentido inaugural, gerador. São raras
outras atividades urbanas que descubram como as que instalam a obra: as
valas, os buracos, a lama e a terra remexida agressivamente evocam sensações
difusas e divergentes de rancor e memória. Descobrir, como desenterrar raízes
ou mortos. O tapume resguarda, tampa, tece um obstáculo para a vista: as per­
furações, as falhas escancaradas, revividas, evitam o voyeur. A pasta viscosa do
concreto logo as encherá e levantará estruturas geométricas... O ritmo da sem
o instante da martelada, a mansidão do ajustamento; dobrar, despejar, mistura:
apiloar, alisar, raspar: ações elementares que texturam o tempo com seu passo
e o colorem com qualidades gordas. Dias, meses, fases têm densidades, pesos

Edgar Allan Poe, “Le Jouer d’echecs de Maelzel”, em Nouvelles histoires extraordina.~:
Paris: L. Joseph Gilbert, 1947, p. 276.
específicos, tonalidades, transparências: a hora é de carne ainda. A duração se
desdobra na mão em harmônicos, ressonâncias — e furor.58
Freud introduziu a construção no vocabulário da psicanálise.59 Com a
responsabilidade que sempre marca suas metáforas, utiliza o canteiro do
arqueólogo e do construtor para aclarar a (re)construção do passado enterrado.
Curiosamente, as poucas restrições que faz à metáfora se referem a efeitos de
sua exploração atual: por exemplo, afasta a sucessão linear, constante, das eta­
pas. No mais, a adequação, a concordância são sublinhadas pela supressão do
prefixo: prefere construção como termo suficiente, não reconstrução. O acerto
da construção — que não é interpretação — depende de seu poder estruturador,
imantador, evocador. Será eficaz se atrair rememorações, associações, restos: se
acordar, revelar, reunir.
A construção acertada acorda, revela, reúne. Mas, mesmo na nossa cons­
trução explorada e cujo objetivo não é o acerto, o operário não pode evitar que
nele alguma coisa acorde, se revele e reúna. Manufatureiro, carrega em si
uma técnica obrigatoriamente próxima do acerto, da eficácia. Uma pequena
ilustração disso: essa técnica lembra ainda muito a que nós “construímos”
como a da era dos primeiros utensílios (aqueles que serviam ainda).

Ao agir o sujeito orienta a maior parte de sua atividade com a ajuda de séries
de programas elaborados no discurso da evolução do grupo étnico e que
a educação inscreve na sua memória motriz. Ele desenvolve essas cadeias
numa situação em que a consciência lúcida... segue uma senóide em que as
depressões correspondem às séries maquinais enquanto os picos marcam os
ajustamentos das séries às características em que a operação se desenrola [...]
As operações complexas de preensão-rotação-transladação, características
da manipulação, tendo sido as primeiras a surgir, atravessaram o tempo
sem sofrer qualquer transposição. Ainda constituem a base gestual mais
corrente, privilégio da mão mais do que arcaica e pouquíssimo especializada
do homem... O apanágio da duração, que em paleontologia se liga com as
espécies não especializadas, aplica-se também às operações da mão nua, às
quais permaneceram ligadas até aos tempos atuais as formas mais perfeitas
da construção arquitetônica, da cerâmica, da cestaria e da tecelagem.60

58 Ver G. Bachelard, A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes: 1996.


59 Ver S. Freud, “Construcciones em psicoanálisis”, em Obras completas. Madri: Biblioteca
Nueva, 1968, t. ill, pp.573~583-
60 André Leroi-Gourhan, O gesto e a palavra: 2- Memórias e ritmos. Lisboa: Edições 70.
1987, p.28 e p.39.
As oscilações da consciência lúcida seguem as ciminsiâncias da oprniçãn
atualizando a memória motriz que atravessa o tempo sem grandes transfor­
mações. Aliás, o equilíbrio de diversos territórios cerebrais depende de ativi­
dades desse gênero, lembra ainda Leroi-Gourhan aos intelectuais, inclusive
arquitetos. Preensão-rolação-transladação: milhares de vezes retoma o ope­
rário da construção essas operações. Assim, construindo, de alguma maneira
se constrói, pois, inversamente, esses mesmos territórios, chamados de sua
letargia pela atividade manufatureira, põem em diapasão o sujei Lo inteiro - o
que não quer dizer uno. Ocasião pouco freqüente, em que a sombra de nossos
malencontros compõe figura de cooperação, em que a polarização favorecida
pela natureza da operação nos simplifica. Imagens só virtuais, não há dúvida;
a projeção é a única a poder remeter o instantâneo coeso da dispersão, como
prova a súbita ereção da anamorfose.61 Mas, na fantasia de um momento, se
a imagem é obra e não reflexo separado pela barra de um espelho, na trans­
gressão dos limites fluidos entre fora e dentro, talvez o sujeito surpreenda, no
interior das molduras da abertura que é, a passagem do corpo arredondado
que o preencheu há muito tempo sempre. Como não reconhecer o que nunca
podemos lembrar, o fantasma que ocupa, lá na era mítica anterior a toda sus­
peita de castração, o centro da plenitude aspirada?
Se a memória motriz atravessa o tempo sem grandes transposições é que
nada tem com ele — e, com perdão especial para a volta, em torno da mão
ativa próxima da matéria a aura da gênese ronda, propondo modelo para a
construção de nossa re-construção inevitavelmente adiada a partir do século
XVI sob a forma de um projeto de memória. (Nao tem jeito: como a questão é
também de linguagem, a linguagem — sobretudo a nossa — não basta.
Há que ativar as mãos, “metê-las na massa”, e vigiar de dentro. Pintar, por
exemplo.)
Memória motriz e consciência lúcida, no seu movimento pendular, pro­
vocam a sincronia de áreas fundamentais. As “primeiras” operações com­
plexas de manipulação mobilizam o sujeito, operário nosso contemporâneo
— o mesmo triturado pela divisão capitalista do trabalho vinda de violência
recente. O resultado é a dissonância: os comprimentos de onda do pêndulo, da
polifonia acenada, não são os da cadência da produção. Interferência: os vaga­
res de um ritmo fundo desarranjam os organizadores da produção. Encontrão:
a doce a-temporalidade do não cindido contraria a sucessão acelerada. Todas
as miragens estão lá — mas massacradas, prensadas, promessas continuamente
anuladas, por trás do vidro deformante do sistema. A manufatura reclama,

I 4(i Gi Ver J. Lacan, O seminário: Livro //. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, pp-79-81).
7 romove essas miragens como condição indispensável — mas não para que
se am esboçadas as premissas de alguma poética da mão. Se no interior do
rutòmato alguém respira, seu gesto deve ser precisamente como o de nenhum
rornem, truncado, anguloso, sob pena de fracasso, ofensa às regras e desem-
rrego. Contradição doída: sua função é atender às lacunas da manufatura,
preencher o não mecanizado sempre novo, cobrir as laterais da estereotipia só
:endencial, coisas às quais o homem é o único a poder responder. Mas o gesto
ronveniente é o do autômato — no interior do qual alguém deve respirar, para
poder ser o que não pode ser.
Mais: a abertura dc canais secundários que contornam os diques da repres­
são psicológica, o retorno peneirado por transferência do submerso estimulam
efusões e soltam energias que são aspiradas pelo material que espera valori­
zação. Oposto à planificação consciente no processo de produção, o operário
e posto em situação de transbordamento da “fonte eminentemente constru-
:ora... do processo primário”.62
Separadas as representações “perversas” originais dos atuais modos de seu
apelo no canteiro, a energia a elas associada escoa-se na prática substitutiva
controlada. Bastam associações mais ou menos vagas para permitir seu des­
locamento. A vida do canteiro, tentamos indicar, é farta em imagens e opera­
ções que as favorecem. A “economia” psíquica, em sublimação programada,
também serve à economia política no canteiro.
Se o tapume-paliçada protege o vazamento das “perversões”, determi­
nando um espaço carceral,63 apóia o controle. Se a de-diferenciação64 alimenta
em energia o canteiro, a seriação do de-diferenciado suporta o poder da pro­
dutividade dominada. Se a liberação de energia parece caos, o plano, ar sério,
civilizado e evangelizador, repõe ordem. Mas, assim como figurando coopera­
ção acentua a divisão, o plano, assumindo o papel de “princípio de realidade”,
solta o operário construtor para as delícias oceânicas do caos — e para logo
capturá-lo enriquecido e desprevenido, renovado e indiferente ao seu objeto, a
serviço da valorização. Muito refinamento inverossímil? Afinal, a construção
representa 50% do Cc social, merece cuidados especiais. Não dissemos que
tudo isso é objeto de planificação consciente, nem que é atributo exclusivo da
construção. Só que nela aparece com maior força.
(Cedo no canteiro — antes do horário contabilizado —, a distribuição de
tarefas. A um qualquer cabe, suponhamos, a execução de um muro: dimen-

62 Ver A. Ehrenzweig, A ordem oculta da arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.


63 Ver M. Foucault, Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1987.
64 Ver A. Ehrenzweig, op. cit.
soes, posições, técnica predeterminados. Reunidas as condições de trabalho
- argamassa, tijolos, fios, prumo, pá, colher, desempenadeira etc. começa a
operação. Esquemas motores elementares: preensão, rotação, levantar, espa­
lhar, recolher etc. Nos gestos, a sabedoria de um caminho já muito trilhado.
A monotonia rapidamente não exige mais que a atenção senóide. Na mão, a
viscosidade da argamassa, a resistência quebradiça do tijolo, o arranhar dos
grãos de areia; no ouvido, os sons ambíguos ásperos-molhados, as batidas para
o ajustamento; no corpo, os movimentos repetidos, quase rítmicos, as varia­
ções de peso, a gesticulação conhecida. Pouco a pouco, algum prazer trans­
ferido, uma “perversão” escapa furtiva, calor de reencontro. A distância das
representações deixa adormecida a censura, pensa em outra coisa. Pelo braço
entram vibrações mudas: nenhuma palavra tenta ainda dar conta de uma
perda que instala nomeando. Logo há transbordamento, excesso, como que
luxúria descabida. De tempo em tempo, o recuo para a apreciação, a corre­
ção; a cabeça se inclina olhando, em aconchego de repouso grato pelo acerto:
o objeto de prazer tem alguma coisa de corpo próprio. Por baixo da casca
lúdica, de longe, sobem cantigas de infância ou uma frase associada. No fim
do dia, o mestre faz ponto azedo e balanço: se apropria sem mais (obrigado,
Rô). Alguma coisa se foi, vai saber o quê. No dia seguinte, tanto melhor se os
cantos forem de guerra, comentando o gosto da perda: as pulsões agressivas
podem ser mais produtivas. Se ao assobio ensolarado suceder a cara amar­
rada, talvez o muro avance mais depressa. O mestre grunhe. No corpo mal
alimentado, o cansaço, a mão queimada pelo cimento, o pulmão ressecado em
anúncio de silicose ganham consideração quase terna: são os sinais presentes
únicos do perdido. Mas, mesmo assim, nalgum ponto do dia, o atrito da pá
contra uma junta, ou um tijolo bem aninhado, ou o jeito desavergonhado da
argamassa se intumecer sob as batidas nalgum ponto do dia, é seguro, alguma
outra coisa fez sinal. Talvez volte amanhã.)
No canteiro, a mão e seus movimentos simples guiam máquinas manuais
elementares. Ela levanta, amansa, pesa, encosta e ilude: não mostra que con­
tém o trabalhador inteiro. A mão que trabalha, envolvendo o corpo todo na
manipulação da matéria, nos faz esquecer as múltiplas passagens que a con­
fundem com o cérebro. O resultado técnico do que faz não depende somente
do dispositivo osteomuscular, em tudo semelhante ao do macaco superior.
Tem alicerce, antes de mais nada, na aparelhagem mental:

A mão humana é humana pelo que dela se separa e não pelo que é... 63

1 48 65 A. Leroi-Gourhan, op. cit, p. 40.


E ainda, apesar da aparência de generalidade, de coisa da espécie, a memória
motriz particulariza:

São as práticas elementares, cujas séries se constituem desde o nascimento, que


marcam mais fortemente o indivíduo [...] Os gestos, as atitudes, a maneira de
se comportar no banal e no quotidiano constituem a parte de ligação ao grupo
social de origem da qual o indivíduo não se liberta jamais totalmente quando
é transplantado para uma classe diferente ou uma outra etnia.66

A história do trabalhador, enquanto sujeito social, poderia emprenhar o que


nos deixa — fossem outras as condições de produção. Se a sociedade e a arte
escapassem da burguesia, nos muros haveria mais ocasião para seu exame que
em muitas telas.67 68
Mas, como ensina Adorno, enquanto o trabalho for desen­
contro programado, só o fechamento radical e abafante da arte guarda a espe­
rança de um outro trabalho. Para que possamos aproveitar sua experiência,
entretanto, é conveniente estudá-la não como vestígio de artesanato ou como
molde, mas como espécie de índice negativo da luta de classes na produção,
por deixar de lado a divisão do fazer e do pensar, as séries hierárquicas, o par­
celamento fundamental para a dominação.
Há muita memória condensada no arabesco de um gesto. Foi aprendido,
automatizado, testado, modiliçado em condiçoes sociais particulares. Cada
timbre de aparelhagem mental e muscular traz a cor de sua origem. Mas
dispersa a história nos gestos e seus timbres, no corpo e nas tensões psíqui­
cas, poderia o operário pretender na obra a construção retrospectiva de que
falamos. Na obra, como na análise, a boa ordem para o sujeito vai do futuro
ao passado**No seu lazer, o operário da construção poderia se fazer um “foi”,
fazendo-se suportável.

Ora, se é verdade que a obra carrega em si traços do passado, eles não estão
(estruturados) em nenhum outro lugar. A obra não traduz, deformando, a
lembrança; ela a constitui fantasmaticamente. Ela é uma memória original
e o substituto da memória psíquica infantil [...] A obra é uma inscrição
originária, mas que é sempre um substituto simbólico. Podemos dizer que,

66 A. Leroi-Gourhan, op. cit., p. 30.


67 \er A. Scobeltzine, L’artfeodal et son enjeu social. Paris: Gallimard, 1973, e W. Morris,
Political writings. Londres: Lawrence and Wishart, 1973; E. Coornaert, Les corporations
en France avant 1789. Paris: Ed. Ouvrières, 1968.
68 Ver J. Lacan, O seminário: Livro ti. op. cit.
para Freud, toda represent ação é substitutiva de uma ausência origin ária
de significação: somos sempre enviados de substitutivo em substitutivo, sem
que jamais seja atingida uma significação originária, somente fanlasmada
pelo desejo.69

O passado potencial perde-se pela situação mesma do investimenLo. Os fósseis


da história vislumbrada, e que projetada na obra tomaria forma, somem no
produto que, desde o início, é do outro. A cada investimento corresponde o
entornar de um pouco de infância, gasta no impulso desapropriado pelo capi­
tal. Sobra a interdição de enchimento da falha primeira, a confirmação sem
consolo do absurdo fundador — mantido aqui não por escolha existencial, mas
pela avidez da exploração.
No canteiro, a vizinhança de uma possível poética da mão encalha no só
possível. Entretanto, se a poética da mão se avizinha de seus possíveis (ima­
ginários) é porque, mais uma vez, o trabalhador coletivo constitui seu meca­
nismo específico (etc. etc.). O que poderia assombrar, como se fosse pausa na
lógica violadora do sistema, viola ainda mais. O avizinhamento é reclamado
por essa manufatura. Avizinhar não é efetivar: é criar, no interior da produção,
as condições para maior exploração da força de trabalho. O corte rente dos
possíveis (imaginários, promovidos) ao alcance da mão é a base mesma do
processo de produção do espaço.

ARREMATE

Pararemos por aqui nosso giro pelo canteiro, giro rápido, superficial (portanto,
cheio de grosserias), incompleto (quase que só nos ocupamos com alguns
modos de separação).
Sem que haja pretensão a sínteses, recordemos algumas das tônicas que
sustem seu funcionamento. (Talvez toda tentativa atual de síntese seja pre­
matura. Como imaginá-las anteriores ao movimento de sua real superação,
de sua “negação determinada”? No tempo de sua rejeição efetiva, única
forma de projeto que não é projeção no futuro do agora a negar, sua possibili­
dade nascerá de sua necessidade assumida pelos atuais produtores imediatos
enquanto se transformam em produtores globais.)
Essa grave e triste produção, que acena com reflexos imaginários de um
outro trabalho, encontra contraponto e fim numa estereotipia que vive de seu

69 S. Kofman, L'enfance de VarL une interpré tation de Ve sthé tiquefreudierme. Paris: Payoi,

150 197°, pp. 108-109.


oposto. Para cada traço marcante do produto é possível apontar o inverso na
produção, assim como na produção os mesmos passos se quebram em oposi­
ções que desembocam em antagonismos. O trabalhador é chamado à produ­
ção em função da hora abstrata, do valor que adiciona à matéria (como todo
trabalhador sob o capital), mas deve uma hora qualificada, concreta (como
todo trabalhador sob o capiLal — mas aqui a contradição é mais dolorida).
Os senhores do canteiro forçam seu trabalho a caber na estreiteza de algu­
mas unidades primárias, aquém de todo conjunto mínimo de comporta­
mentos ainda organica e significativamente coerentes, para dominá-lo e
poder aumentar a extração de mais-valia — mas sua prática deve ser tal que
as ressonâncias acordadas pela mão que trabalha estejam sempre present es.
Separado, isolado de si, dos outros e do produto, é responsável por habilidade
encadeada que só a colaboração autônoma permitiria. Com o último dos
salários, dele são exigidas todas as fadigas: é força motriz e princípio opera­
cional, transporta, empurra, eleva mas deve ser capaz das sutilezas do desa­
parecimento. Como prêmio, tem o menor dos tempos de vida e de trabalho,
abaixo dos de todas as outras categorias socioprofissionais. No produto, tam­
bém, é o tempo da hora abstrata que conta e dá vida (morte) na proporção
de sua quantidade. Nele imerge a verdade, emerge a aparência — mas que é
a essência descarnada. A inversão contamina: o uso negará a aparência ainda
utilitária do produto, será aparência de uso da aparência do produto. A hora
abstrata procurada na produção esvazia a hora do consumo — mas a hora viva
da produção material, apagada, deixa angústia na atonia inevitável do pro­
duto feito dela. Na projeção solicitada pela matéria à mão, barrada assim que
iniciada pela expropriação, separam-se as pulsÕes, volta Eros que alimenta o
narcisismo secundário do “orgulho” profissional - mas solta Tânatos que se
multiplica em absorção da autoridade, em espacialidade agressiva, em asco
no consumo...
Em mãos mais capazes, o tema não tem fim.

O DESENHO

HISTÓRIA

Voltemos ao desenho.
Com a aproximação da total hegemonia burguesa e a adaptação induzida
das forças produtivas (isto é, a “revolução industrial”), com o desenvolvi­
mento encomendado do maquinário e da organização do trabalho, métodos
e instrumentos para o comando e a comunicação reclamam reformas. Lem­
151 bramos: como corporificações da união/des-união do trabalho, promovem
aumento da mais-valia, principahnente relativa. Os erros decorrentes de
ordens frouxas, as irregularidades que exigem uma correrão posterior, as
hesitações e pausas que a informação imprecisa ou insuficiente engendra
impedem o bom rendimento. Assim, a exatidão e a homogeneidade, a
repetição e a limitação compõem os novos objelivos: condições para o enca­
deamento regrado da produção dividida, afastam os poros da manufatura,
agora grosseira, para a fome agravada do capiLal. Entre esses instrumentos,
o desenho.
No fim do século xvni, começo do xix, o desenho geométrico aparece, no
discurso dos que vislumbram novos tempos — em toda a ambigüidade da
expressão —, como uma de suas bases mais férteis.70 A geometria projetiva,
marginalizada desde sua primeira formulação sistemática, é retomada: o
Brouillon projet de Désargues de 1639 só será efetivamente desenvolvido com
a Géométrie descriptive de Monge em 1799- Ele e seus continuadores, como
Poncelet (Traité des propriétès projectives des figures, 1822) e Farish, prepa­
ram os esquemas de representação convenientes e oportunos para o modo
de produção que atinge o poder completo. Fundados sobre a homogeneidade
postulada do espaço, articulados a partir da projeção ortogonal, da imóvel dis­
posição dos diedros, da infinita distância do observador e, em parte, da homo-
logia, a ocultação de sua arbitrariedade encontra sintoma na decadência da
anamorfose, feita curiosidade de feira. Mas tais esquemas servem ao comando
mais seco e detalhado do capitalismo industrial — e é o que conta. Favorecem
a mensuração, a ordem, a estereotipia, a verificação (associados a outras pro­
vidências que escapam ao nosso tema — cuja penetração, entretanto, provoca
ecus mesmo em Stendhal, na sua inclinação por uma linguagem depurada
como a dos médicos, ou em Ingres, na sua adesão à linha nítida como a tra­
çada por buril).
Acompanhamos o resumo de história do desenho de Y. Deforge:

Os primeiros desenhos técnicos [...] que remontam à Idade Média não expri­
mem senão as principais intenções do autor; comportavam poucas informa­
ções precisas e sugeriam globalmente alguns temas para reflexão... tais dese­
nhos estavam longe de trazer uma informação unívoca, tudo era possível e 0
bom artesão deveria encontrar como pudesse as intenções do autor [...]
A partir do século XVII, a necessidade de fabricações repetitivas provoca

70 Ver J. Guilherme, “L’espace technique de la composition archilecturale”, era Les espaces


de l\architecture et des archilectes. Cahiers de 1’École d’Architecture de Nancy, 11. ». uiai.
152 1973» PP-1-32-
uma evolução dos desenhos no sentido da precisão. A solução é a da codagem
homológica, isto é, uma correspondência traço a traço com o real (ex., o Atlas
dito de Colbert) [...] No século xvn, o desenho faz ainda um progresso no
sentido da precisão ao respeitar uma escala, o que facilita a reprodução (ex.,
as gravuras de Le Bas para a Enciclopédia) [...]
Progressivamente, as representações se normalizam, certas homologias
desaparecem em proveito de uma... simbolização arbitrária [...] A informação
contida num desenho técnico é percebida da mesma maneira por todo sujeito
possuidor dos diferentes códigos. [...]
Um desenho completo é uma ordem.71

Do desenho que “sugeria globalmente alguns temas para reflexão” e onde


“tudo era possível” para o “bom artesão”,72 passamos ao desenho “percebido
da mesma maneira” somente pelo “sujeito possuidor dos diferentes códigos”
e onde “certas homologias desaparecem em proveito de uma... simbolização
arbitrária” — ao “documento contrato” que o Comitê de Normalisation Fran-
çais designa como “desenho de definição do produto acabado”. Há progresso,
não podemos duvidar; a exteriorização do conhecimento prático abre caminho
— mas a longo prazo — para sua democratização. Antes, porém, e como precon-
dição, o mesmo movimento que retira dos trabalhadores sua autodeterminação
relativa e seu saber é também o que faz do desenho uma “ordem” codificada
que só os iniciados podem utilizar. Comentário de Agricole Perdiguier:

as mais belas (catedrais) estavam em pé quando Désargues e Monge vieram


nos ensinar, a nós, trabalhadores, como devemos fazer para talhar a pedra e
a madeira.73

O desenho, gravando um saber meio apropriado, meio derivado da nova


situação da produção, envolve de anacronismo o saber ainda exclusivamente
transmitido pela experiência. Por outro lado, sua simbolização convencional,

71 Y. Deforge, Uéducation technologique. Paris: Casterman, 1970, pp. 108-111.


72 Ver o Ãlbum de Villard de Honnecourt, Bibliothèque Nationale, Paris; os estudos de
Peter Parler para a catedral de Praga, Akademie der Bildenden Künste, Viena; as
vistas de Michel Parler para a catedral de Strasbourg, Musée de 1’Oeuvre Notre-Dame,
Strasbourg; os detalhes para a fachada da catedral de Ulm de Matthaus Boblinger,
Musée d’Ulm, Ulm; etc.
73 A. Perdiguier, Mémoires d’un compagnon. 1964, pp. 10-18.
já notamos, sustenta uma primeira hierarquização pola exclusão do alguns.
O preço da imivoeidadc da informação é seu monopólio inicial e seu estranha
mento: editada pelos mestres, sua imagem não inclui mais a familiaridade de
que se nutriu.
Mas seu preço diz pouco a respeito de sua extensão. Entre a “codagem
homológica” e a “simbolização arbitrária” corre a mesma distância que a que
distingue a regulamentação dos tecidos introduzida por Colbert e a fabricação
de alfinetes de Adam Smith. De fato:

Coisa curiosa: por longo tempo, até o século.XIX praticamente, o desenho foi
raramente um documento de trabalho; não era senão a transcrição das formas
do ser acabado, uma imagem geralmente ingênua e exterior das coisas.74 75

Da regulamentação da produção à sua organização, da mensuração externa


à sistematização das operações — é nessa passagem que o desenho faz-se ado­
tar como instrumento capital, momento em que se torna urgente definir as
parcelas da produção com maior rigor. Questão de organização, portanto, que
o generaliza como documento de trabalho. O objetivo de seu uso não é nem
a qualidade do produto (as normas da corporação eram muito mais rígidas e
detalhadas), nem sua constância (a ausência do desenho fazia, se fosse o caso,
da cópia direta um método mais fiel). O que constrange a história do desenho
é a divisão desigual do trabalho que avança — e seu outro pólo, o acordo a ser
imposto aos componentes produzidos pelos trabalhadores divididos. Por baixo,
sorrateiramente, o império do valor comanda a reforma. Dizer que o desenho
só “sugeria alguns temas para reflexão”, que o “bom artesão deveria encontrar
como pudesse as intenções do autor” quer dizer não se inquietar com os poros
da produção, não fazer do rendimento a lei primeira, comerciar com o exce­
dente ou sonhar apenas com a mais-valia absoluta. Se, mais tarde, o desenho
recua do “ser acabado”, do objeto tal como se apresenta ao consumo, ao seu
esqueleto, se o olhar procura, por cortes e rebatimentos, traspassar sua carne, é
menos por desconfiar e para remediar o trabalho que ajuda a desqualificar, que
para assegurar a total incorporação do sobretrabalho. A vivissecção do objeto
pelo desenho do objeto persegue o acréscimo do depósito de hora abstrata.
Da forma a atingir, como em Sangallo, Bernini ou François d’Orbay, atra­
vessando a oscilação de um François de Cuvilliés,76 chegamos à descrição da
anatomia dos edifícios, de suas juntas de seus materiais. Da placa do pórtico

74 Y. Deforge, op.cíl, p. 112.


I 54 75 Ver C. Coulin, Dessins d'architects. Paris: Deux Mondes, 1962.
norte da catedral de Wells, campo para debates, estudos e sugestões, aos deta­
lhes explícitos de Le Baron Jenney, ordens exaustivas de serviço, há inver sã*:
do papel do desenho, materializada na troca do gesso pelo vegetal. Se antes
propunha forma para o objeto, visando o gozo dos proprietários ou conveniên­
cia de utilização, agora se aproxima de uma espécie de combinatória na qual
o que guia é a densidade dos momentos de execução, o arranjo imediato em
componedor para as etapas desgarradas.
Cézanne se põe diante de uma cena qualquer à cata do que ilustra reu­
nindo os dedos das duas mãos — como F. L. Wright. A ilustração, resvalando
pela pouca importância atribuída à cena (ou ao objeto), aponta o desejo elu-
sivo de juntar o disperso, desejo já nosso conhecido. O procedimento essencial
é simples: acumula módulos de cor, direção, superfície, economicamente
selecionados. Verde, azul e laranja; vertical, horizontal e diagonais principais;
cone, cilindro e esfera feitos sempre por pequenos planos. Um ritmo globa-
lizante, “cósmico”, diria A. Lhote (nosso componedor), soma tudo, como a
mancha negra costura os rostos ilhados do Enterro de Ornam de Courbet.
Há delicadezas, metier; não negamos. Mas o que queremos destacar é que o
olhar atravessa a casca dos corpos na busca de uma gramática aditiva, cujas
transações os constituem. E isso a tal ponto que há transbordamento: con­
teúdo e continente espacial se desfazem na mesma mecânica universalizada.76
Cézanne determina unidades cuja combinação distingue corpos — mas conti­
nua e faz desse movimento princípio universal, instabilizando mesmo o que
distinguiu. Reconhecemos as sombras hipostasiadas da divisão técnica do
trabalho capitalista. Inclusive, na evidência suposta das unidades selecionadas,
filhas de violenta intervenção — ou no aleatório (se preferirem, no oscilante,
no vibrante) contorno dos objetos, propostos ao consumo não para uso, mas
como quantidade de valor a que é fácil associar ou retirar um pouco. Se R.
Delaunay, prosseguindo no rumo de Cézanne, toma a torre Eiffel como tema,
é porque também lá a desencarnadura fecunda a formação e a ordenação dos
módulos de um canteiro até hoj e exemplar quanto ao rendimento.
O desenho analítico maduro — desenho para a produção analisada com as
lentes da burguesia —, querendo ver dentro, coopera na criação de um dentro
adaptado às fontes de seu querer, a exploração da produção submetida. Cortes,
seções, vistas, níveis, eixos: enquanto o erro admissível cai ao centímetro, o bis­
turi dos desenhistas escancara a carne preparada do edifício para melhor conta­
bilizar o tempo ocado no recheio conivente. A taxinomia gráfica, enumerando,
classificando, tende a rejuntar todas as horas numa figura desprovida de restos.

76 Ver L. Brion-Guery, Cézanne et Vexpression de Vespace. Paris: Flammarion, 1951


A coordenação da produção assujeitada pode contar com mais tempo para­
lisado nos objetos produzidos se o “documento contrato” for bem conduzido.
A exatidão do traçado que afina suas ordens, às épuras que expulsam dúvidas,
correlaciona-se o tempo “exatamente” calculado das operações assim aptas
para decomposição e planificação minúsculas. E mais: a medida dos tempos
sociais mínimos (“necessários”), aquém dos quais toda redução é negativa, só
desse modo é possível e generalizável. Com efeito, a estimação desses tempos
que determinam normas de produção requer o conhecimento completo das
operações — o que, por sua vez, não pode ser obtido sem a configuração rigo­
rosa do que há que produzir.
Esquematicamente: 1. a corrida pela mais-valia reclama a redução da hora
social média de produção; 2. a redução da hora social média supõe, entre
outras coisas, o adensamento dos tempos operacionais mínimos; 3. o adensa­
mento dos tempos precisa da transparência esmiuçada da produção dominada,
do objeto a produzir e das etapas de produção; 4. a transparência do objeto a
produzir e das etapas de produção passa pelo desenho técnico que os deter­
mina e abre ao exame.
A relação espaço-tempo, nas suas conseqüências práticas, é tema que ocupa
crescentemente a técnica a partir da segunda metade do século XVI Nós .77

o reencontramos simplificado no século XVIII E, já sem outros cuidados,


.78

forma hoje o ponto de partida dos tratados da work simplification. Voltaremos


a esse tema — mas já podemos sentir que a geometrização e a homogeneiza­
ção do espaço de representação são fenômenos dependentes do predomínio
do valor, do tempo e do trabalho abstratos, portanto. Em retorno, porém, são
fundamentais para medi-lo e dar-lhe chão. A regularidade de métodos e pro­
cedimentos, a sistematização do espaço eliminam as variações da realização
não submetida. E, mesmo dependentes, auxiliam na instalação das condições
epistemológicas e operacionais que o mantêm.
Com algumas adaptações, as tendências mais eficazes do desenho técnico
industrial penetram, durante o século XIX, na manufatura da construção.
As adaptações são principalmente redutoras e imobilizantes. Afastado das
máquinas mais complexas e de acuidade crescente, o canteiro, constituído
sempre por trabalhadores em colaboração e seus instrumentos elementares,

77 Ver A. Koyré, “Du monde de l’à-peu-près à Tunivers de la précision”, em Êtudes


d’histoire de la pensée philosophique. Paris: Gallimard, 1971, pp- 341-362.
78 Ver D’Alembert, Discours préliminaire de Vencyclopédie. Pans: Gonthier, 1965: “não há.
cálculo possível senão pelos números, nem grandeza mensurável senão pela extensão
— porque sem o espaço não poderíamos medir exatamente o tempo...”, p. 31.
não suportaria tipos mais elaborados de representação. A violência aberta que
o capital não pode abandonar aqui é incompatível com o rebuscamento do sis­
tema de informação e transmissão de ordens. Para reproduzir cotidi an cimente
a ruptura nunca estável em cada operário da construção, para reinstalar o
embrutecimento ditado pela maneira de produzir, que não pode torná-lo
permanente, os meios de controle e direção devem descer a níveis adequados.
v
A conduta policial dos mestres respondem os reduzidos canais iconográficos.
Não podemos comparar os desenhos de uma indústria de ponta com os que
encontramos numa obra. São meios precários, os da simbolização arquitetô­
nica — mas suficientes e convenientes para a tosca técnica codificada e para
a indicação sem rodeios da tarefa de asfixiante estreiteza, exatos no serviço
da indigência plástica que determinam. A representação da vontade autori­
tária, no exercício direto da coação, não tem como escapar ao fechamento em
autismo embruscado, à arrogante ruminação de grosseira mesmice.
Mas a violência a que o desenho serve, para ser bem servida, se aplica pri­
meiro nele. Ao seu enclaustramento acompanha uma higiene suspeita, sobre­
tudo porque é maior quando vem a público, em revistas ou prospectos.
O traço sem desvios, os ângulos rigorosos, o metro bem afiado, o preto no branco;
normógrafo, tira-linhas, compasso, régua, esquadro; na impessoalidade grá­
fica, nenhuma respiração, nenhum passeio. De sua obrigatória limitação extrai
moralismo hipócrita e claudicante alegoria de razão. Nada mais tacanho que a
taboada milimétrica que trama sua gerência — a não ser a linha torturada em
concurso de sensibilidade pela mão solta do artista que prende a mão de quem
faz. Aliás, saída do 6B é logo dissecada em cotas para a fabricação — e fica como
as outras. A mão solta guarda o cetro, mas o cetro só avaliza os gestos do ritual.
Qualquer veleidade de arroubos poéticos coalha nas margens da gestão correta.
Se Gaudí ainda salta as muralhas da repressão interiorizada, é porque mora no
canteiro, desenha pouco e discute o talho de cada pedra. Resultado, porém: leva
Güell à falência. A cantada doença de São Guido de Le Corbusier, Aalto e outros
tantos, arremeda o que não tem e some nas folhas de execução: sua reverência
não é à arte, mas ao capital a que empresta o serviço de seu pastoso engodo.

Na indústria, como na arquitetura, há um problema essencial: a representação


dos corpos. O engenheiro ou arquiteto concebe um projeto que deve geral­
mente traduzir por um desenho destinado ao operário, que executará esse pro­
jeto. Essa representação por imagens pode se fazer por meio do desenho em
perspectiva ou do desenho geometral. [...]
O método da dupla projeção, que consiste em fazer duas projeções ortogo­
nais sobre dois planos perpendiculares... é quase que exclusivamente empre­
gado por engenheiros e arquitetos. [...]
O conjunto dos métodos que permitem construir desenhos geometrais
constitui a geometria descritiva criada por Monge (1746-1818), que primeiro
expôs metodicamente os procedimentos gráficos que os arquitetos de todos
os tempos haviam empregado na arte das construções. Hachette, discípulo e
continuador de Monge, disse: “em geometria descritiva, é necessário primeiro
resolver um problema de geometria tridimensional antes que a mão possa
executar as operações que conduzem à solução gráfica do problema”.79

Na palavTa dos que têm pouco compromisso com a ideologia arquitetural, a


verdade encontra menos obstáculos para aparecer, sobretudo se a ingenuidade
se associa ao afastamento. No texto citado, reencontramos: o caráter essencial
do problema da representação; sua destinação, o operário que executará o pro­
jeto; a separação/dependência do objeto e sua representação; a historicidade do
procedimento; a não historicidade com que é apresentado (“arquitetos de todos
os tempos...”). Esse método “quase que exclusivamente empregado por enge­
nheiros e arquitetos” surge para ser o quase que exclusivamente empregado. O
que anulará o caminho imaginado por Hachette, com a força das constantes que
submergem. Vamos opor à indigência o monopólio que esse método instaura:
apesar de ser restritivo e monogênico, constitui o fundamental do que circula
entre 0 centro de decisões e o canteiro. A partir dessa posição, cobre o campo dos
possíveis deixado ao desenho separado, confirmando indiretamente sua função
dominante, a de desenho para a produção. É porque é desenho para a produção
(de mais-valia) que se encolhe na grelha mongiana até virar sinônimo seu.

0 CONSULADO DA REPRESENTAÇÃO

Com efeito, 0 movimento ou a relação que, primitivamente, desempenha


0 papel de intermediário entre os extremos conduz dialeticamente e
necessariamente ao resultado seguinte: ele aparece como sua própria
mediação, como sujeito cujos momentos não são senão os extremos e dos qua:*
suprime o caráter de pressuposto independente, a fim de se pôr a si mesmo,
por essa superação, como o único fator autônomo. Assim, na esfera religiosa.
Cristo, mediador entre Deus e os homens (simples instrumento de circulaçãc
entre um e outro), torna-se sua unidade, homem-deus, e como tal adquire
mais importância que Deus; os santos adquirem mais importância que Cristc
os padres são mais importantes que os santos.80

79 A. Delachet e J. Moreau, La géométrie descriptive. Paris: puf, 1968, pp. 5 e 17.


80 K. Marx, “Príncipes d’une Critique de rÉconomie Politique (Grundrisse)”, Oeuvres.
Paris: Plêiade, t. II, 1968, p. 235.
Pois é: o modo de pensar penetra a coisa pensada, se embrenha em suas
entranhas e a absorve, como as formas sociais do pensar moldam o modo de
pensar. E logo o modo de pensar posa de fonte pura, escotomizadas as formas,
enquadrada a coisa. O processo de produção, enquanto processo de extração
de mais-valia, cria o intermediário desenho entre o comando e as unidades de
produção. Porta-voz: o designer ou o arquiteto, também criados seus. E, pouco
a pouco, sem desservir suas origens — e, mesmo ao contrário, confirmando-as
—, os planos ortogonais de projeção, por exemplo, se projetam como planos
arquiteturais determinantes, através do desenho que conformam. Se o dese­
nho, numa aproximação simplista, representava o espaço, o espaço progres­
sivamente será acomodado às formas de representação que, de certo modo e
modo certo, o antecipam. As formas do sistema segregam um mediador para
transmitir o pensamento dos que as detêm — mediador que rapidamente grava
sua marca no que transmite. Em outros termos, a trama simbólica aspira mais
e mais o simbolizado ou, na nomenclatura da escola de E. Cassirer, a série dos
sinais aspira mais e mais o assinalado.81 Ponto por ponto, o espaço arquitetural
seguirá as normas do espaço de representação: ele se fará homogêneo, regu­
lado, ortogonal, modulado etc. Apresenta a representação de si mesmo.
E, se a homologia decai no desenho mais sofisticado, patrocina ainda o monó­
logo da representação na construção — mas de trás para diante.
Atenção: toda analogia com conceitos como o de assimilação, introduzido
por J. Piaget, é deslocada.82 E ainda: essa espécie de filiação ao inverso, de pri­
mazia dos mecanismos de feedback, a lembrar suspeita eficácia simbólica, deixa
dúvidas no ar.83 Já dissemos que, no desenho, é como aparência de relação que
as separações do fazer e do pensar, do dever e do poder, da força e dos meios
de trabalho se manifestam. E que os laços que o desenho propõe são laços do
separado mantido separado. (Aparência: “é o nome dado ao ser que imediata­
mente é em si mesmo um não-ser, ser que é em si mesmo imediatamente um
não-ser”.84) Ora, a separação corrompe os pólos que separa: castra o trabalhador,
impede a criação. Se o desenho se põe como móvel imediato da produção e se
imprime nela seu guião simbólico é porque é materialização da separação, reifi-
cação da ruptura. Nada a ver, portanto, com a interdeterminação dos pólos atra­
vés de estruturas de troca, como faria imaginar a analogia com o conceito de

81 Ver S. K. Langer, Sentimento eforma. São Paulo: Perspectiva, 2003.


82 Ver J. Piaget, Biologia e conhecimento. Petrópolis: Vozes, 1973, p- 87.
83 Ver C. Lévi-Strauss, “A eficácia simbólica” em Antropologia estrutural. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1973, pp. 215-236.
84 G. W.F. Hegel, Fenomenologia do espírito. Petrópolis: Vozes, 2003, pp. 115-116.
assimilação. No nosso caso, os pólos são determinados negativamente e infeccio­
samente: em cada um fica a ferida gangrenante do vazio do outro. Vazio: furo e
despejo, inanidade e falta. E, em vez de estrutura de troca, há barreira: em vez
de ponte, cunhas — entre as quais o desenho. Aliás, a transferência, no discurso
dos arquitetos, da consideração da forma para a consideração do espaço
(o entre-coisas, ex-paz, ex-passo, buraco; em latim, spatiurru arena) toma valor
de sintoma: para a psicanálise, ele é perda, talhe.05 Espiemos mais de perto.
/

E como desenho que se apresentam as resistências que enfrenta o proje­


tista, sua “realidade”. Ou melhor, é no desenho: as dificuldades são de figu­
ração, de geometria. No jargão dos escritórios, concretizar uma idéia é trans­
crevê-la no papel, transladar de lá onde está, de além da vaga imagem só vista
de olhos fechados, do campo da representação para a ordem de serviço.
A única matéria que transforma, dando corpo, a idéia são os códigos do dese­
nho para a produção — mas transforma em transformação contínua de si
mesma, para emprestar a noção dos matemáticos. A idéia já vem informada,
formada por dentro, por esses signos e as regras de sua combinação. O objeto =
fazer desenhado, cujo fazer está preso em impotência, reforça a “perpendicu­
laridade” da representação descrita por M. Foucault:

A representação é sempre perpendicular a si mesma: é, ao mesmo tempo,


indicação e aparecer, relação a um objeto e manifestação de si.85
86 87

A indicação vira reflexo quando o objeto não é senão imaginário, toma carne
de empréstimo e manifesta o que o deveria indicar, redobrando sua tendência
a vir a ser “sempre” (isto é, hoje) manifestação de si. Nesse avesso, o indicado r
reaparição do aparecer próprio à representação, além de apresentação da repre
sentação de si mesmo, confirmando que “indicar é o experimentar que agora
é [um] universal”.07 Jogo turvo: a presença da obra, cuja realização é passiva,
apresenta sua representação que, assim, se mostra ser um “universal” vazio. E
por isso que a dimensão ainda potencialmente simbólica dos esboços é coada
pela norma em uso da rede dos significantes plásticos — e no coador fica o que
não convém à produção dividida. Gilbert Durand insiste a propósito do caráte*
não convencional indispensável ao rearranjo simbólico dos significantes.88 E e

85 Ver Sami-Ali, L'espace imaginaire. Paris: Gallimard, 1974.


86 M. Foucault, As palavras e as coisas. Sao Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 80.
87 G.W.F. Hegel, op.cit., p. 91.
88 Ver G. Durand, Imaginação simbólica. São Paulo: Cultrix, 1988, e As estruturas
160 antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
linguagem do desenho para a produção não pode compreender senão signos em
sua disposição convencional. Afirmamos, pois, que todo poder e abertura cria­
tiva do projetista acaba no esboço: a criação não dispensa o rearranjo simbólico
dos significantes. E, obviamente, como só os signos em disposição convencional
dão forma à obra, nem sombra de criação atinge nossos edifícios. O esboço fica
sendo, se revela criação, luxo sem conseqüências diretas em face do peso imóvel
da mediação feita sujeito por delegação.
(Nota: arranjemos nossos termos. “O desenho imprime seu guião simbó­
lico...” significa: a trama dos significantes plásticos em uso na representação,
enquanto tal, enquanto totalidade, é simbólica — no sentido em que aponta
um atrás de si, um reverso que, se a propõe, ganha dela figura. Mas, no inte­
rior da trama, no seu funcionamento cotidiano, a convenção e a imobilidade
são condições para o bom andamento da produção. Portanto, se a estrutura
geral é simbólica, cada uma das configurações particulares que informa não
o é — ou é tautologicamente, repisando o refrão da estrutura geral. Exemplo
oposto: o entrelaçado das cores selecionadas na pintura de uma época é sim­
bólico, metafórico — mas cada pintura que o aceita produz outras estruturas
simbólicas relacionadas, metonímicas. Há deslocamento, mesmo se ligeiro, do
entrelaçado de que parte. Isso não acontece com o desenho para a produção,
cujos desvios, coagidos diretamente por fora, só encontram redundância.
A pintura é produtora de sentido por reelaboração de seu material: o dese­
nho para a produção segue um sentido editado pelo modo de produção e sua
conjuntura: é heterônomo — menos, entretanto, que o canteiro que dirige.
Pintura é rebeldia e, apesar de não escapar à torrente do sistema, procura suas
margens ou resiste em posição de escolho. Nossos desenhos para a produção
seguem a vala comum de seu eixo, sem vagar para outra escolha.)
Não é honesto comparar linguagem falada (ou escrita) e representação
/

arquitetônica para tentar conservar chance de criação. E no desarranjo, nas


esquinas, no branco, nas soluções, nos bueiros, nos lapsos, nos desencontros,
nas falhas, na falta, no giro, no tombo da linguagem estabelecida que arte
— e verdade — despontam.89 No esbarrão dos significantes. Ora, construção é
coisa séria, envolve doutor e capital. Ou os signos da representação desfilam
corretamente, ou no canteiro instalam bordel e o capital não engravida. Arte
e criação, verdade c desejo que se danem se forem menos anormais. Se com­
paração cabe, é com o nhenhenhém de todo dia, a fala de todo mundo, confir­
mação securizante dos significados da hora, das cesuras compactuantes que a

89 Ver X Lacan, “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”, em Escritos.


Rio de Janeiro: Zahar, 1998, pp. 496-533.
manipulação da rede dos significantes distribui e redistribui para a comodi­
dade da ideologia. Então, sim, vale: nos dois casos, a troca é a mesma. Cami­
nho vira centro; centro, calçada; patológico, normal; palavTa, coisa; violência,
razão — e representação, coisa a representar. E fica combinado: tudo de cabeça
para baixo em ordem e progresso.
Como, nessas circunstâncias, achar chocante que o desenho, materiali­
zação da ruptura, saia do vazio que o gera, tome os corpos, tenha regras e
governe? Governa como preposto — mas não sofre ênclise, guarda seu acento,
se apresenta como fator autônomo, mesmo não sendo. Representação é o
seguinte: (segue o curso rançoso mas constante nas faculdades de engenharia
e arquitetura, desenho técnico, geometria descritiva etc.) — e ponto. De man­
sinho, lá do seu silêncio, do seu canto, de sua situação dita modesta, de sua
inodora banalidade, dispõe dos que se agitam. Não entra no jogo, fica de fora:
continente é sua lei e o jogo sua atualização.
Mais uma vez, Cézanne, o das últimas aquarelas. No limite, suas maçãs
seriam pedaços de tela branca rodeados por módulos de cor mais ou menos
distintos. Vem por fora — e o que faz, de repente, sai do nível do suporte,
recua como fundo. O que não faz, as maçãs, salta e avança. Nada, intervalo,
ostenta relevo. Para que a ilusão não se denuncie, é preciso que os módulos
tenham um quê de quebradiço, de descontínuo. O mesmo salto num quadro
como o Enterro de Cristo da National Gallery, duvidosamente atribuído a
Michelangelo, não ganha o mesmo efeito: as formas ligadas deixam chapada
a parte inacabada. Mas, se o entorno, que é o que trabalha em Cézanne, for
conturbado, separado em cacos, sua montagem pode redundar em emigração
da presença que invade, então, o que é ausência. E, no intervalo de pintura
que constitui o corpo, o contorno — necessariamente múltiplo para que a pas­
sagem se realize — tem de tender para a maior pregnância visual, reforçando
a inversão pela aplicação dos princípios estudados pela Gestalttheorie: para o
cone, o cilindro, a esfera etc. Também aqui o vazio, que toma corpo a partir
do esfarelamento, exibe lei e estrutura. Pouco a pouco, vão se depositando
os traços obrigatórios do sistema de representação solicitado por nossas rela­
ções de produção. Da produção separada (do entorno partido) ressaem os
“universais”: a tecedura dos diedros ortogonais, da combinatória modular; a
tessitura das figuras geométricas simples, dos volumes corridos — ocultação,
contraponto, germe da divisão. Arranjo de unidades mínimas provocadas de
operações do trabalho (de cacos coloridos): as porções de produto declarado
pronto, soma jamais justificável de horas coalhadas, têm por critério de deli­
mitação as conveniências da troca e, como consequência, a generalização de
sua raiz. (Não fosse a vantagem de, pelos cortes que decreta, funcionalizar a
eles o uso do qual retiram todo impulso produtivo. Por que não produzir e
usar simultaneamente, como acontece com o sukiyaki de Barthes?90 Do “um”
determinante mina o disperso seu inverso: daí o fantasma dos corpos atados
pelas algemas dos “universais”, tropos do vácuo disseminado e dissimulado.
A assunção do papel do sujeito pelo desenho relega o sujeito ao infinito das
projeções descritivas, descrição do exílio reificador de toda autonomia. Oco
dos “universais” plásticos generalizados: na sua estrita dispersão, estruturam
o mediador em carreira de estrela, fiel servidor da divisão, autista grosseiro
filho da luta de classes sob o capitalismo, legislador do espaço.
Voltemos ao nosso projetista, a esta altura de nosso texto quase exclusiva­
mente montado pelas regras da representação. Certo, os técnicos oporão, aqui
e lá, outras limitações. Mas, vindas do mesmo universo, ao qual são mesmo
até mais afeiçoadas (dos substantivos feição e afeição), essas limitações con­
firmam ainda uma vez a hegemonia dos veículos estereotipados. Quando
contrariam o projetista é para adequá-lo melhor a eles. Seu “realismo” ope­
racional injeta o selo da trama mongiana hipostasiada inclusive nos conceitos
comuns do cálculo, como se a espessura da matéria se tivesse condensado em
roda de suas coordenadas. E, se o modo de utilização do material escorrega na
linha da aberração — escorregões que assumimos como evidente avanço —, sua
conceituação obediente cauciona a compatibilidade imaginária com o molde.
Alguns exemplos rápidos: vários conceitos do cálculo estrutural — a compres­
são (na direção do eixo), a tração (idem), a flexão (afastamento perpendicular
ao eixo), o momento (dupla perpendicular ao eixo), a torção (idem), etc. — são
conceitos de base linear e ortogonal. Em oposição, porque as formas curvas
tridimensionais não se inclinam facilmente diante dessa raquítica aparelha­
gem teórica, suas vantagens estruturais são abandonadas. Essa adoção, essa
interiorização dos esquemas secretados pelo comando da produção esquarte­
jada germina pesadas raízes. Esboçada desde os primeiros tratados de resis­
tência dos materiais, como as Leçons de Navier, datadas de 1826, ela atravessa
de lado a lado o ensino técnico e a prática de hoje.
O caso do concreto armado é típico: material pronto para seguir os desen­
volvimentos curvos das tensões, na maioria de seus empregos atuais adota o
esqueleto paralelepipedal cômodo para aqueles cuja finalidade está centrada
na mais-valia. Basta comparar, para somente visualizar sua má aplicação e
desvio crescentes, algumas propostas de Freyssinet (ex.: os hangares para diri­
gíveis em Orly, 1916) e Maillart (ex.: ponte de Valtschiel, Suíça, 1925-26), isto
é, propostas marginais em relação ao uso “corrente” (acorrentado) submetido
a normas vindas de outra preocupação, com as formas em ângulo reto de não

90 Ver R. Barthes, L’empire des signes. Genebra: Skira, 1970, pp. 30-34.
importa qual edifício de nossas cidades. Mas evitemos idealizações: os exem­
plos de Freyssinet e Maillart são isolados.
No começo de sua história, o concreto foi moldado nas mesmas formas e
funções que as usuais em outros materiais, com missão de substituição. Das
caixas de flor de Monier (1849) ou barca de Lambot (1848), passando pelos
brevets de Barret e Coignet, até primeiras investidas comerciais (com a Actien-
Gesellschaft für Béton und Monierbau, que, de 1887 a 1891, construiu 320
pontes e barcos), seu aproveitamento foi híbrido e secundário, seja na França,
seu país de origem, seja na Inglaterra, apesar de Tall e Drake, ou nos eua,
apesar de Ward. Entretanto, já nesse período, a teoria e as experiências domi­
nantes adotam diretivas extranaturais para esse material. Exemplos: o brevet
para uma viga (1865), os estudos de Bauschinger sobre colunas (1885), as teo­
rias de Koenen (1886) sobre vigas e lajes. Sabemos: o conhecimento do con­
creto armado se procura e empresta de fora, da região da madeira e do ferro,
caminhos batidos. Mas esse modo de pensar ficou e, mesmo, se exacerbou.
E ele que a organização de F. Hennebique, graças à qual a técnica do concreto
armado chega a 31 países, entre 1894 e 1906, divulga. Em traços grossos, ele
orienta a ebulição teórica do fim do século xix e início do nosso (Coignet,
Melan, Rabut, Bauschinger, Thuille, Christophe, Ritier etc.). Ao que respon­
dem em eco as propostas nascentes para a generalização de seu recurso, como
os planos para uma cidade industrial de Tony Gamier (1902), e a primeira
aplicação dita coerente do princípio da ossatura, no imóvel na rua Franklin, n.
25 bis (1903), pelos irmãos Pérret: estruturas cúbicas em cujo esteio segue a
parte maior da arquitetura contemporânea. Material de substituição em que
são substituídas suas férteis possibilidades intrínsecas pelas convenientes para
a extração de sobretrabalho, o concreto não será aproveitado sem deformações
senão em trabalhos de exceção como os já indicados: os de Maillart a partir de
1901, de Freyssinet a partir de 1907.
O poder escorregadio do nosso sistema se revela mais claramente se esca­
varmos nas pseudobizarrias que são, no fundo, sintomas “falantes”. Pontalis
aconselha, repetindo uma velha verdade da psicanálise:

[...] exercitar o ouvido (para captar) as anomalias do discurso: é de lá que a


verdade nos faz sinal.91

Tais bizarrias são freqüentes no interior do discurso técnico sobre o concreto


armado e na sua aplicação. Tomemos uma, ao azar: a laje-cogumelo. A laje

91 X B. Pontalis, Psicanálise depois de Freud Petrópolis: Vozes, 1972, p. 59.


contínua apoiada em colunas isoladas, com a única interposição dos capitéis,
e cuja cofragem não inclui nenhuma dificuldade, é uma solução caracterís­
tica do concreto armado.92 Mas, aplicada no projeto fantasia de A. de Baudot
(intitulado “Grand Espace Couvert Eclairé para le Haut”), em que os pilares
nervurados continuam as membranas portantes do teto, modelo retomado
por Maillart na loja Giesshübel de Zurique (1910) e, mais tarde, por F. L.
Wright na Johnson Wax (1936), sem esquecer a variação de Gaudí para o
parque Güell (1900-1910), essa solução teve poucos prolongamentos. Raros
ressurgimentos: mas sob a responsabilidade dos melhores. Na usina Gatti de
Roma, onde P. L. Nervi emprega pilares-cogumelo associados a lajes com
nervuras dispostas segundo as linhas isostáticas dos principais momentos de
flexão (o conjunto pré-fabricado por baixo custo, notemos) ou no hipódromo
de Madri de E. Torroja, conjugados com membranas também de concreto.
Torroj a se espanta:

E certo que nunca se pôde explicar por que o capitel repugna tanto, hoje, à
sensibilidade estética do artista, o qual se deleitou durante séculos com sua
forma esculpida.93

Bizarria: estamos diante de um cruzamento de determinações colidentes


como em todo sintoma. A divisão manufatureira do trabalho impõe a sepa­
ração rígida das equipes: as que fazem a ossatura não são as mesmas que
erguem as paredes. Ora, a forma nitidamente paralelepipedal se presta mais
tranquilamente à sucessão descontínua das equipes isoladas. A acomodação
recíproca primária deixa atingir um rendimento superior; o encaixe retangu­
lar evita adaptações, surpresas. Mas é aqui que há tropeção. Porque a norma
estreita da manufatura seria mais respeitada se paredes e ossatura fossem
separadas completamente, como em alguns projetos de Niemeyer (Pampu-
lha). Somente assim haveria radical autonomia funcional das equipes, isto
é, sua separação total, como recomenda a técnica de dominação. Portanto, as
razões anteriores para afastar a laje-cogumelo desaparecem. Entretanto, o
contágio dos meios de representação, do ajeitamento simplista das interven­
ções intervaladas, do hábito ocluso a que conduzem produz transudação de
nome variado: estética, moral e objetividade. O belo, o bom, 0 moral correto
(ou seja, o que provoca maior rendimento) é o espaço cúbico sem capitéis.
Derrame da norma, dessaber do despotismo, triunfo da rede simbólica.

92 Ver E. Torroja, Les structures architecturales. Paris: Eyrolles, 1971, p. 248.


93 E. Torroja, op.cit, p. 246.
Ortogonal, signo do espírito.
No (dia) 4 de janeiro, falávamos disso com meu grande amigo Elie Faure:
Eh, bem, em que grau de aberração calmos. A reta, o ângulo reto, signos do
espírito, da ordem, do domínio, são considerados como manifestações brutas e
primárias. A isso invectivam: ‘Americano!’
Este signo +, isto é, uma reta cortando uma outra reta fazendo quatro
ângulos retos, este signo é o gesto mesmo da consciência humana, o signo que
desenhamos intuitivamente, gráfico simbólico do espírito humano, introdutor
de ordem.
Este gráfico ao qual — por qual caminho intuitivo? — demos o sentido do
mais, da adição, da aquisição. Signo construtor.94

Le Corbusier sempre deixa suas estruturas à vista; em particular, nos seus


textos. Impossível, sem querer, ser mais explícito — evidentemente porque
não quer sê-lo. Mesmo o vazio da óbvia censura da posição mais corriqueira
desse signo para o nosso mundo ocidental cristão: na cruz, tem conotações
que é difícil não registrar. Ou, ainda, a clara evocação das brumas da
razão — ou intuição; com acurácia, a palavra ressurge nos dois pontos em
que a rede simbólica se revela determinando: no desenho, na linguagem,
nesta ordem.
Os imperativos mais comuns da exploração do canteiro submetido autori­
tariamente, o afastamento da decisão e da matéria conduzem a paradigmas
operacionais que a técnica introjeta ao preço da contradição interna. Assim,
as aversões do gênero da que apontamos pela laje-cogumelo não são privilégio
do “artista”. J. B. Ache (do qual tiramos muitas das informações sobre a histó­
ria do concreto armado) nota:

Parece que um material que podemos verter, mesmo se é provido de uma


armação que podemos, aliás, encurvar, não pode verdadeiramente justificar o
aspecto retilíneo, cubista, da arquitetura desta época.95

A propósito, no conjunto, as relações da arquitetura moderna com a tecno­


logia, altamente valorizadas no discurso de críticos e promotores, caem em
ambigüidade se por tecnologia é preciso ler somente a dos materiais e sua
aplicação, noções ideológicas, desligadas da aproximação simultânea da tecno-

94 Le Corbusier, op. cit, p. 61.


95 J. B. Arché, Eléments d’une histoire de Vart de batir. Paris: Ed. Moniteur des Travaux
Publics, 1970, p. 407.
logia de dominação e de exploração que nelas causa alterações patogênicas.96
É o que acontece na interpretação de Banham, por exemplo:

Ao se separarem de aspectos filosóficos do futurismo, embora esperando


manter o prestígio deste como uma arte da Era da Máquina, os teóricos e os
projetistas do fim da década de 1920 separaram-se, não apenas de suas raízes
históricas, mas também de seu ponto de apoio no mundo da tecnologia [...]
A corrente principal do movimento moderno havia começado a perder de
vista este aspecto da tecnologia [...] como se pode ver: a) pela escolha que
fizeram de formas simbólicas e de processos mentais simbólicos, e b) pelo uso
que fizeram da teoria dos tipos.97

Ao tratamento ideológico da tecnologia correspondem abstrações apressadas


como a coberta pela palavra “simbólico”, aqui em uso diferente do nosso.
Simbólico, no texto de Banham, marca as alusões a mecanismo nos edifícios
industriais, a alegoria de limpeza e probidade nos bancos, a mimese de diar­
réia luxuosa nos clubes e hotéis, a sugestão de equilíbrio simétrico nos palá­
cios. Abuso, mimese, alegoria e sugestão. Porque, se por simbólico entender­
mos a trama de articulações e oposições que estruturam de longe o campo
e o conteúdo simbolizado — e que só encontra referência numa outra trama
de articulações de oposições, nas relações de produção —, então, já vimos, ou
cada edifício não simboliza nada, ou é pura redundância do sistema que
induz, simultaneamente, seu corpo, sua representação e a técnica que o
informa, sem quebras maiores. Ou seja, nessa segunda versão, é exatamente
a dimensão simbólica da obra ou dos processos mentais que melhor se
adapta à tecnologia, igualmente sensível à mesma orientação apontada pela
mesma causa, a exploração. Não há perda de vista, corte, como crê Banham
— mas encontro necessariamente ambíguo de formações que, monocéfalas,
nem por isso são regularmente isomórficas. Diga-se, de passagem, que nes­
sas superposições falhas mais facilmente localizamos o lugar de onde vem
o encontro de base que o desencontro superficial indica negando. Como as
figurinhas de Villard de Honnercourt, que, em luta, se inscrevem numa
forma geométrica simples.
A história do concreto armado, como a história de todos os materiais e de
toda a técnica construtiva sob o capital, é uma história de marionetes. Apli­

96 Ver S. Marglin, “Origens e funções do parcelamento das tarefas (para que servem os
patrões?)”, em Crítica da divisão do trabalho. São Paulo: Martins Fontes, ig8o.
97 R. Banham, Teoria e projeto na primeira era da máquina. São Paulo: Perspectiva, pp. 511-512.
cado em ossatura, substituindo o ferro, sofreu as deformações (ou a especiali­
zação condizente com sua “rentabilidade” em larga escala). Nos desenhos, o
reticulado ortogonal seleciona suas formas e compõe o espaço como a priori
sem data. De tempo em tempo abre brecha para alguma variação. Mas nem
por isso desvia seu espraiamento irresistível por vários setores. Por sua ubi-
qüidade e transubstancialidade, sutilmente, arma um modo de regulação
interno e recíproco que, com seus ares de coisa imanente ao lugar em que se
aloja, aluga ao que é comandado farda de comandante. Qualquer tentativa de
rompimento em algum dos setores constitui sedição, perturbação da ordem
geral — e a reação dos outros logo abafa o desgarre, desenlouquece o trânsfuga.
Os dramas qualificados como heróicos da arquitetura e da técnica construtiva
moderna não contam revolta ou subversão — mas ajustamentos do sistema a si
mesmo, isto é, aperfeiçoamento da violência.
Se fosse o caso de encontrar um índice para o que somente roçamos, pro­
poríamos a rigidificação da ossatura em concreto armado por triangulação
— esse resto de um enfoque bidimensional, aspirado pelo plano da representa­
ção, estas barras em X que a má consciência dos projetistas, reconhecendo a
marca tradicional do erro, mascara sob o revestimento. Mas os revestimentos,
cedo ou tarde, racham.
A crítica da técnica e de sua objetividade de casca, entretanto, não é o
nosso tema. Voltemos uma outra vez à realidade de papel do desenhista.
Resumimos a razão de seu posto: a divisão da produção em componentes
antagônicos, resultado de sua gravitação em volta da mais-valia e não de
alguma a-histórica necessidade, abre um corte que pede o curativo traiçoeiro
do projeto, do partido, do desenho para que a produção seja ainda viável.
O posto do desenhista, portanto, fica fora da produção imediata, lá de onde
remete o complemento da divisão, complemento que pode também querer
dizer “o que falta para”.
(Nota, aproveitando a deixa: há polissemia do tipo indicado por O. Mannoni9®
nas palavras-chave da arquitetura: ao lado dos deslocamentos da cúmplice poe­
sia em moda, outros, menos exaltantes, as envolvem em sombra. “Projeto” pode
ser o sartriano se aceitarmos a acepção dos puros; é, também, ao mesmo tempo,
o que se joga com força, lança lá adiante para os outros: as épuras que ordenam,
imagem arremessada, projétil burguês na luta de classes cotidiana; “desenho”
é, como já foi observado, desígnio, intento, ordem (de serviço), prescrição — e
designar é nomear, pôr em código, dar nome, dedo em riste; “partido” é o que
deixou o lugar da produção, do verbo partir, ir-se embora, depois de parti-la,98

98 Ver “A elipse e a barra”, em Chaves para 0 imaginário. Petrópolis: Vozes, 1973.


dividi-la em partes, e se constitui em partido, facção, lado, para tirar partido,
ganho, a partir da produção assim partida. Os sintomas são lamentavelmente
incertos para os que os veem como saúde e virtude.)
Que não se diga que as informações que voltam do canteiro são integradas
numa síntese dinâmica qualquer de conhecimentos adaptados pouco a pouco
às relações homem-matéria e que, enquanto tal, adubam a cabeça do proje­
tista. Nada a ver, insistimos, com a assimilação de Piaget. Porque só voltam
desastres oufaits-divers. Às correções que os desastres não raros forçam sao
o reconhecimento de que o absurdo ultrapassou os limites, que a elasticidade
do trabalho e da matéria deformados não resistiu às violações exageradas — e
/
nada mais. E interessante notar que os desastres da matéria (desabamentos,
inclinações, fissuras, infiltrações etc.) sao mais freqüentemente assinalados
por correções que os do trabalho. Lembramos, porém: os acidentes de todo
tipo e que decorrem em grande parte do projeto, bem como as doenças pro­
fissionais, cujas principais têm por causa o cimento do concreto e os vapores
tóxicos da pintura de revestimento, dão à construção o título de área mais
perigosa da produção. Que se verifique se um só traço do projeto é mudado

Osfails-divers são amontoados como receitas: não colocar azulejos com


água de cal; rebaixar o emboço no encontro de dois materiais; deixar no con­
creto furos para os condutores; usar argamassa espessa e fraca na última fieira
de tijolos antes da laje. Na sua descontinuidade minúscula não chegam nem a
caricatura de saber constituído — além de serem, muitas vezes, falsas.
Assim, entre os bordos do absurdo, além do qual todo avanço traz desastres,
e uma espécie de caroço de receitas heteróclitas, sobra um intervalo enchido
de irresponsabilidade jamais julgada — e de desenho que nenhum pudor
impede de se atribuir mistérios de Kunstwollen. Por isso, quando falamos dos
bordos do absurdo, não nos referíamos ao absurdo como situado além desses
bordos — mas aquém. Além, é seu desmascaramento que irrompe na forma
do desastre.
Em face do papel, mediado por instrumentos capazes unicamente de emi­
tir instruções precisas, o projetista exibe um comportamento que é como que
ilustração do pintor do Retrato Oval de Poe — se no modelo a esposa-amante
Arte estivesse misturada. De um lado, um homem só, de outro, o suporte que
registra e reage; de um lado, veleidades de propor forma, de outro, a resistên­
cia da matéria. Mas que inversão, apesar das aparências. A leitura rápida da
caracterização que Adorno faz do artista:

O artista que traz em si a obra de arte não é o indivíduo que em cada caso
a produz: por seu trabalho, por sua passiva atividade, o artista se faz lugar-
tenente do sujeito social e total; submetendo-se à necessidade da obra de
arte, o artista elimina dela tudo o que pudesse dever pura e simplesmente à
acidentalidade de sua individuação."

Pode parecer conveniente para dar o contorno do projetista funcionário da


exploração. Mas a necessidade a que se submete não é a da obra de arte: é a
da porta estreita que leva à produtividade acelerada. O desenho que resiste
não resiste em nome próprio, mas obedecendo os caminhos da produção que
dirige. Tristemente, a ilustração é embuste.
A representação homogênea e sistemática generaliza, com o poder da
mediação que assume sub-repticiamente o controle dos pólos aos quais
deveria servir. Num deles, os mesmos parâmetros nas equações do comando,
gerando hábitos que se consolidam mais e mais, e, no outro, a resposta quase
automatizada. 0 código reduzido, aplicado continuamente e com exclusivi­
dade, dissolve e engole o que veicula. Correlativamente, as ordens recebidas
sempre na sua tradução regular e acanhada eliminam as oportunidades de
variação significativa na resposta. O comando uniforme acelera o gesto — mas
corta o que não consegue prever. Em cima, a inércia do sistema de represen­
tação freia os esforços para a reatualização do campo simbólico, sem o que
a arte não vive. Embaixo, os movimentos padronizados quase desconhecem
a matéria, previamente contrariada até colar-se a eles. As conseqüências são
centrífugas — mas amarradas à circunscrição da força centrípeta resultante da
consideração invariante e eversiva, única e dessecante da mais-valia.
A prática coesa da construção autodeterminada, espicaçada em especializa-

só auricídia, para a mediação exterior tornada núcleo. O que, por um relaxa­


mento um pouco suspeito chamamos ainda técnica e estética, de cuja igual­
dade fizemos uma diferença rígida,99 100 distanciadas do fazer do qual não são
senão desdobramentos, se perdem por não serem compatíveis com outro sus­
tento.101 E só se reencontram, mas já deturpadas pela segregação, no mundo
da representação: é na projeção, isto é, fora do que ainda podem pretender
de tolhida racionalidade própria, que se superpõem pelo efeito da tradução
redutora. Mas a operação não é inócua, pois esses poucos recursos da tradução
têm o mérito de trazer o que lhes falta: sistema fechado, ilusória totalidade

99 T.W. Adorno, Notas de literatura. Barcelona: Ariel, 1962, p. 134.


100 Ver M. Heidegger, “A questão da técnica” em Cadernos de Tradução, n.2. São Paulo: DF/
USP, 1997, pp.87-91.
xoi Ver P. Francastel, Art et technique. Paris: Denoel, 1972, pp. 154-220 em particular.
que ofusca as separações que o capital interna no canteiro, espalha coerência
artificial, figura de organicidade imaginária, sobre o que é transposto na sua
reticula. De requisito do aprimoramento do processo de valorização do capital,
a representação que dá exatidão ao comando e permite presteza de execução
transborda o campo de sua causa e cumpre mais outras missões.
Mediação entre o pensar e o fazer separados, tinge os pólos que liga com
sua própria constituição. Estética e medida (“proporção”), técnica e regulari­
dade, fabricação perfeita e desaparecimento da mão sob o traçado reproduzido
maniacamente são coisas em fusão lá na tela da projeção mongiana.
Vejamos algumas definições do arquiteturólogo Boudon:

As definições relativas ao espaço arquitetural se precisam, pois, aqui num


sistema epistemológico da arquitetura. Esse espaço é definido como o
conjunto do espaço verdadeiro dos edifícios e do espaço mental do arquiteto
(ou de qualquer outra pessoa) projetando no espaço verdadeiro. Essa projeção
se efetua por uma dialética concepção-percepção: do mesmo modo que a
concepção do espaço arquitetural faz intervir a percepção, a percepção desse
espaço arquitetural não pode não fazer intervir a concepção. Perceber o
espaço arquitetural dos edifícios é o perceber como tendo-sido-concebido.
Eu não posso apreciar o espaço arquitetural de um edifício sem referência
à concepção que a precedeu. Entre os dois espaços — espaço verdadeiro dos
edifícios e espaço mental dos arquitetos — se efetua uma passagem cujas
regras, a elucidar, são as de uma escala. Entendemos por esse termo o
relacionamento das medidas de um espaço com as medidas de um outro
espaço, e por proporção o relacionamento das medidas de um espaço com
outras medidas desse mesmo espaço.102

Curioso como os ideólogos da arquitetura dominante passam junto e bolem


as questões primeiras sem as (querer) ver. A “escala” é apresentada como
“conceito fundamental de uma arquiteturologia”.103 Os termos gerais das
definições citadas não nos devem iludir. Por arquiteto há que compreender o
projetista completamente separado da produção: é o que o contexto do livro
demonstra. Não fosse assim, cairíamos na banalidade da afirmação segundo
a qual toda obra humana carrega traços de projeto, de previsão, ao contrário
da abelha de Marx. Por isso, a mediação nesse caso insubstituível, o desenho

102 P. Boudon, “Sux l’espace architectural”, em Essai d’epistemologie de Varchitecture. Paris:


Dunod, 1971, pp. 59-60.
171 105 Título do cap. 6, op. cit., pp. 51-67.
que “põe em relação as medidas de um espaço com as medidas de um outro
espaço”, metamorfoseado em escala, constitui o fundamento. A circularidade
não parece incomodar: de uma relação histórica e determinada por um modo
de produção, sai um “conceito abstrato”. E, maravilha, tal conceito dá conta
do produto da relação de produção particular. Mas, como agora está coberto
por um “conceito abstrato”, para a “epistemologia” arquitetônica ganha asas
a-históricas.
A figura da projeção percorre o texto de Boudon: o espaço mental é proje­
tado no verdadeiro e inversamente (sendo que o verdadeiro é o da apreciação,
não o da produção e do uso, convenientemente omitidos). Na projeção, passa só
luz do projetor ao campo iluminado. O que a tela não deve receber fica no apa­
relho — ou antes, dada a natureza do filme. Entre os dois, recua o peso próprio
da sala em sombra que garante a passagem. Mas, apesar do recuo, assombra o
conjunto com o efeito de sua presença evasiva (dando desenho ao cone lumi­
noso, por exemplo) — o que esquecemos no nosso conforto hipnotizado. Nem
por isso, entretanto, é forçoso entrar em conivência com a magia e aceitar que
esse agente — aqui, com nome de guerra “escala” — fique secreto: sujeita gra­
vemente o que coordena no interior de suas condições. Mais que luz, é sombra
que a projeção contém. Se for feito pé firme no nome de guerra dissimulador,
porém, que ele seja adotado ao pé da letra: “linha graduada, dividida em par­
tes iguais, que indica a relação das dimensões ou distâncias marcadas sobre um
plano com as dimensões ou distâncias (reais)” (sentido cuja formulação quase
coincidente com a de Boudon não acolhe os mistérios estéticos da arquiteturo-
logia e despe a escala de outras pretensões); “tabela de serviço”; “hierarquia”.
E, lembrando ainda que fazer escala é “entrar em (porto) situado entre o de
partida e o de destino”; que escalar é “assaltar”, “saquear”, “designar (pes­
soas) para serviços em horas ou lugares diferentes”, “golpear”.
E mais, não marginalizamos o seguinte: a palavra “escala”, em música, só
é aplicada com pertinência quando a referência é a gama temperada criada
por Werckmeister, com seus intervalos iguais. Elaborada no fim do século XVII
(data um pouco adiantada se comparada à da exaltação da representação em
arquitetura, mas, mesmo assim, data), não entra em popularidade senão na
segunda metade do século XVIII. Bach ainda a emprega (Cravo bem temperado)
ao lado da gama pitagórica (Suítes para violino só). Mas basta um século e meio
de escala temperada para marcar, até seu centro, a música ocidental e fazê-la
adotar postura de princípio universal. Se olharmos para a história anterior, as
correspondências continuam. A noção de gama, entre nós, aparece no século XI,
com Guy d’Arezzo. Institui um sistema de notação e de codificação dos inter­
valos musicais da gama diatónica maior no mesmo momento em que começa
172 a se diferenciar nos canteiros o arquiteto, cujo título permanece maitre-maçon,
e surge, sob formas particulares, seu instrumento, o desenho. Mais tarde, os
esforços de Gioseffo Zarlino, no século XVI, para juntar a gama de Pitágoras
com a de Axistoxenes, ecoam em Palladio, por exemplo, que ousa proporcionar
alguns volumes acompanhando acordes até então proibidos. Se sua atitude
reflete os começos da matematização e da infinitização do espaço plástico,
guarda, porém, os seccionamentos das ordens.104 Como na física: a matemática
reina como escritura, mas as figuras geométricas clássicas ainda cortam o uni­
verso com suas leis particulares.105 Entretanto, voltando ao que nos interessa,
a definitiva homogeneização e mensurabilização do espaço é condição indis­
pensável para a total desapropriação do canteiro de toda e qualquer autonomia.
Ora, um tal espaço — e nenhum outro — merece ser chamado “espaço da escala
temperada”, da representação projetiva ortogonal regular mensurável e radica­
lizada. Espaço de um tempo, esse que acolhe sem atritos a escala.
Mas, de qualquer modo, Boudon tem razão sem ter. A escala entendida
como mediação entre “o espaço mental” e “o espaço verdadeiro”, se nada
mais é que o sistema de representação rebatizado, é elemento chave para o
estudo da arquitetura de hoje. Sem a pretensão a sangue azul, entretanto. De
fato, em nenhum outro caso se manifesta tanto como nos que Boudon aponta
sua ausência. Como na coluna de Adolf Loos. E que lá aparece em vulgar
escancaramento: a presença do desenho — da escala — e do partido (outro con­
ceito nuclear para Boudon) salta de tal modo, afirmando-se como “único fator
autônomo”, que sua verdade arrisca desnudamento.
No pólo do projetista, a concepção não se transforma suficientemente
para poder vir a ser real. Trancada no curto intervalo que vai do conceber à
barreira da representação, fica abstrata, não se perde em determinações con­
cretas, único movimento que lhe daria abertura.106 De certo modo, só no nível
do desenho que precede o desenho para execução tem movimento e realidade.
Sem ironia, não é senão como desenho, no domínio da pintura (ou da escul­
tura, se houver maquete), que pode a arquitetura ser tomada a sério. No pólo
oposto, o desenho (aí exclusivamente desenho para execução) aterra sobre
o canteiro e permanece idêntico a si mesmo durante todo o movimento da
produção, envolve seu corpo de matéria como que sem o tocar. Forma, não se
dilui na sua substância: a paralisia que a separação do pensar e do fazer obriga

104 Ver Palladio, Thefour books of architecture. Nova York: Dover, 1965.
105 Ver G. Galilei, Sensate espenenze e certe dimostrazioni, Antologia a cura di F. Brunetti
e L. Geymonat. Bari: Laterza, 1971: “[...] o universo [...] é escrito em linguagem mate­
mática, e os caracteres são triângulos, círculos e outras figuras geométricas”, p. 248.
106 Ver A. Ehrenzweig, A ordem oculta da arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
ao desenho da obra — paralisia que é mais uma face do despotismo — impede
qualquer metabolismo. No produto, o desenho continua em si, opaco e obtuso.
O desenho é o que é em função da separação entre meios e força de tra­
balho, separação que gera juntos desenho e projetista, agentes seus. Filhos
do mesmo ventre, guardam laços de origem. A existência de um é o aval do
outro. Se o pensar separado pressupõe o desenho que comanda, o desenho,
como é, pressupõe o pensar separado. No produto, a separação é contada pelo
desenho. Porque os laços de origem que guardam do ventre da separação per­
duram nas cicatrizes que ambos carregam. Cheguemos um pouco mais perto
dos vestígios da separação no desenho, folgado no corpo que reveste como
roupa de empréstimo, emparedado pela tarefa que lhe coube.

O DESENHO SEPARADO

Vimos (esquematicamente, em tentativa, várias vezes enleada, para propor


algumas hipóteses de trabalho) o seguinte:
í. O desenho de representação do objeto a construir, ordem de serviço,
não é coisa de todos os tempos. Está preso, por essência, ao modo de produ­
ção capitalista. Sua constituição, seus pressupostos, sua extensão são deter­
minados pelas injunções desse sistema. Em outras ocasiões (cursos, seminá­
rios) tentamos mostrar que as etapas de sua história evoluem subordinadas
à história das relações de produção capitalistas — e, especificamente, no
canteiro. Inexiste (como o conhecemos) antes do século XI; sofre
fundamentais nos séculos XVI e XIX; não há motivo para supormos que con­
tinue (ou que continue o mesmo) quando essa relações forem superadas (ah,
embutida teima!).
2. O desenho ocupa, a partir do século XIX, uma função central, a de media­

dor generalizado na construção — função acentuada nos nossos dias. E, dessa


posição, alastra a trama que lhe é insuflada pelas características da divisão
do trabalho nessa manufatura por tudo o que nele se apóia; concepção, pro­
dução, produto, técnica... Seu poder de constante velada, entretanto, vai além.
Por dentro, conforma normas e critérios a distância. Muito há a dizer sobre
o uso, a circulação, a percepção dos espaços que ordena. Nada diremos, por
enquanto. Mas juntemos um só exemplo, simplesmente anotado aqui, da
força de seu canto desafinado — menos açucarado que o das sereias, capaz,
entretanto, de burlar mesmo os desconfiados.
Na área das noções muito estimadas pelos arquitetos, os quais as incluem
no que denominam, com culposa ingenuidade e enjoativo ufanismo, “imagi­
nário” arquitetônico, encontramos as de equilíbrio e harmonia. Equilíbrio e
174 harmonia de massas, volumes, texturas, cores, tensões: a todos os componen-
tes da plástica propõem a atribuição de seu retesamento, de sua imobilidade
congênita. Arnheim assim define o equilíbrio:

Numa composição equilibrada, todos os fatores de forma, de direção, de


localização etc. determinam-se mutuamente, de modo que nenhuma
mudança parece possível e que o conjunto assume o caráter de “necessidade”
de todas as suas partes. Uma composição desequilibrada tem um aspecto
acidental, transitório...107

Estranha noção, essa de equilíbrio. Aparentemente ameaçada e instável, como


se fosse suspeitada sua manha e fraca base, triângulo torto pesando em vér­
tice. Joga com fantasia de trinca: compõe-se de partes disjuntas, cuja coexis­
tência apertada deságua em “necessidade”, a qual, em giro acrobático, volta e
cobre as partes, por sua intervenção empelicadas, no ato, de traiçoeira “neces­
sidade”. Fácil ver a que finalidade serve. “Nenhuma mudança parece possí­
vel” — ou seja, vizinhança de morte. No desenho dito equilibrado, todo rastro
de vida é apagado, em amarga repetição do revestimento. Mais, “o conjunto
assume o caráter de necessidade”: o que é resultado de violência, da esgarça-
dura do construtor em projetista e executante, vira conseqüência indesviável
de ser. O desequilíbrio (que só é ameaça para o equilíbrio dessa violência
mortal, obviamente instável) recordaria o movimento capado e a transitorie-
j

dade do modo de produção. E o que denuncia Adorno ao falar de harmonia,


no comentário de M. Jimenez:

A regressão à harmonia no sentido tradicional e à ideologia do fechado


constitui o pecado original da obra de arte, ao qual ela não escapa jamais
totalmente, mas contra o qual ela tem o dever de constantemente lutar: a
negação determinada se torna assim a marca da autenticidade. A ideologia
do fechado, presente no classicismo, pretende, à semelhança da sociedade
unidimensional da qual ela é, por assim dizer, uma emanação, integrar no
interior de uma totalidade opressiva e harmoniosa os elementos rebeldes.108

Mesmo se recusamos, nas condições atuais, chamar de arte a obra “dos”


arquitetos, ainda então o equilíbrio e a harmonia convergem para oprimir.
A totalidade que congelam oprime de diversas maneiras. Resistindo a toda

107 R. Arnheim, “Aspects perceptuels et esthétiques de la réponse-mouvement”, em Vers


une psychologie de Vart Paris: Seghers, 1973, p. 86.
108 M. Jimenez, Adorno: art, idéologie et théorie de Vart. Paris: UGE, 1973, p. 295.
mudança, às promessas da negação determinada, freando a história que
quer fechar. Ou oferecendo ao canteiro sua imagem atemporal que oculta a
sucessão das horas abstratas, das equipes, o tempo roubado que a fixa — e sua
“necessidade” que corta pela raiz os movimentos transformadores eventual­
mente esboçados pelos produtores imediatos, ao desautorizar implicitamente
sua “acidental” participação, sempre inquietante. De fato, o que posa de
necessário faz cara amarrada de lei que não admite exceções ou derivações.
Harmonia, diz-se também, que deve reinar entre o capital e o trabalho. Entre,
no meio, adiando o combate. Nos dois empregos, esconde a luta de classes
para que mais os senhores dominem.
A evolução provável do proj etista e do executante separados passa pela sua
negação, negação que será gênese de uma nova manifestação do construtor em
unidade superior (e não em regressão à figura mítica do artesão, unidade ainda
abstrata do fazer e do pensar). Impossível sua apreensão antecipada: só no formar-
se proporá o que será. Mas sua emergência pressentida induz os que com ela per­
derão privilégios à reação — que se acentua com a aproximação da emergência.
No século xix, a obra banal não rejeita sua incorporação pelo padrão
urbano, respeita as convenções globalizantes editadas sob Napoleão III, por
exemplo.109 O cenário do pretenso equilíbrio harmônico tem a extensão sim­
ples da cidade. Com a arquitetura moderna, entretanto, cada obra, banal ou
não, procura gritar sua estratificada separação.
A heteronomia do canteiro é sintomaticamente eclipsada pela forma auto-
suficiente que o desenho da obra persegue. Auto-suficiência que, em resumo,
não é mais que o inchamerito simplório das regras gestálticas da “boa” forma:
simplicidade, clareza, proximidade e semelhança.110 Tais regras têm modos
variados de manifestação: estão presentes nos volumes nus de Mies van der
Rohe ou Gropius; nas combinações modulares do hospital de Veneza de Le
Corbusier ou dos conjuntos do Ateliê 5; nos contrastes binários de Niemeyer
(pc francês, Olivetti); no esquematismo funcional de L. Kahn; no tecnicismo
barroco de K. Tange; no grafismo espacializado de Archigram etc. Uma
regra qualquer da gramática da representação (o “partido” em sentido mais
amplo), sublinhada, comanda a percepção e oferece princípio de equilíbrio e
harmonia. Pouco conta a escolha por si mesma: conta a diferenciação. Como
acontece com as gírias das gangues, cuja meta é distinguir os que estão fora
— fazendo-se, por isso mesmo, semelhantes a todas as outras. Sua coesão for­
mal depende do ilhamento: outra vez, a separação sobredetermina. Haveria

log Ver S.A. Kurtz, “Eclectic Classicism”, em Progressive Architecture, n. 7, 1970, p. 94.
110 Ver R. Arnheim, Arte e percepção visual. São Paulo: Pioneira, 1980.
escape para gozação nesse ponto, não fosse a dor que ronda embaixo sufocada.
Porque o retraimento em autocolimação que os arquitetos imaginam para a
obra, penoso como ginástica em barra, tenso contra o estreitamento dos lábios
de seu vão, descamba logo em miserável homogeneidade não tencionada. A
pseudo-individualização, a tara do caracol, refinada no desenho, é denunciada
instantaneamente. E pelo próprio desenho — que pode ser tudo, menos deixar
de ser desenho de representação: teatro, ausência do que mostra.
Ora, essa ênfase toda, esse enroladinho desandado ficam ainda mais esqui­
sitos se considerarmos que tal efeito epidérmico, mesmo sem a redundância
maníaca, é resultado inevitável: a construção hoje; enfiada em negócios
picados, não tem como não andar aos saltos. Entretanto, o isolamento acar­
retado (que, por outro lado, as leis do ego valorizado pelo sistema obrigam à
percepção) ganha novo impulso, requalificado por um formalismo exacerbado.
A crise pressentida provoca uma reação, próxima da mancha fóbica, em que
a reiteração dos mecanismos defensivos tenta desesperadamente esquivar
sua evidência crescente. Mais, e continuando a acusar a instabilidade da har­
monia sobreposta, o isolamento (que não é distinção) é outra vez bisado, em
geral, por uma margeação da forma que podemos associar à ação dos bordos
em pintura, cesura e suporte da regra. Façamos mais uma volta.
O suporte, o campo tal como é definido por um contorno, tem sido pouco
examinado pelas teorias da pintura. O que é? O plano limitado dentro do
qual situamos o fato plástico. Sua função primeira é separar o que transmite,
o que contém, do resto, recurso de comunicação que corta interferências
do ambiente.111 Mas que corta também o que é comunicado daquilo que o
envolve — o que abre espaço para muita peripécia. Exemplo: um anúncio
qualquer, através dos efeitos do seu campo, empurra para além dele o que
possa conturbar sua mensagem. Clareza didática, supressão de ruídos — e, ao
mesmo tempo, fermento: o elemento isolado cresce, centra a atenção, chama
com eloquência maior.112 Sutil modo de valorização, age como se não agisse,
dissolvido na enganosa atonia do retângulo comum ou de outra configuração
qualquer. Além disso, induz estruturas e forças, secretamente, sem deixar
patente sua regulação. O campo, na comunicação visual, é negação ativa

in Ver M. Schapiro. “Champ et véhicule dans les signes iconiques” em Critique n. 315-316,
pp. 843-866.
112 Efeitos de centraçao estudados por J. Piaget; ver “O desenvolvimento da percepção em
função da idade”, em Tratado de psicologia experimental: 6—A percepção. Rio de Janeiro:
Forense, 1969: “...os elementos escolhidos ou encontrados [pelo olharj seriam superestimados
em relação àqueles que não são”, p. 7.
— mas furtivamente ativa, como se não houvesse paradoxo, imperceptível. Joga
forte, orientando a distribuição das formas no seu interior, mas sem quase
se fazer notar. Ora seus estímulos reanimam os da composição, como na Dis­
puta do Santo Sacramento de Rafael (Vaticano); ora os contrariam sugerindo
desconforto, como no Retábulo de Issenheim de Grünewald (Colmar). Sua
sensibilidade especial, em grande parte devida à inconsciência com que é
manipulado, descreve em detalhes as vascilações de nossas posições históricas
fundamentais — e estas posições. Aparentemente, um dado, é capaz de todas as
modulações e astúcias. Referência calada, determina subterraneamente.

[O campo] constitui um continente dentro do qual há uma maior


independência do espaço circundante. A moldura de um quadro cria um
t
continente deste tipo. E um cerco que, em certa medida, protege o jogo das
forças da imagem da influência entorpecedora do ambiente.113

Em síntese, esse branco ordenador, cujos efeitos são equivalentes aos da mol­
dura e das margens, implanta sob o que é figurado uma base que lhe garante,
indiferente ao que seja, algumas vantagens:
í. isolamento (formal, com repercussão favorecida pela centração);
2. disciplina (dada pela trama das estruturas induzidas que importam refle­
xos, ilusórios mas convenientes, segundo o caso, de “necessidade” — de le:
— a realçar ou transgredir);
3. penetração (através da fenda aberta em nossos critérios corriqueiros de jul­
gamento).
O vazio do fundo, quebrando o contato da imagem com o que a rodeia,
consegue que mesmo o absurdo, se proposto, nos persuada. Afirma: não é real.
é representação. Suspende, por não virem ao caso, as resistências do hábito.
Os anjos voam em pintura “naturalmente”, para o desconsolo de Courbert.
Mas, atenção, a suspensão é só da resistência: assim não há mais por que não
ouvir o apelo plástico, sob o abraço descontraído de suas evocações. Um cartaz
a star romanceia com o sabonete; como nos abrimos, entram e se instalam.
Desviado o olhar, continuam dentro — sem ter passado por nenhuma alfân­
dega. De certo modo, a cena enquadrada jamais alucina, pois a pirueta de suz
penetração vem de nunca se confundir com o real. Mesmo quando se trata de
trompe-Voeih nos atrai justo no momento em que nos damos conta que nos
engana. Nesse ângulo, a anamorfose parece inversa: diz a verdade quando nos
ilude. Só que a ilusão é tão evanescente quanto a verdade.

113 R. Arnheim, Arte e percepção visual, op. cit, p. 4.


Ora, o poder dos bordos foi sempre utilizado em arquitetura: das colunas
gordas laterais dos templos gregos às teorias da modenatura; do encorbelle-
rnerU românico ao edifício da Pirelli de Milão. Mas, assim como na pintura
burguesa de cavalete a moldura rebuscada em ouro rediz o que já é dito pela
conformação das margens (o rompimento de relações — diplomáticas, exclusi­
vamente — entre interior e exterior, entre o individual e o social), assim tam­
bém o desenho de arquitetura burguês busca, vincando suas arestas, reforçar
seu isolamento periclitante. As maneiras de o fazer são sem número: diferen­
ciação do aparelho, colunas engajadas, espessamento das empenas, espaça­
mento relativo maior das aberturas, mudança de cor ou material etc. Em cada
plano de projeção promovido a plano arquitetural, uma espécie qualquer de
margeação repete o engodo, enquadramento encarregado de nos convencer
de que a obra é independente. As conseqüências são semelhantes às obtidas
em pintura — mas vão além. A separação grifada, livTe de sua absorção pelo
reconhecimento temático, comum em pintura, dá à regra de organização da
forma poder, estabilidade e credibilidade superiores. Claramente formal, não
disputada ou desviada por nenhuma outra solicitação, avessa a questiona­
mento e movimento, sobe fraudulosamente à categoria das necessidades, feto
/

de significante. E chão do que chamamos harmonia: identidade a si mesma


da regra monotonamente redita, seu passeio indiferente pela matéria, nossa
roupa folgada. Sua teimosia vira demonstração do que repete (o isolamento).
E incha com a suspeita crescente de que a violência é o fundo do desenho:
nunca como agora os bordos foram cantados com tanta exaltação. A poética
dos cantos, em moda, é a poética da reação — se é que a reação suporta poe­
sia. Mas essa mania é reacionária ainda em outros serviços e que poderíamos
esquematizar da seguinte maneira:
No fluxo (que a exploração faz brotar inexaurivelmente) de horas (mortas,
apagadas da vida que apagam) extraídas do trabalhador (como numa hemor­
ragia sem escalas), há que pôr, arbitrariamente, escalas (fora de onde têm
origem, é óbvio). No contínuo de seu fluir, vazios. Porque, mesmo se o obje­
tivo é aumentar o fluxo, antes tem de ter alquimia: realização da mercadoria
(realização; adotar a forma do equivalente universal). Um pacote de horas
contra o ouro que lhes dá peso, lastro. Mas a troca não pode ser tão descarada.
Um pacote é casa, outro canhão. (Uso é fácil produzir.) E quem paga com as
horas engolfadas no ouro recebe o peso da casa, o lastro do canhão. Tudo certo.
Menos o saber em que ponto termina a casa e começa a cadeira — quais as
fronteiras de cada coisa. Lembremos: para que o fluxo jorre com boa vazão, a
produção tem de ficar para cá e o consumo para lá (apesar de a produção ser
consumidora e o consumo, produtivo; tanto pior se o divórcio homologado
não chegar à cama). E os pacotes, portanto, têm de ser embrulhados e expe-
didos. (O excesso de nossas embalagens assinala a fragilidade da decisão que
precisa a quantidade de horas que compõem um pacote.) A produção poderia
ser (e é) ininterrupta. “Acabado” o prédio, prossegue, intitulada então lim­
peza, conserto, restauro, decoração, reforma... e até o bulldozer que o derruba
é passo para sua renovação. 0 novo prédio é o anterior — ou melhor, nem
um e nem o outro merecem o artigo definido. Correlativamente, o canteiro
consome cimento em piso antes que o piso pisado seja consumido. Não exa­
geremos: digamos que a produção anda em senóides (e aos saltos, vimos) — e
que, por vezes, o valor de uso é um pouquinho menos aleatório. Entretanto,
não importa como, não há meio de contornar a transubstanciação da hora em
ouro e do ouro em hora. (O cálculo econômico de Bettelheim ou outros tipos
de cálculo estão por nascer.) Com a fragmentação do trabalho, em particular
do manufatureiro, nenhum trabalhador isolado atinge mais a mercadoria (ver
citação de Marx no início): precisa de outros para empilhar coletivamente o
tempo arbitrado. Não atinge quer dizer também: não escolhe seu término, seu
fim, além de sua finalidade. Daí o outro serviço cumprido pelos arquitetos: o
corte que juntam à costura do trabalho separado. Alinhavam: somam super­
fícies, cubos, massas. Talham: emolduram, harmonizam, equilibram. Por
exemplo: a) um conjunto bem encaixadinho de paralelepípedos formando
um paralelepípedo maior (o bloco principal), um volume irregular (auditó­
rio), talvez um tubo (escadas): o alinhavo; b) duas empenas cegas, duas lajes
(superior e inferior) mais avançadas, uma fachada em pano-de-vidro, outra
em brise-soleil, pilotis para que a moldura não se perca no solo, gravitação
mimada pelo volume e pelo tubo em torno do bloco principal (“equilíbrio
dinâmico”): o talho. Poderíamos ter descrito o Ministério da Educação (Rio
de Janeiro) se esmerássemos a separação com uma maqueta de Lipchitz e
conchas e cavalos-marinhos em azul e branco, azul e branco, azul e branco...
Contra a transgressão, o movimento, a transformação permanentes, contra o
medo da noite, do informe, da revolução, a paralisia aspirada pela burguesia
encontra prosélitos nas molduras, nas margens — na harmonia e no equilí­
brio assegurados por sua discreta colaboração. Beiras: fora espera o abismo do
Outro — e dos outros que ressuscitarão.
Em resumo, a harmonia e o equilíbrio, em colusão com a ranhura tirânica
do emoldar, oprimem porque separam:
í. o trabalhador de seu trabalho e de seu produto (transpor, adaptando, nos­
sas observações sobre o volume);
2. o produto da produção (figurando seu inverso: a-temporalidade vs. suces­
são, totalidade vs. seccionamento, necessidade vs. violência);
3. o produto de outro produto (cortando o fluxo das horas apropriadas na pro­
dução, 1? ato);
4- e confundem todos os produtos (manifestando o desenho, isto é, a separa­
ção no papel de mediação, 2? ato).
A harmonia e o equilíbrio oprimem em função do princípio mesmo que os
anima — o princípio geral da opressão: a separação, sua fonte e sua fraqueza.
O desenho, com suas categorias atuais, é filho da separação. Se a produção é
separada, 0 desenho, para impor-se como norma (regra e medida) de coagu­
lação do trabalho dividido no produto que é mercadoria, não pode perder-se
no movimento da produção. Para rejuntar o trabalho dividido, faz-se direção
despótica — e, portanto, separada. Separado, o desenho vai buscar força para
convencer em si mesmo. Daí ser desenho só, em si. Na ausência de necessi­
dade efetivamente real que resultaria de sua dispersão transformadora no
movimento da produção, procura envolver-se de “necessidades” abstratas
— harmonia, equilíbrio, margeação... Mas tais recursos têm como corolário o
aprofundamento da separação. O desenho separado da produção, ao hiposta-
siar sua intervenção autoritária, se exibe como desenho da separação. Inclui a
separação, agora sua essência — seu conceito. Filho, absorve sua origem. E, no
seu isolamento desesperado, só lhe resta a separação como coisa a edificar, isto
é, exaltar. O verbo desenhar aumenta sua tendência intransitiva; mediação
por onde transitam ordens, só a si mesmo prefere dar passagem, numa pers-
trição que endurece sua perseidade. E é quando cai sob o domínio absoluto,
imobilizante daquilo a que serve ao servir para a divisão do trabalho: 0 valor.
Somos, então, obrigados a reconhecer que a forma de “tipo-zero”, essas for­
mas desprovidas de significação por si mesmas, é uma das corporificações da
forma valor.

EPIFANIA

Porque há mais: há visagem de isomorfismo (nem estrutural, nem funcional)


entre a resultante e sua causa. Isomorfismo que devemos acolher como pene­
tra inevitável, se abrirmos agora espaço para a consideração de outras sobre-
determinaçoes que conformam esse desenho que é o nosso tema.114 Desenvol­
vamos um pouco.
No desenho do espaço autoritariamente homogeneizado, em que o poder
do capital fez, de certo modo, “do meio, a mensagem”, vimos que as mais
extravagantes disposições recebem nobres nomes: traçados harmônicos, pro­
porção, modulação, modenatura, ritmo, equilíbrio, escala... Que sejam nomes

114 Ver I Laplanche e I B. Pontalis, Vocabulário de psicanálise. São Paulo: Martins Fontes,
1970.
antigos de batismo de achados duvidosos em templos ou palácios, não legi­
tima seu uso novo — mas põe sombra no uso antigo que a pátina do tempo
talvez tenha dourado demais.115 116No desenho — e, portanto, na obra que dirige
—, uma espécie abastarda de homeomorfose estica ou encolhe as dimensões
convenientes das coisas buscando acordos deslocados: a trave de uma porta vai
procurar o plano horizontal da base de uma janela distante de mais de 10 m;
um cilindro, não se sabe porque envoltório de um sanitário, assume o papel de
cheio que vem do buraco de uma escada; dois planos laterais, empenas, conti­
nuam além do paralelepípedo em que, por um a priori, a casa fica contida, até
a vertical que dá fim ao beiral; os blocos de um conjunto se perfilam em para­
lelismos ou desfilam em variações de 30o, 45o ou 60o... (a enumeração dos
tiques, cacofonias, redundâncias, ecos-plásticos, nomes que quadram melhor
que os nobres, é desnecessária e nauseante. Basta olhar em volta e ver.)llfi
Ritmos primários (do tipo V2, cheio/vazio, +/-), simetrias candidatas a refi­
nado dinamismo, eixos, banais jogos de espelho, inundação de ângulos retos,
alinhamentos kleinianos: eis a sintaxe dominante. (Observação: sem que fosse
nosso propósito, indicamos ponto por ponto o gênero de estruturação formal
à qual R. Mucchielli, no teste da aldeia imaginária, atribui o valor de índice
de “sistematização completa do pensamento”, “ausência total do realismo, de
adaptabilidade”, “geometrizaçao esquizofrênica do pensamento”.)117 A rede
de tais acordos (?), correspondências (?), cesuras, estereotipia da representa­
ção gráfica espacializada, se espalha indiferente ao que cobre, do detalhe ao
plano de massa, assim como guia a produção sem a penetrar realmente. Todo
o receituário para a “boa” forma arquitetônica pode ser condensado num
rígido sistema de primárias relações abstratas que ignoram toda particulari­
dade e ligam exteriormente o que, na verdade, nada tem a ver entre si.
Por outro lado, essa sintaxe, estrangeira ao que desenha, desqualifica.
A brutalidade autoritária homogeneiza os que submete, fazendo-os seres-do-
medo; do mesmo modo, as normas autistas da representação todo-poderosa
corroem a diferença. Arquitetura = jogo sábio de volumes, independente­

115 Ver M. Horkheimer e T. W. Adorno, Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro:


Zahar, 1985, para os quais Ulisses encarna já o espírito burguês: “Ulisses [...] revela-se
precisamente como um protótipo do indivíduo burguês...” e “Ulisses vive segundo o
princípio primordial que constituiu outrora a sociedade burguesa...” P- 53 e p. 66; ver, em
particular, o capítulo “Ulisses ou mito e esclarecimento”.
116 Ver A. Lhote, Traités du paysage et de lafigure. Paris: Grasset, 1970.
117 Ver R. Mucchielli, Le jeu du monde et le test du village imaginaire. Paris: puf, 1960,
182 p. 285.
mente do que eles são, como são, por que são, para quem são. O diverso é
unificado (desconhecido) pela ditadura do ponto de vista, pela projeção de um
filtro de semelhança; mas sob a ficção da distinção (efeito mítico do ponto de
vista) afirma-se o seu inverso, o domínio absoluto de uma única perspectiva.
Discutindo Gentile da Fabriano, Francastel mostra que:

A relação que, numa obra de arte... associa elementos díspares tanto por sua
origem natural como por sua importância no conjunto figurado é, antes de
mais nada, uma relação exterior à significação própria dos elementos.110

E aproxima esse procedimento ao esboço social da figura do príncipe. Assim, a


sintaxe unitária, decorrente do poder desgarrado, pulveriza num mesmo pó o
heterogêneo. Na perseidade dos espaços atuais, cada componente é falseado e
obrigado a seguir o enquadramento que o desconhece. O receituário harmô­
nico — crisálida sem evolução, crivo em que só atravessa a voz monopolizada
— se identifica à linguagem que descamba em não mais que meio para infor­
mar, dar ordens, denunciada por Horkheimer:

A dissolução semântica da linguagem num sistema de signos que pratica a


lógica ultrapassa o domínio lógico. Ela resulta de uma situação que vê com­
pletar-se a expropriação da linguagem e sua transferência ao monopólio.118
119

Ou ainda, em outro local:

A sociedade burguesa está dominada pelo equivalente. Ela torna o heterogê­


neo comparável, reduzindo-o a grandezas abstratas [...] O que se continua a
exigir insistentemente é a destruição dos deuses e das qualidades.120

/
E claro, se há “dissolução semântica”, há também redução a uma sintaxe
unidimensional; sua invasão não encontra a oposição dos elementos esva­
ziados. Não é preciso muito procurar para achar a raiz isomórfica do nosso
desenho — o valor enquanto valor de troca. Se o tempo é aplainado pela “hora

118 P. Francastel, Lafigure et le lieu — Uordre visuel du quattrocento. Paris: Gallimard, 1967,
P- 125-
119 M. Horkheimer, “Conservation de soi” em Eclipse de la Raison. Paris: Payot, 1974,
p. 220. [Este texto não consta na edição brasileira (n.0.)]
120 M. Horkheimer e T.W. Adorno, Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,

i985> P-23-
social média”, o espaço é homogeneizado pela trama imutável; inversamente,
se toda particularidade espacial é marginalizada, o tempo variegado dos tra­
balhos concretos não é o contado. O cheiro que exala essa malha urdida pelo
capital é necessariamente uma das ressonâncias do trabalho abstratizado. Não
há mistério, aparentemente: o desenho que possibilita a mercantilização atual
do espaço é, coerentemente, o desenho do trabalho seco da unidade universal.

Nós denominamos um universal um tal simples que é por meio da negação;


nem isto nem aquilo — um não-isto —, e indiferente também a ser isto ou
aquilo.121

Se a forma se desprega do que envolve, é para pregar a forma mercadoria


envolvida no desprendimento. O desenho, que o modo de produção separa da
produção imediata, está em toda obra e em nenhuma, está como se não esti­
vesse e é indiferente a estar ou não: reflete a categoria do universal, ser com a
determinação de ser abstração. Se o desenho indica a obra a fazer, como indi­
cação, não pode tocar a singularidade da obra; na verdade, diz somente o que
há de mais universal. E é como universal que se achega de início, a esse outro
universal, o valor.122
(Mas, cuidado, é preciso andar com cautela aqui. Porque, se afirmamos
que o espaço homogêneo que domina o desenho arquitetônico, isto é, que o
conduz como princípio aos resultados que estamos percorrendo, é isomórfico
ao valor enquanto valor de troca, a inversão da frase — artifício corrente — é
perigosa. O valor não é signo, nem sistema de signos.)123
O processo de valorização do capital requer a abstração (abstrair: separar,
destacar, raptar, afastar) do desenho de representação. Vimos que o desenho,
na função segunda de vínculo do separado que guarda separado, mantém a
generalidade abstrata correspondente à da separação (da abstração) violenta
que fundamenta o sistema. Por isso, a totalidade (harmônica e equilibrada,
projetiva e mongiana) do separado (trabalho, meios de produção, produtos
do trabalho) jamais se cola ao que pespega perstrição. Suas amarras se gra­
vam nas coisas — mas como cordas que ferem sem se unir à carne prisioneira.
Quanto mais coordena, mais mostra distância. Sua constrição fica registrada
por deformações, cortes, inadequações, carências, raiva. Ou melhor, como é a

121 G.W.E Hegel. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 87.


122 Ver K. Marx, “Principes d’une critique de Péconomie politique (Grundisse)”, em
Oeuvres. Paris: Plêiade, T. II, 1968, pp. 208-217.
184 123 Ver K. Marx, op. cit., nota p. 215.
outra face da abstração, a mesma violência do rapto retornando, esses sinais
que confirma já vêm de seu primeiro movimento. “Coisa universal onde
toda individualidade, toda particularidade é negada e apagada” (definição do
valor de troca),124 o desenho, indicação, dedo apontado para o que não é, não
pode senão resvalar sobre a carne das coisas, ferindo, talvez. Falta o mergulho
para deixar de ser “coisa universal” — e perder a autoridade. Mergulho de
derivação, de dediferenciação, de renovação no trabalho livre. Antes, cai de
seu próprio impulso, por insensibilidade inerente, por inédia, por atonia que
obriga ao que dirige. Cai na tautologia de sua abstração, mesmo se todo dia
visita canteiros; na “dissolução semântica” provocada pela perspectiva única
de seu olhar de Medusa. (Mais cuidado ainda: mesmo cortada sua cabeça, esse
olhar continua a espalhar seus efeitos. Perseu soube usá-los a seu favor, como
máscara, e Atenas, no seu escudo. Talismã, serve contra o mau-olhado — ben­
fazejo, provavelmente, também para os que pensam que revolução é só tomar
o poder e preservar as conquistas da burguesia.)
A prioridade do valor no sistema dá causa ao desenho tal qual é. Mas nada
exige que causa e efeito tenham também laços de isomorfismo — mais, de
relação simbólica. Se insistimos, entretanto, em que o desenho tem seu campo
no interior dos bordos do absurdo, entre caroços de receitas e desastre, no
vazio em que a matéria caotizada se torna objeto de irresponsável distribuição,
é que a superposição daquela separação e deste vazio abre um vácuo em que
os axiomas do sistema são aspirados como num escândalo. Repetindo: o dese­
nho, modo de aparição das distâncias que pedem superação hoje impossível,
começa no plano do imaginário, das identificações especulares em que vira
presa das marcas do “homem-em-geral” do momento. Redizendo ainda: é
por não ser mais que forma de “tipo-zero” que a força de sua causa o contagia
integralmente. Ligadura exterior dos componentes escorregadios da manu­
fatura (aos quais, por assim serem, enquadra militarmente em suas próprias
normas), mais que qualquer outro desenho para a produção repete maniaca-
mente sua história. Quase autogâmico, sem dúvida autólatra, hipocritamente
autotélico, ajAtoRsxrix; tão é crutõiiomo: é instrumental — mas tão ser­
viçal que introjeta seu mestre, sobretudo quando se crê em inspirada levita­
ção. Entretanto, se o tesouro tem “forma estética” (harmonia etc.), tem tam­
bém “forma bruta”125 e os materiais opacos e vulgares dos edifícios banais
declamam outras origens — e, portanto, outras regras. E ainda: apesar de
não-tesouros, as usinas aqui entram em coro. Banco, casa, usina, ontem, hoje:

124 Ver K. Marx, op. cil., p. 209.


185 125 Ver K. Marx. O capital, op. cit., v. 1,1.1, p. 113.
em todos os casos, no lusco-fusco em que deita sua imutabilidade, por baixo,
a constante do desenho aponta o ponto de onde vem sua sombra universal. O
isomorfismo que afirmamos não é de superfície (a alusão barata do bronze
dourado do Seagram’s Building, por exemplo): é lá dentro, no poder por todo
canto homiziado, na extensão, na homogeneidade homocêntrica alastrada, na
infra-estrutura que a encruzilhada se situa. O desenho é como vetor apontado
para o centro lógico e concreto de nosso tempo (o valor) — e tão puxado na sua
direção que sua extremidade, sua raiz, nele se confunde. Esse é o centro que
mira nos alvos a explorar: a inteira circunferência do espaço.
Mais devagar. Se o desenho interioriza sua causa, exterioriza o que dele
foi feito, derramando-se além de seu contorno. Hífen cortando o que une,
suspenso entre criação e criatura indireta, da criação faz criatura sua, e da
criatura, imagem com corpo de seu corpo sem espessura — mas de fora, como
fôrma e não forma. De sua posição no estuário da divisão, retorna como fonte
do que o alimenta e imprime ao espaço a textura de seus poucos significantes.
Ausente, enquanto desenho propriamente dito, das formas que orienta, apa­
rece fugidio na consideração analítica da forma percebida. Como o valor, que
só na consideração analítica da troca mostra sua impalpável presença, pede
recuo para entregar-se a nós em todo o seu extenso campo. Mas, ainda como o
valor, nem por ser impalpável na obra tem pequena virulência. Se o valor só se
manifesta no fenômeno da troca, o relacionamento plástico do díspar o conota,
o simboliza, se adotarmos a definição, um tanto perigosa, de G. Durand:

[...] símbolo enquanto signo que remete a um indizível e invisível significado,


sendo assim obrigado a encarnar concretamente uma adequação que lhe escapa,
pelo jogo de redundâncias [...] que corrigem e completam inesgotavelmente a
inadequação.126

Esperamos já ter posto alguma clareza (fraca, sabemos) nesses temas. Conti­
nuemos, retomando algumas considerações de Marx:

A moeda é o intermediário concreto que permite aos valores de troca receber


uma forma correspondente à sua vocação de universalidade [...] O tempo
de trabalho [...] enquanto objeto universal não pode existir senão de forma
simbólica [...]
Um produto particular (mercadoria, material) deve tornar-se suporte

186 126 G. Durand, Imaginação simbólica. São Paulo: Cultrix, 1988, p.ig .
da moeda, ser a propriedade de cada valor de troca. O suporte no qual esse
símbolo é representado não é indiferente, porque o que é exigido do símbolo
está contido nas particularidades — características conceituais, proporções
determinadas — da coisa a simbolizar [...]
As propriedades que a mercadoria possui como valor de troca, e às quais
suas qualidades naturais não são adequadas, exprimem o que temos o direito
de exigir das mercadorias que são por excelência a matéria da moeda.127

O produto é mercadoria. Sua forma, de início, sobre isso nada nos fala. A
troca transfere sua universalidade enquanto encarnação do trabalho abstrato
para um produto particular, o suporte da moeda. Por um movimento inverso,
esse suporte particular vira a abstração coisificada, cortesia do universal que
comparece ao baile das coisas. Mas, com a percepção das fissuras crescentes
do sistema, complemento da prioridade indisputada do valor, essa única
coisificação não basta mais. A impossibilidade de torná-lo tangível em cada
mercadoria — a não ser mediatamente, na moeda fetichizada — aguça tensões
irremediáveis (por algum tempo ainda). Ora, essas tensões excitadas, essa
angústia provocada por sua onipresença escapadiça, por sua teimosa finta,
essa ameaça de morte brandida pela mania que tem de desguiar impelem
o desenho a procurar modos para simbolizá-lo (ou pelo menos alegorizá-lo).
Atacado de misofobia (não é separação?), o valor escorre sem se deixar acari­
nhar, sem securizar, levantando maus presságios e rancor. Temos de agarrá-lo
(é o nosso fundamento!): que o desenho nos ajude a diminuir sua esquivança.
Sobretudo quando os objetos que projeta concentram grande massa (de valor)
como os objetos arquitetônicos: o símbolo, que é meia encarnação, fica facili­
tado por sua densidade.
A redundância, nos disse Durand, é natural na busca de adequação sim­
bólica. Ora, vimos, a perseidade do desenho acompanha seu espalhamento
horizontal — o que nos lembra de sua insistência “perpendicular” notada por
Foucault, da aparição de si mesmo que sempre indica fazendo a “experiência
que o (isto) é um universal”. Pois bem, no desenho que anula redundan­
temente a especificidade da coisa (sem se pôr muito a claro), o valor, nega­
ção também da particularidade da coisa, de suas “qualidades naturais”, se
apresenta em miragem. Miragem: inesgotável inadequação da encarnação.
Assim, é no modo da ruptura do objeto que o valor tenta aparecer, na capa
que, agora já agressiva porque embebida de angústia, espezinha sua positi-

127 K. Marx, “Príncipes d’une Critique de 1’Économie Politique (Grundrisse)”, em Oeuvres.


187 Paris: Plêiade, t.II, 1968, pp. 221 e 226-227.
vidade bruta. Sutilezas, mas importantes: esse desenho que se esconde mal,
“ser que é em si mesmo imediatamente um não ser”, por sua oscilação entre
aparecer e sumir, convém ainda mais para a função simbólica. Outra vez: a
inadequada encarnação remete a essa espécie de abafada pulsação do valor,
dissimulada presença.
Façamos um desvio — talvez nos enrolemos menos tomando caminhos
indiretos. Utilizemos, em parcial e tosca analogia, os esquemas da lingüística
— autorizados por Saussure, de quem invertemos uma metáfora.128
Na primeira parte do nosso texto apresentamos uma hipótese de traba­
lho segundo a qual o núcleo do canteiro é a polimórfica separação. O fazer
indistinto, contínuo "anterior” (anterioridade não necessariamente histórica,
mas construída, do tipo futuro-anterior), é permeado por diferenças, cortes,
fraturas. As equipes, as etapas, os trabalhadores diferenciados são, ao mesmo
tempo, confinados em oposições múltiplas; o separado é apertado conflitante­
mente (os tempos das equipes, por exemplo), relativizado: um começa onde
outro termina. A intervenção do capital, até esse nível de observação, parece
puramente negativa: cada pedaço do “trabalhador coletivo” se define por opo­
sição aos outros. O trabalho, sob sua coação, é mediatamente abstratizado, pois
a negação simples trama sua distribuição. O princípio da separação, intrinse­
camente arbitrário, tende logo a procurar vez e motivações (técnicas, funcio­
nais), sem atingi-las jamais totalmente.
Correlativamente, paralelamente, simultaneamente, o desenho passa por
transformações equivalentes. Entre o “tema para reflexão” e a “representa­
ção normalizada”, elabora seus significantes. Descarna o objeto, divide seu
corpo com seus traços. Para a divisão, compõe uma série de oposições: proje­
ções verticais e horizontais, cheio e vazio, contínuo e tracejado, liso e hachu-
rado, grosso e fino, geométrico e livre, volume e superfície, opaco e transpa­
rente, fechado e aberto... A seleção, homológica ou não, também nele jamais
obtém plena motivação — é convencional e arbitrária. (É óbvio, junto ao dese­
nho há outros instrumentos do comando, articulados semelhantemente, que
não mencionamos.)
Esses dois movimentos — na verdade, esse movimento duplo — pouco a
pouco sedimentam a organização atual do canteiro, socialmente absorvida e
utilizada, que recebemos como se fosse inevitável herança. As duas séries de
diferenciações, suas bases negativas, se invertem e insuflam nas tarefas, nas
partes, nos componentes que determinam uma espécie de positividade. Con­
formadas por duas intervenções separadoras, viram unidades elementares

188 128 Ver F. de Saussure, Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 2004.
de nossa prática, dotadas de quase evidência, de simulacro de substância pró­
pria, de ares de razão imanente (assim como o desenho separador produz os
universais plásticos, cuja positividade, vimos no exemplo de Cézanne, é feita
de vazio). Partes e componentes que se propõem hoje “naturalmente” ao
projeto, à produção: estrutura ~ paredes — revestimentos — pintura; concretar
— levantar — cobrir - pintar etc. No mesmo passo em que são delimitadas, se
estruturam em seqüências e séries alternativas regulares (em sintagmas e
paradigmas). Tais e tais tarefas e peças devem se suceder numa certa ordem
(exemplo, os transportes de concreto que discutimos), sendo que há possibili­
dade, em geral, de trocá-las por outras mais ou menos associadas e/ou equi­
valentes (substituição do carrinho por preparação no local, do guincho por
esteiras etc.). Forçando a conhecida tese, diríamos que a produção do espaço
se estrutura como linguagem. Mesmo sua linearidade (discutível) encontra
par na sucessão inerente a essa manufatura. Observemos novamente, porém,
que a “evidência” das unidades que manipulamos é o resultado de duplo
movimento separador orientado pelo capital — e nada mais. Toda motivação é
procurada a posteriori Notemos ainda que o significado do signo (plástico) é
um conceito, e não uma coisa imediatamente referida. Assim, a ordem de ser­
viço propõe uma abstração: reencontramos aquela distância do canteiro que
já apontamos ao comentar a realidade de papel do projetista, entre caroço de
receitas e limites do desastre.

A língua é uma forma e não uma substância.129

Afirmação que acusa nossa inclinação para substancializar a língua — como,


em outro campo, substancializamos o valor (no ouro, ou até na hora, esque­
cendo que a hora que institui o valor é hora abstrata e não concreta — e que
essa abstração é radicalmente absurda). E o mesmo se dá com a nossa orga­
nização do canteiro. Face a face, nos lados opostos da barra que os separa, o
desenho e o canteiro abstratizado, expressões da separação, entram numa
relação cujo motor é ela mesma — mas cujo condutor é a luta diária de clas­
ses. A “natureza” do desenho, do canteiro, da técnica, da arquitetura não é
responsável pelo que vemos: é o suporte material dessas relações. Que cada
uma dessas “naturezas” seja carregada, seja entranhada pelos vestígios
dessas relações, realimentando-as em.feedback, nada mais aceitável. Mas o
que nelas é ocasionado não pode ser confundido com o movimento de seu
conceito. Assim, cada termo da relação marca o oposto — mas sempre de

189 129 Idem, p.141.


fora, ou melhor, de dentro do vazio das separações. Um exemplo, evidente­
mente esquematizado. Um traço grosso — uma parede. Em certos locais (pias,
sanitários), o material da parede (tijolos, pedras) é manchado, umedecido
pelo trabalho (cozinhar, conservar o corpo). É necessário revestir: logo, uma
equipe especializada se forma (quando antes o mesmo artesão bastava). Ora,
esconder as manchas do trabalho, vimos, é coisa que se generaliza com outras
funções (securizantes). A importância adquirida pela equipe de rebocadores
de todo tipo leva ao seu registro pelo desenho: ao lado do traço grosso, o traço
fino aparece. Introduzido o uso dos dois traços (separados os significantes),
eles se espalham, levando o revestimento aonde é inútil, desvinculando-o de
suas funções (sótãos, porões). Mas logo, com o formalismo contemporâneo
exacerbado, com a espacialização do grafismo, com a separação mesmo dos
significantes, os dois traços podem vir a ser tratados isoladamente (de novo,
mas de maneira diferente), em elegante contraponto de traços duplos e sim­
ples. Na obra, bruto e revestido, aparente e liso são alternados — mas seguindo
agora orientações exclusivamente plásticas. Ora, como essa redução de reves­
timentos pode propiciar uma agradável “lua-de-mel” para o empreendedor
(pois vende pelo preço de mercado, sem descontar o que economiza), ela fica
logo bela — e o uso da alternância logo também se estende, acabando com a
“lua-de-mel”. Mas, com isso, a técnica do revestimento muda — e, mesmo, a
da maçonaria. O que fica à vista tem de ser bem-feito (esconder que foi feito)
e o revestimento tem de evitar sujar além de seus limites, o que leva a juntas,
rebaixamentos etc. Paremos por aqui. A interação existe, mas, como já nota­
mos, o que a dirige não é a assimilação (Piaget): é o trabalho da separação.
O desenho registra o revestimento quando este se faz tarefa separada; os
traços separados ocasionam alterações práticas que acentuam a separação
revestimento/não-revestimento, revestimento e suas funções, trabalhador do
reboco e o da alvenaria. Diferenciadas as funções, diferenciam-se os signi­
ficantes, e inversamente. Diferenciados os significantes, eles começam a ter
caminhos próprios: o que mais afasta um edifício do século xrx de um atual
é essa aparência crescente de folheado, de somatório, de puzzle. Sempre uma
separação, um vazio provoca divisão no lado oposto.
A analogia poderia continuar: as solidariedades sintagmáticas e as regu­
laridades associativas (paradigmáticas) ultrapassam os limites da unidade
e estruturam o campo todo do discurso; do mesmo modo, há solidarieda­
des espaciais ou de etapas inteiras da construção (estrutura, equipamento,
vedação) que recordam as sintagmáticas — como há grupos alternativos (de
regras que sustentam a harmonia e o equilíbrio, de modelos estruturais)
que recordam as possibilidades paradigmáticas gerais etc. Mas, de qualquer
190 modo, a um certo momento é preciso abandoná-la. Temos de reconhecer
que a arbitrariedade (o correlato da diferença sistemática em lingüis::ca
não pode ser, sem mais, equiparada à violência (o correlato da separação
conflitante no canteiro). A arbitrariedade em lingüística é “diferencial”:
sustenta oposições de elementos do mesmo peso. A violência institui desi­
gualdades, explorações, domínios; nos dois lados da barra, o peso é diferente.
Capital de um lado, trabalho do outro, desigualdade que se reflete no poder
superior do desenho (e dos outros instrumentos do comando), figura do
capital, ao talhar canteiro e “trabalhador-coletivo”. Por isso, aliás, a “insig­
nificância” da fonética (diacrônica) não tem paralelo no desenho: suas
alterações são sempre significativas, acompanham as evoluções da luta de
classes. Esconder essa quebra da analogia seria compactuar com a ocultação
da violência que o desenho inclui.
Ora, essa quebra da analogia nos apóia, pois é esse peso diferente, essa
dominância do lado dos significantes que põe a ponte simbólica entre dese­
nho e valor. Pesar mais que o termo significado implica: abafá-lo, cobri-lo
— mas deixando sempre um resto, um excess o “perpendicular” —, impor-lhe
a marca de sua redundância, homogeneizá-lo pela supremacia de sua consti­
tuição mongiana, violentá-lo, imprimir-lhe seus automatismos decorrentes
do autismo feito da diferença de peso, dispersá-lo pela impossibilidade de pôr
limite ao excesso, atravessar-lhe a carne como continente que inunda seu con­
teúdo... Pesar mais, no lado que pesa mais, implica cair em angústia diante do
próprio inchamento, diante da ilusória infinitude do corpo-próprio. Em rea­
ção ambígua que reforça o que toma por suas leis constituintes na esperança
de achar os contornos não históricos, supostamente “essenciais”, de um ter­
ritório para a aspiração de legitimidade autônoma e que oculte sua violência
original. Implica a tragédia da separação — cujo modelo, a separação do corpo
materno, Sami-Ali relaciona com o desenvolvimento da espacialidade de tipo
euclidiano e com a aquisição da linguagem: separação desejada e recusada,
inevitavelmente problemática, jamais fácil, deixando no homem a falha pri­
meira da castração. A realização do campo (corpo) próprio (irrealizável total­
mente) é procurada no endurecimento das identificações e introjeções iniciais
— campo negado por isso mesmo e feito, no ato, universal. Introjetada sua
primeira imagem, o valor, o desenho não pode senão repeti-lo na desesperada
tentativa de dizer-se a si mesmo — isto é, de desaparecer, já que é indicação,
desenho para a produção. Fim, portanto, da analogia.
O ouro, suporte da moeda, pode ser visto como símbolo, mas é mais
que signo; o desenho, que é essencialmente signo, tem menos problemas
enquanto rede simbólica. Função que, sem dúvida, será sempre dependente —
mas inevitável, já que a função principal não reclama mais que uma forma de
191 “tipo-zero”. Dissemos antes: por poder ser qualquer, é único e totalitário esse
desenho. Agora, como um dos símbolos do valor, vimos que esse seu papel é
determinante de alguns de seus traços: é desenho do universal. Insistimos
também em notar que, desenho separado, fruto da separação, não sai de si e
no produto continua opaco e obtuso, folgado no corpo que reveste mesmo se
procura motivações que o diluam. Mostramos então que, separado, não serve
nem à criação, nem à produção, mas impõe-se como norma exterior. Podemos
já precisar essa espécie de não adequação estrutural: como símbolo do valor,
como ensaio de sua impossível encarnação, num movimento de denegação de
sua ausência efetiva (absurda abstração) ou da ameaça de sua ausência (fim
dessa absurda abstração), o desenho é feito fetiche. E, como fetiche, imobili­
zado, é usado como que para negar o que mostra, a cicatriz do valor — o que
redetermina seus primeiros momentos.
Falamos de forma de “tipo-zero”. Mas logo evitamos a passagem direta,
duvidosa, pelo conceito de “eficácia simbólica”: se o símbolo tem eficácia é
porque objetiva um conceito eficaz. Se, em tese, o desenho pode ser qualquer
desde que forme o “trabalhador coletivo”, esse “desde que” traz uma sin­
taxe particular: o esquematismo geométrico desenvolvido sobre o axioma do
espaço regular e homogêneo. Mas o esquematismo e a homogeneidade são
determinações dependentes de uma função genérica do desenho: o “trabalha­
dor coletivo” não é procurado senão para a extração de mais-valia e o apri­
moramento do desenho visa seu aumento. Por isso, se a sintaxe é particular
medida em relação ao campo das possibilidades do desenho, no interior de
si mesma é apropriada à universalidade do valor no nosso modo de produção.
O instrumento revela o para-o-que-serve. A generalidade da função produz
um instrumento compativelmente genérico. Como o valor a que serve tem
escorregadia presença, apesar de ser o fundamento, o desenho-instrumento
encarrega-se também (obrigatoriamente) de uma função simbólica. Tenta dar
corpo ao valor. Ora, a organização da produção exprime o modo de produção e,
em outro modo, será outra. O desenho que organiza a produção para a extra­
ção da mais-valia não é o mesmo que servirá a outros fins. Não é, portanto, o
/
resultado de suspeita eterna racionalidade. E o que deve ser para o que serve.
Mas aquilo a que serve, se procura encarnação que lhe dê credibilidade, não
pode mostrar de onde vem, pois lá se levanta sobre a violência. Daí a con­
tradição imanente a esse desenho: é desenho para a produção — mas, como
a produção é processo de valorização do capital, o seu reticulado não deve
exibir a produção ou, mais exatamente, a separação da produção. Denegação
da possibilidade da ausência do valor enquanto valor de troca, de sua transito-
riedade, tentativa de sua encarnação; denegação, por outro lado, da violência
e da separação em que se assenta — o desenho oscila entre o mostrar e o não
192 mostrar próprios do fetiche.
No conflito entre o peso da percepção não desejada e a força do contradesejo,
chegou a um compromisso [...]150

LUSCO-FUSCO ENTRE LUSCO E FUSCO

O desenho é desenho para a produção, “para” - e não “da”. Não foi retirado
dela como momento seu, como negação determinada. Ao contrário, a viola. Seria
menos componente de técnica de produção que peça central de técnica de domi­
nação — se houvesse como distingui-las. Uma ilustração, a nosso ver, modelar.
Manfredo Tafuri, Bruno Zevi, Robert Klein, Nicolaus Pevsner, Pierre
Francastel, Erwin Panofsky, Anthony Blunt,130 131 quase todos os historiadores
da arte são unânimes em situar a cúpula de Santa Maria del Fiore (Florença)
como o ponto em que a arquitetura gira na direção que é a nossa. Curiosa­
mente, só Tafuri fala, e de passagem, do canteiro — apesar de a fonte comum a
todos, Vasari, dele se ocupar longamente.132 Ocultação de hábito.
Vasari, no seu entusiasmo por Brunelleschi, conta anedotas que propõe à
imitação de seus leitores. A desordem aparente, o jeito descontínuo apoiam
seu valor sintomático. Vejamos algumas delas.
A perspectiva (nosso desenho de então) já surge com dupla função. Por um
lado, reduz a enorme obra a uma escala que permite o controle de todos os
seus momentos e partes: código para a centralização, registro e memória para
as ordens de serviço. Por outro, arma contra os operários que, impedidos de
examinar o projeto, não podem mais colaborar inteligentemente — e contra
os outros arquitetos. Para provar sua eficácia nessa função, Brunelleschi não
hesita, por exemplo, em encenar doença, fazendo o detestado Ghiberti perder
a direção da obra por desconhecer as manhas de seu desenho. A perspectiva
entra na arquitetura e, imediatamente, se põe em guerra.
É conhecida a primeira experiência de Brunelleschi com a perspectiva.
Desenha uma cena de Florença composta unicamente por edifícios (o Batisté-

130 Sigmund Freud, “Le Fétichisme”, em Objets du Fétichisme. Nouvelle Revue de


Psychanalyse, n. 2, 1970, p. 21.
131 M. Tafuri {L’architettura delVumanesimo. Bari: Laterza, 1972), B. Zevi {Saber ver a
arquitetura. São Paulo: Martins Fontes, 1994), R. Klein {Aforma e o inteligível São
Paulo: Edusp, 1998), N. Pevsner {Perspectiva da arquitetura européia. Lisboa: Ulissea,
1943), P. Francastel {Études de Sociologie de VArt. Paris: Denoél/Gonthier, 1970), E.
Panofsky {Perspectiva comoforma simbólica. Lisboa: Edições 70, 1993), A. Blunt {Teoria
artística na Itália, 1450-1600. São Paulo: CosacNaify, 2001).
193 132 Ver G. Vasari, Le vite dei piu eccellenti pittori, scultori e architetti. G.C. Sansoni, 1915.
rio). No lugar do céu aplica um espelho (a descrição do procedimento utilizado
para chegar ao desenho não é muito clara nem em Manetti, seu primeiro bió­
grafo, nem em Vasari). No ponto correspondente ao de fuga, faz um pequeno
orifício. Através dele, a cena é vista num segundo espelho colocado diante do
desenho. Os dois planos são dispostos de tal maneira que a imagem do desenho
no espelho é prolongada pelas imagens da paisagem urbana. Em particular, o
céu de toda a imagem final, com o jogo dos dois espelhos, é o próprio céu de
Florença. A ilusão, garante Manetti, a todos maravilha.133 Pergunta: é o “real”
que Brunelleschi representa, ou, em vez, conforma o “real” à “representação”?
Onde termina o desenho? O que ilude, elide, nessa ilusão? Desde então, sutil­
mente o desenho que trama infunde o que “representa” com sua força discreta.
Outras anedotas nos aproximam mais do canteiro. Assim, diante de uma
greve por aumento de salários (já extremamente diversificados), importa ope­
rários não florentinos, conseguindo quebrá-la. E só aceita novamente os pri­
meiros por salários inferiores aos que ocasionaram a greve (em outros termos,
é feroz no zelo pela mais-valia absoluta). Ou ainda: preocupado com a perda
de tempo e energia, instala no alto da cúpula uma cantina (“fordizada”, na
acepção de Gramsci), evitando que os operários desçam para comer, beber, se
reunir e conversar (reconhecemos a meta: a mais-valia relativa).
Em outras obras, a volta ao antigo, totalmente despida de pretensões, literá­
rias ou eruditas, é orientada com rigor. Rigor não arqueológico, mas na impo­
sição de seu molde aos trabalhadores acostumados em outra tradição, aberta
a variações pessoais (ver, por exemplo, capiteis românicos e góticos). Dórico,
jôrico, coríntio, pouco importa e em cada caso sua aplicação muda; importa a
destruição do saber anterior, das normas corporativistas.134 A submissão dos tra­
balhadores passa por sua decomposição forçada. Estrutura modular (“a beleza é
estrutura; a matéria, por sua natureza, informe”: M. Ficino), regularidade das
tramas (S. Lorenzo, S. Spirito, capela Pazzi; sua generalização, esboçada por Ros-
sellino em Pienza, hoje sustenta nossos planos urbanísticos), repetição dos gestos
do trabalho (o talhe uniforme da pedra, por exemplo, adotado desde o gótico
para diminuir o valor do trabalho de cantaria, da mais poderosa corporação da
construção):135 ignorância provocada e nova organização do canteiro, homoge­
neização espacial e centralização no valor. Na perspectiva, há duas constantes:
centro e reticulação do espaço. A reticulação do espaço é o contraponto do centro;
o trabalho esvaziado, em começo de abstratização, o do olho do mestre.

133 Ver R. Klein, op. cit., pp. 280-283.


134 Ver M. Tafuri, op. cit., pp. 15-29.
194 !35 Ver A. Scobeltzine, op. cit.
Retroprojeção de esquemas ainda não válidos? Não nos esqueçamos que
quem financia o Duomo é a Arte delia Lana. O que é? Causa principal da
revolta dos Ciompi,136 conhece e aplica com extrema brutalidade os princípios
da manufatura.137 No início do século XV, reconstituída a “normalidade”, há
que reestimular o mercado e reacumular capitais em Florença. Desde o gótico,
com as catedrais, sabe-se onde realizar essas metas: no canteiro. Operários con­
somem, mestres acumulam. Ora, a Arte delia Lana tem a experiência da pro­
dução manufatureira de tecidos,138 da exploração dos ongles bleus: a reorganiza­
ção do canteiro encontra, através do mesmo empresário, modelo e estímulo. O
trabalho, até então rclativamente livre e autônomo, enquadrado e disciplinado,
desliza em simplificação progressiva. Resultado: os salários, que haviam subido
depois da peste negra,139 no meio do século seguinte caem à metade. E, logo,
qualquer ensaio de organização operária sofre impiedosa perseguição.140 Insta­
lação da manufatura no canteiro, separação do desenho para dominá-lo, ascen­
são da mais-valia (absoluta e relativa), homogeneização euclidiana do espaço,
diferenciação social e artística final do arquiteto não são somente fenômenos
contemporâneos: como numa perspectiva, seu ponto de confluência é o Duomo,
o novo centro de Florença. A única coisa que falta, a difraçao de tudo isso por
um discurso “humanista”, não tarda: em breve, Alberti ocupa o vazio.
Deixemos Brunelleschi. A melhor demonstração de que o desenho serve
à técnica de dominação nos é fornecida pelas inúmeras oposições aparentes
que ele mantém com o canteiro. Façamos mais uma hipótese absurda: supo­
nhamos uma manufatura ferida somente por algumas das manifestações da
separação. E imaginemos um desenho que se limitasse à técnica de produção
(o que não tem sentido, sabemos; além disso, o desenho que fosse exclusi­
vamente parte da técnica de produção não seria desenho “para”, mas “da”
produção — o que quer dizer: alterabilidade do projeto na produção; sua elabo­
ração pelos produtores imediatos e, em parte, na produção; o desaparecimento
do arquiteto, figurinha do capital). Tal desenho, em esquema, deveria seguir
as seguintes orientações:
í. do princípio da divisão das equipes de trabalho (que ocasionaria, por exemplo,
várias descontinuidades formais a serem claramente respeitadas na obra);

136 1378; ver E. Mollart e P. Wolf, Ongles Bleus, Jacques et Ciompi, Les revolutions populaires
en Europe aux XIVet XVsiècles. Paris: Calman-Lévy, 1970, pp. 143-163.
137 Ver X Gimpel, La revolution industrielle du moyen age. Paris: Senil, 1975, pp. 93-112.
138 Ver K. Marx e F. Engels,^ ideologia alemã. São Paulo: Ed. Moraes, 1989, p.70.
139 VTer E Jaccard, História social do trabalho. Lisboa: Horizonte, 1974.
140 Ver II. Pirenne, “As cidades como centros econômico” em História econômica e social da
195 Idade Média. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1966, pp.175-184.
2. do sentido da multiplicidade de normas (caso típico, o do sistema de medi-
àas-, 'çròerva. sei xe^àax was esftxxftxxras ^axa.ia.c^\\ax e içrtmas^
armações e cálculo; modulado nos componentes produzidos fora do can­
teiro, como portas e caixilhos; mas fluido e não modulado no resto; a uni­
dade de produção é o trabalhador de imprecisão intrínseca — raramente,
fora etapas semelhantes às apontadas, a exatidão e a repetição convém);
3. do princípio da clareza construtiva (que facilitaria a produção pelo enten­
dimento, a todo momento possível, do objeto a ser produzido; razão que
levaria também à manutenção dos traços do trabalho, transformando cada
obra num veículo pedagógico);
4. do princípio da prioridade das condições de trabalho (que visaria a segu­
rança e a preservação do conhecimento).
(Deveria, naturalmente, seguir mais outras orientações do mesmo gênero.
Mas estas são suficientes para o que queremos mostrar no momento.)
Ora, é quase impossível encontrar desenho arquitetônico assim determi­
nado. Um ou outro de Le Corbusier, alguns de Tátlin, os primeiros de Nie-
meyer talvez e, em geral, só parcialmente. Exceção: Gaudí, sempre margina­
lizado como bizarro pela arquiteturologia oficial.
Já discutimos alguns pares de oposições desenho/canteiro anterior mente:
entre a heteronomia do canteiro e a aparência de autonomia que persegue
o desenho; entre a sucessão dos trabalhos e a atemporalidade da harmonia e
do equilíbrio prezados; entre a descontinuidade da produção e a totalidade
fechada do partido; entre o modo manufatureiro de construir e as séries
padronizadas; entre os volumes arquitetônicos e as equipes em induzida diás-
pora; entre o código do desenho e 0 trabalhador que a ele não tem acesso;
entre a estereotipia das formas e a mão. Essas oposições caracterizam o dese­
nho atual. Em vão procuraríamos vestígios de nossa hipótese absurda (supre­
macia da técnica de produção sobre a técnica de dominação); ou inexistem ou
são totalmente absorvidos pelos contrários. Entretanto, é ela que arquitetos e
técnicos, quando se metem a falar, afirmam como a que os inspira. Compre­
endemos: criados dedicados, são dispensados de coerência.
O desenho não mostra facilmente o que é. Reconhecemos que é impelido,
de começo, na direção da resistência. Sua função, pela enésima vez, é fornecer
esqueleto em torno do qual possa se cristalizar o trabalho separado: nasce, por­
tanto, como seu inverso. Mas, sob a aparência de vínculo, na verdade agrava a
separação por ser separado. O que o desenhista denega, insistindo na aparência
— sublinha, se paramenta. Sem maiores hesitações: confusamente percebe que,
desenhando, já cumpriu seu dever principal. Existe, logo pensa (no lugar dos
que domina). Os desenvolvimentos seguintes necessários ao bom andamento
196 da produção, as microscópicas subdivisões, estão potencialmente contidos no
ato mesmo de sua constituição, no destino que a venda da força de trabalho lhe
atribui: impedir autodeterminação. A alienação econômica da força de trabalho
sofre remate definitivo com a acefalia em que arquitetos e técnicos a confinam;
o resto vem como corolário “espontâneo” — quase. E é o que não poderia ser
revelado de cara, esta castração que bisa a primeira. Mas, malgrado a insistên­
cia, o desenho obrigatoriamente mostra o que é esticando o próprio impulso
da inversão, no desenrolar dos trejeitos harmônicos assim azedados, na exaspe­
ração da máscara que ganha translucidez. A totalidade enfatizada não é tota-
lização em processo jamais concluído — é a mentira do se paramentar dizendo
a verdade, foz do mentar separação, mal mentir não separação do qual não se
livra, força chata das coisas. A ferida que ajuda a afundar, fica nela atestada.
Vamos recordar, antes de terminar.
Há dupla paramentação: a do projetista e a do desenho. Deixaremos de
lado a do projetista, assunto triste de uma tristeza triste demais. Uma obser­
vação, entretanto.
Seu protótipo é Michelangelo (apesar de ter sempre tentado desabusar
seus fiéis): “Vossa função é talhar a pedra, trabalhar a madeira, erguer as
paredes. Fazer vosso ofício e executar as minhas ordens. Quanto a saber o que
tenho na cabeça, vós não o sabereis jamais — isso seria contrário à minha dig­
nidade”, declara aos operários hostis à sua direção no canteiro de São Pedro,
em 1551. E, numa discussão com o papa Marcelo il, acrescenta em 1555:

Eu não sou e não quero ser obrigado, por nenhum preço, a dizer nem a Vossa
Senhoria, nem a ninguém, 0 que eu devo e quero fazer. Vosso papel é juntar
dinheiro e fiscalizar roubalheiras. Quanto ao plano, eu vos peço deixar a mim
0 cuidado.14-1

Também não discutiremos aqui como, em contrapartida, toda a obra que


Michelangelo gravita com centro na marca sofrida da separação, da castração.
(Percorrer longamente, “flutuantemente”, a Pietà de Rodanini -1555-1564
— e ver.) Sua indiscutível dignidade ainda não é paramento, mas parte autên­
tica da amarga e contraditória resposta ao trágico acordar do nosso tempo

Caro m’è ‘1 sonno, e piú 1’esser di sasso


mentre che ‘1 danno e la vergogna dura;
non veder, non sentir m’è gran ventura
però non mi destar, deh, parla basso.141
142

141 M. Marnat, Michel-Ange. Paris: Gallimard, 1974, pp. 240-241.


197 142 Rime, n. 247.
hoje decrépito. Quatrocentos anos depois, o quadro é o seguinte:

O que ressalta de todas as análises feitas e das entrevistas é, de uma maneira


massiva e espetacular, eu diria mesmo exibida, a importância do sentimento
de impotência.143

Da tragédia ao melodrama, da dor ao medo, do pudor em se ver erigido em


“divino” à reinvidicação de respeito por esse métier feito em tartufarias mal
escondidas. Impotência, é o que sentem: mas como não senti-la se sua pré-
potência, seu poder são feitos da interrupção de muito abraço engatilhado?
Se é do vazio do outro que esperam ganhar plenitude? Se a má-fé, cem anos
depois de Marx, não cabe mais no álibi da inconsciência ou da ideologia — e
sua única saída passa pelo autoritarismo?
Deixemos de lado os sórdidos paramentos do projetista.
Conhecemos os paramentos do desenho. Cada princípio de nossa hipótese
absurda recebe resposta em contramão; encontramos:
í. formas sintéticas e homogêneas para o que é extrema divisão;
2. unicidade de critérios, imposição de regularidade, exatidão e repetição em
todos os níveis;
3. quase total ausência de clareza construtiva, etapas e funções confundidas;
4. nenhuma preocupação com as condições de trabalho: a hegemonia da pro­
dução requer que a prioridade aparente seja dada ao produto;
5. nenhuma preocupação formadora: não é o operário capaz que conta, mas o
capaz de ser dominado — para o que a formação útil pode ser negativa;
6. etc. etc.
Se a fala dos arquitetos expõe incoerência com sua prática, seu desenho
não. Desde que o processo de produção movimenta simultaneamente o pro­
cesso de valorização do capital, é sendo como é que lhe corresponde. (A expli­
cação mais aprofundada dessa conveniência tem de ser feita a partir de duas
análises da construção que não desenvolvemos neste texto: a da economia polí­
tica e a da semiologia. O que segue é só uma nota final.)
Fundamentalmente, o desenho é instrumento de quem não espera a
participação lúcida do operário — mesmo se o canteiro não a dispensa. Não
espera porque não quer e não pode — ou não serviria ao capital. Na sua essên­
cia, portanto, é forma de direção de energias e habilidades, tomadas, a priori,
como imbecis. A meta dessas extravagâncias, sabemos, é provocar dispersão,

143 F. Lugassy, “Caracteristiques Psychologiques des Architectes”, em Les Espaces de


/

198 LArchitecture et des Architectes. Cahiers de 1’Ecole d’Architecture de Nancy, n. 1,1973, p.


separação. Ora, o desenho está lá, na frente do projetista — e, se está lá, é por­
que as energias dispersas que dirige são imbecis. Rápido giro. Provocador de
dispersão, o desenho faz ver, a quem o faz, a meta como realidade efetiva. E,
daí em diante, o que aparece do outro lado através de seu filtro (que é só o que
conhece o projetista) tem semelhança com formigueiro de formigas atabalho­
adas sem cabeça. Com o que o desejo do capitalista entra em prazerosa aluci­
nação: caos na terra, aguardando sua lei, sua contenção, seu empastamento.
Ver-se é impraticável — ou só indiretamente. O desenho é bomba para sepa­
ração — e é o que não nos pode deixar ver. Onde vemos o desenho fora dele? Não
na obra pronta em que se reconstrói e continua em si. Seu verdadeiro espelho é a
massa informe dos trabalhadores castrados, em cuja direção os raios da visão que
orienta divergem, já que é massa dispersa. Ora, se divergem, no sentido inverso,
convergem. No pólo da convergência, sua lente que assim só pode ser una e coesa,
fonte do fogo de pentecostes que cria o “trabalhador coletivo”. Simples. A trapaça
foi feita antes, no momento da compra da força de trabalho. Compra-se força,
habilidade — e a parte da cabeça necessária ao bom funcionamento motor, mas
não o resto que tem de ficar do lado de fora do tapume. Instituída a oligofrenia,
aparece o desenho, e, se está lá, na frente do projetista... etc.
Assim, desenho = uno, coeso. Ou seja, enquadramento, harmonização e
tudo mais que estudamos. Seu desacordo aparente com o canteiro surge de sua
própria situação, inevitavelmente: de fato, é acordo. Mas, se o giro é rápido, a
imagem fascinante, o raciocínio simples (à altura dos arquitetos), sobra a tra­
paça. E uma essência que nela estabelece raiz fica um pouco estremecida. O
projetista, então, de duas, uma: ou muda a essência (hipótese em que perde o
imprimatur do capitalista), ou repisa, repete, retoma a estremecida até... até
que o repisar, o repetir, o retomar a denuncie sem mais perdão.

POSFÁCIO

Este texto não teve prefácio: seria redundância introduzir uma introdução.
Nem apresentação: não há conveniência (de tipo diverso) em comprometer
alguém com ele. Nem dedicatória: os que a merecem, meus dois companhei­
ros de arquitetura, sabem que a eles caberia, em outra hora. O registro de sua
presença deixei para o plural do “nós” — que me agrada também por seu ar
mofento. Creio que gostaríamos, os três, de ainda oferecê-lo aos trabalhadores
da construção, não o tivesse eu tornado tão obtuso e banguela.
Mas, à guisa de fecho e marcando que não é texto acabado, reabro sem ter
finalizado — e me calo em gancho, atirando algumas provocações lá no nó em
que seu tema toma forma, nó que já podemos começar a construir,
199 í. Michelangelo. (Pietà de Rondanini) Cristo — de quem a vida foi tirada
— e a Mãe: dois corpos. Em seguida, do ombro da Mãe sai o novo corpo de
Cristo: dois feitos de um, um que é dois, dois procurando um. Sobra, pen­
dente, o braço cortado do primeiro corpo.
2. Palladio. A fenda da simetria, produtora do fantasma do todo, vinco de
inversão, grita a elipse da castração.
3. Rafael. 0 ponto da fuga comanda o debate dos sábios. Furo, vórtice, vácuo.
Cézanne o elimina — multiplicando.
4. Correggio. Corrige, isto é, tapeia. Põe o ponto da fuga no centro do céu,
tampa com nuvens, espalha anjinhos nos bordos — todo bordo é ávido de
carne macia. O fetichista denega com meias.
5. Br amante. No centro do mundo, o Vaticano. No centro do Vaticano, o altar.
No centro do altar, a hóstia. “Tomai, isto é o meu corpo” (Marcos, 14,22). É
que lá se cruzam as fendas da simetria.
6. Bernini. Abre a colunata em duas pernas. No meio, um obelisco. No eixo
que une altar e obelisco, da janela, o papa ergue o dedo: “Em nome-do-
pai...”.
7. Sansovino (praça de São Marcos). As diferentes espessuras das paredes —
cortes — servem de pretexto para cornijas. Laços: um enorme cordão amar­
rando a enorme colunata — e dividem na vertical para juntar na horizontal.
Ritmo: cesura.
8. Michelangelo. Na biblioteca de Florença cava vales para colunas que nada
sustentam.

No Juízo Final, Cristo separa uns dos outros: o espaço se aplaina na dor.
Os condenados entram na terra, os chamados saem, como condenados.
No canto oposto às serpentes — neutralizadas pela visão da serpente da lei do
Pai —, Amã trai a iconografia: em vez da força, crucificado num cepo. Lapsus.
Na outra extremidade, Judite corta a cabeça de Holofernes, Davi a de Golias.

9. Michelangelo. Da porta ao Juízo, percorre a Bíblia ao contrário: Noé, Dilú­


vio, Sacrifício de Caim e Abel, Pecado e Expulsão do Paraíso, Eva, Adão,
Gênese. Entre a Separação da Luz e das Trevas e 0 Juízo Final — como
é lógico, anterior à Gênese, — Jonas, o que foi comido pela baleia, o que
voltou ao ventre, em postura que avança na curvatura inversa da abóbada,
olhar horrorizado posto na Separação.

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GRENOBLE

Le Corbusier visitando o canteiro do convento de LaTourette, 1959.


REFLEXÕES PARA UMA POLÍTICA NA ARQUITETURA
1972

INTRODUÇÃO

í. A crise da arquitetura é um assunto que tem preocupado insistentemente os


debates especializados. Entretanto, se ninguém a nega, estamos ainda muito
longe de sua compreensão. Por isso mesmo, é inadmissível deixar de iniciar
um processo rigoroso no tratamento desta questão, ainda mais que a formu­
lação das condições para a formação dos arquitetos está subentendida: a visão
impressionista e a metodologia laxista não conseguirão dar resultados válidos.
Sem dúvida, a enorme complexidade das relações pouco nítidas entre a arqui­
tetura, a produção e o consumo da construção justifica o atraso na tomada
de consciência. Mas se a irracionalidade da atividade arquitetural parece ser,
hoje em dia, objetivamente exigida pelas condições da produção em geral,
no nosso sistema, não há dúvida que somente a fria e radical racionalidade
poderá desvendar as raízes dessa exigência aberrante.
2. Sem pretender esgotar o assunto, uma abordagem rápida sobre algumas
tensões contraditórias que determinam atualmente a arquitetura mostrará
\

que essas raízes têm diferentes origens, internas e externas. A exceção de


alguns casos marginais, poder-se-ia sinteticamente separar os aspectos domi­
nantes da produção material da “indústria” da construção:
a) divisão muito grande do trabalho, cada operário desenvolvendo somente
uma parte das atividades tradicionais;
b) emprego de instrumentos simples manipuláveis por um só indivíduo;

c) poucas máquinas utilizadas em tarefas auxiliares, que exigem muita


203 energia concentrada e nenhuma máquina operatriz;
d) organização da mão-de-obra em equipes hierarquizadas, cada operário
seguido de inúmeros serventes;
e) finalmente, a totalização do trabalho não se exterioriza materialmente
na produção, mas depende de um grupo de dirigentes, mestres, contra-mes­
tres, etc, mistura de guias e fiscais. Este conjunto de fatores aproxima a produ­
ção da construção da manufatura, separando tecnicamente o estágio histórico
da construção enquanto produção, seja em relação à cooperação simples e o
artesanato, seja em relação à indústria. A manufatura da construção possui
traços específicos que a distinguem de outros tipos de manufatura. Freqüente-
mente, entretanto, ela é confundida com outros processos de produção. Porém
a presença dominante da força de trabalho impede qualquer confusão; na
verdade é o operário coletivo, formado por um grande número de operários
parcelados, que constitui seu mecanismo específico. Mas no interior da forma
dominante da manufatura, outras formas secundárias aparecem e nós encon­
tramos sinais da produção artesanal, da cooperações simples, e da indústria.
De qualquer maneira, as maiores modificações na manufatura da construção
podem ser resumidas na passagem quase horizontal da manufatura serial (em
regiões subdesenvolvidas como o Brasil) à manufatura heterogênea (mais
desenvolvida na França). A correlação complexa desses fatores é, entretanto,
peculiar a esta produção.
3. Esta caracterização técnica é confirmada por dados econômicos. Por
exemplo, na França — onde a produção é mais desenvolvida — o capital vari­
ável (salários) na manufatura da construção é superior em 30% (1966) em
relação aos outros setores já industrializados. O número de operários qualifi-
cados é inferior em 14%. A frágil mecanização corresponde um baixo índice
de salários (85 contra 100 em outros setores) — 110 é 0 índice de duração do
trabalho em 1970, e 130 a taxa de exploração do trabalho. Assim, a uma frágil
composição orgânica do capital e taxas de lucro mais elevadas, corresponde
um atraso no processo de desenvolvimento das forças produtivas; o caráter
estruturalmente conservador da empresa; a resistência à inovação do ope­
rário qualificado da manufatura criada pelo modo de desvalorização de sua
força de trabalho; a deformação do consumo que a própria manufatura cria;
a propriedade vária do solo, seu retalhamento, negócios etc. Para explicar­
mos um fenômeno tão comum e anormal, se considerarmos a necessidade
crescente de espaço construído, devemos procurar uma causa mais geral: a
necessidade patológica do sistema, que importantes setores da produção sejam
mantidos em situação de atraso tecnológico para frear temporariamente a
/

queda estrutural da taxa de lucro provocada pela industrialização. E evidente


que este problema pode ser resolvido nas metrópoles com a transferência de
204 responsabilidade na coleta de uma considerável massa de valor aos países sub­
desenvolvidos. Mas essa transferência, que já está acontecendo, é lenta, difícil
/

e problemática. E por isso que um grande cuidado é exigido nos projetos de


industrialização da construção, esta última não estando ainda completamente
realizada, mesmo nas metrópoles mais desenvolvidas. Tal é a situação dos
meios de produção que o arquiteto manipula, determinada e superdetermi-
nada pelas contradições centrais da economia política contemporânea. E o
papel da arquitetura, este componente superestrutural evidentemente frágil
em face de necessidades inexoráveis do capital, está objetivamente determi­
nado. A técnica que o arquiteto conhece (por hipótese), aquela que permite
soluções ideais (se supomos que elas existem), não é aquela que encontra na
produção: a pressão onipresente da rentabilidade imediata e maximizada dá
à técnica atrasada uma configuração de ineficácia e de baixa qualidade. A
mediação conflitante dos negócios, no caso da manufatura, é responsável pela
inércia das forças produtivas, pela conduta estereotipada, pelo know-how imu­
tável, e pela exploração violenta da força de trabalho. O arquiteto tem ten­
dência a atribuir a responsabilidade a fatores secundários, na medida em que
leis irracionais ou quase obscuras existentes, sob o ritmo cego de operações
concretas, tornam-no incapaz, muitas vezes, de detectar com clareza os disfar­
ces do poder que domina. Quase sempre favorável à técnica em abstrato, seu
discurso não é suficiente para esconder um desconhecimento e um desprezo
pela prática — o que é reforçado objetivamente pelas formas muitas vezes
obtusas das técnicas aplicadas, vítimas também da mesma tirania. Uma falsa
dicotomia se estabelece e desabrocha entre a arte e a técnica. A arquitetura,
então, faz sobressair exageradamente seus traços irracionais (a opção plástica,
a escolha que vai além do conhecimento possível) por uma espécie de vin­
gança ou compensação; transfigura assim os seus traços numa irracionalidade
regressiva. Esta hipótese afasta a técnica ainda mais da arquitetura e reforça
uma batalha deslocada, enquanto a verdadeira causa se mantém imune.
A falsa oposição entre a arquitetura e a técnica faz da produção um mis­
tério para o arquiteto — e mesmo obstáculo. Doentia inversão: em vez de ser
instrumento, mediação, as forças produtivas que dão corpo à realidade do pro­
jeto são percebidas como obstáculo; grosseira materialização onde se perdem
as mais caras intenções. Porque é na produção material, na densa obscuridade
da manufatura, que todos os conflitos tornam-se mais agudos, a arquitetura
contornando a técnica e a técnica frustrando a arquitetura. Mas, como em
todo o sintoma, sua natureza e sua localização dão uma indicação do conflito
que foi transferido: pois a falsa oposição torna-se aguda no canteiro de obras,
lembrando que a verdadeira contradição se estabelece entre as forças que
impedem o desenvolvimento da força de trabalho, no lugar mesmo onde é
205 apropriado.
Se técnica e arquitetura, atividades teoricamente convergentes, se chocam,
dando origem a uma deformação mútua, esta aparência nos remete à essência
que ela esconde: — a irracionalidade da exploração, onde a violência se traduz
tecnicamente na manutenção forçada de uma forma arcaica de produção.
4. Uma transferência igualmente sintomática pode ser percebida em
algumas proposições que procuram ultrapassar a “crise”: a industrialização,
por exemplo. Seria suficiente fazer análise de textos daqueles que a propõem
para tornar evidente seu caráter substitutivo: os cortes lógicos, as omissões
significativas, são sinais evidentes de que o papel desse conceito, no pensa­
mento dos arquitetos, assume natureza mágica. Com efeito, uma mudança
das forças produtivas não pode resolver antagonismos que estão localizados
no interior das relações de produção. E como não ver que, segundo a visão
de A. G. Frank, existe um desenvolvimento do atraso, corolário mesmo, do
desenvolvimento centralizado?
5. Mas, se na produção os conflitos se multiplicam, o exame do produto
mostra outras dificuldades não menores. Além das determinações exteriores
à sua natureza e sua finalidade, que condicionam a vida e a forma de todo
objeto no tempo de absolutização da administração de mercado, a particula­
ridade da manufatura da construção impõe a seus produtos algumas caracte­
rísticas específicas. A habitação neste caso é exemplar. Se lembrarmos: 1) da
segurança que oferece a uma massa dada de valor sua imobilização em um
produto de primeira necessidade, cuja oferta é cronicamente inferior à pro­
cura; e se ajuntarmos 2) o fato de que o capital empregado na sua produção
tem uma fraca composição orgânica permitindo, assim, uma apropriação
relativa de valor acrescido, e finalmente 3) sc notamos que o produto unitá­
rio concentra uma grande massa de valor, deduziremos imediatamente a
preocupação ostentatória e a importância da função “tesouro” na habitação.
Um jogo de ilusões com elementos muito interligados se eleva sobre bases
objetivas de afirmação de “status”. Ora, a habitação, por ela mesmo, é uma
demonstração de posse de uma respeitável quantidade de dinheiro, o que é
demonstrado ainda mais pelas suas dimensões, gosto e materiais. Mas, como
o capital se amplia no canteiro de obras, o “status”, que podemos atribuir é
superior àquele que o capital inicial permitia. Ora, o projeto é anterior à
produção, portanto as necessidades às quais ele deve responder não são aque­
las verdadeiramente vividas pelo usuário, mas são as necessidades que ele
supõe serem aquelas do novo “status” a atingir e definidas pelas rígidas con­
venções da ostentação. Como ostentação é representação, ela pode sempre
aparentar mais que o reflexo exato permitiria e, como toda consciência em
transição, fica raramente satisfeita com o nível possível e tenta alcançar
206 outros ainda. As chamadas “necessidades”, no seu limite, são uma acumula­
ção hibrida de regras não vividas superpostas às verdadeiras necessidades
quase sufocadas. Além disso: como o “status” pouco nítido tem por base a
posse de uma massa de valor que é em parte coagulada na forma de con­
creto, toda utilização, então, deve ser restringida ao mínimo — e a assom­
brosa quantidade de trabalho que, dia após dia, é gasta em nome da limpeza,
é encarregada de suprimir os sinais de utilização. Receando-se que a habita­
ção se torne usada, limita-se o valor de uso. Grande quantidade de valor,
concentrada em um objeto pouco utilizado (ou cujo uso é maniacamente
apagado): é a definição do tesouro, cuja própria proximidade exige um
esforço permanente de distanciamento.
6. O arquiteto torna-se cômico neste contexto: ele fala do uso, da utilidade,
eficácia, racionalidade... mas a verdade do sistema não tem nada a ver com
tudo isto. Nas atuais condições de produção, a separação do fazer e do pensar
(que continua mesmo após as correções impostas pela segunda guerra mun­
dial ao “taylorismo” radical) isolam o arquiteto no brain-staff.
Dentro de sua posição, ele impõe de modo necessariamente despótico sua
vontade como eixo organizador da produção. Mas esta verdade é aquela que
sua posição lhe atribui e cuja dimensão e objeto são claramente demarcados.
Para ele é proibido tentar modificações profundas na produção: sua forma
atual é a mais adaptada para a função já mencionada, e o produto é aquele
exigido pela forma de consumo na situação presente. Entretanto, existe um
pequeno detalhe, no nível da economia, cuja delicadeza exige todo o savoir
faire do arquiteto; é que, apesar da aparência, raramente é o usuário que efeti­
vamente se apropria do valor produzido no canteiro de obras. Somente no
caso em que o usuário é também o empresário. Em geral ele tem, com a habi­
tação, o que ele tinha antes: ele somente realizou o capital-mercadoria do
empreiteiro, quando o transformou novamente em capital-dinheiro. De fato,
o valor econômico de que o usuário acredita ter se apropriado, é o empreiteiro
que o substitui, de maneira sutil, por “valores” sociais de representatividade:
“saúde”, “bem-estar”, “beleza”, etc. — e a segurança da propriedade.
Para realizar esses inefáveis valores, o profissional da fantasia é o arquiteto.
“Estética”, “arte”, “poesia”, “plasticidade” etc. são os conceitos fluidos que dão
a necessária aura aos resultados de tais caminhos e formas que escondem na
aparência da coerência e da organicidade, não somente os deslumbramentos
da ascensão social e da segurança, mas sobretudo a exploração mais violenta
da força de trabalho. Os atos de fé progressistas não bastam para transformar a
prática necessariamente favorável à manutenção de uma situação. Os arquite­
tos percebem de maneira difusa a má-fé — e como compensação tentam fazer
passar seus esquemas, deduzidos da idéia de “homem em geral”. A posição
207 autoritária acrescentada ao gênio que a priori eles devem ter, justificam algu­
mas liberdades daquela figura especial na produção. Estes esquemas, desprovi­
dos de realidade, abstratos, primariamente funcionais e mecânicos, não refle­
tindo um projeto coletivo, dão muito mais a imagem daqueles que o fazem
que do objetivo suposto; nada mais autoritário que tais proposições permitidas
somente por uma posição privilegiada. A frustração destas tentativas, que
reforça mais que elimina a má-fé, dá origem a uma estereotipia ainda mais
simplista, onde o formalismo fantástico esconde a angústia crescente.

SOBRE O COMPORTAMENTO E A METODOLOGIA

Poderíamos resumir numa fórmula simples a “crise” da arquitetura: o atual


modo de produção arquitetural, inteiramente determinado pelo modo de pro­
dução em geral e pela mediação do modo de produção da construção, chegou
aos limites de seu desenvolvimento possível.
Historicamente, as relações entre as dimensões estruturais e superestru-
turais de um sistema conhecem etapas diferentes. Após uma mudança social
radical (no sentido exato) as novas relações de produção, que se organizam
de modo coerente com a situação histórica das forças produtivas, impõem, de
fora (exterior) configurações adequadas aos níveis superestruturais. Estas con­
figurações impostas são interiorizadas por estes níveis, com a força da necessi­
dade histórica, e desabrocham dando uma organização a todo campo coerente.
/
E evidente que essas novas configurações não têm continuidade com as con­
figurações imanentes dos períodos anteriores. Mas a partir desta nova deter­
minação exterior o desenvolvimento das necessidades imanentes, definido
pela problemática emergente, segue, obrigatoriamente, o desenvolvimento
social: o que se poderia ilustrar, bem esquematicamente, pela analogia de um
isomorfismo estrutural. Esta harmonia, esta coerência, será mantida até o
momento em que contradições antagônicas se manifestem na infra-estrutura
entre as relações de produção e as forças de produção, com a inevitável substi­
tuição da necessidade histórica pela violência e irracionalidade. A partir desse
momento as dimensões superestruturais e infra-estruturais se distanciam
progressivamente: na superestrutura, uma espécie de inércia imanente do
desenvolvimento segue direções que não são mais o reflexo do real, mas que
mostram as potencialidades do sistema, abafadas pela presença dominante da
violência e irracionalidade. Elas “refletem” o possível negado pelo social. A
radicalização das necessidades imanentes da superestrutura é a conseqüência
da ausência de correspondência infraestrutural de tais desenvolvimentos. Esta
radicalização explode muito rapidamente por tensão excessiva: então o campo
superestrutural se desfaz em tendências, fragmentações, descontinuidades,
208 etc. Apenas uma nova orientação infraestrutural e uma mudança profunda
nas relações de produção ultrapassadas e suas adaptações às potencialidades
das forças produtivas fundamentais poderão originar e impor novas configu­
rações às camadas super estruturais, imposição externa que deve ser interio­
rizada. Ora, não há dúvida possível: nós sabemos ou pressentimos que o atual
modo de produção arquitetônico deve ser superado. O horizonte que a palavra
arquiteto compreende se alarga na proporção de sua crescente indefinição
como componente superestrutural em decomposição no período tardio do
capitalismo. O fim deste modo de produção arquitetural que conhecemos e
praticamos é inevitável. E mais: é desejável.
O mal-estar não vem desta decomposição, hoje mais próxima da farsa do
que do drama — mas do vazio que resulta da necessidade de mudança social
fundamental reclamada sob formas diversas. Somente a presença efetiva de
uma outra situação produzirá a redeterminação esperada dos instrumentos
sociais superestruturais — mesmo um novo saber e uma nova prática arquite­
tural. Não importa quão aleatória seja a tentativa de estabelecer um modelo
no qual se possa garantir a adequação ao futuro — toda atitude conservadora
não resistirá mais ao peso de sua própria má-fé.
Para nós, a dificuldade nasce desta mesma eqüidistância: impossível a con­
fiança ingênua numa racionalidade de conteúdo exclusivamente arquitetural
no meio de uma irracionalidade estrutural — mas a configuração esperada é
ainda obscura. Mergulhados no seio de uma passagem estrutural, o compor­
tamento de passageiros (angustiados evidentemente), inevitavelmente pouco
tranqüilo, exige exame e adequação.
Como em toda modificação importante, algumas precauções são funda­
mentais: a apreciação adequada do essencial da herança histórica, dos meios de
produção (arquitetural) disponíveis e sua socialização; a crítica radical (que vai
até as raízes) do modo de produção (arquitetura que deve desaparecer); a expe­
rimentação ampliada de novos modos de produção (arquitetural), guiada por
probabilidades prospectivas variadas e não hipostasiadas, enquanto esperamos
uma determinação posterior pela necessidade histórica emergente; atenção
para não restringir a experiência e para guardar a disponibilidade ativa.
Somente a incorporação e um estudo cuidadoso das condições de mudança
e daquilo que vivemos nos permitirá a formulação de alternativas para a
paralisia e o mal estar atual. A consciência das carências e tarefas de hoje virá
da compreensão aprofundada da mobilidade estrutural presente.

AS TAREFAS FUNDAMENTAIS

A - A APROPRIAÇÃO DOS MEIOS DE PRODUÇÃO ARQUITETURAIS


209 A desagregação histórica de um sistema social provoca, inevitavelmente, o
desaparecimento do impulso e da razão que mantinham sua superestrutura.
O novo sistema emergente produzirá uma nova racionalidade, sem continui­
dade e*à distância da presente: não há continuidade entre as dimensões supe-
restruturais de sistemas sucessivos. Na passagem, a antiga configuração supe-
restrutural resiste e se estratifica defensivamente numa ambigüidade amarga:
ao mesmo tempo, de um lado, sua radicalização anterior mostra as potencia­
lidades reprimidas no antigo sistema, pela violência e irracionalidade, fruto
da manutenção de relações de produção atrasadas, no que ela é progressista, e
por outro lado sua própria inércia impede sua diluição necessária, no que ela
é reacionária. O novo supõe a morte como condição de nascimento.
“Na história, como na natureza, a podridão é o laboratório da vida”.1 Mas
é preciso estar atento diante de uma simplificação habitual: a degeneração de
uma forma não comporta nem exige a destruição simultânea de seus compo­
nentes. É provável que aconteçam transformações no âmbito dos componen­
tes; apesar de tudo, as tensões no modo de produção arquitetural podem pro­
vocar deformações cm seus componentes. Mas a transformação fundamental
deve se fazer sobretudo no arranjo geral, no próprio modo de produção. E o
que é muito importante para nós, esta transformação exige, como condição
de sua possibilidade, a permanência dos componentes (no início pelo menos).
A futura consciência será o desenvolvimento de uma reorganização do saber
estabelecido e não a miraculosa criação de um saber completamente novo em
cada detalhe. Numa linguagem menos imprecisa: um novo modo de produ­
ção (arquitetural) supõe a apropriação e a manutenção dos meios de produção
desenvolvidos ou criados pelo modo de produção que desaparece. Todavia, se
quisermos ser mais precisos, é a evolução destes meios de produção que exige
o aparecimento de um novo modo de produção, na medida em que o antigo
não responde mais às suas necessidades imanentes. Por exemplo, a socializa­
ção dos meios de produção arquiteturais, hoje submetidos à vontade autoritá­
ria do arquiteto tradicional ou da pequena equipe interdisciplinar, em função
de sua posição na produção, não depende de boa intenção: ela está inscrita na
racionalidade imanente destes meios de produção. O problema da definição e
da compreensão dos meios de produção solicita abertura e exame conceituais:
a seleção e a hierarquização atuais podem não corresponder à nova situação
esperada.
“Nossa herança”, os meios de produção de que devemos nos apropriar,
terão a forma de uma coleção de saber, conhecimentos, de técnicas parciais,

210 i K. Marx, O capital. São Paulo: Abril Cultural, 1983.


desestruturadas, destotalizadas. E nossa tarefa essencial acelerar essa dissocia­
ção se ela ainda não alcançou seus limites, decompor o modo de produção que
envelhece. Toda veleidade de restauração se perderá no interior das condições
práticas que apenas reproduzem o que queremos mudar. A atual situação da
profissão não é anormal: é exatamente o que deve ser nas circunstâncias atu­
ais. Por esta razão, em cada caso, a racionalidade imanente dos meios de pro-
/

dução deve ser o único guia da explosão de uma totalidade. E necessário bus­
car os signos da objetividade nas totalizações parciais e homogêneas. Assim, o
esfacelamento não deve nos preocupar, ao contrário, o momento negativo da
falsa totalidade não pode coexistir com uma ligeira positividade.
Mas seria ilusório esperar que a pura racionalidade seja suficiente para
vencer o que o uso prolongado, deformado e deformante, produziu. A isto é
necessário associar a crítica radical e a prática modificadora.

B - A CRÍTICA DO ATUAL MODO DE PRODUÇÃO ARQUITETURAL

O modo de produção é o que caracteriza mais o que conhecemos como arqui­


tetura hoje e onde o sistema imprime de maneira mais clara suas marcas.
Não há dúvida de que os meios de produção têm também sua importância
mas, no que lhes diz respeito, poderíamos falar de desvio, enquanto que o
modo de produção está num estado patológico.
Não podemos classificar como desvio a conduta solitária do arquiteto na
elaboração de seus objetos, cada vez mais destinados a grupos e produzidos
concretamente por uma grande quantidade de operários e de técnicos diver­
sos. Essa conduta é autoritária e violadora, predeterminada pelo sistema.
Deste modo, o que é necessário fazer com urgência é o aprofundamento
voluntário da ruptura e abandono desse modo de produção arquitetural. Não
existe nenhum remédio fácil ou imediato para essa crise (que não é a da
arquitetura, o que seria uma abstração a-histórica, mas sim a do sistema e de
sua arquitetura). A crítica radical é o nó fundamental da etapa contemporâ­
nea do pensamento arquitetural. As atitudes grotescas que compõem o exercí­
cio profissional devem sofrer uma intervenção áspera e imediata.
Mas toda crítica, mesmo radical, que não conduz a uma prática modifica­
dora, é um exercício acadêmico de pouco interesse.

C - ENSAIO DOS NOVOS MODOS DE PRODUÇÃO ARQUITETURAIS


Como complemento e contraponto dessa consciência crítica que se esboça e
da reorganização dos meios de produção a serem apropriados, devemos tentar
novos modos de produção arquiteturais de forma sistemática. Hoje, há nume­
rosas tentativas: por exemplo, imersão da arquitetura no meio social, desen­
211 volvimento da soft-technology, programação de escritórios públicos etc. Favo­
recer, aumentar e sistematizar estas tentativas, ensaios, constitui a grande
tarefa. O novo modo de produção social (esperado) e o novo (ou novos) modo
de produção arquitetural que serão decorrentes começarão mais facilmente se
conhecermos antecipadamente algumas de suas necessidades; a indetermina-
ção que existe ainda não impede a experimentação, desde que ela seja apenas
variada e distante das fixações prematuras.
Essa experimentação, na nossa hipótese, não pode ser aleatória. Pelo
contrário, a abertura do campo de possibilidades sobrecarrega toda escolha
de uma maior responsabilidade. A multiplicidade de opções dá prioridade à
consciência política. Não podemos afirmar que a apropriação socializante dos
meios de produção arquiteturais não é mais problemática para nós. Não pode­
mos nos comparar com operários que são capazes de tomar, com vantagem,
o controle dos meios de produção. Até agora, não podemos apresentar nossa
tarefa como cumprida sem má-fé ou simplificação grosseira e, do mesmo
modo que não podemos predizer o tempo de mudança, não podemos adiar sua
/
preparação. E o único não, concreto, que não confunde a auto-flagelação ingê­
nua com o combate cotidiano que expropria, pouco a pouco, os instrumentos
de dominação e os emprega na liberação.
O mais difícil, no início, é romper a totalidade fechada do sistema. De
fato, o exercício atual da profissão compõe um universo de uma tal força e
resistência que, apesar das enormes fissuras que o rompem, ele tem ainda
uma estabilidade enorme. O maior perigo de toda tentativa de um novo modo
de produção arquitetural é decair, além da aparência, no antigo modo de
produção. A espontaneidade não é suficiente: para ir além, é indispensável
análise racional e radical. O modo de produção (arquitetural) e sua ideologia
dominam de uma tal maneira os diferentes níveis de existência profissional
que nela mesma essa existência nos dirigirá ao que a faz tal como ela é. Assim,
poderemos quase afirmar: a tentativa que não é seguida de uma conscientiza­
ção crítica da situação presente, exaustiva e elaborada com rigor, não é uma
tentativa, é um encontro renovado do já acontecido.

CONCLUSÃO

Todas essas considerações anteriores parecem excessivamente especulativas


e negativistas mas contêm uma prática bem definida. Após as mudanças
sociais fundamentais, a situação encontrada será, sob certos aspectos, muito
semelhante àquela reinante antes do aprofundamento da crise. Teremos os
mesmos meios e forças de produção, mutilados, talvez, pela própria crise e
necessidades acrescidas pela possibilidade de manifestação efetiva. Mudarão
212 apenas os objetivos sociais e o modo de produção.
Podemos, portanto, dizer que a visão e a prática racionais diante das ques­
tões atuais, contêm, necessariamente, os únicos componentes prospectivos,
/

objetivos. Prospecção verdadeira=visão de hoje. E, portanto, em função de


problemas reais apresentados hoje à arquitetura que os novos modos de pro­
dução arquitetural devem procurar soluções completas, respostas exaustivas.
Sem esta perspectiva na revisão dos meios de produção, a crítica do modo de
produção arquitetural atual teria pressupostos duvidosos.

RESUMO

í. O atual modo de produção arquitetural, deformado e deformador, não pode


servir como base de uma nova consciência da arquitetura, nem como guia da
elaboração de um programa para a formação de arquitetos.

2. A atual situação de crise e de transição impõe uma conduta metodológica


específica e experimental, composta de três etapas fundamentais:
a) Preservar e aperfeiçoar os meios de produção arquiteturais.
b) Aprofundar a crítica radical do atual modo de produção.
c) Tentar, com um critério rígido, novos modos de produção arquitetural,
na expectativa de uma determinação por um novo modo de produção social.

3. As verdadeiras necessidades atuais, se examinadas racionalmente, estarão


na origem dos modos de produção arquiteturais novos, próximos possivel­
mente daqueles requeridos por um outro tempo.

Tais são nossas hipóteses de trabalho.

213
DESENHO E CANTEIRO NA CONCEPÇÃO DO CONVENTO DE LA
TOURETTE 1988

I i

Segundo a velhíssima "doxa”, o desenho de arquitetura tem que responder a


três inj unções: cuidar da soliditas, da correção técnica; respeitar a utilitas, vigiar
o funcionamento; bajular a venustas, enfeitar. (O que, de cara, divide desastra­
damente o todo que as três deveriam formar pois são meros momentos do cons­
truir.) E o desenho que as arranja como pode, transforma-se em prescrição: há
que construir o desenhado. Tudo claro.
Só que, entre nós, por razões que não retomarei aqui (as tramóias da
exploração capitalista no canteiro), Afrodite e Prometeu, venustas e soliditas
se divorciaram feio. O que pôs utilitas em posição de destaque no moder­
nismo (“formfollowsfunction”, etc), pelo menos até 1980. Depois, venustas
divorciada caiu na farra, utilitas perdeu o prestigio e soliditas alterna momen­
tos de depressão e euforia. Por trás da encenação, o canteiro abafado é quem
escreve o roteiro.
Nós, do laboratório Dessin/Chantier (a ler: desenho sobre o canteiro, por
cima do canteiro), temos a mania de detectar os efeitos dessas mazelas na
obra. Por isto, quase como provocação para nós mesmos, nos pusemos a exa­
minar o convento de La Tourette, de Le Corbusier — obra hoje quase sagrada,
de um charme danado, uma das primeiras manifestações e ícone maior do
brutalismo, realizada por um arquiteto que gostava de se dizer batisseur,
construtor. O brutalismo então teve grande impacto; seu programa parecia
entusiasmante: fundar o desenho na verdade construtiva enfaticamente.
Poderíamos esperar encontrar a raridade: o convento seria o recasamento de
venustas e de soliditas, da arte e da técnica, a reconciliação pregada por todos
214 e efetivada por ninguém.
Mas qual o que: venustas continuava infiel a soliditas. De surpresa em
surpresa, estudando a numerosa documentação técnica da obra, entulhada na
Fundação Le Corbusier e nos arquivos das empresas construtoras ainda exis­
tentes, descobríamos a tal “verdade” construtiva de seu brutalismo. A recon­
ciliação, de tanto efeito midiático, era mais um espetáculo para a sociedade
do mesmo nome. O divórcio continuava fundo — agravado pelo precipitado
anuncio de seu fim.
Dissequemos o edifício. Quando o visitamos, somos dominados pelo poder
de sua plástica construtiva quase titânica. Tudo parece corresponder a uma
lógica forte, bem pensada e segura de si, acentuada pela exuberância tensa
da matéria crua. Cada elemento parece estar no seu lugar, bem determinado,
com a forma conveniente. Um jogo realmente sábio dos volumes. Ainda creio
que isto vale para a igreja e seus adendos. Mas, descascando o resto do con­
vento, descobrimos um outro brutalismo, o da velha encenação outra vez. E, de
novo, dois corpos, um abafando o outro, duas linguagens sobrepostas, o mesmo
léxico em enunciados quase sempre opostos. Vejam a empena do lado oeste
[figura]. Tal atitude vem de longe, desde
Alberti ou Palladio. A partir daí, vemos em
geral o que não é portante e não vemos o
que é. Necessidade do capital. E tendemos
a aceitar o que vemos e que tampa o que
não devemos ver, artimanha do fetiche.
Pois o que vemos tem ar de uma arquite­
tura plausível, se fosse de verdade. E esque­
cemos o que não vemos.
Assim, o conjunto da estrutura do con­
vento, fora a igrej a, nos faz crer que o velho
L.C. segue ainda o modelo teórico das casas
Dom-ino: estrutura regular e homogênea de pilotis, pilares, vigas e lajes iguais;
divisões por paredes em planta livre que nunca se esbarram com a estrutura,
que podem ser alteradas, pois não sustentam nada (como na arquitetura do
primeiro Niemeyer ou do Rino Levi na avenida Higienópolis, em São Paulo).
Ora, estudamos em detalhe as plantas de concreto do convento: nada disso, não
há regularidade alguma, praticamente só casos particulares, adaptações, perfis
variados etc. Os pilotis, que parecem se repetir, variam de forma, ora retangu­
lares, ora circulares, ora em “pente” (nomenclatura dos arquitetos). Subindo
pelo prédio, se alteram ainda, viram colunas redondas, saem do alinhamento
e, lá em cima, desaparecem no interior das paredes. Contra a lógica mostrada
- esqueleto regular preenchido livremente, antecipação de possível industria­
215 lização troca de favores, o constante compromisso, a volta à péssima manu-
fatura, a da solução precária, do jeitinho, confundidora da seqüência produtiva
racional. O que parece bem pensado freqüentemente é obra do acaso. Algumas
vigas e as lajes do “piano” e da sacristia, perfuradas por “canhões de luz” (no
“piano”) e por “metralhadoras de luz” (na sacristia), inexplicavelmente apon­
tados para fenômenos astronômicos (equinócios ou solstícios), eram irrealizá-
\

veis. O que é surpreendente da parte de um “construtor”. As pressas foi convo­


cada uma empresa de construção de pontes, que resolveu o impasse recorrendo
ao concreto protendido — numa de suas primeiras aplicações em edifício na
França, solução cara e então insegura. E o fruto do acaso (que deixou sua
marca na belíssima seqüência de cilindrozinhos de ancoragem dos cabos na
fachada do “piano” e da sacristia) foi apresentado pelo mestre como contribui­
ção ao avanço tecnológico. Como o doente que se vangloriasse da invenção do
remédio. As mentirinhas não são só de desenho. O que não impede evidente­
mente que o “piano” seja uma obra prima. E que nos faça crer que foi previsto,
tal sua perfeita pertinência plástica, mesmo se foi agregado para atender o
esquecimento dos altares individuais — o que também ocorreu com o órgão e o
conduto de fumaça ovoide, todos também parecendo pressupostos desde sem­
pre, necessários onde estão.
A racionalidade sugerida pelo desenho, mas capenga no real, provocou
crises no ateliê da rue de Sèvres. Xenakis e Wolgensky se desentenderam e
para sempre. Xenakis (péssimo arquiteto — sua obra pessoal posterior prova
—, músico de “avant garde” — dirigiu um concerto de touros —, desenhista
lamentável) era o arquiteto encarregado de desenvolver o projeto, intérprete
dos esboços de L.C., que se ocupava muito mais de Chandigarh; Wolgensky
era o chefe do escritório (um arquiteto mais convincente, como demonstra a
Maison de la Culture de Grenoble) e criticava asperamente alguns aspectos
do convento, em particular a estrutura e os custos das decisões atabalhoadas.
O custo máximo previsto era de 180 milhões de francos — mas a obra chegou
a 250 milhões, dos quais 74% foram gastos com a estrutura confusa. Houve
cartas desaforadas, reuniões sombrias. E até hoje (1988) se disputam à dis­
tancia. Entrevistamos os dois. Xenakis no seu ateliê de programada desordem
artística; Wolgensky, no antigo apartamento de L.C. inspirado ainda pelo
desenho de navios. Pelo que dizem, a história seria assim: fora o arranjo
geral, L.C. fez pouca coisa — salvo alguns detalhes. Obrigando, por exemplo, à
importação de pormenores de Marselha (fez reutilizar as fôrmas de molda­
gem dos balcões dos quartos, as loggias, trazidas de lá) ou das “ondulatórias”
/

inventadas por Jeanneret na índia. Quase todo o resto, sempre segundo eles,
foi obra dos dois, sendo Wolgensky o menos ambicioso nas reivindicações.
Xenakis assume a autoria de muito mais — mas, felizmente, 0 que o exame
216 dos desenhos guardados na Fundação Le Corbusier mostra é que muitas pro­
postas suas não foram executadas, como o auto-falante gigante na cobertura,
o extravagante órgão central e as tristes piramidezinhas para o tratamento do
som, tudo na Igreja, assim salva dos impulsos do músico. Quando foram acei­
tas, Wolgensky diz serem suas também, como os “canhões de luz” — repente
de Xenakis emborcando um balde — ou madura reflexão de Wolgensky. Vá
saber. O mito tomou conta de todos os depoimentos. Os padres se lembram de
um mundo angélico, cheio de gracinhas místicas. Quizemos ter a versão ope­
rária. Procuramos muito, achamos alguns, até um preso na Argélia. Mesmo
panegírico inflamado, lembranças do dia em que L.C. deu bom dia para um,
abraçou um outro, disse isso ou aquilo.
Ora, estudando cartas, relatórios, etc., ficamos sabendo que não foi assim:
confusão permanente, desenhos chegando após a execução ou não chegando
nunca, atrasos, desentendimentos de equipes de trabalhos, disfuncionamen-
tos, crises, etc. A tal ponto que Xenakis associou o que se passava no canteiro
com seus “glissandi”: escreve o começo de um trecho musical e seu fim, dei­
xando a orquestra, cada musico por si, se virar no intervalo, o que, em si, não
é uma má idéia.
\

As críticas e reclamações, L.C. respondia com a autoridade do gênio con­


sagrado. Diante das sugestões para alterar as loggias, muito afastadas dos
apoios, com balanços custosos, ou para reduzir a altura dos acrotérios (no início
do projeto, o átrio foi imaginado na cobertura do convento, com rampas de
acesso envolvendo a igreja que ficaria parecendo um zigurate; daí a altura dos
acrotérios que só deixam ver o céu; com o deslocamento do átrio para a cruz
central, tal altura não tem mais motivo funcional), respondeu mais ou menos
assim: “tenho 68 anos, desde minha juventude gosto deste tipo de loggia que
vi no convento de Ema e eu as farei; diminuir os acrotérios? De jeito nenhum”,
etc. Rejeita as reclamações de bom senso vindas da obra. Aplica o modulor
que idolatra a regra de ouro mas desconhece as medidas dos materiais. Como
a regularidade da estrutura, sua utilização se limita ao necessário para criar a
ilusão de sua presença em toda parte: medidas de corredores, quartos, algumas
caxilharias... Trouxe as “ondulatórias” de seu primo e, mais uma vez, deixou
a coisa escorregar. Nas mãos de Jeanneret, elas eram dimensionadas a partir
das medidas dos vidros disponíveis, para diminuir custos de corte e perdas.
Xenakis, ao contrário, as desenhou seguindo o ritmo das batidas de seu lápis na
prancheta e com o modulor ao lado. Venustas musical em vez de lógica cons­
trutiva — mas que rendeu quilos de artigos encantados.
Há muito mais, vejam nosso livro, mas paro por aqui. O pouco que lem­
brei acima sobre esta obra, que foi, repito, uma das fundadoras do bruta-
lismo e de sua exaltação da verdade construtiva, nos espanta. Tanto o projeto
quanto a condução do projeto e de suas relações com o canteiro se afastam
muito do modelo de precisão e previsão mecânicas que a plástica mostrada
nos faz pressupor. A programação exigente e exata sugerida esconde uma
manufatura bagunçadíssima. A real verdade construtiva de nível 1, enco­
berta em nível 2, por um desenho ilusionista, desmente o discurso programá­
tico cuja verdade, a mentira, assim se revela. Não que a de nível 1 merecesse
respeito ou admiração: das mais corriqueiras, abastardada pelo uso espoliador
próprio ao capital. Mas as “correções” visuais, pelo menos sob o ângulo téc­
nico, não sugerem uma construção tão avançada assim. A empena da fachada
oeste que vemos não é superior nem inferior à que não vemos, e as pseudo-
vigas ciclópicas horizontais fingindo madeira empilhada são tão absurdas
quanto as colunas com verrugas (chamadas “açúcares” para nos confundir
ainda mais). O que nos arrebata por sua energia plástica indiscutível destoa
com o projeto progressista.
Mas L.C. sabe impor seus interpretantes, nos induzir a ler suas obras de
um certa maneira, nos captar com sua retórica. Ele nos faz crer numa espé­
cie de montagem mecânica de grandes dimensões usando vários artifícios.
Implanta o convento sobre altíssimos pilotis que não deformam o terreno
e parecem pernas de um engenho que teria chegado pronto e pousado lá.
Dispõe seus volumes com sabedoria vinda da pintura e da escultura cubistas,
em particular de sua experiência com o equilíbrio dinâmico descrito por A.
Lhote: corpos diferenciados se agregam como satélites ou adendos a sólidos
simples, 0 peso visual de um compensando o de outro dissemelhante e cujas
formas se rebuscam na proporção das distâncias variadas a um centro irradia­
dor. Se o equilíbrio clássico baseado na simetria paraliza o dinâmico, produz
sensação de energia e tensão.

218
Como numa enorme montagem mecânica, peças menores são coladas a
dois sólidos simples (um retângulo e um U tripartido). O ar prometeico, acen­
tuado pela aspereza da matéria, provém também da junção crua das peças ao
núcleo. Os cubinhos do método Frõbel que L.C. conheceu na sua formação
talvez ressurj am aqui.
O paradigma da montagem sem transições de sólidos fortes desce
aos detalhes.

A “construção’ mostrada, enfatizada pelo material bruto e o contraste seco da


geometria, é fantasmática, convincente mas falsa. Salvo, acho, em parte, na
igreja, raro caso em que L.C. realiza seu sonho de uma arquitetura de um só
material. A construção real não é montagem de peças incrustadas na trama
homogênea de colunas e vigas, como sugere a mãozona que enfia um aparta­
mento na estrutura de Marselha. Entretanto, como evitar sermos subjugados
pela intensidade plástica desta ficção? A potência retórica da somatória franca
torna verossímil a substituição da construção real, onde mil bricolagens
dão sustento ao rigor sugerido. Desde o proêmio, a entrada, somos dirigidos:
pilotis, o desenho livre dos nichos de conversação e um montículo amorfo,
suposto lixo do canteiro esperando remoção. Como num modelo reduzido, em
poucas palavras o essencial nos é dito: lógica construtiva estrita, desembara­
çada de todo supérfluo. Até os acabamentos grosseiros, em surdina, colaboram:
não são mais vestígios de uma produção apressada mas efeitos dos choques,
fricções entre peças pesadas durante a montagem imaginária.
Todos sabem, a arma primeira da retórica não é a verdade mas a verossimi­
lhança. L.C. nos convence, se não nos pusermos a olhar atrás da cortina.
A vigorosa boniteza mecânica se impõe. L.C. manipula quase todas as cate­
gorias semióticas. Realça a textura dos materiais, cria encontrões secos entre
eles, substitui a lógica progressivamente cumulativa da manufatura pela
instantaneidade de um mecanismo gigante, troca os diagramas construtivos
reais por esquemas reguladores abstratos, transforma as marcas do trabalho
em sinais de encontro áspero entre coisas, espalha oposições que mimam uma
linguagem bem articulada, muda os termos (em vez de capela lateral, “piano”-,
em vez de iluminação zenital, “canhões” e “metralhadoras” de luz, em vez
de tapa-vista, “flor de concreto”, em vez de pilotis, “pente”, em vez de jane­
las, “planos de vidro musicais”, etc.), solta slogans (“ritmos ondulatórios”,
“acústica visual”), monta explicações poéticas (ver citações abaixo) etc. Cada
categoria semiótica é trabalhada por ele. Reelabora a gramática e a semântica
e muda assim todos os interpretantes. E a mascote do brutalismo nos leva no
bico. Como os signos não proposicionais, plásticos, não têm existência (como
signos) fora de uma proposição (que nós de hábito elaboramos interiormente
mesmo se de maneira vaga), o fato de L.C., nos seus textos, oferecer-nos várias
já prontas, conta enormemente. Assim, desde seu comentário sobre o primeiro
esboço do convento ele já dirige nossa leitura: “Aqui, neste terreno, que era tão
móvel, tão fugidio, descendo, escorregando, eu disse: não vou tomar por base a
terra porque ela escapa. Tomemos por base, no alto, a horizontal do prédio no
topo, mediremos todas as coisas a partir daí e atingiremos o chão no momento
em que o tocarmos”. Curiosa posição para um “construtor”: partir do teto. A
edificação real, coitada, tem sempre que sair do chão. O oxímoro, o teto é a
base, anuncia o quiasmo das relações entre o desenho e o canteiro: lá, o anda­
mento vai da ficção à construção, aqui, da construção à ficção. Quase todos os
comentaristas do convento o olham assim, de cima para baixo, pondo de cara
a construção real de lado. Eu mesmo aqui, ao dizer que o prédio parecia um
engenho pousado no terreno, caí na lábia do mestre.
Para terminar agradando o auditório, resumo tudo enfiando o que vimos
(salvo o que diz respeito à igreja) no quadradinho da estrutura elementar da
significação de Greimas, o ídolo deste encontro.

modelo teórico modelo produtivo


montagem sob o capital

i
estrutura fictícia estrutura real

O modelo teórico da montagem é contraditório em relação à estrutura


real, assim como a estrutura fictícia deve ser contraditória com o modelo pro-
/

dutivo sob o capital. E evidente que o modelo teórico da montagem contraria


o modelo produtivo da manufatura sob o capital, assim como a estrutura
220 fictícia contraria a estrutura real. E claro que a estrutura fictícia depende
do modelo teórico da montagem e que a estrutura real depende do modelo
produtivo da manufatura sob o capital. Não aprendemos muita coisa com
isso. Entretanto, um aspecto destas relações merece destaque: a maior tensão
contraditória se manifesta entre os modelos e as ocorrências efetivas, plásti­
cas, dos modelos opostos. Ou seja, só podemos verificar a contradição opondo
a realização de um modelo com o modelo oposto, a manifestação com o con­
teúdo oposto. O que é uma pista para a análise.
Dá trabalho achar o sentido, isto é, a falta de sentido unívoco das coisas hoje.
Por isso, o discurso dos arquitetos é fundador e os de L.C., exemplares. Não
por sua.suposta verdade ou pertinência. Em geral são incoerentes, incomple­
tos e pobremente utópicos — mas têm papel enorme na formação da leitura
de interpretantes prioritários. Que sejam vagos e imprecisos, não importa
— ao contrário, podem assim ser aplicados a ocorrências díspares. O que conta
é que determinam o que devemos pensar da obra, ou melhor, da casca da
obra. Eles nos conduzem a nos focalizarmos nela e fornecem os atributos que
devemos aceitar. Trata-se da formação de crenças por via autoritária. Assim
equipados, quando visitamos a obra, vemos uma encarnação do modelo,
completamos mesmo as lacunas para adaptá-lo a elas. Falei muito aqui de
“montagem mecânica”: vi de verdade isto ou me deixei induzir pelo discurso
e pelos esquemas de L.C.? Pouco importa, quando li a casca, li como ele gosta­
ria, acho. E é esta visão, a do hábito, do modelo teórico, da crença, que é con­
traditória com a estrutura real, a casca reduzida então a um exemplo deles.
Esta é a função efetiva e poderosa da retórica do verossímil, dos esquemas
programáticos: lêem por nós, enfiam sua interpretação na nossa cabeça — e
nos dispensam de pensar ou desconfiar. Caímos no seu fascínio: é o que passa
por ser arrebatamento estético.
PROGRAMA PARA PÓLO DE ENSINO, PESQUISA E EXPERIMENTAÇÃO
DA CONSTRUÇÃO tr.

1994

A PROBLEMÁTICA

A CONSTRUÇÃO, UMA DISCIPLINA SUBESTIMADA NO ENSINO DA ARQUITETURA

A arquitetura vem apresentando, há cerca de uns quinze anos, certa melhoria


quanto à funcionalidade e à integração urbana. No entanto, essa evolução
evidencia uma carência prejudicial ao movimento que se iniciou. Na ver­
dade, se a dimensão do projeto constitui hoje um autêntico saber fazer (bem
visível na escala dos concursos, por exemplo), a da construção ainda continua
amplamente subestimada na formação arquitetônica e desacreditada entre
os jovens profissionais. No final, esse desequilíbrio vai se mostrar prejudicial
à produção arquitetônica inteira, desigualmente dividida entre concepção e
produção, entre desenho e canteiro de obras. Desde já, se pode apontar um
certo número de carências tanto no plano da formação quanto no do exercício
profissional comum:

■ O curso de construção nas escolas de arquitetura baseia-se na transmissão


de saberes analíticos apresentados como produtos acabados. Integra-se mal
a uma demarche de projeto que implica uma constante adaptação do fator
técnico à medida que o projeto evolui.
* Os alunos não têm, praticamente, nenhum contato com os diversos atores
do ato de construir e, conseqüentemente, com os problemas ligados ao uso
dos materiais e à segurança das pessoas. Assim, sua compreensão do ato de
222 construir acha-se amputada de uma de suas dimensões essenciais.
• O ato de antecipar um projeto a ser construído que constitui o projeto de
arquitetura é atualmente limitado a uma visão abstrata. Falta-lhe, no
processo de concepção, uma série de etapas que passam por instrumentos
que permitem manipular materiais e formas de modo mais concreto, mais
experimental.
• Os arquitetos raramente podem testar um elemento inovador de seu
projeto de uma outra forma que não na obra que constroem ou, mais
raramente ainda, junto ao fabricante. Tal situação contribui para frear a
inovação técnica nos canteiros de obras e nas empresas.
• Os pesquisadores das escolas de arquitetura não dispõem de nenhum meio
para testar materialmente suas hipóteses, em especial no que se refere à
técnica de aplicação ou à modelização estrutural.
• Os industriais e os fabricantes, no momento atual, não encontram nas
escolas de arquitetura um lugar privilegiado para expor a interlocutores
motivados (futuros prescritores) os avanços de sua tecnologia.

HIPÓTESE PEDAGÓGICA

Não existem doisfatos tipicamente humanos, dos quais um seria a técnica e o


outro a linguagem, mas um únicofenômeno mental, fundado neurologicamente
em territórios conexos. [Leroi-Gourhan]

A Obra não é, pois, para si o todo efetivamente animado, mas ê este todo somente
quando ela é tomada com seu próprio devir. [Hegel]

A programação inicial do gesto motor elabora-se antes do córtex motor; no


nível das regiõesfrontais do córtex onde se supõe, igualmente, que o primeiro
pensamento criador germina e se constrói [...] Os mesmos neurônios intervêm na
‘compreensão*e na execução do gesto. [J. P. Changeux]

Hegel, Leroi-Gourhan, Prouvé e muitos outros insistiram na estreita imbri­


cação que liga fazer e conceber, praticar e pensar, experimentar e antecipar.
Hoje, essa idéia é conhecida, aceita e preconizada em toda parte. Nosso pro­
jeto pedagógico toma simplesmente essa imbricação do pensar e do fazer
como base de programa. O saber teórico e a simulação, certamente indispen­
sáveis, são, entretanto, insuficientes para alimentar, apoiar e inspirar a criação.
A qualidade pensada do edifício é indissociável de sua qualidade realizada e,
necessariamente, nessa área, a compreensão do conceito procede também da
compreensão do fazer.
O canteiro de obras, ainda hoje, é essencialmente manufatureiro. Isto é,
225 baseia-se na manipulação dos materiais por competências múltiplas, por habi­
lidades de difícil transposição para as máquinas. De fato, ele é articulado por
seqüências produtivas diversas e, às vezes, contraditórias. O canteiro associa
inúmeros materiais a partir de trabalhos específicos, assistidos por máquinas
poderosas, é evidente, mas elementares. Poucos exemplos na construção esca­
pam a esse modelo, mesmo nos países desenvolvidos.
O canteiro, desse modo, limitado por sua pequena exteriorização mecânica,
impõe uma imersão em seu universo. Para oferecer ao projeto os próprios
limites de suas possibilidades, nenhuma simulação pode, aqui, substituir o
confronto direto de seu universo.
Entretanto, é pouco concebível transportar a escola para o canteiro, cujas
dimensões constitutivas não são apreensíveis de forma imediata. Em contra­
partida, preservada pela progressividade e pelo apoio pedagógico inerentes ao
estatuto da experimentação, uma atividade pedagógica de canteiro de obras
oferece sua parte positiva na formação.
A atividade do pólo de ensino, de pesquisa e de experimentação da cons­
trução abre o projeto à compreensão do fazer. Integrada à formação, essa
atividade permite apreender, de forma sensível, as estruturas, os grandes
princípios construtivos e as grandes etapas de produção. O pólo permite a
experimentação e o ensaio em grande escala; abre, desse modo, novas pers­
pectivas, proveitosas para as estruturas de ensino e, ao mesmo tempo, para as
etapas de produção e para os profissionais:
— a experimentação estimula a melhor perceber a dimensão do ato de tra­
balho (portanto, sua racionalização possível) na forma do próprio projeto;
— um verdadeiro laboratório dos sistemas construtivos facilita a conexão
excepcional no nível da invenção e da inovação;
— a ampliação de sua competência estimula os arquitetos a abrirem o diá­
logo com o mundo dos fabricantes, dos industriais e das empresas, e multi­
plica ainda mais suas perspectivas;
— projetos com maior motivação por sua aplicabilidade acarretam uma
melhor adequação dos meios aos fins; logo, economias de escala importantes;
— um mercado importante, o da construção, é enfim acessível aos arquite­
tos, no qual eles são atores e não mais simples figurantes.

ESTRUTURA PEDAGÓGICA

A estrutura de apresentação e de exposição não é necessariamente idêntica à


estrutura do objeto ou do campo apresentado e exposto. A formação tem pres­
sões próprias que, com freqüência, não são as do objeto da formação.
Desse modo, embora hoje o canteiro de obras se organize em toda parte
224 sob a forma da manufatura (serial ou heterogênea), a estrutura de ensino e
de pesquisa iniciada pelo pólo não imita servilmente a organização do traba­
lho em equipes de produção ou em profissões. Tal solução teria tornado o pólo
muito semelhante ao modelo de nossa situação imediata; ora, as equipes e a
divisão das profissões variam enormemente com o tempo e com os contextos
sócioeconômicos.
Preferimos uma estrutura de ensino, de pesquisa e de experimentação
que decorresse diretamente de uma consideração da matéria em seu sentido
amplo, entendido, ao mesmo tempo, como objeto físico (com pressões de
forma, de força, de materiais) e como objeto econômico (com pressões de pro­
dução, de manipulação, de ambiente, de uso).
Na organização do pólo, quatro temas balizam o estudo do projeto constru­
tivo: forma, força, material e produção.

AS QUATRO GRANDES ARTICULAÇÕES

Forma
O universo das formas tem suas próprias leis e uma eficácia específica. Teo­
rias e metodologias variadas elaboraram um saber que já pode ajudar a
concepção com pertinência e firmeza. Essa autonomia de base, entretanto,
é sempre sobredeterminada por múltiplos fatores — pela modelização que
a informa, por exemplo. Os instrumentos de representação e as referências
imaginárias colorem a forma, limitam sua autonomia.
Ora, a distância excessiva entre concepção e realização provoca, atual­
mente e com freqüência, a exclusão do imaginário construtivo eficaz e uma
dependência exagerada do desenho em relação aos meios de projeção.
Uma das vocações do pólo é renovar a inervação da forma através da
“idéia construtiva”, restaurar sua atenção para as possibilidades expressivas da
correção técnica, assegurar a objetividade de sua função prescritiva. A forma
cai na parcialidade autoritária e perde sua aura ética quando não se estende
ao conjunto de suas finalidades, de seus deveres.
Ainda que nunca se deva descartar o ensino sistemático em torno da rela­
ção entre o desenho e o fazer, a expressão adequada das potencialidades da
matéria implica a imersão profunda nos momentos da realização. A operação
de estruturar não pode dispensar a experiência da efetividade, do vivido.
Os caminhos obscuros da retroação do operar sobre o conceber cruzam habi­
lidades e competências numerosas, heterogêneas, pouco teorizadas ou, em
geral, descartadas do ensino. Eles implicam, através da análise, a compreen­
são da prática.
Forcao
Em cada grande período cultural, elaboraram-se e fixaram-se paradigmas
de pensamento técnico em uso. Não faz muito tempo, o edifício era pensado
como a adição de paredes vazadas por portas e janelas, coroadas por um teto.
Tal paradigma ainda está vivo em muitas regiões, colorido, aqui e ali, por par­
ticularidades econômicas, logísticas, sociais etc. Hoje, se tende antes a dividir
diferentemente o construído, em estrutura, revestimento, repartições inter­
nas, fluxos, entrecruzamentos etc. Em alguns momentos, domina a constru­
ção maciça; em outros, aquela voltada para as estruturas leves. A concepção
dos esforços, o cálculo das estruturas, a seleção das propriedades consideradas
pertinentes aos materiais, as normas de conforto, a atitude para com o meio
ambiente etc., numa palavra, a_ cultura construtiva, sob todos os seus aspectos,
...sofre constantemente a injunção de situações diversas, mais ou menos felizes,
jque a levam para o uso de certos modelos e para a exclusão de outros. Seu
conhecimento é indispensável, associando estreitamente a história da cons­
trução e da técnica à sua formulação teórica.
- • ■ ” • • - • •• / »*•••*

Porém, ainda uma vez, a abordagem através das regras, esquemas, inter­
pretações e princípios (o que a semiologia identifica como diagramas) dá
demasiada importância unicamente ao pensamento. Mesmo na hipótese
mais favorável a esse pensamento, não é possível eliminar a experiência
direta daquilo sobre o que ele pensa. A representação técnica, a “teoria”, é
sempre seletiva, empobrecedora, e o “real” a supera amplamente. O tipo de
pensamento implicado por esses paradigmas técnicos — grosso modo, o enten­
dimento — é um dos mais sujeitos aos encantos da ideologia. Raramente ele
é puro, exclusivamente técnico como se imagina. A economia política, aqui
também e por inúmeros reveses, o sobredetermina amplamente.
A experimentação crítica, aberta às potencialidades não exploradas e
atenta às diversas “lógicas de situações”, é indispensável. A arquitetura deve
retomar seu direito de proposta técnica inovadora, seu papel de prospec-
ção estrutural inteligente e responsável. A utilização correta dosjnateriais
segundo suas_ virtualidades intrínsecas é um dos caminhos privilegiados para
responder às.necessidades crescentes de construção,'obedecendo à ecologia e
às dificuldades econômicas.
No pólo, o ensino prático das culturas construtivas será muito desenvolvido,
o que é essencial. Em suas etapas mais evoluídas e na pesquisa, seus paradig-
_rnas devem ser_expliçita.dos1r^lativizados, criticados. Toda transformação fun­
damental em arquitetura passa prioritariamente por sua revisão lúcida e pela
abertura a outros paradigmas.

226
Material
Entre os objetivos do pólo, o conhecimento multiforme do material ocupa
um lugar privilegiado. O estudo e a experimentação das qualidades próprias
aos diferentes materiais, como a pedra, o aço, o concreto, a madeira, o vidro,
os polímeros devem voltar à base da composição arquitetônica. A noção de
“resistência do material”, habitualmente formulada em fim de programa, é
proposta no início, pois se trata de criar “com” os materiais.
Desse modo, são introduzidas no pólo as questões ligadas às propriedades
mecânicas dos materiais e ao dimensionamento, o problema de sua longevi­
dade, as questões ligadas às disposições arquiteturais, às técnicas de constru­
ção e às lógicas construtivas.
Nos materiais, há uma “memória cultural”1 *cuja diversidade e estabilidade
superam amplamente as de nossa memória habitual. Essa “memóriajcultural5’
dos materiais traz rastros das competências, mas ultrapassa as fronteiras con­
junturais entre as equipes de trabalho. O material, sratese-de matéria e história
condensada da produção, traz em si as potencialidades e.as contradições do
^construir: é preciso, entretanto, reconhecê-lo. Ele é a ponte que une o saber e a
experiência universitária às indústrias da construção, os interesses dos setores
da produção aos interesses em jogo dos trabalhadores e dos usuários.
No pólo, cada material de base é assim dotado de um equipamento ade­
quado, capaz de responder à totalidade desses níveis.

Produçãoo
/

E em seu tornar-se outro que emerge a verdade do conceito, da antecipação


desenhada. O projeto, além de suas funções distributivas de espaços, de usos
e formas, tem vocação prescritiva. A encomenda, de perto ou de longe, a
articulação dos trabalhos, a seqüência das equipes, a qualidade das interfaces
e entrecruzamentos de profissões e materiais, a correção (ou os defeitos) da
“idéia construtiva” podem agravar ou atenuar os perigos do canteiro de obras
(acidentes, doenças profissionais etc.). Se o projeto se adapta às condições efe­
tivas de produção, suas modalidades diversas podem responder a “lógicas de
situações” (situação dos meios e forças de produção em determinado contexto
que orienta as opções ótimas),.
Em resumo, projeto e canteiro se inter deter minam e a verdade maior do
projeto emerge no canteiro, síntese e verificação dos momentos anteriores
(forma, força, materiais: meios espirituais e materiais de produção). A produ-

i Cf. Lumsden e O. E. Wilson: Genes, mind and culture: the coevolutionary process.
227 Cambridge, MA: Harvard University Press, 1981.
ção (ação das forças mecânicas e humanas de trabalho) deveria, em retorno,
orientar sua conveniência técnica, plástica e cultural. O momento do fazer
testa a validade das hipóteses de projeto.
Uma das características estéticas fundamentais desde o Renascimento — o
rastro {trace) — falta cruelmente na arquitetura. A encenação teatral, a execução
musical, a pincelada do pintor dão vida aos textos, partituras, esboços.
0 abafamento e a submissão do momento produtivo privam a arquitetura
de um de seus mais férteis meios de expressão.
Pelo mergulho na produção, o pólo quer facilitar, simultanecimente, a
compreensão do fazer no projeto antecipador e a expressão vivificante do tra­
balho feliz em torno do traçado responsável.

AS MODALIDADES PEDAGÓGICAS, DE PESQUISA E EXPERIMENTAIS

A experiência, a inovação e a crítica estão no centro da política do pólo. Elas


supõem procedimentos diversos. Mas a constante associação da teoria e da
prática impõe modalidades particulares à sua organização.
A divisão do pólo em atividades ligadas à forma, à força, aos materiais e
à produção, bem como a interação dessas atividades, dão um embasamento a
essa organização (ver esquema abaixo). A divisão das atividades encontra sua
expressão nas unidades de base; a interação, nos grandes ateliês.

COMISSÃO
CIENTÍFICA E
PEDAGÓGICA
GRANDE ATELIÊ GRANDE ATELIÊ
PEDAGÓGICO f°rma EXPERIMENTAL
força
materiais
produção

As unidades de base
Cada unidade de base do pólo — de forma, de força, de materiais, de produ­
ção (conforme o esquema) — deve estar apta a responder à totalidade de suas
missões, do ensino elementar às experiências de ponta. Além do equipamento
coletivo (salas de aula, de trabalho prático, biblioteca etc.), cada unidade dis­
porá de um equipamento específico, adaptado ao seu conteúdo (ateliê, mate­
rial, espaços de pesquisa etc.). Em torno dessas unidades, laboratórios, equipes,
professores, pesquisadores poderão desenvolver atividades especializadas
ligadas às diversas missões do pólo. Cada unidade de base funciona de maneira
228 autônoma ou em relação com outras unidades. Desse modo, serão abordadas
em suas particularidades as diferentes fases de concepção (forma e força), de
transformação de uma matéria-prima desde a elaboração inicial até sua apli-
caçao e conservação (materiais) e de realização (produção). Em cada unidade
de base (principalmente nos ateliês específicos), será possível propor exercícios
de manipulação e de análise, mas, igualmente, a execução dos exercícios de
construção em diferentes escalas, os quais tornam mais explícitos e mais com­
preensíveis os princípios de forma, de estrutura, de matéria e de agrupamento.
Do mesmo modo, as experiências derivadas das pesquisas específicas encon­
trarão, em torno dessas unidades de base, o equipamento indispensável. Essas
unidades produzirão, ainda, modelos de realizações exemplares, destinados à
montagem e à desmontagem para diversos módulos de ensino.

Os grandes ateliês pedagógicos


Esses grandes ateliês têm por missão desenvolver o ensino da construção dire­
tamente ligado ao projeto.
A pratica nos grandes ateliês pedagógicos situa-se na esfera de uma “peda­
gogia do fazer”. Trata-se de desenvolver os projetos até um grau de concreti­
zação suficiente para que o projeto desenhado adquira uma presença e uma
identidade próprias e se liberte então, de certa forma, dos conceitos que lhe
deram origem. Colocado diante do projeto que criou e mediante sua reali­
zação, o aluno acha-se diante de uma realidade diferente daquela que pôde
imaginar em seu projeto. Encontra-se, assim, em condições de avaliar seu
trabalho, de perceber suas marcas físicas e de pressentir seus desenvolvimen­
tos. Esse grau necessário de concretização é dificilmente alcançado nas formas
convencionais de pedagogia dos projetos de arquitetura, os quais, em geral,
param no estágio de anteprojeto ou de esboço. Os exercícios permitem, igual­
mente, adquirir a compreensão das propriedades dos diferentes materiais e
praticar a critica experimental e a experiência no campo das práticas cons­
trutivas, particularmente no agrupamento construtivo dos diversos materiais.
A apresentação dos diversos modos construtivos (através da montagem e da
desmontagem de protótipos, de exercícios parcelares) é, na verdade, acompa­
nhada pelo teste de variantes técnicas que são igualmente variantes críticas.
Além disso, a consideração das condições sociais e econômicas de produção, da
logística, da organização do canteiro de obras e dos trabalhos, da segurança
etc. é permanentemente associada ao ato material de construir. Dá-se atenção
especial aos efeitos da prescrição sobre o ato produtivo.

Os grandes ateliês experimentais


É necessário distinguir os grandes ateliês experimentais dos grandes ateliês
229 pedagógicos. Ambos são diferentes dos canteiros de obras normais. Os grandes
ateliês pedagógicos simplificam, concentram-se em torno de práticas pedago­
gicamente férteis, podem pular etapas etc. Os grandes ateliês experimentais,
ao contrário, implicam exigências de precisão, a exploração de variantes, às
vezes dos riscos incompatíveis com a pedagogia e com as condições habituais
de produção. Eles seguem a lógica dos testes científicos, da experimentação
operacional. Existem graças às relações que o pólo mantém com os parceiros
industriais e com os profissionais.

PROGRAMA

O pólo não é uma escola que viria colocar-se ao lado das outras escolas existentes.
Ele tem uma dupla vocação: ser um instrumento a serviço de todas as missões das
esc&las ívò rasupo úa construção e ser um centro de pesquisa e de experimentação
com objetivos operacionais e uma influência em âmbito europeu.
Enquanto instrumento a servirji das. escAl&s,, wí “programa” não tem
independência nem representação organicamente completa. Nesse nível, o
pólo é complementar: insiste apenas na dimensão do “fazer” no ensino da
construção, o qual, fundamentalmente, continuará a ser oferecido no interior
das escolas. Desse modo, esse “programa” será alimentado pelos diversos
ensaios já iniciados dentro das escolas e instituições associadas, nacionais ou
internacionais, pela tecedura desses ensaios. Terá sempre a aparência de uma
lista de serviços oferecidos e cuja lógica implica a consideração dos programas
pedagógicos das escolas.
Entretanto, é necessário assinalar que a experiência dos atuais associados
do pólo na área já é bastante importante2 e essa experiência é a fiadora da
factibilidade e da qualidade das atividades futuras.
É evidente que o pólo não é só um instrumento passivo. O funcionamento
em rede de seus parceiros, por exemplo, deve modificar, ampliar, aperfeiçoar
as contribuições iniciais que, em geral, emanam das equipes isoladas. Além
disso, o preenchimento progressivo de sua trama organizadora (forma, força,
materiais, produção) faz aparecer carências e aspectos de questões não trata­
dos. O pólo terá, então, que propor atividades de pesquisa, experiências e estu­
dos destinados a preencher essas lacunas.
Enquanto centro de pesquisa e de experimentação, o pólo tem associados:
da Universidade, como La Chambre, a EPFL-I Bois, a EPHE etc.; de organismos
internacionais, como o iccrom, a UNESCO, o CDI, a fao etc. de indústrias, como
USINOR-SACIOLOR, FNTB, CNDB, VIA-CODIFA etc., que esperam do pólo contribui-

230 2 Ver o catálogo da exposição: Arquitetura e culturas construtivas, set. de 1993’ P32^ UNESCO.
ções para a realização de suas missões. Para levar a bom termo essas contri­
buições, o pólo sera chamado a propor e a elaborar programas de pesquisa e
de formação, a realizar experiências próprias.
Nessas relações com profissionais e industriais, o pólo não é tampouco
um puro instrumento de serviço. Além da seleção estrita das colaborações, as
quais devem sempre apresentar um valor universitário (de formação ou de
pesquisa), a função prospectiva implícita em seu projeto deve levar o pólo a
exercer uma atividade crítica e proposicional lúcida e permanente.
O pólo é, pois, uma entidade com dupla vocação: comporta-se como um
instrumento de serviço, alimentado pela experiência particular de seus par­
ceiros e suas trocas, mas como centro de pesquisa e de experimentação (com­
parável a uma escola que forma doutores), o pólo deve elaborar programas
próprios, múltiplos, evolutivos para responder às diversas necessidades dos
parceiros no campo da construção.
Para levar a bom termo e em tempo hábil o conjunto dessas propostas, é
indispensável a prefiguração do pólo na casa Levrat, na Cidade Nova da Isle
d’Abeau: para a listagem dos serviços, para o cruzamento criativo desses servi­
ços e para iniciar seu próprio programa de pesquisas e experiências.

PESQUISA

A pesquisa sobre o avanço do projeto construtivo, sobre a articulação entre as


melhores propostas arquitetônicas e técnicas, infelizmente ainda é embrio­
nária. O saber do arquiteto, o do designer e o do engenheiro se especializam
e se distanciam de forma crescente. Amiúde, quando um ou outro chega a
sobreviver à sua nefasta indiferença mútua, ele domina uni lateralmente, sem
entendimento ou composição. Ora, nos raros casos em que eles se cruzam
com sucesso (em Piano ou Foster, por exemplo), foi a experiência - repetida,
paciente e “real” — que, pouco a pouco, os aproximou, sintetizou, uniu. As
querelas estéreis entre a ideologia “artística” e a “técnica” são, então, supera­
das pela experimentação, pelo ensaio e, finalmente, pela própria obra.
A pesquisa sobre o projeto construtivo também sofreu (como a maior parte
das pesquisas arquitetônicas) a pressão da pesquisa acadêmica. O modelo
da experiência científica (mudança de uma única variante para medir suas
conseqüências numa situação depurada) obceca a experiência arquitetônica;
hipostasiada, sua aura cega.
Essa atração e essa submissão encobrem um profundo desconhecimento a
respeito da arquitetura. A arquitetura é o resultado de um trabalho coletivo,
uma estrutura com inúmeras possibilidades e onde cada componente deter­
mina e é determinado por todos os outros componentes. O número de compo­
nentes é enorme e, por se tratar de uma estrutura, toda mudança importante
de um componente implica o reajuste dos demais, isto é, faz surgir uma outra
estrutura (ver Lévi-Strauss). A regularidade e a repetição estrutural (condi­
ção para a experiência científica) raramente são observadas em arquitetura.
A experimentação sobre um componente, retirado de seu campo e sepa­
rado de suas múltiplas determinações, pode ter um interesse técnico ou cien­
tífico particular, mas nenhum para a pesquisa arquitetônica, pois deixa de
lado a estrutura que é sua base. É pena: nossas teorias e nossas hipóteses sobre
a arquitetura continuarão “metafísicas”, na terminologia de K. Popper. Mas
o próprio Popper nos propõe, então, um outro caminho para a corroboração
relativa dessas teorias e hipóteses: o da “lógica de situações”. No âmbito de
uma situação precisa, com seus trunfos e suas carências, suas necessidades e
seus meios, no seio de relações de produção dadas, haverá sempre uma solu­
ção ótima, lógica, adaptada. Tal solução fornecerá a “unidade de medida”, a
referência inevitável: ela modelará a estrutura eficaz capaz de respeitar e de
exaltar todos os componentes situados no interior de sua melhor colaboração.
Ao contrário da pesquisa acadêmica, a especificidade do fato arquitetônico
impõe à pesquisa o mergulho em seu momento material complexo, momento
de força efetiva, de real simbiose de todas as suas determinações. Somente
então a estrutura existe e os testes tornam-se válidos.
O pólo, composto por equipes variadas de arquitetos, designers, técnicos e
engenheiros, reunidos em parte em torno dos Grandes ateliês experimentais,
oferece o quadro ideal para esse tipo de pesquisa. Ele pode facilitar a aliança
da boa arquitetura com as idéias construtivas do futuro. E, sobretudo, pode
ajudar experimentalmente a encontrar algumas pistas de resposta às gigantes­
cas e urgentes necessidades (moradias, escolas, silos, hospitais...) que esmagam
a maioria do mundo de hoje, talvez a mais digna das pesquisas em arquitetura.

232 Grandes ateliês em Isle d'Abeau, 2005


QUESTÕES DE MÉTODO
1996

A observação da obra arquitetônica não é fácil. A complexidade e a heteroge­


neidade de suas determinações resistem às sínteses apressadas.
As tarefas implicadas na elaboração de uma construção média na França,
por exemplo, já nos fazem prever relações sobrepostas e tensas: controle do
empreendimento (estudo da factibilidade, decisão, preparação do financia­
mento, aquisições de terrenos, programa, escolha dos planejadores); controle
da obra (anteprojeto, preparação dos documentos de consulta para concorrên­
cia, escolha dos escritórios de estudos técnicos, do escritório responsável, segu­
ros, alvará de construção, projeto, escolha das empresas, mercado de empre­
sas); realização (preparação e organização do canteiro de obras, direção e
planejamento do canteiro, do material e instalação; suprimento de materiais,
de equipamentos, de fornecimentos; organização da mão-de-obra); verificação
do respeito às prescrições e gestão da obra (recepção, operacionalização e fun­
cionamento: gestão, operação, manutenção).1
Cada tarefa deveria, idealmente, integrar-se a todas as outras — o que
remete a centenas de combinações. Mais: as missões assinaladas compõem um
modelo; na prática, cada caso apresenta variantes.
Em geral, as tarefas são marcadas por estratégias e interesses divergentes:
a busca do perfil econômico ou politico choca-se com a resistência à operacio­
nalização; a busca de hegemonia ou de prestígio deve ceder diante dos com­

i Ver, de J. Carassus, Economic de lafilière construction. Paris: Presses Ponts et Chaussées,


2Vj
59 -
jjromissos; a eficácia comercial sempre vai desencontro ao rigor técnico ou
plástico etc. jCom freqüência, esses campos de intervenção têm também para­
digmas de referência heterogêneos e heterônomos: que^relações estabelecer,
por exemplo, entre os modos de abordagem da renda fundiária e as pesquisas
para a concepção das estruturas? Ou entre as regras administrativas e a coor­
denação modular dos materiais?
Evidentemente, há acertos, transações, mercados.2 Mas, na maior parte dos
casos, eles não levam a sínteses ideais nem a opções claramente justificadas.
jtm poucas palavTas, o mundo do construído se parece mais com um amál­
gama sempre precário de forças heterotópicas do qué com um “corpo produ-
tivo” coerente.
—•^

E, no entanto, a obra arquitetônica existe realmente. Mais ou menos caótico,


o conjunto das realizações forma um campo, um objeto de estudos. Teorias
adequadas e metodologias específicas devem poder articular suas razões. Como
para todos os estudos dos campos problemáticos, o passo fundamentalj^ aquele
que decide o ângulo de abordagem da imprecisa çqtnplexidade.

Em nossa opinião, a posição da crítica e da história tradicionais não se sus­


tenta mais. O processo de gestação do objeto construído é de tal fqrrria com­
plicado, que pqdeser„çqnsiderado como indescritível — caso se permaneça
dentro de suas fronteiras aparentes. Ele se opoe, portanto, a qualquer pro­
cedimento científico global: a descrição, segundo Bachelard,3 é o primeiro
gesto da ciência.
Em nossos dias, o avanço dessa constatação provocou também turbilhões
de contra-reação. A história que nos foi ensinada, voltada para o futuro — para
nós, portanto —, sofreu o contrachoque da explicitação da complexidade. A
suspeita espalhou-se: também antes, talvez o construir não fosse passível de
descrição com a naturalidade das grandes teorias clássicas. O amontoado pro­
dutivo era menos formalizado — mas a espiral dos fatores, quando se olha de
perto, talvez não fosse mais simples que a de hoje.
Nosso esforço teórico recebeu o impacto dessas desconfianças. Era neces­

2 Ver, por exemplo, sob a coordenação de H. Bresler, Le Mur diplomatique, mimeografado,


relatório de pesquisa para a Diretoria de Arquitetura, 1985.
3 Ver, de G. Bachelard, O novo espíHto cientifico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1968, e
234 Ensaio sobre 0 conhecimento aproximado. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004.
sário mudar a posição, o modo e os instrumentos de observação. Nossas pri­
meiras hipóteses foram facilitadas pela experiência de uma situação mais
violenta (mais clara e mais caricatural, portanto) da produção do ambiente
construído e da arquitetura induzida: a situação do Brasil de trinta anos atrás.
Começamos dando um passo atrás: convinha tomar distância. Desconfiá­
vamos da consideração exclusiva do objeto arquitetônico: corria-se o risco de
ter uma visão pouco clara por excesso de proximidade. Nós o inserimos, então,
no universo da economia política. Conseqüentemente, a maioria dos conceitos
aprendidos, insuficientes em sua pobre imanência, caiu por terra. As raízes do
que se colocava como critério autóctone revelaram as tramas de dependência
e refraçoes escondidas que o produzem. A heteronomia constatada quebrou a
...suposição de autonomia da arquitetura.
Escrevemos sobre as possibilidades abertas à teoria realizando uma
mudança de perspectiva. Ainda acreditamos nela.4 Grosso mo^o, os intexesses
.em jogo na produção, da construção são tão importantes e contraditórios que
nada à sua volta escapa 4 sua.pressão. Até as decisões imaginadas livres sobre
a forma ou o espaço, a escala ou o ritmo dão sua contribuição à hegemonia do
valor, mesmo sem querer.
Vários testes foram realizados a partir de nossa teorização — por nós mesmos
ou por outros arquitetos. Nossos projetos e nossos canteiros de obras se insur­
giram contra o sistema. Acreditamos, num dado momento, que eles não nos
desmentiam. Contudo, como mobilizavam diversas variáveis ao mesmo tempo,
esses testes não podem ser considerados como rigorosamente científicos.
Assim, adotando a divisão de Popper,5 nesse estágio estávamos na metafí­
sica. A teoria parece-nos coerente, não tautológica e as deduções por ela per­
mitidas explicam — e melhor que outras teorias — um bom conjunto de obser­
vações, de paradoxos aparentes etc, coisa que ainda pensamos hoje. Mas, se o
recuo nos permitiu desembaraçar amplamente o que parecia inextricável
devido à proximidade do objeto, ainda nos faltavam instrumentos de precisão
analítica para sair da metafísica.
Desse modo, já há vários anos reorientamos nossas pesquisas. Outras consi­
derações também nos levaram a isso.
A primeira era de natureza técnica. Precisávamos reduzir a extensão do
campo a ser observado. Só assim seria possível controlá-lo rigorosamente.
Algumas determinações que informam o mundo do construído exigem, para
serem compreendidas, um instrumental teórico e prático que supera nosso

4 Ver "O canteiro e o desenho", pp. 105-200 deste volume.


5 Ver, de K. R. Popper, Lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 1972.
alcance. Depois da ampliação do domínio estudado, tornava-se necessária a
seleção de um de seus aspectos para concentrar nossos esforços.
Por outro lado, e quase contraditoriamente, nossas pesquisas dispersaram-
se: renascimento italiano, francês, séculos xix e xx, relação com a arte, este-
reotomia, história do concreto, design... Nosso laboratório aceita e valoriza
a escolha de cada um de seus membros: além da competência científica e
da adoção de uma teoria comum (sempre em movimento), pensamos que a
adesão afetiva conta na qualidade de um estudo. Impunha-se a nós o dever de
afirmar com clareza nossas referências comuns, de associar nossos trabalhos
em torno dos mesmos protocolos. Era importante, principalmente, poder acu­
mular as conquistas sem forçar as mudanças.
Finalmente, uma razão prática. Formamos um pequeno laboratório de
pesquisa, pouco burocrático e sem tentações autoritárias internas. O cimento
que nos une (além da velha amizade de mais de vinte anos) — nossa teoria
— deveria compensar, através de seu rigor, a ausência de outras pressões.
E uma vantagem importante: nossos testes, apresentando-se a oportuni­
dade desejável, seriam melhor orientados, teriam mais crédito. Há dois anos
(1994), concentramos nossos esforços, associados com o laboratório Craterre
de Grenoble (e outros de Montpellier e de Paris), para criar um vasto con­
junto de ensino e de experimentação prática em Isle d’Abeau.6 Nele podere­
mos testar nossas hipóteses. Mas sua pertinência depende inteiramente da
clareza da teoria e da adequação da metodologia que as acompanham.

Decidimos concentrar nossos trabalhos nos materiais de base da edificação.


Nisso, seguimos algumas correntes do pensamento contemporâneo, particu­
larmente a escola de Frankfurt e Adorno. O material é um conceito central
em seus textos.7 Reduzimos sua amplitude, bastante aberta em sua-obra. Para
Adorno, o material c tudo o que serve para a construção da obra, desde a orga­
nização do universo sonoro, por exemplo, até o imaginário disponível, possí­
vel. Empobrecemos tal conceito, nós admitimos isso, mas para torná-lo mais
operacional.
Os materiais, para nós, são aquilo que, concretamente, sustenta o cons-

6 Ver a proposta do pólo de experimentação em construção na Isle d’Abeau.


7 Ver, de T.W. Adorno, Teoria estética. São Paulo: Martins Fontes, 1982, e Mahler: Une
236 physionomie musicale. Paris : Ed. Minuit, 1976.
JxindcxDe Adorno extraímos, principalmente, a idéia de sua determinação
social e histórica. O material é a matéria mais os homens que a trabalham. E
o suporte ativojio trabalho de concepção^ de realização. A formação (nô~sen-
tido do Das Bilden de Hegel) insere aí tesouros de possibilidades que esperam
para se manifestar através do projeto. A maioria das camadas da produção
— escamoteada com freqüência pela crítica parcial — grava seu pathos em sua
resistência. Nossas imagens e símbolos, como mostraram Bachelard e Durand,
nele ganham sustentação e força.
Evidentemente, nossa análise, assim limitada, deixa escapar muitos outros
aspectos da construção. Estamos conscientes desse fato. Em contrapartida,
pensamos que o centro de nossa gravitação é a essência mesma do ato de
construir. Nós nos concentramos em torno do que conta: o momento em que o
gesto produtivo encontra seu outro que impede seu desaparecimento — e fica
ao alcance da nossa leitura.
Mas ainda era necessário tratar a questão do material (histórico ou de hoje)
de uma maneira homogênea, sistemática, para acumular os estudos. Ora, se o
emaranhado de moLivações díspares se desfazia através do duplo movimento
de distanciamento e de centralização, restava-nos, entretanto, uma zona de
observação que desafia amplamente qualquer tentativa de identificação com­
pleta. Pode-se afirmar, inclusive, que a possibilidade de uma nova acuidade
para o conhecimento aumentava, em contrapartida e em proporção, a resistên­
cia de nosso objeto à sua absorção pelo conceito. A evidenciação das diversas
determinações que configuram um material no edifício recoloca — mas de
\

modo diferente — a questão da complexidade. A abordagem social, econômica,


técnica etc., nosso procedimento adiciona a das múltiplas redes que levam dos
gestos (de concepção, de prescrição, de realização) à matéria por eles infor­
mada. O conjunto de suas determinações podia, mais uma vez, escapar-nos.
Adotamos, então, um método que deriva de uma astúcia utilizada em
outras áreas do conhecimento onde há risco do mesmo tipo de extrapola­
ção. Para contornar o obstáculo das situações dificilmente descritíveis resta,
às vezes, a alternativa de peneirá-las de uma maneira regulada. Diante do
fluxo diretamente in controlável, podemos escolher uma grade, um filtro que
permite que se destaquem apenas algumas categorias de elementos. Tais ele­
mentos podem, então, ser classificados e comparados cientificamente. É claro
que nosso acesso ao conjunto do fluxo e sua singularidade continua impedido.
Mas o que se evidencia a partir da organização através da grade pode então
/

— e somente assim — tornar-se objeto de ciência. E preciso lembrar sempre


que a ciência não esgota a extensão dos saberes. Nosso procedimento segue,
quanto a isso, o exemplo do estruturalismo: o abandono da busca da coisa-
237 em-si abre a possibilidade da análise comparativa de suas relações. A história
nova francesa mostrou a fecundidade desse tipo de procedimento com a histó­
ria da vida cotidiana, das instituições, da loucura, dos lugares da memória etc.
Adotamos uma grade derivada (de modo bastante heterodoxo) da lógica
da semiologia de Peirce. A opção não foi gratuita e é compatível com as posi­
ções mais avançadas atualmente na filosofia das ciências.8
Enumeremos algumas razões dessa opção.
Em nosso estudo dos materiais, aparece a vontade de ler a_história e o
presente do construído como história coletivau Suas ocorrências nunca são
“tratadas como singularidades, mas como signos”.9 Isso é fundamental para
nós: vestígios dos gestos produtivos no material tratam de con}UDtqs^lejitqrg£.
O autismo da singularidade fechada em seu em si não convém ao que emerge
das relações
3 contraditórias de i.produção:
3 cada ator introduz
---- ------......... ---- ---sua
- , Mleitura — e o
sentido desses vestígios é constantemente remetido ao presente, alimenta
contradições renovadas.10 Só o tratamento como signo responde ao que pro­
vem do e se dirige ao coletivo.
Nossas pesquisas podem derivar de duas situações contrárias: qu dispomos
de uma documentação suficiente ou, às vezes, a documentação nos falta irre­
mediavelmente. Mas sempre, pelos caminhos da dedução (quando há doeu-
* *** j ••

mentação) ou pelos da abdução11 (nos casos contrários'), devemos chegar a


análises comparáveis. A grade de referências deve ser a mesma. Ora, a ausên­
cia defmtrõs documentos além do próprio construído impõe a observação, a
Jeitura direta.
O ato de construir supõe a mediação dos signos. Por eles transita a concep­
ção que alimenta a prescrição necessariamente codificada e que Hesenfboca na

8 Ver, de G. Deledalle, Lire Peirce aujourd'hui, ed. Universitaires, 1990; e, de C. Chauviré,


“Faillibilisme, hasard et logique de la découverte chez Popper et Peirce”, em Karl
Popper et la science d'aujourd'hui. Paris: Aubier, 1989.
g Ver, de M. Ozouf, entrevista realizada por J.F. Chanet, em Magazine Littéraire, n. 207,
fev. 1993, p. 25.
10 Ibidem.
/

11 Segundo Charles Peirce, “abdução é o processo para formar hipóteses explicativas. E a


única operação lógica a introduzir idéias novas; pois que a indução não faz mais do que
determinar um valor, e a dedução envolve apenas as conseqüências necessárias de uma
pura hipótese. Dedução prova que algo deve ser,; indução mostr.a q.ue algo atualmente é
operatório; abdução faz uma mera sugestão de que algo pode ser” em Pierce e Frege. São
Paulo: Abril Cultural, col. Os pensadores, p. 52. [n.o.]
realização, a qual se insere em suas marcas. Para considerá-lo adequadameiiLe
nada mais natural que adotar uma metodologia de origem semiológica.
Nossa teorização é de inspiração marxista (Hegel, Marx, Adorno...). Ora,
um bom número de epistcmólogos admite hoje que Peirce, apesar de suas
relações tensas com Hegel, e compatível com essa orientação.12
Para nos apoiar nesse domínio ainda novo, com freqüência contrapomos
a arquitetura a outras artes plasticas. Também aqui precisávamos de instru­
mentos comuns. A semiologia de Peirce (mais que as de origem saussuriana)
presta-se a isso generosamente.

Vamos enumerar agora, de forma rápida, as categorias de nossa grade. Lem­


bremos que elas estão em construção e que o uso que fazemos de Peirce não é
ortodoxo. Toda vez que nos afastamos demais de sua formulação (e segundo
seus próprios conselhos), a denominação da categoria foi alterada. Uma boa
parte de nossos esforços teóricos nos anos vindouros será dedicada ao aperfei­
çoamento dessa grade.
Trabalhamos com nove categorias e com três subcategorias.
As três primeiras categorias estudam o material no interior de suas determi­
nações específicas. Tentamos, primeiramente, caracterizá-lo de forma precisa,
definir o que ele é num estágio histórico determinado, suas redes de produção
e de distribuição (“o material em-si”). É indispensável, em seguida, enumerar
e descrever suas aplicações, usos e ocorrências (“as ocorrências do material”).
Tais ocorrências, uma vez bem catalogadas, permitem elaborar hipóteses sobre
a lei, sobre a estrutura que as rege (“os legi-signos”). O conjunto das três cate­
gorias nos dá um retrato racional do material num contexto dado.
As três categorias seguintes ajudam-nos a organizar a análise do impacto de
determinações externas sobre o material. A primeira estuda as representações
que o material assume em função dos modos de sua concepção (“os ícones”).
Aqui, utilizamos três subcategorias. A “imagem” leva em conta o que, no
emprego do material, nos remete aos inúmeros fatores que condicionam sua
concepção funcional; o “diagrama” registra o que, no emprego do material, nos
remete à sua concepção técnica e aos paradigmas que o informam; finalmente,
a “metáfora” reúne o que, no emprego do material, nos envia à sua concepção

12 Ver, de G. Deledalle, op.cit.-, e, de C.S. Peirce, Textes anticartésieris, apresentação e


239 tradução de J. Chenu. Paris: Aubier, 1984.
poética. A segunda categoria dessa série é_o_“vestígio^ (‘^índice”). Aqui se rela­
cionam todos os vestígios concretos existentes no material em seu processo de
utilização. As competências e o estado das forças produtivas e das relações próxi­
mas de produção são, então, examinados — mas considerando-se principalmente
a maneira como são gravados na matéria. A categoria seguinte é o “simbólico” e
trata das conseqüências sobre o emprego do material, acarretadas pelos valores
simbólicos que lhe são associados socialmente (valorizações, modas etc.).
A última série classifica as diversas formas de discurso que formam uma
constelação em torno do material. O ‘1 vocabulárjn^-dèsta palavras e expres­
sões típicas, de ordem científica, prática ou profissional, que se referem ao
material. Os “ slogansr receitas e regulamento sJ5 baseia-se nos procedimentos
habituais, saberes empíricos e parciais, recomendações e normas que se refe­
rem ao material. Por fim, os “argumentos” reúnem o conjunto dospliscursos,
tratados, ensaios ou poemas que falam do material.
A enumeração esquemática de nossas categorias talvez não deixe pressen­
tir a fecundidade das pistas e a vantagem comparativa que elas nos propõem.
Algumas dessas categorias já são bastante utilizadas em outras áreas do saber. A
noção de vestígio (ou rastro), por exemplo, não deixa de ocupar o pensamento
contemporâneo de Heidegger e Benjamin a Derrida, Krauss, Rosand, Didi-
Huberman... A do argumento corresponde a contribuições de L. Marin, Eco,
Barthes, Kristeva, Genette etc. Quanto aos “legi-signos”, todo o estruturalismo
prova sua extraordinária pertinência. Outras categorias, como o simbólico ou o
vocabulário, são ainda hesitantes. Apesar da contribuição de Lacan, ainda não
é fácil deslindar as sutilezas dos valores coletivos: a despeito da importância
pressentida do simbólico, de sua eficácia, essa subdivisão continua pouco pre­
enchida em nossas análises. Para p vocabulário, dá-se o contrário: apesar de sua
fama acadêmica, é uma categoria que parece estar deslocada em nossa grade.
Dois conceitos importantes para nós se sobrepõem a mais de uma catego­
ria. A “idéia construtiva” reúne os três hipoícones (a imagem, o diagrama e a
metáfora). É a síntese das múltiplas determinações da concepção em seu con­
junto, a resultante objetiva — que comanda a construção — de todos os vetores
/
que configuram o projeto tal como se apresenta no canteiro de obras. E um
conceito, uma idéia que não pertence inteiramente a ninguém, mas que dá o
caráter construtivo à construção.
O outro conceito que nos é muito especial é a “semantização do gesto técnico”
que reúne a metáfora e o índice: trata-se desses movimentos pelos quais o vestí­
gio (obrigatório, com ffeqüência) de uma operação de construção é revestido de
um significado diferente. Seu protótipo é a pincelada encarregada de exprimir o
pathos do autor. Na arquitetura, esse movimento torna-se muito complexo e pró­
240 prio dos jogos de prestígio porque quem semantiza não é quem produz o gesto.
O "MATERIAL EM LE CORBUSIER
1997

A afinidade das artes, desde Vasari pelo menos, é um postulado intocável da


crítica. Autores provenientes de todos os horizontes unem-se em torno do que
lhes parece uma evidência, a crença numa profunda continuidade entre os
produtos artísticos contemporâneos.
Mesmo Adorno, que valorizou intensamente os conceitos fundamentais
de material e de técnica em sua Teoria estética/ passa indiferentemente, em
seu texto, da música à arquitetura e à pintura: sem questionar suas particula­
ridades produtivas.12 E, no entanto, sua crítica do tratamento da orquestra por
Wagner3 teria podido levá-lo a uma outra abordagem, em especial da arquite­
tura. Porém, ao contrário, ele parece considerar que em cada etapa histórica o
conjunto das técnicas e dos materiais particulares é orientado de modo seme­
lhante, pois seus produtos são imediatamente comparáveis.
Para evitar sínteses abusivas, o rigor da análise impõe uma observação
dos procedimentos específicos de produção para cada divisão da arte. Se, em
alguns períodos da história (principalmente antes do Renascimento), a orga­
nização análoga da produção de uma divisão à outra reduz seu peso discri­
minatório, hoje sua heterogeneidade não pode mais ser ignorada: ela marca
diferentemente as obras de arte. O artesanato da pintura não é equivalente à
prática manufatureira da arquitetura nem à industrialização do design.

1 T. W. Adorno, Teoria estética. São Paulo: Martins Fontes, 1982, pp. 27-28 e 237-247.
2 Ibidem, pp. 58-60, por exemplo.
241 3 T.W. Adorno, Essai sur Wagner. Paris: Minuit, 1966.
Essa precaução é mais útil ainda quando os resultados formais são aparen­
temente muito próximos. Na verdade, o que leva procedimentos produtivos
distintos a um mesmo tipo de solução? A crítica, no entanto, se deixa seduzir
pela convergência: esta parece demonstrar de modo irrefutável o postulado
da comunidade das artes. Em compensação, o impacto da congruência formal
sobre cada domínio artístico fortalece uma espécie de presunção de autentici­
dade que desvia a análise e desmobiliza o estudo das condições de produção.
A tendência ao homeomorfismo provoca uma corrente de ilusória legitimação
recíproca que nos faz admiti-los como emanações fiéis e diretamente inter-
cambiáveis do espírito objetivo. A identidade de aparência torna-se o fiador
de seus testemunhos: se eles falam a mesma coisa é porque dizem a verdade.
No caso de arquitetos/pintores (ou escultores), o esquecimento das coer­
ções produtivas é uma regra quase geral. Será que o poder do gênio de um
Michelangelo, de um Aleijadinho ou de um Le Corbusier não é suficiente o
bastante para superar os obstáculos da heterogeneidade produtiva e para
encontrar soluções que sejam, ao mesmo tempo, convergentes em suas formas
e válidas nos dois domínios?
Parece evidente que Le Corbusier deve enfrentar uma situação deter­
minada e específica dos materiais e das técnicas correspondentes quando se
lança, primeiro, na pintura e, depois, na arquitetura. Examinemos rapida­
mente tais situações e sua maneira de intervir.

A PINTURA

Tornou-se manifesto que tudo o que diz respeito à arte deixou de ser evidente,
tanto em si mesma como na sua relação ao todo, e até mesmo o seu direito
à existência. A perda do que se poderia fazer de modo não refletido ou sem
problemas não é compensada pela infinidade manifesta do que se tornou pos­
sível e que se propõe à reflexão. O alargamento das possibilidades revela-se
em muitas dimensões como estreitamento. [...] por toda a parte os artistas se
alegravam menos do reino da liberdade recentemente adquirido do que aspi­
ravam de novo a uma pretensa ordem, dificilmente mais sólida. Com efeito, a
liberdade absoluta na arte, que é sempre a liberdade num domínio particular,
entra em contradição com o estado perene de não-liberdade no todo.4,

Uma boa parte da arte do século XX provém de um deslocamento inaugural:

242 4 T.W. Adorno, Teoria estética. São Paulo: Martins Fontes, ig82, p. 11.
sua autonomia, necessária, cujo conceito só é apropriado ao sujeito, degrada-
se na autotelia do quadro. É o que pretende traduzir a absurda expressão
“autonomia da arte”. Essa autotelia conjuga-se com os vestígios autistas do
eu. A exigência (mais ética do que estética) imposta à arte — testemunhar a
respeito da “absoluta liberdade” no seio da “absoluta não-liberdade” fecha-
a numa contradição sem saída. Tecnicamente, isso implica em sua imersão
solitária no material “histórica e socialmente pré-formado”,5 sob o risco de
ser modificado pela obra sem que sua determinação heterônoma jamais possa
desaparecer totalmente. Alguns, então, se adaptam imaginando, por exemplo,
que essa exigência ainda é respeitada pelo fechamento do produto, na ilusão
de uma ausência de dívida em relação ao exterior, na ilusão de uma imanên­
cia total. Ou, invertendo aparentemente o procedimento, na completa submis­
são da arte aos arrebatamentos do eu em posição de senhor absoluto; “acabar
com a coisa, e aquietar-se no gozo”.6 Mondrian ou Pollock, por exemplo. Mas
é possível que a exigência ética radicalizada seja insustentável.
A fuga freqüentemente ingênua para a “abstração”, ou a deformação exa­
gerada são, hoje, manifestações banais dessas evoluções. Decorrem de uma
relação frágil com a semiótica. Desse modo, a recusa da imagem pretenderia
afastar a semelhança, vivida como uma dependência do exterior. E dado que
a imagem é signo e que todo signo remete a outra coisa que não ele próprio,7
essa recusa às vezes se amplia, estranhamente, em recusa do sentido — sempre
para garantir a “autonomia da arte”. Uma certa tolice dos motivos na arte
contemporânea é o reflexo dessas simplificações. A futilidade de tais esforços
é evidente: toda forma, imagem ou não, é signo, representamen que pode,
através de um interpretante qualquer, remeter a um objeto dinâmico, sempre
exterior ao representamen.6 Essas escapatórias são como uma fuga diante da
responsabilidade da significação objetiva e necessariamente induzida.

Ibidem, p. 108.
o> ox

G. W.F. Hegel, Fenomenologia do Espírito, tradução de Paulo Meneses. Petrópolis: Vozes,


p. 148.
Ch. S. Peirce, Ecrits sur le signe, tradução de G. Deledalle. Paris: Seuil, 1978. “Um signo,
ou representamen, é algo que está no lugar de outra coisa para alguém, sob qualquer
relação ou por qualquer motivo”, p. 121. “Em resumo, um signo é tudo o que determina
alguma coisa outra (seu interpretante) a ser remetida a um objeto ao qual ele próprio
remete (seu objeto) da mesma maneira, o interpretante tornando-se, por sua vez, um
signo, e assim por diante ad infinitum”, p. 126.
00

Ibidem, pp. 120/191; G. Deledalle, Théorie et pratique du signe, Introduction à la


245 Sémiotique de Charles S. Peirce. Paris: Payot, 1979.
A “autonomia da arte” é o mito que tenta banalizar a maior contradi­
ção da função do artista hoje. E, no turbilhão de seus deslocamentos, outras
“reificações” ainda se encadeiam. Finalmente, a reificação como retorno ao
exterior do espírito objetivo interiorizado e não elaborado aparece como uma
opção fácil.
/

E esse, de forma sucinta, o quadro dos inícios de Le Corbusier. Sob a


influência restritiva de Charles 1’Eplatténier, eles são dominados pelas deri­
vações abastardadas da extraordinária lucidez de W. Morris.9 Podem se resu­
mir à simples valorização do diagrama,10 exaltado como se ele fosse o oposto
corretivo da submissão da imagem ao modelo. Na verdade, esse momento
isolado que pretende apreender a unidade essencial da coisa oscila entre o
formalismo e o empirismo redutores.11 O diagrama é a esquematização da
coisa através de sua identificação com uma de suas determinações conside­
rada como absoluta; isolado, ele se torna marca de absorção abusiva.12 Inver­
samente, a estrutura sempre alienante do eu se presta perfeitamente — e em

9 Ver: W. Morris, Political Writings. Londres: Lawrence and Wishart, 1979; Ph.
Henderson, William Morris, his wife, work andfriends. Nova York: McGraw-Hill, 1967;
M.M. Elia, William Morrisy la ideologia de la arquitectura moderna. Barcelona: GG,
/
1977; H. Van de Velde, Déblaiement d’art. Bruxelas: Edit, des Archives d’Architecture
moderne, 1979.
10 No sentido de Peirce; ver Ecrits sur le signe, op. cit., “(os hipoícones) que representam
as relações, principalmente diádicas ou consideradas como tais, partes de uma coisa por
relações análogas em suas próprias partes”, p. 149. No Commentaire de G. Deladalle: “os
diagramas [...] representam relações principalmente diádicas”, p. 233.
11 G.W.F. Hegel, La Science de la logique. Paris: Aubier, 1970, Introdução (à edição de
1817), §10, pp. 159/161.
12 T. W. Adorno, Dialectique Negative. Paris: Payot, 1978, p. 121; B. Bourgeois explica em
sua “Apresentação” a La Science de la logique, de Hegel: “O entendimento do empirismo
que se quer científico e, portanto, em seu agir separador, quer unificar a riqueza da
intuição, procede privilegiando (separando) uma determinação que, na seqüência, ele
procura impor a todas as outras tentando derivá-las dela com ‘conseqüência’, isto é,
seguindo a identidade formal redutora da diversidade do conteúdo; é por isso que Hegel,
a partir daí, vem a fazer o elogio da inconseqüência que preserva esta diversidade que
/

a razão poderá compreender posteriormente: ‘E em decorrência da inconseqüência


que a recepção das determinidades no conceito pode ser retificada, e que a violência
feita à intuição pode ser suprimida, porque a inconseqüência aniquila imediatamente a
absolutidade atribuída unicamente a uma determinidade’”, G.W.F. Hegel, La science de
244 La logique. op. cit., p. 32.
especial através do diagrama — à hipóstase das determinações que a ideologia
propõe então como garantias da “autonomia da arte.” 15 13O14fundamento da
escolha das relações que o diagrama retoma na arte é obj etivamente determi­
nado. Dessa forma, decorações de relógio que Le Corbusier estuda na época,
por exemplo, são variações em torno de traços diferenciais formalmente
selecionados (verticais = falésias x curvos = vegetação), abertas à captura
semântica de inúmeros pares de opostos (ordem x excesso, rigor x lirismo
etc.), empiricamente associados aos valores imaginários da serra do Jura, na
região de la Chaux De Fonds. Ao mesmo tempo, desde Cézanne, o confronto
entre curvas geometrizadas e retas constitui, igualmente, ensaios para uma
construção imanente do quadro no afastamento da janela albertiana.
O purismo condensa esses exercícios com a absorção do cubismo atenu­
ado. A crítica discutível da sustentação intuitiva da produção de Braque e de
Picasso dos anos de 1909-1912, o leva, com Ozenfant, a um impasse.14
O que neles ainda resistia ao compromisso cede sob a inflação purista dos con­
ceitos fixos do entendimento; as “sensações puras” suscitadas pelo jogo das
“invariantes” plásticas, resíduos candidamente pretensiosos dos fantasmas
da primeira era da máquina, desencadeiam a mecânica autista das repetições
insignificantes. De fato, Le Corbusier explica: “O instinto, as tentativas e o
empirismo são substituídos pelos princípios científicos da análise, pela organi­
zação e pela classificação”.15
A análise, em Le Corbusier, dispersa o material em “componentes” (retas,
curvas, cores e, mais tarde, texturas) e seus subgrupos (retas verticais, hori­
zontais, diagonais, curvas regulares, “livres” etc...). A articulação dos legi-
signos precede a consideração do conteúdo, para retomar a terminologia de
Peirce. Apesar de um uso corrente nos meios marcados pelo cubismo, isso
nada tem de científico. Ao contrário, a pré-elaboração do material em “com­
ponentes” é hostil às necessidades da arte de hoje. A rigor, a absoluta liber-

13 Como todo signo, 0 diagrama também “[...] está no lugar de alguma coisa [...] não sob
todas as relações, mas como referência a uma espécie de idéia que chamei algumas vezes
de fundamento do representamen.” Ch. S. Peirce, Ecrits sur le signe. op. cit., p. 121; este
fundamento é sempre ideologicamente determinado.
14 Intuição, de qualquer forma, preferível às pseudoteorizaçoes de G. Apollinaire,
Chronique d Art, 1902-1918. Paris: Gallimard, i960; M. Raynal, Quelques intentions
du cubisme, Paris: Editions de L’Effort Moderne, 1919; A. Gleizes e J. Metzinger, Du
Cubisme. Sisteron: Éditions Présence, 1980; mas insuficiente diante dos esforços de
consciência necessários para tratar as contradições da arte contemporânea.
15 Le Corbusier, Depois do cubismo. São Paulo: Cosac Naify, 2005, p. 43.
dade imposta ao sujeito da arte requer um material recolhido no “ponto
cinza” de P. Klee,16 totalmente disponível e abstrato. 0 método da arte não
pode ser senão o registro contemporâneo do processo de desdobramento do
material na construção do conteúdo por um sujeito que se esvazia para acom­
panhá-lo — sabendo, entretanto, que “por trás da assim chamada cortina [...]
nada há para ver; a não ser que nós [o sujeito da arte] entremos lá dentro —
tanto para ver como para que haja algo atrás que possa ser visto.”17
Através da classificação, Le Corbusier fecha cada uma das camadas dos
“componentes” em torno de si mesmas por meio de um duplo procedimento:
primeiro, pela radicalização da oposição, cada uma reunida numa espécie de tipo
ideal, de rima insistente que a condensa; segundo, pela busca de uma auto-sufi­
ciência que faz de cada camada uma pequena composição quase independente.

VERTICAIS E
HORIZONTAIS CREME

V 4-

LINHAS PRETAS LINHAS BRANCAS VIOLETA VERMELHA OCRE

Finalmente, a organização superpõe, adiciona as camadas. A separação pro­


saica do material não é superada pelo momento construtivo (momento sempre
irremediavelmente frágil em toda a produção de Le Corbusier). A dissecação
dos quadros de qualquer período de sua carreira mostra que cada estrato dos
“componentes” permanece sempre indiferente aos outros. O desenho a traço (e

16 P. Klee, Théorie de Vart moderne. Paris: Denoél-Gonthier, 1971.


246 17 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 132.
não importa se é abstrato ou se segue as sugestões do modelo) busca seu próprio
equilíbrio, assim como as cores e a textura. No seio de cada categoria de “com­
ponente”, esse momento continua em torno de cada subgrupo. Desse modo,
o recurso à “autonomia da arte” generaliza-se e volta a qualquer patamar. O
que faz desse gênero de pintura uma espécie de tapume montado para uma
construção sempre adiada: se cada estrato se organiza tendendo para sua “auto­
nomia”, a do todo fica comprometida. O todo, então, é improvisado com ele­
mentos que o recusam e fracassa, pois, fatalmente, como forma e como sentido.
Antes da síntese das artes, a da pintura já havia escapado a Le Corbusier.
A pintura pós-purista de Le Corbusier atrai menos a crítica. Provavelmente
por ser melhor. Ou por abandonar as regras rígidas que facilitam seu discurso.
Mas era necessário fazê-lo: justificáveis enquanto busca, elas devem ser afasta­
das quando constituem obstáculo à autonomia radicalizada do sujeito da arte.
/

E verdade que o recurso crescente aos “objetos de reação poética” acen­


tua algumas imperfeições do período purista: também elas formam, às vezes,
mais um estrato independente.
Podem até servir para discutíveis escapadas. Uma de suas funções é pró­
xima daquela da “parede diplomática” das casas de Loucheur. Por meio do
compromisso relativo à valorização de um ofício tradicional local, elas deve­
riam facilitar a aprovação das propostas avançadas do arquiteto.18 Mas, além
dessa missão tática, participam dos jogos de compensações do irracionalismo
no racionalismo. A modernização imaginária, em par com as condições de
produção ditas retardatárias (conservadas, entretanto, como contraponto ao
progresso para enfrentar a queda tendencial das taxas de lucro), cai na utopia.
A impossibilidade objetiva de uma evolução conforme o modelo dominante
da indústria favorece a imaginação de sua realização futura, a miragem de
uma fraterna associação que atenuaria a contradição na corporificação do
sonho. Alguns críticos apontaram traços semelhantes na arte do Terceiro
Mundo.19 Esses traços manifestam-se também nos setores pré-industriais,
mesmo em situações de desenvolvimento ativo. Na pintura, os “objetos de
reação poética” podem tornar-se poeticamente reacionários.
Entretanto, se deixarmos de lado uma parte da produção pós-purista bas­
tante voltada para a litografia e a tapeçaria (por onde penetra o pior inimigo da
arte, a divisão desigual do trabalho), o conjunto enfrenta a problemática central
da heterotopia, escapando, desta vez, da autotelia plástica. Le Corbusier retoma

18 Cf. Tim Benton, “Le Corbusier et la loi Loucheur”, texto apresentado no seminário Le
Corbusier, CEuvre et raise en ceuvre, Grenoble, dez. 1987.
247 19 Cf Schwarz, Roberto. Que horas são? São Paulo: Cia. Das Letras, 1987.
a multiplicidade tópica como tema, a qual corresponde melhor ao sujeito da arte,
necessariamente fragmentado, incompatível com qualquer integração.
Em resumo, fora a produção pós-cubista afastada das armadilhas da repro­
dução, a obra pictórica de Le Corbusier oferece-nos um exemplo curioso de
inversão metodológica. De modo geral, seus quadros resultam de etapas (teó­
ricas) de produção que deveriam ser as de um canteiro de obras ideal: a super­
posição e a sucessão de “componentes” separados (ou seja: a série de seqü-
ências produtivas da construção) que raramente se sobrepõem, permitindo,
portanto, que cada um (cada uma das seqüências produtivas) se desenvolva
segundo sua própria lógica (a autonomia desejável de cada especialidade cor­
respondendo a um corpo profissional).
Infelizmente, o canteiro aqui tem importância fora de seu campo: ele estru­
tura inadequadamente o artesanato da pintura com o que seria a lógica da
manufatura, se esta não escutasse primeiro os diktats da técnica de exploração.

A ARQUITETURA

O desenho de arquitetura de Le Corbusier é dirigido, ao contrário, como se


buscasse a diferenciação gradual de um material neutro, procedimento que
deveria, inversamente, comandar sua pintura. Seu artigo “Un seul corps de
métier” apresenta quase uma sinédoque particularizadora desse método:

Antes do concreto armado, todas as categorias profissionais no local, para se


fazer uma casa. Depois de vinte anos de aplicação do concreto armado, apenas
um corpo profissional no local: o pedreiro.20

Tudo acontece como se o desenho se impusesse, pouco a pouco, a um material


amorfo, puramente imaginário, um concreto idealizado. Curiosamente, Le
Corbusier reata aqui com velhas posições neoplatônicas.21 Xénakis e Wol-
gensky, seus auxiliares diretos, afirmam que, apesar de suas declarações, Le
Corbusier preocupava-se pouco com as técnicas e com os materiais que deve­
riam ser utilizados. Em seus projetos da década de 1920 (a casa Ozenfant em
Paris, a casa para a exposição do Werkbund de Stuttgart, a casa La Roche, a
vila de Garches, a vila Savoye etc.), toda especificidade construtiva desaparece

20 Le Corbusier, “Un seul corps de métier”, em Les arts de la maison. Paris, 1925.
21 M. Ficino, Théologie platonicienne de Vimmortalité des âmes. Paris: Belles-Lettres, 1970,
248 PP-176-177-
sob o mesmo revestimento branco. Porém, mesmo em suas obras consideradas
“brutalistas” persiste uma clara distância em relação à técnica. No convento
de la Tourette, por exemplo, a compressão prévia do concreto para aumen­
tar sua resistência só foi introduzida para manter algumas formas pensadas
abstratamente e dificilmente realizáveis com concreto tradicional. A igreja,
depois da definição de seu volume, foi estudada sucessivamente em metal, em
bloco de concreto, para, finalmente, ser feita em concreto moldado. As janelas
“ondulatórias”, cujo princípio descoberto na índia por P. Jeanneret respondia
a necessidades econômicas e às dimensões de fabricação do vidro, foram com­
postas a partir das medidas do modulor22 e... da música de Xénakis!23 Quase
sempre, a estrutura que esse “racionalista” nos convida a admirar não tem
ligação alguma com a estrutura real. Vejam-se as casas Jaoul, a vila Shodan,
Ronchamp ou, ainda, o convento de la Tourette: em nenhum lugar a estrutura
efetiva é perceptível, coberta que está pela figuração de uma outra estrutura,
principalmente no pátio interno. O material submetido às injunções do imagi­
nário deve, com frequência, assumir posturas tais que Le Corbusier é obrigado
a defender o contrário da evidência técnica.24
Ora, a arquitetura, ao contrário da pintura, parte de um material predetermi­
nado. Séculos de progresso e de estratificação na divisão técnica e social do traba­
lho o estruturaram completamente, selecionaram seus usos pertinentes, ordena­
ram convenientemente as sequências de sua utilização. O poder prescritivo
poderia dispor de um saber operacional que deveria impor respeito. A arquitetura
poderia ser resultado da articulação progressiva (e progressista) de seqüências
produtivas nitidamente distintas ou, em outros termos, o resultado de implica­

22 E lembremo-nos de que “o modulor é um instrumento de trabalho para os que criam


(que compõem — projetistas ou designers) e não para os que executam (pedreiros,
carpinteiros, mecânicos etc...)”- L. C., Le Modulor. Paris: Denoel, 1977, p. 168.
23 S. Ferro, Ch. Kebbal, Ph. Potié, C. Simonnet, Le Corbusier, Le Couvent de la Tourette.
/

Marseille: Editions Parenthèses, 1988, pp. 94-104.


24 Numa conferência na Sorbonne, realizada no dia 12 de junho de 1921, intitulada Esprit
nouveau en architecture, Le Corbusier declara: “esse material [o concreto armado...],
posto à disposição de todos, é, repito, de fundamento ortogonal; logicamente, procede
elementarmente do ângulo reto; tem, pois, tudo para nos seduzir porque contém um
princípio fundamental de nossa alegria estética”. Em compensação, J.B. Ache, em
Elements dune histoire de Vart de bâtir, Paris: Editions du Moniteur des Travaux
Publics, 1970, declara (p. 407): “parece que um material que podemos despejar,
ainda que provido de uma armadura que, aliás, podemos curvar, não pode justificar
249 verdadeiramente o aspecto retilíneo, cubista, da arquitetura dessa época”.
ções produtivas de sua organização manufatureira; elas não são contrárias à
democratização do canteiro de obras. Entretanto, como o lugar do construir é
também o lugar da exploração privilegiada da força de trabalho, o que se observa
é uma espécie de desordem que, do ponto de vista da técnica de dominação
(necessária à exploração), é extremamente eficiente. A produtividade, no sentido
capitalista, não é o associado permanente da razão construtiva. Donde a abundân­
cia — e Le Corbusier segue a regra geral — das imbricações abusivas das equipes
de tarefa, das interrupções inúteis do trabalho, do desvio de material e dos gestos
que o desenho de arquitetura suscita. Já desenvolvemos amplamente esses temas
em outras oportunidades; portanto, essas indicações são suficientes aqui.25

Para fazer um quadro, é necessário pegar uma tela ou uma prancheta, traçar o
desenho, pegar a tinta e espalhá-la com os pincéis. A recompensa para quem se
dedicou a uma longa preparação é que ele não busca mais na tela: ele executa.26

É na prática das artes plásticas (“fenômeno de criação pura”) que encontrei a


seiva intelectual de meu urbanismo e de minha arquitetura.27

Um quiasmo parece orientar a obra de Le Corbusier. Ele arquiteta seus espa­


ços como um pintor — e, em geral, pinta seus quadros como um arquiteto. Tal
liberdade imposta ao artista, e que se reflete no material esvaziando-o de toda
estruturação, é utilizada por ele para conceber construções que simulam a
técnica de produção. Ele as modela como se dispusesse da universalis mate­
ria sonhada por Marcelo Ficino, pura receptividade. Em contrapartida, os
dados operatórios da manufatura, a separação das tarefas determinadas pelos
materiais ou pelas etapas construtivas, a sucessão de intervenções cumulativas
(manufatura serial) ou de montagem (manufatura heterogênea), a decisão
autoritária, informam sua pintura: ela parece decorrer da cooperação de ofí­
cios diversos que adicionam suas competências específicas.
Nessas condições de duplo — e inverso — desvio das determinações particu­
lares da arquitetura e da pintura, não é estranho encontrar similaridades for­
mais, uma plástica híbrida. Tomemos um único exemplo: as linhas (ou pare­
des) curvas. São obtidas por seqüências de elementos geométricos regulares.
Forçando os termos da lingüística, dir-se-ia que seu aspecto sintagmático é
devedor à escolha paradigmática que privilegia “invariantes” fortes, segundo

25 Ver S. Ferro, “O canteiro e o desenho” e “Reflexões para uma política na arquitetura”.


26 Le Corbusier, “Un seul corps de métier”, op. cit.
250 27 Le Corbusier, Zodiac, n.7, 1960.
a Gestalttheorie. Deste modo, com freqüência, a tendência à geometrização de
todo desenho de arquitetura elaborado sob a influência da divisão desigual do
trabalho penetra a pintura e provoca a separação das linhas em agrupamen­
tos segundo a dominante geométrica.
Inversamente, quando se tornam paredes (vila Savoye, Ronchamp, palácio
da Assembléia em Chandigarh, sede da Associação dos Fiadores de Ahmeda-
bad etc), essas linhas obrigam o trabalho a disfunções importantes: a reali­
zação de tais paredes força diversos corpos profissionais (pedreiros, estucado­
res...) a práticas que se afastam de sua lógica imanente. Em geral, entretanto,
isso desaparece sob o anonimato do revestimento.28
Essas trocas ilícitas são sentidas pelo próprio Le Corbusier. Em pintura, a
memória da liberdade sufocada insinua-se através das pequenas idas e vindas
do traço sobre seu próprio trajeto, insistência sintomática, como sempre, do
que é recusado. Em arquitetura, uma dessas paredes deixa ver a violência que
implicam: aquela, sublime em sua confissão, da capela norte de la Tourette.
Tais observações podem ser adaptadas a outros arquitetos/pintores do
século XX. Enquanto a arte permanecer a única e estreita reserva social para o
exercício da autonomia (portanto, mediatamente condenada à heteronomia)
e enquanto a arquitetura formar a mediação para a exploração (levada, por­
tanto, à negação do canteiro de obras), elas continuarão querendo encontrar
muletas fora de seu conceito esquecido. Desse modo, o quiasmo pode ter uma
longa vida.

251 28 Ver “O canteiro e o desenho”, cap. Pour fmir encore, p.125 desta edição.
RECAPITULAÇÕES BRASILEIRAS

Oscar Níemeyer, Câmara dos Deputados, Brasília, DF (construção), c. 1958-60.


REFLEXÕES SOBRE O BRUTALISMO CABOCLO
1986

Como você explica o fato de os arquitetos de São Paulo escolherem o brutalismo entre
as várias tendências surgidas após a Segunda Guerra?
Tenho uma hipótese. Acho que foi por causa do Artigas, embora ele não gos­
tasse da palavra brutalismo. Um pouco antes de esse movimento aparecer, Artigas
já fazia um tipo de plástica, de estruturação do espaço e até de manipulação da
técnica que ia nesse sentido. O curioso é que o brutalismo no Brasil tomou uma
direção oposta à de sua origem, o convento de La Tourette. O proj eto de Le Corbu­
sier, embora não tenha sido o primeiro, foi uma espécie de símbolo do movimento.
Recentemente, em Grenoble, terminamos uma pesquisa sobre essa obra onde
aparece nitidamente a diferença de postura entre Artigas e Le Corbusier, sobre­
tudo quanto à estrutura.1 Enquanto na obra do Artigas a estrutura é clara, bem
pensada e aparente, no convento o que se vê não é a estrutura real. Desse modo,
aquela espécie de sinceridade construtiva da obra do Artigas toma um sentido
inverso no convento, onde há muito dêcor, muito reboco e argamassa. No Brasil,
nesse período, principalmente através do Artigas, a tese de base era aproveitar
cada componente da técnica construtiva com a máxima clareza e honestidade.

No caso do Artigas, isso seria uma influência de Frank Lloyd Wright?


/

E possível, pois a estrutura na obra de Corbusier sempre engana, a aparente


nunca é a real.

i Ver nesta coletânea “Desenho e canteiro na concepção do convento de La Tourette”,


255 pp. 214-221.
Por que o Artigas não gostava da palavra brutalismo?
Tenho a impressão que vem daquela reação, exposta nos artigos mais radicais,
como “Os caminhos da arquitetura moderna”,2 contra um movimento inter­
nacional que seria o mesmo em Tóquio, na França ou aqui. Nesse sentido, o
brutalismo que ele inicia no Brasil é diferente. E a palavra brutalismo vem
encobrir essa especificidade, porque mistura tudo.

Então você acha que não é brutalismo?


Muito já se falou sobre o brutalismo e o que o brutalismo pretendeu ser. Mas
a ética, aqui, adquiriu uma dimensão enorme. Lembro de certas aulas, onde o
Artigas falava da estrutura considerando que se podia e devia em certos casos
exagerar alguns detalhes, alguns pilares, não no sentido de enganar, mas, ao
contrário, para tornar ainda mais explícita a estrutura real, o comportamento
real dos materiais. Era quase uma mentira ética, uma mentira didática. Mas
nunca como o brutalismo europeu e japonês, em que aquele jogo de massas e
de formas freqüentemente escondia uma outra estrutura.

A valorização do espaço interno na arquitetura paulista foi uma invenção do Artigas?


A solução do espaço interno está ligada à trama urbana paulista. A falta de
paisagem em São Paulo conduziu a essa tendência para a interiorização. Daí,
então, essas casas com pátios, jardins no centro ou voltadas para os fundos.

Por que você falou numa espécie cabocla de brutalismo? Se naquele momento era uma
crítica, hoje essa nomeação não revela uma atitude transformadora?
Cabocla naquela época era para chatear, para agredir. Mas fazia parte do
nosso brutalismo a reapropriação e a diferenciação do brutalismo europeu
e japonês. Principalmente através da posição do Artigas de construir com os
meios locais e não com uma tecnologia ou um modo de fazer que não corres­
pondia às possibilidades daqui. A nossa divergência com o Artigas é que ele
nunca queria cair num miserabilismo. A nossa tendência era mais radical e
orientada para a casa popular.

Havia diferenças entre os projetos de Artigas e os de vocês?


A diferença estava no exagero. A gente ouvia o que o velho dizia e depois
radicalizava ao máximo, até o extremo, em tudo quanto era detalhe, em tudo
quanto era momento da obra, numa exigência radical ultrachinesa. Era mais
uma diferença de quantidade do que de posição. Certa vez, o Artigas projetou

256 2 Ver Vilanova Artigas, Caminhos da arquitetura. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
dois clubes, um para um sindicato operário e o outro bem chique. Ele dizia,
então, que não conseguia fazer dois projetos diferentes, um pobre e outro rico.
A nossa inclinação, pelo menos fazendo casas, era projetar, como num labora­
tório, outra arquitetura. Essa atitude experimental marcou esse tipo de arqui­
tetura que geralmente era inadequada ao cliente.

Como era o contato dos arquitetos de São Paulo com o brutalismo inglês?
Sempre foi menos presente que Le Corbusier e a corrente francesa. Após
a publicação do livro The New Brutalism: Ethic or Aesthetic, de Reyner
Banham, em 1966, o brutalismo inglês passou a ser mais conhecido aqui.

Qual é a importância desse livro?


Os textos de Banham são profundamente ambíguos. No livro sobre a primeira
era industrial, ele critica a arquitetura como uma espécie de contradição
entre 0 discurso e a prática, entre a produção teórica e a realização. Mas
isso que foi localizado num momento e para alguns arquitetos como falha
de um só capítulo é possível estender para a maioria dos arquitetos. Rara­
mente existe correspondência entre o texto e a obra. O texto sempre enfeita,
aumenta e propõe muito mais metas do que descreve a realidade. Le Corbu­
sier, por exemplo, é incrível: seus textos nada têm a ver com o que realizou.

Qual foi 0 impacto provocado pelo livro Without Rethoric - An ArchitecturalAesthetic


1955-1972, de Alison e Peter Smithson?
Nesse momento chegava uma etapa em que, por vaidade, achávamos que já
tínhamos um caminho próprio. Assim, nos interessava muito mais aprofun­
dar esse caminho que ir buscar fontes ou contatos fora. Dessa forma, os livros
eram lidos mas não marcavam.

Como se explica isso?


Porque então o trabalho político se confundiu com o trabalho de arquitetura.
Todo pensamento político nos levava a não poder mais utilizar certo tipo de
informação de fora, que não se adequava à nossa militância radical.

A atividade de arquitetura tão ligada à militância política foi uma especificidade brasileira
ou aconteceu no mundo todo nessa época?
Em certas áreas sim, mas a nossa crítica à organização do trabalho é daqui,
não existia fora. Em maio de 1968, inicia-se a discussão do projeto a partir do
usuário. Nesse período desenvolvem-se trabalhos sobre o canteiro como o lugar
da exploração. Mas uma crítica que pretenda informar o projeto e transformar
257 a técnica de projetação é rara. Quando acontece, é mais sobre a divisão do
projeto em etapas, onde cada equipe realiza sua parte sem interferência das
demais, para diminuir a confusão no canteiro. Mas a recolocação do operário
enquanto capacidade de trabalho, de saber fazer e de técnica é pouco estudada.

Qual foi a importância do brutalismo aqui?


Para a arquitetura paulista foi essencial. Numa atitude cabocla, antropofágica,
engolimos o brutalismo e o transformamos. A origem do movimento em São
Paulo está relacionada com a briga de Axtigas contra a via formalista de Nie-
meyer. Embora respeitasse muito a Niemeyer como profissional, o Artigas pen­
sava arquitetura de outro modo e marcou todo esse grupo paulista. Era uma outra
maneira de fazer e ver arquitetura. Naquela época, o Manifesto de Brasília era
incompreensível para nós, especialmente pela dicotomia introduzida pelo Nie­
meyer quando dizia que “durante o dia no meu escritório sou arquiteto e a minha
militância faço depois que saio do escritório”. A militância na arquitetura, para
Artigas e para aqueles que criou, era constante. Qualquer risco, qualquer traço
tinham uma implicação social e crítica enorme. Interessava-nos saber como o
operário ia fazer a parede que desenhávamos e que tipo de esforço estava em jogo.

A arquitetura brutalista inglesa buscava a cada obra recuperar o conteúdo ético proveni­
ente das raízes populares. Qual era a questão ética da arquitetura paulista?
Voltar-se para o tradicional é um aspecto apenas formal. Não queríamos recu­
perar o que já havia sido feito, mas nos apropriar, utilizar e valorizar a tecno­
logia que está na mão do operário, além de seu saber.

Mas como é possível se apropriar desse saber?


Apropriar não é uma boa palavra. A questão é deixar que esse saber participe.
A gente não vai lá roubar o saber, botar na nossa cabecinha e devolver. Mas
é projetar de tal maneira que aquilo que ele sabe possa realmente aparecer;
que o operário possa investir no que faz de uma maneira mais humana e não
de uma forma massacrante, como na maioria dos canteiros de obra. Então a
dimensão ética é também uma dimensão política.

De que forma os projetos da Unidade de habitação de Marselha, do convento de La


Tourette e das casas Jaoul influenciaram os projetos da época?
Quando apareceu o convento de La Tourette, todo mundo ficou embasbacado
pela violência, pela força. Sua importância foi mais pelo aspecto visual do
que pelo conteúdo, mais pela forma do que pela organização do projeto. Uma
forma nova, completamente dura, aparentemente saída do canteiro. Mas é
tudo falso, nada sai do canteiro. Já nas casas Jaoul foi diferente. Esse projeto
258 salientou realmente uma boa técnica, a abóbada de tijolo cerâmica. Uma téc-
nica popular antiga que ele utilizou e através da qual abriu um caminho. Até
esse momento, falava-se muito em industrialização, em progresso tecnológico.
De repente, Le Corbusier recupera nessas casas uma técnica velha, popular,
que permitia tudo isso que afirmei há pouco. Parece que o primeiro a empre­
gar essa técnica em São Paulo foi o Joaquim Guedes, numa casa. Em seguida,
projetamos as abóbadas totais que vão até o chão.

O que as abóbadas têm a ver com nossas tradições?


Depois de alguma pesquisa, encontramos muitas abóbadas populares no inte­
rior de São Paulo.

Mas essa abóbada total, o arquiteto Marcei Breuer já fazia nos Estados Unidos. Existe
entre elas alguma relação?
Existe uma relação apenas formal, pois, quando projetamos a abóbada, nossa
preocupação era o que acontecia no canteiro. Por ser uma tecnologia simples,
barata e facilmente generalizável, era ideal para a casa popular. Além disso, a
abóbada permite a construção no canteiro em condições bem melhores. Uma
vez realizada a cobertura, o resto é feito dentro, de maneira mais cômoda. Há
também uma mudança na maneira de proj etar. A abóbada exige uma trans­
formação na planta, na organização do espaço interno e no modo de viver. A
abóbada, praticamente, força a se fazer isso. Não se pode executar uma casinha
com três quartos, um banheiro e uma cozinha como num apartamento e cobrir
com uma abóbada, fica completamente absurda. Outro aspecto a considerar é a
simplicidade do material empregado. Na primeira casa que projetei em abóbada,
houve uma dificuldade enorme para encontrar um calculista. Ninguém queria
fazer, até o Ugo Tedeschi topar. O projeto de estrutura era uma fórmula mate­
mática numa folhinha demonstrando não ser preciso colocar ferro. A fôrma de
madeira já era a estrutura da casa, nesse sentido inclusive é que fica baratíssima.

As abóbadas eram uma novidade quando vocês as projetaram?


Eram, sim. A primeira foi do Guedes, mas depois variamos, indo até o chão.
Essa mudança não era formal, o Niemeyer já havia construído abóbadas
na Pampulha. O novo era a crítica ao canteiro. A tentativa de projetar uma
arquitetura barata e fácil de fazer, que pudesse realmente substituir as barba­
ridades do BNH.

A organização de algumas funções em volumes independentes dentro das abóbadas


vem do Artigas?
Essa liçãozinha é dele. Em sua casa, quando transforma a articulação tradicio­
259 nal do espaço, ele prepara toda a reestruturação do plano.
A arquitetura inglesa, antes de mais nada, quis ser ética. Por que você a criticou como
estetizante? A nossa, então, é que seria ética?
Acho que, praticamente, toda arquitetura estaria dentro desse rótulo, porque
passa sempre e exclusivamente pela consideração da forma e nunca pela rea­
lização dessa forma. A arquitetura inglesa da época, por empregar a fachada
popular ou um tique popular, não chega a ser ética.

Para você, a única revolução possível estaria no canteiro?


A meu ver, ainda é essencial. Não vou repetir o livrinho, mas a maior jornada
de trabalho, doenças e acidentes mortais acontecem no canteiro. E o lugar
onde se reúne o maior conjunto de explorações do nosso sistema. Não vejo
como se pode estar preocupado com a ética, desconhecendo totalmente essa
realidade brutal. O concreto armado foi aplicado com mil intenções, mas
pesquisas recentes mostram que o cimento é a causa principal das doenças do
canteiro, tipo dermatose, silicose etc. Quando se sabe disso, utilizar o concreto
além do estritamente necessário passa a ser crime.

Por que, já naquela época, vocês diminuíram o emprego do concreto?


Começamos a saber das implicações de saúde. Em nenhuma faculdade, salvo
a de Grenoble, existe curso sobre as doenças de trabalho e sobre o caráter
nefasto de certas tecnologias e materiais. A maior causa dos acidentes mortais
é a fadiga do fim da tarde. A segunda causa é a forma dos prédios, os enormes
t

planos verticais de onde o operário simplesmente desaba, cai e morre. E pos­


sível reduzir esses desastres, através do desenho, sem aumentar o custo e sem
mudar o fundamental.

Por que ninguém pensa nisso?


O canteiro é o lugar central da exploração e nenhum arquiteto consegue pro­
jetar sabendo que vai provocar mortes e doenças. Por ser o centro da violência
/

é encoberto pela denegação. E como se não existisse, uma espécie de ponto


morto. Aquilo tudo é a norma, a regra, e parece evidente.

Por que o concreto foi o material preferido pelos arquitetos paulistas?


Porque era um material que permitia estruturas maleáveis, abertas, variá­
veis etc. Era um material plástico, mas não no sentido formal do Niemeyer,
e sim porque permitia a estrutura correta, a estrutura pensada pelo Artigas,
com todas aquelas vigas variáveis, pilotis e pórticos, tudo aquilo que com a
madeira e o tijolo era impossível. Em todo esse movimento houve grandes
desvios. Na casa Bittencourt do Artigas, se você olhar bem, a fôrma é feita
260 com aquele tipo de tábua de terceira categoria aplicada na época para fazer
concreto, porque teoricamente ia ser revestida Depois o concreto começou a
ser bordado e as fôrmas para fazer encaixes, reentrâncias etc. eram especiais.
Aí, como o concreto era aparente, começou a ficar muito caro.

Atualmente as construções em concreto são bem mais caras...


No início era o inverso. A primeira ação do Artigas foi tirar o revestimento, o
que resultava em economia. Depois, na mão dos outros, que não vou nomear,
encareceu muito.

Mas como isso aconteceu dentro da escola formada por ele?


Tenho a impressão de que o Artigas deu origem a dois movimentos bem dife­
rentes, apesar de formalmente parecidos.

Quais são?
Uma corrente seguiu o Artigas no lado formal, na organização de plantas, no
espaço, no uso do concreto, e foi refinando. Você há de reconhecer aí dois ou
três arquitetos. E o nosso grupo seguiu o Artigas na crítica política e ética que
ele fazia da arquitetura anterior. Deste modo, empregamos os mesmos ele­
mentos formais, mas os desenvolvemos em outra direção.

Será que esses dois grupos não representam gerações diversas?


Sim, o primeiro grupo foi formado num momento mais calmo e o nosso
grupo foi formado pelo Artigas num momento de radicalização enorme. Era
impossível não pegar o discurso dele e radicalizar imediatamente. Tudo era
muito determinado pela política.

Por outro lado, por volta dos anos 1950, arquitetos como Rino Levi e Miguel Forte
construíram casas simples, muito rigorosas enquanto desenho e bem adequadas aos
materiais tradicionais que se encontravam na praça. Essas casas são extremamente
agradáveis para se viver. E representam alguma coisa que não se encontra na escola do
Artigas. É espantoso que esses arquitetos, porque não se afinavam politicamente com
a vanguarda paulista, tenham caído numa espécie de esquecimento. Quando realizei o
levantamento arquitetônico dessas casas, vi então como são bem-feitas e até a lição de
arquitetura que encerram.
Eram arquitetos bem formados, técnicos excelentes, mas que praticamente
não tinham uma teoria sobre arquitetura e sobretudo não tinham uma visão
política da arquitetura. A renovação do Artigas foi mostrar que na arquitetura
há uma enorme dimensão política que todo mundo esquece. Na minha for­
mação isso foi supervalorizado; em contrapartida, o arquiteto construtor e seu
261 mêtier não. Essa era a burrice.
As casas de Carlos Millan, por exemplo, são tão bem detalhadas que nunca precisam
de manutenção. O Millan é da escola do Rino Levi e do Miguel Forte. Será que o grupo
do Artigas valorizava esses aspectos?
Nosso grupo valorizava enormemente a técnica. Acontece que, quando você
vai interferir nas relações de produção no canteiro, as formas, os detalhes,
a tecnologia têm que mudar, se adaptar a essa alteração. E aquele foi um
momento de experiência, de tentar, de dar com a cabeça na parede. Projetei
casas completamente absurdas. Mas esse era um tempo de experiência, de ver
como, empregando certo material, técnica ou sistema de montagem, se pro­
duzia outro objeto.

As casas da escola de Artigas, em geral, são experiências?


Mas isso era uma atitude quase que consciente e, no limite, cínica, mas
não tinha outro jeito! Quais eram nossos clientes? Gente que tinha casa
grande enquanto estávamos pensando num outro cliente, aquele que não
existia — no povão. Todas as casas desse grupo, naquela época, eram o único
lugar onde se podia ensaiar. Em toda experiência, em todo ensaio, às vezes
você acerta, às vezes erra. Erra mais do que acerta. Mas a técnica não era
desprezada. O grupo que trabalhou a parlir do Artigas era maníaco por
detalhes, só que pelo detalhe modificador. Lógico, três meses depois o deta­
lhe não funcionava porque não era aquilo que devia ser feito. Estávamos
começando uma coisa nova que, inclusive, não pôde ser desenvolvida até o
fim. No início de uma experiência se faz muita besteira, até barbaridades.
Na época da Renascença, por exemplo, o que caía de prédios e de cúpulas
não dá para imaginar.

Mas como era esse detalhe modificador?


No caso do cano de água, por exemplo, a tecnologia conhecida era escondê-lo
dentro da parede. Dessa forma, a técnica do operário e os materiais eram pen­
sados para ficar dentro da parede. De repente, com essa vontade de valorizar
cada metier e não esconder mais, os canos saem de dentro para fora, mas as
peças não estavam adaptadas para isso. Assim, foi preciso inventar um gan-
chinho para prender o cano na parede, o que não existia. Também, foi preciso
pensar numa junta diferente da tradicional, de estopa. Não sei se ainda se usa
isso, mas no meu tempo, para botar um cano dentro da parede, era preciso
enfiar e depois enrolar com uma estopa. Isso ficava uma maçaroca, mas se
deixava porque era escondido na parede. No caso da junção da torneira com
o cano de água é a mesma coisa. Essa junção é colocada dentro da parede e o
ladrilho a recobre. Mas na hora de revelar a junção é preciso inventar.
262
Que tipo de detalhes vocês chegaram a transformar?
Hidráulica, elétrica, madeira, fechadura, maneira de abrir a porta, o taco, o
rodapé etc. A técnica era uma preocupação constante. Só que a tecnologia era
pensada para um outro tipo de arquitetura. Quando fizemos aquelas primei­
ras aberturas na cobertura, o que recobria aquilo não eram os domos que vie­
ram depois, de plástico, bonitinhos, era penico ou bacia de plástico que ven-
/

diam no mercado. Obvio que essas bacias não eram feitas para suportar o sol,
para a mudança de temperatura — assim, seis meses depois estavam podres.
Isso é fundamental, porque, se parecia uma arquitetura que era política no
discurso e desleixada no real, era exatamente o contrário. O que se perdia de
tempo, ou sei lá, ganhava-se de tempo, para procurar um jeito de fazer um
detalhe, é incalculável.

Essa arquitetura era então extremamente artesanal?


Não, tentei inclusive empregar elementos industriais. Aliás, foi meu maior
desastre. Porque a indústria também não estava pronta para isso. Usei ele­
mentos industriais para fazer a estrutura da casa, mas usei de maneira dife­
rente da tradicional e deu o maior bode. Não funcionou, arrebentou.

Havia alguma preocupação com a duração dessa arquitetura?


Procurávamos fazer o melhor possível dentro das condições que existiam na
época. Além disso, estávamos apenas começando e as casas ainda não tinham
durado.

E duraram?
Algumas sim, outras não. A casa do Juarez é uma que se mantém perfeita­
mente. A casa de Cotia foi abandonada pelo proprietário, ele mudou, casou,
depois descasou e a casa ficou vazia anos a fio. Depois foi habitada por outro
pessoal que quase a massacrou. Era uma época bonita, mas tinha que haver
continuidade. Não era organizada, nem muito sistematizada, nem muito
pensada, mas lembro que as aulas da FAU iam até sexta-feira e, praticamente
todos os sábados de manhã, o Artigas, o Paulinho e os outros professores iam
às obras com a turma. Havia, então, discussão da obra no canteiro. Princi­
palmente porque se tratava de uma tecnologia de ensaio. O Rino Levi e o
Miguel Forte aplicavam aquela tecnologia conhecida no maior nível de per­
feição. Então, é claro, essa maneira quase secular de fazer não tem jeito de
não funcionar.

Você ainda acredita nas transformações do canteiro? Você se animaria a descobrir


263 outros penicos ou aplicaria a tecnologia já estabelecida?
Para falar sofisticado: as forças de produção são inteiramente determinadas
pelas relações de produção. A tecnologia que tem aí, a maior parte dela traz
as marcas da exploração, da violência e do massacre dos operários. Então, é
impossível pensar na modificação das condições de trabalho sem pensar ao
mesmo tempo na modificação das técnicas de trabalho e dos materiais.

0 que o Artigas achava dessas suas idéias?


Se você ler o livro do Artigas, onde foram publicados aqueles artigos bem
radicais, como “Le Corbusier e o imperialismo” e “Os caminhos da arqui­
tetura moderna”, verá que no prefácio ele só fala desses dois artigos, o resto
não menciona. A época em que esses artigos foram escritos era a etapa polí­
tica de abertura, que correspondia à esperança de um Brasil desenvolvido. E
no fim da vida dele, na última vez que nos vimos, um mês ou dois antes de
sua morte, quase que a gente se disse, um ao outro, que havia uma enorme
continuidade entre o que ele queria fazer numa determinada época que era
radical e o nosso radicalismo. Acho que somos os herdeiros de verdade, muito
mais que o outro grupo. No fim, ele sabia. Nosso encontro foi muito isso, de
um lado eu dizendo que “apesar de nossas brigas é de você que a gente tirou
tudo, foram as suas teses que desenvolvemos, suas idéias que aplicamos com o
máximo de rigor”, e ele, de um certo modo, reconhecendo isso.

264
FAU, TRAVESSA DA MARIA ANTONIA V\
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1988

Este trabalho, começado logo após o assassinato de Marighella, teve outros


títulos, adaptados à censura: S. Jorge, ícaro, etc. Más metáforas.
Formalmente, pretende pertencer ao que chamávamos pintura (e arquitetura)
“nova”, em clara referência ao Cinema Novo: meios simples e idéias na cabeça.
Mais que variantes estéticas, estas opções refletiam o debate ético e polí­
tico que animou a FAU destes anos: grosseiramente, o confronto entre a busca
prioritária do desenvolvimento das forças produtivas (Artigas) contra a crítica
das relações de produção e de exploração (Flávio Império, Rodrigo Lefèvre e
eu). Apesar de ter participado ativamente da “Maria Antonia” (fui diretor da
revista Teoria e Práticao partici­
pei do II Seminário sobre O capi­
tal etc.), acho que a FAU, espécie
de travessa da Filosofia, e talvez
porque permanecesse próxima
da prática operária, contribuiu
então com proposições que ainda
precisam ser estudadas. A FAU
pagou pesado tributo por elas.
Fui preso (e torturado) antes
que terminasse esta homenagem
ao amigo morto. Como não acre­
dito em novas repúblicas, acho
que ainda não há condições para
completá-la.
•.n
1^2
J
FLÁVIO ARQUITETO 1995

Durante anos Flávio, Rodrigo e eu ocupamos o quarto de empregadas da


casa da Marquês de Paranaguá. Doze metros quadrados. Flávio e Rodrigo
cortaram o chão, suspenderam a metade e inventaram o menor duplex que
já vi. Assim mesmo vivia cheio de estudantes e professores da FAU e da Maria
Antonia, gente de teatro, pintores. Nossas mesas se colavam — como nossos
planos para a arquitetura, como o que fantasiávamos, como nossa aversão
pela esquerda de salão. Havia mais que troca entre nós: quem troca dá do seu
ao outro. Mas como saber quem, quando, havia antes sugerido o que o outro
já começara a esboçar, corrigindo o que o terceiro nem acabara de imaginar?
Na FAU, corria o boato de que nós nos preparávamos detalhadamente para as
reuniões: falso. A convergência do que dizíamos tinha virado “natural”.
Este cadinho único, entretanto, foi pouco a pouco construído. Alunos da
FAU, ainda nos distinguíamos bem. Nem o Rodrigo nem eu teríamos a ousadia
de apresentar ao Artigas um projeto para a embaixada da União Soviética em
Cuba (era o tema do exercício!) em estilo art-nouveau, com título em pseudo
alemão: “Das Embassaden”. Artigas aproveitou a deixa risonha e improvisou
magnífica aula sobre o tema. Creio que o episódio marcou Flávio: em vários
de seus cenários (penso, por exemplo, em Andorra ou na Opera dos três vin­
téns) traços de art-nouveau voltaram em cartazes ou detalhes de decoração.
Nos últimos anos de faculdade (1960/61), Flávio já era conhecido como
cenógrafo. Morte e vida severina foi para nós uma espécie de confirmação:
materiais simples (saco de estopa engomado e amassado nas roupas, papel e
cola nas caveiras de boi) transfigurados pela invenção lúcida convinham real­
266 mente mais ao nosso tempo que a contrafação de modelos metropolitanos.
A ousadia do desvio no uso habitual de coisas e materiais, propondo metáforas
visuais e faz-de-conta real, abria picadas para nossa arquitetura.
Em 1961, no mesmo ano em que participamos do concurso internacional
de estudantes de arquitetura da VI Bienal de São Paulo, realizamos projetos
diferentes: Flávio construiu seu primeiro projeto importante, a residência
Simão Fausto em Ubatuba. O uso franco e didático dos materiais, a ênfase do
desenho dos componentes funcionais fundamentais, o uso de abóbadas catalãs
mostra as influências cruzadas de Le Corbusier e Artigas. Mas há já bem mais.
A densidade espacial, por exemplo, aproveita a experiência teatral nos estritos
palcos do Vergueiro, do Cacilda Becker, do Arena. Não é maneirismo: por falta
de verdadeira experimentação em arquitetura (o que ainda hoje inexiste), nos
acostumamos a utilizar os projetos para os amigos coniventes como ocasiões
para testar procedimentos apropriados para o que nos parecia fundamental —
casa e equipamento popular. O estudo da densidade fazia parte deste empenho.
Não é hora ainda para comentário exaustivo das obras do Flávio: faltam
pesquisas, documentação completa, estudo comparativo metódico, etc. Mas
quero só apontar um detalhe, dos mais belos e que ilustra a complexidade do
seu desenho. Como os alto-relevos de Le Corbusier em Marselha ou as jardi­
neiras do Unity Temple de F. L. Wright, a grande gárgula da fachada princi­
pal serve como proêmio, de introdução. Espécie de objeto lógico (perdão pela
estranheza do ajuntamento), a calha corporifica o diagrama do escoamento
das águas pluviais, varia com a variação dos espaços que sobrevoa, protegendo
as janelas dos respingos nas jardineiras, deixando lugar para gárgulas diretas
no terraço, onde cilindros com pedregulhos não causam este inconveniente.
Questões simples, mas atendidas rigorosamente, como no resto do projeto. Mas
o “objeto lógico” se inflama, cresce e escapa da pura serventia — e se faz canto
do rigor. A calha é assim o sumário dos critérios de projetação, sumário que
comove pela tensão entre o necessário e o mais que necessário que a marca
como um grifo. Verticalização da linguagem, como dizia Foucault. Epílogo,
portanto (rerum repetito, posita em affectibus) — mas, posto na entrada, vira
introdução: capta quem chega, dá logo as regras do jogo, encaminha uma lei­
tura. O cenógrafo e o pintor, acostumados às manhas do espaço significativo,
assistem o arquiteto.
Os anos seguintes foram, sobretudo, de empenho teórico. Pouco a pouco
clareamos nosso modo de ver a arquitetura. Pregávamos mudanças, criticáva-
/

mos a prática corriqueira (na fau, na Fundação Armando Alvares Penteado,


na Escola de Arte Dramática, em artigos e conferências). Fazíamos tanto
barulho que em 1965 (4 anos após nossa formatura) a revista Acrópole, então
a melhor no campo, nos dedicou um numero especial.
267 Anos depois, já na França, escrevi O canteiro e o desenho, que condensa
o que pensávamos da arquitetura. O livro foi editado em 1979 (se não me
engano). Era ainda tempo de ditadura declarada. Para não complicar a vida
do Flávio e do Rodrigo que continuavam no Brasil, só os mencionei no posfá-
cio, indiretamente. Cito: “Este texto não teve prefácio... nem apresentação...
nem dedicatória: os que a merecem, meus dois companheiros de arquitetura,
sabem que a eles caberia, em outra hora. O registro de sua presença, deixei
para o plural do nós... Creio que gostaríamos, os três, de ainda oferecê-lo aos
trabalhadores da construção, não o tivesse eu tornado tão obtuso e banguela.”
Hoje, nossa farsa de democracia permite nomeá-los, Flávio e Rodrigo.
De maneira mais que corrida, resumo o que dizíamos. Nosso passo de par­
tida foi de recuo, distanciando a área confinada da arquitetura para poder vê-la
imersa na economia política. Pudemos assim estudar a função econômica, pri­
meira, da construção: alimentar a acumulação primitiva do capital — e, sobre­
tudo, servir como desacelerador da queda tendencial da taxa de lucros, pesadelo
do sistema. A baixa composição orgânica do capital no setor (muita força de
trabalho, reduzido capital constante) faz da construção fonte generosa em mais-
valia que pode, após perequação, ampliar a taxa média de lucros. Francisco de
Oliveira generalizou depois esta idéia em um artigo conhecido.1 Sua organi­
zação manufatureira (evolutivamente retrógrada, mas historicamente atua­
líssima por esta função de freio à queda da taxa de lucros) é, em consequência
mantida, endurecida mesmo. Grande parte do que se apresenta como “organi­
zação cientifica do trabalho” procura sem disfarces aumentar a desorganização
do que seria a lógica imanente da manufatura — se os artifícios da dominação
não se emaranhassam constantemente com ela. Estes artifícios são obrigados
a contrariar a lógica imanente. Os resultados, todos conhecemos — irracionali­
dade produtiva, baixíssimos salários, condições horríveis de trabalho, recorde
absoluto em doenças, acidentes e mortes.
Face a tal descalabro, nossa hipótese era (e é minha ainda) a seguinte: se
a manufatura da construção fosse desembaraçada do peso das artimanhas da
dominação, o trabalho (que neste caso é só formalmente submetido) poderia
retomar sua justa posição (em outro sistema social, é evidente). A torneira
de mais-valia seria fechada e a direção centralizada despedida — velho sonho
revolucionário desde o século XIX. Algumas publicações mais ou menos
contemporâneas (Gorz, Pignon, Maignien, Marcuse, etc.), a releitura de W.
Morris, a edição dos Grundrisse nos confirmaram nessas opiniões. Estas ques­
tões nos afastaram um pouco da geração do Artigas e estavam por baixo dos

1 Ver Francisco de Oliveira, “Critica à razão dualista” (1973), em Crítica à razão dualista e
268 o Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.
debates de 1968: oposição entre a exclusiva valorização do avanço das forças
produtivas e nossa critica à divisão do trabalho.
O que propúnhamos tem inúmeras conseqüências práticas para a proje-
tação e a conduta do canteiro. A manufatura se estrutura a partir da articu­
lação de equipes de trabalho especializadas e bem diferenciadas — e poucos
instrumentos sofisticados. Há duas formas de manufatura: a heterogênea, que
monta componentes já elaborados (a “pré-fabricação”) e a serial, que sobre­
põe, pouco a pouco, o trabalho quase todo realizado no canteiro. Nos anos
1960 a “pré-fabricação” engatinhava e, fora as iniciativas de Lelé em Brasília,
pouco se fazia nesta direção. Minha experiência, em 1962, na residência Boris
Fausto em São Paulo mostrou que ainda era cedo para tais caminhos.
Fundamentalmente nossa manufatura era (e ainda é) serial: trabalho
dominantemente interno e cumulativo. A manutenção da dominação impu­
nha: pouca clareza na distinção das equipes e um desenho de arquitetura que
exaltava não importa qual “valor estético” (?) — mas jamais o acúmulo sábio
dos trabalhos. Nós adotamos a via inversa: absoluta, quase maníaca atenção à
sucessão lógica dos trabalhos (o que meus alunos na França chamaram mais
tarde de “estética da separação”); afastamento de todo gesto convencional­
mente considerado artístico (salvo a didatização do procedimento, aplicando
o conselho de Benjamin para o qual todo romance deveria ensinar a escrever
outro romance); a exposição clara de todos os trabalhos (que reduzia 0 reves­
timento ao mínimo indispensável). A “estética da separação” permitia ainda,
a cada equipe de trabalho, não dividida pelos cronogramas habituais, não
mutilada pelo desenho formal e autoritário, o desenvolvimento das melho­
res virtualidades de sua lógica imanente e 0 uso dos materiais adequados. As
economias que fazíamos evitando as incoerências de programação e projeto
sempre nos permitiu o uso do mais apropriado no canteiro — e, nos casos que
dirigíamos diretamente, considerável aumento de salários sem acréscimo de
orçamento. Todas as equipes eram informadas e documentadas sobre todos os
trabalhos e sabiam o porquê de cada traço do projeto. Nossa metáfora de bolso
era o jazz: um tema comum, algumas passagens obrigatórias (os nós, quando
há cruzamento inevitável de competências) e, no mais, liberdade criadora de
todos. Dreams — mas que víamos de perto.
Chega. Mas seria impossível compreender a arquitetura do Flávio sem
lembrar as raízes do que fazíamos.
Em 1967, nós três projetamos varias escolas, graças ao terno apoio de
Mayumi Souza Lima. Prefiro não comentar estas obras, sendo também co-autor.
Em 1967 ainda, Flávio desenhou uma casa para Amelinha e Wolf, irmã e
/ /

cunhado, infelizmente não construída. E um dos seus mais puros projetos. E


>59 uma variante de um protótipo que elaboramos desde os tempos de estudantes
(na época, Júlio Barone também participou) e cuja primeira aplicação foi a casa
de Bernardo Issler, que construí em 1961. Rodrigo, posteriormente, multipli­
cou os exemplos com virtuosidade. Flávio concentrou neste projeto tudo 0 que
queríamos da arquitetura. Estrutura clara: abóbada perfeita, funcionando só a
compressão, sem precisão de isolamento ou impermeabilização, a curva mansa
protegendo primeiro 0 canteiro, depois a família Hamburger com sua conota­
ção maternal, uterina. Dentro, liberdade total, permitindo escapar da rigidez da
casa burguesa. Sobre o mezanino totalmente aberto à comunidade da criançada
numerosa, camas, armários, bancos, mesas compõem uma festiva promenade
architectural. Em baixo a promenade continua fluida, com poucos espaços
fechados. Fora da cobertura, os volumes dos “espaços molhados” brincam com
o jardim. A seriação dos trabalhos seria perfeita, todos à vista, reconhecidos.
Creio ainda hoje que este protótipo foi nossa contribuição mais original.
Em termos pedantes diria que criamos um novo “legi-signo”, coisa rara.
(Tenho vergonha de nos valorizar assim, mas, hoje, o Flávio e o Rodrigo
merecem que seja dito. Quero dar, aliás, um recado fora de hora: se algum dia
a Sociedade Cultural Flávio Império ficar rica, deveria construir este projeto.
Rodrigo e eu construímos nossas variações do protótipo — só falta o Flávio,
que o criou tanto quanto nós. E é preciso aproveitar logo, pois ainda me lem­
bro dos detalhes imaginados por ele e a tarde anda avançando.)
Em 1968, Flávio e Rodrigo projetaram a casa do professor Juarez Brandão
Lopes. Ainda as abóbadas, mas utilizadas de modo novo, com as faces “aber­
tas” voltadas para os lados e fechadas por duas imensas bibliotecas. Os mate­
riais, como sempre, são os de todos os dias: tijolos, vigo tas de concreto e tijolo
furado, madeira maciça e compensada, vidro, placas de cimento amianto,
cimento queimado. Os tijolos aparentes compõem as paredes de banheiros e
cozinha (os volumes “molhados”) e a biblioteca; as vigotas e tijolos furados
são reservados para os elementos estruturais, abóbadas e laje intermediaria; a
madeira maciça fornece os montantes e a compensada portas e portinholas; o
cimento amianto forma os “brise-soleils” e o queimado pisos, assentos, planos
de trabalho etc. Esta enumeração é importante: o objetivo era obter a síntese
material / função / equipe, cada equipe realizando uma função bem determi­
nada com seu ou seus materiais específicos.
Arquitetura tem também dimensão icônica, é imagem do processo de
projetação. Na casa do Juarez a clareza funcional e construtiva espelham fiel­
mente o rigor generoso da concepção. A estrutura da manufatura não domi­
nadora guia totalmente a escritura do projeto. Nenhum modelo, fora talvez a
referência “intertextual” ao brutalismo então dominante, vem perturbar este
rigor. Todos os componentes construtivo / funcionais ganham particularidade,
270 tomam caminhos próprios, se concentram em volta de seus diagramas essen-
ciais. Uma metáfora, a forma de asa da cobertura, polissêmica, valendo tam­
bém como interpretante para a família Brandão Lopes. Tanto o traçado do
projeto quanto o feitio operacional de cada tipo de trabalho depositam suas
marcas, seus índices no resultado final: todo gesto técnico solicitado pela obra,
sem acento fingindo, se grava e permanece na matéria que o recebeu.
A gramática peirceana ensina que somente o índice pode ocupar a posição do
sujeito na proposição; na casa do Juarez, todos os “sujeitos” falam e falam em
coro afinado. Não há símbolos — a não ser talvez (mas nunca falamos disto) o
tapume de livros protegendo o canteiro do professor. A obra é perfeita.
Mais tarde, o Flávio reformou com o Rodrigo o teatro Oficina, estudou a
reforma da “casa-ateliê” da rua Monsenhor Passalacqua e da casa do sítio da
Amelinha, trabalhou com Lina Bardi no SESC Pompéia. Não posso falar sobre o
teatro Oficina nem sobre a colaboração com Lina Bardi: eu já partira do Brasil
e me falta documentação. Se bem conheci Flávio, acho que ele não gostaria que
me metesse a comentar o projeto da “casa-ateliê”: hoje há um grupo de gente
entusiasmada que desenvolve o projeto e a eles cabe a palavra. Quanto à reforma
da casa do sítio, nada pode substituir a carta / comentário do próprio Flávio.
Flávio era pintor, poeta, professor, homem de teatro e cinema também.
/

Dizia que o arquiteto sustentava os outros. E possível. Talvez por isso sua
obra de arquitetura é pequena, como a minha. Rodrigo insistiu mais — porém
terminou também saindo de lado, foi organizar o serviço de saúde da Guiné
Bissau. Quanto mais nos convencíamos que nossa analise da construção era
(é) justa, menos nos adaptávamos à profissão. Seria preciso ter a má-fé que
não tínhamos para continuar a servir o que condenávamos. Fomos parando,
espaçando os trabalhos, esperando o milagre da obra realmente experimental
ou, menos provável ainda, o da transformação social.
Se o arquiteto sustentava os outros, os outros, todos os outros Flávios certa-
mentc embaraçaram o arquiteto. Eles sabiam o que é pôr-se lá no fazer para
se achar, embrenhar-se na matéria para perder a desesperante ligeireza de ser,
pensar fora do pensamento dado: tudo que é arte enfim. Eles experimentaram
tudo isto bem demais para não sentir amargamente o que a arquitetura “nor­
mal” impede aos que a servem, os operários da construção. W. Morris dizia: arte
é manifestação da alegria no trabalho. Os Flávios viveram esta alegria séria e
sabiam que ela não mais visitava os canteiros desde a Renascença.
Pouco depois de nos conhecermos (1957) fui ao Vergueiro assistir a uma
peça (O boi e o burro ?) cujo cenário era dele. Quando cheguei, ele alfinetava
nuvens de papel manteiga num céu de cobalto. Sempre achei este oxímoro a
cara dele. Ora, em arquitetura é proibido alfinetar nuvens.

Hoje é 7 de setembro de 1995. Um abraço saudoso, irmão.


SOBRE "ARQUITETURA NOVA"
1997

Sem negar as possíveis fantasias da auto-estima, creio que há pouco a corri­


gir neste texto velho de trinta anos. Abrandar talvez um pouco a crítica aos
jovens arquitetos dos anos i960, enredados sem muita clareza entre 0 apro­
priado e o possível. As máscaras, então, escondiam vergonha, embaraço, per­
plexidade pelo menos. A pouca vergonha de vários, depois, não precisou mais
delas, a não ser para ganhar alguma identidade de empréstimo. A arquitetura
dominante se fez, em grande parte, bordadeira elogiosa da mais violenta das
burguesias, criadora (durante, antes e “após” a ditadura) da maior desigual­
dade social no mundo de hoje.
O que o recuo compactuante chama “o fim das ideologias” (talvez porque
só uma impera, a do mercado globalizado) aplainou as veredas do acomo­
damento servil. Diminuíram os mecanismos de compensação, chegaram os
trejeitos da irresponsabilidade — trans, neo, pós-modernistas e outros escapes.
Na euforia do vale-tudo, entretanto, as sombrias artimanhas da exploração
acharam outras oportunidades. O único avanço no campo da arquitetura, nes­
tes trinta anos, foi o da miséria operária. Meu livro “O canteiro e o desenho”
guarda pertinência: só seria preciso marcar mais o tom de revolta.
Por isso, conviria também corrigir a nota final sobre os signos, meio
simplória. A leitura semiótica da arquitetura é de atualidade. O desenho de
arquitetura recobre mais e mais a obra, com exagero sintomático. Tais signos,
em arquitetura, não “afastam” unicamente a “coisa”, como disse. Pior: são,
neste caso, sobretudo semantizações espúrias do gesto técnico, desvio ilegí­
timo e abolidor da indicialidade do trabalho que é a manifestação do sujeito
272 produtivo. O gesto técnico emudece sob a fala de quem comanda. O que pode-
ria vir a ser poesia, se o índice do fazer fosse exaltado, valorizado pela consci­
ência de si do corpo produtivo, vira marca do desapossamento não só da força
do trabalho, mas ainda, amargando mais a dor, de tudo o que, lá de dentro do
trabalhador, poderia vir a engravidar o material com o espírito. O desenho
desta arquitetura, aproveitando o mutismo da razão critica, estreita seu domí­
nio apagando todo vestígio de quem faz e abarrotando o que fez anônimo com
o vazio barulhento das formas autoritárias.
Felizmente, eu sei, há gente fazendo outra coisa, ficando perto dos caren­
tes, re-dignificando a arquitetura. Mas, fala-se pouco deles, talvez na espe­
rança que escorreguem para fora da historia, como querem que aconteça com
o Rodrigo Lefèvre e o Flávio Império — ou o Artigas. Para o campo oficial,
contam os cenaristas do poder; os outros, são curiosidades secundárias, carido­
sos inofensivos.
O debate sobre nossa arquitetura deve ser reaberto. A forma não é o super­
ficial; ao contrario, ela é o conteúdo, já dizia o esquecido Hegel. A forma da
subserviência é a mesma que espolia. E ela corrompe, acostumando ao vil.
Que a re-edição deste texto possa ajudar, nem que seja um pouquinho, a
volta da vergonha, pelo menos.

nota Roberto Schwarz no seu artigo “Remarques sur la culture et la politique au


Brésil”, em Les Temps Modernes n. 288, de julho 1970, generaliza a trama de análise
deste artigo para outros domínios da cultura brasileira no período.1

Este texto foi publicado no Brasil posteriormente: Roberto Schwarz, “Cultura e política
(1964-1969)” em O pai defamília. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. [n.o.]
DEPOIMENTO A UM PESQUISADOR
2000

Como foi que você, Rodrigo Lefèvre e Flávio Império começaram a trabalhar juntos?
O Rodrigo, eu já o conhecia há muito tempo, nós estudávamos juntos desde
o ginásio. O Flávio, encontramos na faculdade. Havia outros no começo que
trabalhavam conosco, depois ficamos só nós três. O regime era sempre de
total e absoluta igualdade, nunca tivemos um desenhista, e era absolutamente
impossível saber quem tinha tido uma idéia ou outra, pois tudo circulava
sem parar. Nós queríamos praticar a arquitetura, teorização, ensino, tudo ao
mesmo tempo, e cada um ainda com uma outra prática diferente. Na época, o
Flávio fazia muito mais teatro do que pintura, eu pintava, o Rodrigo se inte­
ressava muito por técnica. Aliás, o mais técnico de nós três era o Rodrigo, o
único que sabia fazer o desenho de uma tubulação de esgoto, essas coisas todas.
Nós também tínhamos uma participação na universidade bastante intensa,
um pouco depois — isso já mais em 1967 — em revistas etc. Nós estávamos nos
aproximando de 1964, o período era de bastante movimentação política no
Brasil, e sobretudo um pouquinho de esperança. Quando 0 golpe veio, cortou-
a violentamente e provocou de imediato uma grande radicalização política.
A universidade, toda ela, esquentou bem. Nós, de uma maneira ou de outra,
já tínhamos uma participação política de tipo diferente: eu logo entrei para o
Partido, o Rodrigo um pouco depois, e o Flávio tinha um trabalho diferente,
r
lá no Vergueiro. E difícil, com tanta distância, descrever isso no miudinho
assim, com datas precisas...

Me parece que essa experiência no Vergueiro foi decisiva para a prática de vocês, não?
274 O Vergueiro era um teatro muito bonito mas paupérrimo, não tinha nada.
Tudo que o Flávio fazia lá era tirado do nada: papelão, alfinete, enfim, real­
mente uma utilização do material mais pobre possível, mais elementar, e com
aquilo ele fazia maravilhas, coisas lindíssimas. Isso estava um pouquinho no
ar do tempo, comecinho do Cinema Novo, do CPC, e era possível transferir
esse espírito, não o detalhe, mas o espírito da coisa, para a arquitetura. Foi
uma influência importante, mostrando como a partir dos elementos mais
simples não era apenas possível fazer qualquer coisa, mas fazer qualquer
coisa muito bem. A riqueza dos meios não tem nada a ver com a qualidade do
resultado, ao contrário — era tempo do Artacho Jurado, prédios riquíssimos, e
horrorosos, medonhos.

Por outro lado havia também a referência de Brasília...


O que o Niemeyer fez em Brasília, nós tínhamos muita dificuldade em aceitar.
E a gente acompanhava tudo de perto, era a época da construção, as coisas
estavam bem vivas. Aquela utopia constante dele... O Artigas tinha a mesma
utopia, mas era tomada em direção praticamente inversa. Eu me lembro dele
bastante eufórico e contente pois, por acaso, ele estava fazendo dois clubes,
um clube chique e um clube para um sindicato, e ele tinha muito orgulho
contando que os dois projetos eram absolutamente iguais, sem diferença
nenhuma. Enquanto o Niemeyer queria fazer Yves Saint Laurent para todo o
mundo, o Artigas dizia: “bom, eu sei fazer clube para sindicato, então o chi­
que tem que ser igual. Se não quiser, então... ”. O Artigas era muito rígido,
quase puritano. O conforto da casa dele, se você olhar de perto, é um conforto
quase de padre, tudo seco, sóbrio, sem nada molinho.

Nas primeiras casas de vocês, que são muito próximas do Artigas, houve uma tentativa
de dar um passo adiante, fazer uma experiência com componentes industrializados,
como foi?
Foi um desastre. Primeiro porque as medidas eram todas variáveis, não
tinham rigor, chegavam peças meio tortas. Eu também fiz uma besteira, por­
que a laje da casa do Boris Fausto tem quatro pilares centrais e um balanço
muito grande, e lá na ponta ela balança demais. Para resolver isto, eu tive que
fazer juntas elásticas e não havia materiais — as juntas foram todas embora na
primeira chuva. O canteiro de obras também não é igual, você precisa de ope­
rários montadores, e não de operários produtores, a organização é diferente.
Mas um dia eu acho que será possível uma experiência industrial.

Os seus clientes topavam participar dessas experiências?


Eu não contava tudo. Todos eles sabiam que estávamos fazendo experiências.
Eram quase todos professores da universidade, o Juarez, o Boris, o Bernardo,
todos eles de esquerda, e naquela época, com Brasília, havia a esperança de
que o país iria avançar, de que precisávamos inventar. Assim, havia a expecta­
tiva de que ali estivéssemos inaugurando uma forma nova de morar, de cons­
truir, de relação com o trabalho etc.

Constatada a impossibilidade da produção industrializada naquele momento, vocês par­


tem para uma alternativa oposta. Como foi isso?
A casa do Bernardo Issler foi muito mais eficaz e mostrava mais possibilida­
des do que a casa do Boris. Na verdade, a casa do Boris de um lado e a do Ber­
nardo, de outro, são quase que experimentações teóricas a partir do Marx, do
capítulo sobre a manufatura. A primeira foi uma experiência de manufatura
heterogênea e a segunda de manufatura serial. A manufatura heterogênea
se faz basicamente com peças industrializadas e montadas no canteiro, e a
manufatura serial é a construção tradicional, feita in loco.

0 interessante é que vocês utilizaram os materiais tradicionais da autoconstrução,


como o tijolo e a vigota, e os recombinaram de uma maneira diferente, que não tinha
mais nada da aparência das casas populares na periferia.
Nós não ficávamos babando com a cultura popular, porque é de certa maneira
uma cultura também da exploração. Entretanto, ao invés de tentar impor
outra tecnologia ou maneira de fazer totalmente fora dos hábitos, como uma
solução milagrosa vinda de fora, nós propúnhamos utilizar elementos que
eles conheciam, que estavam nas mãos deles, e fazer uma coisa nova.

Me parece que vocês indicavam que a democratização da casa paulista, do Artigas, não
passaria pelas mãos dos industriais, como os modernos sempre acreditaram...
Exatamente. Essa possibilidade estava cortada. Havia duas entradas diferen­
tes aí. Primeiro uma análise que vinha do tomo III d’O capital, a questão da
queda da taxa de lucros. Era evidente, a construção civil não caminhava para
a industrialização; ao contrário, mesmo que pudesse, ela não se industriali­
zaria rapidamente — a construção civil “atrasada” é essencial para frear esta
queda da taxa de lucros. Para industrializar, teria que haver também uma
reforma fundiária, da propriedade do solo, um monte de transformações
que até hoje não foram feitas e que se fôssemos esperar, não faríamos nada.
Em segundo lugar, uma vez que a manufatura iria ainda permanecer, nós
estávamos dispostos a trabalhar dentro dela; afinal, trata-se de um meio de
produção como outro qualquer, não tem virtudes nem defeitos intrínsecos,
depende da forma como é utilizado. Essa nossa posição entrava em choque
com uma certa interpretação hegemônica do Marx naquele período, sobre a
276 evolução das forças produtivas, “socialismo mais eletricidade” etc. Por isso
fomos várias vezes criticados, mesmo pelo Artigas, de quase reacionários neste
aspecto, de não nos engajarmos no desenvolvimento das forças produtivas,
que no fim iria resolver tudo.

Pelo olhar do Partidão e do Artigas, vocês eram uma regressão em diversos níveis,
regressão na técnica e regressão à questão da habitação popular, que era anti-revolu­
cionária naquele momento.
Estas críticas foram fortes. Nós éramos conhecidos como arquitetos de tijolo
e areia, quase que com desprezo. Ao mesmo tempo já havia toda a crítica da
divisão do trabalho, sobretudo na França, textos muito bonitos do Gorz, do
Lefebvre, que nos davam uma certa base — não estávamos assim tão isolados.
Mas aqui na faculdade foi o grande divisor de águas.

É impressionante como depois do Golpe, mesmo tendo sido preso, o Artigas ainda
acreditava invariavelmente no desenvolvimento das forças produtivas, e nesse sentido
reconhecia as afinidades entre o projeto moderno e o estado autoritário.
O Artigas não era stalinista no sentido negativo da palavra, mas era o sujeito
da autoridade. No Fórum de 1962, quando houve o debate sobre o ensino da
FAU, ele várias vezes me disse “siga-me”, um comando mesmo, do Partido. Eu
morava bem pertinho dele e ele me chamava para irmos juntos pra escola,
para dar bronca, quando eu saía da linha do Partido. Isso, repito, não era de
jeito nenhum violência, era o modo de direção do Partido.

Não deixa de ser inusitado que apenas depois do Golpe o Artigas tenha começado a
pensar em habitação popular, num momento em que 0 próprio regime assumia isso
como grande projeto seu, de legitimação política e modernização conservadora. Como
vocês viam isso?
A habitação naquele momento era instrumento de legitimação, mas tinha sobre­
tudo como objetivo movimentar a economia: pegava-se bastante gente e punha
a trabalhar com meios elementares em grandes canteiros de obra. Isso é indis­
pensável para manter o capital indo para a frente, aquela massa de dinheiro
vindo da construção civil, a questão da taxa de lucro etc. Construir tudo, não só
casa popular, era fundamental para o sistema, do ponto de vista puramente eco­
nômico, como reservatório privilegiado de extração de mais-valia.

Mas o Artigas acreditava estar fazendo alguma coisa para além disso, certamente...
Eu lembro quando vimos a maquete de Guarulhos, houve quase um constran­
gimento. O Artigas é uma arquiteto magnífico e de repente, quando chega a
oportunidade... Porra! Um projeto desses, uma oportunidade daquela e ele
continuava fazendo o mesmo tipo de coisa. Não modificou o que interessava
modificar, não pensou em mudar o canteiro — propunha um desenho impera­
tivo, de alto a baixo, enfim...

Você náo respondeu: quando a casa popular tornou-se bandeira do regime, como ficou
a posição de vocês?
Aí nossa radicalização foi rápida. Nesses anos houve um estremecimento
muito forte, mesmo com o Artigas, um racha bastante grande, que aparecia
em todos os níveis: na concepção do ensino, na arquitetura, em relação ao tra­
balho e mesmo quanto à missão dos arquitetos. Foi quando começamos a ser
totalmente rejeitados.

Como vocês eram vistos?


De uma forma confusa. Ao mesmo tempo, éramos todos nós, menos o Flávio,
de família paulista bem burguesa e, assim, nossa posição passava a ser vista
como brincadeira de rico, como naquela peça do Sartre, “As mãos sujas”.1 Além
do mais, como estávamos começando o trabalho de ação, para disfarçar nos
vestíamos cada vez melhor, na linha. O Fleury levou meses para aceitar a idéia
de que eu era eu: “aquele menino tão bonitinho, de gravatinha de crochet, não
pode ser”, e aí prendeu outro pobre rapaz que até hoje não sei quem é. Nosso
disfarce funcionava, mas ao mesmo tempo nos atrapalhava, porque a imagem
que dávamos era o oposto da que a gente queria. Tudo foi bastante contradi­
tório, acompanhado da nossa saída do Partido. O momento era muito difícil. A
tensão era inimaginável. Um dia, no meio do Fórum (de 1968), nós fizemos
uma ação num depósito de dinamite. Eu, burro, querendo tirar a impressão
digital da porta, limpei com a malha que eu vestia. Eu estava com uma malha
vermelha. No dia seguinte, dia do Fórum, eu cheguei e abri o jornal: “rouba­
ram dinamites no depósito tal, e a única pista é que se trata de assaltante com
malha vermelha”. E eu ainda estava com a mesma malha e discutindo com
o Artigas ao lado, uma tensão danada. A partir de um momento, isso que era
piada, virou tragédia, os alunos começaram a morrer, muitos.

A defesa da luta armada deve ser difícil para um professor...


Muito difícil. E aí também, uma coisa que nos transparecia é que no movi­
mento estudantil a nossa linha pegava muito mais do que a do Artigas. A

1 A peça de J-P. Sartre, de 1948, descreve o conflito de um intelectual burguês diante


do engajamento exigido pelo Partido Comunista na resistência à ocupação alemã da
Segunda Guerra; o intelectual, indisciplinado por natureza, duvida, questiona, tergiversa
278 e realiza ações voluntaristas. [n.O.]
única compensação, era a regra número um, todos faziam tudo igualmente.
Na ação, no trabalho, havia igualdade absoluta. Mas era muito difícil.

Vocês explodiram um monumento, como foi isso?


O Marighella era terrível, ele nos contactava e dizia: “hoje à noite vocês pre­
cisam fazer alguma coisa porque eu vou lançar um manifesto”. E às vezes
não havia nada preparado: foi o caso do aviãozinho. Aí nos reunimos rapida­
mente: “o que é que vamos fazer hoje? Precisamos fazer alguma coisa porque
o homem quer lançar um manifesto”. A idéia mais imediata foi a bomba no
aviãozinho da FAB na 9 de Julho, mas erramos na dose, ele está lá até hoje.

Você tem um quadro em homenagem ao Marighella que ficou inacabado porque você
acabou preso, não é?
/

E. O quadro está lá no Museu de Arte Contemporânea. Depois, na cadeia, eu


fiz um para o Lamarca e outro para a Iara. Era muito, muito tenso. Eu ia dar
aula mas o Lamarca estava lá em casa, escondido. A Iara também, semanas
em casa...

Na saída da prisão, como foi sua decisão de ir para a França?


Primeiro a FAU me expulsou de uma maneira vergonhosa. Eu estava preso, o
diretor tinha ido lá e tal, e aí recebi uma cartinha da FAU dizendo que eu estava
despedido porque estava faltando muito. E ficou assim até hoje. 0 Rodrigo tam­
bém foi despedido por falta, nós dois juntos, mas 0 Rodrigo depois conseguiu
recuperar, porque tinha feito o CPOR, que nessa época valia tempo de ensino.

Você então decide ir para a França...


Tinha que ir. Eu não ia parar de dar aula, tinha filhos, não dava, fui para a
França.

Antes de seguirmos para a França, entremos no canteiro. Há uma novidade quando


vocês começam a falar do canteiro de obras no fim dos anos 1960, porque vocês inver­
tem os termos em que a questão era tradicionalmente posta, da produtividade e do
rendimento, e ao mesmo tempo superam o problema específico da casa popular em si
para enfrentar a questão mais geral da produção da arquitetura. Como você resumiria
hoje essa mudança?
Foi um aprofundamento da análise marxista: não só a partir do livro do
Engels (A questão da habitação), do qual continuo gostando muito apesar de
tudo que falam dele, mas sobretudo da análise global da economia do Marx.
Nós começamos a nos perguntar: qual o papel da construção civil na economia
política? Foi quase que uma abertura de cadre, pegar um zoom e olhar a coisa
mais de longe. Isso foi fundamental, mostrar que no fundo a questão da casa
popular, que é importantíssima, não será nunca resolvida se não atingirmos o
que está mais embaixo ainda, que é o sistema de exploração global do traba­
lho, e no nosso campo considerando especificamente a forma como a constru­
ção civil entra nesse sistema, ligada à tese da queda tendencial da taxa de
lucro. Eu utilizava muito o Dieese, que era o único órgão que fazia pesquisa
operária naquele tempo, para fazer as continhas à la Marx, e aí você via o
absurdo total, como é assustadora a exploração. O pessoal naquela época,
segundo o meu cálculo, trabalhava 40, 50 minutos para o próprio salário e o
resto inteirinho do dia, aquela merda, para sustentar o conjunto do sistema.
Quando você calcula o número total, o quanto do pnb vai efetivamente na
construção, incluindo ponte, estrada, casa, tudo, é uma massa gigantesca de
dinheiro que está ali na nossa mão e a gente trabalhando com aquilo da
maneira mais ingênua possível. Se a crítica se limitasse ao programa da resi­
dência, da casa popular, nós estaríamos quase que compactuando com o sis­
tema. Daí toda a questão da análise do trabalho, a dimensão do trabalho, a
divisão dos tipos de produtor etc. Esse foi nosso grande interesse nesses anos.
Aí você vê muito melhor o papel do desenho, a importância do desenho para
explorar o trabalho, a força do arquiteto como figura essencial para transfor­
mar aquele trabalho esfacelado em mercadoria. Foi quando nos tornamos
totalmente imperdoáveis. Porque não era mais uma crítica formal da arquite­
tura, não era mais uma crítica do fazer casa para burguês ou fazer casa para
operário, mas de certa maneira era uma crítica da profissão, no seu todo.
/

Fomos expurgados. Isso nunca se apagou. E sintomático que no ano passado,


aqui na festa de 50 anos da FAU, o Flávio apareceu como homem de teatro, eu
como pintor, não como arquitetos! E 0 pior é que a minha pintura é ainda
mais mal entendida do que a arquitetura, a mesma exclusão.

Quer dizer que a crítica de vocês à arquitetura nunca foi aceita?


Isto se manifestou de mil maneiras. O livrinho, O canteiro e 0 desenho, teve
interesse, muita gente leu, fiz conferências. Entretanto, mesmo o que era dito,
o que estava escrito, era esvaziado. Lembro-me fazendo conferências em Brasí­
lia e aqui em São Paulo: eu tocava nesses problemas e via em seguida os arqui­
tetos virando a cabeça e dizendo “vamos falar de outra coisa”. Lá na França é
a mesma coisa. Não com os alunos, que se interessam, mas em qualquer outro
meio em que se fale disso, há mal estar, o pessoal disfarça e sai de mansinho.
280
Me parece que justamente ao romper o mundinho estreito dos arquitetos, o seu con­
tato com o pessoal da Maria Antonia, do Seminário Marx (1964-68), da revista Teoria e
Prática, foi fundamental para a sua crítica, não?
O nosso escritório era uma espécie de pontinho de encontro, vinha gente de
teatro, da filosofia etc. Assim, a minha leitura de Marx acabou sendo feita
com o pessoal da filosofia, o Roberto Schwarz, o Ruy Fausto, o Emir Sader...
Já tinha acontecido o primeiro Seminário, do qual o Roberto fala no livro
dele, e aí nós fizemos um segundo, todo sábado, muito bom, muito ativo. A
leitura do primeiro Seminário sempre teve como objetivo escrever livros.
A nossa era diferente, porque se traduzia quase que imediatamente em prá­
tica, tanto política quanto profissional.

Era nítida a distinção entre os dois "Seminários Marx"?


Era bem nítida. O seminário deles era formado por professores, intelectuais,
e o nosso era por militantes, de grupos diferentes, correntes diferentes, mas
quase todos militantes ativos. E ist.o marcava bem a diferença entre os dois
seminários. O nosso de uma certa maneira produziu uma prática, que depois
se arrebentou, não importa, mas era orientado noutra direção.

0 Roberto Schwarz, que participou dos dois grupos, comenta que o marxismo brasileiro,
seja o da Maria Antonia ou o do Partidão, sempre esteve a favor da industrialização,
do progresso, enfim, entendendo isso como superação do atraso. Parece que você
(como ele também) seguiu outro caminho, bastante incomum por aqui, não? É outra
tradição crítica?
A crítica do Adorno, da Escola de Frankfurt, nunca entrou no Partidão. É
uma crítica muito mais radical, menos esperançosa nesse quase automatismo
do desenvolvimento, do progresso que vai salvar a humanidade. É muito mais
atenta às deformações presentes, que de certa maneira não se resolverão com
um automatismo progressista qualquer.

A crítica de vocês não aparecia como reacionária, uma vez que não estava preocupada
em resolver o atraso, as mazelas sociais?
O impasse para nós era mais ou menos evidente. Um outro autor daquela
época, o Gunder Frank, já falava do “desenvolvimento do subdesenvolvi­
mento”. Não era nem desespero nem uma recusa do desenvolvimento, ao
contrário, mas uma crítica da ingenuidade dessa posição, que pode rapida­
mente se transformar no seu inverso, em crime.

Entrando n'0 canteiro e o desenho propriamente, vou provocá-lo a responder a algu­


281 mas críticas comuns ao livro, fazendo aqui o papel de advogado do diabo. A primeira
crítica, e mais geral, questiona a própria legitimidade de seu ponto de vista marxista
para a interpretação da arquitetura. Explicando melhor: logo de cara você afirma que vai
tratar a arquitetura como "mercadoria',' e organiza sua análise de forma semelhante
à de Marx em O capital. Essa abordagem radical assusta muita gente, que acha que
você está reduzindo a arquitetura à esfera da economia política, não reconhecendo nela
a manifestação artística de uma "atividade superior" da sociedade. Ao transformar a
crítica da arquitetura em crítica das relações de produção você não estaria desprezando
o que é específico da arquitetura e de seu debate estético?
Eu insisto no caráter de mercadoria da arquitetura porque eu vejo que os
arquitetos passam em silêncio sobre isso, fingem que ignoram. Eu gosto de
citar a frase do Brecht: são as coisas que parecem mais evidentes, aquelas que
as pessoas acham natural e de que nem é preciso falar, que devem ser criti­
cadas com urgência. O fato de ser mercadoria corrói a arquitetura a fundo,
nuclearmente, até o meio da espinha, como corrói hoje em dia totalmente a
pintura. Se você não percebe isso, você já não entende mais nada. A partir daí,
primeiro é preciso fazer um esforço para mostrar que é assim, é mercadoria,
aquela análise inicial do canteiro, o papel do desenho nisso, e em segundo
lugar, mostrar como se tem que começar a criticar e a modificar isto por
dentro. Não se trata de uma denúncia radical de toda arquitetura, de toda a
história, mas de uma arquitetura sim, de um tipo de prática profissional sim,
de um tipo de utilização da arquitetura hoje. E não dá para negar também
o fato histórico de que nós somos fruto da mercadoria, de que o arquiteto
aparece com a nossa figura tutelar, o Brunelleschi, no primeiro canteiro de
obras em que a exploração do trabalho se torna evidente, enfatizada aliás
pelo Vasari. Não dá para esconder; a profissão hoje em dia está marcada por
/

isso. E óbvio que a origem não explica tudo, e que nós depois de termos sido
formados, separados, podemos fazer outra coisa. O mesmo vale para a pintura,
ela também se separou pelas mesmas razões, no mesmo período, e está desde
o início carregada pela contradição de ser a afirmação do trabalho livre num
mundo em que todo o trabalho se torna oprimido. A pintura também é filha
da mesma questão. Não é possível ficar cego. O Marx começa O capital anali­
sando o quê? A mercadoria. Daí ele desmancha todo o sistema e mostra como
ela está em tudo, percorre tudo, determina tudo. Como é possível praticar
arquitetura ou pintura esquecendo isto, que é a marca do sistema em que nós
vivemos, que é a base de tudo? O que não quer dizer que não se possa fazer
uma outra arquitetura, uma outra pintura, com outras relações de produção.

Não lhe interessa uma análise formal, estética, da arquitetura?


Nunca consegui ter a menor emoção diante de uma pirâmide egípcia: há san­
282 gue ali embaixo, morte, violência, não me interessa.
Mas a história da arquitetura não é sempre uma história de violência, de dominação?
Como seria possível discutir a arquitetura para além da constatação dessa violência?
Criticamente. Quando você analisa onde está essa violência, porque ela
se manteve etc, aí você pode seguir adiante. Certamente há conquistas na
arquitetura, inúmeras, o fato mesmo de separar a parte consciente da cons­
trução, que seria o arquiteto, do bolo, e pensar de maneira isolada, faz avançar,
evoluir. A pintura tem conquistas maravilhosas nesses séculos em que ela é
fruto do mesmo capital. Eu não sei por que ser consciente da dívida histórica
negativa que carregamos possa prejudicar; ao contrário. E ao mesmo tempo,
sobre isso eu falo naquele outro textinho, “Reflexões para uma política na
arquitetura”, isso nos permite saber, pegar cada uma dessas conquistas e
abrir, analisar, tentar separar lá dentro o que é técnica de dominação, o que
é violência do capital, e guardar a maravilha que foi criada. Fazer a seleção e
tentar então com a parte positiva, boa, magnífica da arquitetura, fazer a outra
arquitetura, sem continuar carregando, como uma espécie de fatalidade histó­
rica, tudo que é violência, tudo que é exploração.

Outra crítica freqüente ao seu livro é que você acabaria "diabolizando" o desenho do
arquiteto, sobrecarregando-o de responsabilidades e atribuindo a ele a divisão e parceli-
zaçáo do trabalho que foi produzida, em última instância, pelo capital.
E preciso situar um pouquinho. O Artigas e o Flávio Motta falavam com um rom­
pante poético sobre desenho, desígnio, design, dasein, tudo virava um bolo só. Mas
o desenho como elemento necessário para a constituição da mercadoria, ninguém
mencionava. Aquele texto foi escrito num momento muito tenso, e às vezes ele dá
peso demais a certas coisas. Mas o desenho tem um lado diabólico, terrivelmente
criativo e ao mesmo tempo de castração, de imposição, sobretudo. Desenhamos
tranquilamente, mas a violência que existe naquele risquinho, que pode ser bonito
ou feio, manifesta-se depois, quando é feito. O sistema de medidas, por exemplo:
custa dar as medidas em tijolos e não em metros, o que significa que ao menos a
metade das fieiras não vai ser quebrada? São coisas que podem ser banais, elemen­
tares, mas o fato de que isso nunca apareça na preocupação do desenho, do arqui­
teto, é terrível. A quantidade de acidentes que nós poderíamos evitar, a quantidade
de doenças do trabalho que nós poderíamos evitar com o desenho e as recomen-
/

dações. E crime essa indiferença em relação ao acidente, em relação à doença, ao


sofrimento, essa indiferença com o trabalho é crime!

A indiferença à sua crítica no fundo é uma indiferença com o trabalhador no canteiro?


Nós não podemos negar a nossa responsabilidade, grande, em tudo isso. E
o acidente no canteiro é apenas a parte próxima. Não podemos negar que o
283 nosso desenho, impedindo a participação, diminui os salários. Se reconhecês-
sem os a competência dos operários, teríamos que aumentar o salário, porque
o trabalho seria mais qualificado, mais autônomo. Quando se elimina o cará­
ter arrogante do desenho, que desconhece totalmente o trabalho concreto,
quando se reconhece o saber operário, é evidente que se está pouco a pouco
permitindo que ele possa reivindicar um salário melhor.

Na sua proposta para um novo canteiro você foi acusado de estar pretendendo uma
regressão ao canteiro medieval, como queriam Ruskin e Morris. Não há uma certa pre­
tensão sua em voltar a uma produção pré-moderna, da arquitetura como obra artesanal,
um pouco idealizada, que seria a produção das catedrais góticas, por exemplo?
Essa crítica é ligada ainda ao mito da evolução das forças produtivas. Eu não
estou convencido de que se precisa passar por uma industrialização violenta
para chegar a alguma coisa positiva. A Revolução Chinesa, o seu lado bom,
porque foi uma merda também, mostra que às vezes a sociedade ganha muito
mais ao dizer “pára, vamos cuidar de outra coisa”. A defesa que o Marx faz
da industrialização, eu sempre tive dificuldade em aceitar. Ele só consegue
ver o trabalho como sofrimento, o ideal de homem comunista para ele é o
homem que tem férias, que pode ter o lazer e se refazer. Não sei se pelo fato
de eu ser pintor, mas o trabalho, quando você faz o que quer e trabalha com
alguma autonomia, é uma beleza, é euforizante. E eu vi isso em canteiro de
obras também. O canteiro onde eu acabei de fazer o meu ateliê em Grignan
foi desse jeito. Quando o trabalhador está solto, entrosado, discutindo com os
outros, e ninguém o obriga a fazer isso ou aquilo se ele não tiver de acordo, há
alegria, beleza, satisfação. Essa valorização do trabalho que eu ainda guardo
está sendo muito mal vista hoje. Eu tenho horror de férias, eu não suporto
férias. A imagem do homem comunista para o Marx me dá enjoo. Se o para­
íso comunista for aquilo, merda, eu vou me sentir mal. Adoro ler, mas não
consigo também não fazer, não transformar a matéria. Ainda Hegel e Marx:
nada se desenvolve aqui (na cabeça) se não se desenvolve aqui (nas mãos). É
essencial que tudo que está aqui (na cabeça) passe, se “perca” totalmente.
Nesse sentido Hegel é muito mais radical do que Marx, essa “perda” da
cabeça na matéria tem que ser total, não é fazer só “hobby” para ajeitar a
mão, tem que haver mergulho na matéria, a fundo, e quando volta, aquela
matéria não é mais matéria, é material, é coisa viva, na qual você está dentro.
Ela o reconstrói, modifica, e você remergulha. A troca do homem e do mundo
é a meu ver de uma fertilidade extraordinária, rica, alegre. E eu vejo que isso
é possível todo dia no meu ateliê, eu vejo que é possível no canteiro de obras.
E essa idéia: “vamos botar tudo na máquina, fazer rápido, para ir jogar fute­
bol”, eu não consigo achar maravilhosa. Nesse sentido eu sou meio reacioná­
rio, se você quiser.
Na Red House do Morris, o trabalho era empregado sem a idéia da economia, no sen­
tido capitalista....
Era troca direta: eu dou um livrinho para ele, ele me dá um móvel. Aquele
romance lindo dele, Notícias de lugar nenhum é totalmente babaca, parece
romance para mocinha, mas eu gosto. Um lado meu romântico, meio reacioná­
rio, não sei, mas prefiro ver uma humanidade que produza ainda, mas produza
desse jeito. Aliás, do ponto de vista da produtividade, ela pode até aumentar, e
se essas coisas fossem utilizadas pelo sistema, seria uma merda total.

A crítica inversa à da que lhe acusa regressão a um canteiro medieval seria a de que
sua defesa de um trabalho mais solto, em equipes que dialogam, criativas, com auto­
nomia, esse ideário ligado a Maio de 1968 e à libertação do indivíduo, acabou em parte
sendo reaproveitado pelo capital na reorganização do trabalho pós-fordista, dos anos
1970/80 para cá. O que você acha do fato de que essa formas de produção, imaginadas
como "autonomistas" estarem se difundindo no interior da "heteronomia" isto é, nas
grandes empresas, como estratégia de ampliação dos lucros?
O que acontece de fato é que está aumentando a exploração e diminuindo o
salário. Está aumentando enormemente a angústia no mundo do trabalho,
porque a instabilidade é total. Agora, na França mesmo, há uma briga nesse
sentido entre o sindicato dos patrões e o sindicato dos operários: os patrões que­
rendo flexibilizar, mobilidade de horas etc, o que teoricamente seria excelente,
e o sindicato reagindo, quase que parecendo reacionário, querendo oito horas
de trabalho por dia, entrar as oito da manhã e sair às cinco da tarde. Entretanto,
por enquanto, isto está penetrando mais na parte alta da pirâmide do trabalho
e embaixo o massacre continua igual, aliás pior, porque está aumentando enor-
/

memente o trabalho precário, sem contrato definitivo. E desvirtuar totalmente


a idéia original. E eu acho que isso não está contido na minha proposta, eu
volto à sua pergunta, a arquitetura é fruto da merda mas dentro tem muita
coisa boa, a pintura é fruto de uma aristocracia, mas depois conquistou as suas
maravilhas. Todos os instrumentos criados podem ser utilizados de um jeito ou
de outro (não que eles sejam neutros, não são, dentro sempre trazem a marca
da exploração ou da liberdade), por isso o fato de que uma proposta desse tipo
possa ser utilizada de maneira totalmente negativa me dói muito, mas não me
faz abandonar essas idéias, me faz tomar muito mais cuidado.

Me parece que no seu livro, ao propor o canteiro livre, você separa as relações de
produção dos fins, da casa popular, por exemplo, criando uma forma autônoma, sem
história. Isso não acabaria reforçando a impressão desta convergência estranha entre o
que você pretendia e as novas formas de dominaçáoPAfinal, a que servem os resulta­
dos do trabalho, da produção?
Não quero me desculpar, eu acho que aí há um erro. Agora, eu só posso tentar
explicar por quê. Primeiro, foi um momento de crítica geral do canteiro que
precisava existir, do fato de que não vai resolver nada só fazer casa popular se
não considerarmos esse outro lado também. Eu tinha que afirmar isso. Mas
afirmei demais e esqueci o resto. Talvez na época eu nem tivesse percebido
essa falha, estava insistindo tanto que não percebia. E depois, há pontos do
marxismo a serem criticados: o Marx nunca se interessou muito pelos fins.
Sempre a produção, a produção, a produção, e, ele mesmo afirma, a distri­
buição e o consumo são conseqüências. O que não está errado mas, sobretudo
depois dele, os trabalhos do Adorno e outros, mostram como há outros lados.

A respeito da estética que você propõe, você considera fundamental que os rastros
(traces) do trabalho empregado em cada obra estejam evidentes ao observador. Dentro
da produção capitalista esta seria a forma de "denunciar as contradições da produção
no canteiro" como diz. Você ainda continua achando esta estética reveladora das
contradições fundamentais? Não teria ela reduzido seu poder de revelação e denúncia
no momento em que o capital, sem receios, expõe de forma obscena e triunfal suas
vitórias sobre o trabalho?
O conceito de trace é uma das melhores coisas que eu tirei do Charles Peirce.
Não há possibilidade de presença do sujeito sem trace, o rastro, a marca do
trabalho. O sujeito, o eu da frase é necessariamente um índice, pronome ou
seja o que for, e a figura básica do índice é a marca. Pode ser outras coisas,
mas o grau zero do índice é a marca, e não há possibilidade de haver um
espaço, uma matéria humanizada em todos os sentidos da palavra sem que
haja essa presença efetiva do sujeito na obra. Essa, eu acho, é uma das críticas
mais fundamentais a se fazer à arquitetura hoje. A única pessoa que deixa
uma marca na obra é o arquiteto, e entretanto ele trabalha uma matéria que
não é a matéria da obra, a subjetividade que aparece na obra é transcrita. O
sujeito não aparece da mesma maneira num desenho e na argamassa, no
tijolo, no concreto. A troca é uma troca fundamental, essencial, há tanto
determinação do sujeito sobre a matéria quanto da matéria sobre o sujeito.
E o que se vê na arquitetura hoje, quando há presença de indicialidade, é a
indicialidade do arquiteto, que se superpõe, domina e apaga todas as outras.
Quando o arquiteto deixa aparecer na obra um mínimo de indicialidade, o
concreto aparente ou coisas desse tipo, ele se encarrega imediatamente de
fazer um joguinho de linguagem e pôr em oposição um ao outro, o liso e o
crespo, o branco e o preto, o quente e o frio, “o jogo sábio dos volumes sob a
luz”, cuja primeira conseqüência essencial é fazer desaparecer o valor indiciai
do índice e transformar esse valor em valor oposicional. Não desaparece fisi­
286 camente, mas desaparece totalmente na percepção, no seu uso.
Os "azares da matéria'' de que você fala no livro, na verdade podem ter sido total­
mente planejados pelo arquiteto. No prédio da fau, por exemplo, o concreto por fora é
crespo e por dentro é liso como mármore....
Exatamente. Ainda o Hegel: quando você opõe uma coisa a outra, essas coisas
passam a falar entre elas; uma determina a outra e a outra determina uma.
O diálogo fica então um diálogo entre materiais, entre texturas, entre coisas,
não mais um diálogo entre trabalhos, entre homens produtores. Há um esva­
ziamento total. Isso é muito parecido com a fetichização da mercadoria: tudo
aquilo que foi encontro de trabalho, relação de trabalho, passa a ser automati­
camente relação entre coisas.

Você considera que o aparecer destas marcas do trabalho é a forma de restaurar a


gênese da produção da mercadoria?
Não. Nao há possibilidade, eu acho, de deixar aparecer a subjetividade sob
a mercadoria, na arquitetura normal de todo o dia, porque, por essência, por
contrato, por valorização da arquitetura mesmo, o arquiteto é obrigado a tudo
desenhar para ser executado depois. Automaticamente ele faz isso, é impos­
sível não fazer se a produção continuar a ser a mesma. A única maneira de
ressuscitar esta gênese é realmente modificar a organização do trabalho no
canteiro e com o canteiro.

Pouco se sabe aqui no Brasil do que você tem feito na França nestes quase trinta anos.
Você deu continuidade à experimentação em arquitetura?
As experiências lá foram muito mais reduzidas. A primeira razão é que meu
diploma não é reconhecido e, assim, não posso fazer arquitetura de jeito
nenhum. Em segundo lugar, a França tem um sistema de controle muito mais
rígido, detalhado e chato que o Brasil. Seria praticamente impossível fazer
lá experiências do tipo da casa do Bernardo — aqui havia uma flexibilidade,
uma moleza nas estruturas que nos permitia experimentar. Lá, cada porta
de banheiro, cada botão hidráulico tem uma medida, senão o financiamento
desaparece, senão você tem que destruir e refazer, um calhamaço de regras. Lá,
ainda, a ordem dos arquitetos é extremamente reacionária, é uma corporação
vinda de Vichy. Depois de conseguirmos um projeto para um conjunto de casas
perto da faculdade, a ordem caiu em cima, não deixou fazer de jeito nenhum.
Por isso, foi muito pouco o que fizemos, pequeninho, no canto da escola, tudo
em escala pedagógica. Era um canteiro pedagógico, não tinha que seguir a
legislação, mas também não tinha impacto social nenhum, coisinha fechada.
Você também participou de uma outra iniciativa de canteiro experimental, em 1994, na
Isle d'Abeau, junto ao governo francês, como foi?
Foi uma iniciativa muito bonita e que depois foi roubada. Participei da cria­
ção de um “centro de experimentação em arquitetura”, reunindo diversas
escolas de arquitetura, de belas-artes e de engenharia. Na verdade, o primeiro
programa fui eu que escrevi, ele era todo baseado no meu trabalho de crítica,
não mais em escala pedagógica mas agora em grande escala. O Ministério
da Construção, para aprovar e financiar, porque é caríssimo fazer um negócio
destes, foi pouco a pouco tirando, tirando, e hoje o programa não tem mais
nada a ver com o original. Virou um centro experimental do tipo Liceu de
Artes e Ofícios: pegar ferro, misturar com concreto e fazer três bolinhas. Esva­
ziaram o conteúdo crítico completamente e só então deram dinheiro. Eu já
estou fora.

Como foi sua experiência no laboratório de pesquisa que você coordenava em Grenoble,
o Dessin/Chantier?
A nossa tentativa era ver a história da arquitetura pelo lado do canteiro, das
relações de trabalho, a evolução da divisão do trabalho. Isso produziu estudos
bastante interessantes: uma história da arquitetura que, ao invés de ser pela
crista, é a história vista por baixo. Sempre em relação, lógicos tal tipo de arqui­
tetura, tal tipo de desenho, corresponde a tal tipo de trabalho. Começamos
a pressentir e ver que a história é quase inversa da que se conta. As grandes
mudanças da arquitetura são, na realidade, respostas a grandes mudanças na
divisão e na exploração do traballm. A arquitetura moderna não é filha do
vidro, do ferro e do concreto, como se conta. O concreto é filho de uma crise
enorme no canteiro, uma resposta ao sindicalismo. O sindicato da construção
civil na França, no século XIX, tem uma história muito bonita. Sobretudo o
sindicato dos maçons, os pedreiros, e também o dos carpinteiros, que tinham
uma força danada, paravam a produção na França toda quando queriam. O
concreto é uma resposta a eles, um material que não precisa nem de pedreiros,
nem de carpinteiros. O sindicalismo naquele período era totalmente dirigido
pelos operários da construção civil. Um operariado lindo, que não reclamava
maiores salários, aumento de férias, eles queriam gerir o canteiro eles mesmos,
e sobretudo, saber por que é que eles estavam fazendo aquilo e para quem.
Esse sindicalismo foi arrebentado completamente pela Primeira Guerra
Mundial e pela mudança da orientação dos partidos de esquerda. Logo depois
da guerra eles começam a pedir salários, férias, o que hoje aparece como con­
quista operária e que a meu ver já é sinal de um abandono: se você começa a
reclamar férias é porque já desistiu de pedir o essencial.
288
Como era a relação desse sindicalismo radical, que defendia práticas autogestionárias,
com os arquitetos?
Eles não queriam expulsar o arquiteto, como se pensa, mas assumir o controle
da produção. A arquitetura moderna, Le Corbusier, a primeira avant garde de
arquitetura é uma resposta a eles — a mesma resposta do Brunelleschi: aban­
donar e destruir o saber deles, o saber gótico, no caso. Os operários do gótico
/

tinham uma força desgraçada. Como liquidar esse pessoal? E só mudar o


desenho, mudar a estética, mudar os materiais. A força maior do sindicalismo
revolucionário ocorre naquele momento que até hoje na história da arqui­
tetura é desprezado, o ecletismo. Porque naquela mistura, todo o saber deles
estava exibido, utilizado corretamente. Não existe arquitetura mais justa do
que a arquitetura do ecletismo. Entretanto, nós aprendíamos que aquilo era
uma merda, era para jogar fora. Mas era o inverso. Eles fizeram, por exemplo,
o cinturão vermelho de Paris, que são residências operárias de uma qualidade
fabulosa, tudo na linguagem do ecletismo, na linguagem deles.

Você também tentou se aproximar do sindicato da construção - aliás é a estes trabalha­


dores que você dedica o seu livro - na esperança de que eles ainda estivessem interes­
sados numa crítica à produção. Como foi isso?
Também não deu certo. Há um arquiteto do Partido Comunista Francês, cha­
mado Renaudi, que faz predinhos triangulares, complicados à beça, um horror de
desenho hipertrofiado, e os operários gostavam disso, porque exigia mais trabalho.
Com mais trabalho os salários ficam maiores, têm razão. Enquanto eles estão
lutando por salário, vir com a crítica ao trabalho não funciona.

Em Paris há atualmente alguma agitação devido ao movimento dos sem-teto, com ocu­
pação de prédios, como aqui. Você tem acompanhado isso?
As preocupações deles são as mesmas. Não é só ocupar o lugar, entrar e
morar. Há uma organização outra, copiada um pouco daqui, tenho impressão.
Quando eles ocupam, tanto quanto podem, organizam-se, têm vida coletiva,
desde a cozinha, saúde, limpeza, ajuda-mútua etc. Depois a polícia chega e
expulsa. Mas ainda não fazem isso como uma coisa sistemática, coletiva, que
se reproduza. Eu acho que eles estão começando, por enquanto é uma explo­
são aqui, outra ali.

Os prédios são ocupados também por artistas, por pintores sem ateliê...
Mas é diferente — são os “squats” —, há muita mistura. Não há moralismo
nenhum meu, mas há droga, aquela coisa toda, um perigo. O cuidado que
existe aqui dos sem-teto quando eles fazem uma ocupação, em manter uma
289 espécie de imagem quase moralista, eu acho fundamental. Nesses “squats”
não há nenhuma constância, eles entram e saem, não há nenhum grupo, uma
organização coletiva, são só indivíduos que ocupam o mesmo espaço.

Como você vê o movimento dos sem-teto e dos sem-terra no Brasil? Você acha que é
possível esperar deles algo de novo ou eles são apenas manifestações de um passado
que o país ainda não resolveu?
Eu tenho uma admiração profunda e acho que agora vão conseguir alguma
coisa. A diferença entre o que está acontecendo agora e o que aconteceu
no meu tempo é exatamente essa organização linda, essa paciência, essa
tenacidade, essa real solidariedade. Eu espero, rezo, acredito que agora
está vindo outra coisa, com eles. Acho importante o fato mesmo deles não
entrarem no jogo clássico, ficarem na luta deles, essa luta funda, miúda,
permanente, constante, esse alastramento. Não me admiraria muito se
daqui a pouco vier um golpe — os donos do poder também não são cegos.
A força que começam a ter, a ameaça que eles começam a ser no joguinho
tranqüilo do poder hoje é grande.

Não é a mesma ameaça que começou a se constituir nos anos I960, antes do Golpe?
Não. As Ligas Camponesas, por exemplo, eram compostas por 2, 3 mil cam-
/
poneses, hoje os sem-terra são 500 mil. Não há comparação. E outra força.
E fazendo o que sempre devia ter sido feito: implantação na base. Talvez
não tenha sido culpa nossa, mas nunca tivemos essa base, essa ligação efe­
tiva. Parece que são vocês agora que estão levantando essa questão de uma
maneira completamente diferente. E também isso é sinal bom, de mudança,
não é mais uma política governamental que vem de cima, assistencial, inte-
grativa, mas é outra política, a construção deles por eles mesmos. Eu estou
muito otimista com isso, mas é coisa de velho.

Você citou a construção do seu ateliê em Grignan. 0 que houve de novo lá?
/

E pequeninho, mas insisti na autonomia, na liberdade, e radicalizei ao


máximo. O ateliê foi um campo de discussão permanente, de sugestões, quase
como quando eu trabalhava com o Rodrigo e com 0 Flávio. Hoje em dia
nem eu nem eles, ninguém sabe mais quem inventou isso ou aquilo — eu sei
apenas que fiz 0 desenho inicial. Mas, quando você vê a obra acabada, é um
pouco decepcionante, porque moro numa cidade histórica protegida e por fora
tem que ter telhinha, pedrinha, nada de diferente. Por dentro é que modifica.
E importante dizer que não custou mais caro que qualquer outra obra, não
demorou mais do que qualquer outra obra, sob todos os outros aspectos, não
perde em nada.
290
Quem participou da construção?
Um grupo — são os meus melhores amigos lá em Grignan — de pedreiros.

Pedreiros de profissão?
Sim. Curioso que depois da experiência eles tentam levá-la para outros can-
/

teiros, com outros arquitetos e ficam decepcionados. E até maldoso eu fazer


experimentarem um pouquinho de liberdade. Aí começam a brigar com os
outros arquitetos. Mas o prazer que deu! Você vê que mudar é possível, tão
facilmente possível.

E eles tinham que tipo de liberdade na construção?


Toda, desde que se discutisse. Da mesma maneira que não se aceitava que o
arquiteto impusesse as coisas sem discutir, eles também não podiam fazer o
contrário. Não se trata de substituir um imperador pelo outro.

E as idéias nasciam como? Alguém trazia uma sugestão?


Eu começava trazendo e eles criticavam o meu desenho: “isso aqui não, isso
é melhor lá”. E essa crítica não é só técnica: eles sabem fazer cimento e eu
sei desenhar. Normalmente parece que esse pessoal é apenas executante, mas
quando eles podem inventar, inventam o tempo inteiro. Coisas que às vezes
são chocantes, coisas que você vai achar kitsch, mas inventam. Isso é impor­
tante também para a minha pintura. Temos que aceitar a crítica deles aos
nossos critérios estéticos, e aceitar muitas vezes o que nos parece o mau gosto,
cafonice. O Flávio Motta diz isso: atenção com a arrogância do que sabe, do
que tem bom gosto, do que é refinado.

A pintura foi o caminho principal que você seguiu nestes últimos 30 anos e, no livro
O canteiro e o desenho, o seu grande contraponto à arquitetura, ao "desenho para a
produção'.' Segundo você, a pintura é liberdade, rebeldia e acena para uma outra forma
de trabalho. Como você imagina a expansão desta liberdade e deste outro trabalho para
além do ateliê? É possível pensar ainda um projeto político a partir da arte?
Eu acho que a arte tem um papel fundamental e talvez mais até a pintura do
que as outras artes, porque é um trabalho artesanal. A pintura é um trabalho
livre reservado a privilegiados mas, mesmo assim, nós temos que defendê-la,
porque é o único, o último lugar em que há esse vestígio de trabalho livre.
Eu sei a maravilha que é, mesmo sabendo que a liberdade que estou usando,
é liberdade que é privilégio, que é luxo, mas eu sei como isso pode ser bom,
magnífico. Só que tudo isto é feito sozinho, tudo que é feito com um grupo
no canteiro, na pintura é feito sozinho. Onde entra o outro na pintura? Não
só ele está em mim e eu sou todo mundo, mas sobretudo fazendo aquilo que
a crítica não faz mais hoje, que é ouvir as pessoas, simplesmente. Pintar e
mostrar: olha.

Para quem você mostra os seus quadros?


Os meus maiores críticos são o meu pedreiro, a minha arrumadeira, é o pessoal
mais simples que me envolve, teoricamente os excluídos do mundo da arte. A
eles eu ouço, e ouço sem ironia nem condescendência. E me guio por eles.

0 que é que eles falam da sua pintura?


0 que mais atinge a eles é exatamente a dimensão do trabalho. Não só o tra­
balho que é cuidadoso, limpinho, mas o que eles podem ver que foi produzido,
que tem o rastro (a trace), o canteiro. Eles adoram uma bundinha bem feita,
um pezinho bem feito, morrem de tesão, e ao mesmo tempo vêem que não há
mistério. Eu procuro manter sempre o canteiro, todas as etapas de execução
da pintura e assim eles podem ver que, com um pouquinho de liberdade,
eles também poderiam fazer o mesmo. Não que se tornassem todos pintores,
mas porque é um trabalho como o deles: um lava o chão, outro pinta, outro
faz casa, mas se cada um desse trabalhos pudesse ser feito com o mesmo
empenho, com a mesma liberdade, com a mesma autonomia, daria para
fazer outro mundo.

Eles se reconhecem mais na parte realista do seu desenho?


Não é um realismo. Eles gostam da abstração, da mancha também...

Quando você faz as rupturas, aqueles cortes na tela, eles não vêm como uma deseco-
nomia?
Eles perguntam o por quê: “Rasgou? Foi de propósito ou não?”. As perguntas
são ingênuas apenas na aparência, porque eles captam direitinho aquilo como
trabalho, como construção, como linguagem, como ruptura de linguagem. Os
temas também, o representar a dor do trabalhador não interessa a mínima
para eles, isso eles conhecem na pele, não estão lá para se rever no espelho.
Adoram mitos, historinhas de fada, de mitologia grega e também não por
ingenuidade. Esse trabalho livre, o elogio do trabalho livre, tem que se apre­
sentar de uma maneira cativante.

292
Ao mesmo tempo a arte não parece cada vez mais bem administrada e o mundo da cul­
tura cada vez mais associado ao dos negócios? Um ministro do Mitterand, por exemplo,
dizia que a cultura era o petróleo da França.
Não dá mais para separar. A arte se transformou num tesouro excepcional,
uma reserva de dinheiro extravagante, porque o trabalho livre é a coisa mais
rara, está desaparecendo completamente, mesmo na arte. Nesse sentido, a
contradição está dentro da arte, totalmente penetrada pelo capital, pelo
dinheiro, mas é ao mesmo tempo o último lugarzinho onde resta uma sombra
de alguma coisa que escapa ainda ao capital, uma sombrinha de liberdade e
de autonomia. Uma boa economista francesa que escreve sobre o mercado de
arte (Nathalie Moureau, Analyse économique de la valeur des bien d’art) conta
que hoje só a assinatura vale, o quadro não tem mais o menor interesse. Você
vende a assinatura Picasso e não mais tal quadro de Picasso. Você vende Maliê-
vitch e não tal quadro de Maliêvitch. E a assinatura vale como índice, como
sinal, como indicação de que ele é livre. Picasso fez o que quis e mostrou a
língua para todo mundo. Essa liberdade não virou apenas mercadoria, mas a
mercadoria mais cara.

Você vende seus quadros?


/
Vendo em galeria, como todo mundo. E um engodo, acho, pretender que a
arte não seja mercadoria. Um dos títulos de livros que eu gosto bastante e que
saiu na França agora é Subvertion et Subvention, de Rainer Rochlitz. O que
vão fazer os que não querem vender? Vão para a Bienal, para algum lugar
subvencionado pelo dinheiro público, mas vendem como qualquer outro, uma
outra forma de venda. Não há como escapar. Os artistas conceituais, que qui­
seram fugir disso, hoje são caríssimos. A arte não é alguma coisa que se possa
extrair do sistema; ao contrário, ela é um dos seus sinais mais trágicos. Se só
ela é trabalho livre é porque os outros trabalhos não são mais livres. Se os
outros trabalhos fossem livres, como no ideal de William Morris, tudo seria
arte. O que eu acho que pode e deve ser feito, na medida mesma em que a
arte se constituiu como um campo autônomo de pensamento, de sensibili­
dade, é transformar a universidade num grande centro de produção de arte.
Não no sentido de hoje, quadrinho para botar em parede, mas no sentido de
pesquisa, de trabalho, de conhecimento da forma, de análise da percepção, e
não há lugar nenhum no mundo fazendo isso hoje. Quem faz hoje, para o
uso totalmente inverso, são os publicitários. A questão do material também
é importante: hoje em dia qualquer coisa virou material para a arte. Acho
que numa sociedade livre isso seria bom, mas feito hoje é quase que esmagar
ainda mais o trabalho. Você imagina o metalúrgico que passa o dia no forno
293 batendo aquela merda lá, se queimando, se intoxicando, e depois vê o seu
material utilizado pelo Richard Serra, por exemplo, enormes placas na rua. O
Serra pegou o material dele, que ele trabalha, com sofrimento, com dor e pôs
lá. De maneira nenhuma aquilo é um grito, uma manifestação de liberdade
para o fabricante de ferro, é quase que um roubo do sofrimento alheio.

Por que você não faz mais referências à sua pintura dos anos 1960?
Eu acho que aquele tipo de pintura valeu naquela hora, porque estávamos
provocando o outro, vendo se ele reagia, e íf eqüentemente reagia, fechava
peça de teatro, tirava quadro de exposição. Tinha o sentido de provocação
imediata à ditadura que eu acho válido e bom ainda. Quando eu mudei para
a França, fui na mesma linha. O primeiro mural que eu fiz lá foi em homena­
gem ao Marighella, ao Lamarca e à Iara. Esse mural foi exposto num museu
em Grenoble, eu fiquei bonitinho expondo na França, mas me senti um
urubu, vivendo de sangue alheio, meus amigos morrendo aqui e eu expondo
em museu lá a dor deles aqui. Eu tive uma vergonha danada.

Você fez outros murais de caráter político, não?


Fiz. No concurso para o museu do palácio dos Bandeirantes, por exemplo, eu
fiz um mural com o povo pulando as cercas e entrando no palácio. Não ganhei,
é claro, quem ganhou foi o Antônio Henrique Amaral. O povo no Palácio dos
Bandeirantes, em alegoria, claro.

Você ainda acha que há um poder nesse tipo de intervenção?


Em situação, sim. Quadrinho, se eu fizer um quadrinho político e depois ven-
f
der em galeria, vai provavelmente parar numa mansão. E quase trair a luta,
vai dar boa consciência para alguns: “olha, eu comprei, é um quadro que fala
dos sem-terra mas eu comprei”. Na ditadura havia a vantagem-desvantagem
da situação. Eu acho que o Chico Buarque fez isso também, a música dele
durante toda a ditadura era violenta, agressiva, para ser proibida. Depois ele
não fez mais muita coisa desse tipo, o que eu aprovo, apesar de muita gente o
criticar.

Em O canteiro e o desenho você permanentemente faz a distinção entre arte e arquite­


tura e reconhece uma diferença de qualidade nos "trabalhos" envolvidos em cada uma.
Para entender a arquitetura ela deve ser imediatamente compreendida como merca­
doria, então vem a análise marxista, e quando você vai fazer a crítica de arte, você ainda
acaba privilegiando um ponto de vista formal, um certo respeito pela obra. Existe real­
mente essa diferença entre o crítico de arquitetura e o crítico de arte?
A crítica que eu faço à pintura é igualzinha à da arquitetura, só que num caso
294 há manufatura, noutro, artesanato. A diferença fundamental é que na pintura,
sobretudo, fica sempre um resto de liberdade, mesmo doentia, com catapora,
fica um resto, e assim há uma diferença mínima, apesar de ser uma mercado­
ria e uma mercadoria muito mais grosseira e evidente do que a arquitetura. E
sobre isto o Adorno fala, muitas vezes, essa liberdade ainda possível dentro da
arte, custe o que custar, há que guardar, mesmo sabendo que ela é mercado­
ria. No texto sobre o Mahler, ele mostra como mesmo aparecendo numa nota
desafinada, num acorde irregular, não permitido, aqui, ali o grito irrompe, a
liberdade brota e isso há que manter. Então há uma mínima diferença, mas o
andaime das análises é o mesmo, como eu já disse.

Na arquitetura não há essa liberdade?


Não é possível, o único que tem essa liberdade é o arquiteto, com a desvan­
tagem enorme de que ele trabalha com um material completamente alheio
à obra — já é uma liberdade transcrita. E objetivamente o arquiteto é muito
mais cerceado por contrato, dinheiro, cliente, do que o pintor.

Num texto seu publicado no livro Futuro-Anterior você explica porque faz variações em
torno de Michelangelo e sua concepção de "pintura dialética'.' Como seria essa pintura?
Uma pessoa também muito importante para nós naquele período foi o Mário
Schenberg, uma das mais belas inteligências que eu já conheci, físico extraor­
dinário — o que ele escrevia era compreendido por mais duas ou três pessoas
no mundo — e ao mesmo tempo um sujeito com uma grande sensibilidade
para a arte. Ele falava muito em duas cabeças, o que hoje é um pouco tema da
moda, a cabeça da ciência, o pensamento dedutivo, linear, e a cabeça do artista
plástico, pensar por figura, por massa, uma espécie de pensamento estrutural,
que ele dizia usar muito em física. Ao contrário do que parece, esse pensa­
mento estrutural é muitas vezes mais eficaz e preciso do que o pensamento
dedutivo matemático. Ele contava a história das estrelinhas. Quando ele saiu
da universidade foi contratado por um observatório para localizar estrelas,
fazer continhas, e ele fazia as continhas com as formulinhas, tudo certinho, e
sistematicamente ele errava, a estrela que ele calculava deveria estar lá e apa­
recia acolá. A partir de um momento, ele disse: “já que eu erro mesmo, não
vou mais fazer continha, vou dar uma olhada e dizer que está lá e pronto”. E
aí começou a acertar a posição das estrelas, graças a esse outro pensamento
estrutural, pela forma, pela massa, que é de uma riqueza extraordinária, de
t

uma precisão enorme. E por isso que a pintura deveria ir para a universidade,
ser guardada, ser desenvolvida, inclusive porque hoje há um monopólio do
pensamento linguístico, oral. E o que você vê também no mundo do trabalho:
a dificuldade para obter a colaboração do pessoal, do pedreiro, para ele entrar
no jogo, vem muitas vezes porque você quer passar só pela discussão, pelo oral,
e como a expressão privilegiada deles é o trabalho, é a mão, há dificuldade,
impasse. Desde que você mude de campo e vá para a plástica, a coisa engrena
quase que imediata m ente. Eu acho que uma das missões fundamentais
da arte hoje, não mais como privilégio do trabalho livre, mas como pensa­
mento plástico puro, que não tem as intereferências da utilização imediata, é
desenvolver o conceito plástico e que é muito próximo da idéia de conceito
do Hegel na Lógica. O Hegel sofria como um desgraçado para escrever e ele
mesmo dizia, “não estou conseguindo, não é isso, eu tenho que trair a gramá­
tica...”. E tudo aquilo que para ele era uma ginástica oral é de uma evidência
plástica total.

Um exemplo disso na história da arte?


Eu vou dar um exemplo estranho: Caravaggio, que parece o auge do realismo,
da unha suja etc, é perfeito nesse sentido. O Caravaggio começa pintando
com verde e vermelho, mistura, dá uma caca. Faz o fundo, depois ele vai
retirando esse verde e vermelho de dentro e construindo as figuras, pinta
rapidíssimo. Você vê, daquela matéria que no começo é bruta, lama, aparecer
forma, luz, é realmente genial. Uma força de pensamento, nada de “ai que
amarelo bonito”. E de pensamento no sentido mais puxo da palavra. Mas faz
parte também a figurinha, a bundinha e o pezinho. Ele atinge o máximo dele
mesmo quando aceita se perder no seu oposto. Não existe nada mais oposto
ao pensamento do que o kitsch maneirista do pezinho, da bundinha. Mas há
que ir até lá, e realmente você chega quase no inverso do que propõe no início,
/

para depois recolher tudo. E linda a arte, e todo o trabalho, sobretudo todo o
trabalho físico, pode ser isso.

É comum dizerem que a sua pintura é pós-moderna, de abuso das citações, você con­
corda?
/ v

E o oposto. Citação tem muita e você precisa jogar com ela, mas quando faço,
nunca é irônica, eu tenho horror da ironia à la Botero. A citação, para mim,
tem a mesma humildade do aprendizado artesanal. O artesanato se forma
com a cópia, não tem outro princípio, é cópia e transformação da cópia. Essa
a minha citação. Há um vocabulário enorme na história da arte, uma biblio­
teca à disposição e eu, num certo sentido, fico feliz, porque toda a experiência
do século xvi ao século xix, abandonada hoje, fica para mim. Mas é a citação
sempre como apropriação modificante, aprendizado e alteração. Eu aprendo
muito estudando, com a citação.

A citação não é um dos principais recursos da pós-modernidade?


296 Mas na pós-modernidade a citação é irônica, e essa você não vê em mim.
Mesmo o maneirista mais babaca, capa de caixinha de bombom, quando
eu cito, é com o maior respeito. Porque mesmo na caixinha de bombom ele
pintou bem. E, bolas, a gente gosta de caixinha de bombom também. A pin­
tura não pode associar eternamente esse resto de liberdade a sofrimento. É a
dificuldade que eu tenho com o Adorno, quando ele diz que após Auchwitz a
beleza terminou. Como é que dá para mostrar que neste tipo de trabalho há
um puta prazer e que ele é possível, não morreu, dá para espalhar? Tem que
passar um mínimo de prazer, do mais besta ao mais especial, até chegar ao
mais elementar dos prazeres. Se não passa prazer, vira um exercício daqueles
pregadores puritanos, horroroso.

Pelo visto você não abandonou as utopias?


Quando eu cheguei na França, no período em que 68 tinha caído, em que o Pompi­
dou tinha voltado, eu quase não conseguia dar aula. Começava a aula e já vinha dis­
cussão, debate, era uma maravilha. Eu me lembro um aluno, que era situacionista,2
ele se levantou e disse: “O senhor é um traidor! O senhor dá esperanças!”

As duas últimas perguntas: uma sobre o Flávio, outra o Rodrigo. 0 Flávio permaneceu
pintando e dando aulas nas décadas de 1970 e 80 e também fez uma grande viagem
pelo Brasil, que o marcou muito. Que contato você teve com ele nesse período, quais
discussões vocês ainda mantinham?
Eram as mesmas, muita decepção, muita tristeza, não dá para dizer, foi um
puta fracasso. De pintura falávamos muito. O Flávio também tratou essas
coisas de um outro jeito, com a cultura popular. Ele fez o que nem eu nem o
Rodrigo fizemos, ele saiu de ônibus por aí para tudo quanto é canto, ele viu.
Ele tinha uma relação muito mais próxima com o interior brasileiro do que
nós. Eu e o Rodrigo éramos muito urbanos, rapazes de grande cidade. Mas
era mais ou menos o mesmo caminho, feito com a personalidade dele, feito
com a minha, a intenção era a mesma. O Flávio era um gênio, uma pororoca,
uma coisa. Um dia a mãe brigou com o pai e ele tocou piano. Sentou e tocou e
nunca tinha tocado antes. Ele não parava, aquela criação, quase descontrolada.

i Nos anos 1960, os situacionistas procuraram constituir uma nova forma de crítica
cultural e ação política, em oposição aos cânones do Partido Comunista Francês, o que
acabou inspirando a “práxis revolucionária” do Maio de 68. Cf. Anselm Jappe, Guy
297 Debord Petrópolis: Vozes, 1999, col. Zero à Esquerda. [n.O.]
Por que é que o Rodrigo foi o único que não abandonou a arquitetura?
Ele tinha uma paixão fundamental pela arquitetura. Até na Hidroservice, ele
nunca esqueceu seus princípios. No Hospital das Clínicas, no edifício do DNER
em Brasília, a possibilidade estava sempre aberta, essa arquitetura poderia
ter sido feita de outra maneira, se não foi é porque não havia condições. Ele
estava cercado, fiscalizado, e assim mesmo ia pondo, pondo, pondo. Durante
todo o tempo em que estava na Hidroservice, o Rodrigo procurou os projetos
onde ele pudesse fazer coisas nesse sentido, abertas, acenando para outra rea­
lização. E não foi pouca coragem aceitar ir para a Guiné Bissau, não existia
cocô de merda mais fedido do que aquele. Rodrigo foi para lá para trabalhar,
para fazer a coisa do zero, abandonando tudo aqui, com uma coragem, com
uma generosidade que não podem ser esquecidas. Eu tenho a impressão de
que ele era o mais radical de nós três, o mais puro. Ele foi até o fim. Eu e
o Flávio no meio de pintura, inteleca, escrevendo artiguinho, teatro, sem­
pre coisa que facilita amolecer. Ele não, aquele chinês radical, vixe-maria,
bebendo pinga e não whisky, lindo. Eu tenho ainda lá em casa os livros do
Mao que ele lia em Grenoble, tudo anotadinho, página por página. Ele passou
um ano lá comigo e teve a sabedoria de voltar...

298
O FETICHISMO NA ARQUITETURA
2002

Em 2003 me aposento.
A direção da Escola de Arquitetura de Grenoble me pediu, como trabalho
final, que preparasse uma edição comentada do meu antigo livro O canteiro
e 0 desenho, base de todo meu ensino.1 Tenho por isso andado entre aquele
texto e o que hoje poderia ser corrigido. Pouca coisa fundamental. Mas, às
vezes, me parece que algumas passagens envelheceram, sem realmente enve­
lhecerem.
Por exemplo, um de meus argumentos centrais para a crítica do desenho
praticado até hoje gira em torno do fetiche em arquitetura. Lembro as pala­
vras clássicas de Marx: “O que há de misterioso na forma mercadoria consiste
simplesmente no seguinte [...] ela transmite [...] a imagem da relação social
dos produtores no trabalho global como uma relação social existente fora
deles, entre os objetos.”
Tal deslocamento é o fetiche. Mas ele pode continuar seu impulso, pene­
trar na carne dos objetos, na obra de arquitetura, por exemplo. A relação
entre suas partes também se substitui, então, à imagem da relação social de
seus produtores. A história da produção efetiva se esvai sob a capa das rela­
ções plásticas. Há uma forma (plástica) da forma mercadoria dos produtos
que assegura, reforça e prolonga sua fetichização sob o capital.
É mesmo possível seguir a evolução da forma (plástica) fetichizante

1 Ver o comentário inédito, “Sobre O canteiro e o desenho”, no próximo capítulo desta


299 coletânea.
segundo os momentos do capital. Se o fundamento é sempre o mesmo — a
ocultação do trabalho real — sua manifestação varia. Vários fatores deter­
minam esta evolução, todos derivados dos momentos do capital — mas o
mais poderoso é a forma de resistência operária específica de cada um deles.
Armando Boito confirma2 que há uma correspondência estreita entre a estru­
tura do modo de produção numa sociedade de classes e “as formas que assu­
mem, e que podem assumir, as práticas de resistência dos trabalhadores”.
Assim, enquanto o domínio do capital sobre o trabalho é somente formal
(período manufatureiro que termina com a revolução industrial do fim do
século XVIII e que, na construção, começa no século xv), a forma arquitetural
é também redigida, digamos, por fora. Durante este período, o do classicismo
e suas variantes (maneirismo e barroco), o sistema das ordens se sobrepõe
/

às partes construtivas sem modificá-las tecnicamente. E um mero “decór”


colado sobre o que sustenta e que continua a ser elaborado segundo proce­
dimentos tradicionais. Colunas, arcos, arquitraves que não funcionam são
esculpidos na massa que realmente estrutura a construção. Em São Paulo,
isso pode ser constatado num exemplo tardio, na parte antiga da Pinacoteca,
deixada à vista pela maravilhosa intervenção do Paulinho Mendes da Rocha.
Vemos o tecido clássico de componentes discretos e, por trás, a massa dos tijo­
los eficazes, base apagada da verdade construtiva. As ordens tiram sua autori­
dade de uma suposta tradição, como a sociedade dividida em ordens também.
A resistência operária não pode se organizar de maneira estável e contínua,
pode ser violenta, mas é sempre esporádica. Não se constitui como pólo dinâ­
mico — e seu tratamento pelo desenho não precisa ir além da negação abstrata,
do simples esconder sob a arbitrariedade das ordens enfurnadas pelas conve­
niências ideológicas.
O século XIX é o da passagem e suas ambigüidades. Se a revolução
industrial impõe a submissão real do trabalho na prática industrial, a
permanência viva de setores manufatureiros (sobretudo o da construção),
associada à tomada de consciência da luta de classes e o aparecimento das
organizações operárias retardam sua interiorização. A submissão objetiva
do trabalho ainda não se fez subjetiva. Assim, não é mais possível aplicar o
desenho de dominação por fora (se bem que, no ambiente de passagem, um
classicismo retardatário, ora depurado — Panteão —, ora exaltado — Opera — se
esticasse até o fim do segundo império, das academias). Nem ainda por dentro.
Nem por meio das ordens, nem por meio de caricata organização “científica”
do trabalho. Sobra um terreno perigoso, próximo demais da realidade

300 2 Ver a edição n. 12 da revista Crítica Marxista.


produtiva, o recurso a uma hipotética lógica estrutural e do material que se
/

aprimora pouco a pouco. E o terreno em que se desenvolvem as estações de


trens, os halles e a injustamente depreciada arquitetura do ecletismo, achegada
ao mundo do trabalho que, entretanto, não atinge. O desenho de dominação
será encontrado entre o classicismo tardio e a nova lógica construtiva. Pode
ser apreciado na Gare de Lyon, por exemplo, no choque entre a recepção e
seus estuques e o cais em ferro. A racionalidade funcional da nova tendência é
filha pobre da Aufklarung: o fetiche, agora, precisa de argumentos que possam
parecer criveis face à crítica crescente das jovens organizações operárias. O
sindicalismo revolucionário do fim do século reclama todo o poder de decisão
e gestão, em particular na construção, e conhece bem o engodo clássico. A
racionalidade técnica, o cálculo das estruturas etc. querem provar a ele que há
razoes objetivas para continuar a dominação.
Com a segunda Tevolução industrial e o recuo brutal da consciência operá­
ria a partir dos anos 20 do século passado a submissão real do trabalho se ins­
tala subjetivamente — mesmo na construção que, objetivamente, vive ainda
da submissão unicamente formal. O desenho arquitetônico abandona a vizi­
nhança perigosa da produção concreta (não precisa mais convencer a quem
não mais resiste internamente no seio da produção), a deixa aos engenheiros
e busca para si outras motivações substitutivas: a antecipação propiciatória de
uma sempre adiada industrialização bem estudada por Banham, fuga diante
da técnica real, e a funcionalidade tratada por um entendimento (no sentido
de Hegel) cuja pobreza se adapta bem à autopromoção requerida pela forma
do fetiche. Mais uma vez, o produzir efetivo empalidece sob as compartimen-
tações funcionais banais, sob o arremedo de um vir-a-ser fantasmado pela
autopromovida avant-garde. E o jogo sábio dos volumes sob a luz ocupa o
lugar do fazer deixado na sombra.
/

Pequena pausa. E preciso reconhecer que a fetichização das formas tem


colaboradores “naturais”. O trabalho, a atividade produtora, pertence ao
tempo, ao “sentimento interior”. O produto, entretanto, cai no espaço, na
simultaneidade do “sentimento exterior” — ver as passagens sobre a estética
transcendental na Crítica da razão pura, de Kant. Considerar as relações dos
componentes plásticos entre si, na simultaneidade (o jogo dos volumes...),
encontra o chão razoável na espacialização do tempo própria a toda produção
plástica. Mas nada justifica a obliteração dos índices da real encarnação, o
porquê nunca é a lógica das seqüências produtivas racionais que impregna
a matéria e guia sua forma. Os álibis das pseudofunções e antecipações (e
outros mais, como 0 da integração ao lugar, a intenção simbólica, a tipologia,
etc.) recorrem sempre a um vocabulário alheio ao do fazer concreto. A forma
301 arquitetônica parece formar um quiasmo pobre com o mito. Este resolve ima-
ginariamente as contradições de estrutura por sua projeção no tempo.
A forma fetiche apaga as contradições das relações de produção inscritas na
temporalidade do trabalho (valor é tempo) na espacialidade imóvel das for­
mas plásticas.
Na leitura do fetiche por Freud (leitura que não cobre a de Marx, apesar
de algumas convergências), um aspecto importa: o fetiche bloqueia nosso
olhar perto do que não há que ver (fica na meia de seda para não avançar até
o sexo castrado)... indicando-o por isto mesmo. Não posso entrar em detalhes
aqui, mas convém salientar que sempre, em todo e qualquer caso ou período
após o século XV, a forma fetichizada mima, figura indiretamente a composi­
ção de uma manufatura ideal, sublimada. O objeto do tabu se contra-desenha
no fetiche. Fim da pausa.
Ora, tudo o que eu disse até aqui envelheceu em parte. E continua, ao
mesmo tempo, a se expandir. Tenho a impressão que nos últimos anos uma
nova guinada se esboça. Eu a associo à passagem em posição hegemônica
absoluta do capital financeiro (apelidada de globalização) que domina quase
sem freios o capital produtivo. O que passa a alimentar de longe a forma feti­
chizada não é mais a sombra da manufatura castrada, mas a arrogância do
desprezo por ela. A ideologia das avant-gardes ficou obsoleta, suas miragens
não importam mais. A resistência operária ficou anêmica, num tempo em
que só conta ter emprego, vender a força de trabalho. As conquistas de dois
séculos de luta são lentamente corroídas, esquecidas, desmontadas.3 Bilbao é
o novo paradigma — e Nouvel, Gehry, Eisenman, Venturi, Libeskind etc., os
novos profetas. Assim como para o capital financeiro toda especificidade da
produção é secundária (ele salta de galho em galho sem états d’âme), para
a arquitetura star de hoje, o construtivo que se dane. Coluninhas tortas ou
faltando, superfícies irregulares, muros como que caindo, fissuras opostas às
regras de estática, tramas em pororoca, caixilhos que saem andando sozinhos,
desmaterialização, “high-tech” que se finge de “toc”... etc., etc. A moda é
tudo o que negue a lógica construtiva: tudo o que desconstrua, como se diz.
Outra pausa. E enfadonho acompanhar o “pensamento” dos Eisenmans e
cia, apesar da cumplicidade desconfiada de Derrida. Afinal, se atravessarmos
as guirlandas retóricas e o esfumaçado heideggeriano de Derrida — descul­
pem não sou filósofo — des-construção é a velha crítica com cirurgia plástica.
Os procedimentos que recomendam: o exame interno (“utilizando contra

3 Ver Le nouvel esprit du capitalisme, de Luc Boltanski e Eve Chiapello, e os livros de R.


Kurz, Os últimos combates, O colapso da modernização e o Manifesto contra o trabalho^
302 escrito a seis mãos com Ernst Lohoff e Norbert Trenkle.
o edifício (teórico) os instrumentos e as pedras disponíveis na casa”) e a
mudança de perspectiva (“mudança de terreno”) são os da crítica de sempre.
E a “trace”, que Benjamin, Heidegger ainda e o próprio Derrida tanto obscu­
receram, é a abstração seca do gesto técnico teológico de sempre (a pincelada,
por exemplo) que sabe de há muito tempo o que são “aura” e “differance”
— espaçamento do tempo e temporalização do espaço. Por aqui, também, as
coisas andam de cabeça para baixo. Fim da outra pausa.
Otília Arantes, em O lugar da arquitetura depois dos modernos fala de
,4

fetiche invertido a propósito desta atual arquitetura. Acho que acertou. Tudo
se passa como se a castração voltasse à vista e as meias fossem escondidas.
Mostra-se o maior escárnio pela produção, disfarça-se a atenção indispensável
que é preciso ter com ela (afinal, o capital financeiro vive do produtivo, que
vive da produção, que vive da exploração, etc.). De certo modo torto, as meias
do fetiche/desenho-de-arquitetura antigo ainda remetiam à produção, apesar
de todas as difrações: o fetiche não fora ainda invertido.
As artes plásticas já se enterraram neste processo. Um recente relatório
elaborado por Alain Quemin (2001) para o ministério francês das Relações
Exteriores mostra isto claramente. Há cerca de 70 megacolecionadores
(financistas, publicitários, golden-boys etc.), menos de 50 curadores interna­
cionais controlam as vinte ou trinta grandes feiras e bienais, vinte ou trinta
galerias centrais. Tal é o mundo das artes que controla o mercado. 34,9% dos
artistas vivem nos Estados Unidos, 27% na Alemanha, 6% na Inglaterra,
4,4% na Itália e 4,1% na Suíça. Total: 76,7%. E o resto do mundo divide o que
sobra. Os casamentos financista-curador que conhecemos no Brasil recente
percorrem e dirigem todo 0 conjunto. A pintura e a escultura foram total-
mente marginalizadas: cheiram a terebintina e suor, lembram vagamente
o trabalho. A instalação, a performance, a foto, o vídeo invadiram todas as
exposições que contam. São mais maleáveis, mais adaptáveis aos “conceitos”
dos curadores, mais efêmeros, mais “ins”, mais próprios para ostentar o gasto
absurdo tão necessário para a saúde econômica do capitalista financeiro.
O mesmo começa a ocorrer com a arquitetura. Sintomaticamente, em pri­
meiro lugar com a dos museus que abrigam tal arte, além das sedes de grandes
empresas. O que reúne seus projetos (que formalmente recorrem ao falso kitsch,
à não-transparência das transparências acumuladas, ao retro, ao hyper-tech
etc.) é a gratuidade (só aparente), a insistência com que desafiam as normas
mais evidentes do bom senso construtivo, o que, em si, já é bastante duvidoso.
Seu objetivo é a hipóstase da irracionalidade — que é a ideologia que nos que-

303 4 São Paulo: Edusp, 1993-


rem impor os proclamadores do “fim das ideologias”, isto é, da esperança por
uma outra sociedade. Sua arma é a exibição escancarada das aberrações mais
elementares (que exigem, entretanto, elaboradas ginásticas técnicas), prova
tangível, esperam, do absurdo do mundo que há de engolir tal qual.
Entretanto, não há porque se alarmar muito. Desde a Renascença o capitai
pôs a arquitetura a seu serviço. Arquitetura virou sinônimo da forma fetiche
do objeto construído. Seu discurso com ar generoso e humanista nunca teve
peso prático. Hoje, na França, tristemente, os subúrbios mais problemáticos
são os que foram desenhados por arquitetos cheios de boas intenções: esque­
ceram que mesmo os fins aceitáveis coalham se passarem por meios infectos.
Enquanto a arquitetura não afastar de si a gigantesca e nojenta exploração da
força de trabalho que materializa seus desenhos — o que obviamente não pode
fazer sozinha — ela não pode escapar da sombra de uma vergonhosa hipocrisia.
O que hoje está mudando é que começa a perder a vergonha.
Como vêem envelheci — mas continuo o mesmo.

304
BRASÍLIA, LUCIO COSTA E OSCAR NIEMEYER
2003

Durante a construção de Brasília houve uma expectativa calorosa — e um


início de dúvida. Era quase inevitável participar da promessa. Quase todo
o país seguia com simpática apreensão a nova corrida para o oeste. Logo,
entretanto, a esperança fantasiosa começou a recuar diante de sinais inquie-
tantes. Não falo somente de negociatas ou de desmandos — afinal, estamos
no Brasil.
Bem cedo participei da construção de Brasília. Antes mesmo da inaugura­
ção, Rodrigo e eu fizemos alguns projetos para lá, horríveis. E logo pudemos
constatar o contraste que havia entre o que aparentemente estava contido
como anúncio e intenção no plano de Lucio e na arquitetura de Niemeyer e
a realidade. Isto se inscrevia mesmo na paisagem: a terra vermelha de vege­
tação rala, ferida aqui e ali por torres e máquinas enormes — e por sulcos das
águas das chuvas torrenciais. Errando no meio, uma multidão de imigrantes
e suas famílias. Sob a marquise das primeiras igrejas de quarteirão de Nie­
meyer — aquelas triangulares — protegendo-se do sol ou da chuva, candangos
aguardavam o eventual trabalho.
Desde aquele momento, aparecem os primeiros sinais de violência no
canteiro — sempre abafados pela imprensa. Não falo da violência intrínseca à
manufatura capitalista da construção. Mas da outra, suplementar, canteiros
e acampamentos cercados por “forças da ordem”, jornadas intermináveis de
trabalho, alimentação precária. Anos mais tarde, quando fui preso, convivi
com operários que participaram desta construção. Eles me contaram um
sofrimento que mal imaginávamos então: suicídios numerosos, operários se
505 jogando sob caminhões, desinteria quase quotidiana, cercados, sem poder sair.
A ainda vizinha e folclórica cidade satélite, cheia de bares e putas, iludia com
seu ar de faroeste, de mito americano. Era cenário bem cuidado.
Assim, mesmo pouco informados, deu para desconfiarmos da compati­
bilidade entre o que pareciam prometer o discurso do Juscelino, o desenho
dos dois e a base que os servia. Havia algo de esquisito na fundação do novo
Brasil. Entretanto, pouco se falou nisso então. Esse contraste freqüentemente
foi apagado, atenuado, tirado da vista das pessoas. Lembro de poucos relatos
sobre essas coisas. Mas quem participou de perto pôde perceber um pouco o
que se passava. No primeiro esboço do meu livro “O canteiro e o desenho”, de
1968-69, há já algumas observações sobre isso.1
Para bem entender o período, é preciso entrelaçar pelo menos três fatores: 1
o desenho, a cidade clara, articulada, pássaro voando; os edifícios caracterizados,
de geometria afirmada, operando como emblemas ou logotipos. Por baixo, uma
lógica estacionada no entendimento, cujos limites Hegel descreveu; 2) a misé­
ria, o sofrimento, a exploração desenfreada do candango; 3) os negócios ligados
à construção sobre 0 fundo dos discursos de emancipação nacional.
Tive a chance de observar os três de perto. Por um lado, éramos estudantes,
mas arquitetos já. Projetávamos seguindo as regras ditadas por Lucio e Oscar.
Na época, os arquitetos iam muito ao canteiro, aos seus e aos dos outros. Segu:
a construção de nossos projetos, e também a da catedral, dos ministérios. E,
por fim, meu pai sendo um dos empreendedores imobiliários de Brasília (daí
nossos projetos prematuros lá) e figura do PSD, assisti a reuniões de negócios
e políticas — as mesmas freqüentemente. Gente de proa participava, Juscelino.
Ulisses, Tancredo... Sempre me marcou a distância entre 0 que ouvia então e
o que lia em jornais.
Há que urdir j untos estes três fatores.

O Lucio, sobretudo num primeiro momento, fez parte de uma passagem polí­
tica bastante específica. Com a primeira grande guerra, a crise de 1929 que se
arrasta até a segunda, as grandes potências se esqueceram um pouco de nós,
deixaram um pouquinho mais de liberdade para cuidarmos de nós. Surgem
então projetos de desenvolvimento nacional, de formação do país. Surgem
estudos sobre o que poderíamos contar como nosso — na economia, na antro­
pologia, na sociologia — mas também nas artes, música, literatura, pintura,

306 1 Ver o texto “A produção da casa no Brasil”, em especial pp. 94-5.


etc. E na arquitetura, com o Lucio. Aos estudos seguem práticas. O desenho
de Lucio, em torno de 1940, carrega essa passagem, ajuda a configurá-la.
No começo, 0 tal desenvolvimento nacional é quase que só projeto, apesar
do “petróleo é nosso” e das leis trabalhistas. Mas o projeto parece viável, há
crença nele. Principalmente porque a estratégia para chegar lá (primeiro
construir usinas, depois a distribuição de renda, quando ficarmos ricos) não
era das mais ousadas. Assim, malgrado algumas crises e sobressaltos críticos,
0 projeto consegue se manter e desemboca em Brasília. Mas, como não há
como pensar, dentro do capitalismo, numa tal promoção nacional sem um
grande acúmulo de capitais — ou seja, de exploração — começa a ficar claro
que o desenvolvimento será o de alguns e que a dita distribuição ficará para
bem depois. E o projeto nacional passa a ser o projeto do poder e dos grupos
dominantes — com o que tem que contar mais e mais com o autoritarismo.
Primeiro, com Juscelino, na forma do populismo (“populismo”, dizia um
bom pesquisador que se afundou depois como exíguo ministro da cultura, “é
democracia por via autoritária”): foi ainda capaz de iludir. Depois, na forma
da ditadura. Cresceu risonhamente, continuou com a brutalidade assassina.
Este turvamento da expectativa já transparece na arquitetura e no plano
v
de Brasília, marco central do desenvolvimentismo. A revelia de Lucio e Oscar,
tenho certeza. No modo de produção que é o nosso, as formas seguem por si as
pistas que o momento produtivo impõe. Transparece então a afirmação cres­
cente da determinação centralizada.
O funcionalismo inicial do Lucio é bem comportado, equilibrado, com pouco
arroubo pessoal, próximo do canteiro real, tem pés no chão. Em Brasília, seca.
Apesar da quase humildade do desenho do concurso, um esquema funcional sem
muitas nuances, repetitivo, privilegiador de categorias toscamente separadas (circu­
lar, morar, comprar, trabalhar, etc.) se impõe recusando revisões — e que a UNESCO,
talvez reconhecendo sua inalterabilidade, congelou definitivamente. Não houve
nenhum debate democrático sério que o pesasse. Passou diretamente do papel ao
terreno. As categorias (as que acuso de estacionar num entendimento limitado)
enquadraram o meio milhão de habitantes previstos, sem que nada pudessem dizer.
Pouco importa se todos morariam de modo semelhante: seria ainda uma democra­
cia igualizante por via autoritária. Morariam, não moram, sabemos.
A arquitetura dos edifícios conta a mesma inflexão. Chegou ao extremo
quando Niemeyer dirigiu diretamente, no canteiro, os pedreiros que escul­
piam as colunas do Alvorada. Uma relação sem qualquer mediação entre o
que decide e o que talha no concreto. Uma cabeça com as mãos do outro.
Este acréscimo de poder das decisões centralizadas, tanto no projeto
urbano quanto arquitetônico, estava, a meu ver, filiado ao clima geral de
307 inchamento do poder. O populismo de Juscelino, casado com um jogo de
concessões, nem precisava mais das reuniões de massa de Getúlio, ameaça­
doras. Ilustração disto é a forma seca do cruzamento do eixo monumental, a
sede dos poderes, com as asas da sociedade civil: corte abrupto pelo meio, sem
outra interação que o nó da circulação viária, coração artificial da cidade. O
centralismo autoritário da política e da economia parecia indispensável aos
que comandavam, porque o projeto de emancipação nacional começava a
fazer água. Mas, para isso, não era mais recomendável chamar o povão aos
comícios. Sua missão era outra. O coração poderia ficar vazio.
0 que era realmente necessário era acumular muito mais, portanto, distri­
buir ainda menos. Portanto, dominar com mais força. E tanto mais que o avanço
econômico e tecnológico das metrópoles, nossas metas, nos deixavam sem
fôlego. Daí a corrida apressada pelo aumento da acumulação — e pela entrada
de capital estrangeiro. Para a reeleição prevista para 1965, o slogan de Juscelino
foi “50 anos em 5”. Cada dia ficava mais evidente, para os que queriam ver,
que dificilmente alcançaríamos nossas metas. Mas as elites não desistiram: as
metas não eram as públicas. E, para prosseguir, mesmo assim, tomaram várias
medidas, entre as quais nos interessa aqui as que atingem a construção: era
preciso aumentar muito a atividade neste setor, inesgotável e generosa fonte de
ma is-valia para a acumulação, o que acarrelou maior dominação, aumentar a
exploração, diminuir salários, esticar a jornada de trabalho, acrescer a mais-valia
absoluta e relativa. Não é por coincidência que o programa de industrialização
do país seja contemporâneo de grandes canteiros, sobretudo Brasília. Do can­
teiro sai a massa de valor que alimentará os setores de ponta.
Repito, ainda uma vez, sem que se possa responsabilizar o Lucio ou o Oscar:
acho que o “sujeito automático da história” os levou a acentuar a hegemonia do
projeto. Aparentemente o traço fininho e trêmulo a lápis do Lucio não tem nada
com isto. Mas a própria lógica do funcionalismo, ampliada pelas circunstâncias,
contém em si sementes do autoritarismo. Ela carrega os vícios do entendimento
parado. Classifica, separa, fixa categorias (as “funções”) que, em si, parecem
adequadas. O que não é racional, entretanto, é esta fixação, esta separação que
as isola do movimento da vida, que as solidifica antes de qualquer interação.
Somente então encontrariam sua verdade, no movimento mesmo que animaria
a supressão de sua unilateralidade. Paralisadas antes disso — antes do movi­
mento da razão — perdem sua eventual pertinência, viram opiniões ou dogmas.
E quem as adota sem o recurso da razão, só pode garanti-las pela afirmação
autoritária. 0 entendimento é o limite lógico dos ditadores — vide as arengas de
nossos generais presidentes — e, mais uma blasfêmia minha, das bondosas pro­
messas do funcionalismo. Lucio só desenhou o que já germinava.
O desenho de Lucio, talvez válido como proposta inicial, tema para debate,
308 deveria ter ido para a rua, sofrer críticas, engolir correções em democrática
abertura. E, depois disso, deixar-se levar por sua própria realização, alterar
por sua própria dinâmica, acatar sua transmutação crítica.

Vamos falar um pouco sobre a questão do trabalho em Brasília. Mais uma vez
uma voltinha para trás. Até os anos 1930, havia bastante gente qualificada
nos canteiros. A própria arquitetura eclética exigia isto, a colaboração inteli­
gente dos executantes. Boa parte dos trabalhadores vinha da Itália, egressos
do sindicalismo revolucionário que deixou algumas marcas aqui. Não posso
me estender, mas é bom lembrar que uma das causas do modernismo foi a
reação contra este sindicalismo — que pregava a autogestão — e contra a arqui­
tetura eclética européia — que respeito muito por sua rara qualidade técnica.
Com o projeto de desenvolvimento nacional, este quadro muda.
Objetivamente, há urgência em acumular; subjetivamente começa a se
agitar o instinto mimético colonial. Lentamente no começo dos anos
1930, mas rapidamente no fim, são elaborados os modelos de arquitetura
adequados à mudança. A arquitetura adota linhas mais sóbrias, crê se
despir do ornamento condenado (na verdade, dos detalhes que implicavam
mão-de-obra qualificada e das didatizações de procedimentos construtivos
corretos), busca formas geométricas simplificadas, com o que pode utilizar
força de trabalho menos qualificada e mais submissa, pois as novas
orientações sindicais, tendo afastado as tendências revolucionárias, não
reclamavam mais poderes, mas salários, férias etc. Pouco a pouco, com a
banalização dos novos modelos, a parte qualificada do canteiro é reduzida.
Este processo atinge o ápice em Brasília, quando a cidade recebe massas de
candidatos a qualquer emprego (formando um permanente e numeroso
exército de reserva de força de trabalho), quase sempre desqualificados. A
associação dos dois, exército de reserva e desqualificação, permite a redução
de salários e cria condições para a violência mais descarada. Mestres de boa
formação são trazidos pelas empreiteiras, atuam simultaneamente como
professores e feitores, ensinando os procedimentos indispensáveis e o bom
comportamento. Pouca semelhança resta com os canteiros dos anos 1920:
agora são enormes, inflexíveis, ultra-centralizados; eram menores, flexíveis,
mais abertos (mas nem por isso ideais).
O desenho de arquitetura muda correlativamente. Quase poderíamos esbo­
çar uma regra (a qual, como toda regra, tem várias exceções): a arquitetura
que deixa sua lógica construtiva apropriada às claras, precisa de trabalho mais
/

qualificado. E o caso do ecletismo, europeu, pelo menos. A arquitetura dos


509 volumes brancos e sóbrios, ao contrário, requer menos pois pode esconder suas
lacunas construtivas. Curiosamente se apresenta como avessa à decoração, por
racionalização moralista. Ora, os volumes encapados mostram o ornamento
em função duvidosa. Escondem totalmente a matéria trabalhada, os passos
da produção, destemporalizam o tempo do fazer e sua nua pureza denega a
violência, a rudeza do canteiro submisso. Poucos ornamentos operam tão efi­
cazmente com ar tão inocente, com ar de não ser o que é: maquiagem, fardo,
máscara, esbulho, tartufaria.
Na arquitetura de Niemeyer até Pampulha e o Ibirapuera contava ainda
a produção: elementos construtivos e algum trabalho apareciam no resultado.
Em Brasília, com o objetivo de obter volumes puros, inaugura-se um período
em que o revestimento, a capa, passa a dominar. São raros os detalhes ou ele­
mentos em que o trabalho se manifesta. Na plástica daquele período somem
os índices, as marcas da produção. Por isso os edifícios parecem não ter histó­
ria, já que só os índices são portadores de memória viva. Há assim continui­
dade, semelhança entre o que diz a plástica da cidade e de seus componentes:
salto imediato do desenho ao realizado.
Um exemplo disso talvez tenha sido a construção da Catedral, que visi­
tei ainda em obras. Foi dificílimo construí-la. Vi operários que trabalhavam
como trapezistas de circo, pendurados em cordas, passando de uma parábola
a outra, com grande perigo. E, embaixo, outros, com lixadeiras, polindo o
mármore branco, para que ficasse lisinho, com jeito de bacia maternal aco­
lhedora. Sem máscara, naquelas nuvens de poeira branca, estavam provavel­
mente alimentando silicose no pulmão. Isso, naquele ambiente que deveria
sugerir acolhimento no seio da nossa terra, simbolismo lindo do Niemeyer.
Um imenso descompasso: a figuração mais forte da confraternização, da união
nacional, com as parábolas vindas de todas as regiões do país se juntando em
festa, sendo erguida sem nenhuma consideração por seus construtores, apa­
rentemente excluídos da comunhão.
Resumindo: como o ouro não cai do céu como maná, mas sai da mão
que trabalha, o projeto de desenvolvimento nacional precisa dela, em muita
quantidade, por preço vil. Como a construção manufatureira é a parcela da
produção que mais a utiliza pela menor paga, é principalmente ela que deve­
ria fornecer os capitais necessários para o projeto. Daí a relação estreita entre
desenvolvimentismo e construção em massa, relação que se aprofunda com
o processo de desqualificação. Evolução e involução se casam perfeitamente.
Desqualificando constrói-se mal. Construindo mal, há que simplificar as for­
mas — e, por pudor, cobrir tudo com uma capa sem cheiro de safadeza.
A força das coisas desenhou isso no espaço, numa das pontas das asas do
grande pássaro branco, a mancha escura da cidade satélite durante a constru­
310 ção ainda servia como contraponto: permissão de proximidade da indispensá-
vel mão construtora. Depois da construção a mancha foi transferida, deixada
a mais de 40 quilômetros de distância. O pássaro branco, liso e cheiroso, deve­
ria planar em céu desanuviado.

Todas as iniciativas que procuraram dar corpo ao que deveria ser uma forma­
ção nacional estruturada queriam ter raízes antigas, impulsos anteriores que
já se mostrassem nossos. O novo faria sua inclusão num todo de alguma preg-
nância. As artes, principalmente, colheram prenúncios e os misturaram com
coisas da hora. A emancipação nacional pedia fundamento autóctone. Villa
Lobos, Oswald, Mário, Di etc., vasculharam os antepassados — de preferência
populares, já que 0 projeto era de elite. Lucio também, Lucio pescou larga­
mente no passado colonial. Fiel ao costume, usou a trama da colcha de fuxico
para a fachada de condomínio de luxo. Mas, na medida mesma em que o pro­
cesso de desenvolvimento nacional começa a ficar cariado, há tendência para
engatar uma marcha a ré ao contrário. Em vez de memória, a prospecção. São
plantados os rastros do que deverá vir a ser, as pegadas do amanhã (foi assim
com a arte francesa na virada do século xx. Manet volta para Goya e Rafael,
Picasso para a arte catalã e negra. Com o desencanto a propósito da mudança
desejada, Mondrian, Pevsner etc, emitem diretamente do depois). Quando
a descrença na construção do futuro se intromete, há como que a hipóstase
do desacreditado. Em vez da construção a partir do presente (e seu passado),
a adivinhação propiciatória. “Vamos virar o Brasil para dentro, substituir as
importações” (enquanto se instalavam as multinacionais de automóveis para
exportação): os slogans ganhavam ênfase com o pressentimento de sua irrea­
lidade. As astúcias com a palavra projeto, pro-jeto, jogar para frente, são deste
tempo. Mas foi o para trás, disfarçado em seu contrário, que vingou.
Entretanto, o projeto de formação de uma arquitetura nacional, que o
Lucio encarna no começo, e que acompanha o desenvolvimentismo, teve suas
ousadias. Carregada pelas rupturas sociais com a tradição, nossa arquitetura
abandona pouco a pouco o ecletismo de luxo, preguiçoso e de casca, e acom­
panha como pode a passagem do plausível ao voluntarioso, do passo razoável
à birra arriscada. Começa limpando o terreno, arrumando o bom material
disponível, ensaiando variações no seu uso. Continua por aí, mas pressentindo
o pouco chão do desenvolvimentismo segue também sua deriva no sentido do
autoritarismo. A comedida coragem inovadora do arquiteto não pode resistir
à sua promoção a manda-chuva urbanista: a seca chegou para ficar.
Se o desenvolvimentismo teve, até quase Brasília, algum chão firme, não
311 há como exagerar: é uma ideologia otimista capenga. A prova é a facilidade
com que se transforma em voluntarismo autoritário, em programa da dita­
dura. Exagerando um pouco, passamos de uma situação em que tinha um
assentimento largo para outra em que precisou de violência para se afirmar
— mas, em si, pouco mudou.
Fala-se sempre da ruptura de 1964 como o momento em que a violência se
instala. Mas é preciso não esquecer que esta violência já estava nos canteiros
de Brasília. O fortalecimento da dimensão autoritária favoreceu na arquite­
tura 0 desenvolvimento do risco, mas num outro sentido, do traço, da mão
que comanda, da arbitrariedade mesma do seu movimento que, por força de
vontade, quer impor aquilo que já na realidade começa a esmaecer. Essa necessi­
dade do pólo autoritário, demandada pela urgência do acúmulo de capitais, a
meu ver, foi o que levou a que a violência ainda disfarçável de Brasília passasse
a não poder mais ser escondida a partir da ditadura. Os movimentos de reivin­
dicação, as lutas sociais, começavam a ser fortes e o básculo, a mudança, exi­
giam descaradamente que aquela violência latente aparecesse com mais nitidez.
Essa transição ocorre entre o fim de Brasília e o começo da ditadura.

Acho que parte da arquitetura de Lucio é exemplar, principalmente pela


atividade da memória. A idéia é comum: impossível avançar corretamente
sem que este avanço se alimente do que foi e é. Todo movimento de criação
preserva e ultrapassa, guarda e modifica. Isto é evidente na arquitetura de
Lucio. Se por um lado tem parte com o funcionalismo esquemático, por
outro o material que reorganiza dentro deste quadro estreito carrega muito
da política da arquitetura colonial, seus componentes construtivos e deco­
rativos. Não como incrustações ou citações soltas, mas interiorizados no seu
projetar. Esse tipo de atitude foi abandonado por nossa arquitetura contem­
porânea. Não creio que isto seja coisa boa. O conceito adorniano de estágio
histórico do material é fundamental em qualquer arte. Nele a situação pre­
sente da qual há que partir está impregnada por seu devir, por seu passado
retrabalhado. Ilustra o aforismo hegeliano, segundo o qual toda a história
está presente no que é efetivo. Esta filiação de Lucio aparece, por exemplo,
na plasticidade tátil de seus volumes tranqüilos, coisa que o Niemeyer pro­
longa. Passa por aí o velho aufhebung do Hegel (negação da negação deter­
minada): agir reagindo ao que está aí — e devolvê-lo já outro. Reage ao ecle­
tismo próximo, molenga — mas retoma seu conceito, utilizando o melhor
proposto pela história; no caso, os momentos de sinceridade construtiva e de
512 ornamentação coerente.
Continuidade e ruptura marcam o trabalho de Lucio. Depois da fase ini­
cial, seu funcionalismo é quase a negação frontal do passado. Basta comparar
as mansões que ainda sobram na avenida Paulista em São Paulo — ou coisa
parecida — com suas obras de então, de despojada simplicidade e canelas
finas. Oposição direta. Mas logo nega a negação primeira, readmite a herança.
Certo, pula por cima do ecletismo desbotado — mas procede como um arqui­
teto eclético de qualidade: vai buscar no colonial o que há de melhor. Com
este duplo movimento, chega a uma proposta nova em que o avanço tem bons
arrimos na nossa realidade impregnada de história, nega e reage — e logo,
num segundo tempo (lógico, não cronológico), retoma o negado purificado.
Poderia avançar no paradoxo: Lucio foi nosso melhor eclético.
Brasília interrompe isto, é a negação simples do Brasil de então — e ponto.
Capital, nega a costa e vai para o planalto central. Lá, nega o nada do descam­
pado, lugar sem vestígios nossos. Nega com um desenho sem tradições, buscando
longe as receitas do ciam que não vinham daqui. O eixo monumental corta,
nega sem mediação as asas das moradias. O desenho do pássaro voando, nega a
terra em que se incrusta. Forço um pouco a leitura talvez — mas não muito.
O aufhebung implica três (ou quatro) tempos. Quando se mantém na pri­
meira negação, entra em pane. Chega somente ao seguinte resultado: “não
f
sou aquilo”. Muitas supostas inovações param aí. E o caso das vanguardas do
segundo momento da modernidade (grosseiramente, a partir de 1920). A rea­
lidade está tão ruim que é preciso lhe dar as costas, esquecê-la, e vir recuando
de um futuro salvador todo outro. Mas como o tal futuro é simplesmente o
que a realidade ruim não é, vira espelho inversor do negado. A história pos­
terior da arte está cheia de coisas assim: sintomas inócuos de desesperança, o
jogo de palavras com a palavra projeto a que aludi tem disso. Tem parentesco
com a utopia. O verdadeiro projeto é o que permite a efetivação dos possíveis
de hoje. A negação determinada parada, por não voltar ao negado, fica sem
chão, pode ter clones, não crias. Brasília não tem herdeiros.

Até agora fiz uma crítica bastante ácida de Brasília. E preciso criticar a crítica.
Como negar a importância, mesmo que só simbólica, do desejo de mudança?
Como não reconhecer valor à vontade de formar um outro Brasil, sair do papel
de ex-colônia exportadora e ainda dependente? Tais propósitos, em si, são
respeitáveis. Várias causas da falha do processo esboçado nem são internas. O
espantoso crescimento dos modelos metropolitanos chega a níveis impossíveis
515 de alcançar. A volta do interesse econômico das grandes potências por nós, peri-
feria um tempinho esquecida, minou a pouca base de nossos planos. O tempo
de Brasília é também o da penetração do capital externo — e a falência do mito
da burguesia nacional, a cocheira suposta do caleche desenvolvimentista. Este
retorno e seu acompanhamento pelas adesões internas solapa o passo curto que
tentávamos. A meta almejada não só se mandou para a estratosfera, mas os de
lá em cima precisavam que o Brasil continuasse subdesenvolvido, fornecendo
matéria-prima e mais-valia disfarçada em royalties, dívidas etc.
Talvez a imobilidade do plano seja também sinal de tenacidade, um movi­
mento em memória do que foi castrado, teimosia orgulhosa. A rigidez de
Brasília poderia ser a hipérbole, a hipóstase de resistência amarga diante da
perda dos possíveis. Falando contra mim mesmo, a exaltação do traço e o des­
conhecimento das condições de produção que tanto critico, podem, em certos
casos, se aproximar destas reações à frustração, o que ajuda a explicar, jamais
a justificar (mas reações deste tipo sendo sintomas logo fazem tomar gosto,
hoje são causa de júbilo, de gozo egótico, de reação de orgulho ferido, viram
denegação e terminam como escárnio).
Brasília também valeu como experiência. Seu urbanismo e sua arquitetura
mostraram os limites do voluntarismo — mesmo do bem intencionado, a boa
reação deslocada não leva longe.
E, é preciso lembrar: há edifícios magníficos em Brasília. Penso, por exem­
plo, na primeira escola de arquitetura, modelo de simplicidade inteligente e
bela. Ou no Itamaraty e o Palácio da Justiça, cujos esquemas (no sentido kan­
tiano) são de grande fertilidade.

Tenho certos princípios (talvez pueris) que não abandono. Sobre o uso cor­
reto de materiais, chego a extremos quase ridículos. Por exemplo: não con­
sigo aceitar a Câmara dos Deputados. O Rodrigo Lefèvre analisou esta obra.
Há um contraste doloroso entre o desenho apurado e elegante e o canteiro
absurdo. Sob o ponto de vista do cálculo, a cúpula invertida é problemática.
Foi muito difícil construí-la. Exigindo muito concreto derramado sobre uma
espessa camada de vergalhões em trama estreita. Quando se amarra o ferro,
os milhares de nós e pontas apertadas machucam, ferem sem dó. Um traba­
lho colossal, dolorido para levantar uma estrutura estaticamente duvidosa.
Ali, esbarrão entre desenho e canteiro é frontal.
Já na cúpula do Senado, a laranjinha virada pra baixo, ao contrário, é uma
das formas mais corretas para a utilização de um material apropriado à com-
514 pressão. Pode-se reduzir a uma casquinha se acompanhar a curva de compres-
são. Exige pouco material, é possível construí-la sem fôrmas, sem nenhum
risco. Ao lado, seu eco invertido, fica ainda mais deslocado. A cúpula invertida
não tem nenhuma destas vantagens.
Ora, o deregramento técnico quase sempre implica em deregramento
produtivo. O respeito à linguagem própria da matéria, das formas que natu­
ralmente assume com maior pertinência, é o primeiro passo para o respeito à
produção e ao produLor — se isso interessasse a alguém hoje.
Parecem bobagens essas manias minhas, mas creio que o respeito aos pro­
dutores começa por estas coisas bem elementares. A fabricação do cimento, por
exemplo, é pesada. Polui tudo: o ambiente em volta e os pulmões dos traba­
lhadores por dentro. Não proponho que cesse sua produção, mas pelo menos
que não se use este material desnecessariamente, em consideração aos seus
produtores e utilizadores futuros no canteiro. Ora, os materiais têm comporta­
mento específico e têm suas formas de uso ideais, nas quais opera segundo suas
melhores possibilidades. Necessariamente, nestes casos, a quantidade requerida
é menor — o que, no caso do cimento, trás vantagens ecológicas e diminui a
nocividade sobre os trabalhadores em todos os planos de produção. Não é pouco.

Vamos olhar um pouco a questão da forma. Hegel, na grande Lógica, frisa


bem que a forma não é nada mais que o conteúdo diferenciado, espelhado na
efetividade. O conteúdo é a forma concentrada, seu resumo, sua essência. Não
há uma sem o outro, são momentos do mesmo conceito. Falar de formalismo
como se fosse sinal de forma sem conteúdo é absurdo. Toda e qualquer forma
tem conteúdo. Pode ser sublime ou idiota — mas é sempre conteúdo. O que
ocorre é que, muitas vezes, o discurso não corresponde à forma — o que quer
dizer que ao conteúdo também não, já que conteúdo não é discurso. A nossa
maneira de realizar a arquitetura, com a separação do projeto da produção,
praticamente provoca esta não-correspondência. 0 discurso se dirige para fora,
para o cliente, o usuário ou o público. Já, por isso, funciona automaticamente
como o revestimento, oculta o canteiro. E ganha espaço para alargar suas con­
siderações. O conteúdo enunciado nos discursos, nos manifestos, nas declara­
ções, e o conteúdo posto na forma são freqüentemente díspares, opostos.
No caso do Niemeyer a forma sai na frente, é motora — o que, repito, não é
formalismo. Ele mesmo afirma que primeiro desenha sem se pré-ocupar com
a exeqüibilidade: o calculista, depois, verificará se é possível realizar o dese­
nhado. Se não é, o desenho se adapta; se é, será construído mesmo se não for a
melhor solução técnica. Assim, as abóbadas do Memorial da América Latina
não são catenárias, mas umas curvas irregulares que ora viram retas inclina­
das nos bordos, ora caem à pique sobre o solo. O predomínio da forma sobre
a técnica sempre teve em Niemeyer o mesmo fundamento: a forma é meio
de prospecção, de antecipação, deveria arrastar atrás de si o progresso técnico.
Assim, o concreto que elogia, o que permitiria todas as formas, é prematuro.
Corresponde à hylé integralmente disponível, ainda por criar. O que dissemos
sobre Brasília, cidade antecipativa, vale quase sempre para seu desenho.
/

E evidente que o desencontro entre a forma que quer empurrar para a frente
e a técnica que perde o fôlego correndo atrás acarreta freqüentes problemas. Essa
atitude, entretanto, não é exclusiva do Niemeyer. A valorização da evolução acele­
rada das forças produtivas, tão comum na esquerda aliada ao Partido Comunista,
favorece esta estratégia de desafios. O que pode ocorrer com as práticas antecipa-
tórias, entretanto, é que elas saiam do seu leito e se alarguem além do devido. É o
caso de algumas paredes curvas que projeta. Poderiam, no caso de uma produção
mais livre, já que não têm maiores compromissos com outras equipes da produ­
ção, abrir-se para alguma improvisação, um mínimo de participação operária.
Mas a mão habituada a forçar o passo da produção não está acostumada a abando­
nar nada a ela, considerada como retardada. Traça então, no papel, as curvas sol­
tas que se impõem às mãos amarradas. E a coisa vira paradoxal. O movimento da
mão no papel se congela no material da obra — e o movimento próprio da reali­
zação, a história e a memória do trabalho são apagados pela imobilidade do gesto
congelado na transposição. Os dois movimentos — o do desenho e o da produção
— somem, um por tradução traidora, o outro por abafamento.
Outro ensinamento de Hegel: a matéria tem sua forma, não há hylé vazia.
O traçado no papel, “livre”, sem outros determinantes que ele e a mão, se não
for adaptado à transposição por outras mãos num outro material, perde sua
veracidade, torna-se aleatório e impositivo. O que pode ser considerado liber­
dade do autor vira arbitrariedade posuda.

O Oscar é de uma generosidade, de um cannho espantosos. Repito ainda uma vez:


ele pertence inevitavelmente ao seu tempo. Marx dizia que o mesmo espírito que
move locomotivas, escreve os tratados filosóficos. O que fez, fez porque estava onde
estava. Sob o peso da urgência, obrigatoriamente limitado ao desenho ininterrupto,
longe do canteiro, não podia proceder diferentemente: tinha que centralizar o dese­
nho. A crítica das relações de produção no canteiro não implica a culpabilização de
seus agentes individualmente. Além do mais, tal crítica é de minha geração: ele
316 ainda acreditava na força motora do desenho para promover o avanço salvador das
forças produtivas. Desculpem de me pôr no meio ainda — mas por não mais acredi­
tar nisto, tive de sair de banda, pois se continuasse na vida profissional comum, teria
que proceder da mesma maneira. O que, obviamente, não foi solução.
Entretanto, a vida das formas é objetiva.
Intervalo para uma volta que nos pode ajudar aqui: o coup-de-pinceau, a
pincelada cheia de si, é altamente valorizada. Não tem muita importância,
se só for passagem produtiva: é uma das marcas do trabalho, um dos indis­
pensáveis índices. Mas, desgarrada da função produtiva, ou não pousada
com correção, vira logotipo expressivo. Supostamente, então, vem das tri­
pas, como dizem. Mas se vêm das tripas, falam de tripas — o que, temos que
admitir, deve ser de alto interesse coletivo. Haja megalomania. Como a coisa
se generalizou com a comercialização da arte, a pincelada tida como espon­
tânea porque vem das tripas, a pincelada em parada vira sinal de mesmice
que insistimos em chamar de sujeito mas só é o oco ego tagarela. Esse tipo de
lirismo gasoso seria somente enfadonho, coisa de umbigo de poeta, se não se
travestisse em marca do gênio, esta invenção da cegueira da crítica, posta em
moda pelo arauto da crítica em filosofia, Kant. Fim do intervalo.
Na arquitetura, o equivalente da pincelada são os vestígios da mão que
projeta quando preenche sozinha o que poderia ser deixado à iniciativa do can­
teiro — ou quando sai por aí inventando trejeitos publicitários (vejam Bilbao).
Lucio não deixou quase nunca abertura para a iniciativa do canteiro, coisa
sem dúvida quase impossível nas condições dominantes de produção. Mas
jamais cedeu à “pincelada”, ao egotismo exibicionista. Lucio era sóbrio, “Bri­
tish”. E o “British” não gosta muito de mostrar o próprio umbigo. Lucio fica
atento ao construtivo, à produção. A forma de sua arquitetura, sem grandes
arroubos, sempre foi fiel ao primeiro projeto de desenvolvimento nacional, o
que parecia viável, não partiu rumo à utopia com o desencantamento, o que
não o privou de perspectiva poética.
__ r

Qual é a boa poética? E a que começa pelo mais simples, pelo momento do
trabalho em que a mão hábil elabora corretamente o material. Com o avanço
feliz, aparece o contentamento. Pouco a pouco este bem fazer o necessário vai
se inflamando, capricha ainda mais. E logo a coisa encanta tanto que quer
mostrar-se, ser admirada. A forma começa a se deleitar com ecos harmônicos
da que resultaria da pura necessidade, espécies de sublinhadores indicando a
conveniência do feito. E abre-se o campo que podemos chamar o da decoração
autêntica — que nada mais é que a exaltação do gesto técnico satisfeito com
sua pertinência. Então, a forma didatiza, se prolonga em variações sempre
próximas da fonte. Liberdade cantando a necessidade, necessidade desabro­
chando em liberdade, sem se perderem de vista. Quem procedesse assim seria
517 “gênio” — ou seja, trabalhador livre, porta-voz singular do universal através
de seu ofício particular. E evidente que estamos longe disto tudo. Mas é o que
me faz defender a ornamentação (no sentido indicado aqui), contra o falso
puritanismo da arquitetura moderna, este sim, decoração enganosa.

A arquitetura do Lucio se avizinha destas coisas. Não que libere o produtor,


mas aproveitando os elementos simples, corretamente aplicados, freqüen-
temente à vista, etc., implanta pelo menos as condições materiais para uma
esperada poética, o que já é alguma coisa.
Repito: a forma é o conteúdo expandido, e o conteúdo, em arquitetura,
por mais complexo que seja, começa por seu fundamento construtivo, pelo
canteiro — pelo material, a regra construtiva, a técnica, a mão operária, são
este elementos, e só eles, que poderão, mais tarde, ampliados e desenvolvidos,
transmitir conteúdos mais complexos. Foi o que fez Gaudí, servindo-se dos
diagramas e índices construtivos em metáforas religiosas. Sem este funda­
mento, tornar-se-iam formas com outros conteúdos, provavelmente autoritá­
rios, como vimos. E, pela ausência dos índices, sobretudo, únicas manifestações
semióticas possíveis do sujeito, cairiam nas malhas da arrogância do ego.
Na arquitetura, Lucio utiliza os elementos mais simples: a correção estrutu­
ral e as regras construtivas, a precisão dos detalhes, a alvenaria conveniente, etc.
São diagramas técnicos justos e econômicos. Esquemas vindos de experiências
construtivas sérias — as boas armas do arquiteto — que guiam seu desenho. A
pertinência técnica abre chão pelo menos para uma execução digna, primeiro
passo para uma indicialidade que, se não pode expandir-se demasiadamente,
consegue pelo menos deixar seu testemunho de base. Não fugindo da técnica
possível, respeitando o fazer e o material, prolongando seus desenvolvimentos
viáveis, com lucidez e calma, Lucio chega de mansinho, atinge pelo menos a
porta da poética. Não diria ser sempre este o caso — mas é a tônica de seu dese­
nho. Sua postura na arquitetura difere da postura do Oscar: propõe o desenvol­
vimento tranquilo, de possíveis, enquanto o Oscar está sempre desafiando os
mesmos possíveis. E curioso que tenham tão bem trabalhado juntos.
No Lucio próximo do material podemos ainda perceber sinais do que foi
nosso primeiro projeto de desenvolvimento. E, com ele, ter saudade do sonho
de autonomia, de formação própria brasileira. Porque, na proximidade de
nossos materiais mais simples, ficou um pouco da brasilidade não importada
que poderíamos ter amadurecido. Lucio parece o primeiro capítulo de um
livro ainda não escrito. Acho que vocês, com as novas experiências de constru­
518 ção popular, devem se lembrar dele.
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COMENTÁRIOS FINAIS

Andrea Palladio, detalhe da fachada do palácio Thiene, 1545.


SOBRE "O CANTEIRO E O DESENHO"

2001 2003

SOBRE O CAPÍTULO "O DESENHO"

INTRODUÇÃO

Desconfio de quem justifica idéias por meio da história pessoal. Isso parece
intervenção ortopédica para soldar as fissuras do raciocínio; porém, diante da
aproximação de meu crepúsculo, tenho vontade de enraizar as minhas em seu
tempo. O que, ao contrário, pode até relativizá-las. E terei, assim, a oportuni­
dade de voltar a seus dois co-autores, Rodrigo Lefèvre e Flávio Império, que
não podem mais testemunhar, bem como ao laboratório Dessin/Chantiery que
desapareceu sem um balanço. Mas garanto-lhes: não se trata de autocelebra-
ção. O mérito, se mérito existe, quase não é meu. Eu estava lá no momento
certo. Lá — no Brasil; momento — a década de i960. Há passagens em que o
conteúdo aflora com total falta de modéstia: basta olhar.
No início daqueles tempos, vivia-se na esperança. Sua legitimidade bas­
tante contestável não impedia o contágio, principalmente entre jovens de
vinte anos. Acreditava-se, com mais ou menos intensidade e com variações
de esquerda e de direita, que o país tinha saída. Deslanchar o desenvolvi­
mento, chegar a uma “formação nacional” bem sucedida — por meio da
industrialização e por meio da modernização da sociedade. As receitas varia­
vam: “substituição das importações”, desenvolvimento “associado”
(às grandes metrópoles, nosso ideal do eu), fim do “feudalismo” agrário
321 através de sua reforma, formação do mercado nacional etc. Propostas fre-
qüentes em países que se pensavam ainda em vias de desenvolvimento e de
cura. Discretamente, aconselhava-se que os oprimidos esperassem: a mãe
pátria lhes pagaria sua parte após o milagre anunciado. Era-se pelo social
— mais tarde.
A construção de Brasília foi o ponto culminante dessas crenças — e o teste
do real. Ela queria corrigir o perfil geopolítico herdado do colonialismo e da
dependência. Substituir a seqüência das redes locais voltadas para os portos
exportadores pela centralidade de Brasília e seus eixos rodoviários de inte­
gração nacional. Formar o país voltado para si. Objetivo grandioso, épico. O
plano de Lucio Costa, em forma de pássaro, já ilustrava o novo voo. A plástica
animada de Niemeyer parecia fundar uma outra linguagem, a nossa. Ao
mesmo tempo em que ele tirava fotos confraternizando com os trabalhadores
da nova capital, o presidente “criava” a indústria automobilística. Quase no
coração do símbolo, a catedral sintetizou isso com perfeição: um mandala
puro, representação da diversidade na unidade e vice-versa. Suas parábolas
saídas da terra e vindas de todas as direções do território nacional, reunidas
aqui em seu centro, retornavam pelo alto para as mesmas direções. No inte­
rior, uma explosão de claridade depois do escuro corredor que desce (a histó­
ria passada) da entrada para o ventre branco incrustado docemente na terra
mãe acolhedora. Um hino ao futuro da unidade paradisíaca.
Nenhum outro canteiro de obras foi tão violento quanto o de Brasília
— embora a conivência patriótica da mídia censurasse então toda informação.
Seria um escândalo estragar o brilho da promessa com coisas tão prosaicas. Os
operários vinham de muito longe, de todas as direções das parábolas, atraídos
pelo sonho de um bom emprego no extraordinário projeto. A volta, entre­
tanto, era quase impossível: a região árida ainda estava totalmente isolada
por baixo. Se contratados, eram confinados em acampamentos provisórios
cercados pelo exército ou pela polícia privada das empresas. A comida, fre-
qüentemente estragada, provocava diarréias intermináveis. Debilitados, eles
agüentavam longas jornadas de trabalho cheias de acidentes e de mortes: a
aproximação da data de inauguração obrigava a isso. A menor resistência, na
ausência de sindicatos mediadores, era resolvida na base de tiros e cacetadas
— e mais mortes. Para escapar dessa situação, alguns se jogavam embaixo dos
caminhões. Depois da inauguração, foram expulsos para “cidades satélites”
(sic) a 50 km de distância. Seus acampamentos provisórios ou favelas não
podiam empanar o brilho do plano pássaro (para os que chegavam de avião)
— e não fora prevista nenhuma habitação para eles. Nossa arrancada para um
mundo admiravelmente novo retirava seu impulso de estranhos cinismos. Sob
o sonho, o pesadelo.
322 Desde 1958, assisti a essas coisas de perto — e dos dois lados. Mesmo sendo
estudante, no segundo ano da faculdade de Arquitetura, tínhamos, Rodrigo e
eu, vários projetos em realização na futura capital (dois prédios de escritórios,
um conjunto de lojas). Eu ia sempre para lá — naquele tempo, o arquiteto fre-
qüentava o canteiro de obras. Eu não podia não ver o que acabo de descrever.
Também escutava a conversa dos de cima, pois meu pai era um dos promoto­
res da nova Jerusalém (foi ele quem nos confiou os projetos citados). A elite
do PSD, o partido do governo, reunia-se, às vezes, em minha casa. Impossível
não constatar ao vivo a enorme distância entre as palavTas e os fatos.
A irrupção da ditadura em 1964 interrompeu bruscamente os amanhãs
que cantam, versão populista. A ilusão foi por água abaixo.
Mas constatar, mesmo com o privilégio da ubiqüidade no início e no fim
do processo, não é compreender. Começou então para nós — Rodrigo e eu pri­
meiro, Flávio logo depois — um período de pesquisas tateantes, de esboços de
hipóteses. A leitura de O capital nos ajudou muitíssimo. Essa leitura se afas­
tava daquela do PCB (que dela retirou conceitos bizarros para nosso “desenvol­
vimento” a partir de uma inencontrável burguesia nacional) e daquela dos
seminários eruditos, demasiado filosofantes. Interessava-nos principalmente
a análise de Marx sobre os processos materiais de produção, sobre os proce­
dimentos de extração da mais-valia — tudo o que nos ajudasse na abordagem
do canteiro de obras. A miséria do operário inglês do século XIX permitia-nos
compreender a que eu havia visto em Brasília — e que se encontrava em
outros canteiros. O capital, apesar de sua evolução e de suas acomodações a
nosso subdesenvolvimento de ex-colônia escravista exportadora de matérias-
primas, passava ainda, grosso modo, pelas mesmas engrenagens complicadas
de seu fundamento.
O primeiro avanço foi a caracterização da produção da construção: trata-
se de uma manufatura. E uma questão absolutamente essencial, apesar da
indiferença por parte dos textos sobre a economia do setor (fala-se neles
da “indústria” da construção) e por parte dos textos da crítica, inclusive de
esquerda, em relação a esse ponto. Marx, principalmente nos capítulos XII e
XIII do volume I de O capital, detalha uma série de diferenças importantes
que separam artesanato, cooperação simples, manufatura e indústria quanto
às formas de exploração, de direção, de submissão do trabalho (formal ou
real), de divisão do trabalho, de tecnologia etc. Tudo isso é precioso, cheio de
conseqüências para o projeto. Apesar da impressão de generalidade abstrata
de nossos textos — pouco hábeis, reconheço — eles traduziam, com decalagem
/

de vocabulário, rigorosamente nossas observações. Éramos arquitetos perple­


xos, sem formação adequada em sociologia ou em economia, não podendo
mais repetir o discurso universitário e obrigados a tomar emprestados concei­
tos que nos eram difíceis demais. Até hoje é assim.
Essa caracterização me permitiu passar para outras hipóteses — ainda a
reboque de Marx, porém muito passíveis de verificação no Brasil da época.
Por exemplo: a construção, por ser manufaturada, constitui, juntamente
com a agricultura, a principal fonte de acumulação primitiva do capital. As
grandes fortunas brasileiras de então tinham sempre um pé numa ou noutra.
Le Goff demonstrou isso ao estudar o papel econômico da construção das
catedrais e muralhas na origem do mundo moderno. Uma outra hipótese,
ligada a essa: a construção, por ser manufaturada, é um dos recursos (com
o colonialismo, o imperialismo, a troca desigual, o monopólio etc.) para se
enfrentar com êxito a queda tendencial da taxa de lucro. Não era por coinci­
dência que se impulsionava a industrialização do país e, ao mesmo tempo, se
abria o vasto canteiro de obras da capital. Paradoxalmente, só um ministro
da Fazenda do período da ditadura reconhecera a importância decisiva desse
setor que “absorve” grande quantidade de mão-de-obra pouco qualificada.
Ou seja, com uma composição orgânica do capital muito atraente (Cc muito
reduzido), uma massa considerável de investimentos (pensem nas estradas,
pontes, fábricas, escritórios, casas, igrejas etc., uma parte substancial do pib) e
o emprego de uma força de trabalho superabundante e muito desqualificada
(na aparência). Tudo reunido permite a obtenção de uma enorme provisão
de mais-valia, índices de mais-valia incomparáveis com outros setores da
produção menos sensíveis à pressão do exército de reserva da força de traba­
lho, taxas de lucro específicas muito altas que, por perequação, irrigam outros
setores pela elevação da taxa média, alimentam os setores industriais de
ponta etc. Isso basta para explicar porque não há industrialização da constru­
ção em Brasília, o canteiro ideal para testá-la, nem nos países desenvolvidos.
E porque o arquiteto e a manufatura da construção nascem juntos, apoiados
no capital.
Pude testar, com os meios de que dispunha, a hipótese da manufatura em
dois projetos contemporâneos, desenhados em 1961 e executados em 1963.
Duas residências para professores universitários que aceitaram servir de
cobaias: Bernardo Issler e Boris Fausto, aos quais agradeço mais uma vez.
A primeira aplicava a estrutura da manufatura serial; a segunda, a da manu­
fatura heterogênea — com uma fidelidade quase neurótica mas sem as irracio­
nalidades próprias das técnicas de dominação no que dependem do desenho.
A primeira correu bem (e inaugurou a série de nossas construções em abó­
bada); a segunda teve problemas. As condições da produção da construção
daquele momento no Brasil, próprias da manufatura serial (sucessão acu-
mulativa de equipes de produção que executam suas tarefas principalmente
no local, no canteiro de obras) eram ainda inadequadas à manufatura hete­
524 rogênea (baseada, sobretudo, na montagem de peças produzidas em fábricas,
a “pré-fabricação”). Mais tarde, a partir de 1972, já na França, constatei que
a principal diferença entre a construção em um país desenvolvido e no meu
era esta: a enorme diferença do custo da força de trabalho havia imposto a
manufatura heterogênea nos países centrais — sem nenhuma industrialização,
porque seu papel na economia, mesmo sem a mesma intensidade, é igual. Por
outro lado, tanto aqui como lá, 0 canteiro apresenta, quanto ao resto da pro­
dução, as mesmas marcas de superexploração a que estão condenados os seto­
res “atrasados” (porém muito atuais pelos serviços prestados): os mais baixos
salários, as mais longas jornadas de trabalho, as mais altas taxas de doenças
profissionais e de acidentes de trabalho, a maior rotatividade etc.
Meu procedimento nesses “testes” era simples. Nenhuma preocupação
com o “progresso das forças produtivas”, a idéia fixa da época. Ao contrário:
utilização do material disponível com toda a modesta racionalidade técnica
— o que justificava usos pouco habituais, como o de vigas e blocos cerâmicos,
previstos para lajes planas em abóbadas de catenárias perfeitas. Estrita obser­
vação das seqüências produtivas cuja autonomia, assim adquirida, permitia
a otimização das performances com bons materiais. Mas principalmente
escuta, diálogo e abertura à participação dos operários nesse mesmo objetivo.
De modo geral, uma manufatura mais Tacional e humana — sem os entraves
à lógica que a dominação exige. Na casa Issler onde, no início, concentrava
todas as funções de direção, pude aumentar os salários: eu obtinha economias
da ordem de 25% através dessas simples medidas. Evidentemente, tais refor­
mas não atingiam o essencial: eu dialogava — mas com uma força de trabalho
comprada; entretanto abriam-se boas pistas para uma prática alternativa sem
ilusões, realista. Além da confirmação da estrutura manufatureira, os testes
demonstravam a possibilidade, sem esperar os efeitos da miragem desenvol-
vimentista, de uma outra prática de trabalho, mais digna e respeitosa, com
perspectivas férteis. Entretanto, sabia-se que essas propostas não sairiam do
âmbito estreito da experiência. Um resultado inesperado foi o efeito estético.
Apesar de ser pintor, recusei-me a fazer qualquer consideração em relação
a ele, em relação aos vazios jogos plásticos aprendidos na escola. Sobriedade
puritana. Ora, no final, surgia algo quase alegre, uma festa dos recursos sim­
ples que expunham claramente a harmonia entre pensamento, materiais
e Lrabalho. E isso sem exagero, sem ênfase deslocada: a beleza do trabalho
exato. Por baixo de tudo, ainda uma outra sensação — a de nossa fragilidade;
com um pouco de areia, de madeira, de terra e de pensamento operatório, a
formiga humana podia acreditar que estava protegida por algum tempo. Sem
nenhum outro recurso além da lógica da coisa, descartando tudo o que lhe era
exterior mas respeitando-a em toda parte até nossos limites, a obra refutava
a acusação de subproduto do pensamento arquitetural: evitando por pudor
programado as exaltações do ofício — tanto “puristas” quanto “barrocas” — ela
revivia o alegre saber — e saber fazer.
(Alguns anos mais tarde, o “toyotismo” e o “novo espírito do capitalismo”
anunciavam várias reformas semelhantes às nossas. Depressão, desânimo. Elas
visavam a objetivos contrários aos nossos. Já se demonstrara que, sem revolu­
ção das relações de produção, até meios generosos podiam ser desviados. Era
necessário ficar unicamente na experimentação. Por outro lado, eu já havia
observado que as economias obtidas raramente beneficiavam “meus” operá­
rios. Aprendia, agora, que os meios não têm escrúpulos e que, bem instruídos
pela violência exploradora, podem servir em sentido contrário. Mas continuo
a pensar que, se sua lógica for levada até o fim, até a verdadeira autonomia
inexistente nesses movimentos, eles são o que se deve defender ardorosamente.
As sacanagens que fingem uma redução da autoridade, que delegam pequenas
responsabilidades, têm por objetivo a diluição das relações contratuais estáveis,
a instabilidade do emprego, a autovigilância disciplinar etc. Em resumo, os
objetivos da globalização. Até o vocabulário é traído: elas falam de estratégia
por projeto, de equipes “autônomas”, de abertura à iniciativa. Mas, se às nos­
sas propostas são recusadas suas qualidades próprias, apesar do uso deformador.
é preciso, por dever de coerência, recusar tudo da chamada civilização ociden­
tal, hoje inteiramente a serviço do capital — exceto os bolsões libertados por
movimentos populares que, ainda assim, sofrem cercos diversos.)
A coisa tornava-se paradoxal. A parte que era chamada de “avançada”
dentro da profissão, aquela que preconizava a evolução das forças produtivas,
buscava novos materiais e novas técnicas ou a industrialização. Porém (exceto
Artigas) esperava isso de fora, dos fabricantes, engenheiros ou industriais,
cujo universo de pensamento, necessariamente pobre ou inábil diante da
imaginação plástica dos arquitetos, decepcionava com freqüência, atrapa­
lhando a troca e o progresso esperados. Por outro lado, sua prática continuava
a mesma: o sonho avançava e o canteiro de obras continuava imóvel. Quanto
a nós, acontecia o contrário: trabalhávamos com velhos materiais e com a
técnica de sempre. Uma vez que se mudou de rumo, esmiuçamos a velha téc­
nica tentando livrá-la do empobrecimento e das deformações devidas a seu
longo serviço ao capital. Abandonamos o campo estreito da técnica em si para
considerá-la interagindo com os trabalhos que envolvia. De modo especial, a
hipótese manufatureira permitiu-nos inverter o comando pelo objeto final do
projeto: em vez de um modelo acabado a ser decomposto para ser construído,
o nosso resultava do caminho inverso — a montagem progressiva do projeto a
partir das etapas de sua execução. Tomando alguns termos de Kant: o conceito
proposto pelo projeto não era “constitutivo” e, sim, “regulador”. Em lugar do
526 feedback simples (do projeto acabado à sua decomposição em etapas), o nosso
era duplo (de uma idéia aberta do objetivo à seqüência produtiva que alterava
a primeira idéia). Mas, cuidado, a seqüência produtiva era reformulada, não
se adotava a “normal”. Nós reorganizamos ligando a seqüência produtiva
a um recorte racional do objeto construído — como o pensamento de Platão
se adaptava aos cortes sugeridos pelas articulações do boi. Assim, cada etapa
isolada ganhava em autonomia relativa. Dado que era simultaneamente téc­
nico e funcional, esse procedimento permitia também uma racionalização
extrema de cada etapa: a autonomia relativa garantia as condições para que
cada uma se determinasse por sua própria lógica técnica, produtiva etc. E
mais: a sucessão regulada de capítulos abria espaço para mudanças do projeto
durante a execução. A cobertura feita (por exemplo, uma abóbada regular
em catenária, a mais lógica das estruturas em compressão, a mais econômica
em material, simples de ser produzida no canteiro, auto-isolante (água) e de
execução relativamente fácil), as divisões internas independentes podiam
adaptar-se a mudanças propostas por usuários ou produtores — os primeiros,
geralmente pouco hábeis na leitura de planos, tinham assim a possibilidade
de sugerir alterações; os segundos, a possibilidade de melhorar seu trabalho.
E, sucessivamente, cada etapa dava continuidade à anterior, baseada no con­
creto e não seguindo um desenho imutável. Como a logística acompanhava
passo a passo a seqüência, bem como a presença dos trabalhadores de cada
especialidade, nada disso constituía problema. Participação de todos, flexibili­
dade, racionalidade e projeto apenas regulador casavam-se perfeitamente no
interior da hipótese da manufatura (corrigida): sucessão de momentos bem
separados, racionalizados em todas as suas dimensões (só a razão clara per­
mite o debate e a participação efetivos), numa autogestão permanente.
/

E evidente que meus testes continuavam sendo marginais — o que era


ainda mais fatal à medida que se vivia então, no Brasil, uma das manifes­
tações radicais da violência do capital. Mas todo bom dialético sabe que é
quando estão em tensão máxima que as contradições aparecem mais clara­
mente. Mesmo antes do golpe militar, era-nos impossível acreditar nas diver­
sas versões de desenvolvimento messiânico. A avidez constitutiva do capital
sempre esmagará os que estão embaixo, com mais ou menos intensidade
conforme a resistência — e mais ainda os que estão no nível mais baixo, os tra­
balhadores da construção.
Com coerência, creio, Rodrigo e eu participamos da luta armada contra
a ditadura — luta que ainda considero justa, apesar do fracasso, da prisão e
da tortura. Minha recusa em participar da “normalidade” do métier tam­
bém mostrou, rapidamente, seus limites. Não se torna um Rimbaud apenas
parando de produzir e passando ao tráfico (da pintura). A profissão continu­
327 ava sua rotina, claudicando entre desenho de vanguarda a serviço do status
quo e falas visionárias nos colóquios e nas reuniões de “classe”. Meu discurso
parecia grosseiro e inoportuno, incompatível com a doxa dos arquitetos sérios.
A única maneira de evidenciá-lo seria através da demonstração prática — mas
minha recusa ética das condições habituais não me deixava aproveitar senão
oportunidades limitadas. Desse modo e com uma “obra” mínima, fui um sui­
cida na profissão.
Restava o trabalho de crítica teórica. Repito: o endurecimento e a visibi­
lidade maior da selvageria da luta de classes durante a ditadura mostravam
que Brasília não era uma exceção e, sim, a regra. Apenas escondia melhor
e o esforço para não ver era menos penoso: a ditadura desvelava sem pudor
— como, hoje, a abdicação pós-moderna. O recurso aos conceitos marxistas
de interpretação se justificava: porém, apesar de todas as semelhanças a que
já fiz referência, eles eram amplos demais ou estreitos demais para uma
aplicação direta à particularidade que tinha diante de mim. “Classes”, por
exemplo, mas com qual contorno? Na construção, 70% dos trabalhadores são
“desqualificados”, majoritariamente vindos do campo por atalhos diversos e
sem uma competência específica. Mistura de “lumpens” e de trabalhadores
temporários do exército industrial de reserva, sem vínculos duradouros com
nenhuma forma de trabalho, quase sempre não sindicalizados. A submissão
apenas formal do trabalho na manufatura, e que teoricamente facilitou um
comportamento mais ousado e anarquista dos operários (a maioria das gran­
des contestações operárias na França durante o século XIX e início do século
xx tiveram sua base na construção — como o movimento em torno do Avanti
no Brasil), mistura-se aqui não só com a submissão real hegemônica indus­
trial, mas também com os vestígios de servidão diante do paternalismo coro-
nelista. Isso gera a simultaneidade paradoxal do “despotismo” da direção,
como indica Marx, de astúcias sofísticas do favor e a constante desvalorização
do saber e da competência operária. Uma salada. Em 1971, pude informar-
me sobre a trama completa das armas de dominação nas longas conversas
com trabalhadores da construção: na prisão, onde sobra tempo e a língua
fica mais solta. Entre essas armas, a mistificação do projeto, cuja aura proíbe
qualquer crítica, impõe a obediência temerosa diante das alturas sagradas da
“arte”. O mal-estar quanto aos conceitos emprestados, mas indispensáveis e
colocados de viés, continua ainda hoje — sua utilização prática e não só analí­
tica os deslocava mesmo em relação aos debates nacionais dominantes acerca
deles —, os quais continuavam teóricos ou alimentavam programas políticos
do futuro. O conceito de fetichismo, por exemplo, não era para nós apenas
uma ilusão criada pelo “sujeito automático”, limitado à esfera ideológica.
Ele toma corpo, impregna a forma plástica de seu poder de cegar. Minha crí-
328 tica à pseudo-autonomia do desenho, de sua autotelia, que muitos tomaram
simplesmente como condenação do desenho, deve bastante à idéia da concre­
ção do fetichismo.
Mais tarde, já na Europa: outras dificuldades, bem menores entretanto.
A tese de Marx sobre a história como história da luta de classes sofria diver­
sos ataques e críticas: defendia-se a autonomia mais ou menos marcada da
“supra-estrutura”, empurrava-se a determinação econômica para a última
instância preparando-se o terreno para as desconstruções, para o abandono
das grandes teses, para a fragmentação teórica etc. Nunca consegui reconhe­
cer qualquer grau de autonomia no desenho de arquitetura. Seu inevitável e
essencial papel prescritivo para a produção e que, fora dos projetos imaginá­
rios, ele não pode evitar, coloca-o cotidianamente em relação com o conflito
de classes. No laboratório Dessin/Chantier que eu dirigia, questionamos
alguns lugares comuns da história da arquitetura olhando-os de baixo, em
sentido inverso, a partir de seu canteiro de obras. Em toda parte se tinha a
confirmação: em vez da solidão das alturas, o enleamento no confronto entre
capital e trabalho vivo. Cada grande mudança de linguagem recobria, “feti-
chizava” uma alteração importante dessa luta. Os diferentes . eram apenas
elaborações secundárias do conteúdo latente — e isso desde que a construção
foi colocada a serviço da acumulação primitiva até hoje. O tom áspero dessas
análises choca inclusive nossos amigos marxistas: eu sou um marxista vulgar.
/

Mas o que fazer? Meu próprio objeto é vulgar. E pequena a distância entre a
mão que desenha e a que segura a pá — embora tenham sido gastos séculos
de engenhosidade para ampliá-la. É sua própria proximidade que provoca a
superabundância das cunhas e a aparência de indiferença é sintoma de pro­
funda intimidade.
Minha crítica do papel do projeto nunca foi admitida pelo meio profis­
sional — e por razões evidentes. Como admitir que esse receptáculo dos mais
altos propósitos, esse veículo de arte e pensamento, pudesse ser grosseira­
mente reduzido a uma das formas técnicas da dominação do capital? Como
aviltar assim a capela Mediei, o palácio Thiene, La Tourette? Fui excluído
do concerto dos pares, perdendo, desse modo, qualquer esperança de legi­
timidade moderna, dita científica. Ainda hoje os arquitetos chamam-me
de pintor e os pintores, de arquiteto. E desapareço lentamente da história
dessas atividades. (A crítica que faço da pintura é semelhante à que faço da
arquitetura — nas condições do artesanato — o que leva a outros afastamen­
tos). Minha análise do desenho operou como que um thaumatzein da
poética de Aristóteles, “choque de surpresa que abala as expectativas do lei­
tor e introduz uma forte curvatura”, como diz K. H. Rosenfield. Meu thau­
matzein despedaça a trajetória nobre do desenho e abre-a para o escândalo.
Continuemos a escandalizar — e a apontar para um outro desenho.
O DESENHO SEPARADO - DO CLÁSSICO AO NEOCLÁSSICO

(Observação: a oposição entre canteiro de obras e desenho, que meu texto cons­
tata, tem uma história e uma memória ainda ativas. Durante vários anos, estu-
dei-as em meus cursos. Hoje posso apenas resumir seu esquema, pois a idade e
a preguiça são obstáculos à revisão de notas espalhadas na desordem de minhas
gavetas. Aqui e ali, vou incluir artigos que escrevi neste últimos anos.)
A oposição ainda atual entre canteiro e desenho foi precedida por sua relativa
unidade. Os trabalhos dos especialistas confirmam isso. Podemos caracterizar tal
união como a da cooperação simples: um grupo de trabalhadores que tem prati­
camente o mesmo nível, competências muito abertas e muito pouca hierarquia. O
desenho, muito elementar, ainda é seu atributo. Esse tipo de cooperação dura apro­
ximadamente até o apogeu do gótico. Como o desenho ainda não tem vida inde­
pendente do canteiro de obras, as analises existentes baseiam-se no trabalho e no às
vezes mítico construtor de catedrais. Depois, praticamente não se faia mais disso.1
Depois do apogeu do gótico, vai surgir no meio da massa mais ou menos
homogênea dos trabalhadores, destacar-se e dominá-los, o esboço do arquiteto
e de sua arma, o desenho separado.

He is not worthy to be called waister of the crafte that is nat cunnying em


drawynge and purturynce.2

Dessa forma, o arquiteto ainda é considerado, em alguns textos do século xm,


como o operário principal (principalis artifex). Ele sabe também manejar o
cinzel e a régua do agrimensor, assim como o talhador de pedra sabe, quando
a oportunidade se apresenta, projetar planos. Mas o desenvolvimento do
gótico acarreta uma complicação das tarefas e seu duplo corolário: a divisão
mais nítida do trabalho e a especialização do talhador de pedra; este, que
no século xii podia ora preparar o revestimento de pedra de uma parede,
ora executar frisos ornamentais ou capitéis historiados, deve especializar-se
no talho ou na escultura [...] o próprio arquiteto deve dedicar um tempo
maior que antes à elaboração do projeto [...] a multiplicação dos desenhos de

1 Ver os trabalhos de Colombier, Kimper, Suckale, Haas, Banner, Recht etc. Com nuances,
suas análises convergem para o modelo da cooperação simples, embora seu vocabulário
seja outro. Ver especialmente, de W. Schõller, “Le dessin d’architecture à 1’époque gothi-
que”, em R. Recht (ed.), Les bâtisseurs des cathédrales. Estrasburgo: 1989, pp. 226-236.
2 “Não é digno do título de arquiteto quem não é especialista em desenho e
350 representação”. W. Horman, Vulgaria, 1519.
arquitetura é um fenômeno que acompanha a emancipação do arquiteto em
relação aos outros membros do canteiro de obras.3

Antes da “emancipação” do arquiteto, um tempo de unidade variada em suas


manifestações. Grosso modo, é o período do românico e do primeiro gótico.4
O canteiro de obras constituía-se a partir de um conjunto relativamente orgâ­
nico, com uma divisão de funções não muito rígida e conservava o desenho
como uma de suas tarefas.
Nosso tema aqui — o desenho separado — começa com a ruptura desse con­
junto bastante homogêneo. Trata-se, aliás, do sinal mais importante do afasta­
mento crescente entre arquiteto e canteiro. A iconografia da época registra-o por
meio da mudança dos emblemas do arquiteto: no início, o compasso, o esquadro,
o nível ou a régua são grandes como os de um contramestre; mais tarde, há ape­
nas o compasso e o esquadro em tamanho reduzido, ferramentas do projeto, sem
canteiro de obras. E, sinal de sua ascensão, as luvas (lembrem-se do bastante
citado sermão de Nicolas de Biard). A primazia do canteiro de obras começa a
/

declinar à medida que o desenho se fortalece. E muito instrutivo acompanhar


detalhadamente a passagem da geometria construtiva do grande compasso, arte
inaugural dos construtores, tesouro e síntese de seus “segredos” e competências,
para a geometria formal do pequeno compasso, renda de curvas e contracurvas
que se comunicam livremente no arabesco gratuito. Um serve para a construção
que dita formas; o outro, para as formas às quais a construção deve se adaptar.
Um parte do fazer para seu resultado; o outro antecipa o resultado obrigando o
fazer. Ora, dado que comandar de fora da confusão do canteiro torna respeitável,
o arquiteto começa sua escalada na estima do poder. A partir de então, guardam-
se seus desenhos (aqueles destinados aos clientes, não os da prescrição dos tra­
balhos), seu nome (Pierre de Montreil, Gautier de Varinfroy, Jacques de Fauran,
Peter Parler, Ulrich d’Ensingen etc) e até seu corpo (seu túmulo ocupa lugares
de honra no interior das catedrais).
Entretanto, observemos isto:

Alguns fatores permitem afirmar que a técnica da construção na Idade Média,


até o início do século xni pelo menos, podia dispensar desenhos em pequena
escala [...] A idéia arquitetural só assumia sua forma definitiva à medida que
se construía o edifício [...] toda construção consistia em praticar eternamente
tradições artesanais precisas cujos princípios eram conhecidos por cada artesão,

3 “Art gothique: Une introduction”, em R. Recht, op. cit., p. 24.


4 Ver, de A. Scolbetzine, Lartféodal et son enjou social. Paris, 1973.
mesmo que se tratasse de um edifício ambicioso. Bastava pôr-se de acordo
quanto a algumas medidas de base, dadas pelo arquiteto, e quanto à indicação
da disposição geral notificada com a ajuda de um desenho.5

Ora, no início do século XIII, muitas das grandes catedrais, complexas e mara­
vilhosas, já estavam construídas. Podemos pensar, então, que a complicação
crescente do gótico, a divisão e a especialização das tarefas de que fala Recht
devem ser associadas à “multiplicação dos desenhos” — mas na ordem inversa.
Visto que se sabia fazer “edifícios ambiciosos” sem divisão e especialização,
a “complicação” introduzida pela “multiplicação dos desenhos”, cuja trama
de entrelaços provém do pequeno compasso, é que foi determinante. O afas­
tamento crescente do arquiteto do mundo do “contramestre” acompanha a
evolução do gótico para seu momento tardio, o flamboyant. O que marca essa
passagem consiste nisto: a perda da possibilidade de elaboração do projeto
pelo canteiro de obras. “A idéia arquitetural” não podia mais “assumir sua
forma definitiva... à medida que se ergue o edifício”. A figura do produto
acabado se impõe no início, afastando ao máximo a intervenção autônoma
dos trabalhadores. 0 canteiro perde seus modos de expressão. Bastou um des­
locamento aparentemente anódino, o do desenho para além do tapume, para
que um bom número de coisas mudasse radicalmente. A título de exemplo, as
relações teleológicas ancestrais: o fim cristalizado comandando a produção de
maneira constrangedora — em vez de um devir aberto com fim flexível. Isso
já obriga ao abandono de algumas “tradições artesanais” precisas, aquelas
ligadas à competência construtiva autônoma. O desenho muito detalhado da
fachada da catedral de Estrasburgo, guardado no Musée de L 'Oeuvre bem ao
lado, prescreve uma filigrana de colunetas a ser sobreposta ao maciço cons­
trutivo; seu próprio perfil alongado impede que elas sejam feitas só de pedra.
Centenas de pequenos braços de metal ligam-nas ao maciço — e provocam, no
inverno, o arrebentamento das colunetas que, até hoje, têm que ser constante­
mente restauradas. 0 saber fazer dos talhadores de pedra — se tivessem direito
r

à palavra — teria afastado o abuso do desenho. E evidente, aqui, que os mean­


dros do projeto devidos ao pequeno compasso obrigam ao abandono de algu­
mas “tradições artesanais”. Guardemos na memória o cerne do que se passa:
o canteiro de obras não tem mais seu fim em si — não progride mais a partir
de si — mas deve realizar um dever ser freqüentemente contrário à sua lógica
própria. Aquilo a que se dirige segue um pensamento que não é o seu.

5 W. Müller, Le dessin technique à Vépoque gothique, p. 237.


Por que essa mudança lenta mas inexorável? Os historiadores, de Pirenne
a Le Goff, conhecem bem o contexto que a cerca. Tanto a construção de mura­
lhas quanto a das catedrais, dois imensos canteiros para a escala das cidades
nascentes ou em desenvolvimento, mostraram-se muito propícios ao desenvol­
vimento econômico. Uma espécie de new deal medieval. Através de múltiplas
redes, massas consideráveis de dinheiro (no início, vindas geralmente do exte­
rior) começavam a acumular-se aqui e acolá: entre alguns mestres-de-obras
que, além dos artesãos e dos aprendizes, exploravam os recém-chegados em
fuga do estreito mundo feudal e em busca da “liberdade” urbana, ou entre
comerciantes que tiravam proveito do desenvolvimento provocado por essas
atividades (os operários comiam, moravam, vestiam-se etc) etc. Essas massas
de dinheiro, aproveitando-se igualmente do êxodo rural, podiam começar a
servir de capital (usurário, comercial e, logo depois, manufatureiro — na fabri­
cação de tecidos, por exemplo). Ainda causa surpresa o tamanho das catedrais,
freqüentemente desproporcional ao de suas cidades. Diz-se que era por causa
da fé — mas as verdadeiras razoes são muito terrestres.
Percebeu-se de modo mais ou menos claro — e sobretudo na produção de
outras construções — que o dinheiro que entrava no canteiro de obras saía
com lucro, e que, pagando menos aos operários ou fazendo-os trabalharem
mais, fora do que era o costume das corporações, a vantagem aumentava.
Para pagar menos, era interessante quebrar a autonomia do canteiro, dividir e
especializar as tarefas, misturar os trabalhadores qualificados com os imigran­
tes chegados em quantidade, sem formação, sem ferramentas e sem meios de
subsistência, rompendo, assim, a homogeneidade ancestral. Os empresários
ou proprietários que revendiam suas construções o compreenderam depressa,
comparando o preço de custo com o preço de venda. Rapidamente tudo isso se
generalizou, entrando definitivamente nos canteiros de obras das fortificações
e das catedrais, reformulando o ponto de partida pelo retorno do resultado.
Isso explica a divisão habitual entre o gótico das origens e o gótico tardio.
Entre os dois, o desenho havia aprendido o funcionamento poderoso de seu
jogo, de sua posição descentrada em relação ao canteiro de obras.

O processo que cria a relação capitalista não é nada mais que o processo que
separa o trabalhador da propriedade das condições de seu trabalho.6
O sistema das corporações desaparece em seu conjunto, o mestre bem como o
artesão, quando o capitalista e o trabalhador aparecem.7

6 K. Marx, O capital, op. cit.


535 7 K. Marx, Grundrisse, op.cit., t.II, p. 549, nota.
Chamo subordinação formal do trabalho ao capital a forma que se baseia
na mais-valia absoluta, porque ela não se distingue senão formalmente dos
modos antigos de produção [...] do ponto de vista tecnológico, o processo de
trabalho se situa exatamente como antes [...] na subordinação formal do
trabalho há coerção ao sobretrabalho [...]a

A separação dos trabalhadores das “condições de seu trabalho”, a abolição das coer­
ções corporativistas e a “coerção do sobretrabalho” já formam sistema no tempo
de Brunelleschi, o pai fundador de nossa profissão de arquiteto. Sua “vida” por
/

Vasari é muito clara a esse respeito. E a amarga aurora da manufatura da constru­


ção, sob o patrocínio dos manufatureiros do setor de tecidos (seda) da Arte delia
lana. Há muito tempo estavam nos negócios: o pai de São Francisco de Assis já era
um deles. Brunelleschi escondia seus desenhos (separação das condições de traba­
lho), quebrava greves contratando “amarelos” de outras cidades (adeus às corpo­
rações), impedia que os operários descessem dos andaimes ao meio-dia (coerção ao
sobretrabalho) etc. Um mestre em clarividência. Nada de fundamental mudou no
plano técnico da construção — exceto o desenho octogonal desastroso do domo, as
rachaduras que ele provocou e a aparelhagem dos tijolos em “espinhas de peixe”,
inutilmente complexas. Sua grua giratória era velha de alguns séculos.
Mas, se voltarmos ao que para nós é mais importante aqui, o desenho, é
necessário constatar que Brunelleschi introduz algo que fará escola: a ordem
clássica no interior das igrejas que desenha — o coríntio, principalmente. Ele
será imediatamente seguido por Alberti, Bramante etc. — e, durante séculos, o
clássico torna-se a língua oficial dos arquitetos.
Tafuri já observou isto: a introdução do clássico responde à necessidade,
para a nova estrutura de produção, de descartar e calar a expressão autônoma
dos trabalhadores da construção, sua criatividade dispersa devido à fluidez das
tarefas e à abertura permanente do objetivo, em resumo, à prioridade do pro­
cesso sobre o resultado. Desaparecimento das tradições da cooperação simples.
Começa, em contrapartida, a longa história do desprezo com que os tratados
de arquitetura descrevem o operário, sua incapacidade, seu mau gosto instável,
sua falta de virtÍL Esta é reservada ao herói nascente — o gênio artista, cheio de
astúcias, de façanhas, de ousadias capciosas: as “vidas” de Vasari são férteis em
notícias sensacionalistas que ilustram esses comportamentos espertos.
E elogios sem fim para a nova perspectiva — na “vida” de Brunelleschi
ainda. Inútil lembrar os termos enfáticos que enfeitam a descrição de suas

334 8 K. Marx, Aíat.ériaux pour Véconomie. Paris: Plêiade, 1968, t.II, pp. 369-370.
astúcias para divulgar as maravilhas da nova “ciência”, comentadas ad
nauseara pela literatura sobre a arte. Um quadro que se coloca no lugar de
uma construção existente, mistificação ótica. Ele nos ludibria — mas o ato é
cheio de ambigüidades. O quadro é cópia, mas nada impede o contrário. A
construção pode imitar um quadro, um projeto, a ponto de confundi-los.
A perspectiva, pelo próprio efeito de ilusão antecipadora, prepara a hegemo­
nia do resultado a ser admirado em relação ao processo que entra em crise. Se
olhar pelo buraco preparado por Brunelleschi no centro do quadro/constru-
ção, o expectador admirativo vê toda a cena se ordenar segundo sua visão. Ele
está no centro, na base, na origem do espetáculo — e, dissimuladamente, pela
imagem do pequeno buraco no espelho (o ponto de fuga da perspectiva), ele
/
vê seu próprio olho — ou o de Brunelleschi. E o olho do mestre que põe ordem
no visível. Do núcleo da imagem (que da representação ilusionista pode pas­
sar à antecipação minuciosa), o gênio nos olha — nos cede passageiramente
seu lugar, aquele para onde tudo deve convergir. A disposição clara das cons­
truções colocadas conforme a trama ortogonal do piso exibe a força da con­
cepção do projeto contra os imprevistos da produção livre. Como certificar
melhor a garantia da direção que pela regularidade e pela iteração dos espa­
çamentos, das bases, dos fustes, dos capitéis, das arquitraves etc — o todo com
um único ponto de vista? Como soldados bem comandados e igualmente cons­
tituídos, bem posicionados para o desfile correr bem.
A essência da ordem é isto: em vez da livre manifestação das partes no
todo coletivamente determinado, a submissão das partes à totalização deri­
vada de um só núcleo, de uma regra impositiva. Em vez das perspectivas
múltiplas (magistralmente esmiuçadas na pintura por Panofsky — porém
mal interpretadas), a perspectiva central de um só ponto de vista. No lugar
da mobilidade dos olhares sucessivos, a imobilidade da visão imperativa. No
lugar das aventuras do caminho, a retroação normativa do fim imobilizado.
A associação da ordem e da perspectiva central não é aleatória: esta assegura a
proeminência de um só; aquela sufoca a livre expressão dos outros.
Brunelleschi importa uma e outra numa conjuntura especial. Florença
saía de um momento difícil para a elite: revolta dos trabalhadores da manufa­
tura têxtil, os “unhas azuis”, o primeiro dos motins operários; depois a revolta
dos Ciompi que, na passagem do século xiv para o XV, tomaram o controle
da cidade. A construção do Duomo festejava a volta à “ordem” — momento
propício para estendê-la a outros setores, como o da construção. A arma para
garantir a nova ordem foi... a antiga ordem, ou melhor, as ordens revistas
durante sua peregrinação a Roma.
Os especialistas podem continuar a procurar causas elevadas para o retorno
às ordens: nada, mas nada mesmo no mundo das idéias legitima esse renasci­
mento do antigo. As razões dadas para isso são extremamente fracas: Roma foi
a maior, a mais sensata; todos os homens cultos gostavam de seus monumentos
que tinham belas proporções matemáticas; descendiam, através dos gregos, dos
períodos mais arcaicos da humanidade (a casa de Adão!) etc.9 De todo modo,
“essa questão do porquê não preocupava muito as pessoas até o século xvil”,10
só aparece com os tratados de Freay (1650), Perrault (1676), Cordemoy (1706)
e, sobretudo, Laugier (1753). Antes, durante mais de 200 anos, ninguém ten­
tou justificar-se. A eficácia prática era o melhor argumento.
E, no entanto, o clássico re-nascente foi, em boa parte, uma invenção do
Renascimento. Roma e Vitrúvio ofereciam um material heteróclito, cheio
de variantes e casos únicos. Cada arquiteto podia fazer sua leitura do texto
confuso e sem imagens de Vitrúvio e dos monumentos que lhe agradavam
— e elaborar, assim, sua própria versão. O conjunto canônico das cinco ordens,
seus componentes, detalhes, proporções, espaçamentos e usos foi obra de uma
série de tratados, cada um corrigindo e completando o outro: Alberti (1452),
Serlio (1537/47), Vignola (1562), Palladio (1570), Scamozzi (1615) etc.
O importante nessas ordens é o fato de conjugarem um ar de sistema e a aber­
tura às adaptações e inovações. Era possível inspirar-se no Coliseu para a fachada
de um palácio (Rucellai, Florença, Alberti), nos arcos triunfais para as igrejas (S.
Andrea, Mântua, Alberti), no Panteão para outras igrejas (S. Maria deli’Assunta,
Ariccia, Bernini) ou bibliotecas (Virginia, Charlottesville, Thomas Jefferson) — ou
partir para combinações novas: andares com ordens sobre embasamento “rústico”
(casa Raphael, Bramante), criar ordens gigantes (mais de um andar, Campidoglio
e Vaticano, Michelangelo), sobrepor fachadas (St. Giorgio Maggiore, Veneza,
Palladio), fazê-las se interpenetrarem (St. Andrea Al Quidinale, Roma, Bernini)
etc., etc. Era possível até ultrapassar os cânones, observando, entretanto, suas
estruturas de conjunto (capela Mediei, Florença, Michelangelo) — o que foi feito
até o século xx (Perret, Abramovitz, Bofill... Niemeyer).
Assim, 0 sistema permitia, por um lado, a adesão de todos, a constituição
da linguagem do ofício por consentimento dos pares; por outro lado, aceitava a
diferença, a “originalidade”, tão indispensável à concorrência desses mesmos
pares entre si. A ordem garantia tanto a construção do clube fechado quanto
a do campo de batalha entre seus membros. Essa dupla função — tratado de
entendimento e pretexto de luta — reaparece transposta nos usos que a pintura
faz dela: decoração faustuosa em Véronèse; emblema da decadência em Man­
tegna. Sua dualidade é constitutiva e seu sentido varia conforme a ocasião.

9 Ver J. Summerson, A Linguagem Clássica da Arquitetura. São Paulo: Martins Fontes,


1994» PP- 88-90.
336 10 Idem, p. 90.
Mas qual é o elemento fundamental do clássico arquitetural? Summerson
apresenta-o do seguinte modo (falando do Coliseu):

[...] maneira de combinar o sistema arquitravado (construção com vigas e


pilares) e o sistema de arcos — tratando o sistema arquitravado somente como
meio de expressão [...] tem-se aqui uma construção gramatical unitária (sic)
cuja disposição é controlada por uma ordem... que obedece apenas às suas
próprias regras estéticas tradicionais. Por outro lado, a forma e a dimensão
dos blocos por trás das colunas e dos arcos foram definidas pelas exigências da
conveniência e da construção. As duas disciplinas tiveram que ser ajustadas
harmonicamente (sic) [...] cada seqüência horizontal de arcos é enquadrada por
uma série de colunas. As séries de colunas [...] são representações da arquitetura
de templos como que esculpidos em relevo sobre uma construção que não é um
templo... construído como um sistema de arcos e de abóbadas.11

E um pouco antes:

Apesar do fato de serem, na maioria dos casos, estruturalmente inúteis,


as ordens, com cerimônia e grande elegância, dominam e controlam a
composição à qual estão associadas, tornando os edifícios expressivos.12

Essa apresentação do elemento fundamental do clássico é límpida. Dois uni­


versos sobrepostos. Dentro, a “construção... construída como um sistema de
arcos e de abóbadas”, definidos segundo a “conveniência estrutural” — isto
é, segundo as regras da tradição. Exceto que ela deve adaptar-se à ordem, ao
exterior, que obedece “somente às suas próprias regras estéticas”, como que
“esculpidas em relevo” e estruturalmente inúteis. Mas é essa segunda camada
que é responsável pela “expressão” — harmoniosa e elegante — e que domina
e controla a composição. Por trás, a massa de operários retoma seu saber fazer
desqualificado e que não mais domina a composição; na frente, os artesãos
mais qualificados seguem ao pé da letra o desenho “harmonioso e elegante”
das ordens... inúteis. A expressão própria do construtivo desaparece sob o
código dos arquitetos.
O canteiro de obras já é uma manufatura. Os meios de construção estão
todos concentrados do lado do capital, a massa dos trabalhadores vende sua
força de trabalho “livremente”, formalmente submetida, apesar da tecnologia

11 Idem, pp. 19-20.


12 Idem, p. 18.
que permaneceu tradicional embora empobrecida. Rapidamente esse modelo
produtivo e seu corolário, o clássico (que bloqueia a expressão própria do
canteiro de obras, isto é, de sua autonomia que ele destrói) ganha o mundo
inteiro. Primeiro a Europa, depois as colônias que se estabelecem por toda
/

parte. E possível divertir-se buscando “causas” para seu sucesso mundial — a


imigração dos sábios expulsos de Bizâncio, a tradução de textos latinos e gre­
gos, a erudição arqueológica... O único fenômeno contemporâneo de extensão
semelhante é a expansão do capital — comercial primeiro e depois produtivo
— desde o século xvi, em todas as direções do globo.13
A crítica literária estuda como um gênero — digamos, o romance realista
que nasce no século XVII — se globaliza, e como, diante de situações históri­
cas particulares (colônias, por exemplo), se distorce, sendo conforme ao seu
cânone apenas nas metrópoles onde nasceu (no caso do romance realista,
França e Inglaterra).14 Evidentemente, a extensão por arborescência tam­
bém existiu num ou noutro lugar, com transformações nas ramificações que
podiam desembocar em contrastes acentuados com a fonte original. A arqui­
tetura barroca colonial no Brasil é filha do clássico — mas muito, muito bas­
tarda. Porém, com todos os tropeços, é o clássico que, para utilizar uma outra
metáfora de Moretti, invadiu tudo como um maremoto, seguindo por toda
parte o avanço do capitalismo e os episódios da acumulação generalizada. Em
resumo, o clássico é a expressão e uma das molas da primeira fase do capital.
A internacionalização tão “fácil” e rápida do clássico se deve, também, à
sua própria forma, à sua dualidade “harmônica”. Construção tradicional de
um lado, ordem decorativa de outro. Os dois pólos podem variar dentro de
certos limites: canteiro de obras de escravos ou de homens “livres”, pozo-
lana ou argamassa, clássico estrito ou barroco etc. Algumas igrejas barrocas
brasileiras são feitas de taipa e, no lugar do acanto, às vezes há abacaxis;
nas regiões mais distantes, há casos de inversão dos moldes, as gravuras de
madeira do modelo metropolitano sendo, com freqüência, de leitura difícil.
Evidentemente, isso é indiscutível, há adaptações em toda parte, mas a dua­
lidade — cenário “clássico” daquele que comanda e construção submetida,
a elegância da ordem cobrindo a exploração — é uma constante estrutural
aplicada em toda a latitude do mundo atingida pelo capital. O clássico é um
universal do capital — com infinitas particularidades.

13 Ver A. F. de Mello, Marx e a globalização. S. Paulo: Boitempo, 1999, cap. 2, pp. 51-81.
14 Ver F. Moretti, “Conjunturas Sobre a Literatura Mundial”, em Contra Corrente. Rio de
Janeiro: Record, 2001, pp. 45-64 e R. Schwarz, Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas
338 Cidades, 1977.
A forma do clássico, portanto, é realmente uma abstração das relações
sociais (R. Schwarz) — relações necessárias no regime da manufatura da cons­
trução, da submissão formal do trabalho.
Por outro lado, o clássico está particularmente adaptado à economia do
capital nessa fase. O que quer ele da construção, principalmente da de luxo?
A produção de uma generosa massa de valor — que poderá voltar à construção,
para um novo ciclo, ou ir para outros setores da produção. Ora, a manufatura
clássica da construção é ideal para isso (e suas formas modernas prolongam
esse modelo). Sua estrutura dual permite produzir duas vezes a construção
— e sempre com uma composição orgânica do capital bastante suculenta. Pri­
meiro, uma massa de trabalhadores com uma força de trabalho desvalorizada,
dispondo de uma técnica tradicional, faz a parte “construção” (a que resiste).
(Porém, eles podem ser escravos: a hegemonia do capital redetermina as
outras relações de produção à sua imagem; a técnica é a tradicional no local,
qualquer uma, desde que formalmente subordinada). O material custa pouco:
tijolos, algumas pedras, entulho, terra, madeira, palha — alguns guindastes
simples, andaimes precários etc. A relação Cc/Cv é, assim, das melhores e a
violência despótica do enquadramento garante um bom ritmo nas jornadas
que se tornam mais longas. Em seguida, trabalhadores mais qualificados, e
mesmo artesãos de nível, tecem a ordem sobre o “construído”. Trabalham
com alguns materiais caros (porém, pode-se trapacear com lâminas douradas
sobre estuque ou madeira) — mas gastam muito tempo. A relação Cc/Cv é
menos impressionante que a primeira — mas ainda muito vantajosa (sem
contar o que a ordem traz para a técnica de dominação: a palavra tradicional
desaparece sob o manto da ornamentação estrangeira, nada do que aparece,
cuidadosamente detalhado pelo arquiteto, vem diretamente jdojteahailvp
creio e mesmo o artesão de luxo tem a obrigação do anonimato). Resultado,
duas massas de mais-valia em vez de uma. O que mais pode desejar a avidez
do capital?
Retomo. Nada, mas nada mesmo, legitima o renascimento do antigo
— exceto a necessidade de submeter o trabalho à exploração do capital, a
necessidade de instaurar a manufatura no lugar da cooperação simples. Não
digo que o clássico bastou para tal, longe disso. Muitas outras violências
foram necessárias. Mas nosso tema é o desenho — e ele colaborou com todas as
suas forças para essa instauração e sua continuidade. O gótico tardio preparou
o caminho afastando o desenho do canteiro de obras. Ele o atribui a um per­
sonagem separado dos outros trabalhadores, o arquiteto, e passa do desenho
construtivo ao desenho que começa a se alimentar apenas de si mesmo. Mas
os entrelaçamentos traçados com o pequeno compasso eram metonímias
359 ainda bastante próximas das curvas do grande compasso. Variações que torna-
vam mais complexas as operações envolvendo a especialização das qualifica-
ções; talvez elas aumentassem a massa de sobretrabalho, mas não cortavam a
continuidade com o canteiro tradicional — exceto, e isso é importante, quanto
à possibilidade de decisão.
Com o clássico, dá-se o salto, o corte. Mudam-se os hábitos, os usos, o hori­
zonte e as formas, o vocabulário. Decreta-se abominável o estilo “germânico”,
dos goths bárbaros. Desacreditam-se as tradições artesanais “partilhadas por
todos os operários”, desprezam-se os acordos de canteiro — ou melhor, deseja-se
suprimi-los. Passa-se da gratidão para com os “construtores de catedrais” à
difamação dos marginais incompetentes do século xvi cujo salário, evidente­
mente, desaba. Do outro lado, o do desenhista, buscam-se favores, privilégios e
isenções que o afastam das corporações. Aliás, ele não é mais mestre, formado
segundo as regras do ofício, mas vem, agora, da pintura, da escultura, da ouri­
vesaria etc. Passa para a linhagem das artes do desenho, abandona a do canteiro
de obras. E ganha a simpatia dos grandes de quem merece também a gratidão.
Porém embaixo, esse baixo cuidadosamente rebaixado, a produção ainda
tinha os mesmos braços, redivididos e acompanhados por uma grande quan­
tidade de serventes. A construção então se constitui de forma paradoxal. Ope­
rários da manufatura, submetidos à tutela da mais-valia absoluta, forçados
ao sobretrabalho, dirigidos por pessoas que se imaginam artistas liberais, se
pensam, preparam e evoluem no interior da corporação ultrapassada e deca­
dente, pressionados por baixo pelo exército de reserva dos sem-qualificação.
Esse amontoado híbrido nunca se equilibra e suas disfunções são constantes.
Sua imagem impossível nunca se estabiliza — e divide-se constantemente
em duas. Os arquitetos, se desenham as grandes linhas da construção, deta­
lham somente a ornamentação, utilizando para isso todo tipo de instrumento,
esboço, maquete, desenhos em pequena escala ou em 1:1, em pergaminho ou
nas paredes. O resto, o que resiste, continua a ser utilizado como antes, sob a
responsabilidade dos contramestres. Portanto, uma certa autonomia persiste,
ainda que incomparável à da cooperação simples — na parte que deve desa­
parecer totalmente. A ruptura maior se dá com a instauração do classicismo:
desenha-se, então, em latim codificado, fechado aos trabalhadores. Ele é
primeiramente uma “crença” arbitrária com regras infundadas cuja função
é cobrir as das tradições corporativistas, uma espécie de paulada psicológica
para ajudar a submissão do trabalho à manufatura. Mas as técnicas cobertas
pelo desprezo continuam a ser praticadas: a submissão do trabalho é apenas
formal. Assim, a nova “crença” prima pela ambigüidade: de um lado, brilha,
expõe-se ricamente; de outro, depende do que quer negar e que, entretanto,
ela faz viver clandestinamente. Através desse compromisso, garante perfeita­
540 mente sua tarefa: servir, a seu modo, à acumulação.
Uma das características da submissão apenas formal do trabalho (antes
de sua redeterminação pelo aparecimento da submissão real) é o fato dela
exigir sua restauração permanente. Nenhuma exterioridade no equipamento
da produção garante sua durabilidade. A pressão pelo sobretrabalho deve
ser exercida sem descanso, sempre retomada. Uma das formas dessa pressão
é o desenho que solapa todo respeito em relação aos hábitos dos que devem
fornecer o sobretrabalho. A desmoralização e o desânimo facilitam a submis­
são, diminuem a resistência. Donde a insistência, a repetição, a retomada da
difamação, da ironia: ridiculariza-se e deixa-se arrastar o saber anterior, pois
depende-se disso. Felizmente para o desenho, que não tem outro apoio a não
ser sua própria reiteração. Os arquitetos são, então, duplamente obrigados a
defender interminavelmente seu credo — enquanto essas condições permane­
cerem. O inesgotável debate acadêmico para encontrar a norma soberana da
ordem para servir ao soberano e a hemorragia dos tratados mostram a obses­
são para dar base à fé hipostasiada.
Acompanhemos os deslocamentos inseridos na necessidade da coisa: per­
correm estranhos meandros. No inicio, nosso herói sai de seu domicílio natal,
o desenho emigra do canteiro de obras. Aspira a um rico futuro. Distingue-se
do canteiro, marca sua diferença. Não cola mais ao canteiro que ele enuncia,
que ele anuncia. Perambula um pouco nos arredores, quer saborear sua par­
tida. Não é mais, então, simplesmente o outro do canteiro de obras, idêntico a
ele na diferença, j á tem outros amigos. Essa diferença aumentada, que acen­
tua ainda mais sua separação, deve ser manifestada por ele, uma essência sua
não pode dispensar a manifestação, sem o que ela nao é essência. O canteiro é
o outro ao qual ele não é mais tão idêntico assim. Ele deve marcar esse ângulo
de não-identidade, uma relação de força obriga. Precisa diferenciar-se clara-
/

mente do que é o diferente distante. E-lhe necessário, portanto, diferenciar-se


de sua diferença inicial — isto é, fazer disso sua forma como aparecimento,
manifestação de sua nova essência. Sua forma torna-se, assim, a diferença da
diferença de seu outro. O em-si quer se fazer para-si. O herói não pode con­
tinuar sendo somente o herdeiro permanente de seu domicílio abandonado.
Deve fazer suas próprias provas. Sua maioridade implica em cortar o cordão
umbilical (mas sem assassinato do papai capital). E-lhe necessário tornar-se
/

outro, simplesmente o outro de seu outro. E-lhe necessário, portanto, que o


primeiro ausentamento (o distanciar-se de seu domicílio) seja acompanhado
pelo ausentamento do ausentamento (resumindo, que ele fale de outra coisa
que não de sua partida). Assim, Heidegger e o rastro cruzam o destino do
desenho. Mas (agora é Benjamin que entra em cena), para que haja “aura”,
prestígio (e o desenho precisa disso: como garantir de outra maneira a ascen­
541 são do arquiteto?), é necessário que o rastro permaneça apesar de seu duplo
afastamento. Portanto, as diferenças devem desaparecer — permanecendo,
entretanto, no local. Um verdadeiro quebra-cabeça: o herói desmamado deve
/
conservar a lembrança do leite materno. E isto: para apagar sua primeira
diferença em relação ao canteiro de obras, cuja rudeza proclamada não deve
manchar sua árvore genealógica (a simples alteridade mostraria que, apesar
de tudo, ele tem um pé na cozinha), para se diferenciar, pois, dessa diferença.
em princípio tudo é válido. O desenho poderia, por exemplo, copiar homens
(Michelangelo sonhou com um edifício de alguns andares em forma de um
gigante sentado, deixando sair fumaça pelo nariz e sons de sino pela boca),
dragões (Gaudí fez isso), grutas (o maneirismo também o fez) ou qualquer
/

outra coisa. Mas a “aura” baseada no rastro teria ido água abaixo. E preciso
ainda, portanto, que sua diferença da diferença permaneça em seu lugar, no
mundo da construção. Mas não como retorno à presença do que fora apa­
gado, o rastro não é vestígio (e eis que surge Derrida). Portanto, não se trata
absolutamente de se referir ao canteiro de obras abandonado. Ao contrário, é
o ausentamento, o não-ser aí que deve atraí-lo. Restam então duas saídas: o
“neo” ou o “não ainda”. O neo-antigo — o clássico — ou a utopia, as duas tetas
do desenho do... renascimento (palavra que reúne os dois, passado e futuro, o
passado como futuro).
Em outros termos: o desenho assume sua forma interiorizando a forma de
sua relação com o canteiro, a serviço do capital manufatureiro. Trata-se para
ele de ajudar, através de seus meios específicos, a submeter o trabalho sem
mudá-lo substancialmente. Para dominar, ele não pode ficar na dependência
de um canteiro de obras que, em si, não precisa dele (enquanto separado).
Se permanecer como desenho adaptado, como momento que apenas reflete,
ele não sairá da dependência. Duplica, pois, a separação. Vai olhar em outro
lugar. E impõe, por meio de seu poder prescritivo, um desenho que não é
sequer parecido com aquele que o canteiro teria podido desenvolver por
seus próprios meios. Cria, assim, uma dependência inversa propondo formas
incoerentes com as virtualidades do canteiro de obras e que não possam ser
facilmente absorvidas. Portanto, um desenho de uma outra arquitetura — o
clássico. Como só é apto ao que sabe fazer, o canteiro faz em seus termos tradi­
cionais o que deve resistir. Questão elementar de prudência. Quanto ao resto,
a ornamentação, ele não tem nenhuma responsabilidade técnica. Pode, pois,
ser realizado por imitação, com objetos heteróclitos, com os recursos da ilusão
— prolongados indefinidamente pelo estuque e pela pintura.

Se a adoção do modelo clássico como conjunto de regras substitutivas não tem


outro fundamento que não a adesão de quem o adota, uma retorção de estrutura
342 o obriga a retornos sobre o substituído. Olhemos de perto as estruturas clássicas.
3 A estrutura fundamental é a seguinte:
1. base, pedestal, estilobato ou o solo nu
3. fuste da coluna
5. axquitrave ou frontão do telhado
/
E o esquema da “casa de Adão”: 1 sustenta 3, que sustenta 5.

A estrutura fundamental ganha dois novos elementos interme­


diários.
2. a base da coluna
4. o capitel
1 sustenta 2, que sustenta 3, que sustenta 4, que sustenta 5.
/

E assim que Palladio representa a ordem toscana — e o “purista”


Inigo Jones realiza em Saint Paul, Covent Garden.

A estrutura torna-se complexa; aparentemente, há uma sucessão


perfeita dos elementos, cada um apoiando-se no precedente e
servindo de apoio para o seguinte, sendo sucessivamente susten­
tado e sustentador.
1. o pedestal sustenta
2. a base que sustenta
3. a coluna que sustenta
4. o capitel que sustenta
5. a arquitrave.

No interior, o mesmo desenho — porém, gravado no bloco que


verdadeiramente trabalha:
A. a base (ou solo) sustenta
B. a pilastra que sustenta
c. o capitel que sustenta
D. o arco que sustenta
E. a chave da abóbada.

Quando se aproxima dos detalhes, a mesma seqüência recomeça:


a. a gola reversa sustenta
b. o plinto que sustenta
c. o toro de coluna que sustenta
d. o astrágalo que...

545
Essas seqüências cumulativas, seus detalhes, suas proporções e espaçamentos
constituem a gramática das ordens e são bem codificadas. Pode-se discutir
sobre isso ou aquilo (se é necessário um ábaco sobre o equino, gotas ou o
tríglifo, dentículos ou não etc). Mas a estrutura dividida em cinco ordens
mantém-se permanente. Em toda parte, encontra-se essa seqüência desconti­
nua de elementos que sustentam e são sustentados e que formam o todo.
Alguém um pouco familiarizado com o canteiro de obras “sente” ime­
diatamente o parentesco dessa estrutura com a da progressão da construção
numa manufatura serial ideal (aliás, a função de um esquema em Kant é
assegurar o trânsito entre apercepção e conceito): acumulação ordenada da
sucessão das equipes de trabalho especializado, cada uma servindo de apoio
para a seguinte e apoiada na anterior — ou no solo. Ideal porque a técnica de
dominação do canteiro de obras atrapalha obrigatoriamente essa seqüên­
cia ideal.15 Portanto, estrutura limpa, purificada — no entanto, estrutura da
manufatura. As ordens contam o que a construção teria podido ser se... Nesse
exemplo (que não deve ser generalizado), mesmo a construção real, a que
resiste efetivamente, submete-se aos mesmos princípios. Mas duas coisas
denunciam o artifício: a profundidade do pilar, fixado por considerações de
resistência e não pelas proporções da ordem, e a repetição, denunciando dis-
cretamente o desdobramento da edificação.
A “aura” está garantida. O arquiteto não é nem um louco genial, como
Gaudí (que, além disso, morava no canteiro de obras), nem um megaloma­
níaco sempre tentando ultrapassar as normas, como Michelangelo, mas \im
respeitável arquiteto que conhece todos os meandros de seu ofício (Vignola).
A separação do desenho é desviada (e negada) por essa volta ao construtivo
— que, contudo, não é o efetivo. Afastamento e afastamento do afastamento.
O desenho serve para retornar — alhures mas no local, o que Foucault teria
podido identificar com uma heterotopia. Igualmente, os hermeneutas de
Vitrúvio destacam sempre o mito da casa primitiva de madeira cuja transcri­
ção de pedra seria o templo grego. A função substitutiva das ordens faz parte
da memória que elas carregam desde a origem — elas são renascimento de
um antes mítico. Colocam um pressuposto do qual são a transcrição ideali-
zadora. Philibert de 1’Orme, que viveu pessoalmente a passagem do mestre
talhador de pedra a arquiteto, ainda bastante inexperiente nas sutilezas do
ofício, cometeu o lapso de desenhar uma coluna/tronco de árvore, não com­
preendendo que o importante é a transcrição, a distância em relação ao verda­
deiro texto. Mais próximo de nós, Artigas o fez de verdade, em um momento

15 Ver “O canteiro e o desenho”, capítulo “O canteiro”, p. 112 desta edição.


de desânimo, desvelando as coisas. O importante aqui é que um significante
tome o lugar de um outro, o que, no contexto da construção, não é uma metá­
fora mas, sim, uma mentira.
Na época da introdução do clássico, estava-se familiarizado com as mil-
folhas das significações. Dante foi um mestre em anagogias — e, depois, a
mania percorreu os séculos... (Ticiano — ver as análises de Panofsky; Veláz­
quez — ver as minhas, em “La Trace”, 1999, Manet, Joyce, Freud e Borges).
Fazendo um longo desvio e um retorno ao mito, à razão grega, à virtu romana,
pulando a horrível autonomia do canteiro de obras medieval, saudando a
construção ideal sem se sujar com nenhuma presença, insistindo em seu
não-ser aí, a ordem assegurava a “aura” necessária. E, em uma seqüência em
abismo, a estrutura da manufatura corrigida, retomada de forma maníaca em
todos os detalhes, castrada pela intervenção do próprio desenho. O herói volta
à cena do crime, inevitavelmente.
A submissão formal do trabalho numa produção quase sempre elementar
requer uma boa dose de irracionalidade técnica — mas que, desse modo, é
racionalidade para o capital. E necessário, principalmente, introduzi-la na
própria alma do processo produtivo manufatureiro: ela é de tal forma banal,
evidente que, a descoberto, tornaria a submissão arriscada. Ora, essa alma é
a sequência lógica das equipes especializadas, ponto final. Quase todo projeto,
portanto, embaralha, retorce, mistura, obscurece essa seqüência — é 0 alvo
inconsciente do desenho separado. Em meus cursos sobre projeto, constante­
mente digo isto: uma plástica da seqüência lógica das equipes é um (pequeno)
passo indispensável para superar a atual relação de exploração no canteiro
de obras. A “carta roubada” de Poe diz o seguinte: a melhor maneira de
se esconder um segredo comprometedor é deixando-o à vista. De qualquer
forma, os mais aptos a ler a estrutura das ordens — os arquitetos — não têm
nenhum interesse em fazê-lo.
Façamos um resumo da posição de nossos atores, no final desse ato, por
víW dvhnmíir anuir alr sdumV XVm: Operários (é preciso começar por eles,
que produzem o sangue, a essência, a mais-valia), que arrastam uma técnica
em relativa decadência e fundamentalmente datada da época da corporação,
são formalmente submetidos à manufatura da construção — cuja simplicidade
mesma impõe à dominação do capital uma mistura de violência para baixo
(com a ajuda não muito “liberal” do Estado) e manipulações plástico/simbó­
licas cujo eixo é a ordem, da qual se encarrega o arquiteto, artista “liberal”.
Os mais conhecidos dentre eles fazem os operários produzirem suntuosos
palácios, mansões, igrejas que são todos vendidos — diretamente, quando a
situação dos príncipes, duques, bispos o exige, ou indiretamente, sob a forma
de “aluguéis” disfarçados pela igreja (batizados, casamentos, comemorações,
coroamentos pagos) — tudo isso com grande lucro, pois a composição orgânica
do capital das produções de luxo é sempre paradisíaca. Já não é muito claro
esse conjunto. Entra, agora, um novo par, a indústria e seu “cientista”, os
quais não desalojam a manufatura nem sua base arcaica, mas a deslocam, a
desorientam, a embaralham. Em resumo, a mais-valia relativa e a submissão
real do trabalho vêm à superfície. Tudo muda em volta da construção que,
perplexa, se dá mal.

A FUNÇÃO MODELADORA DO DESENHO NO RENASCIMENTO

Em LImaginaire, Sartre opõe percepção e imaginação, semelhantes exceto


no fato de que o peso do ser-aí da coisa visada falta à imagem. Essa falta não
é neutra e liberta a imagem de qualquer responsabilidade quanto à existên­
cia de seu referente. Trata de modo igual o passado e o possível, o desejado
e o preocupante. Em Corrège, por exemplo, nem o voo dos anjos, nem a
solidez dos soclos de nuvens podem chocar-nos. O crivo da prova da reali­
dade não limita seu campo: a verossimilhança pode bastar-lhe amplamente.
Signo enquanto trampolim para o ausente que, mesmo sendo arbitrário,
lhe convém.
A imagem, quando representada, ainda tem outros trunfos em seu jogo: a
astúcia mais sutil derivando do fato de que ela própria deve ser percebida. O
que falta lhe vem “pelos lados” — sem que, apesar disso, sua credibilidade seja
abalada. Para ver o Cristo de Grünewald (melhor que numa foto), é neces­
sário ir a Colmar. No entanto, estando lá, a quem dirigir o olhar? Ao Cristo,
a São João, à Virgem, à Madalena? Ou ao quadro, ao suporte da pintura, a
alguns traços, a algumas cores? O olhar, apesar de tudo, filtra os meios de pro­
dução da pintura para se entregar ao fascínio. Mas sem prestar atenção nisso,
a espessura da matéria empresta sua opacidade à dor. A inclusão da percepção
em seu seio instala o imaginário em uma ambigüidade valorizadora: a falta
de ser do que ele nos oferece (e que o abre às pressões do desejo) ganha por
transferência um pouco da segurança do ser-aí.
Essa estrutura bipolar da imagem representada afirma seu poder; o status
de simulacro (segundo M. Arrivé) de seu referente permite-lhe uma extensão
que vai muito além do verdadeiro ou do real; o empréstimo da densidade
atual do percebido assegura-lhe uma quase existência (notemos que a discri­
ção dos meios de produção não é sempre exigida: em Rembrandt, por exem­
plo, a matéria exacerbada aguça a sedução da imagem mais do que a sobrie­
dade de um Zurbaran).
Em outros termos e num vocabulário mais preciso: a imagem pode nos
346 pregar peças desconcertantes quando orienta suas dimensões para universos
semânticos divergentes. No seio de um mesmo signo plástico, pode se instalar
a contradição: o que ele assume em si mesmo de seu objeto dinâmico (dimen­
são icônica da semelhança, no sentido de Peirce) pode negar o que ele denota
pelas marcas que lhe foram realmente atribuídas pelo mesmo ou por um
outro objeto dinâmico (dimensão indiciai do rastro) — ou ainda aquilo a que
ele remete por convenção (dimensão simbólica do código).
Um dos exemplos mais surpreendentes de heterotopia conflitual dessas
dimensões é a Guernica de Picasso. A revolta contra a barbárie é expressa no
nível simbólico e no primeiro estrato icônico ao qual Peirce reserva o termo
imagem: aqui, as mulheres deformadas pelo sofrimento, o cavalo ferido etc...
A isso se opõe a sobriedade do gesto que desenha (numa espécie de
indiciai, o traço aparece frio, controlado), assim como o equilíbrio estável
em pirâmide da composição (segundo estrato icônico: o diagrama). Enfim, a
“imagem” e o “símbolo” se chocam ainda, metaforicamente dessa vez, com a
evocação da indiferença da mídia pelo tratamento em preto e branco, como
na imprensa jornalística (terceiro estrato icônico: a metáfora). O enorme
sucesso de Guernica, como o de Apocalypse Now de Coppola, decorre, a meu
ver, de sua estrutura contraditória: a revolta, finalmente, é apenas aparente;
por baixo, pelos caminhos que habitualmente escapam à censura, passa a
adaptação, e mesmo a adesão à violência que a hipocrisia social excita sob o
pretexto da condenação.

PALI MPS ESTO

Esse condensado à guisa de introdução facilitará, espero, a passagem a nosso


tema: a idéia construtiva no desenho de arquitetura, particularmente no
Renascimento.
Meu exemplo é quase demonstrativo demais: sobre a aparelhagem e a
estrutura em tijolos, Palladio fez gravar a imagem de uma rouRtrurfio. “UA*,
sica” de pedra. O desgaste do revestimento revelou o palimpsesto: a constru­
ção “verdadeira” não está mais escondida para o visitante de Vicenza de hoje.

Resumo minhas hipóteses.


No Renascimento, o arquiteto emerge claramente acima do corpo produ­
tivo. Essa ascensão é apenas um dos aspectos da luta, não acabada ainda hoje,
pela dominação do trabalho no canteiro de obras. Progressivamente (visto
que se acredita no progresso que teria resultado dessa transformação), o corpo
produtivo será subjugado e adaptado às coerções da exploração. As relações
de produção na época da construção da catedral de Chartres, tal como as des­
347 creve James, desaparecerão em favor da organização manufatureira de produ-
Ção. No século xvi, o processo de transformação atravessa um de seus períodos
mais conflituosos. Por um lado, os trabalhadores não conseguem frear sua
decadência social, ilustrada por seus salários que não representam mais que
a metade do que ganhavam no século xiv — embora a densidade e a duração
da jornada de trabalho aumentem sempre. Por outro lado, a expulsão de cam­
poneses de suas terras e as diversas legislações contra a vagabundagem levam
as massas não qualificadas às portas dos canteiros de obras. A associação de
operários de um mesmo ofício tenta responder a esta dupla ameaça: a conser­
vação enciumada do saber fazer (arma contra o esmagamento já que é indis­
pensável à produção) protege-os contra as ambições excessivas dos arquitetos;
a preservação dos mercados através de manobras variadas, às vezes violentas,
impede a invasão dos canteiros por muita gente não qualificada. Atacados por
cima e por baixo, os artesãos ilustram as fortes tensões da época.
Ora, se o arquiteto deseja assegurar sua hegemonia sobre o corpo produ­
tivo e se se obstina contra as veleidades de autonomia, seu obstáculo mais
pernicioso continua sendo o saber fazer, aval da resistência dos trabalhadores.
Sem ele, nada de construção. Mas reconhecê-lo seria um suicídio.
O pior é que, diante desse saber fazer, o arquiteto só dispõe de um substi­
tuto de saber próprio: as variações acerca do impraticável Vitrúvio.
Até o nascimento das ciências da construção, no início do século XIX, as
academias ruminarão seu texto sem nunca conseguir dar corpo a uma verda­
deira “arquiteturologia” (anêmica ainda hoje).
Mas resta um trunfo não desprezível: as esquivas do desenho. Despistei
seus préstimos principalmente pela negação e/ou pela humilhação do saber
fazer — mas ele esconde outras possibilidades.
Por comodidade, retomemos novamente o palácio Thiene.
Coisa evidente, sobre a massa construída em alvenaria, a impressão do
desenho “clássico” age como uma imagem: remete a algo diferente de seu
suporte, algo inatual; descreve um comportamento fictício da matéria. Falta-
lhe ser. Como no detalhe muito freqüente até o século XIX, o falso desenho
das arquitraves:

348
Cada vez que o talho real não é apagado (por sua própria precisão ou pelo
revestimento), o talho aparente se desloca para a pura imagem: a arquitrave
lisa não está ali.
Ou ainda como para a colunata de Perrault no Louvre ou para o pórtico
de Soufflot no Panthéon: o “construído” mostrado é sempre digno de crédito,
embora nenhuma pedra possa suportar as pressões correspondentes. O dese­
nho gravado captura, atrai convicção. Escapa às provas da realidade. Há tantos
anjos na arquitetura quanto nos tetos de Pozzo. Como no caso do quadro, a
imagem é percebida. Mas novamente a transposição se efetuará de viés.
No primeiro estrato icônico, a imagem do desenho que Palladio faz gravar
/

mostra uma alvenaria “clássica” verossímil. E, portanto, signo de um pos­


sível e não apenas prescrição construtiva que se teria afundado na matéria
informada. Flutua na pele que ele fere. Em certos detalhes, como no enqua­
dramento dos vãos das janelas das fachadas externas, esse desdobramento é
explicitado pelo próprio Palladio. A referência à ordem “bestial” evidencia
a independência do desenho e do suporte. O descolamento é essencial para a
afirmação do desenho enquanto signo: todo signo afasta seu objeto e toma seu
lugar. Examinando-se bem, toda arquitetura não popular deixa adivinhar sua
estrutura em palimpsesto.

RASTROS16

Para desvelar as camadas do rastro, impõe-se um desvio.


;

E no século xvi que o rastro tem acesso ao status de signo e somente depois
de seu necessário deslocamento para um outro campo plástico. Michelangelo
e Tintoretto são os primeiros a utilizar os vestígios do processo de produção
como um significante múltiplo: índices de mestria, ícones de um movimento
/

urgente da criação, símbolos negativos da transcendência da idéia. E somente


depois, num movimento de retroação típico do desenvolvimento semiótico,
que o apagamento das marcas do canteiro de obras pelo revestimento branco
de Brunelleschi pode ser lido como desrespeito em relação ao trabalho.
O primeiro nível do rastro, o registro do modo de construção “real”, aqui a
alvenaria de tijolos de barro, denota para nós e já para o homem do século xvi
a eficácia da prática e as competências reunidas no saber fazer operário.
O segundo plano é negativo: o apagamento pelo revestimento.
O terceiro (falsa pedra) disfarça o primeiro introduzindo, ao mesmo tempo,

16 Dentre as várias possibilidades para se traduzir a palavra “trace”, optamos por “rastro”
349 de acordo com a tradução da obra de Walter Benjamin para o português [n.t.].
outros rastros. Indica um saber que comanda, um poder que torna o canteiro
de obras heterônimo, uma regularidade oposta às aproximações típicas da
manufatura da construção.
Observemos que esses três níveis são necessários para a leitura da trama
de significações que o rastro contém. As deteriorações do tempo, se nos aju­
dam no palácio Thiene, nem sempre são indispensáveis. Em San Giorgio (de
Veneza), o próprio Palladio mostra-nos os três níveis (oposição entre fachada
principal e lateral): por economia sem dúvida, mas todo ato humano é sobre-
determinado. Como em Michelangelo, apenas no terceiro nível a transcen­
dência é indicada.
No nível simbólico, que as explicações embaralhadas das iconologias na
moda tecem inextricavelmente, a Ordem, mais que um universo semântico
preciso, assinala a exclusão dos que desconhecem a convenção que a funda­
menta. No mito claudicante do tipo “o coríntio e a moça”, o jargão privado
serve apenas para criar a ilusão de positividade e para dar corpo à sua oposição.

ÍCONE

Mas, entre os estratos icônicos, resta-nos mencionar que se esconde uma dis­
puta de interesses mais determinante. Enquanto diagrama (segundo estrato
icônico, conforme Peirce), o desenho apresenta-se como signo que teria
assumido em si as características abstratas de seu hipotético objeto dinâmico.
Este objeto implica uma racionalidade sugerida pelo jogo das proporções, dos
módulos, das modinaturas etc. e, por sua estruturação fechada, gama de rela­
ções de dependência, de exclusão, de oposição. Em outros termos, o desenho
apresenta-se como um modelo para o que mais falta aos arquitetos: o saber.
Um modelo conceituai (e não apenas operatório) como aqueles que Lévi-
Strauss identifica na raiz da estrutura dos mitos.
O desenho no Renascimento pode reduzir-se, em parte, a essa função. Ele
insiste em seu papel de signo (“imagem”): presença aspirada por um alhu­
res. Tem uma conformação que se impõe à mente e tende à invariância, mas
deixa fluido seu universo semântico. Ele é plausível, mas evita confundir-se
com a construção efetiva. Seu ar de eficácia relativa encontra a pertinên­
cia “acolchoada” (cf. Lacan) do simbólico: emergindo da evidência, mas
autônoma em sua formação. No interior de sua quase total tautologia (todo
desenho de arquitetura se volta para a autotelia), uma artimanha o salva da
insignificância: se ele prescreve a precedência do que anula em parte seu pri­
meiro emprego prescritivo (isto é, da “imagem” sobre a construção “verda­
deira” que, entretanto, ele comanda), o resultado em palimpsesto preserva a
350 diferença exigida por todo conceito.
A idéia construtiva que o desenho exalta — e que nunca é a que faz a
construção resistir — é mantida num status intermediário. Por um lado, ela
se propõe como objetivaçao da estrutura formal dos termos descritivos de
uma teoria suposta existente; por outro, como esquematização da realidade
— posição intermediária que convém aos modelos. Através de algumas de suas
marcas, ela se impregna do pathos da matéria em formação; através de outras,
aproxima-se da abstração do logos. Essa pulsação própria de seu ser a predis­
põe aos jogos do desejo: a modelização formal seria a ponte por onde um além
fantasmado viria corrigir a ilegitimidade do arquiteto.
E é então que intervém a possibilidade mais deliciosa — mas também a
mais exigente — do desenho; por intermédio da equação metafórica (terceiro
estrato icônico), seu pathos formal, sua imposição ao espírito toma o lugar do
logos que ele deveria apenas anunciar. Simples questão de um significante no
lugar de um outro. Exceto que o segundo significante é somente uma fabula-
ção. A metáfora torna-se então uma peça de encaixe por onde o desenho vem
a ocupar o vazio do saber desejado. O modelo que ele oferece, figura da media­
ção entre teoria e realidade, cai para o lado do ídolo propiciatório... Mas o
divino logos permanece mudo. A tensão, apesar dc todo o apoio das argúcias do
talento eventual, não é suficiente para fazer surgir ex nihilo o termo ausente.
Porém, a promoção do desenho/modelo acima do esquivamento do saber
fascina. O aspecto de evidência do desenho ganha até uma aura na incerteza
de sua posição: o mistério enfeitiça. E é essa aura que garante a eficácia rela­
tiva da metáfora, único aval da profissão.
Infelizmente, a claudicação que marca impede a assunção efetiva da arqui­
tetura à dignidade de sujeito ao qual corresponderia por direito o domínio
lúcido do construído. Ela o condena, ao contrário, à sujeição aos mecanismos
do eu autoritário. A violência não se retrairá sob a sedução do mérito.
“Palladio” substitui “de la Gôndola” por Andrea como, mais tarde, “Le
Corbusier” apagará “Jeanneret”.
Não se brinca com a metáfora.

0 PALIMPSESTO DO PALÁCIO THIENE

... saber parecerfaz parte da maestria. [Nietzsche]17

A alguns metros da avenida Andrea Palladio, na avenida Monte Contra Porti,


em Vicenza, o palácio Thiene perde sua pele. Efeito do tempo, mas talvez

351 17 F. Nietzsche, Ecce Homo: como alguém se torna o que é. São Paulo: Cia das Letras, 1995.
também da verdade (questão de aparência, com freqüência) desse expediente
vicioso, o revestimento.
Porém, mesmo descobertas, essas paredes nos confundem. Como em
sobreimpressão, duas aparelhagens propõem-se à nossa leitura. A mais apa­
rente, marcada pelos recuos profundos das guarnições, descreve-nos uma téc­
nica erudita do talho e da junção da “pedra”, exuberante como em Giuglio
Romano, co-autor ou inspirador desse projeto.18 Embaixo, entretanto, uma
outra aparelhagem, desta vez de tijolos, mais discreta, informa-nos em sur­
dina sobre o saber fazer dos pedreiros italianos do século xvi.
Dois saberes, duas técnicas. Por quê?
Por que essas “pedras” gravadas na terra dos tijolos? Por que esse palimp-
sesto?
Palladio, em seu comentário a respeito do palácio Thiene, chama a
atenção para a oposição entre o rústico do primeiro nível e o compósito do
segundo.19 Oposição radical, nítida, que assume os termos extremos na série
das Ordens e afasta as mediações, as passagens, as atenuações.
As motivações que apoiam tal oposição são claras mesmo para Palladio (ver
ainda o Livro Segundo, no início). O código das ordens, depois de Alberti, e
principalmente depois de Serlio, era de uso corrente. Desse modo, o compósito
(essa ordem “extremamente bela”, nos diz ele) só deve servir como ornamenta­
ção para o andar dos senhores, como “substituto” de metáfora de sua grandeza.

[...] O classicismo era considerado o patrimônio cultural próprio e exclusivo


da classe dirigente.20

Quanto ao rústico, sempre no interior desse código de elite, ele se aproxima


da ordine bestiale, popular e vulgar.21
Oposição de Ordens que representa, pois, a oposição das classes, decidida
de forma categórica, intransponível. Deslocamento também que transforma
a contradição social em confronto semiótico — e cujo papel de negação, como
veremos, é claramente designado pelas edículas externas do segundo plano. De
fato, se uma reconciliação qualquer, mesmo imaginária, fosse suposta possível

18 X S. Ackerman, Palladio. Londres: Penguin, 1991, p. 94.


19 A. Palladio, Les Quatre Livres d'Architecture, Livro Segundo. Paris, 1997.
20 G. C. Argan, “Palladio ed Palladianessimo”, em Architettura e Utopia nella Venezia del
Cinquecento. Milão: Electa, 1980, p. 11.
21 M. Tafuri, Jacopo Sansovino e VArchitettura deV$oo a Venezia, Pádua: Marsilo, 1969.
352 pp. 127/135.
ou desejável, essas coberturas — de onde os senhores podem considerar o vulgar,
fronteiras entre o dentro e o fora da fortuna — seriam o suporte indicado para
representá-la. Ora, as colunas já mostram que a justaposição do jónico e do rús­
tico não produz continuidade nem harmonia. Mas sobretudo a cimalha, com­
pletamente absurda em seu desenho (como na porta xvm do Libro delle Porte,
de Serlio), tornaria uma veleidade qualquer esboço de intenção nesse sentido.
O deslocamento não busca contornar a contradição (estamos, pois, longe do
mito), mas apenas transcrevê-la, com uma insistência sintomática e agressiva.
Nova questão portanto: por que esse deslocamento?
O que separa as novas classes umas das outras, desde esse século xvi em
que começamos a ser o que somos, é um dado de ordem puramente jurídica:
ter ou não ter a propriedade — fraca base para a pretensa diferença que justifi­
caria a hegemonia da burguesia.
/

E pouco — mas é tudo o de que ela dispõe para garantir sua dominação. Só
a posse assegura a supremacia, mesmo que assuma, para se tornar intocável,
todos os meandros do engodo.
Impõe-se, pois, uma dupla implicação: afirmar o ter (o poder deve mos­
trar-se) mas, igualmente, tentar ampliar suas conotações. Em outras palavras,
manifestar fundamentalmente o ter (riqueza) e, por meio das aliterações, dos
espelhos e de outras farsas, usurpar significados mais apreciáveis.
Voltemos às coisas mais elementares. A fonte mais copiosa de mais-valia
é a manufatura da construção — os construtores de catedrais já sabiam disso.
O conceito bastardo de “especulação” quase sempre foi impróprio para per­
ceber as questões da construção (é por isso, sem dúvida, que se fala tanto de
especulação). Uma parte imensa do que constitui a substância do ter vem do
canteiro de obras. E o que é verdade hoje era muito mais verdadeiro então,
quando os outros setores da produção eram pouco numerosos e/ou pouco
desenvolvidos. Mais ainda: é nos palácios que a composição orgânica do capi­
tal é mais favorável para os que conservam a posse do trabalho morto acumu­
lado. O luxo aqui, ao contrário do que diz a crítica de Veblen,22 se é ostensivo,
nao consiste em desperdício e, sim, no mais rentável dos negócios.
Qual seria então o meio mais adequado para ostentar o poder de uma
classe, se não do próprio edifício, simultaneamente fonte e quadro da riqueza?
Qual a melhor promoção da riqueza que a ostentação manifesta de sua fonte:
o trabalho condensado na construção, o esforço suado daqueles que, precisa­
mente, são desprovidos da riqueza? E ainda que a proveniência da riqueza seja
outra, como não louvar essas pedras que a frutificam magnificamente?

22 T. Veblen, Teoria da classe ociosa., op. cit.


Mas, ao mesmo tempo, como valorizar o trabalho sem... o valorizar? Isto
é, sem aumentar os salários, sem reconhecer o saber fazer dos operários?
Como valorizar e reconhecer sem perder, através do mesmo movimento, as
raízes do poder?
Insere-se aqui um outro deslocamento, no tempo desta vez: o trabalho
passado pode servir sem perigo de panegírico para o louvor da apropriação no
presente. Trabalho extorquido sempre — mas desviado; nenhum perigo, pois.
de reivindicação de salário. Deslocamentos: da contradição real para a oposi­
ção semiótica; da sincronia problemática (canteiro de obras) para a diacronia
enganosa (antiguidade...).
O classicismo produz um efeito de miragem. Indica ainda uma construção
convincente — que não é, porém, a verdadeira (o que já acontecia em Roma).
Ou melhor, sim, pois o que vemos foi, entretanto, construído, exceto que o
dispositivo aparelhado que se apresenta aos nossos olhos compõe-se de modo
completamente diferente da primeira aparência. As paredes de tijolos (e algu­
mas pedras) são fabricadas segundo a técnica do século xvi — mas essas mes­
mas paredes propõem formas onde se desenham colunas, pilastras, cimalhas
etc., cuja imagem sugere um outro funcionamento da matéria e, portanto, do
trabalho que aí se encontra coagulado. Signos que, no caso, estão literalmente
“no lugar de...”. O clássico, do século xv ao século XVI, realiza esta proeza: falar
de construção sem falar da que lhe serve de suporte. Fazemos hoje o mesmo
jogo, mas — fiquemos orgulhosos — com outros meios.
Esse efeito de distância que os signos abrem havia sido associado, na tradi­
ção de Platão, à grandeza. Assim, por exemplo, o rústico — variante atenuada
do bestial (composto de sassifatti da natura, che hannoforma di besti, como
diz Serlio no proêmio do Libro delle Porte) — ainda está, aparentemente,
muito próximo da matéria, revela os meios de produção — mas, nesse caso,
para representar (isto é, esconder/mostrar) o povo. Se a matéria volta nova­
mente em Michelangelo ou em Ticiano, é porque foi enobrecida e elevada ao
índice do status inefável da idéia.

Quanto mais se liberta da matéria, mais nobre é a realidade.23

Em contrapartida, no interior desse código das distâncias, o compósito dos mes­


tres, a mais elaborada das ordens, reclama o liso e o regular: rastros negativos de
um sobretrabalho cujo objetivo é afastar os riscos de sua presença — mas não as
vantagens de sua passagem. Então investida em excesso, a matéria desaparece.

354 23 M. Ficino, Théologie platonicienne, I, Livro vil, cap. 13, pp. 282-83.
Tudo está aí — mas não funciona.
Não falemos dos senhores: é o capital que age por trás de sua máscara. O
palácio Thiene passa, sem mudar um único de seus vestígios, do conde Marco
Antônio ao conde Otávio (e depois a muitos outros). Os palácios são muito
distintos, mas nunca personalizados: quando os senhores querem se mostrar, é
apenas sua posição que aparece.
Os arquitetos também estão envolvidos nisso. Delegados do capital, são
apenas um intermediário por onde deve passar necessariamente a explora­
ção do canteiro de obras. A heteronomia a que submetem os trabalhadores
ricocheteia e volta sobre eles. Seus desenhos organizam-se em torno de uma
denegação, a que incide sobre a mutilação do trabalho que essas paredes
esfoladas mostram. Como não podem se reconhecer na figura de um dos
responsáveis pela violência, como sujeitos dessas prescrições castradoras, eles
abandonam, em toda parte, essa posição.
Tal abandono está inscrito na própria estrutura das relações que tecem
com o canteiro.
O poder que, finalmente, os arquitetos obtêm no tempo de Palladio só se jus­
tifica através de um suposto saber — que eles anunciam, do qual se vangloriam,
que pretendem dominar (basta ler os tratados da época). Ora, esse saber é vazio.
Lembremos que, para justificá-lo bem, esse saber não pode ser o dos operários
(nem mesmo sua soma: apenas a síntese semicientífica do século xrx se prestará
a tal utilização). Ele precisa, portanto, vestir-se com as armadilhas do engodo.
Olhem novamente essas fachadas. O assentamento dos tijolos já segue um
desenho estranho a esse material. Mas depois, pedreiros (talvez os mesmos)
devem voltar e revestir, desfigurar o que fizeram com entalhes de uma falsa
aparelhagem, de uma estereotomia de faz de conta. Fazer e desmanchar,
construir e disfarçar: essa aparente futilidade quer, de fato, humilhar, aviltar.
Enquanto permanecer apenas como uma fantasmagoria, como uma retomada
exaustiva do mesmo inventário das ordens, o saber arquitetural só poderá
se impor através da oposição ao saber fazer operário, e sua dominação será
somente o corolário da degradação que ele impõe ao trabalho. Os perfumes
arqueológicos, por exemplo, servirão somente para marcar com desprezo os
que delas são excluídos.24
Podemos admitir que Brunelleschi ou Alberti (que, aliás, tinham outros
trunfos na manga) ainda acreditavam na universalidade e na consistência
do clássico como resposta oblíqua à carência de um saber. Mas cedo, e muito
cedo mesmo no Renascimento, desde que os arquitetos se debruçam mais lon-

355 24. M. Tafuri, LArchitettura delVUmanessimo. Bari: Laterza, 1972, p. 21.


gamente sobre as ruínas e sobre os Dez livros de Vitrúvio (é por aí, aliás, que
começam os Quatro livros), esse saber perde em clareza e se dispersa. Dürer e
o retardatário Lomazzo (que, aliás, copia um outro, Giuglio Camilo) tentam,
como último recurso, uma classificação para suas diferentes possibilidades de
existência: isto é, abandonam a esperança de encontrar o saber.25
Além disso, Palladio conhece o ofício de construtor. Não pode não sentir
a enorme distância de qualidade, de pertinência que separa o saber fazer dos
operários daquilo que ele diz saber a mais. Ele fareja seu engodo: Vitrúvio
permanece confuso e os Templos não se harmonizam com ele. Toda vez que
é chamado por qualquer Thiene, para quem ele deve exercer saber e poder,
como responder?
Porque essa exigência de uma norma absoluta não angustia senão os
arquitetos do Renascimento: sua decepção em relação aos clássicos indica, de­
forma muito evidente, um traço fundamental daquilo que são levados a ser.
Sem mensagem possível — visto que o último pacto, o das corporações,
desapareceu quando surgiu o arquiteto, e visto que, nas entrelinhas das pseu-
dometáforas (da linguagem clássica), a prescrição implica o desconhecimento
do outro (o operário) a quem a mensagem é dirigida - confina-se em torno do
código. A oposição das ordens é muito mais uma questão de léxico e/ou de gra­
mática que de retórica. Harmonia, ritmo, proporção etc. agem aqui como aná­
foras encarregadas de reenviar os significantes sobre si mesmos. No lugar da
mensagem emerge a ordem (em todos os sentidos do termo), com tudo o que
tem de mesquinho e de autoritário, de exigente e de mortal: rigor dos módulos
dos entrecolúnios, dos entases etc. Um ideal imaginário a serviço da tirania.
Esse rigor hipostasiado em beleza é simétrico à confusão de Palladio com
seu “outro” idealizado de muitas formas: herói de poemas (Italia liherata
dai Gotti, de Trissino), cônsul das ruínas, rebatizado em homenagem a Palas
Atena, e postulante ao papel de Polifilo. Ele torna-se alguém que não é mais
Andrea di Pietro della Gondola, ex-pedreiro de profissão. A agressividade que
tal identificação desencadeia deixa marcas no aspecto vingativo, rancoroso
dessas feridas que fragmentam, desmembram a aparelhagem de tijolo. Sin­
toma talvez de uma parada nesse declive, como se ainda houvesse hesitação
na negação: o autor dessa estereotomia de fachada aparece, entretanto, no
contrato para a execução do palácio Thiene como simples pedreiro.
Voltemos um pouco. Será que adotamos depressa demais a semântica ser-
liana? O nobre é libertado da matéria — será verdade? O senhor só é senhor

25 R. Klein, “Os sete princípios da arte segundo Lomazzo”, em Aforma e o inteligível Sàc
356 Paulo: Edusp, 1998.
porque tem a matéria sob a forma dos meios de produção e/ou de tesouro. E
mais: desse ter, apesar do paradoxo, ele quer fazer seu ser. Se não toca a maté­
ria com suas mãos, é porque comprou outras mãos. Por outro lado, se o traba­
lhador a toca, sua mão se torna a mão de um outro.
Não há mais metáfora aqui. Seria necessário, talvez, falar de significantes que,
por seu vazio, por sua opacidade, por sua tolice, estruturam separações com seu ser
de pura oposição. Significados não se infiltram neles senão por eponímia (porém
com uma eficácia perigosa: eles imobilizam o contraditório na oposição, reduzindo
a diferença a uma questão de + ou de —, abismo da luta de classes). A metáfora
supõe a articulação significante, impedida aqui pelos efeitos da denegação —
exceto para cair no chavão. As portas abertas são fechadas, como as da vila Barbaro.

Parolles — Nay you need not to stop your nose, sir; I spake but by a metaphor.
Clown — Indeed, sir, if your metaphor stink, I will stop my nose; or against
any man’s metaphor. Prithee, get thee further.26

UM DESENHO PARA A PORTA PIA

ABERTURA

Que uma porta serve para passar, é uma evidência que pode enganar por
excesso de bom senso. Funciona principalmente como fronteira, sobretudo
/

quando se trata de uma porta da cidade. E o lugar onde se confrontam duas


ordens diferentes ou até opostas, no caso a ordem e a desordem: fronteira
entre um fora e um dentro, ao mesmo tempo filtro e peneira. Abertura para
um espaço regulado, a porta também pode se tornar fonte de contaminação
por uma distração do guarda ou do aduaneiro, e é pela porta que vai se intro­
duzir a ameaça da peste ou alguma outra forma de contágio, como o dos tex­
tos censurados pela inquisição.27 Ao contrário das nuvens de Hubert Damish,
ela deve contrapor-se a toda transgressão: sua função é declarar e reproduzir a
exclusão. Enquanto tal, a porta pertence à esfera do aparelho jurídico; aplica
e reafirma constantemente a lei.
Os elementos que a constituem devem, pois, significar o que ela protege. E

a6 “Parolles — Vocc não precisa assoar o nariz, senhor, pois falei por uma meláfora.
Palhaço — Na verdade, senhor, se sua metáfora for desastrosa, assoarei meu nariz, assim
como o farei para a metáfora de qualquer outra pessoa. Mas peço-lhe que prossiga”. W.
Shakespeare, All’s Well that Ends Well, Act v, sc.II, 10-15.
357 27 Ver J. Delumeau, Rome au Xvie siècle. Paris: Hachette, 1975.
o que protege ela? Uma sociedade fortemente organizada (Roma), cuja socia­
bilidade interna é baseada num sistema de trocas regulamentadas, na trama
de relações culturais e produtivas que mantêm a cidade em sua singularidade
própria e lhe garantem uma identidade perene. Mas para quem deve a Porta
marcar tudo isso? Para os que entram na cidade ou para os que dela saem?
Roma é uma cidade de dupla fronteira. A mais próxima é a que Pio IV. err
1561, esforça-se por remanejar; a outra é a do mundo cristão. Porque Roma
irradia muito além de suas muralhas. Chega a Londres, a rebelde; a Madri,
a arrogante. Quem entra em Roma vem para admirar e aprender; quem sai
dela exporta a palavra e o poder da capital. O único artigo exportado continue
sendo, no fundo, a romanidade\ fora isso, tudo o que atravessa a Porta serve
para o consumo imediato: alimentos, vestuário e pedras para os palácios em
construção. Certa de seu poder e de seu charme, a cidade se deixa percorrer
livremente, envolve todo mundo com sua eficaz alquimia. Pio IV, Clemente
VII e Sisto V organizam as vias de acesso aos pontos cruciais da cidade; o brilh:
e a riqueza da capital soberana, seus espetáculos e suas orações, os favores ofe­
recidos e as diretrizes dadas, convertem peregrinos e embaixadores em repre­
sentantes de Roma, de sua Lei.
Quando Michelangelo foi encarregado do programa da Porta (1561), a
quem dirige seu projeto? Aos peregrinos que entram ou aos emissários que
saem? Sabemos que produziu diversos estudos, particularmente para outras
portas de Roma e, também, para o exterior da Porta Pia; mas só a parte
interna — olhando a cidade — foi executada. Acaso ou opção, é aos que partem,
portanto, que ele se dirige, aos novos representantes da capital do mundo cris­
tão. O que deve compor em seu projeto é, à sua maneira, um último discurso,
uma espécie de recomendação final: é, verdadeiramente, o epílogo, no sentia:
retórico do termo, de um percurso cujo sentido está inteiramente relacionadc
com a romanidade em glória.
Epílogo: rerum repetito, posita em affectibus. Repetir e emocionar.

RERUM REPETITO (POSITA EM REBUS)

Inútil e impossível repetir tudo sobre a cidade: ainda que a perspectiva da vi d


Pia seja longa, o tempo reservado ao consumo visual da Porta, o tempo da
despedida não pode ser prolongado; o dever obriga, passa-se pela porta, não sa
abriga sob ela. No melhor dos casos, como um emblema, uma metáfora glo-
balizante pode fixar-se na memória do peregrino que deixa a cidade. A Porta
deverá, pois, retomar os semas fundamentais do discurso urbano da capital e
sintetizá-los no signo arquitetural.
558
Nesse adeus através da Porta, Roma — a Lei — deve ficar gTavada na memória dos
que partem. Essa Lei deve ser aceitável e aceita incondicionalmente, sem recusa
possível. A Lei deve aparecer sem origem, não deve ter história: nem começo
/

nem fim. E a norma, a normalidade, a tutora inevitável dos deveres e dos pen­
samentos. Desconhece a singularidade, o sujeito do hic et nunc, o reduz à indife­
rença, o acostuma à legalidade. Da Lei, pois, é preciso ocultar os fundamentos.
O clássico, como mostrou Wõlflin, é todo adição. Ora, a adição supõe a
redução do diverso ao mesmo; o adicionar tem por corolário a redução isotó-
pica: retorno, a mesmice, recorrência; redundância do clássico: a totalização já
está inscrita em seus elementos. Por outro lado, se o Clássico remete, de certa
maneira, à Lei,28 a Lei pode, por sua vez, utilizar o Clássico como metáfora.
Bastará que seja retomado ou evidenciado seu tema comum, isto é, a anteci­
pação da mesmice. A ordem Clássica e a Lei desconhecem seus fundamentos
e exigem em comum uma necessária isotopia. Paradoxo: a identidade abso­
luta, exclusiva, deve basear-se na indiferença generalizada.
O desenho para a Porta Pia, conservado na Casa Buonarotti, é percorrido por
uma rede de linhas que atravessam e seccionam os constituintes desenhados
(frontão, colunas...). Essa rede constitui uma espécie de trama feita de linhas
horizontais, verticais e oblíquas, cuja resultante gráfica confunde todo o dispo­
sitivo arquitetural representado num conjunto linear homogêneo. O desenho
desfaz a oposição dos diversos componentes num mesmo plano gerado pela
trama. A diferença (a matéria arquitetural representada e referida) é trazida ao
mesmo nos termos de um retículo elementar. Como mostra um outro desenho
da Casa Buonarotti, a mesmice, nascida de uma simetria cujo eixo é sintoma­
ticamente dissimulado, devora sistematicamente a diferença que, no entanto,
traz ao ser a “riqueza” plástica da Porta feita arquitetura,

Rerum...

Uma ou várias portas? Como em Serlio ou Sansovino, há “luta” entre as


Ordens. A Ordem rústica (Serlio) é sempre dominada pela Ordem dórica. Além
disso, sobre a tradicional sucessão das ordens (dórica, jónica, coríntia), Miche­
langelo realiza uma discriminação urbana: dórica para a Porta, coríntia para
São Pedro. Na Porta Pia, uma primeira porta, interna, do tipo “rústico”, enqua­
dra a passagem propriamente dita; essa primeira porta é sobreenquadrada por

359 28 Ver R. Barthes, O grau zero da escrita. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
uma segunda que, claramente, impõe sua “superioridade” em dórico. Barbárie
depois a razão. Quanto à parte superior da porta, nela se sucedem cinco ele­
mentos diferentes: o lintel quebrado, o cimbre de madeira, o friso direito, o
arco cortado e o tímpano triangular. Não é mais uma porta que se atravessa,
mas um amálgama de portas: confundidas, sobrepostas, incrustadas.
Rerum repetito — síntese do discurso da cidade — retoma o tema da Lei e
do que é excluído por ela. Se a desordem e a barbárie se situam além da aber­
tura, significadas pelo rústico da primeira porta, necessariamente a ordem
dórica enquadra o rústico.

POSITA EM AFFECTIBUS

O problema da conformità pode ser resolvido de três maneiras apenas.


Primeiramente, as estruturas dadas podem ser remodeladas de acordo com cs
princípios da maniera moderna... Em segundo lugar, a obra pode prosseguir
dentro de um escrupuloso estilo goticizante; em terceiro lugar, enfim, pode
haver um ajuste entre essas duas alternativas.29

Se, para a praça do Campidoglio, Michelangelo opta sem hesitar pela primein
solução (maniera moderna), a questão se apresenta de forma mais complicada
para a Porta. Ele não faz deliberadamente, como no caso da fachada do palá­
cio dos Senadores, uma abertura disposta segundo as exigências da maniera
moderna. De fato, visto da rua Pia, o espetáculo parece ser do mais puro clas­
sicismo; quando se aproxima dele, a transição estilística torna-se evidente. A
franja goticizante dos pináculos, no cimo da obra, faz transição entre a mura­
lha de Aurélio, romana, e a porta propriamente dita, renascentista. Além disse,
a hierarquia frontal dos três planos: 1) antigo, 2) pseudogótico, 3) renascentista
inverte o percurso da cronologia. Não é, aliás, a primeira vez que Miche­
langelo nos faz percorrer o sentido da história de forma inversa. Inversão e
conformità imbricam-se como na capela Sistina: Michelangelo sempre evita
as soluções simples. Vejam, igualmente, como a conformità do Campidoglio
é nuançada pelo plano trapezoidal da praça. Para a Porta, outros elementos
ainda constroem a transição, como a nítida solidez da parede (de tijolo) sobre­
pujada por suas ameias, lembrando, de certa forma, a muralha antiga. Mas
se há também uma terceira solução comumente utilizada, não é ainda a de
Michelangelo: este sempre fugiu das regras. Desse modo, à seqüência romano,
pseudogótico, clássico, sucede... 0 rústico (bestiale). Portanto: 1, 2, 3, ..., o. A

360 29 E. Panofsky, Meaning in the Visual Arts, p. 191.


função do epílogo é, então, retomada diferentemente: a história da cidade é
condensada em três seqüências para aquele que, transpondo o limite, penetra
num ambiente fora da história: o mundo rústico, mundo da natureza, do caos.
Um outro “desvio” realizado por Michelangelo tornou-se perceptível pelas
subversões por ele produzidas na interrelação das proporções. Assim, se as duas
janelas inferiores (aliás, as únicas verdadeiras) são semelhantes à porta por sua
proporção, sua relação com as porções de parede sobre as quais se inserem é
oposta à relação da porta com o conjunto (A e B). Michelangelo passa da rela­
ção de duas formas predominantemente verticais a uma relação que opõe verti­
cal (porta) e horizontal (bloco principal). Evidentemente, será possível objetar
que a parte superior (realizada no século xix) reafirma a vertical. Mas introduz,
simultaneamente, duas novas oposições. Por um lado, a justaposição da edícula
superior e da porta (C), que permanecem proporcionalmente equivalentes, vai
repercutir na justaposição janela-janela falsa (D), não equivalentes; por outro
lado, o elemento circular (occulus), formando uma espécie de rima plástica,
acentua a verticalidade do sistema de janelas (sobre as duas paredes laterais),
ao passo que a ameniza na justaposição central (na medida em que está inscrito
no interior da edícula superior). E, sobre essa dupla relação ambígua, vem
inserir-se o sistema horizontal formado pela espécie de ático (clássico) do bloco
fachada que se opõe ao alinhamento medievalizante dos pináculos.
O registro de afeto — posita em affectibus — é assumido por Michelangelo
através do jogo completamente desestabilizado dos módulos do discurso
arquitetural clássico (pilastra, frontão, cornija etc). Confundindo o olhar, ele
o impede de isolar este ou aquele elemento, separa-os, mistura-os, os justa-
v
o
põe, os confunde. Assim, se opusermos os pares porta-edícula superior (C) e
janela-janela falsa (D), a verticalidade da edícula superior choca-se com a
horizontalidade das janelas falsas. Se formos atraídos pela repetição dos occulz..
seu fundo mexerá então em dois sentidos contraditórios: sobre seu fundo ime­
diato, a horizontalidade da faixa (ático) contrasta com a verticalidade da edi-
cula central (E e F); inversamente, se considerarmos os occuli sobre seu fund:
lateral (a força da verticalidade acentuada pelo alinhamento das janelas),
esse último contrastará com a verticalidade “atenuada” da edícula central
(G e F). Sistematicamente, Michelangelo toma de modo oblíquo o equilíbrio
lógico do dispositivo clássico. Faz mexerem os fundos, desestabiliza as formas,
maquila as pilastras, despedaça suas Ordens, embaralha as referências (histó­
ricas, arquiteturais). O ajfectibus é solicitado num jogo contínuo de reconhe­
cimentos e de escapes, de concordâncias e de subversões. O fundamento “pas­
sional” do epílogo é plenamente realizado: até demais, pois chegará a negar •:
que deveria justificá-lo — a garantia de uma lei estável.

FISSURA

Através dessa leitura, compreendeu-se como funciona, em termos plásticos e


segundo um dispositivo referencial particularmente complexo, o elemento
Porta numa seqüência urbana. O uso discriminatório da retórica clássica, que
nos permitiu isolar na dispositio a função metaforizante do epílogo, talvez
possa parecer suspeito. Que o seja ou não, tem pouca importância. Porque, por
qualquer lado que se tome, a “estética” de Michelangelo revela sempre um
esquema análogo. Radicalizando em seu emprego a linguagem que herda
(essencialmente clássica), ele subverte-lhe os fundamentos e, exatamente por
meio disso, mostra sua caducidade de essência. Isomorfa naquilo sobre o que se
baseia (necessidade de afirmar a Lei e de lhe mascarar os fundamentos), a lin­
guagem clássica, quando é assim subvertida, aqui no âmbito de uma encenaçã:
particularmente sintomática (a porta emblema de uma Roma expansiva...).
relata menos sua beleza equilibrante do que a fragilidade de seu fundamento.
Heteróclita, a linguagem “clássica” de Michelangelo provoca e corrói essa Le:
da qual garante, no entanto, por sua função de artista, uma certa perenidade.
Tesauro, um quase contemporâneo de Michelangelo, dizia: “O que é um
verdadeiro poeta? E um homem que sabe estabelecer relações entre os objetos
mais distantes uns dos outros.”
Nessa definição, revela-se o projeto maneirista: forçar a linguagem, a Le:.
o simbólico. Michelangelo vai mais longe ainda: vive a vertigem da ruptura.
O poeta, para Michelangelo, é aquele que subverte.
562
SOBRE O ORNAMENTO

Entremos mais profundamente nos meandros da cisão. Esse face a face entre
desenho e canteiro de obras (que, juntos e numa autêntica relação reflexiva,
formariam a substância verdadeira do construir) os imobiliza e degrada.
Paradoxalmente, o canteiro, momento do agir, parece ser o pólo passivo,
inerte, submetido à “atividade”, à determinação do desenho. Este, ao contrá­
rio, parece ser o pólo positivo, motor: coloca seus efeitos na disponibilidade do
canteiro. Não sendo o agente de sua própria articulação, o canteiro é colocado
sob a tutela de uma necessidade, para ele mecânica, aquela cuja razão vem de
fora, do desenho, e assume isso com indiferença, apatia. Entretanto, o dese­
nho, pressupondo necessariamente o canteiro de obras como sua própria con­
dição, cai também no imbroglio. Apesar de seu porte “ativo”, sua razão de ser
o que é e sem o qual não é nada, o canteiro de obras permanece-lhe exterior:
também ele cai no regime da necessidade mecânica. O processo indispensável
de reflexão de um no outro, cujo dinamismo os arrastaria à superação de sua
oposição, permanece bloqueado pelo fato de que o capital vive de tal bloqueio.
Desenho e canteiro não retornam a seus pressupostos (respectivamente, can­
teiro de obras e desenho): o desenho “ativo” esquece seu momento “passivo”,
seu condicionamento pelo canteiro de obras — ao passo que este, nunca se
colocando como tal pressuposto, esquece sua própria “atividade” acima do
projeto. Nada disso impede que, na visão comum, a “necessidade”, que assim
se tornou mecânica e cega, seja reservada ao canteiro (que, desse modo, se
torna objeto da “ciência” da organização do trabalho) e a “liberdade”, reser­
vada ao desenho (que passa a ser objeto dos exercícios de criatividade). Uma e
outra se arruinam — uma no empirismo limitado, a outra no aleatório.
O desenho, tal como é na cisão, permanece na pré-história de uma auto­
consciência do construir. Vê o canteiro de obras como um outro e não como
seu outro, com o qual seria idêntico na diferença. Mesmo assim, representou
um imenso progresso. As considerações de Lévi-Strauss sobre as maquetes
e modelos reduzidos são válidas para ele — ao menos como possibilidade. As
vantagens da abstração que ele mobiliza (no sentido positivo) não podem e
não devem ser negligenciadas. O que ele permite como antecipação do obje­
tivo, como esboço do resultado, como economia do fim — e, ao contrário, como
formatação do programa, como correção e complementação da demanda é
mais que respeitável. Se não falo sobre esses aspectos é porque são muito bem
tratados nos textos e no ensino. Entretanto, tudo isso continua contaminado
pelos efeitos da cisão. As implicações do desenho separado são inúmeras e
produzem expectativas por toda parte, muito fortemente ancoradas no que se
363 insiste em chamar de “estética” arquitetural. O slogan da profissão — arqui-
tetura é construção mais alguma coisa — diz muito sobre isso sem dizer nada.
pois o que falta à construção é exatamente o desenho, mas o seu. Porém, isso e
inadmissível. Pede-se ao arquiteto, o “mais”, o supplément cL'ame. E eis que se
abrem outras bifurcações: porque o supplément d’ame que cobre a alma proi­
bida não pode ser senão a “parerga”, ornamento, decoração, falsa aparência
— quando o que falta é a aparência, mais exatamente, a aparência da aparência.
Avancemos passo a passo, a coisa é escorregadia.
Loos decretou que o ornamento é um crime — e até Adorno o felicitou
por isso. Deixemos, pois, a decoração clássica ou acadêmica de lado agora.
Porém, onde classificar a rigidez dos volumes de Loos, a arquitetura toda
branca e lisa dos primeiros modernos, a austeridade puritana das formas que
ele pregava? Esta sobriedade, como sempre e como todas as outras decorações
clássicas ou barrocas, cobria o bordel do construído. Também é ornamento,
maquilagem de pureza. Sodoma também — cujo nome indica práticas fora
da pintura — vestia-se de branco. E dizer desenho separado é dizer decora­
ção — supplément d 'ame. O que irritava Loos no ornamento é que este é a arte
popular por excelência. William Morris o havia dito por toda parte, o primeirc
Van der Welde o repetia na vizinhança. A mão trabalhadora que deixa seu
gesto técnico derivar no prazer de si mesmo — tal é a essência do ornamento.
Ele é sempre, se autêntico, o alargamento, a “didatização”, a explicitação, o
comentário desse gesto. Enquanto tal, como dizia Morris, é a expressão da
alegria no trabalho (o que pressupõe uma boa dose de liberdade). É escanda­
loso, evidentemente; só faltava isso! Alegria no canteiro de obras! Acabava-se
de sair do eclelismo, cuja inocência distraída baseava-se nas competências dos
operários, exaltava-as mesmo em ornamentos construtivos, dando força, desse
modo, às reivindicações do sindicalismo revolucionário. A mão trabalhadora
torna-se perigosa quando, através de seu canto no ornamento, apóia a exigên­
cia operária de autodeterminação, a exigência daquele momento. É necessário
que ela se dissipe... atrás da decoração do não-ornamento. Depois da derrota
desse sindicalismo e da acomodação da década de 1920, foi possível voltar às
formas ostensivas de ornamento, até o kitsch pós-moderno, seguindo o declive
do aniquilamento da luta operária. Mas cuidado: a mão trabalhadora agora é
exclusivamente a do arquiteto. Ela se torna eufórica em torno de suas tramas,
alinhamentos, módulos, dos seus jogos de linguagem (a agonística aqui é tris­
temente válida, Sr. Lyotard), da elegância ou da brutalidade de seus traços: seu
“ego” explode como fogos de artifício. A plástica oficial tornou-se a expressão
sarcástica, depreciativa e rancorosa (sem saber disso) da liberdade proibida ao
trabalho. E uma das razoes do masoquismo que a leva à autodestruição — por
ironia (pós-modernismo) ou por catastrofismo (desconstrutivismo).
364 Entretanto, se o desenho separado se desvia rumo à ornamentação por
hipóstase do gesto projetual, é a aparência que continua proibida. Precisemos.
No fim da lógica objetiva, na passagem à lógica subjetiva, Hegel escreve:

A necessidade se desvela. A necessidade não chega à liberdade porque


desaparece mas, sim, porque apenas sua identidade ainda interior encontra-se
manifesta; uma manifestação que é o movimento idêntico do diferenciado em
si mesmo, a reflexão de si da aparência como aparência.50

Tudo nesse enunciado convém a nosso propósito. A necessidade, que se coloca


claramente fora na aparência — como aparência — e cuja identidade interior é
produto do movimento autônomo de seus diferentes momentos, não é oposta
à liberdade — mas é a liberdade. Para isso, é necessário que ela (a necessidade)
se mostre como sendo realmente o movimento autônomo, orgânico e autocons-
ciente que totaliza os diferentes momentos que ela engloba. Ou seja, para nós
aqui, traduzindo e simplificando: num primeiro nível, a necessidade aparece no
material (matérias, ferramentas, técnicas etc.) no qual saber, saber fazer, estado
da produção etc. estão inscritos objetivamente. O sujeito social está aí sob a
forma, por assim dizer, momentaneamente coagulada, sedimentada. A estru­
tura dos trabalhos no canteiro de obras, com suas diferentes equipes, especia­
lidades, em resumo, o que indicamos através da noção de corpo produtivo, põe
em movimento esse material — que é apenas outra forma de si mesmo — vivi­
fica-o por meio de seu trabalho, identifica-se com ele sem suprimir a diferença.
Aqui ainda, o mesmo sujeito social manifesta-se — de forma viva, na ação. Essa
totalização dinâmica põe-se obrigatoriamente no exterior — se, entretanto, for
autônoma “em si mesma”, incluindo, pois, o projeto como um de seus momen­
tos, como seu objetivo desejado, assumido. Mas tudo isso pode ainda aparecer
apenas como necessidade, se o corpo produtivo, em toda parte, não se sabe em
casa — nos materiais, na produção, no resultado. Esse reconhecimento, esse con­
sentimento em ser o que é, esse espelhamento de si em toda parte sem encon­
trar nenhum elemento estranho, essa constatação de ter todas as razões de ser o
que é em si mesmo, é isso a alegria de Morris que se abre, então, na deriva do
gesto técnico. Uma autocelebração que faz aparecer a aparência como aparên­
cia, que desvela a aparência, a qual pode cristalizar-se no exterior como mani-
festação do sujeito social do corpo produtivo. E o ornamento que é o operador
objetivo desse desdobramento indispensável da aparência.
Mas o termo ornamento é muito carregado de conotações. Prefiro “rastro”
{trace), na moda desde Benjamin, Brecht, Heidegger e Derrida. A crítica paga

30 Log ii, 295/10.


sua distância da produção invertendo tudo, talvez pelo fato de ficar depen­
dente da percepção do produto só depois de acabado. Ela diz a respeito da
obra de arte, quando a considera um sucesso, que tudo nela é absolutamente
necessário, que nada pode ser mudado sem a estragar. Ora, isso é próprio da
necessidade mecânica. Contraditoriamente, a mesma crítica postula a liber­
dade fundamental do artista. Talvez seja por isso que Kant diz que o gênio
é uma força da natureza e não sabe o que faz. Na realidade, o contrário é
que é verdadeiro. O que faz a obra de arte é o fazer vibrar o “necessário” em
torno dele mesmo, distanciar-se um pouco — ou cantá-lo, didatizá-lo. Ouvir
o som do sentido, dizia Jackobson. Olhem uma pincelada bem-sucedida: foi
produzida para ser uma pena de pássaro, por exemplo, em Rembrandt. Mas
não se esvai completamente em sua necessidade, em sua vocação icônica, no
contexto da tinta nanquim para desenhos em pincel. Ela se mostra também,
deixa ver a certeza do gesto. Em relação à função icônica, ela se dá uma mar­
gem: é erga e parerga, a deusa de Kant e seu vestuário — o que é necessário e
ornamento, rastro. A pena de pássaro não engana mais o olhar: sabe-se que ío:
pintada, desejada por Rembrandt. A obra de arte é artifício — e é preciso que
se saiba isso. A aparência — a pena de pássaro — desvela-se como aparência.
Pode-se copiar Derrida e inventar a apparance, ou adotar Heidegger e falar
do apagar do apagar, do ausentamento. Como quiserem.
A chave decisiva é o rastro.31 32

[...] uma liberdade que é invenção, num consentimento ativo ao que é, ao


que ela mesma é, em sua coerência “necessária”, nunca dada, sempre a ser
efetuada e, portanto, a ser descoberta.52

O rastro começa como vestígio, índice do que produz no produto. Saber, saber
fazer, instrumento, gesto etc. manifestam-se em seu resultado — se for conve­
niente, junção de causa e efeito, concordância entre meio e fim. Para que ha] a
índice, é preciso captar uma relação. Uma mancha, quando não se consegue
atribuir-lhe uma causa, é somente uma mancha. Sempre lhe é necessário
um interpretante, para continuar com Peirce. Para que haja rastro, deve-se
ir mais longe: é preciso, primeiro, que o índice se abandone à sua razão de ser.
que o gesto do fazer vá em direção a seu fim — mas também que a marca da
colher do pedreiro mostre sua adequação à parede em devir, que a viga evi­
dencie sua resposta à função de sustentar. Em resumo, que o índice exponha

31 Ver S. Ferro, “La Trace”, Rapport de Recherche, op. cit.


366 32 G. Jarczyk, Hegel, op. cit., p. 19.
sua racionalidade, sua pertinência. Mostrar, evidenciar, expor: atrair a leitura.
A mente é superlúcida, é verdade, mas é preciso ajudá-la. Realmente, a forma
é sempre o movimento do conteúdo, bom ou mau. Mas uma pitada de retó­
rica pode amenizar a passagem da diferenciação de uma rumo à identidade
do outro.
Deve-se ainda insistir nisto (que retomarei novamente): na semiótica (de
Peirce), só o índice veicula o sujeito — e só o rastro o torna efetivo.
Na arquitetura dominante, o rastro é raro — exceto aquele (vamos discuti-
lo depois) do traçado, do desenho. A que razoes de história própria, de devir
de si mesmo, corresponde a ornamentação clássica, o bronze do Seagram’s
Building ou o branco liso? Impossível supor que possam resultar de um corpo
produtivo autônomo. Num primeiro nível, as razões são de estilo, de forma,
de vanguardismo etc. O índice pode estar presente, às vezes exasperado (o
concreto bruto sem transformação, a madeira rústica, o excesso de detalhe
high-tech...) — mas sempre desviado. A astúcia para desviá-lo é simples:
mudam-se os interpretantes (ainda Peirce), muda-se o registro de leitura. O
exemplo que ele dá é conhecido: [em francês], a palavra grenade pode sig­
nificar uma fruta (romã), uma arma (granada) ou uma cidade (Granada),
segundo o contexto, o interpretante implicado pela situação ou pelo tema da
conversa. O arquiteto nos fala de outra coisa, nunca de um corpo produtivo
autônomo, o que é quase “natural”, pois tem a responsabilidade precisa de ser
a causa imediata da heteronomia do próprio corpo produtivo. Ele é da família
dos prestidigitadores: desvia nosso olhar e nos faz não ver o que é importante.
Há interpretantes substitutivos de todo tipo, da família dos remas, dos deci-
signos e/ou argumentos. Lentamente, munido do enorme poder de captação
da plástica e da retórica visual, o desenho nos atrai para o universo dos juízos
diferentes. Não falo dos argumentos de conveniência funcional, da implan­
tação no site etc., que têm, em princípio, sua razão de ser. Mas daqueles que,
de modo geral, são chamados de estéticos, esses juízos sem conceitos, como
queria Kant. (A correção hegeliana — a estética é a percepção do conceito,
ou melhor, da idéia, que ele próprio não levou a suas últimas conseqüências
— teve poucos efeitos no ofício). Os referentes dos juízos (de gosto) tornam-
se estilos, movimentos, tendências, regionalismos etc. O que nos pode dar
torcicolos é que eles têm sua parte de amarga verdade, sendo, com freqüên-
cia, o eco longínquo de arranjos específicos de momentos da luta de classes,
portanto e mesmo assim, seus indicadores. Entre os modernos, deixados de
lado os grandes modelos canônicos, o universo dos referentes rearranjados
segundo o movimento ou a tendência gira em torno do “jogo de volumes”,
ritmo, modulação, trama, escala, espaço etc. As formas remetem-se umas às
367 outras, compõem-se, tecem relações diversas... a indicialidade (insistimos,
único suporte semiótico do sujeito) não remete mais ao fazer, mas se torna
textura, cor, cheia ou vazia, linha, superfície, massa... saltamos a secundidade
do índice (sua referência a seu pressuposto, o fazer), nós o lemos no campo d=
plástica dita pura e o passe de mágica cativa nossa interpretação. Observemos
que esse gênero de deslize não deve ser confundido com mudanças de para­
digma, como amiúde se pretende para se dar ares superiores. Essa noção de
Khun aplica-se aos estágios da elaboração científica que obedece, pelo menos,
ao controle do entendimento. Aqui, nada disso: estamos bem abaixo.
E, entretanto, quantas astúcias, sutilezas, “jogos de linguagem” — cuja
função é permanecer “jogos de linguagem”. Seria monótono examinar tudo.
Apenas alguns, a título de exemplo.
Comecemos por um detalhe: o desenho dos corredores que levam aos
quartos do convento de la Tourette de Le Corbusier, obra-prima do bruta-
lismo [figura].
Sem meias-palavras: em termos de semiótica, há trapaça no plano dos legz-
signos: substituição da regra de distribuição dos materiais (vigas, pilares, laje?
de concreto e preenchimento com blocos, sempre de concreto) por uma outra
(vigas imensas de argamassa projetada separadas por calços de concreto). Ou
(nas empenas) substituição da mesma estrutura por um plano uniforme de
argamassa projetada, em que há aberturas de janelas bloqueadas, ditas “flore5
de concreto”. Admitamos que seja belo e vejamos o perfil dessa beleza.
Do mesmo modo que no classicismo ou no barroco, que criticava, Le Cor­
busier mostra-nos ficções. Pode-se perguntar porque aquele que gostava de
se dizer “construtor” não construía como desenhava — e não desenhava como
construía. Certamente por razoes de arte, suspensas na mão do mestre.
Temos aqui dois gêneros de legi-signos, duas regras distributivas de material
Ou, se quiserem, dois diagramas, dois modos de pensar a estrutura, dois concei -
tos de sua aplicação. Os legi-signos (representamens, próximos do significante de
Saussure) podem ser o suporte de diversas relações com o “objeto” (com o “sig­
nificado”): relações de semelhança, chamadas ícônicas (que podem subdividir-se­
em imaginárias, diagram áticas e metafóricas, conforme a progressão da abstra­
ção da semelhança); relações de contato, ditas indiciais ou relações de convenção,
ditas simbólicas. Vejamos o que nos dizem essas relações no desenho de Le Cor­
busier tomado como legi-signo. A relação imaginária é: essas vigas calçadas são a
imagem (à imagem) do desenho que as prescreve. O desenho é o modelo de que
derivam essas vigas, que são cópias. A velha estética acreditava que a beleza do
modelo garantia a de sua imagem. Hoje pensamos que isso não basta: a imagem
deve valer por si mesma. (O que é discutível, mas pensamento generalizado sob
o capital que, por razões evidentes, não gosta das dívidas de origem que podem
368 meter o bedelho na expropriação da mais-valia de que é filho. Tema para mais
tarde, e complicado, pois Adorno disse o contrário). Assim, o desenho do mestre,
mesmo sendo genial, é indiferente quanto ao julgamento estético da obra. Esta
deve resistir sozinha. São Cosme e São Damião feitos por discípulos destoam na
capela Mediei, apesar do modelo feito pelo divino anjo Miguel. Em arte, o que
conta é a elaboração bem-sucedida do material, a adequação perceptível do que
ele se tornou na obra. Ora, aqui, o material nada tem a ver com sua forma final:
viga potente de argamassa projetada. Isso soa falso como as “nuvens” do Arche
de la Défense em Paris. Aliás, tal decalagem é freqüente em literatura — nas
paródias. O desenho pressupõe uma realização que a aplicação prática desmente.
(O contrário também é desmistificador: visitem obras de Botta.) Passemos a
uma leitura diagramática, a da estrutura. Já o indicamos: vigas potentes sepa­
radas por calços — é este o princípio construtivo que vemos. O esquematismo,
como Kant nos disse na Critica da razão pura, permite-nos passar do sensível ao
conceituai (na produção da arte, tomamos a passagem contrária), da percepção
ao entendimento. Aquela estrutura me diz, então, coisas que são falsas, enganam
(pois, ao menos uma vez, conheço o “em-si” da coisa, viga, pilar, laje, preenchi­
mento, pedindo desculpas pela brincadeira). Abusam de minha credulidade, de
meu entendimento, da boa-fé de minha percepção. Não é porque esta pode me
enganar que tenho o direito de enganá-la. No teatro também me fazem acredi­
tar que vejo a personagem, não o ator (se Brecht não for o diretor). Mas sei que
estou no teatro. Aqui, dizem-me que é a obra de um construtor: eu acredito e
me engano. Meu entendimento cai na armadilha como diante de uma vulgar
propaganda. Ele falha, uma merda. É preciso ser masoquista para admirar isso.
O príncipe e o papa podem adotar essa tática; de qualquer forma, eles querem
nos enganar. Mas o autor de Arquitetura ou revolução\ Quem diria! Mas talvez
a obra deva ser lida metaforicamente. Efetivamente, isso parece uma intrusão
do universo da madeira no do cimento (a metáfora é a intrusão de um universo
semântico em outro). Isso funciona; em princípio, há intrusão. Mas o que vem
fazer a madeira no cimento, essa alusão à secagem da madeira na aridez da
argamassa? Uma piscadela para os gregos cujos templos de pedra imitavam
os de madeira, caso se aceite Vitrúvio? Ou que outra coisa? Não se brinca com
a metáfora sem correr perigo, dizia Lacan. O herói do progresso, adorador de
Ford, do brutalismo aqui mesmo (a verdade enfática da construção, dizia-se), o
pai das máquinas de morar... Volta à madeira maciça ou aos gregos? Afirma-se
por toda parte, depois de Banham, que o desenho moderno, quando se separa
do possível, se afasta do realizável, é para antecipar. Aqui se regride. Em quê
as vigas calçadas superam a banalidade do que está por baixo? Sem valor os
dois. Bem. Passemos à relação indiciai. Argamassa projetada por “canhões” de
concreto. A máquina, evidentemente marca de vanguarda, marca melhor que
569 a “mão do homem” que, quando “passa” por aqui (somente aqui?), faz janelas
tortas. (Só uma anedota: quando foram retiradas as formas do concreto de uma
das empenas do convento, viu-se que uma janela saiu torta. Quis-se corrigir, Le
Corbusier não deixou. Mas quis gravar uma frase: “por aqui passou a mão do
homem”. O que deixa implícito que no resto do edifício a mão do homem não
passou. A frase nao foi gravada.)
O índice mecânico no lugar do outro, progresso das forças produtivas
— mas foi a mão apagada que fez resistir, que construiu. E que máquina for­
midável: cuspidora de revestimento, cuspidora da verdade, ceifadeira de
palavras. Vamos então ao simbólico. Não há absolutamente convenção parti­
lhada a esse respeito. Peço-lhes que me ajudem: onde, fora das palavras sobre
as nebulosas do indizível (a palavra é dele) da “arte” tida como o túmulo da
razão, encontrar a menor desculpa para a substituição? Responde-se: a arte
dispensa palavras, calem-se e sigam o guia. Houve centenas de pequenas (ou
grandes, no tamanho), “La Tourette”, no mundo inteiro.
/

Eu exagero? E um detalhe. Ampliemos o ângulo de observação. Onde apa­


recem alguns leves toques de arte, o canteiro de obras, apesar de seu esmaga­
mento, pôde dizer, baixinho, algumas palavras.
Vejamos o que ocorre com a cor na igreja do convento de La Tourette.
Sobre um campo fartamente dominado por tons de cinza (que vão do
quase branco do altar ao quase preto da cruz no solo), Le Corbusier aplica
alguns toques de cor: vermelho, amarelo, verde e azul. Só o azul é escurecido:
as demais cores são “puras”, como se diz em ateliê. Todas são artificiais, isto e.
produtos da indústria e não cores próprias dos materiais.
São reservadas aos locais que têm, explicitamente, a função de limite, de
fronteira, de passagem: enquadramentos de abertura, portas, paredes cujas
formas elaboradas destacam-nas como telas.
O quadro arquitetural, simples e extraordinariamente bem proporcionado,
não abandona a gama dos tons cinza dos materiais: concreto, pedra, ardósia. Os
componentes menores, geralmente em contraste formal com o quadro (parede
curva, raios de luz, fendas inclinadas), recebem, em contrapartida, as cores
“puras”; tornam-se notas discretas porém fortes. O conjunto parece seguir uma
recomendação de Rubens: para fazer a cor cantar, é preciso utilizá-la em pequena
quantidade, sobre detalhes significativos e cercá-los por muitos tons neutros.
A aplicação precisa da cor e o rigor da regra bem mostrada nos fazem
imaginar um projeto que domina a fundo seu objeto. Uma escolha exigente
determina exatamente o lugar e o tipo das cores. Não podemos nos impedir
de supor a mão firme do arquiteto na origem da obra. O construído apresenta-
se como imagem do projeto.
As cores são majoritariamente “puras”, isto é, convêm ao que Arnheim
570 chama de “conceitos plásticos”, um elemento forte. Nenhuma nuança as
afasta de sua posição polar. Elas se colam à generalidade de seu nome: o ver­
melho, o amarelo.
(Cabe uma observação para o verde: por não ser uma cor primária, não é
sempre pensado como apto à “pureza”. Mondrian o descartou. Mas a sensação
visual, cara a Le Corbusier, não é necessariamente aquela suposta pelos grafos
da óptica. Num quadro, um verde talvez possa ser “puro” — como um violeta
ou um alaranjado. Mas, em La Tourette, o fato de o verde ser também mistura
deve ser considerado. Na verdade, ele é, no plano da cor, o único elemento que
funda a isotopia dos universos contrastados: a natureza e a obra. A mistura
típica do verde o torna particularmente adaptado à função de fundamento
da isotopia — sem a qual, como demonstrou Greimas, não há desdobramento
semântico possível).
As cores “puras” são artificiais, escondem embaixo delas a cor dos mate­
riais, os quais, por sua vez, as traem discretamente por sua textura em geral
preservada. Elas quebram a “naturalidade” dos materiais pela irrupção de
sua “pureza” — porém, bastante confinadas, mostram-se como transgressões
no cinza dominante. Dessa forma, são perfeitas metáforas.
As cores são depositadas de maneira homogênea. Embora isso pareça uma
prática banal e inevitável hoje, é necessário, entretanto, estar atento: os pinto­
res são pagos para fazerem o inverso em seus quadros.
A cor aparece somente nos momentos muito carregados pela simbólica
religiosa:
— atrás do banco dos padres, nas fendas/frestas inclinadas;
— na parede também inclinada que separa a sacristia da igreja;
— dentro do “piano” e na parede que o separa do resto da igreja;
— nas portas.
Em todos os casos, trata-se de marcar os limites de universos distintos,
fronteiras:
— A luz que cai sobre os textos lidos pelos padres vem de trás. Exatamente
como a palavra de Deus, transmitida pelos anjos, chega aos evangelistas nos
quadros de Caravaggio. A Bíblia, protótipo dos textos, escritura e traço de
Deus, recebe uma luz vinda de um lugar outro, inatingível.
— A sacristia guarda a hóstia durante o tempo em que não há missa. A
encarnação, a transgressão das fronteiras entre o aqui e o além, é quase per­
manente neste espaço. O teto vermelho é furado por “metralhadoras” de
luz. E também na sacristia que o padre se veste para dizer a missa, que ele se
torna ministro do culto. A parede vermelha inclinada e arredondada separa a
sacristia da igreja, guardando as vestes do culto.
— O “piano” é o espaço das missas individuais. Paredes que param à meia
371 altura, em amarelo e azul escuro, marcam a diferença em relação ao espaço
da missa comum. No alto, o teto azul atravessado por raios de luz em azul,
branco e vermelho conota as múltiplas elevações.
— Pelas portas, passa-se do espaço laico ou convencional ao espaço sagrado,
casa de Deus.
(Nota: Sem o dizer para não sobrecarregar este comentário, a descrição fo:
guiada à distância por oito categorias da semiologia de Peirce: a cor foi olhada
sucessivamente enquanto quali-signo, sin-signo, legi-signo, hipoícone (ima­
gem, diagrama e metáfora), índice e símbolo. A partir daqui, entramos no
campo dos interpretantes).
A igreja do Convento de Da Tourette é uma obra-prima, um sucesso maior
de Le Corbusier. E, no entanto...
A forma paralelepipédica da igreja impõe-se desde os primeiros esboços.
Porém, com exceção da armadura formal geral, tudo muda sem parar até a
solução final. Ela não pára de perder e de receber acréscimos diversos.
Em seu primeiro desenvolvimento, a igreja foi o suporte de rampas que
a cercavam como num zigurate e que levavam ao claustro, concebido, então,
sobre o teto e cuja marca é ainda visível na sobreelevação dos acrotérios. Um
pouco mais tarde, ela foi ornamentada por enormes conchas acústicas — ou
por mezaninos e um órgão suspenso no interior. Depois do abandono forçado
dessas propostas ousadas demais ou demasiado onerosas, o “piano” e, quase
no último minuto, o consolo do órgão são definitivamente presos às paredes
do prisma.
Concebida para ser realizada em aço, passa a ser pensada em pedra bruta
e acaba sendo feita de concreto armado. Em alguns momentos, foi imagi­
nada com um revestimento de argamassa aplicada a jato; depois, seria reco­
berta, como decoração, por uma camada esculpida com saliências piramidais
e, finalmente, foi deixada sem nada. A protensão, que fez surgir a linha de
pequenos cilindros de ancoragem fora do “piano” (uma maravilhosa rima
plástica das “ondulatórias”), só foi adotada em extremis na falta de outras
soluções. A ardósia proposta para o revestimento do piso dá lugar ao cimento
mais barato: uma trama do “modulor” entalhada artificialmente simulará a
aparelhagem inexistente.
Do mesmo modo, a argamassa projetada prevista para o teto foi substitu­
ída por placas, solução quase imposta por uma empresa...
A construção da igreja foi a última etapa do canteiro de obras de la Tou­
rette. Nesse momento, as restrições econômicas chegam ao clímax. Em
nenhum outro lugar, as empresas e suas propostas substitutivas tiveram peso
tão determinante. As pressões práticas, os parcos recursos financeiros e, às
vezes, o bom senso dos padres desviaram e atenuaram, incessantemente, a
372 mão do mestre.
Ora, a cor (e a trama do piso e do teto, uma falsa e a outra praticamente
imposta) reverte as perdas em vitória: com ela, Le Corbusier dá um sentido
profundo, rigoroso ao que, de outra maneira, seria apenas empobrecimento
devido aos aborrecimentos da realização. A pertinência da retomada faz da
igreja uma das obras que melhor expressa a maestria de Le Corbusier. Há
aqui uma questão incômoda para os fanáticos da concepção em arte.
A oposição “natureza/cultura” (eu simplifico) do lado de fora é quase
violenta. Não há pilotis para a transição. O bloco da igreja, como em algu­
mas esculturas da modernidade, de Rodin a Brancusi, também não tem base.
Não há passagem fácil entre o mundo laico e o mundo religioso. A forma e a
implantação da igreja, parcialmente aberta ao público, desempenham o papel
daquilo que é lei no resto do convento: o isolamento, a divisão radical do den­
tro e fora sob pena de excomunhão.
Do lado de fora não há cor, exceto o verde, aqui natural, da vegetação. O
convento não tem gestos sensuais para o mundo. (Mais uma vez, um sucesso
da penúria: estavam previstas cores para os tetos dos terraços das células.
Além de Eros, parece que a conveniência também tem Penia [pobreza / indi­
gência] por mãe.)
Do lado de dentro, forçando um pouco, quase se poderia dizer que não
há cores. Elas marcam sobretudo o párergon de que fala Kant: bordas e
limites do espaço sagrado. Destacam os lugares onde, diversamente, o além
irrompe, onde o sublime (o irrepresentável, ainda segundo Kant) aparece à
sua maneira — isto é, deixando a marca de seu não estar ali. A ausência de
marcas do trabalho de aplicação e a “pureza” das cores tornam-se particular­
mente adequadas: elas são, aqui, índices de um outro espaço, situado além do
construído. Seu brilho e seu modo de recobrir o material sem o esconder com­
pletamente (sua potencialidade metafórica, portanto) servem perfeitamente
para representar a inervação da igreja pelo Espírito. A ancoragem simbólica
dá razão à cor, capta as pulsões escópicas que ela favorece e a coloca a serviço
da cadeia de convenções que conformam o convento.
Por intermédio da cor, Le Corbusier realiza aqui um dos exemplos mais
perfeitos do que nós (o Laboratório Dessin/Chantier) chamamos de seman-
tização do gesto técnico. As economias urgentes, a ingerência obrigada das
empresas, a recuperação de escolhas arriscadas ou de esquecimentos determi­
naram, de fato, o que vemos. Com as intervenções finais, sobretudo a da cor,
Le Corbusier retoma tudo o que lhe havia escapado e rega o conjunto com
fortes significações. A estética de Xenakis, que abre espaço para a indetermi-
nação dos trajetos, deve muito a La Tourette — como ele mesmo reconhece.
Algumas considerações finais.
373 í. Da eficácia do pouco: se se retirarem as bordas coloridas, essas agitações
pontuais, será difícil imaginar uma obra tão simples, tão radicalmente des­
pida quanto a igreja de La Tourette. Um paralelepípedo de concreto funciona
como calço para separar o espaço “natural” (paisagem) do “sobrenatural”,
apenas anunciado.
2. A ancoragem simbólica muda o status da plástica. Em outros lugares, a
cor de Le Corbusier desliza com freqüência para o mau decorativo. Em Chan­
digarh mesmo ela é, amiúde, hesitante.
3. Como em muitos outros sistemas, só o que aparece como uma perda
momentânea garante uma retomada superior. Ultrapassado por decisões
divergentes, o projeto inicial se despojou do que consideraria como conve­
niente para sua vocação. Mais importante ainda: as decisões tomadas bastan;e
perto da origem do processo produtivo tiveram que ceder diante de sua resis­
tência. Esta perda do controle prescritivo possibilitou a expressão mais autên­
tica do material, parcialmente insubmisso ao domínio do desenho. Quando
reafirma sua posição, Le Corbusier o faz a partir de uma situação mais densa,
enriquecida por concentração: ele o faz como se faz em arte.
(Uma nota: em dois casos que acabo de comentar, há, aqui e ali, sinais de
insatisfação quanto ao material. Banham estudou bem seu desdobramento
numa espécie de desenho antecipador, de vanguarda, o qual transfigurava o
que estava em baixo do que deveriam ser, em Teoria do projeto na primeira em
da máquina,, desenhos “futuristas”, mas no exclusivo campo técnico. Nunca
a dependência recíproca entre materiais e relação de produção é considerada.
embora a constante valorização da industrialização faça imaginar outros
materiais — como o “único”, próprio para tudo, sonhado por Le Corbusier. O
que faz dessas antevisões algo ridículo (caso se esqueça o trágico recoberto).
como um jargão de progresso lastreado pelo que se pensa ser seu obstáculo.)

Continuemos. Um dos efeitos do desenho que substitui seus legi-signos e/ou


interpretantes aos da construção efetiva e autônoma é a supressão do tempo
da sucessão pela simultaneidade espacial. E evidente que o tempo na obra
pode ressurgir na percepção do flanador, em sua consciência dos estados
sucessivos daquilo que sente. Mas isto é só um tempo de consumo, um tempo
que parte de um objeto estático em si mesmo. Outra coisa é o tempo indu­
zido, o que parte dos rastros compreendidos enquanto tais para a apreensão
do devir do advindo. Esta repõe a troca profunda entre o objeto e aquele que
o percebe repassando a lógica do devir pela consideração do advindo, e lhe
374 permite ver a coisa como obra, podendo reconhecer-se na ação passada dos
outros. O objeto outro progride como obra de seu outro. Para isso, é necessá­
rio que aquele que vê possa apreender uma lógica nessa ação pela mediação
dos rastros. Heidegger elaborou essa diferença entre a coisa e a obra para
indicar o que é a obra de arte. Lógica e rastro aqui se pressupõem. Esse
reconhecimento do outro (objeto) como obra de seu outro é o fiador ético do
prazer estético. O que deve ser aproximado da crítica hegeliana da obra, do
fim fechado em sua imediatidade: ele mostra que a verdadeira finalidade é o
meio e sua reprodução. A verdade da obra é a produção e sua retomada. Isso
também é válido para o capital: na mercadoria realizada (no duplo sentido
da palavra), ele busca sua reprodução ampliada pela força de trabalho para se
ampliar a si mesmo. Exceto que, aqui, não se trata de deixar rastros, nada de
leituras retrospectivas da mercadoria, nada de anamnese do produto. Ora, o
mesmo é válido para a forma mercadoria da construção. Como toda precau­
ção é bem-vinda, nada melhor que barrar as veleidades de retrospecção na
fonte, transmudar a sucessão ao ler em simultaneidade ao ver.
O desenho autotélico, com seu jogo puramente espacial, anula a tempora­
lidade, a dimensão do sujeito.
O índice é a categoria do signo que carrega o passado em suas costas. Geral -
mente, o vestígio de uma ação: os passos na areia, as olheiras nos dias seguintes
/

às festas... E por isso também que só ele é o porta-voz do sujeito cujo tempo
serve de coluna vertebral. Esse tempo pode ser o da palavra — e ele é “shifter”
— ou aquele ultrapassado do registro do gesto feito. Porém, para que o passado
veiculado seja o de um sujeito, é preciso que o índice passe para o plano do ras­
tro. Repito — aquele que é testemunha de ação intencional. O que, mesmo assim,
não lhe assegura uma virtuosidade especial. O ventre de Sileno é um rastro
— mas não do melhor gosto. Ora, na construção séria, contam apenas os rastros
positivos, exatos na economia do todo. A arquitetura tem uma limitação que
pode engrandecê-la. Não tem como entregar-se à ironia, ao sarcasmo, à denún-
/

cia, à crítica etc. E afirmativa — ou nada. Não tem a distância que possibilita pro­
por retratos não atraentes da sociedade, como a literatura, a música ou a pintura.
Porque ela se imbrica em sua produção, verifica em si mesma as relações de
produção. Em termos já antigos, liga em sua carne infra e supra-estrutura, como
numa síntese do todo social. Mais, seu papel na economia política é enorme.
Donde a dificuldade da crítica arquitetural, obrigada incessantemente a ir de
um a outro destes universos — todos submetidos à determinação da economia
que os “sobredetermina em última instância”. A crítica unicamente “supra-
estrutural” é sempre vesga. Dessas considerações decorre o postulado número
um e essencial para mim: só é válida a arquitetura que corresponde a princípios
justos — portanto, de razão — na produção. Diante de situações detestáveis, a
575 arquitetura não pode ficar na crítica: sua única missão justa é a alternativa. As
boas intenções “supra-estruturais”, que não tocam os fundamentos, são talvez
simpáticas, generosas — mas sem peso efetivo. Voltemos então ao rastro, àquele
que corresponde à positividade inevitável da arquitetura.
A única positividade que pode convir ao conceito global de arquitetura
é a da racionalidade livre da produção. Evidentemente, já hoje, aqui e ali,
emergem seqüências operativas racionais. Mesmo aviltada, é preciso que a
construção resista. São esses intervalos de razão que o rastro notifica — e que e
necessário, pois, escamotear.
Sempre considerei a idéia da obra autônoma uma bobagem. Somente o
sujeito pode pretender ter autonomia. E ele não passa senão por rastros, sua
enunciação objetiva pelo enunciado bem conduzido; para considerá-lo, para
avaliar sua conveniência, é necessário um esforço hermenêutico, superficial
ou rigoroso, segundo o alvo da leitura. Isso necessariamente através dos ras­
tros: os documentos, as memórias cristalizadas do processo de produção do
sujeito, barrado ou não, do corpo produtivo. Desse modo a obra, no melhor
dos casos, se for válida, atesta a autonomia desse corpo.
O deslizamento da autonomia do sujeito para o objeto tem causas profun­
das. Examinemos de perto. A espacialização que nega o tempo, que apaga os
rastros que aqui remetem à produção por manipulações semióticas, convém
perfeitamente ao que, em toda parte, nos cega, a fetichização da mercadoria,
a ocultação de alguns rastros da produção e atribuição de valor à coisa. Todo
sistema baseado na apropriação da mais-valia busca a reificação — conceito
sintomaticamente marginalizado. O que pode ser mais oportuno que a cons­
trução sem história (não falo dos “monumentos” históricos, é claro), auto-
referenciada, fechada em seu espaço, centrípeta — em resumo, “autônoma”,
isto é, autista? Isso é mais apreciado ainda à medida que as construções estão
em toda parte e que é por seu intermédio que crescem as mais atraentes mas­
sas de mais-valia.
Acompanhem o encadeamento da coisa. Para dominar o corpo produtivo,
instaurar a manufatura, o desenho se separa, se coloca à parte. Ele desdobra a
separação descolando-se do efetivamente construído para confundir a força de
trabalho, enfraquecer seu saber e seu saber fazer. Por conseqüência, desenha
construções artificiais que não correspondem à realidade do corpo produtivo.
Este não deve deixar nenhum vestígio de intervenção em nome próprio na
obra-mercadoria, nenhum vestígio do tempo de elaboração no objeto que
finge ter valor por si mesmo. Senão o efeito fetiche se esvai — e é a ruína. Fal­
tam ainda alguns passos. Voltaremos a isso.
Detenhamo-nos um pouco sobre os ajudantes plásticos da fetichização
(cujo universo, é evidente, tem outros trunfos).
576 A plástica destemporalizante, a que dissolve a sucessão lógica sob a simul-
taneidade fascinante tem graves implicações. O tempo ilógico é uma duração
sem consistência. Toda memória respeitável se dá, pelo menos, uma estrutura
narrativa mais ou menos consistente. O conceito exige um tempo lógico — e
uma lógica operando no tempo. Sem isso, só há deriva de sensações. Paulo
Arantes tratou bem dessas questões.33 A espacialização destemporalizante
elimina a mediação sob o imediato, o advindo sob o em si sem memória, a
produção sob o produzido. Ela tem seus motivos: após ter vendido “livremente”
/

sua força de trabalho, esta pertence ao capital. E necessário que o operário, o


que sabe e sabe fazer, que seu tempo, o da produção concreta, caiam fora, desa­
pareçam. Eles não devem invadir a propriedade do capital, é proibido. Eles
não têm nada a fazer no produzido. O produzido não lhe diz respeito e o ope­
rário deve respeitar o decoro e desaparecer. Aliás, é quase certo que ele nunca
f

o poderá consumir. Fora, de A a Z, zero à esquerda. E preciso que seja fiel a


seu contrato: ele vendeu sua força de trabalho. Habitá-lo ainda é um crime.
A bela plástica serve, assim, à justiça: erradica toda lesão à propriedade.
A fetichização da mercadoria — embuste quanto ao conteúdo — se serve das
formas bem arquitetadas. Ironicamente, Hegel sempre tem razão: o con­
teúdo é a identidade das diferenças desenvolvidas na forma. Mesmo um
conteúdo enganoso precisa de formas apropriadas. A palavra de Tartufo é
cheia de hipocrisias. A igreja, os homens políticos e os salões de beleza sabem
disso desde sempre. A forma mercadoria também tem suas formas plásticas.
Numa palavra, são as que negam a produção. São as que se restringem às
três dimensões do espaço e eliminam a dimensão do tempo, do rastro. Evi­
dentemente, neste há um afastamento — mas não desaparecimento. Ele volta
na percepção lúcida, como tempo que se reúne em retrospecção, que volta
condensado, reconstruído. O obstáculo que o prejudica no fetiche é o mesmo
que desvaloriza todo passado muito recente. Mas a saudade provocada por
sua falta aparece na adesão afetiva as ruínas e fragmentos ou na criação dos
museus, contemporânea da elevação da mercadoria à posição hegemônica.
Seu desenraizamento provoca a busca do tempo perdido alhures. Até o Renas­
cimento, até o aparecimento do desenho amnésico, pouco se ligava para as
ruínas, boas apenas como depósito de materiais. Como compensação mórbida
da falta, o desenho pula o que suprimiu e cai na antiguidade: o estilo clássico
e a arqueologia tapam o buraco. A respeito do fetiche, Freud diz que ele volta
ao lugar do proibido (eu sei, o fetiche de Freud não é o de Marx. Porém...). O
traço suprimido volta como hipóstase do traçado — como religião da concep­
ção, como mística da criatividade: todo o passado da obra sobe em direção à

0/ / 33 P. E. Arantes, Hegel, a ordem do tempo. São Paulo: Polis, 1981.


origem, rumo à figura do demiurgo arquiteto. Os conceitos mais importances
em circulação nos meios de cima ressoam em torno do tempo: projeto, cm
ção, concepção etc. Por artimanha das coisas, como é preciso que o bloco da-
prescrições (projeto, de modo geral) seja seguido ao pé da letra, a obra, oLmnii.
como ícone, não “se torna” senão a imagem do desenho que a produziu. C
tempo sempre, tempo de filiação. Mas tempo sem sujeito porque sem rastro..
No lugar do sujeito, resta somente o ego.
A plástica implícita no ensino do projeto em nossas escolas, assim come =
praticada pela maioria dos arquitetos e que desce para quase toda construed
mesmo a “espontânea” como se diz, é a da fetichização. Apesar dos tesourei
de saber acumulado quanto à forma, a crítica continua indigente. Precisam :»s
de um Freud da plástica. No mito, as contradições atuais buscam solução na
narrativa; no fetiche arquitetural, elas se escondem sob a supressão do teu:»:,
na erradicação da produção. Mas esse quiasma não é simétrico. A destemr-: •
ralização produz destruições. A que provém do ego no lugar do sujeito, do ; u:
lugar do S, como escreveria Lacan, é devastadora.34
Estabelece-se uma constelação entre todos esses passos: separação, desce.i
mento, substituição, aparência imaginária, forma da forma fetiche... o todo u:
molho do ego.

SOBRE O CAPÍTULO "O CANTEIRO"

A negação lógica, que é indicada exclusivamente pela partícula não, jamais f


propriamente inerente a um conceito, mas somente a uma relação dele com
um outro conceito no juízo e nem de longe, pois, é suficiente para designar
um conceito com vistas a seu conteúdo. [...] Ninguém pode pensar determi-
nadamente uma negação sem que tenha posto como fundamento a afirma ;ã:
oposta. [...] Portanto, todos os conceitos de negação também são derivados
Todas as verdadeiras negações não são, pois, senão limites; elas não podenan
ser chamadas assim se não estivessem fundadas no ilimitado (o todo).35

A FORMA DA FORMA MERCADORIA

Primeira afirmação: A obra de arquitetura é antes de tudo mercadoria. Seu


fundamento è o valor.

34 Ver S. Ferro, “La Trace”, op. cit., 2a parte.


35 I. Kant, Crítica da razão pura. Tradução de Valerio Rohden e Udo Baldur Moosburger.
378 2a. ed., São Paulo: Abril Cultural, 1983, pp. 289-90.
Nada a acrescentar: Marx já o afirmava — e isto se torna uma banalidade
no contexto da “globalização”.
Entretanto, o que também perdura mas surpreende sempre é a indife­
rença dos profissionais diante de tal evidência que não os afeta. Mais ainda,
desviam-se dela entediados, como se se tratasse de uma grosseria deslocada,
uma banalidade sem interesse. A arte da arquitetura pairaria acima dessas
coisas. Aliás, a crítica, preventivamente, já dividiu os campos: haveria uma
arquitetura não comercial (mas feita como qualquer outra coisa) em oposição
à que cede ao mercado (o mesmo se dá na pintura). Assim, o lançamento de
um novo produto (o pós-moderno, por exemplo), pode apresentar-se como um
avanço da pura criatividade.
/

E importante insistir nesse aspecto, dado que toda nossa crítica decorre
dele. A atividade arquitetural, desde o Renascimento pelo menos, contribui
fortemente para a valorização do capital investido na construção. Desde os
primeiros passos da projetação, o horizonte do valor comanda. (Evidentemente,
há um outro projeto possível. E já se anuncia em torno do Movimento dos Tra­
balhadores Rurais Sem Terra (mst) no Brasil — voltaremos a isso. Porém, aqui,
falo da arquitetura chamada normal — aquela que devemos decompor).
Mas dizer e repetir isso parecem minha inútil obsessão, pois hoje tudo
se torna mercadoria, tudo é concebido como mercadoria — ou seja, crista­
liza-se em torno do valor. E sair de seu mundo, depois da falência da farsa
do socialismo, parece um sonho utópico. Mas esquecer isso, fazer de conta
que se trata de uma constante inofensiva, desconsiderá-la porque dema­
siado universal, é avalizar a usurpação sob o pretexto de que ela existe em
toda parte. A prática surda à evidência prolonga-a sem remorsos, mas não
evita a co-responsabilidade. E isso apesar dos vôos da crítica, que sublima os
estigmas da irracionalidade indispensável à pilhagem em traços de beleza
— ou que, desvirtuando completamente seu conceito, exalta a “liberdade”
de criação dos “egos” cheios de arrogância dos encarregados de encontrar
idéias novas. Esse movimento cego atinge o clímax quando o uso confirma
a vocação (mercantil) da produção: em torno do Banco de Hong-Kong ou do
Guggenheim de Bilbao, um outro templo do valor como se tornaram todos
os nossos museus.
O procedimento tecnológico próprio de todo projeto derrama o peso da
causa final (aqui, o valor) sobre o conjunto do processo. A mercantilização
do construído não é uma etapa, não acontece após a construção e a projeta­
ção — mas se infiltra por toda parte, em todas as etapas. Esse fundamento é
pressuposto desde o início. E, nas atuais condições de produção, a arquitetura
ocupa uma posição estratégica. Sendo mediação, contém em si os extremos, a
579 programação usurpadora e o fazer acéfalo, o desenho exterior e a realização
submissa. Mas sua mediação é opaca, afastadora: mantém os extremos separa­
dos e é um agente de tal separação.
Evidentemente, tudo isso é mais ou menos verdadeiro em toda parte, é
próprio do sistema capitalista. Mas acredito que um dos méritos deste texto
é o fato de se propor a acompanhar a aplicação dessa universalidade na par­
ticularidade da produção do construído. Acompanhar no detalhe, às vezes
bastante modesto, os confrontos variados e específicos que, aqui, dão forma
à luta de classes. A posição operária é determinada como em todos os luga­
res: pela não posse das forças e dos meios de produção a que, no entanto, ela
deve servir. Tal sujeição passa por meandros incessantemente reconduzidos
ou renovados e típicos, em grande parte, de cada setor da produção. Um dos
erros mais graves do pseudo-socialismo resultou do desconhecimento disto: só
a posse coletiva dos meios de produção não basta para transformar de modo
eficaz as relações de produção. Essa posse pode coabitar com a sujeição, com
formas despóticas de organização do trabalho — e deslizar para o discutível
“capitalismo de Estado”. Sem modificações radicais da organização do traba­
lho, não há superação possível das milhares de figuras da dominação. Donde a
necessidade absoluta de conhecer a fundo as engrenagens, pequenas ou gran­
des, que escondem o universal da exploração na particularidade.
Depois da elaboração deste texto, no interior do laboratório de pesquisa
que eu dirigia em Grenoble (Laboratório Dessin / Chantier), estudos de histó­
ria demonstraram amplamente a constância desse processo desde (aproxima­
damente, digamos) o século XV e sua permanente adaptação às condições da
luta de classes. Esboçamos uma outra história da arquitetura, vista de baixo (e
que, talvez, tivesse o aval de Marx). As grandes transformações da arquitetura
parecem, então, obedecer menos às hipotéticas kunstwollens e mais a etapas
de confronto das classes na produção. A história do movimento operário não
f

pode ser separada dos refinados debates estéticos. E essa montagem histórica,
onde se embaralham domínios tradicionalmente separados (morfologia, eco­
nomia, organização do trabalho etc.), que devemos desmontar se, realmente,
quisermos mudar alguma coisa.

Segunda afirmação: A forma produtiva particular que a hegemonia do valor


assumiu no construir é (foi) a da manufatura.
Esta forma domina desde o século XV pelo menos, desde Brunelleschi
(para balizar uma origem). Se considerarmos de modo adequado esse segundo
plano que constitui a base da longa história da profissão, as mudanças mais
rápidas de estilo ou de moda, de discurso ou de prática podem ser vistas como
agitações de superfície ou adaptações de conjuntura. A forma manufatureira
380 dá a linha condutora da continuidade.
Entretanto, o papel dessa constante desloca-se com o tempo, muda de
motivação. Primeira adaptação da produção pelo capitalismo (efetuada simul­
taneamente nos setores têxtil e da construção), ela serve, primeiro, para a acu­
mulação primitiva: a taxa de mais-valia é aí muito alta. Superada depois pela
submissão real do trabalho na indústria, ela serve também (e pode ser mais
ainda, segundo as situações) como forma de resistência à queda tendencial da
taxa de lucro que a evolução contraditória provoca.
A manufatura da construção é, desse modo, fortemente sobredeterminada
pelo conjunto da economia política. Nenhuma “natureza”, nenhuma especi­
ficidade do ato de construir impõe tal forma. Ao contrário, ela decorre de sua
relação com o exterior — primeiro como oposição “progressista” ao mundo das
corporações, depois como compensação às contradições do avanço do capital.
/

E justamente por isso que ela se torna a “qualidade” específica, a diferença


específica, a marca distintiva da fabricação do construído. Como em toda
parte, a “qualidade” só é diferença em relação ao outro, à sua “negação”. Mas,
pouco a pouco, pela reflexão em si, o que vem do exterior se reúne como em
si, se fixa como essência do construir, sua substância.
Isso desemboca numa rede de conseqüências estruturadas. Destaquemos
somente uma parte: a que decorre do fato de que o trabalho, aqui, é subme­
tido apenas na forma — em oposição à maioria dos outros trabalhos que foram
realmente submetidos ao capital. O que pode parecer um simples detalhe ou
um preciosismo crítico impõe uma série de especificidades da construção. Pri­
meiro, no nível da forma arquitetural: esta — além de seus aspectos funcionais,
“estéticos”, semiológicos, comuns a toda forma utilitária — deve investir-se de
uma espécie de força repulsiva em relação a toda intervenção modificadora
durante a execução (que seria normal em condições de não submissão real),
deve investir-se de uma espécie de aura alienante protetora. Um pouco mais
abaixo, no nível do canteiro de obras, a não submissão real força ao extremo
o despotismo da direção. Do outro lado, do lado dos trabalhadores, isso pro­
vocou uma espécie de especificidade muito marcada de sua história. A com-
pagnonage,36 muito típica da construção, foi uma forma de reação invertida
do corpo produtivo, simultaneamente solicitado e arruinado pela produção.
Depois da industrialização, seu afastamento em relação ao trabalho realmente
submetido manifestou-se por uma tendência anarquista, muito sensível às
questões de fundo, de destino da produção, de responsabilidade, de escolha etc.

36 Organização dos operários de uma mesma profissão em associações com finalidades de


381 instrução profissional e de assistência mútua [n.t.].
Terceira afirmação, aparentemente uma repe lição — mas que envolve enor­
mes conseqüências: O trabalho manufatureiro é coletivo — mas, hoje, um cole­
tivo que tem a cabeçafora dele.
Duas dessas conseqüências, dentre outras. Aquela presente em toda minr. =
crítica: o desenho de arquitetura (e a direção sob todas as suas formas) é o
princípio que garante esse coletivo de indiferenças, meio que contém o sepa­
rado, força exterior que assegura sua co-presença, cabeça abusiva do coletivo
decapitado. Isso se torna conteúdo: o sonho de uma arquitetura orgânica
desapareceu com Wright. Foram preferidas (necessariamente) as “máquinas'
as tramas, o enquadramento — todos os procedimentos em que a totalizaçao
submete as partes pela imposição de sua figura.
E outra conseqüência muito pouco sublinhada na primeira parte: basta­
ria, realmente, assumir esse “coletivo”, deixá-lo desenvolver seu autêntico
conceito para abrir uma outra prática arquitetural. Isso esteve na origem das
experiências que Rodrigo Lefèvre, Flávio Império e eu realizamos. Extraor­
dinariamente simples, ordinariamente proibidas. Se as posições severas des:e
texto obrigaram-me, por dever moral, a não mais exercer a arquitetura “nor­
malmente” desde sua elaboração (1968-76), continuei, no ensino e nas raras
e reduzidas oportunidades experimentais, a mostrar que essa outra prática e
possível, com todo o rigor que tal noção implica — isto é, que temos todas (eu
disse todas) as condições para iniciá-la e para torná-la efetiva, se nos livrar­
mos do entrave da exploração.
E necessário que me detenha um pouco aqui, embora devamos voltar a
tais questões. Este texto foi acusado de ser apenas negativo, antiarquitetura
etc. Devo responder a isso. Este texto, ao contrário, é de uma positividade
quase excessiva. Acusaram-me também (eram os situacionistas, por volta de
1973-74) de dar muita esperança. Este texto afirma que uma outra via que
não aquela das misérias (humana, plástica, social) é possível... para a arqui­
tetura de hoje também. A aparência de utopia começa a se desfazer. A prefei­
tura de esquerda de Porto Alegre não demonstrou que é possível deixar que
funcionem livremente coletivos muito mais complexos para missões delicada
(orçamento municipal participativo de uma cidade de mais de um milhão de
habitantes)? Será muito mais fácil fazer a mesma coisa em arquitetura, com:
já demonstram vários programas alternativos. A ideologia da “nova econo­
mia” e o pessimismo burguês são, nesse caso, claramente desmentidos.
A manufatura — nascida, é claro, para o capital — traz em si o que lhe per­
mitirá superar-se (no sentido da aufhebung): tornar-se outra ao mesmo temp:
em que se mantém. O “coletivo”, hoje negativo, negado enquanto negativo. -s
pode se tornar positividade. E é 0 movimento mesmo da coisa que 0 implica.
382 E somente a prática capitalista (ou pseudo-socialista) da manufatura da cons-
truçao que implica o despotismo da direção. Imaginem: conforme o país, só há
de 15 a 20 corpos de profissões para uma construção normal, às vezes menos que
isso. Deixá-los formarem um coletivo autônomo (nada a ver com a desordem ou
com o romantismo medievalizante: é autônomo o que tem sua necessidade em si
— isto é, o que é simplesmente livre) não é sonho de intelectual. Eu os vi fazerem
isso — o que não implica o desaparecimento do arquiteto, muito pelo contrário.
/

E necessário apenas que ele saia de seu eu, que abandone a posição demiúrgica
do criador diante de uma hylé pretensamente amorfa para chegar à posição de
sujeito no espírito objetivo. Isto é, aqui, sujeito do que é objetivamente efetivo e
ativo no corpo produtivo — o coletivo — seu saber, seu saber fazer e seus materiais.
Ao invés de comandar em posição de necessário desconhecimento, pois seu pen­
samento é exterior, mergulhar na coisa e levá-la à existência da melhor maneira
/

possível. E muito simples. Dominar é muito mais complicado.


Infelizmente, tal caminho não parece agradar a um grande número de
arquitetos. Zaha Hadid — que tem um ego que não precisa de ajuda — conta
que um grande arquiteto, cujo nome ela prefere não revelar, pensa que as
mulheres não têm ego suficiente para serem arquitetas.

Quarta afirmação: O desenho é um componente da direção despótica.


Outra fonte de mal-entendidos. Tive alunos que, lendo isso muito rapida­
mente, não desenharam mais: era a arma do diabo. Resultado, certamente, do
fato de que escrevo mal. Vamos então corrigir.
Foram seu uso e o que este uso fez dele hoje (isto é, no âmbito do capital)
que transformaram o desenho em arma do diabo — do qual ele assume as
astúcias. Na produção dominante, o desenho não pode evitar ser isso. Rodrigo
Lefèvre, numa situação crítica, fez projetos para uma grande empresa; seus
desenhos aplicavam todos os nossos propósitos de mudança. Mas ele estava
proibido de tocar no canteiro de obras — e os projetos foram utilizados “nor­
malmente” — isto é, de modo despótico. O espírito do projeto serviu a seu
contrário. Também ele abandonou tudo e partiu para uma outra experiência
na Guiné Bissau. O melhor dos desenhos não escapa à possibilidade de desvio
pelas artimanhas da dominação.
Isso reafirmado sem nenhuma restrição, é necessário reafirmar também
que há um outro desenho. De modo esquemático, ele se caracteriza pela
previsão (radicalmente racional, mas sensível, “humana”, não é exclusivo)
exaustiva dos passos de uma produção bem sucedida e lógica — permanecendo
abert.o, entretanto, às modificações durante a realização. Desde o início, há
uma dupla atenção em relação aos produtores: a seu saber acumulado histo­
ricamente — e a sua reação no presente. Ele se coloca à escuta da mediação, o
383 meio termo em que reside a racionalidade do trabalho. E isso que evita que
o desenho, querendo formar imediatamentc o objeto do projeto, sucumba à
satisfação apenas do desejo do projetista e regrida, pois, à não-historicidade. É
apenas através da manutenção rigorosa da racionalidade da mediação que a
acumulação histórica e a universalização da experiência tornam-se possíveis.
A base do procedimento não é complicada: separa o máximo possível
os elementos funcionais e os elementos do corpo produtivo, pois a regra da
manufatura, uma vez afastadas todas as formas de dominação, é a sucessão, a
acumulação dos trabalhos específicos e diferenciados, o que permite que cada
um se dirija para sua maior racionalidade e simplicidade. Essa pureza evi­
dente de cada passo não elimina a possibilidade de que cada componente do
corpo produtivo execute livremente sua partitura — com a concordância dos
outros, é claro. A contradição se resolve por radicalização: é separando, garan­
tindo a autonomia a cada um, a cada equipe que a razão, a necessidade de sua
livre colaboração, aparece claramente e se instala no seio da produção.
Há, portanto, um outro desenho — aquele que ensinei e que acompanhava
como alternativa meu trabalho crítico.
Mas continua sendo verdadeiro que, no uso habitual, todo desenho pode
servir à direção despótica em arquitetura. Dessa afirmação, freqüentemente
se deduz a seguinte conseqüência: ela implica desconhecimento e desprezo
em relação ao que o projeto pode conter de beleza, de pensamento, de espírito
etc. É preciso, entretanto, não recuar diante da evidência: o uso despótico do
mais puro dos projetos não o deixa imune. O ser é essência (primeira parte da
lógica objetiva de Hegel). A essência é o ser efetivo (segunda parte). A essên­
cia do projeto é o que ele faz aparecer na efetividade — nada mais. Sant’Elia e
o Archigram fizeram desenhos, não arquitetura. O que não é efetividade do
espaço e do uso permanece vazio. E, ao contrário, a boa intenção pode reco­
brir práticas discutíveis. Quando se recusa a distinguir as moradias por classes
sociais, Niemeyer tem razão moralmente — mas o resultado prático foi a exclu­
são dos trabalhadores de Brasília. Veremos que a forma, que sempre já é con­
teúdo, o revela sempre. Parece que, de tanto viver sob a forte influência das
imagens, somos tentados pela cegueira, porque a análise cuidadosa do univers:
formal do desenho de arquitetura da manufatura no âmbito do capital conta
claramente suas transformações e seus dramas. A exterioridade do projeto e
seu desconhecimento da mediação que sua função despótica implica fazem
com que a forma nunca corresponda à reflexão em si do material.
A essência do projeto aparece no ser que ela anima, sua aparência (a apa­
rência da essência) — o resto é discurso.
A FORMA DE "TIPO ZERO"

Primeira afirmação, claramente exposta na citação de Deleule e Guéry: Entre


aforça produtiva do trabalhador parcelado e seu produto unitário, interpõe-se o
capital sob aforma técnica do trabalho... de unificação das tarefas.
Tudo é importante aí: “entre”, “força produtiva”, “capital”, “unificação
das tarefas”. Na manufatura da construção, a base da unificação das tarefas é o
projeto. Ele é uma forma técnica do capital. Coloca-se entre a força produtiva e
o produto, entre o fragmentado e o unitário, entre a ação e seu objetivo. Leiam
as páginas de Kant e de Hegel sobre a teleologia e sentirão a violência que
pode se esconder aqui. A atividade não é humanizadora, isto é, a de um sujeito,
senão quando é atraída por seu objetivo — objetivo do sujeito —, desdobra-se na
objetividade produzindo sua identidade (sujeito / objeto). É no seio da teleo­
logia que Kant situa a arte. Em Hegel, a atividade finalizada desenvolvida é
necessariamente a de um sujeito — senão há regressão ao nível do mecanismo.

Vários textos da filosofia do espírito do período de lena mostram que esse


meio-termo procurado, que Hegel havia denominado razão e reconhecido em
ato na imaginação produtiva, por exemplo, pode ser redescoberto também
na reflexão teleológica do trabalho e, mais precisamente, no instrumento, “o
meio-termo racional existente, a universalidade existente” [...] Esse meio
termo concreto apresenta também uma dupla face, isto é, aparece dos dois
lados da oposição: do lado da atividade subjetiva, como trabalho; do lado
da objetividade, como instrumento [...]. No entanto não redobra a cisão
sujeito-objeto, muito pelo contrário, pois “a unidade deles aparece como um
meio-termo entre ambos, como Obra dos dois, como a realidade terceira à
qual ambos se referem e na qual são um mas também como aquilo no qual
eles se distinguem” [...] este [o trabalho] é alçado ao estatuto de momento da
lógica do Conceito. A Reflexão em si do Absoluto que se põe como oposta e
reabsorve a oposição pode ser pensada com o auxílio do conceito de trabalho
— e não se trata de metáfora; o trabalho, por sua vez, torna-se Razão agente.37

O grande alcance especulativo do conceito de trabalho, a partir do qual Hegel


efetua a divisão entre natureza e cultura e fundamenta a história e a acumu­
lação do saber, faz um contraste sombrio com o trabalho efetivo na manufa­
tura da construção — e, no entanto, são muito próximos... O efeito alienante e

37 P. E. Arantes, Hegel, A ordem do tempo, op. cit., pp. 193-194. As passagens entre aspas são
385 de Hegel.
regressivo do projeto sob o domínio do capital tem aqui seu ponto de ancora­
gem: esse componente do trabalho, de unificação das tarefas, interpõe-se entre
o trabalho produtivo e o produto, bloqueia a autonomia da relação entre a ação
e seu objetivo, entrava, impede que o ato se torne o ato de um sujeito. Somente
os que têm olhos para ver e não veem podem dizer que a assinatura do arqui­
teto representa o sujeito da obra; nenhuma identidade do sujeito e do objeto é
mais possível aí, desde que o capital se apropriou do “meio-termo” e o modifi­
cou à sua imagem. Ao contrário, há degradação, des-subjetivação, recuo do “re­
unificado”; não se pode passar liricamente do desenho ao propósito e ao dasein.
Entre o projeto e o projetado, a força produtiva do trabalhador do trabalho
/

parcelar torna-se meio. E ela — e somente ela — que, objetivamente, faz a pas­
sagem de um a outro. E então:

O fim se revela ser apenas o meio: inversamente, o meio se revela ser fim.58

O fim realizado é também meio e, de modo inverso, a verdade do meio


consiste também em ser ele próprio um fim real.38
39

Hegel parece aqui, como observa o jovem Marx, pressentir a economia polí­
tica. No mau infinito do fim que se torna meio (para a realização da mais-
valia, da mercadoria) e do meio que se torna fim (para a extração da mais-
valia), nessa viravolta da relação teleológica reside toda a astúcia do processo.
Porque a mola fundamental não é o produto unitário próximo — casa, palácio,
escritório —, momento transitório e passivo do capital, mas a recondução do
meio como fim, momento ativo do capital, a exploração contínua do corpo
produtivo. Imediatamente após o fim de um canteiro de obras, o promotor
imobiliário lança um outro.
O projeto opera nessa ambigüidade da relação teleológica: no sentido da
ida, configura o objeto a ser construído; no da volta, aquele que faz do meio
o fim, ele é documento prescritivo. O que deveria ser “razão agente” torna-se
desprovido de razão: a razão implica, como momento, a consciência de si. O
projeto toma o lugar dessa consciência, os que trabalham (o “sujeito”) não
são os que decidem quanto à forma (do “objeto”), sua identidade é falseada.
O projeto é retirado, subtraído, proibido aos “meios” para que não se tornem

38 A. Doz, La logique de Hegel et les problèmes traditionneles de Vontologie. Paris: Vrin,


1987, p. 272.
39 G. W. F. Hegel, Science de la logique, tradução de P. J. Labarrière e G. Jarczyk, tomo II,
Doctrine du concept Paris: Aubier, 1981, p. 269.
sujeitos. A separação dos trabalhadores dos meios de produção deve ser com­
preendida em toda a extensão de suas significações: no sentido material de
base — mas também separados deles próprios tornando-se simples “meios”, e
ainda separados dos meios de pro-duzir (pro ducere), de determinar sua con-
/

duçao por seu próprio fim, o pro para onde ducere. E tudo isso que deve ser
corrigido, caso se queira mudar alguma coisa.

Onde se percebe uma finalidade, admite-se um entendimento como iniciador


dessa mesma (finalidade); portanto se requer para o fim a existência livre, pró­
pria, do conceito. A teleologia se contrapõe, sobretudo, ao mecanismo, no qual a
determinidade posta no objeto é essencialmente, como (determinado) exterior,
uma determinidade na qual não se manifesta nenhuma autodeterminação.40

Mais adiante, Hegel observa ainda:

Na teleologia, o conteúdo torna-se importante porque ela pressupõe um con­


ceito, algo de determinado em e para-si e, por isso, um “autodeterminante”.41

Entre as duas citações, Hegel associa o mecanismo àquilo que tem uma causa
apenas eficiente — e o teleológico, ao que tem uma causa final. Tudo isso faz
de nossa manufatura um ser híbrido, monstruoso. A causa final hegemônica é
o valor, na ótica do capital. O projeto exterior confirma a não autodetermina-
t

çao do corpo produtivo. E a causa eficiente, determinidade vinda de fora; ele


faz desse corpo um mecanismo (veremos que é mais do que isso).
A última citação continua assim:

[...] da relação entre as diferenças e seu ser, determinados uns pelos outros, a
forma (a teleologia) distinguiu a unidade refletida em si, um determinado
em si e para si e, portanto, um conteúdo.42

Logo, o único conteúdo possível (a unidade refletida em si cujo lugar o pro­


jeto tenta ocupar) deveria resultar da relação das diferenças (aqui, os corpos
de profissões, determinados uns pelos outros, complementares uns aos outros)
da forma do corpo produtivo polarizado pela teleologia. Ora, a relação das
diferenças dos corpos de profissões é de tipo mecânico, não determinada

40 G. W. F. Hegel, op. cit., p. 247.


41 Idem, p. 250.
537 42 Idem, ibidem.
em e para si mas, sim, pelo capital através do projeto. Então o “conteúdo” é
vazio, embora possa ter ares de uma casa, de um palácio ou de um escritório.
A forma (arquitetural) não tem conteúdo... ou, então, é aquela do mecanismo,
“máquina de morar”, como se dizia.
As citações ajudam-nos a circunscrever questões centrais: não há teleologia
- projeto - autêntica sem a autodeterminação do trabalho, dos meios; não há
conteúdo outro nesse caso que não o da dominação externa e do mecanismo.
Façamos um desvio, um pouco de história simplificada. É ainda acerca da
conjunção necessária entre Renascimento, clássico e manufatura Tal PAnjimqarv
resulta do surgimento do capital — e só se impôs através de uma dura luta social.
Destaquemos dois de seus traços, bastante conhecidos, aliás. Primeiro, o descré­
dito sistemático, grosseiro, do estilo tedesco, do gótico. Ele não se dá, no fundo
e apesar da argumentação, por razões de gosto. Mas, sim, porque essa arquite­
tura ainda era fruto da cooperação simples (ver Marx) — embora já estivesse
contaminada pelo aparecimento dos parleurs e de proto-arquitetos. Entretanto,
tratava-se de cooperação simples. Para instaurar a manufatura (necessária à acu­
mulação primitiva do capital que dependia sobretudo da construção), era pre­
ciso, ao mesmo tempo, arruinar, denunciar a arquitetura da cooperação simples,
acusá-la de barbarismo, de ineficácia etc. O interesse subterrâneo era retomar
o controle da produção, mudar a técnica para destruir o poder devido ao saber
fazer dos construtores, fragmentar o trabalho. Desqualificá-lo para reduzir os
salários. A argumentação ideológica dividiu-se em três capítulos: da soliditas, da
utilitas, da venustas. Deixemos de lado os dois primeiros (apesar das acusações,
o gótico resistia e servia). Em geral e de modo evidente, a nova técnica — a das
paredes maciças — era inferior à que ela substituía. Ainda serão necessários sécu­
los para que surjam “ciências” da construção mais operatórias. Quanto ao uso, a
crítica limitou-se ao da elite. (Textos como I libri deliafamiglia, de Alberti, ou
II cortegiano, de Castiglioni, são exemplares a esse respeito).
Venustas era mais maleável — porque mais indeterminada. A base esco­
lhida para lançar o ataque foi o belo estilo antigo. Ele fornecia um sistema
de formas alternativo (por sua vez, até então desprezado pelo românico e
pelo gótico, suas ruínas serviam de pedreira). “O” clássico oferecia a dupla
vantagem de não ser um sistema de cooperação simples e de exigir apenas
uma mão-de-obra relativamente pouco preparada e, portanto, menos cara.
Além disso, sendo um sistema desconhecido por essa mão-de-obra, escapava
ao perigo da assimilação: o procedimento arqueológico continuava fora de
seu alcance. E, vantagem adicional, só havia sido descrito pelo mais absconso
dos textos sobre a arquitetura (os dez livros de Vitrúvio) e cujas ilustrações
haviam sido perdidas. Será sempre um texto inacessível ao corpo produtivo.
388 Sobretudo porque quatro séculos de debates, tratados, traduções, sessões das
academias encarregaram-se de nunca codificar “o” sistema que, por outro
lado, as explorações sucessivas não paravam de deslocar. Mas, constantemente
envolvido por mistérios e por uma cortina de fumaça, ele era colocado como
existente. Era um “saber” perfeito, inexpugnável — porque desprovido de
corpo fixo e em constante movimento. O desprezo altivo da elite tornava-se
mais corrosivo ainda: como resistir ao discurso “erudito” e elegante, aos
argumentos maleáveis, quando só se tem como arma um saber fazer? Este
vai desaparecer pouco a pouco junto com a cooperação simples. (O mesmo
processo vai se reproduzir com o nascimento da arquitetura moderna. Tratava-
se, então, de destruir a competência dos pedreiros e dos carpinteiros, que se
haviam tornado poderosos demais no seio do ameaçador sindicalismo revolu­
cionário. Ainda hoje, na arte, os “organizadores”, “mediadores”, “curadores”
empregam, por sua vez, a mesma tática contra os artistas para tomarem o
poder nesse campo, o da economia das megaexposições que comandam o con­
junto. Eles ridicularizam os pintores e os escultores — acusados de serem arte­
sãos, de cheirarem à terebintina — e içam em seu lugar “a arte” outra, a que
depende inteiramente deles — instalações etc — à dignidade do novo modelo).
Descrédito, mudança de técnica e tomada de poder caminham juntos.
A partir de então, uma fratura intransponível até nossos dias atravessa a arqui­
tetura. O fundamento das artes plásticas (das artes do espaço) é o trabalho livre
(como o das artes do tempo é a palavra livre). Esse é seu conceito verdadeiro e
não há outro. O impasse torna-se, pois, insuperável: como valorizar o trabalho ao
mesmo tempo em que se castra em outro ponto — ou melhor, no interior de seus
próprios “meios”? Os ziguezagues sem saída, os jogos de imagem, as ilusões são
os únicos recursos. Obcecadas por seus conceitos que precisavam ser renegados, as
artes plásticas repetem os lapsos, os atos falhos, os deslocamentos e condensações.
/
Por exemplo: a arte, como trabalho, é atividade. E-lhe necessário, pois, um fazer
— mas um fazer como se não se fizesse (mais ou menos as palavras de Michelan­
gelo a Francisco de Hollanda) — visto que se é artista e não artesão. Castiglione
deu um nome a isso: a sprezzatura, para a qual uma das traduções possíveis é o
desdém — o desprezo. Leonardo Da Yinci participa desse movimento puxando o
conceito para só um de seus momentos (a arte é cosa mentalè), esquecendo que
não há conceito sem o momento da objetivação. Quase quatro séculos depois,
Duchamp ou os “conceituais” (isso parece uma brincadeira) ainda estão aí.
A determinação do que pode ser venustas não é fácil. Séculos de discursos
v
reverentes tornam impossíveis a crítica e a simples objetividade. A primeira
vista, venustas é o que a soliditas e utilitas não são. Diz-se que a arquitetura
é a construção (a soliditas) mais alguma coisa (que não é a função, a utili­
tas). Ora, a soliditas e a utilitas têm um domínio e critérios muito precisos.
369 Construir bem tem um campo de saber e um de saber fazer definidos, tem
exigências conhecidas. Do mesmo modo, o bom funcionamento dos espaços
e dos componentes responde a necessidades e usos claramente estabelecidos.
Para simplificar, digamos que construir e usar constituem práticas “positivas",
não venustas. Primeiro, ela é marcada pela negação simples. Os pilares, as
arquitraves, os arcos etc. que o clássico nos mostra correspondem raramente
à verdadeira estrutura. Esta, principalmente na Itália, baseia-se sobretudo
na enorme massa das paredes, como no tempo dos romanos. O que se pode
ver e em torno do qual gira o discurso estético desconhece sistematicamente
a realidade construtiva. O que é figurado é imaginário, quase sempre “plau­
sível” mas não efetivo. Do clássico ao moderno, da capela Mediei ao convento
de la Tourette, representam-nos ficções.4"3 A mesma observação pode ser feita
a respeito da relação entre a venustas e a utilitas: espaços, circulação, janelas,
portas, proporções etc. são sobredeterminados por injunções de simetria, ali­
nhamento, repetição e assim por diante. E essas ultrapassam, desviam, afastam
as conveniências de funcionamento. Assim, em seu fundamento, venustas é o
que se afasta, nega e esconde o técnico e o funcional. Isso é a determinação de
sua “qualidade” (— diferença). Ora, a forma, a forma que se dá venustas é con­
teúdo — quando é considerada na abstração de sua unidade (a negação). Esse
distanciamento, esse afastamento, esse desprezo da forma em relação a seus
prosaicos opostos (o técnico, o funcional) — aí está todo o seu conteúdo efetivo.
Separação do fazer e do usar reais, representação de um fazer e de um usar de
substituição. Primeiro aspecto do despotismo: esse desenho, que comanda, que
prescreve o fazer e o usar, zomba deles, pois quer ser belo.
Entretanto, como na religião, o mundo substitutivo imita e sublima, copia e
maquia, ao mesmo tempo, o mundo substituído. Repito, o desenho, tanto o clás­
sico quanto o contemporâneo, imita construções plausíveis. Raramente — mas
existe — o representado não seria realizável — e raramente também ele figura
o realizado. Mais ainda: alguns traços do representado são como metáforas ou
metonímias da cooperação ou da manufatura “purificadas”. Assim, por exemplo,
a seqüência que vai da base da coluna à chave da abóbada, onde cada elemento
é nitidamente sustentado pelo que o precede e sustenta o seguinte, é “susten­
tado — sustentáculo”, esquematiza (metonímia) a seqüência ideal da manufatura
serial em que cada equipe, cada trabalho acumula-se sobre o anterior e serve de
base ao seguinte, quando a técnica de dominação não desarranja tal seqüência.43

43 Ver: S. Ferro, Michel-Ange, Architecte et seulpeteur de la chapelle Médicis. Grenoble:


Plan Fixe, 1998; S. Ferro, Ch. Kebbal, Ph. Potié; C. Simmonet, Le Couvent de la Tourette.
Marselha: Parenthèses, 1987; S. Ferro, “Les traces de la conception”, em Les Cahiers de
390 la Recherche Architectural, n. 34,1993.
De modo comparável, a relação das partes no seio do todo do desenho clássico,
simultaneamente autônomas e concatenadas, remete ao ideal da colaboração das
equipes autônomas no seio do todo da produção. No plano do discurso, burila-se
ao máximo a ordem (e sua desordem crônica), discutem-se ritmo, modenatura,
equilíbrio, harmonia etc. Suas definições traçam órbitas em torno do núcleo
ocultado, descrevem o que seria a cooperação coletiva ótima — mas imobilizada
na abstração do apenas visado, do sollen e posta como se fosse propriedade da
coisa. Desenho e discurso quebram e desconhecem o que seria a base de uma
produção bem-sucedida e a colocam em outro lugar. O que é negado na prática
e, em parte pelo menos, graças ao desenho, volta no desenho como fisionomia
de vénustas. Outro aspecto do despotismo: a exaltação justamente daquilo que
foi proibido aos dominados, virada contra os produtores daquilo que lhes foi reti­
rado — como o capital, que é trabalho (morto) voltado contra o trabalho (vivo).
Olhemos mais de perto a beleza — em Kant, por exemplo. (Peço desculpas
antecipadas por minha incompetência filosófica; tomo esse exemplo apenas
como um sintoma entre outros).
Tomemos as quatro definições de Kant sobre a beleza, segundo as quatro
famílias de categorias, em A crítica dafaculdade do juízo:44

Gosto é a faculdade de ajuizamento de um objeto ou de um modo de


representação mediante uma complacência ou descomplacência independente
de todo interesse. O objeto de uma tal complacência chama-se belo.
(Definição segundo as categorias da qualidade).
Belo é o que apraz universalmente sem conceito.
(Definição segundo as categorias da quantidade).
Beleza é a forma da conformidade a fins de um objeto, na medida em que ela
é percebida nele sem representação de um fim.
(Definição segundo as categorias da relação).
Belo é o que é conhecido sem conceito como objeto de uma complacência
necessária.
(Definição segundo as categorias da moralidade).

Retirem-se o “independente de” e os “sem”: as asserções tornam-se quase


r

banais — ou discutíveis. E belo o que satisfaz universal e necessariamente e que


tem a forma somente da finalidade. Que o belo seja o que satisfaz, é admissível
(masque não possa ser “agradável” ou “bom” é menos aceitável. Como evitar

44 Immanuel Kant. Crítica dafaculdade do juízo. Tradução de Valerio Rohden e António


591 Marques. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993, pp-15, 64, 82 e 86.
achar “agradável a cor verde de um prado... pintado por Giorgioni ou Pous­
sin?,45 ou que a “boa” posição ética de Picasso não nos leve a achar “belo” o
Guernica?), mas isso é também uma futilidade. Quanto à necessidade e à uni­
versalidade, indicam principalmente o etnocentrismo de Kant: leia-se o que
escreve sobre as outras “raças”, sobre os negros e os índios — ou aqui mesmo
sobre os neozelandeses.46 Será possível supor que os “construtores de catedrais"
achavam bela a arquitetura clássica que condenava sua competência e fazia
seus salários caírem? Ou que os trabalhadores do sindicalismo revolucionário
admiravam a arquitetura do modernismo? 0 necessário e universal, aqui, é o
gosto do europeu do norte no fim do século XVIII. Para ele, por exemplo, a cor
é um acessório (lugar comum, à época), um parergo como o vestuário das está­
tuas, as colunas dos templos ou as molduras.47 Ainda para ele, a regularidade
pode ser contrária ao bom gosto, ele prefere o barroco, o grotesco, a “exube­
rância” de Sumatra,48 que nunca viu, a arte da oratória somente nas línguas
mortas e eruditas.49 Porém, de modo contraditório, ele próprio admite que
“um negro deve necessariamente, sob essas condições empíricas, ter uma outra
idéia normal da beleza da forma que não 0 branco, e que o chinês terá uma
idéia diferente da do europeu”.50 A necessidade aqui contradiz a universali­
dade. Isso não impede que no § 22, que examina os requisitos do juízo de gosto
e que chega à idéia de um senso comum, Kant se contente em dizer que ele
constitui a condição do juízo de gosto, que se trata da “condição necessária da
comunicabilidade universal de nosso conhecimento...”, como observa o tradu­
tor para o francês, A. Philonenko.51 Vai mais longe ainda e afirma que a crítica
da faculdade de julgar constitui-se como “uma lógica da intersubjetividade"
(evidentemente, 0 neozelandês não é um sujeito).
Mas resta a finalidade: por que “sem representação de um fim”? (Porque
se considera bela a tulipa sem saber para que ela serve).52 Aquilo que não tem
senão a forma da finalidade é o “mecanismo”, diz Hegel (mas Kant pensa que
mesmo aqui, no mecanismo, a hipótese teleológica não pode ser descartada).5-

Idem, p. 52.
Idem, p. 76.
Idem, p. 72. Ver, a respeito, J. Derrida, La véritê en peinture. Paris: Flammarion, 1978.
Immanuel Kant, op. cit., p. 88.
Idem, p. 78, nota 64.
Idem, p. 80.
Idem, p. 11, ed. fr.
Idem, p. 82, nota 73.
592 Idem, p. 251-256.
A finalidade pode ser sem fim “na medida em que não pomos as causas desta
forma em uma vontade”,54 nos diz Kant. Cheguemos um pouco mais perto:
“O gosto”, diz ele, “enquanto faculdade de juízo subjetiva contém um princípio
da subsunção, mas não das intuições sob conceitos e sim dafaculdade das intui­
ções ou apresentações (isto é, da faculdade da imaginação) sob afaculdade
dos conceitos (isto é, o entendimento), na medida em que a primeira em sua
liberdade concorda com a segunda em sua conformidade a leis”.55 Ora, o “fim é
o objeto de um conceito, na medida em que este for considerado como a causa
daquele (o fundamento real de sua possibilidade); e a causalidade de um con­
ceito com respeito a seu objeto é a conformidade a fins (formafinalis)” 56
Para o juízo de gosto, portanto, só a aparência de finalidade conta (sem
examinar se essa aparência é uma aparição efetiva) e, ao contrário, é impor­
tante que não se verifique se a essa finalidade corresponde ou não um conceito.
A imaginação que fabrica a beleza concorda somente com a “legalidade” da
faculdade dos conceitos (o entendimento), isto é, com a abstração de uma fina­
lidade, seu fantasma. Ela deve parecer ter uma finalidade — mas não a ter.
Não se trata aqui de discutir a pertinência do conceito de belo defendido
por Kant. Mas apenas de sublinhar seu status isolado, separado. Lembremos
de que talvez se trate da estética mais difundida depois de Ficino e do neo­
platonismo. A venustas é totalmente auto-orientada e, por ser pura, nunca
deve aproximar-se demais da soliditas nem da utilitas (ver a oposição entre
a beleza “livre” — Pulchritudo Vaga — e a beleza “simplesmente aderente”
— Pulchritudo Adhaerens 57 Embora Kant reconheça que

[...] a beleza de um cavalo, de um edifício (como igreja, palácio, arsenal ou


casa de campo) pressupõe um conceito do fim que determine o que a coisa
deva ser, por conseguinte um conceito da sua perfeição, e é, portanto, beleza
simplesmente aderente.58

ainda permanece a afirmação de que à beleza corresponde algo de próprio,


de que à satisfação provocada pelo objeto dito “belo” deve responder algum
aspecto dele.

54 Idem, p. 65-
55 Idem, p. l33~134-
56 Idem, p. 64.
57 Idem, p. 75-
593 58 Idem, p. 76.
No entanto, se é possível isolar no objeto o que corresponde a soliditas (a
idéia construtiva) e a utiiitas (o funcional), é impossível, em contrapartida,
fazê-lo em relação a venustas. O próprio Kant está convencido disso — e o mos­
tra quando, a respeito do ideal de beleza, afirma que este só pode ser, só pode
existir se “em concordância com esses fins” — portanto, “aderente”. E escla­
rece (o que para nosso propósito é essencial) que “somente aquilo que tem o
fim de sua existência em si próprio [...] é, pois, capaz de um ideal da beleza,
assim como [...] do ideal de perfeição”.59
Ora, é exatamente isso que será a justificativa número i do desenho de
/

arquitetura, dar corpo ao que, em si, não tem. E venustas que fornecerá a des­
culpa para o desenho separado, separador. O projeto, necessário para reunir
o “corpo” produtivo que ele ajuda a separar, recupera sua missão essencial de
uma aura prestigiosa: encarnar a beleza — que os serviços do entendimento •>
sua figura central, o juízo) oportunamente separaram da utiiitas e da solidita.:-
Separado, entretanto, o conceito de beleza permanece desesperadamente
vazio. Façamos um exercício um pouco artificial mas esclarecedor. Retome­
mos as definições de Kant sobre a beleza e proponhamos um enunciado posi­
tivo para os “sem”:
í. Com não-interesse.
2. Com não-conceito.
3. Com não-representação-de-um-fim.
4. Com não-conceito.
Quatro juízos infinitos, na terminologia de Kant e de Hegel. Ou seja, a inde-
terminação total. O que é simplesmente não-isto pode ser qualquer coisa
que não isto. Não-branco é toda uma gama de cores, de tonalidades etc (é
somente quando o não-ser é refletido, quando à negação segue uma outra
que isso muda).
Tais juízos estão na base da arte separada: a arte plástica é não-artesa-
nato; a arquitetura separada, não-cooperação simples (é quando a pintura se
torna não-não-artesanato, quando ela nega o que nega efetivamente o arte­
sanato — a corporação, a rotina, a exploração etc. —, quando a pintura se põe
como trabalho-artesanal-livre, que ela produz seu verdadeiro conceito. Do
mesmo modo, somente quando negar o que nega a cooperação simples — isto
é, quando negar a manufatura subjugante do capital —, quando se puser comc
cooperação manufatureira livre é que a arquitetura produzirá seu verdadeiro
conceito. Só que não há trabalho livre se não forem todos livres. A arte e a
arquitetura vivem o adiamento de seu conceito. O tempo presente dos ver-

394 59 Idem, p. 78
bos, quando falo de pintura, quer dizer apenas que, nesse domínio, já há uma
certa consciência de si.
O distanciamento dos arquitetos em relação à cooperação simples para
avançar como elite )á foi bem estudado.60 0 que tento apenas sublinhar aqui é a
negatividade estática, sistematicamente não superada, que a constitui — e a esté­
tica vazia que disso resulta. Só a forma da finalidade é solicitada. A beleza ade­
rente é proibida em geral, pois a finalidade efetiva, o obj etivo hegemônico deve
permanecer excluído. Ao contrário do que diz Kant, a arte do trabalho verdadei­
ramente livre será aquela que tiver toda a razão de ser em si, será, pois, conceito,
simultaneamente livre e necessária (essas noções, separadas em Kant, identifi­
cam-se em Hegel sem perder sua diferença), portanto “bela” e finalizada. E se é
universal e necessária (digo: ‘se’), é porque a beleza é simultaneamente o eco do
trabalho e da linguagem — as duas bases de tudo o que é humano.
Voltemos ainda um pouco à separação entre fim e meios. Esses meios,
^xorçaa ,msèíü sAitrp âLteiiáisrparecenr ái ,~coniu
dados indiferentes que o projeto configurará de fora. Quase todo projeto
entra em oposição a eles: a mão-de-obra é ruim, o material é decepcionante
etc. O arquiteto, com freqüência, fica frustrado com “sua” construção. Ora,
esses meios são o que são — bons ou ruins — porque foram postos como tais
pelo “espírito objetivo” — por todas as determinações do modo de produção,
particular mente pelo da construção. Eles não são “dados” mas, sim, uma das
formas objetivas do mesmo conteúdo, o processo que implica — como se não
fossem senão momentos separados, como se não se identificassem, como se
cada um deles não fosse a totalidade — projeto, meio e fim. Esses dados falhos
são o retrato exterior do projeto — e inversamente. Os materiais têm uma his­
tória, são tais ou quais em função de uma conjuntura sócio-econômica, foram
produzidos, circulam etc. A mesma coisa a respeito das divisões das especia­
lidades, níveis de competência e formação da mão-de-obra. A mesma coisa
ainda em relação às máquinas e ferramentas. E a mesma coisa também para
o projeto. (A manufatura no Brasil é predominantemente serial e, na França,
é heterogênea. O custo da força de trabalho é a principal causa: no Brasil, o
SMIC — salário mínimo interprofissional de crescimento —, é quarenta vezes
inferior. Ora: os projetos, os detalhes, a plástica etc. trazem a marca dessa
diferença). Projeto e meios pressupõem-se mutuamente — ainda que isso seja
inconsciente. A um determinado tipo de projeto corresponde um determi­
nado tipo de meio, no interior de uma determinada conjuntura sócio-econô-

6o Ver, por exemplo, Paulo Bicca, Arquiteto, a máscara e aface. São Paulo: Projeto, 1984.
395 livro que apresenta idéias bastante próximas das nossas.
mica. O objetivo que o projeto anuncia já está inscrito nos meios. Nos meios
inscrevem-se os possíveis, isto é, aqueles únicos que podem tornar-se efetivos.
O projeto que tentar ir além será trazido de volta aos possíveis pelo maldoso
empresário. O arquiteto pressente o que foi feito com os meios (e, portanto,
com ele próprio), e o demonstra por sua própria inadaptação (que encontra,
assim, uma motivação positiva dessa vez). Mas nenhuma mudança é possível
sem o reconhecimento de sua identidade.

O fim [leia-se lucro], enquanto [...] conceito que existe livremente diante
do objeto [leia-se meio] e de seu processo [...] sendo dado que ele é [...] a
verdade em e para si do mecanismo, nesse mesmo [objeto, leia-se ainda
meio] coincide apenas com ele mesmo. O poder do fim sobre o objeto é a
identidade que existe por si, e súa atividade é a manifestação dessa mesma
[identidade].61

Em nota, o tradutor da obra para o francês escreve:

Mudança de orientação do raciocínio: dado que o conceito afirma seu poder


sobre a objetividade através de um meio do qual ele próprio é todo o conteúdo
— tendo-o determinado como tal até se determinar a si mesmo nele — é
justamente através dessa e nessa exterioridade que o conceito existe.62

Isso é essencial: aqui se encontra a bifurcação entre a catástrofe de hoje e a


esperança.
Catástrofe: fim e meios imobilizam-se numa exterioridade ilusória um
diante do outro. A via de sua recíproca determinação pára ante a primeira
negação: um não é o outro, eles apenas se opõem. 0 pólo dominante — o fim,
o valor — sendo apenas o não-canteiro, tem à sua disposição toda a amplidão
vazia do juízo infinito: ele pode ser tudo o que não é “canteiro” ou, em ter­
mos “positivos”, construção com, obrigatoriamente, “mais” alguma coisa.
E o canteiro, o pólo dominado, será o não-fim, o que não tem o fim em si,
“mecanismo” cego. Assim, apesar de toda confusão derivada do fim, nenhum
momento é previsto nem mesmo para explicar aos operários o projeto, suas
razões próximas (para não falar das profundas) — e explicar não é nada diante
do ter suas razões em si mesmo.

61 G. W. F. Hegel, op. citp. 263.


396 62 Idem, ibidem.
Enquanto cada um dos dois lados opostos contém em si mesmo seu outro e
nenhum pode ser pensado sem o outro, disto decorre que nenhuma dessas
determinações, tomada isoladamente, tem a verdade, mas que somente sua
unidade a possui.63

Aí está, como veremos, a esperança.

Segunda afirmação: O desenho, que tornará possível a coagulação do trabalho


fragmentado numa totalidade, pode ser qualquer coisa:forma de atipo zero
O desenho não é senão processo cristalizado, espacialização do tempo pro­
dutivo. Evidentemente, é também casa ou palácio — mas esse “também” já
mostra uma dificuldade. Quando se utiliza o também, pensa-se a coisa como
um substrato, um saco que se enche com o que os também enumeram. Por­
tanto, dizendo que o desenho é processo cristalizado (= desenho prescritivo) e
casa ou palácio (= desenho descritivo), seu suporte, embaixo dos dois, não é
pensado senão como algo indiferente, um meio neutro, vazio, de onde eles se
destacam. Observemos que a lista dos também pode ser alongada por diversos
dever ser: ele deve ser correto tecnicamente, exato funcionalmente, belo (a
soliditas, a utilitas, a venustas). Quando, pois, se dá por missão responder a
esses “também”, o desenho já se coloca como vazio, neutro, indiferente — de
tipo zero. A ausência do eixo teleológico da finalidade interna, imposta pelo
capital, impõe esse resultado. Caso contrário, esse eixo liga necessariamente
os “também” numa totalidade orgânica: o fim (a utilitas') se colocaria na
racionalidade dos meios (a soliditas) — e como teria todas as suas razões de ser
em si, o processo seria livre (a venustas — acordo do entendimento que sus­
tenta a racionalidade dos meios e o imaginário do fim). O descritivo do fim,
posto com ele na racionalidade dos meios, seria idêntico ao prescritivo.
Os recursos de composição habituais — trama, modenatura, ritmo, repeti­
ção, unidade... — traduzem perfeitamente essa vacuidade, todos desabam de
fora sobre o objeto arquitetural e devem servir a todos os “também”. Aliás, o
que se chama de arquitetura, o “mais” adicionado ao construtivo, não é feito
senão desses tiques formais, desesperadoramente vazios. Mas é necessário
insistir no fundamento disto: o vazio da forma de “tipo zero” é o resultado do
processo de fragmentação da produção, de expropriação da força de trabalho.
A formulação de Lévi-Strauss convém perfeitamente ao papel do desenho
no canteiro de obras: “sua presença (da forma de tipo zero do desenho) — em
si mesma desprovida de significação — permite colocar-se como totalidade”.65

597 65 G. W. F. Hegel, op.cit., 1.1, p. 182.


Assim, sob os “também”, sob o prescritivo e o descritivo, o saco é o circunscri-
tivo: o fundamento do desenho é circunscrever. Reunir, circunscrever o traba­
lho parcelar. Limitar no início e no fim do processo a extração de mais-valia.
Em último caso, bastaria... limitar, colocar parâmetros. O desenho deve, na
origem, colocar um ao lado do outro (num todo) os trabalhos fragmentados
que vêm um depois do outro (num dado lapso de tempo). Deve tornar simul­
tâneo o sucessivo dispersado.
O tempo na produção comum é linear, simples série indefinida, o do
trabalho abstrato. Nenhuma “história”, memória ou tensão teleológica
autônoma o humaniza, o transforma em processo; é o tempo que o desenho
deve reter no interior de suas figuras — um tempo sem forma, alongamento
linear que não tem sequer variações, duração indeterminada. A espacia-
lização desse tempo apenas quantitativo, em que toda qualidade devida à
especificidade dos trabalhos cai sob a indiferença de sua reunião apenas
exterior, não pode desembocar numa forma efetivamente mediatizada. A
manufatura realmente autônoma teria inscrito nas formas seu devir: elas
seriam verdadeiramente a aparência de sua essência — conceito existente,
idéia. Explicitariam as etapas, a seqüência autônoma das equipes, sua auto­
determinação, isto é, suas relações recíprocas livremente consentidas. Entre
isso e aquilo, entre a forma que é efetivamente o conteúdo e a forma vazia,
de “tipo zero”, o modernismo tem, ao menos, tentado justificar as formas
pela função (formfollows fonetion, de Sullivan). Nesse caso, o movimento
do conceito cai e volta a uma relação causal exterior — mas, pelo menos, ela
garante um mínimo de justificativa para o entendimento. Hoje o capital
não tem mais necessidade de nenhuma cobertura, sua hegemonia tende ao
absoluto. Mesmo o compromisso funcionalista é inoportuno. O atual dese­
nho de arquitetura, o de Gehry, Potzamparc ou Friedman, não se ocupa
mais disso. Nenhuma motivação é necessária para o desenho que se justifica
somente como diferença.64 65 Contrariamente, a arquitetura que mais se apro­
ximou do ideal, a do ecletismo, continua a ser criticada.65
Além da vacuidade, os recursos de composição que foram citados acima
preenchem um papel exatamente semelhante ao das formas de “tipo zero”
para a constituição de um conjunto social. Um exemplo dado por Lévi-
Strauss (um agrupamento social dividido espacialmente em duas metades
por um eixo: os de um dos lados deveriam casar-se com os do outro lado) é
formalmente idêntico à simetria ou ao princípio anatômico de Michelangelo:

64 Ver S. Ferro, “La Trace”. Rapport de Recherche, op. cit.


598 65 Apesar dos esforços de X P. Epron, Essai sur laformation cL’un savoir technique, cempa, s/d.
nos dois casos, um meridiano e uma relação invertida são o fundamento da
totalidade. Resultados semelhantes podem ser obtidos pelos jogos de “equi­
líbrio dinâmico”, caros aos primeiros modernistas,66 o ritmo repetitivo (o
Palazzo dei Uffizi, de Vasari, em Florença; a Piazza de S. Marco de Sanso­
vino etc) as tramas (Mies, Kahn, etc)... Ordenamentos geométricos vazios de
conteúdo produzem o efeito de um todo — os quais, então, separam, isolam,
diferenciam, põem limites... fingem uma coesão que não é fruto de uma auto­
determinação, mas de astúcias formais.
Assim, à lista: prescrever, descrever, circunscrever, poderiam ser acrescen­
tados, para continuar na assonância, transcrever (a unidade negada da auto­
nomia em totalidade fictícia geométrica), proscrever (a unidade autêntica),
inscrever (os trabalhos fragmentados no quadro aglutinante), variações da
escrita do projeto. Hoje não acho mais exagerada a comparação: a noção de
forma de “tipo zero” é perfeitamente adequada à “composição” arquitetural.
Compor o diverso, pôr junto o simplesmente simultâneo, indiferente a outro
que não ele. Quase todo “partido” arquitetural é forma de “tipo zero”.
Mais ainda: quando uma unidade efetiva aparece, às vezes em alguns
casos de exceção, ela se perde assimilada, igualada aos outros projetos. Desse
modo, certas propostas de F. L. Wright (algumas prairie houses, Taliesin),
de C. Eames, de M. Breuer, por exemplo, atentas pelo menos à coerência
manufatureira são sempre engolidas pela mesmice da visão formalista. Em
Taliesin, F. L. Wright aproxima-se muito do desenho de uma produção verda­
deiramente consciente de si, necessária e livTe. Reavaliando as divisões de uso
das especialidades construtivas e seus “objetos”, Wright propõe outras “sepa­
rações” operacionais cuja unidade conceituai desemboca num novo legi-signo,
num novo paradigma extremamente poderoso. (Grosso modo: solo elaborado
por fundações que sobem quase até o teto, em diversos níveis, espécie de
la.nd.-art feito por pedreiros; ele serve de apoio, em alguns pontos, a uma
enorme cobertura, proteção de madeira (carpinteiros), eliminando pratica­
mente as paredes, os intervalos entre solo e cobertura de formas múltiplas,
servindo como portas ou janelas. A oposição entre cobertura que marca um
lugar e o solo land-art que se prolonga para fora, retoma a comentadíssima
oposição Hestia / Hermes, lareira central / abertura para a natureza, típica
também de Wright).
/

E sempre a partir de uma re-organização crítica da manufatura, de


uma volta à sua racionalidade específica, que são criados novos legi-signos,
novos paradigmas. Um de nossos grandes orgulhos — falo de Flávio Império,

399 66 Ver S. Ferro, Ch. Kebbal, C. Simmonet, Ph. Potié, Le couvent de la Tourette. op. cit.
Rodrigo Lefèvre e eu — é ter elaborado um pequeno paradigma com nossas
casas em abóbada com mezanino ou não, sendo o primeiro protótipo a casa de
Cotia, de 1961. Grosso modo também: elimina-se a cobertura de Taliesin — e a
fundação se projeta como cobertura. (Há mais, a crítica das relações de produ­
ção atinge — e recompõe — todos as equipes).

Terceira afirmação, ausente do texto mas deve ser incluída aqui. A crítica
do modo de produção e das relações de produção da construção leva-nos a dei­
xar de lado a da destinação da produção.
Raros são os textos tão definitivos sobre a construção quanto A questão
da habitação, de F. Engels. Nem uma virgula que não seja atual. No fundo,
e mesmo que tal constatação aflija nossa consciência política, a habita­
ção “popular” não é a questão central: ela até pode pesar negativamente
(ancoragem, dependência etc.). Ou há transformação das relações de produ­
ção — e então a questão da moradia e dos equipamentos sociais terão uma
solução — ou, nas condições atuais, essas questões não têm solução. O que
o MST faz de verdadeiramente revolucionário é constituir, com algumas de
suas iniciativas, micro territórios livres onde as relações de produção já são
outras, o que muda radicalmente a situação em relação àquela do tempo em
que este texto foi escrito, isto é, fim da década de i960. Hoje, ela se inverte:
nessas micro-regiões livres, é prioritário construir segundo outras relações
de produção como, por exemplo, as que propomos — moradias e equipamen­
tos sociais populares. Trata-se, aqui, de provar a possibilidade de eficácia,
de beleza, de racionalidade, de liberdade, de escolha etc., de uma outra
maneira de fazer.
Portanto, correção fundamental do texto. Nos microterritórios ocupados, é
necessário praticar uma outra arquitetura, voltada para os interesses popula­
res, prefigurando outras relações de produção. Estas passam pela autonomia
radical dos produtores — isto é, pela livre autodeterminação do objetivo, da
finalidade da produção. Somente assim esse objetivo informará os meios, seus
meios, e o momento teleológico inicial, o projeto, seu projeto. E cuidado: só
a estrita racionalidade (= liberdade) deve guiar aqui. Qualquer consideração
“estética” não fará senão esconder o que tenta nascer com as muletas de hoje.
A rigorosa lógica construtiva sozinha, purificada de tudo o que nela decorra
da técnica de dominação, isto é, a racionalidade ótima de cada passo no seio
da sucessão manufatureira garantirá a eclosão de uma outra beleza, o que
deve vir não tem necessidade de máscara: as formas de seu aparecer serão as
de sua essência — a razão livre (o que é quase tautológico).

400
0 CANTEIRO

Não haverá comentários detalhados a respeito do capítulo sobre o canteiro.


Não que o tema seja de menor importância, ao contrário: ele é a base de toda
nossa teoria da arquitetura, constituindo, talvez, seu aspecto mais original.
Mas porque, durante os trinta anos que nos separam da redação do texto, pou­
cas coisas mudaram nesse nível — e nossos estudos apenas confirmaram o que
é dito aqui.
Entretanto, é necessário observar que a fragmentação e a taylorização do
trabalho na construção acentuaram-se. As recentes modificações na organiza­
ção do trabalho (estruturação por “projeto”, toyotização, job enlargement etc.),
que alguns veem como uma recuperação das críticas como a nossa (as críticas
“artistas”, segundo J. L. Boltanski e E. Chiapello),67 não penetraram os níveis
inferiores da produção da construção. Em compensação, uma das conseqüên-
cias dessas modificações, o enorme agravamento da instabilidade do emprego
e o avanço dos contratos temporários as atingiram fortemente. A instabili­
dade, associada à fragmentação crescente, não podia deixar de provocar uma
desqualificação ainda mais acentuada da maioria dos trabalhadores.
Assim, a única correção a ser feita — e que, na verdade, não é uma correção
— é a constatação de agravamento.
Em contrapartida, devemos completar este texto exclusivamente crítico
com a indicação de uma outra prática — que nossa própria crítica anuncia
negativamente.

EM DIREÇÃO A UMA OUTRA PRÁTICA

Em cada estágio de sua determinação ulterior, ele (o conceito) eleva toda a


massa de seu conteúdo anterior e, por sua progressão dialética, não só não
perde nada nem deixa nada para trás, mas também carrega consigo tudo o
que foi obtido e se condensa em si mesmo à medida que se enriquece.68
[...] porque à obra de arte ideal não pertence somente o aparecimento do
espírito interior na realidade de figuras exteriores, mas o que deve chegar
ao aparecimento exterior é, ao contrário, a verdade e a racionalidade em si e
para si do efetivo.69

67 Le nouvel esprit du capitalisme. Paris: Gallimard, 1999, pp. 501-576.


68 G. W. F. Hegel, Science de la logique, op. cit., II, p. 569.
401 69 G. W. F. Hegel, Cours, op. cit., p. 374.
t

E evidente: uma outra prática da arquitetura, bem-sucedida desta vez, não


pode dispensar a mudança radical das relações de produção, a supressão da
venda da força de trabalho. A força da contradição que bloqueia a possibilidade
de uma verdadeira arquitetura é a heteronomia que necessariamente tal venda
implica. A força de trabalho vendida deve seguir, obedecer, servir a vontade de
um outro, daquele a quem ela passa a pertencer, ao capital. O projeto — qual­
quer projeto hoje — é uma das manifestações dessa heteronomia.
Deve-se entender por mudança radical das relações de produção o que
as palavras dizem realmente. Não se mudam tais relações apenas com uma
modificação jurídica: a indispensável posse coletiva das forças e dos meios de
produção não basta para mudar essas relações. A triste experiência dos ex-paí­
ses ditos socialistas é uma prova disso.
Tampouco é suficiente para o projetista ter as mais belas intenções ou ser
muito de esquerda, se essas relações não se modificam efetivamente e profun­
damente. Não há conciliações possíveis. A alternativa para a heteronomia é a
autonomia — e nada mais.
Avancemos pouco a pouco.
Primeira questão: A manufatura — destruí-la, conservá-la ou modificá-la?
Não há dúvida possível — sua origem é muito comprometida. A manufatura
e a tormahxiiciãl que a produção dominada pelo capital assume — a antico-
operação simples. Entretanto, como as outras formas de produção, e prin­
cipalmente a indústria, a manufatura não se imobilizou em seu momento
negativo. Apesar de sua conveniência para o capital — e, em parte, por causa
dela — a manufatura fez progredir a produção da construção, provocou novas
competências, fez avançar o saber, criou ferramentas, técnicas, meios. Evi­
dentemente, sua positividade produtiva sempre se misturou com a técnica
de dominação. Mistura freqüentemente íntima, profunda, terrivelmente
difícil de desembaraçar. O concreto, por exemplo. Num outro texto, “O con­
creto como arma”, eu o vejo sob um ângulo diferente e ele aparece como
um material que deve, em parte, sua existência e seu sucesso ao fato de que
arruina indiretamente a força (política) do saber fazer dos pedreiros e dos
carpinteiros do fim do século xix. Ainda de um outro ponto de vista, ele apa­
rece como causa da principal doença do trabalho — as dermatoses e silicoses
devidas ao cimento. (Autocrítica: ângulo, ponto de vista etc.: mereço, aqui, a
mesma observação feita acima a respeito dos “também”). E, apesar de tudo,
que beleza no concreto do “piano” do convento de la Tourette... ou em meu
próprio ateliê em Grignan. Como pensar de modo correto isso, esse mate­
rial cheio de contradições, de nossas contradições? E é assim por toda parte:
materiais, saberes, competências, técnica, ferramenta, gestão, organização
402 etc., todos trazem marcas de ambigüidade, de contradição, todos são resultado
do amálgama entre técnica de produção e técnica de dominação. A primeira
tarefa incluída nessa primeira questão é decompor, analisar toda a área, ten­
tando (o que não é evidente) separar um do outro. O trabalho crítico deve ser
permanente, minucioso, muito exigente. Séculos de hegemonia da dominação
deixaram depósitos de suas armas em toda parte. Essa operação não é uma
simples faxina: seu resultado, provavelmente, será uma reescrita completa do
todo, uma mudança de estrutura do todo.
/

Entretanto, o trabalho de revisão não significará sair da manufatura. E pre­


ciso pegar as coisas onde elas estão. E não é evidente que a industrialização da
construção seja possível a curto prazo — ou que seja tão desejável. A única posi­
ção realista é assumir a manufatura — orientando-a em favor da autonomia.
Manufatura = equipes verticalizadas e especializadas + ferramentas bas­
tante simples + um capataz e a direção. Sua essência é o trabalhador coletivo.
t

E necessário conservar isso — de modo diferente.


As equipes são as unidades de base da manufatura. Concentram um certo
tipo de saber fazer, as ferramentas e materiais específicos, organizam-se hie­
rarquicamente. A tendência atual é reduzir a extensão do saber fazer, separar
a gestão e a distribuição de ferramentas e materiais num serviço logístico
/

especial, fazer da hierarquia graus de heteronomia. E necessário tomar isso


às avessas: nem reduzir nem aumentar a priori o campo do saber fazer. O que
deve determinar a extensão desse campo é a homogeneidade, a organicidade
de um tipo de saber fazer, a coerência de seus materiais e ferramentas — em
resumo, a qualidade e não a quantidade de um domínio particular de traba­
lho. Nesse sentido, a escolha de materiais e ferramentas não pode depender
de uma outra lógica que não a dessa qualidade específica. Nos meios, os fins
já estão inscritos. Separar a logística do produzir, apesar de todos os argu­
mentos da “boa” gestão, é manter ainda o corte força de trabalho x meios de
produção. Por sua vez, a hierarquia deve mudar de sentido e tornar-se apenas
relação de formação, de transmissão dos saberes e saber fazer, os quais, ape­
sar de sua complementaridade, estão claramente separados hoje. O saber é
guardado pelo poder como arma e argumento, como trunfo e justificativa — e
deteriora-se por sua distância em relação ao saber fazer correspondente. Evi­
dentemente, uma outra prática deve reverter tal situação, disseminar o saber
entre as equipes, aperfeiçoar o saber aproximando-o de suas raízes experi­
mentais etc., etc.
O fundamental., aqur é afirmar o que parece paradoxo: é a radicalização
da divisão que dá a garantia da formação efetiva do trabalhador coletivo. Atu­
almente, a separação das equipes até a quase ruptura, a sucessão de suas dife­
renças indiferentes umas às outras não constituem seu outro (o trabalhador
+05 coletivo) senão fora desse movimento e enquanto virtude unificante do capital.
Isso, entretanto, pode ser resolvido de outra forma — se separação e sucessão
forem assumidas livremente. O que serve para a heteronomia, se seu momento
não estiver superado — divisão de quase desconhecimento mútuo, sucessão
de descontinuidades e repulsões —, pode tornar-se momento indispensável
de oposição a si para a verdadeira constituição do trabalhador coletivo. Seria,
então, o momento em que as partes específicas — as equipes — se concentrariam
em torno dessas especificidades em busca de sua razão própria. Se o primeiro
momento constitui a afirmação da unidade abstrata (configurado em um “pro­
jeto”), o segundo é a negação dessa unidade. O trabalhador coletivo sai então,
por seu próprio movimento, de sua simplicidade inicial, de seu em-si ainda não
desenvolvido, se dispersa e se rompe na divergência de suas múltiplas determi­
nações — e só depois volta à sua convergência, não mais marcada por uma mes­
mice empobrecedora mas, ao contrário, enriquecida por essa mesma diáspora.
Assim, ao contrário da explosão heterônoma, o vigor do impulso centrípeto
garante a profundidade do sujeito do processo. Afastando-se da simplicidade
com a qual esse coletivo é posto, negando o esquematismo da unidade que
ainda é apenas um objetivo, a produção acumula-se pouco a pouco, faz o trajeto
da heterogeneidade de seus momentos — e a renega concentrando-se sobre si
mesma. Torna-se o que é todo sujeito: o movimento de seus predicados.
Em outros termos: ao contrário do que possa ter sido dito sobre nosso pro­
cedimento, ele parte de um projeto (outro, que o habitual). Ele configura, é
manifestação do sujeito, do trabalhador coletivo — que, pressuposto, de fato
só é posto pela produção — que é produção de si. Esse projeto já é resultado
— embora, aqui, apareça como início. Prefigura a união das equipes diferencia­
das conforme sua competência, não é o uno simples mas, sim, acumulação. A
partir dele, cada equipe, ainda durante a projetação, mas também durante a
realização, se concentrará em sua própria racionalidade, a mais exigente pos­
sível nos limites da situação concreta. Os pedreiros, por exemplo, podem pro­
por as estruturas mais performantes para os materiais e técnicas disponíveis,
o melhor deles mesmos. E assim por diante em todas as equipes — o projeto
garantindo, sobretudo, a compatibilidade das otimizações específicas. Em vez
de uma unidade prematura, aqui, o que nossos alunos chamaram a estética da
separação deixará expressar-se a particularidade de cada passagem: a unidade
virá da livre cooperação, da comunidade desejada. Insisto na racionalidade
extrema que deve guiar cada equipe. O argumento estético é sempre perigoso
e a nova prática não precisa de gênios. E repetimos mais uma vez com Hegel:
é necessário, absolutamente racional, aquilo que tem todas as razões de ser o
que é em si, ou seja, o que é autônomo, livre. A nova prática tem sua beleza
própria — que é a da livre razão coletiva (contra Kant inteiro).
404 Uma das conseqüências mais marcantes dessa prática é a efetiva consti-
tuição e aparecimento do sujeito coletivo. Repito: o sujeito é o movimento
de seus predicados. A descrição semiótica disso é a seguinte: só o índice
pode representar o sujeito e só o ícone, o predicado. Ora, o índice aqui são as
marcas efetivas do processo de produção, das técnicas, ferramentas e procedi­
mentos utilizados pelas diferentes equipes para modelarem seu material. E
os ícones são, principalmente, diagramas, esquemas em linguagem kantiana,
isto é, esquematizações espaciais dos modelos operacionais das diferentes
equipes. O movimento dos predicados é a aplicação concreta dessas estruturas
(em que a imaginação e o entendimento se harmonizam numa única figura)
segundo os modelos operacionais específicos — ou seja, o que chamamos de
rastro.70 O sujeito aqui é a assunção pelo trabalhador do saber e do saber fazer
objetivamente inscritos na profissão, na situação histórica de seu material — e
isso praticado e enriquecido pelo trabalho atual. Nada a ver com nenhuma
elevação do ego. Trata-se do sujeito do espírito objetivado — que nunca deve
ser confundido com toques ou tiques diferenciadores. De modo geral, trata-se
do melhor trabalho utilizando a melhor técnica e o melhor material dispo­
nível segundo a melhor forma do estado do saber e do saber fazer. Isso não
/

se produz em condições de heteronomia a não ser por acaso. E isso que se


/

chama arte. E também apenas assim que um espaço produzido pode ser dito
“humano”, quente, belo, acolhedor. Estamos na posição oposta à do “gênio”
de Kant (figura da natureza!), estamos mais na posição considerada por ele
como arte “mecânica”.
As conseqüências positivas da livre cooperação das diversas equipes de pro­
dução (coordenada pelo arquiteto) são muito numerosas. Várias resultam da
economia gerada pela racionalidade interna das equipes autônomas. Assim,
por exemplo, são eliminados os custos importantes dos múltiplos disfuncio-
namentos, necessários hoje às técnicas de dominação. Também se reduzem
os excessos de material devidos a prescrições contrárias à sua lógica ou às
maquiagens pseudo-estéticas. Desaparecem os sobretrabalhos que o fato de
esconder certas especialidades — eletricidade, encanamentos etc. — provoca:
todos têm o direito de aparecer.
Outras conseqüências decorrem da melhoria das condições de trabalho:
eliminação ou redução de produtos nocivos empregados irresponsavelmente
pela produção corrente, diminuição dos acidentes de trabalho causados pela
fadiga psíquica devida à heteronomia etc.
E ainda, e principalmente, possibilidade efetiva, dadas as economias reais
importantes, de um substancial aumento dos salários.

405 70 Ver S. Ferro, “La Trace”. Rapport de Recherche, EAG, 1999.


Repito mais uma vez: não se trata de uma utopia, de um sonho cor de
rosa: pratiquei tudo isso; é uma coisa possível hoje, e pode ser feita mais facil­
mente do que tudo o que implica a dominação. Evidentemente, se for feito no
contexto “normal”, a “recuperação” será inevitável. Deve-se permanecer na
experimentação ou introduzi-la onde já se prepara uma outra sociedade.
Com frequência, comparo tal organização do canteiro de obras com o jazz:
um tema comum, partes interpretadas conjuntamente e solos onde as varia­
ções são possíveis. Um grupo decidido a colaborar estreitamente para que
cada um tenha seu próprio momento.
/

E possível também fazer uma leitura semiótica dessa prática.


(Nota: a falta regular e sintomática de documentação sobre os canteiros
de obras, domínio que, de modo geral, continua excluído pelos historiadores
do construído, obrigou-me a desenvolver um método indireto para seu estudo.
Fiz uma apropriação não muito ortodoxa das principais categorias semióticas
de Peirce — como Hegel, de quem ele não gostava, Peirce também quis siste­
matizar as categorias de Kant, o que, paradoxalmente, os aproxima. O quadro
de categorias (e três subcategorias) articuladas permite uma leitura homoge­
neizada dessas construções — e, portanto, comparações. O procedimento não é
muito hegeliano nem marxista — paciência — mas foi útil para mim.)

AS CATEGORIAS DA PRIMEIRIDADE

Quali-signos (que altero para consideração do material)


Grosso modo, os materiais de boa qualidade para o uso continuam sendo o que
são: a estética da separação utiliza muito pouco revestimento, apenas onde são
tecnicamente necessários (planos de trabalho em cozinha, banheiro etc.). As
cores — raras também — são empregadas somente por necessidade sinalética.

Sin-signos (aqui, ocorrência dos materiais)


Ao contrário do que desejava Le Corbusier (um só material para tudo), a
estética da separação os multiplica: um para cada família de funções. São
empregados sempre segundo sua própria característica técnica: nunca haverá
colunas de bronze (Mies), paredes de tijolo sem aparelhagem cruzada (Kahn),
lintéis de concreto recobertos de ferro (Rossi).

Legi-signos (a regra das ocorrências)


O ideal é que a cada equipe, a cada especialidade produtiva recomposta cor­
responda seu material. Desse modo, a seqüência, a ordem de acumulação dos
materiais relata precisamente a seqüência, a acumulação produtiva. A simul­
406 taneidade das formas, massas, materiais não se estratifica em jogo espacial
autotélico — ainda que nada impeça (ao contrário) sua elegância. Esse jogo
enfatiza sempre a memória do tempo produtivo, o movimento do conceito,
temporal, como fundamento do projeto. Quase se poderia dizer que só a consi­
deração dos legi-signos facilmente reconhecíveis pela leitura das ocorrências
do material (os sin-signos) já responderia ao desejo de W. Benjamim que cada
obra de arte ensine a se fazer.

os ÍCONES

A imagem
Na arquitetura comum, aquela em que o processo produtivo deve ser negado
em função da extração de mais-valia, o construído é a imagem de seu dese­
nho e este nao sai de si.
Porém, na estética da separação, o desenho é absolutamente diferente: é
registro de um processo, projeto de uma acumulação progressiva de trabalhos.
O construído é sempre imagem do desenho. Mas o desenho não se fecha em
si, nao é um “jogo complicado de volumes”, planos, texturas em seu envio
recíproco e exclusivamente plástico. Ao contrário, ele é tecedura de equipes,
percurso dos trabalhos e, amiúde, um ponto de partida que se deixa modificar
durante sua realização. A relação desenho/objeto não é de reflexo, mas de
superação, de conservação, de identidade e, ao mesmo tempo, de diferença, de
modificação.

O diagrama
Talvez a categoria central (com o índice) da outra prática. Falaremos sobre
isso depois, a respeito de nosso desenho, da importância para nós da noção
kantiana de “esquema”, essa interface da imaginação e do entendimento que
permite a passagem de um a outro, do sensível ao inteligível, do conteúdo à
forma, do conceito à existência etc.
Cada especialidade, cada corpo de profissão dispõe de “esquemas” onde
seu saber específico toma forma, espacializa-se. O desenho e o canteiro de
obras são montagens de “esquemas”, corporificaçÕes que, pela indicialidade
acrescentada durante a realização (ver abaixo), constituem o principal dos
predicados (que são sempre ícones) cujo movimento constitui o “sujeito”. Na
verdade, esses esquemas são manifestações privilegiadas do “espírito objetivo”,
da matéria modelada pelo pensamento e pela prática do ofício, do material (=
matéria + cultura) — da história do trabalho e dos conhecimentos gravados em
meios concretos, de uma situação sócio-econômica dada. Esse estado presente
de uma memória cumulativa coletiva, assumido pela retomada atual de seu
407 “esquema” pelo “corpo produtivo” que se tornou autônomo, livre, que o rea-
nima por meio de seu trabalho e o faz avançar um pouco mais — eis a essência
do “sujeito” que pode então, autenticamente, identificar-se com seu “objeto”
e por um espaço verdadeiramente humano. Só assim a arquitetura torna-se
arte em seu sentido mais nobre. Nada em comum, como vemos, com a farsa
de arte que são as espacializações dos saracoteios do ego dos arquitetos stars.
O sujeito aqui é, primeiro, coletivo; depois é conceito, idéia. Aproxima-se do
sujeito da psicanálise, do sujeito de Freud, de Lacan — sempre “oposto” (mas
aqui há heterotopia) ao eu de superfície, o ego: ele é sujeito do A, o grande
outro. Esses “esquemas” são condensações operacionais dos progressos da
razão técnica, o substrato do que está disponível como base para o fazer atual.
Herança de pensamento — o vocabulário formal da estética da separação.

As metáforas
É delicado falar de metáfora aqui. Com efeito, a metáfora supõe a inclusão,
num todo de sentido relativamente homogêneo, de um elemento exterior
/

relativamente heterogêneo. E a vibração particular de uma abertura na rede


de significações que o constituem. Ora, insistimos na autonomia absoluta, na
total racionalidade interna dessa prática. (Atenção: autonomia absoluta não
é fechamento em si; só é efetivamente autônomo o que, tendo-se abando­
nado totalmente ao outro, volta a si aprofundado por tal abandono; assim, o
objetivo social da nova prática não é deixado de lado pelo caráter absoluto
da autonomia — ao contrário, está integrado aí, é fim do processo teleológico
livre). Incluir algo de exterior seria estragá-los. Uma certa exterioridade,
entretanto, impõe-se por si mesma aqui: o que é sucessão, processo, torna-se
simultaneidade — o que é tempo (interior) torna-se espaço (exterior). Eis a
iluminação da metáfora aqui: a forma estática no universo do movimento, do
fazer, do trabalhar. Esse elemento heterogêneo, estrangeiro deve, entretanto,
como metáfora, portar e amplificar o sentido daquilo que ele substitui. A
forma estática deve narrar o processo — e restituir o tempo como obra dura­
doura. Isso será um dos grandes desafios para uma outra plástica — para o
novo projeto. Um espaço que possa narrar o tempo vivo da produção - e não
apenas algo como um corte geológico.

0 ÍNDICE

Juntamente com o “esquema ” (o diagrama), o índice forma o par central da


arquitetura. Aquele é a figuração do saber, o entendimento imaginado; este é
isso mesmo — mas realizado. E o “esquema” efetuado pelo processo de traba­
lho que lhe convém, saber fazer que dá corpo ao saber organizado, à forma
408 do saber.
0 índice é a marca objetiva, específica, deixada necessariamente pelo
processo de produção em seu produto. Saber, técnica, saber fazer etc. imbri-
cam-se numa identidade que modela o material de uma maneira singular.
O índice, aqui, é o contrário daquele que caracteriza a pintura contemporâ­
nea, em que a ausência de saber e de técnica partilhados abre espaço para a
arbitrariedade do autor. Ele é a expressão da produção coletiva que parte do
saber e da técnica disponíveis, com todo o rigor de livre necessidade, e depo­
sita-se no produto.
/
E por isso que o índice representa o sujeito — sujeito do corpo coletivo que
/

é a essência, o conceito da manufatura. E também por isso que o “esquema”


torna-se seu principal atributo (ícone), a universalidade ou a particularidade
do saber/saber fazer da equipe que constitui um de seus momentos. No índice,
o conceituai (e o ideal) da equipe entra no sensível, estabelece-se o encontro
entre o fundamento, a razão de ser da equipe e seu aparecimento.
Na arquitetura, hoje, tudo acontece de modo diferente. O fazer e o feito
divorciam-se. Os índices de produção (concreto aparente, aparelhagem de
tijolos etc.) são tomados como diferenças de forma, “qualidades” plásticas no
“jogo de volumes”, massas, texturas etc.: entram nas oposições do tipo liso x
rugoso, “natural” x artificial, cinza x colorido, ... a isotopia de leitura consti­
tuída pela acumulação dos diversos trabalhos em torno do mesmo objetivo é
substituída pela das formas que intervêm entre elas, pela das rimas, intera­
ções, modinaturas, escalas, grades... No lugar da teleologia viva, a composição
vazia. O índice permanece perto demais do trabalho para que possa continuar
a ser o que é, sem deslocamento da leitura.
Entretanto, o índice sozinho é algo abstrato. É marca, vestígio da produ­
ção — mas isso não significa que ele seja a forma efetiva da produção. A marca
pode permanecer aleatória, dispersa, indiferente ao marcado. O índice tam­
bém se faz forma concreta do conteúdo concreto quando ela se torna “rastro”
{trace) — índice que preenche igualmente um papel icônico, isto é, quando à
relação por contato (o índice) se associa, se junta a relação pela similaridade.
Em outros termos, o índice se supera em traço quando nega sua imediatidade
de marca, se faz para-um-outro (ícone) — sem abandonar seu ser de marca.
Quando a pincelada se torna jato d’água em Tintoreto ou pena de pássaro em
Rembrandt — permanece sempre pincelada. O rastro é o desdobramento do
índice em índice e ícone — e sua identidade.
Na arquitetura comum, não há, às vezes, qualquer rastro senão por acaso.
Ela apenas recebe o índice — alterado entretanto, como se viu. Mas a plástica
dominante é terrivelmente astuta. O ardil de sua razão profunda joga com o
que ela é: aparência. Ora, querendo ou não, é a essência que aparece na aparên­
409 cia. 0 jogo das formas desloca o sentido do índice, transforma o vestígio da pro-
dução em variação de textura. Ele “expropria” o índice, o faz recuar ao nível
de um sin-signo. Indiretamente, por analogia, a outra expropriação, a que
está na base da arquitetura como mercadoria, deixa-se perceber vagamente. A
aparência, então, mostra-se como é: aparência. Torna-se aparência da aparên­
cia, aparência que aparece enquanto tal, que confessa ser aparência, aparência
da essência. Porém, qual é aqui a essência que a astúcia da aparência plástica
nos indica? Ela consiste nisto: fazer aparecer como jogo das formas (“... volu­
mes sob a luz...”) o que é depósito de um processo difícil de produção (percep­
ção barrada pela censura que, como se sabe, faz parte do “decoro ”, ginástica
de não otários que fingem deixar-se enganar), mas com o cuidado de deixar
pistas (o próprio depósito) em evidência, de tal maneira que, inconsciente­
mente (como se diz daquilo que se sabe mas que não é de bom tom saber),
sabe-se que se trata de uma aparência (o jogo), cuja verdade, cuja essência é
a expropriação do depósito de trabalho, da mais-valia, contada de viés pela
estranheza do deslocamento da leitura (negação i — aparência) que alguém se
encarrega de deixar perceptível (negação 2 — negação da negação, aparência
da aparência). Ao contrário da caridade, em que a mão esquerda não deve
saber o que a direita faz, a expropriação indica o que expropria aparentando
j

dizer que não expropria. E a base de seu prazer, a força de sua estética: o que
agrada no julgamento de gosto. Aliás, a estética kantiana insiste bastante, dá
um excesso de argumentos, volta incessantemente à questão da “finalidade
sem representação do fim” — como se alguma coisa aqui se recusasse a se
deixar apreender realmente, apenas se mostrasse perturbando sua imagem.
Alguma coisa que avança mascarada. Um sintoma que diz sem dizer (finali­
dade... sem fim), censura (negação 1) e revela (negação 2) ao mesmo tempo.
Isso serve aos deslizes do prazer perverso, aos quiasmas das pulsões sublima­
das, das elevações muito prazerosas. Isso corresponde à estética da ironia de
Friedrich Schlegel e seus descendentes (deve ser ouvido literalmente) de hoje.
Lacan alertava para o fato de que a beleza é a última cortina diante do horror.
Os julgamentos de gosto daqueles que dominam (e que, somente por isso, são
“universais” e “necessários”) fedem. É a hipocrisia como belas-artes. Rimbaud
tinha razão: ele mijou na beleza.

Porém, voltemos à outra indicialidade, a do rastro autêntico, o nosso.


A determinidade é como que a ponte para o fenômeno. Onde esta
determinidade não é totalidade que decorre da própria Idéia, onde a
Idéia não é representada como a que se determina e particulariza a si
mesma, a Idéia permanece abstrata, e não possui em si mesma, senão
fora de si a determinidade e, com isso, o princípio do modo de aparição
410 [Erscheinungsweise] particular que somente a ela é adequado. [...] a
Idéia em si mesma concreta traz o princípio de seu modo de aparição
[Erscheinungsweise] em si mesma e, assim, é seu próprio livre configurar.71

Um exemplo: uma cúpula pode ter vários perfis, todos estruturalmente corre­
tos; segundo as necessidades determinadas por essa ou aquela destinação, ela
será mais ou menos achatada, mas seguindo sempre um bom perfil. Numa
situação dada, os materiais apropriados disponíveis e sua técnica de execução
(concreto, tijolos, pedra...) definirão ainda a cúpula, sua espessura, o embasa­
mento necessário etc. Finalmente, a equipe adequada de pedreiros realizará o
conjunto de suas decisões, segundo o saber fazer adaptado e correspondente ao
saber e aos meios determinados. Em nosso canteiro de obras ideal, a “própria
idéia concreta traz seu princípio de fenomenalização em si mesma...”, o saber
ainda abstrato (“a” cúpula) se define, se determina pouco a pouco (forma,
material, técnica de execução...). Até a “fenomenalização” completa na conti­
nuidade, sem deslocamentos de leitura, sem travesti mentos exteriores porque
a determinação progressiva do objetivo é o movimento autônomo (portanto
livre, portanto tendo todas as razoes de ser em si mesmo, portanto absoluta­
mente racional, portanto necessário) do corpo produtivo completo.
Ao contrário do que ocorre atualmente, aqui há a assunção pelo sujeito (o
corpo produtivo) do que ele é obj etivamente — espírito gravado no material,
nas técnicas, no saber e no saber fazer — e que constitui a memória concreta
do construir, o todo posto em movimento no fazer atual.
Isso aparece claramente na indicialidade — que se torna rastro. A marca
do trabalho descreve, ao mesmo tempo, os meios aplicados e o esquema que o
orienta, remete a um duplo passado, o do ato e o do pensamento determinante
deste ato, sua conveniência recíproca. Os saberes separados pelo entendimento
(a estática, a ciência dos materiais, as técnicas de execução, a economia, a
organização do trabalho etc.) abandonam seu isolamento, refletem-se uns nos
outros, identificam-se sem eliminar sua diferença na totalidade concreta de
seu movimento, o construir. O desenho que desenha somente o construtivo e
seu “ornamento” - a didatização, a expressão do procedimento - faz da obra
um traço único mas muito rico, a apresentação de si do construtivo na apresen­
tação do pensamento (do projeto) que o determinou, a passagem do em-si do
corpo produtivo (gravado em seu material, no sentido de Adorno) ao para-si
de sua autoconsciência, à sua posição como outro na obra.
Dissemos que o jovem Marx criticava Hegel porque este não considerava

71 Hegel, G. W. F. Cursos de estética. Tradução de Marco Aurélio Werle. São Paulo: Edusp,
411 1999, vol. I, p. 90.
senão o lado positivo do trabalho. Em certa medida, a nova prática retoma
Hegel: partindo da constatação do horror que se tornou o trabalho, ela lhe opõe,
novamente, uma perspectiva otimista. Em Hegel, como demonstrou P. E. Aran-
tes, o conceito de trabalho é central (posição dividida só com a linguagem), abre
a via para a humanização, para a identificação do sujeito e do objeto, para a
/

exteriorização do espírito etc. E essa posição que ele deve, que ele pode retomar.
A sequência central aqui, em termos muito genéricos, é a seguinte: auto­
nomia (portanto fora do controle do capital), liberdade (ter todas as razoes
da determinação dos fins em si mesmo — portanto, finalidade social inte­
riorizada), razão (= necessidade = ter todas as razões de ser o que se é em si
mesmo, portanto, toda a série unificada: saber, saber fazer, técnica, material...).
Nada pode faltar nessa seqüência — e somente assim a arquitetura novamente
se tornará arte.
Nota: Após haver reconhecido a posição fundamental do trabalho e da lin­
guagem no movimento do espírito, Hegel parece esquecê-la ao falar de arte
no curso de estética. Algumas passagens são muito próximas das que descre­
vem a Bildung do escravo na fenomenologia:

No entanto, se as obras de arte não são pensamento e conceito, mas um


desenvolvimento do conceito a partir de si mesmo, um estranhamento na
direção do sensível, então a força do espírito pensante reside no fato de não
apenas apreender a si mesmo em sua Forma peculiar como pensamento,
mas em reconhecer-se igualmente em sua alienação no sentimento e na
sensibilidade, apreender-se em seu outro, transformando o que é estranho em
pensamento e, assim, o reconduzindo de volta a si.72 73
[...] o modo de produção de si mesmo nas coisas exteriores tal como elas estão
presentes na obra de arte.75

O produzir “de si mesmo nas coisas exteriores”, o se “reconhecer na exterio­


rização” descrevem igualmente o trabalho. Não há, na base, nenhuma dife­
rença em sua determinação, exceto a respeito da liberdade. Essa ancoragem
da arte no trabalho não retém aqui Hegel, nem mais tarde Marx ou Adorno.
Ora: tudo aí está pronto para uma outra leitura, aquela anunciada por W.
Morris — art is the expression of joy in labour — que simplificamos dizendo
que a arte é a expressão do trabalho livre. A ênfase bastante marcada em
torno da evolução das forças de produção explica talvez essa cegueira. A crí-

72 Hegel, G. W. F. Cursos de estética, op. cit., vol. I, p. 37.


412 73 Idem> P- 53-
tica das relações de produção, tão importante a partir da década de i960 e que
é a base de Dessin/Chantier, permite voltar ao centro da noção de arte: é o
trabalho — mas livre. Independente de toda heteronomia.
Essa observação é cheia de conseqüências: a liberdade implica ausência de
toda heteronomia, de toda determinação exterior; apenas as determinações
próprias à coisa mesma — processo de produção livre — devem ser contados.
Ou seja, a título de exemplo: qualquer idéia, norma, preocupação estética, no
sentido de princípios de beleza, deve ser considerada como não pertinente. Ao
contrário: só a racionalidade produtiva é fiadora do “belo”. O que, no centro
de cada saber fazer, não pode sair da simples subjetividade, não deve se desta­
car além da ação de cada corpo de profissão, das “variações” do canteiro-jazz.
Insisto porque é uma questão central e difícil de aceitar no início: nenhuma
consideração dita “estética”, nenhuma realmente, deve ser antecipada como
argumento por nossa “estética da separação”: esta é apenas a resultante da
estrita observação da lógica de produção — e o desenho que corresponde a isso
tem exigências precisas.)

O SIMBÓLICO

Kant associa o símbolo ao esquema (duas hipotiposes, “apresentação, subjectio


sub adspectum”). O esquema é uma intuição correspondente a um conceito do
entendimento. O símbolo funciona de maneira análoga — mas em relação a um
conceito da razão ao qual nenhuma intuição sensível pode convir: a analogia,
pois, se refere à regra (há uma relação intuição/conceito) e não quanto à própria
intuição (não há intuição verdadeiramente eficaz de um conceito de razão).74
Peirce, nosso guia em semiologia, quebra tal associação, aproxima o
esquema do diagrama e reduz o símbolo à relação convencional entre o repré-
sentamen e seu objeto.
Hegel, de uma certa maneira, está no meio. Para ele, na relação simbó­
lica, há inadequação entre “a idéia e a figura”, uma “estranheza” — mas, “...é
necessário... que os objetos da efetividade tenham neles mesmos um lado pelo
qual sejam aptos a expor uma significação universal” (“... no leão, por exem­
plo, visa-se a força”). 75 Isto nos afeta diretamente porque, para ele, a distri­
buição do belo artístico segundo as artes particulares determina a arquitetura
como arte simbólica por excelência.76

74 Kant, Crítica dafaculdade do juízo. op. cit., pp. 196-198.


75 G. W. F. Hegel, Cursos de estética, op. cit., p. gi.
413 76 Idem, p. 97.
Caso se aceite o que diz Hegel, na arquitetura haveria, portanto, uma osci­
lação entre inadequação e, pelo menos por “um lado”, adequação entre “a
idéia e a figura”; digamos: uma convenção não totalmente arbitrária que liga­
ria forma e conteúdo, a dispersão no espaço das particularidades autônomas
sendo da esfera do mesmo conceito que a unidade “subjetiva”, interior.
Hegel diz isso de uma outra forma ainda: “Seu material [da arquitetura]
é o próprio elemento material [Materielle] em sua exterioridade imediata
enquanto massa mecânica pesada, e suas Formas permanecem as da natureza
inorgânica...”.77 O material, na ótica hegeliana, mantém-se demasiado pre­
sente, demasiado premente, demasiado atraente. Não se sublima, não recua
o bastante diante do conteúdo conceituai (como na poesia ou na prosa): ele é
“objetivo” demais.
Entretanto, quando caracteriza o belo ideal, quase se pode acreditar que
Hegel descreve a expressão ideal da manufatura na obra construída:

[...] a Forma [Form] e a forma [Gestalt] externas não permanecem


separadas da matéria ou impostas mecanicamente sobre ela para outros fins,
mas aparecem como a Forma que se configura [herausgestaltende Form] e
que é inerente à realidade segundo seu conceito.78

Imagine-se a feliz manifestação de uma livre manufatura da construção: cada


especialidade, cada corpo de profissão (cada “lado particular”) colocando-se
segundo sua liberdade e sua lógica própria mas afirmando, ao mesmo tempo, a
necessidade do conjunto determinado pelo conceito central da manufatura — o
corpo produtivo total — eis que está constituído o “belo objeto” arquitetural. O
conceito ainda só subjetivo é o desse corpo simples, múltiplo em sua unidade
dominante, na universalidade das particularidades dependentes, na convergên­
cia dc todos os trabalhos: ele é o uno. Na objetividade, o conceito se desdobra
em suas particularidades, na autonomia garantida pela estética da separação
a cada especialidade; então cada uma desenvolve em-si e para-si o conceito do
conjunto, assegurando, desse modo, a aparência (o aparecimento) da liberdade,
reafirmando, através disso, a unidade de onde ele procede. Os conceitos de
“subjetivo” e de objetividade, um se espelhando no outro como em si mesmo,
idênticos em suas diferenças, encontram-se na “idéia”, essa identidade do
interior e do exterior, do sujeito e do objeto — do corpo produtivo como sujeito
(espírito) do objeto onde ele se põe integralmente, a obra construída. O projeto

77 Idem, p. 97.
414 78 Idem, p. 129.
comum, refletido, interiorizado e realizado por cada equipe, no âmbito de sua
melhor lógica independente, reaparece como objeto construído em que se lê
tanto a autonomia de cada uma quanto sua livre cooperação para o efetuar.
A arquitetura da estética da separação é, assim, simbólica do Geist — do
espírito. Da comunidade, representada aqui pelo “corpo produtivo” que, em e
através de sua liberdade, tornou-se “espírito produtivo” ou idéia (no sentido
de Hegel) construtiva.
Pensamos reconhecer aqui uma dessas passagens em que Hegel passeia
“de cabeça para baixo”. Não, a arquitetura (livre) não é a arte particular
menos desenvolvida, simbólica por falta de elaboração do conceito (cujo pro­
gresso tece a passagem do simbólico ao clássico — e, depois, deste ao românico,
quando a arte é superada pela religião revelada e pela filosofia). Ao contrário,
é a arte por excelência, a única talvez em que seja evidente que beleza e ver­
dade “são, por um lado, a mesma coisa”,79 onde o sujeito (o do corpo produ­
tivo) não se faz valer “contra o ser e as propriedades das coisas”,80 ou ainda
onde “ele não mais se distingue em intenções subjetivas, em seu material
/
e meio”.81 E o objeto da arquitetura livTe em que, principalmente, “devem
aparecer tanto o conceito, sua finalidade e sua alma assim como sua determi-
nidade, multiplicidade e realidade exteriores em geral”.82 O que parece a fra­
gilidade relativa da arquitetura em relação às outras artes (a “pesada massa
mecânica” etc.) é, na verdade, o que a torna mais digna: ela não tem que
“superar” seu material. Ele já é, desde o início, informado, penetrado, preen­
chido pelo saber e pelo saber fazer, “subjetividade”. Ele não tem que quase
desaparecer, como o “ponto” sonoro da prosa, para deixar passar a verdade de
seu conceito. Aqui a arte (plástica) fica colada a seu fundamento, o trabalho
livTe. A dispersão regulada dos materiais é quase análoga à espacialização
da sucessão das equipes — e sua coabitação racional, à unidade do processo: a
encarnação total não deixa restos não manifestos. Aqui “... natureza e liber­
dade, sensibilidade e conceito encontram seu direito e satisfação em um só
termo”.83 O fazer e as razões do fazer gravam sua imagem no material — e se
rigozijam consigo mesmos.
Se a arquitetura, entretanto, é especialmente simbólica (ler sempre:
arquitetura livre), é sobretudo na perspectiva kantiana (portanto, destoa em

79 Idem, p. 126.
80 Idem, p. 127.
81 Idem, p. 129.
82 Idem, ibidem.
415 83 Idem, p, 78.
nossa semiologia peirciana heterodoxa; nada é perfeito). Ela remete à regra
do esquema, mas seu conceito (o corpo produtivo livre) é conceito de razão
ao qual nao convém nenhuma intuição sensível. Ela é, pois, para Kant e para
/
Hegel, sublime. E o fundamento mesmo de sua essência — a comunidade dos
livres construtores — que não tem intuição sensível adequada. Donde a ina­
dequação apontada por Hegel — mas que não é absolutamente sinal de infe­
rioridade. A forma global do construído opera então “como” um esquema do
corpo produtivo — “como” somente: ela é símbolo.
Assim, nessa forma, reproduz-se a progressão da razão. A articulação
seqüencial dos esquemas, onde se condensam as equipes e seu saber dividido
do entendimento (saber que se diz “científico”), compõe uma unidade supe­
rior que identifica e mantém as diferenças, unidade de razão da consciência e
de consciência de si. Do entendimento dominante das partes à razão totaliza­
dora. Dos esquemas ao símbolo. Dos trabalhos parcelares ao coletivo produtivo,

O processo da vida compreende a dupla atividade: por um lado, levar


constantemente as diferenças reais de todos os membros e determinidades
do organismo [as especialidades produtivas, as equipes e suas realizações]
à existência sensível, por outro lado, porém, quando estas diferenças reais
querem petrificar-se em particularização autônoma e se fechar umas contra
as outras em diferenças firmes, fazer valer nelas sua idealidade universal, que
constitui sua vivificação [o corpo produtivo].84

Meu comentário sobre o “canteiro de obras” fez referência principalmente


a dois monumentos da estética: a Crítica dafaculdade do juízo, de Kant, e
Cursos de estética, de Hegel. Isso não é uma provocação: a arte, para nós,
nao é senão a expressão do trabalho livre. Nada mais natural, portanto, que
o estudo do canteiro de obras livre a partir dos conceitos da estética. E tal
abordagem não é nova: desde o tempo de Marx, W. Morris já dizia em arti­
gos, conferências e em seu romance (água com açúcar, mas magnífico como
“mensagem”) Notícias de lugar nenhum. Beuys simplesmente o copiou e o
desnaturou dizendo, abstratamente, que “todo mundo pode ser artista” — sem
ligar esse slogan nem ao trabalho nem à liberdade.
O que hoje concentra todas as desgraças do mundo operário (o canteiro
heterônimo da construção — os mais baixos salários, a mais longa jornada de
trabalho, as mais altas taxas de acidentes e de doenças do trabalho etc.) pode
tornar-se já o lugar de uma das mais belas expressões do espírito, da comuni-

416 84 Hegel, G. W. F, Cursos de estética, op. cit., p. 135.


dade livre. Tornar-se já, nos bolsoes liberados socialmente que a própria glo­
balização leva a se formarem. As condições indispensáveis são: supressão das
relações capitalistas de produção, total autonomia da produção. Autonomia
não é autismo: é evidente que a destinação social do produto — o objetivo ime­
diato — integra-se totalmente nessa autonomia. Caso viesse a se impor como
determinação exterior, esta anularia a autonomia. Só é efetivamente autô­
nomo o que integra a necessidade objetiva (necessidade técnica mas também
social) como manifestação de sua própria liberdade, pois esta (e repito isto
incansavelmente) exige que todas as razoes de seu querer lhe pertençam, sob
pena de, em caso contrário, se contradizer.

Uma necessidade — ou antes a necessidade — que é a própria fonte não é mais


a necessidade, mas a liberdade autodeterminando-se.85

Inversamente, a autonomia também implica, obrigatoriamente, a total con­


sideração do outro. Finalmente, a arquitetura como arte é expressão (“sím­
bolo”) da comunidade: para ser isto realmente, para ser expressão, apareci­
mento de sua essência, a comunidade, ela deve, efetivamente, contê-la em-si e
para-si. A dimensão social da arquitetura, como se diz, faz parte de sua essên­
cia — se ela for livre.
Sei também que esse comentário abusa da “razão”. Eu deveria, ao contrá­
rio, fornecer provas, relatar experiências, juntar fotos, alinhar números etc.
Mas minha recusa a fazer isso é também deliberada. A lei fundamental da
nova prática consiste na absoluta e exclusiva confiança na razão (e no enten­
dimento que a apóia) e na desconfiança sistemática em relação ao que se
apresenta como “normal”, “usual”, “fruto da experiência”.
Realizei na prática, com operários, tudo o que proponho aqui com os
resultados anunciados. Mas é preciso também evitar os “modelos” que podem
impedir a aplicação de uma outra lei fundamental: a absoluta atenção à pró­
pria coisa, não deixar que se interponha, entre ela e sua razão, nada de estra­
nho, de importado. A desconfiança em relação à razão e ao elogio do hábito
são armas opostas à libertação efetiva. A razão incomoda apenas aqueles que
querem prolongar a violência, a contradição das classes, a exploração. Para
nós, a razão é liberdade.

A autêntica originalidade do artista, bem como da obra de arte, reside ape­


nas no fato de ser animada pela racionalidade do Conteúdo em si mesmo

417 85 S. Opiela, Le reel dans la logíque de Hegel. Paris: Beauchesne, 1983, p. 207.
verdadeiro. Se o artista transformou completamente esta razão objetiva em
algo seu, sem misturá-la ou contaminá-la a partir do interior ou do exterior
com particularidades estranhas, então unicamente ele também se oferece a si
mesmo em sua subjetividade a mais verdadeira no objeto configurado, sub­
jetividade que apenas quer ser o ponto de passagem vivo para a obra de arte
em si mesma acabada. Pois em todo poetizar, pensar e atuar verdadeiros, a
autêntica liberdade deixa o substancial imperar enquanto uma potência em
si mesma, a qual é ao mesmo tempo de tal modo a mais própria potência do
pensamento e querer subjetivos mesmos, que não pode mais sobrar nenhuma
discórdia na completa reconciliação de ambos. Assim, a originalidade da arte
certamente consome cada particularidade casual, mas ela apenas a devora
para que o artista possa seguir completamente o traço e o impulso de seu
entusiasmo do genius preenchido unicamente pela coisa e, em vez do bel-pra­
zer e arbítrio vazio, possa expor seu verdadeiro si mesmo [selbst^ em sua coisa
realizada de acordo com a verdade. Não possuir nenhuma maneira foi desde
sempre a única grande maneira.86

418 86 G. W. F. Hegel, Cursos de estética, op. cit., p. 298.


O DESENHO HOJE E SEU CONTRA-DESENHO
2005

O DESENHO HOJE

Após a revolução industrial, durante todo o longo século XIX, um fantasma


ronda a manufatura da construção: como obter a submissão real do trabalho
obtida na indústria com a exteriorização do processo produtivo no maquina-
rio. "Na manufatura ela continuava desesperadamente só formal^ deixando
perigosamente o núcleo da produção depender da sabedoria e da habilidade
do operário. O que lastreava sua energia contestatória, que as inúmeras leis
contra suas associações, mesmo a Lei Chapelier da Revolução Francesa, não
conseguiam destruir. Nao sem razão os movimentos operários mais explosivos
contavam quase sempre com os da construção:

Os velhos ofícios, carpinteiros, serralheiros, forneciam os quadros superiores


da classe operária. São os mais bem pagos, os mais qualificados no seu
trabalho que dirigem a classe operária e animam sua vontade de emancipação.
As sociedades secretas, republicanas ou bonapartistas, dos operários da
construção, são as mais ativas.1

A elite da concepção quebrava a cabeça para elaborar teorias da arquitetura e


de engenharia que tivessem o mesmo peso, a mesma “objetividade” técnica
e científica que a seqüência das máquinas da indústria. O cálculo e a ciência

419 i H. Albert, De Babylone aux FILM, le logement social à travers lês ages, Paris, 1963.
dos materiais progrediram bastante, mas não conseguiram superar no can­
teiro a experiência milenar depositada no saber-fazer operário — a trincheira
de sua resistência. A manobra mais astuciosa foi a tentativa de substituir a
exteriorização das forças produtivas industriais por uma troca de materiais, o
ferro e o concreto. Nada disto foi programado, é claro. Mas não funcionou...
logo. A lógica da coisa é simples e ardilosa. Se a dita experiência milenar do
operário estava vinculada à terra, à pedra e à madeira, ela perderia sua força
se fossem empregados materiais novos, sem tradição.

Da mesma maneira que a ciência virá em socorro do capitalismo inventando


máquinas cada vez mais produtivas, permitindo uma alienação sempre maior do
proletário, a estrutura metálica de cobertura será inventada para contornar uma
greve interminável dos carpinteiros tradicionais utilizando a madeira [...] Se este
material (o ferro) de substituição não destronou concretamente a madeira, teve
pelo menos a conseqüência de dar nascimento a um novo corps de métier [...] as
indústrias utilizaram as estruturas de ferro como “furadoras” da greve.2

Mas o novo corps de métier demorou a formar-se: a torre Eiffel, monumento à


construção em ferro, teve que ser montada por carpinteiros.
A substituição dos materiais e a aura do novo saber técnico, do cálculo (e
da organização “científica” do trabalho) só se tornaram operacionais a partir
de 1920 mais ou menos. Após a Revolução de 1917, o temor que os exércitos
desmoralizados se unissem às agitações operárias como na União Soviética,
provocou violenta reação: na Alemanha derrotada, o exército foi mantido con­
tra o hábito histórico — para ajudar contra o levante spartaquista; na França,
ao contrário, nos batalhões inquietos, um em cada dez soldados foi sorteado
para ser fuzilado. Face à violência, sindicatos (cgt) e partidos ligados à URSS
aquietaram seus afiliados. Então sim, começa o tempo do concreto, do ferro,
do cálculo, da geometria rigorosa. A concepção concentra poderes suplemen­
tares (o que vale mesmo para os anti-geométricos, os expressionistas). Não há
história da arquitetura moderna que não comece por aí, pelos novos materiais
e pela tentação industrial — pela erradicação das experiências acumuladas,
chão das contestações — e pelo modelo de submissão real. O que é curioso
e dramático é que os pioneiros deste tempo têm quase todos preocupações
sociais honestas, contam com estes materiais e com a exatidão técnica de tipo
industrial para resolver e atender às necessidades operárias. Mas se o próprio
Lênin dizia que comunismo é socialismo mais eletricidade...

420 2 M. Ragon, Histoire de Varchitecture et de Vurbanisme modernes. Paris: Seuil, 1986.


E o desenho, nosso tema?
Sua estratégia muda. Não precisa mais do álibi estético, dos estilos histó­
ricos, para manter seu prestígio e seu domínio sobre a produção. As épuras do
desenho técnico substituem as ordens. O engenheiro, antes inimigo íntimo,
vira amigo, associado, seus diagramas inspiram, por sua precisão, seu ar de
verdade incontestável. Mas o modelo dos modelos é a indústria, a clareza de
seus produtos, o rigor de seu desenho, sua razão instrumental, sua capacidade
reprodutiva. A pré-fabricação, a industrialização da construção se torna o alvo
a ser atingido. Um Garnier, o Tony, do Projeto da Cidade Industrial, enterra
/

o outro, o Charles, da Opera. E surge a arquitetura moderna, filha de duas


ilusões: que a submissão do trabalho na construção era realmente real e que
o novo progresso abria o caminho para uma humanidade regenerada, que
o sonho dos utopistas, homens enquadrados em ambientes saudáveis, tão
pregado pelos críticos do século XIX, horrorizados diante da situação operária,
poderia ser realizado no século XX.
Enquadrada entre a fascinação pela indústria que até hoje lhe escapa e
a crença na regeneração dos homens graças somente ao progresso técnico, a
arquitetura, no melhor caso, cai sob a tutela da forma de pensar da projeção
utópica: o entendimento no sentido de Hegel. Separações estáticas, classifica­
ções exteriores, ajuntamentos mecânicos (leiam a carta de Atenas, versão de
Corbusier, visitem sua mais pura realização, Brasília). Quatro funções para a
cidade, sete tipos de circulação, saúde = sol + verdura (Le Corbusier), blocos
perpendiculares às ruas (Gropius), falanstérios (sem as paixões de Fourier):
apartamentos, circulação coberta, aquecimento, serviços comuns, felicidade
garantida. Com pouquíssimas realizações (fora da URSS até 1952-33) o ima­
ginário socializante, escorado pelo aperfeiçoamento da exploração, se exerce
sobretudo fora de sua área: casas burguesas, móveis industrializados, sedes de
empresas. A inadequação teórica é desmentida pelo sucesso prático. Com o
tempo, empalidecem as fascinações e as crenças. Sobra o exercício entediado
do metier.
Plasticamente, o entendimento técnico se traduz numa geometria que
valoriza as formas elementares, intrinsecamente estáticas, próprias para
salientar as diferenças das classes de funções. “Formfollowsfunction’'’: a
forma fixa as classificações funcionais. Abandonando a retrospecção histórica,
o desenho prospectivo dos novos tempos, sem chão real, se agarra à sua única
efetividade, seu código. E sua hipotética mensagem — os amanhãs que canta­
rão — vai se calando em surdina. Pouquíssimos, e sem muitas interrupções, se
atêm a seu tempo: o primeiro Wright, Breuer, o jovem Niemeyer, Artigas...

421
Hoje não podemos ser criadores, mas somos pesquisadores. Não queremos
parar de procurar as formas futuras [...] Assim que a nova concepção da
vida se manifestar, veremos igualmente seu símbolo, a arquitetura. Sejamos
voluntariamente “arquitetos imaginários”.3

Viva a utopia, é de fato a única coisa que nos resta.4

A Bauhaus, já mais comprometida com as indústrias de verdade, propõe cha­


leiras, móveis, tecidos comerciáveis. E, em 1940, Le Corbusier oferece seus
serviços bem práticos a Petain, em Vichy, e é enviado oficialmente a Alger.
Os que continuaram fieis à utopia, como Hannes Meyer, e emigraram para a
URSS, veem seu sonho terminar em 1932/33, com a industrialização forçada
e retornam desiludidos. O pesadelo do capital, privado ou de Estado, foi em
frente, mandando às favas as profecias bizarras dos “arquitetos imaginários”.
Dissolvida a mensagem — mas não querendo ou podendo perder a aura
das vanguardas (que começam a dar uma volta anacrônica pelo mundo) — o
desenho continua o mesmo discurso cada vez menos “heróico”. E, para a
felicidade geral da sociedade do espetáculo, inevitavelmente chega a hora em
que “o meio é a mensagem” — em que, calada a mensagem, a mediação toma
comando. Em que o desenho pode falar sozinho, sem que ninguém estranhe.
Entretanto, não esqueçamos: a função primeira do desenho, sob o capital, é
a prescrição. Sua miragem prospectiva, agora só álibi, faz que possa prosseguir
sendo o que sempre foi desde o Renascimento: desenho defasado da construção
real. Ontem saía do presente recuando; agora, fingindo preceder. De qualquer
modo, o importante é não se adequar, não se identificar ao que comanda. Ape­
sar da calmaria pós 1920, a submissão do trabalho na construção manufaturada
é só formal ainda. Há sempre que realimentar a submissão. A submissão à
forma extemporânea tenta compensar este “só formal”. A forma é, em qual­
quer caso, manifestação de sua essência. Ora, a essência da manufatura é o
trabalhador coletivo, a soma de suas equipes, de suas habilidades, materiais etc.
Sob o capital ele é heterônomo, sua manifestação deve contar esta heterono­
mia, confirmá-la. Se o trabalhador coletivo aparecesse como deveria ou poderia
ser em si e por si, ficaria evidente que sua dominação é incompleta, formal
somente. E aparecia de outro modo. A forma inadequada, desviando, impossibi­
litando esta hipotética mas possível aparição, confirma, dá prova desta hetero­
nomia — e é, portanto, adequada. Diz que hoje o trabalhador coletivo não pode

3 Bruno Taut, 1919. Apud M. Ragon, op. cit.


422 4 H. Obrist, 1919- Apud M. Ragon, op. cit.
dispensar a chefia exterior, que é assim corpo com cabeça de outro. Mas, sendo
assim contraditória (pois é sempre possível detectar a impropriedade gravada
nela), a forma aponta a contradição na essência. Diz que a paz não reina nela.
Taras da forma que não consegue mentir pra valer. (Entretanto, nem sempre
é fácil ver a forma; é o que me obrigou a recorrer à semiótica de Peirce, que
arranjo como posso com meu tosco hegelo-marxismo).
Como toda mediação, o desenho tenta engolir o que pode dos extremos.
Do capital, ao ar de necessidade que ganha com a exteriorização das forças
produtivas, com os giros do “sujeito automático”. Do trabalhador coletivo
(heterônomo), o ar de montagem lógica. As explicações dos partidos arquitetô­
nicos têm jeito de teoremas, se lermos desatentamente. As formas são, dizem,
as que obrigatoriamente têm que ser, dado o programa, o budget e a idéia
/

construtiva. E bem verdade que têm tudo para corresponderem, filhotes todos
do mesmo entendimento classificatório. As variantes decorrem sem dúvida de
variáveis bem determinadas. Prestam-se razões superiores aos simples jogos de
volumes, às alternâncias de massas, vazios, texturas. Tudo tem que ser lógico,
medido, objetivo — mesmo se o arremate final não pode deixar de lado o tal do
belo. Por outro lado, o desenho soma partes, adiciona componentes, divide em
módulos, com-põe, põe junto como se o arranjo obedecesse a algum princípio
imanente. Os cinco princípios de Le Corbusier, o pilar que atravessa livre­
mente a casa, a ossatura autônoma com relação à alvenaria, a planta livre, a
fachada livre, o teto-jardim, roçam de perto o que seria a transposição plástica
da lógica da manufatura associada à lógica dos componentes arquitetônicos
— mas o que logo acorre para justificar as proporções não é o trabalho constru­
tivo e sim os traçados harmônicos, a regra de ouro e a altura do policial inglês.
Entretanto, a montagem raramente toma como guia o que esta à mão, o mais
próximo, o mais simples e justo: o da produção inteligente. Sabemos porquê.
Com a atual invasão galopante do capital financeiro, fruto e causa da terceira
revolução industrial, a da informática globalizante, as coisas parecem mudar em
cima e embaixo, mas tudo fica onde está. Embaixo, o novo suporte do desenho,
o computador, aumenta sua força por permitir novas figuras que eram penosas
demais para o desenho apoiado no compasso e na régua T. Hoje, a mais chã das
construções pode embaralhar tramas, inclinar em ângulos estranhos pilares
ou paredes, propor curvinhas rebeldes, etc. Os arquitetos que mais se destacam
possuem os computadores mais sofisticados e os programas mais complexos.
Gehry em Bilbao adota um programa criado pela indústria aeronáutica que lhe
permite detalhar curvas absconças, a amontoar volumes irregulares. Libeskind
pode fugir do diedro comum, suas horizontais e verticais, enviezar assustadora-
mente tudo, rasgar fendas dissonantes. Herzog conseguiu propor uma enorme
423 macarronada em Pequim. Zaha Hadid tem como cruzar um emaranhado de
fachadas, etc. Em todos esses casos, a presença do desenho solto, agora apoiado
no computador, salta aos olhos. Mas seu sucesso midiático vem sobretudo de
sua perfeita conveniência ao comportamento do capital financeiro, hoje em pole
position lá em cima. Ambos exibem, sem nenhum recato, sua indiferença pela
produção. Mal ou bem, o desenho anterior teve que mostrar alguma reverência
a seu patrão, o capital produtivo: suas ficções eram sempre “construtivas”. Agora,
com o capital financeiro saltando sem remorsos de setor em setor, que suga
enquanto sua taxa de lucro for interessante e não murchar, a produção perdeu
seu antigo prestígio. Prometeu saiu de moda, Midas tomou seu lugar. Para que
isso fique bem claro, a arquitetura das stars up to date tem que ostentar, enfatizar
seu desrespeito irônico pelas mais elementares conveniências da construção, da
estática — e do bom senso. Desprestígio da produção — sem a qual, entretanto,
nem o capital financeiro, nem sua arquitetura sequer existiriam.
No caso dos arquitetos high-tech — Piano, Foster e cia. —, a coisa é mais
escorregadia. Eles utilizam o computador, em geral, para resolver questões
técnicas complexas. A cobertura do aeroporto de Kansai, de Piano, por exem­
plo, adota a forma ideal para resistir aos furacões, determinada por simulações
exigentes. Outras vezes, Piano prepara a pré-fabricação correta. O que causa
problema é o exagero do procedimento: a concepção absorve sem deixar restos
/

todos os andamentos da produção, tudo é minuciosamente previsto. E verdade


que testa tudo, em maquetes e até escala 1:1, e que em Lyon, na Cité des Arts,
tentou associar-se a iniciativas voltadas à questão do canteiro — mas não houve
continuidade. Tudo bem, se a complexidade é realmente inevitável. Na sede
da Hermès em Tóquio, entretanto, a técnica vira propaganda do esmero da
marca de luxo, especializada em roubar tecnologia popular. O prédio é uma
torre de blocos de vidro, absolutamente perfeita, em todos os detalhes. No
Banco de Hong Kong, de Foster, outra perfeição. Parece que um relógio foi
aberto e se está olhando aquelas engrenagens lindas. Nestes dois casos, a tec­
nologia foi levada ao máximo das possibilidades. Não há grandes fantasias nas
formas, elas são absolutamente racionais. Mas todo o saber foi para cima, para
a mão do arquiteto, e todo o fazer ficou completamente automatizado.
Os operários de Piano, Foster e de outros arquitetos desse tipo devem
se transformar em pequenas maquininhas. Num edifício em Paris, ao lado
do Beaubourg, Piano fez com que os operários limassem os tijolos um a um,
porque tinham vindo da olaria com milímetros de diferença em relação à
modulação. Qualquer arquiteto um pouco mais safadinho faria a fieira toda
e disfarçaria na última ou colocaria um pouquinho mais de argamassa numa
fieira só. Mas ele mandou que todos os tijolos fossem lixados. Coisa que o
Mies já tinha feito no m.i.t., não exatamente lixando, mas medindo os tijolos
424 um a um e selecionando os de tamanho exato.
São casos caricatos, mas se a tecnologia na arquitetura não deve ser des­
prezada, não pode ser utilizada para novos massacres. O operário é obrigado a
se transformar em força de trabalho abstrata, sem uma gota de sangue, para
realizar aquela aplicação precisa do seu próprio desaparecimento na obra do
outro. Esses arquitetos high-tech, fabulosos de certa maneira, são terrivel­
mente enganosos nesse sentido: eles parecem respeitar a técnica, mas em tudo
aquilo que ela tem de desumano, de desconsideração ao trabalho, exigindo
uma precisão absolutamente mecânica, voltada contra as possibilidades do
trabalho e sua humanidade. Não é a toa que eles se transformaram em arqui­
tetos de museu, de Hermès, de “casas-tesouro”.
A questão da alta tecnologia é, assim, de uma ambigüidade extrema.
Jamais se deve abandonar as conquistas da razão, do saber, mas cada um des­
ses saberes, como foram criados para e pelo capital, trazem consigo sempre
/
algo perigoso, traiçoeiro, escorregadio. E preciso, então, em cada caso, fazer a
análise, a crítica no detalhe, e a reutilização noutro sentido.

CRÍTICA (E CRÍTICA DA CRÍTICA)

Não se legifera para ofuturo [...] Tudo o que podemos é adivinhar as tendências
essenciais e limpar o caminho. [Kropotkin]

O fundamento constante da história do desenho, desde o gótico tardio, deriva


da posição que ocupa no processo produtivo: instrumento do capital, indis­
pensável para a extração da mais-valia. Nunca, neste período, pode ser neutro,
simplesmente técnico. Tem por obrigação que resistir a qualquer vestígio de
autonomia — portanto, de livre necessidade — que possa surgir no canteiro.
Suas mutações correspondem a configurações diversas da luta de classes na
construção. O que esconde sob a ilusão de uma história imanente, digna, pro­
gressista. Entretanto, sua mediação, cheia de astúcias e mistérios, sempre con­
traditória, pois tem que impulsionar e desviar a produção, continua a ser vista
como inofensiva. Por isso, qualquer anseio para alterar as relações de produ­
ção no canteiro tem que promover, como condição indispensável, a crítica e a
reforma do desenho (o que, evidentemente, não basta).
Ora, a crítica experimental, a que testa em aplicações (a única que vai
além do discurso das “belas almas”) não pode evitar certas contradições da
situação em que se exerce. Se, como a nossa, a crítica se centra nas relações
de produção, de exploração e seus vastos efeitos nefastos, não há hoje como
escapar, em geral, à que funda o sistema em que vivemos, a relação desigual
de compra e venda da força de trabalho. Como nesta relação é sempre o
operário que avança seu trabalho ao capital (como afirma Marx, mesmo se o
valor criado só se “realize” mais tarde, o salário paga trabalho feito) ele tem
que aceitar a ordem recebida — porque vendeu sua força e, mais precisamente,
para não ameaçar seu pagamento futuro que depende da execução correta
de sua tarefa. Vendida a força de trabalho, a aceitação das ordens recebidas
não pode ser parcial. Mesmo quando eu chegava ao canteiro oferecendo par­
ticipação, um pouco de liberdade e respeito, tratava-se objetivamente ainda
de comando: cu prescrevia alguma autonomia — o que se tornava automa­
ticamente heteronomia. Além disso, só em alguns casos, a participação real
se transformou em vantagens, de salário ou outras. Objetivam ente, ainda
uma vez, graças às economias obtidas pelo respeito que eu propunha à lógica
produtiva, melhorado pela participação dos trabalhadores, eu aumentava
simultaneamente a mais-valia relativa e o lucro possível. Não foi por nada
que saí de banda, pendurei meu chapéu de arquiteto. Mais tarde, na França,
em obras para mim mesmo, corrigi um pouco do desequilíbrio, tendo então
visto brotar uma criatividade rara. Paguei salários maiores, vivia no canteiro
e soltava minhas críticas ao processo habitual de produção. Mas foi um dos
operários que me obrigou a ir adiante. Começou a me pedir empréstimos
pesados que, evidentemente, não devolvia. Culpa minha, que havia explicado
a eles a malandragem da mais-valia. Ele recuperou o que achou ser a parte
dele. Depois desta lição muda, fiz o mesmo com os outros, de uma ou outra
maneira. Mas o fato de nunca termos falado claramente dessa reapropriação
enviesada mostra que me consideravam um pouco como um abobado gene­
roso - mas sempre patrão a quem nao se diz tudo. O peso da venda da força de
trabalho não desaparece com boa vontade, posição política ou abobamento.
E a posição de proprietário ou de representante de proprietário, esta força não
se dilui com intenções bondosas.
Para continuar meu empenho crítico, na França, me recolhi para dentro da
universidade (ajudado nisto por não poder exercer a prática, meu diploma não
era reconhecido. Mistérios administrativos: formei mais de 400 arquitetos que,
eles, exercem. Mais: para validar meu diploma poderia me inscrever na Escola
que ensinava; naquele tempo, o aluno poderia se inscrever numa ateliê vertical
com o mesmo professor por cinco anos de formação: eu poderia assim me ins­
crever no meu ateliê, me ensinar e me levar à diplomação). 0 objetivo sempre
era o de ir até a realização experimental. (Que a ordem dos arquitetos e os ofí­
cios públicos de construção zelosos impediam; hoje, com os ateliês experimen­
tais da Isle d’Abeau isto seria possível, acho). Desenvolvi com os alunos o tipo
de desenho que praticávamos no Brasil, levando-o a extremos, pois, em princí­
pio, estávamos em condições de pesquisa prática. Já falei bastante, em outras
426 ocasiões, sobre ele. Resumo somente suas características essenciais.
Como em geral na crítica, seu impulso vinha da negação determinada do
desenho habitual que recusávamos: da empulhação estética e do desrespeito
sistemático à lógica produtiva. Nós nos proibíamos qualquer decisão que pro­
curasse se justificar por referências estéticas. É claro que este princípio teve
seus arranhões, mas a coerência de nossas posições exigia que deixássemos
esta questão para o momento do canteiro (volto logo a isto. Noto que não há
aqui nenhum puritanismo ascéptico, pois o objetivo é um prazer maior). Por
outro lado, nosso desenho se guiava pela atenção radicalizada aos passos da
produção, seguindo os conselhos da “lógica da situação” de K. Popper (eu sei,
eu sei, mais um autor discutível que acusava o marxismo de metafísico — mas,
que fazer, a idéia é boa). Observação rigorosa da sequência racional das equi­
pes de produção manufature ir a, num contexto dado, na procura de sua maior
autonomia possível, utilizando suas melhores capacidades com materiais de
qualidade. No campo de cada uma, campo que modificávamos para abranger
um conjunto coerente e completo de atividades, valorização da lógica própria
de suas operações, de seus materiais específicos, de sua aplicação mais correta,
mesmo se não habitual; separação nítida e se possível total, de cada etapa,
redução, simplificação das interfaces e cruzamentos entre elas em busca de
maior independência; recurso a possibilidades técnicas marginalizadas por sua
menor rentabilidade para o capital, etc. Só com isso, sem nenhuma novidade
de forças produtivas, com a racionalização exaustiva da técnica produtiva exis­
tente, conseguimos economias significativas, sem nunca ceder em qualidade.
A mesma postura analítica se aplicava na determinação dos componentes
arquitetônicos que, em geral, corresponderiam, na sua delimitação, ao campo
de ação de uma equipe. Uma vez proposto o esquema geral da obra aca­
bada, voltávamos ao começo, somávamos os àeserínos seguindo o moinemo
imaginado do canteiro, copiando na concepção o caminho cumulativo da
manufatura (serial, no caso brasileiro, heterogênea, no francês). Primeiro
estrutura e fundação, pensadas e calculadas para serem as mais justas, corretas
e econômicas, as mais racionais dentro das condições disponíveis, cuja exe­
cução não implicasse perigo ou esforço exagerado, as melhores para atender
simultaneamente as injunções do programa, do trabalho, do cálculo, do mate­
rial. Para que isto fosse possível, separação, independência total da estrutura
das etapas seguintes de produção: deveria sempre primar, a cada momento a
lógica específica da etapa, sem entraves vindo de outras. Depois as divisórias,
a caixilharia, as instalações elétricas etc. Sempre com o mesmo rigor interno
e sequencial que deveria claramente aparecer, sem nenhum encobrimento
desnecessário, no resultado final. O ideal: tudo à vista, contando exatamente o
caminho percorrido. Este procedimento provocava uma verdadeira montanha
427 de desenhos — que todas as equipes deveriam receber na sua totalidade, na
hora do canteiro real. E quando lá chegávamos, havíamos desenhado tanto,
percorrido a produção tantas vezes na imaginação, detalhado tanto tudo que
pouco campo restava para a contribuição operária que tanto queríamos. Falá­
vamos de jazz, de improvisação possível dentro de cada etapa autônoma — mas
escrevíamos tintim por tintim a partitura, como um Piano low-tech. Não
tenho de criticá-lo como fiz.
/

E claro que nosso desenho não é ainda o apropriado para outras relações
de produção. O que o justifica, o trabalhador coletivo livre, fundamento destas
outras relações, ainda está por vir. E não há como antecipá-lo sem cair nos
mesmos impasses das vanguardas modernistas prospectivas que criticamos
antes. Sò nos bolsões que os novos movimentos sociais (dos sem-terra e sem-
teto) começam a abrir na rede do sistema podemos esperar que se esboce.
Nosso desenho, entretanto, já prepara sua vinda por sua função crítica-prática.
O ilhamento de cada etapa em busca de sua própria coerência e autonomia é
indispensável para afastar o que a técnica de dominação nelas depositou, as
deformações da lógica produtiva necessárias para a exploração. O desmonte
do desenho separado e autoritário, dos costumes que nos incutiu, a crítica prá-
/

tica passa forçosamente por esta decomposição. E evidente, entretanto, que o


trabalhador coletivo, sobretudo nos casos mais simples, não será formado por
mônadas — nem pela mediação dos arquitetos de hoje. A arquitetura terá que
recuperar o que já foi, enriquecida pela experiência depurada dos séculos pas­
sados: produto de um coletivo efetivo.
Nas raras vezes em que me aproximei de outras relações de produção,
apesar dos obstáculos já mencionados, o desenho do momento crítico mudou
de posição, seja pelo recurso a maquetes construtivas, perspectivas cavaleiras,
etc. que o substituíam em parte (o que confirma a experiência de Zanine com
casas populares), seja pela sua relativa marginalização. Num caso recente
(meu ateliê em Grignan), desenhei, como sempre, tudinho. Mas guardei
muito comigo. Dos vários desenhos, só mostrei os mais gerais, que preguei
nos muros do canteiro, deixando que se sujassem, sem cuidá-los zelosamente.
E a cada começo de qualquer coisa, discutíamos como fazê-la ou o que havia
que modificar. Eu guardava para mim a minha solução. Mas em muitos casos
chegávamos em grupo a soluções mais interessantes. Pouco a pouco, através
da elaboração coletiva, o projeto inicial foi sendo transformado. Meu desenho
“geral” ainda é reconhecível — mas o construído tem sua própria história. E o
resultado, posso dizer, pois a obra não é mais “minha”, é de retirar o chapéu,
de agrado geral. Só foi criticado (ligeiramente) por um arquiteto conven­
cional. A obra é pequena, a equipe, pouco numerosa. Mas a arquitetura não
está reservada exclusivamente aos megaprojetos high-tech e às torres “inte­
428 ligentes”. Aliás, o gigantismo das realizações capitalistas nunca agradou ao
anarquismo de esquerda. Ter desenhado tudo antes — o que eu justificava
me dizendo que em caso de impasse teria uma saída pronta — assinala mais
minha insegurança ou desconfiança que uma necessidade objetiva. Quase não
tive que recorrer à minha reserva de soluções. E óbvio que esbarramos em
problemas e tivemos que aceitar compromissos. E daí? Perfeito, só o tipo lá de
cima, que há tempos não quer nada conosco.

CONTRA-DESENHO (OU DESENHO PRONTO A SE RETIRAR)

Creio (não asseguro) que o outro desenho virá por aí — se não considerarmos
obras necessariamente complexas. Um desenho informado, correto — mas
pronto a se retirar —, com menos prescrições desnecessárias e mais aberturas:
um tema para debates. Que retome a posição que tinha no tempo da coo­
peração simples (tempo do românico e do primeiro gótico), fortalecido pela
lógica que a crítica do período manufatureiro pode trazer à construção. E
que favoreça, num primeiro momento, a humildade, o despreendimento e a
paciência do arquiteto, que não carregue, diluído em sua carne, os germes do
autoritarismo. Há oito séculos o corpo produtivo acéfalo é esmagado. Não se
constituirá livremente com facilidade. E carregará, como todos nós, muitos
ranços de hoje. Um dos pedreiros do nosso canteirozinho, encantado com a
obra que também era sua, plantou no encontro de duas cumieiras uma pedra
que achou parecida com uma casinha, lembrança das que vê nos jardins com
anõezinhos. Horrível — mas comovente. Pôs sua marca satisfeita no topo da
construção sua, marca que, por uma vez, não é defeito ou sujeira, mas assi­
natura. Kitsch talvez. Mas se kitsch é a degradação de conceitos plásticos res­
peitáveis, os nossos elegantes critérios formais talvez sejam ainda mais kitsch:
derivam de uma produção martirizada, não são em nada respeitáveis. Porque
nós, com a imposição prescritiva de nosso projeto, é que degradamos o que
deveria ser a arte da arquitetura.
Volto, assim, ao que adiei lá atrás — a exclusão, por princípio, de qualquer
interferência estética do projeto crítico. Porque na arte, a concepção é pouca
coisa se isolada — como dizia Mallarmé a Degas que, apesar de ter muitas
idéias, não conseguia escrever um soneto. O desenho só conta quando se
perde na matéria e volta outro, transformado pelo trabalho que o redescobre
transubstanciado. Querer enfiar vibrações estéticas no desenho leva obriga­
toriamente à sua perda. Pela milésima vez: arte é manifestação de alegria no
trabalho. Para que esta alegria seja autêntica, o trabalho tem que ser livre. Se
for realmente livre, autônomo, o trabalho terá em si mesmo todas as razões
+29 para ser o que é, sem depender de nada exterior, é o necessário.
Façamos agora o caminho inverso: um projeto que só contenha o absoluta­
mente necessário racionalmente, completamente colado à lógica produtiva e
à do produto, é condição para uma produção racional, necessária, que só assim
pode se abrir à liberdade — que é a expansão alegre do necessário além de si
mesmo. Arte é a expressão enfática do gesto justo. Daí minha defesa do orna­
mento autêntico, a verdadeira arte de todos: a exaltação, o canto que amplia a
necessidade autônoma do fazer livre, o único humano. A recusa a uma impo­
sição estética a priori vem do respeito à arte que é o nome da inscrição no pro­
duto da ação produtiva livre. Estamos acostumados demais com a arte sepa­
rada, com a dor ou a melancolia que as belas-artes exprimem, fruto de sua
semi-liberdade abortada. E hoje engolimos como se fosse arte a manifestação
do escárnio-pânico com que o capital suicidário tenta esconjurar o que teme
nascer de seu fim, a alegria do trabalho enfim livre. Mas isso passará, espero.
Enquanto esperamos, vamos limpando o caminho como aconselhou Kro­
potkin: há ainda tanta sujeira por aí!
“Não se legifera para o futuro”, certo.
Mas podemos tentar “adivinhar as tendências essenciais” — adivinhar, lan­
çar hipóteses sem a segurança ilusória das vanguardas, sem nenhuma inten­
ção normativa. De minhas magras experiências — e de outros — penso que é
possível extrair algumas inferências, algumas indicações de princípios, alguns
temas para ensaio no período de transição.
0 desenho poderia adotar as seguintes orientações:

x. Adotar como fundamento de sua própria constituição o diagrama da


lógica da sequência produtiva manufatureira. Imprimir no a-fazer a estru­
tura dinâmica do fazer. Reduzir assim a hegemonia do fim estático sobre a
mediação operacional. Rever o fim através do meio.
2. Em cada etapa, determinar o esquema, o diagrama do que fazer — o mais
simples, racional e autônomo possível. (Esquema, diagrama, isto é, ícone
que só representa alguns aspectos do representado. No nosso caso, a figura
essencial resultante da melhor experiência do saber da equipe específica
aplicada à obra. Sua manipulação deve ser cuidadosa, pois é abstração e
pode carregar consigo hábitos inconvenientes. Os diagramas do desenho
têm que evitar os extremos: nem muito abstratos para que o mais geral
seja exterminado e a compatibilidade do conjunto seja garantida, nem
muito precisados, para que a participação das equipes na sua definição seja
real, no todo e nas partes).
3. Reduzir ao máximo, contornar mesmo as interfaces, os lugares de cruza­
mento das equipes, lugares de limitações à autonomia. Um bom exemplo,
as primeiras obTas de Niemeyex. Outro ainda, o modo de )untar caixilharia
e parede que Lina Bo Bardi e Lelé empregaram no Zanzibar em Salvador.
4. Detalhamento dos esquemas parciais pelas equipes — não por técnicos, tao
separados do canteiro hoje como os arquitetos.
5. Respeito pelo rastro (“trace”) específico do trabalho de cada equipe. Se o
diagrama guia a concepção, o índice, a marca do trabalho hábil e racional
é indispensável na produção: não só atualiza, dá carne ao diagrama, mas é
a única passagem para o “sujeito”, para a aparição do produtor no produto,
do trabalhador coletivo, a essência, na forma de sua obra.
6. Deixar o resultado o trabalho de todas as equipes o mais possível aparen­
tes. Ainda uma vez: se a essência é respeito à integridade do corpo produ­
tivo, todos deveriam aparecer.
7. Se tudo o que precede ficar inscrito no resultado, sua plástica será outra,
evidentemente. Não a dos volumes, da geometria própria a reforçar a feti-
chizaçao — mas a da produção livre.
8. Se assim for, a obra atingirá valor pedagógico, ensinará como construir
com autonomia. Para reforçá-lo, por que evitar a retórica do ornamento
autêntico, ampliação harmônica (em sentido musical) do gesto produtivo
adequado — o signo da alegria na produção livre?

431
POSFÁCIO

Estampa de William Morris para papel de parede, c.1870.


SAUDAÇÃO A SÉRGIO FERRO

2005

Caro Sérgio, caros amigos,


como todos aqui, estou feliz de participar desta inesperada homenagem ofi­
cial. Quero cumprimentar o nosso ex-vereador Nabil Bonduki pela iniciativa,
e pela idéia generosa e heterodoxa que ele tem do que seja merecer a grati­
dão da cidade. Graças a essa idéia, faz pouco tempo o Chico de Oliveira, aqui
presente, recifense e radical, também foi acolhido na galeria dos paulistanos
ilustres, para satisfação da nossa intelectualidade não-conformista.
Se não me engano, as intervenções mais salientes do Sérgio — aquelas que
puseram a cidade em dívida com ele — foram quatro: ia) Muito cedo, antes
ainda de 1964, ele e seus amigos Flávio Império e Rodrigo Lefèvre ensinavam
que o teste verdadeiro da modernidade para 0 arquiteto estava no problema da
habitação popular. 2a) Pouco depois de 1964 ele observou e logo escreveu que o
golpe vitorioso da direita, bem como a derrota da esquerda, haviam mudado o
sentido geral da modernização, inclusive da modernização em arquitetura. 3a)
Diante dessa mudança, Sérgio entrou para a luta armada contra a ditadura e
pelo socialismo, o que lhe valeu uma temporada de cadeia. E 4a intervenção,
unindo a análise do modernismo arquitetônico ao estudo econômico-social do
canteiro de obras, ele concluiu, quanto ao primeiro, que se tratava de uma ideo­
logia conformista, que recobria realidades de classe nada glamurosas ou adian­
tadas, muito distantes daquelas que a idéia de modernidade sugeria.
Convenhamos que as quatro intervenções são notavelmente críticas, para
não dizer estraga-festas. Qual a idéia então de festejá-las e dá-las em exem­
plo? Seria o desejo de completar a reconciliação com as travessuras antigas de
435 um respeitável sessentão cassado pela ditadura? Passado o tempo, que agora
é outro, seria a vontade de reconhecer o valor histórico daquelas intervenções,
para fazer delas uma parte assumida e legítima de nosso presente, apesar do
incômodo causado em seu momento? Seria o sentimento de que as questões
levantadas pelo Sérgio naquele tempo mal ou bem continuam vivas? Ou terá
sido um cochilo do establishment, que o Nabil aproveitou para fazer justiça
com as próprias mãos? Suponho que de tudo isso haja um pouco, mas a res­
posta cabe à geração de vocês.
Em 1964, Sérgio estava com 25 ou 26 anos. Isso quer dizer que ele pertence
à última geração que ainda carregou as baterias nos anos da radicalização do
desenvolvimentismo populista, quando durante um curto período pareceu
que modernização, emancipação popular e emancipação nacional andavam
de mãos dadas, sob o signo da industrialização. O entusiasmo causado por essa
convergência, ilusória ou não, em que a presença da luta popular e dos sindica­
tos tornava substantivas as idéias de progresso e de democracia, foi grande. As
aspirações daquele momento, de legitimidade quase irrecusável, deram subs­
tância crítica e subversiva à vida cultural brasileira durante decênios, muito
depois de desmanchada aquela convergência. Pois bem, é nessa atmosfera de
confiança no futuro e na força racionalizadora e saneadora da industrialização
que Sérgio, Rodrigo e Flávio dão um passo surpreendente: como a indus­
trialização e as suas bênçãos iriam tardar, eles buscaram uma solução para a
casa popular que fosse para já, barata, fácil e pré-industrial. As suas pesquisas
sobre a construção em abóbada, apoiada em materiais correntes e baratos, e
em princípios construtivos simples, fáceis de aprender e de ensinar, ligam-se a
esse quadro. Tratava-se de democratizar a técnica, ou, também, de racionalizar
a técnica popular por meio dos conhecimentos especiais do arquiteto. Enca­
rada assim, a casa em abóbada — um abrigo, uma oca, um invento modernista
— adquiria estatuto metafórico de protótipo para uma nova aliança de classe,
para a aliança produtiva entre a intelectualidade e a vida popular, à procura de
uma redefinição não-burguesa da cultura. Pedro Arantes, que historiou muito
bem esse percurso, observa que se tratou de uma primeira crítica à industriali­
zação da construção, a ser retomada depois, e de uma primeira hipótese, ligada
a circunstâncias sociais brasileiras, sobre a construção fora do âmbito das rela­
ções de produção capitalistas.1
Outro aspecto importante é a ligação dessa “poética da economia”, tão
diferente do modernismo aparatoso de Brasília, com o experimentalismo van-
guardista das cenografias de Flávio Império. Flávio trabalhava com estopa,

1 Pedro Fiori Arantes, Arquitetura nova: Sérgio Ferro, Rodrigo Lefèvre e Flávio Império
436 — de Artigas aos mutirões. São Paulo: Editora 34, 2002.
papel de jornal, palitos, roupa velha etc., materiais que são quase nada, se
nada for o que está aquém do preço e não circula no mercado. Por aí, há um
parentesco também com a “estética da fome” de Glauber Rocha e com o
clima geral do Cinema Novo. São relações importantes, em que a pobreza
brasileira suscitava respostas intelectuais e artísticas ousadas, de vanguarda,
que reatualizavam o espírito antiburguês e revolucionário das grandes van­
guardas do primeiro decênio do século xx.
Seja como for, em 1964 houve a inversão da corrente, inversão aprofun­
dada em 1968. As perspectivas da esquerda estavam cortadas. No que dizia
respeito aos intelectuais, um conjunto amplo de apostas no futuro e alianças
de classe efetivas, de convicções políticas, sociais, artísticas e outras, além de
possibilidades profissionais e garantias materiais, foi posto em xeque, pas­
sando a se modificar em função das circunstâncias. Sérgio foi rápido para assi­
nalar, num grande artigo, que a promessa de modernização, tão importante
para o prestígio político dos arquitetos, mudava de horizonte ao separar-se,
ou ao ser separada, do combate pelo progresso social.2 A aura moderna da
profissão não ia desaparecer, mas perdia o voo e trocava o rumo. Na mão dos
mais fiéis, ou mais frustrados, o padrão estético moderno passava a funcionar
como uma objeção cheia de quinas, moralista e simbólica, além de impotente,
ao curso das coisas. O funcionalismo deixava de ser funcional, pois “o equilí­
brio dinâmico entre ser e dever-ser”, em palavras de Sérgio, se havia rompido.
Para outros, a parafernália moderna era sobretudo a justificação da autori­
dade social de quem sabe, ou seja, dos tecnocratas em que eles mesmos se
transformavam. Para outros, enfim, ela conferia o cachê do requinte a quem
pudesse pagar. Diante do que considerava o esvaziamento da sua profissão,
Sérgio concluiu que a luta não se podia confinar aos limites dela e acompa­
nhou a parte da esquerda que se empenhou na luta armada. A facilidade com
que esta foi derrotada, apesar da conseqüência pessoal dos que se engajaram,
é um dado importante para a reflexão.
Não há tempo nem eu teria os conhecimentos para recapitular a luta con­
tra a ditadura e para especificar as causas do recuo desta. O fato é que ao longo
da resistência, e do processo da abertura, um bom número de figuras destaca­
das da esquerda se qualificou socialmente para a liderança em vários planos,
inclusive o plano político. Assim, em pouco tempo e sem que o país no essen­
cial tivesse virado à esquerda, tivemos um presidente da República de boa for­
mação marxista, outro de boa formação sindical, para não falar de ministros,
senadores e deputados ex-comunistas e ex-guerrilheiros. Não custa lembrar

437 2 Sérgio Ferro, “Arquitetura nova”, pp. 47-58 desta coletânea.


também a origem esquerdista de um grande batalhão de professores titulares,
entre os quais eu mesmo. O fenômeno é notável e não foi suficientemente
discutido. Contudo, o grande sucesso social-político da geração da resistência
teve o seu preço. Conforme esta ocupava as novas posições, deixava cair as
convicções intelectuais anteriores — por realismo, por considerar que estavam
obsoletas, por achar que não se aplicavam no momento, por concluir que sem­
pre estiveram erradas, ou também por oportunismo. De modo que o êxito da
esquerda foi pessoal e geracional, mas não de suas idéias, das quais ela se foi
separando, configurando algo como um fracasso dentro do triunfo, ou melhor,
um triunfo dentro do fracasso. Talvez se pudesse dizer também que parte do
ideário de esquerda se mostrou surpreendentemente adequado às necessidades
do capital. O respeito marxista pela objetividade das leis econômicas não dei­
xava de ser uma boa escola. Seja como for, a tendência é tão numerosa, e aliás
espalhada pelo mundo, que uma crítica de tipo moral não alcança o problema.
Vou tocando pela rama estas vastas questões porque elas formam as coorde­
nadas para situar a originalidade do percurso do Sérgio, que tomou a direção
oposta. Diante da derrota, ele aprofundou a sua matriz intelectual marxista, o
que lhe permitiu inovar e chegar à linha de frente da atualidade, é claro que
noutro plano, sem abrir mão da crítica. Mas também ele pagou um preço.
Quando, a partir de 1964, o racionalismo arquitetônico mostrou ser com­
patível com as necessidades da ditadura e da modernização capitalista do país,
Sérgio resolveu examinar mais de perto as suas razões. Reatando com intui­
ções anteriores a 64, que não viam como idênticas a causa da habitação popu­
lar e a causa da industrialização, e portanto não acatavam o etapismo ritual dos
Partidos Comunistas, ele passou a estudar 0 canteiro de obras na sua realidade,
fazendo dele uma pedra de toque.3 A inspiração era claramente marxista: o
segredo e a verdade da sociedade moderna estão no processo produtivo e na
sua articulação de classe. Repetia o caminho expositivo de Marx, que estabe-
j

lecia a esfera da circulação de mercadorias como “o Eden dos Direitos Huma­


nos”, mas para ironizá-la e em seguida descer à esfera da esfola propriamente
dita, que é o processo produtivo, onde a fachada civilizada e igualitária sofre
um rude desmentido. E nesse espírito materialista e desmistificador que Sér­
gio fez da situação da força de trabalho na construção civil, ou da realidade
tosca e autoritária do canteiro de obras, os testes do racionalismo arquitetônico
e de suas pretensões. A discrepância é grande entre o discurso dos arquitetos,
claro, arejado, livre, enxuto, transparente, humanista, desalienador etc., e, do
outro lado, os fatos da exploração, do ambiente atrasado, segregado e insalubre

•158 3 Sérgio Ferro, “O canteiro e 0 desenho”, p. 105 desta coletânea.


no próprio canteiro. Encarada com o distanciamento devido, a diferença se
presta à comicidade brechtiana. Os resultados teóricos são de primeira linha,
muito inovadores e penetrantes — até onde vê um leigo —, próximos dos acha­
dos decisivos da crítica de 1968, que descobria e transformava em problema
histórico-mundial o conteúdo político da divisão técnica do trabalho.
Em versão heterodoxa, vinham à frente Marx, a análise de classe e do feti-
chismo da mercadoria, o estudo social e relevante da forma artística, além de
articulações muito sugestivas entre os aspectos bárbaros do processo produtivo
e funcionamentos e patologias descritas pela psicanálise. No ponto de fuga, o
questionamento das certezas acríticas quanto ao progresso, que animavam de
modo razoavelmente semelhante os marxistas, os nacionalistas e os liberais. O
alcance teórico e crítico dessas perspectivas, que estão apenas esboçadas, vai se
mostrar no futuro, à medida que forem retomadas e reatualizadas pelos estu­
dantes. O efeito imediato delas entretanto foi o encerramento da atividade de
arquiteto de Sérgio, que ficou sem campo prático de trabalho e se recolheu ao
ensino e à pintura. Foi o custo a pagar pela conseqüência, ou também o prê­
mio que ela lhe proporcionou.
Tomando recuo, digamos que há complementaridade entre os preços
pagos por uns e outros, e também entre os prêmios obtidos. Em contato com
as novas realidades do capital e diante da derrota das teses de esquerda no
mundo, uma parte grande dos portadores do movimento crítico gestado à
volta do 1964 brasileiro pôs de parte as questões e os termos, a experiência
histórica verdadeiramente rica em que se havia formado. Renunciava a
dinamizá-los e a reinventá-los em função do presente, no qual acabava se
inserindo nos termos do processo vencedor, que inesperadamente a qualifi­
cava para participar em posição saliente do curso normal da sociedade con­
temporânea. Mesmo quando os motivos foram razoáveis, a quebra existiu. No
campo bem mais restrito dos que insistiram na perspectiva crítica, a recusa
da ruptura não evitou por sua vez que esta reaparecesse noutro lugar, tam­
bém cobrando o preço da derrota. A visão negativa da atualidade tinha e tem
pertinência e algumas vantagens teóricas evidentes: os lados aberrantes da
sociedade contemporânea não desaparecem por não serem denominados teo­
ricamente, e não se explicam sem a crítica ao capital. Mas o nexo com formas
decisivas de prática deixou de estar à mão.
Para concluir, quero dizer que esta cerimônia, o interesse de grupinhos
da nova geração pelo trabalho do Sérgio, a constituição de campos sociais em
certa medida à margem do capitalismo, por força da dinâmica excludente
deste último, tudo isto são indicadores de que o esmiuçamento social das
realidades do capital deveria estar na ordem do dia. Pode estar fora de moda,
439 mas entra em matéria e revela o que não quer e nao vai calar.
SOBRE O AUTOR

Sérgio Ferro Pereira nasce em Curitiba, no dia 25 de julho de 1938. Em 1957,


ingressa na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São
Paulo, junto com Rodrigo Lefèvre, amigo com quem cursara 0 ginásio no
Colégio São Luís. Em 1959, entra no Partido Comunista Brasileiro e passa a
manter uma estreita relação com Vilanova Artigas. No mesmo ano, começa
a trabalhar em projetos de arquitetura com Rodrigo. Ainda na graduação,
realiza projetos para o seu tio Milton Pereira, de decoração para os jardins
do restaurante Fasano, lojas em São Paulo e edifícios comerciais em Brasília,
para a construtora de seu pai. Em 1961, finaliza a graduação e em 1962 torna-
se professor de história da arte e estética da FAUUSP, na condição de assistente
do professor Flávio Motta.
Entre 1961 e 1969 mantém um ateliê de arquitetura e pintura com
Rodrigo Lefèvre e Flávio Império, entre outros, inicialmente na rua Haddock
Lobo e posteriormente na rua Marquês de Paranaguá. Além de lecionarem
/

na FAU, os três arquitetos passam a dar aulas na Fundação Armando Alvares


Penteado e na Escola de Arte Dramática. Nestes anos, Sérgio projeta residên­
cias em parceria com Rodrigo Lefèvre (a casa Helladio Capisano, inspirada
em Artigas, casa Albertina Pederneiras e a casa Marietta Vampré, a primeira
a experimentar as possibilidades de racionalização e industrialização da cons­
trução e o uso de soluções inventivas com poucos recursos) e, individualmente,
em suas duas principais “casas-ensaio” (casa Boris Fausto e casa Bernardo Iss-
ler). Na primeira, faz uma grande estrutura de concreto em balanço e aposta
nos componentes industrializados, que acabam não funcionando correta­
mente. Na segunda, constrói pela primeira vez uma abóbada única abrigando
todo o programa de usos e utilizando materiais convencionais: tijolos e vigo-
tas. Esta obra virá a ser o protótipo experimental do grupo em torno do tema
da abóbada e da invenção com materiais simples, indicando o que poderia ser
uma alternativa para a habitação popular no Brasil.
Em 1963, também em parceria com Rodrigo Lefèvre, publica pelo GFAU o
texto “Proposta inicial para um debate: possibilidades de atuação”. O texto
lança as bases da Arquitetura Nova e sua “poética da economia”, inserindo a
reflexão sobre arquitetura dentro da problemática da “divisão entre trabalho
e capital”. No mesmo ano, realiza suas primeiras exposições individuais de
pintura, na Galeria São Luís e na Galeria do Teatro de Arena.
Em 1964, com o golpe militar, é um dos indiciados no processo da FAU. A
441 paxtix de 1965, como professor da pós-graduação na mesma faculdade, apre-
senta em aula os temas que serão a base para seu texto sobre a “Produção da
casa no Brasil” (publicado em 1972 pelo GFAU com o título “A casa popular”),
primeiro esboço de O canteiro e o desenho. Ainda em 1965, participa da elabo­
ração e expõe na mostra coletiva Propostas 65, na FAAP, e Opinião 65, no mam
do Rio. Discute em texto e nas telas como é possível fazer uma pintura con-
testadora da situação política presente. Sérgio continua com novas exposições
até 1968, quando o regime endurece.
A partir de 1964, Sérgio participa também do grupo da revista Teoria e
Prática, da qual fora o diretor, e do segundo seminário de leituras de O capi­
tal, junto com professores e estudantes da Faculdade de Filosofia da usp, na
rua Maria Antonia. Em 1967, publica dois textos polêmicos, um contra os
pintores (“Os limites da denúncia”) e outro contra os arquitetos (“Arquite­
tura Nova”), procurando avaliar as conseqüências do golpe para a ação destes
profissionais. Neste mesmo ano, sai do PCB junto com Marighella e entra no
grupo de guerrilha urbana ALN (Ação Libertadora Nacional).
Realiza seus últimos projetos de arquitetura com Flávio Império e
Rodrigo Lefèvre: uma série de quatro grupos escolares e dois ginásios
estaduais em Piracicaba e São José do Rio Preto. Participa dos Fóruns de
Ensino da FAU de 1968 e 1969 defendendo uma ação política veemente e
a crítica à atividade profissional, tal como se configurava. Publica o texto
“Enquanto os homens corajosos morrem”, na revista aParte n.i. Adere a
outro grupo de luta armada, a VPR (Val-Palmares).
Neste período conturbado, participa da renovação do ensino na FAU-Santos
junto com Rodrigo Lefèvre, Francisco de Oliveira, Mayumi e Sérgio Souza
Lima, entre outros. A iniciativa dura apenas meio ano. Em dezembro de 1970,
é encarcerado pelo regime militar e permanece um ano no presídio Tiraden-
tes. Neste período, recebe da família material de desenho e pintura e monta
um ateliê com mais dez presos. Enquanto está detido e impossibilitado de dar
aulas, Sérgio é demitido da FAUUSP por “abandono de cargo”.
Saindo da prisão, decide deixar o país e seguir para a França com a famí­
lia. Em 1972, torna-se professor da Escola de Arquitetura de Grenoble. Além
do ensino, dedica-se intensamente à pintura, realizando diversas exposições
no Brasil e França. Estuda os pintores do Renascimento, Maneirismo e Neo­
classicismo, em especial Michelangelo, que passa a ser sua principal referên­
cia artística. Procura em suas telas exibir as etapas da fatura, levando para a
pintura alguns procedimentos do canteiro.
Em 1 Q75_termma a redação de sua orincisai o br a_ct íttcâ- ^jv
desenho. O texto é publicado no Brasil no ano seguinte, pela revista Almana­
que — Cadernos de Literatura e Ensaio. A versão em livro, pela editora Projeto,
442 sai em 1979.
Em 1982, é nomeado Diretor Científico do Laboratório Dessin/Chanlier
na Escola de Arquitetura de Grenoble, com o objetivo de estabelecer uma
nova perspectivia de pesquisa em história da arquitetura, dando relevo ao
canteiro e à compreesào das relações de produção. Com a necessidade de
interpretar obras arquitetônicas antigas que não possuíam mais registros da
construção, procura formar critérios de leitura que revelassem o trabalho ali
cristalizado. Para isso começa a interessar-se por semiologia e Charles Peirce,
que lhe fornece um instrumental teórico para a descrição precisa de obras de
arquitetura. O primeiro trabalho de pesquisa coletivo do Laboratório, sobre o
convento de La Tourette, de Le Corbusier, é publicado em livro em 1988.
Em 1992, ganha o título “Chevalier des Arts et des Lettres” pelo Minis­
tério da Cultura da França. Em 1995 muda-se para Grignan. Lá constrói seu
novo ateliê com a colaboração ativa dos pedreiros, procurando experimentar
como seria um canteiro livre. Entre 1994 e 1995, participa da criação de um
“Pólo de ensino, pesquisa e experimentação da construção” em Isle d’Abeau,
reunindo diversas escolas de Arquitetura, Belas-Artes e Engenharia. O
governo francês, entretanto, altera a proposição original de Sérgio, que aban­
dona o projeto.
Em 1998, publica livro sobre Michelangelo e a Capela Medieis. Em 1999
conclui sua pesquisa entitulada “La Trace” (O rastro), uma crítica à pintura
em termos semelhantes à que realiza para a arquitetura. Em 2000 inicia a
revisão de O canteiro e o desenho, com o objetivo de republicá-lo em versão
comentada, encerrando suas atividades acadêmicas. No mesmo ano, realiza
pinturas para o MST, que compõem o Calendário e a Agenda do movimento
para o ano 2001 e estão expostas na Escola Nacional Florestan Fernandes, em
Guararema-SP.
Entre 2002 e 2005 participa no Brasil de diversos debates sobre arquite­
tura. Em abril de 2005 recebe da Câmara Municipal a Medalha Anchieta e
o Diploma de Gratidão da Cidade de Sao Paulo. Neste mesmo ano lança a re­
edição do seu livro O canteiro e o desenho e sua tradução para o francês, com o
título Dessin/Chantier.

443
BIBLIOGRAFIA SELECIONADA

DO AUTOR (em ordem cronológica)

“Proposta inicial para um debate: possibilidades de atuação” (1963). Em co-auto­


ria com Rodrigo LefèvTe. GFAU, 1963.
Matéria dedicada ao trabalho de Sérgio Ferro, Rodrigo Lefèvre e Flávio Império,
com textos dos três arquitetos. Revista Acrópole, n.3ig, 1965, p. 23-44. [Publi­
cada nesta coletânea com o título “Arquitetura experimental”.]
“Vale tudo” (Propostas 65) (1965), em Arte em Revista n.2, São Paulo: CEAC/Kai-
rós, 1989.
“Os limites da denúncia” (1967) jornal Rex Time n.4, São Paulo, 1967. Reprod.
em Arte em Revista n.i, São Paulo: CEAC/Kairós, 1979.
“Arquitetura nova” (1967) em Teoria e Prática n.i, São Paulo: 1967 pp. 3-15. Foi
reeditado posteriormente pelas revistas Arte em Revista, n.4,1980 e Espaço e
Debate, n. 40, 1997, pp. 114-121 nesta, com nota de apresentação de sua autoria.
“A casa popular” (1969). São Paulo, GFAU, 1972. [Publicada nesta coletânea com o
título “A produção da casa no Brasil”]
“Enquanto os homens corajosos morrem” (1969), revista aParte n.i, 1969.
“Reflexões para uma política na arquitetura” (1972) em Arte em Revista n.4, São
Paulo: CEAC/Kairós, 1980.
O canteiro e o desenho (1976). São Paulo: Projeto Editores Associados, 1979. Re­
edição em 2005, com apresentação de Paulo Bicca.
Michelângelo, notas por Sérgio Ferro (1981). São Paulo: Ed. Palavra e Imagem,
19®1*

“O ensino do desenho” (1986) em Arquitetura e Urbanismo, n.5, abril de 1986,


pp. 72-73.
Le Corbusier: le Convent de la Tourette (1987). Em co-autoria com Chérif Kebbal,
Philippe Poitié e Cyrille Simonnet. Marseille: Éditions Parenthèses, 1987.
LTdée construtive en architecture (1987). Em co-autoria com Philippe Poitie,
Bruno Queysanne e Cyrille Simonnet. Paris: Picard, 1987.
“O concreto como arma” (1988) em Projeto, n.111, junho 1988.
Sérgio Ferro (1990). Em co-autoria com Cyrille Simonnet. Barbizon: L/Entrée des
artistes, prefácio de Gilles Lipovetky, 1990.
“Lês vertus de 1’infortune” em Le Corbusier et la couleur{ 1992). Paris: Fundação
Le Corbusier, pp.89-96, 1992.
“Le traces de la conception" (1993) em Les Cahier de La Recherche Architectu­
ral, n. 34,1993.
444 Nota sem título em santos, Maria Cecília Loschiavo (org.), Maria Antônio, uma
rua na contramão (1988). São Paulo, Nobel, 1988, pp.272-275. [Publicada
nesta coletânea com o título “fau, uma travessa da Maria Antonia”]
Futuro-Anterior (1989), catálogo da exposição realizada no masp. São Paulo,
Nobel, 1989.
“Flávio arquiteto” (1995) em Flávio Império em cena. São Paulo: Sesc, 1997.
“Le Corbusier, le peintre derrière l’architecte” (1997), Journal dyHistorie de
l:Architecture, n.i, ano 1997, [Publicado nesta coletânea com o título “0
‘material’ em Le Corbusier”]
“Auto-retrato a chicotadas” (1997) e “Desenhos” em freire, Alípio, aemada, Iza-
ías e PONCE, J.A. (orgs.). TiraAentes, um presídio da ditadura: memórias de pre­
sos políticos. São Paulo: Scipione.
Jeudide la passion (1997). Barbizon: L'Entré des artistes, 1997.
Michel-Ange: architecte et sculpteur de la Chapelle Medieis (1998). Grenoble:
Plan fixe edition, 1998.
“La Trace” (1999), Rapport de recherche, École d'Architecture de Grenoble,
*999-
“Uma nota” (2002) em Arquitetura e Urbanismo, n.104, outubro de 2002, pp. 54-
56. [Publicado nesta coletânea com o título “O fetichismo na arquitetura”]
Dessin/Chantier (2005). Grenoble: Editions de La Villette, prefácio de Vincent
Michel, [ed. francesa de O canteiro e o desenho]

ENTREVISTAS E DEPOIMENTOS

“A geração ruptura”, Entrevista a José Wolf e Rubens de Almeida, publicada ori­


ginalmente em Arquitetura e Urbanismo, n.3, nov. de 1985, p. 56-57.
“Reflexões sobre o brutalismo caboclo”, entrevista a Marlene Acayaba em Projeto
n.86, abr. 1986, pp. 68-70.
Sérgio Ferro, o pintor que viveu os anos de chumbo”, entrevista a Carlos Castelo
Branco, em Caros Amigos, n.4g, abr. de 2001, pp. 44-45.
Conversa com Sérgio Ferro”, 2002, publicação organizada por Tatiana Morita
Nobre, Ariane Stolfi e Daniela Gomes Rezende e republicada na revista PÔS,
n.12. fàuusp, 2002.
Depoimento a Geraldo Motta Filho, G. Wisnik e P. Arantes, em wisnik, Gui­
lherme (org.) O Risco: Lucio Costa e a utopia moderna. Rio de Janeiro, Bang
Bang Filmes, 2003. [Publicada nesta coletânea com o título “Brasília, Lucio
Costa e Oscar Niemeyer”]
Podería ser a maior das artes”, entrevista a Simone Sayegh em Arquitetura e
Urbanismo, n.123, pp. 70-74, jun. de 2004.
Entrevista a Haifa Sabbag e José Wolf em Arquitetura e Urbanismo, n.27, 1989,
445
pp. 46-49.
SOBRE O AUTOR

ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura nova: Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo
Lefèvre — de Artigas ao mutirões. São Paulo: Editora 34, 2002 (2aed, 2004).
____ . “O retorno de Sérgio Ferro”, em. Arquitetura e Urbanismo, n.118, pp. 55-57,
out. 2003.
____ . “Reinventing the Building Site” em andreoly, Elisabetta e forty, Adrian
(editors). BraziVs Modern Architecture. Londres: Phaidon, 2004. Edição em
português distribuída pela Martins Fontes.
____ . “O crítico e os arquitetos” em cevasco, Maria Elisa e ohata, Milton (orgs.),
Um crítico na periferia do capitalismo — a obra de Roberto Schwarz. São Paulo:
Cia. das Letras, no prelo.
BICCA, Paulo. O arquiteto, a máscara e aface. São Paulo: Projeto, 1984.
____ . “Apresentação”, em Sergio Ferro, O canteiro e 0 desenho. São Paulo: Projeto,
2005.
BRUAND, Yves. “Os discípulos de Vilanova Artigas” em Arquitetura Contemporâ­
nea no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1991 (2a. ed), pp. 505-319.
KOURY, Ana Paula. Grupo Arquitetura Nova. São Paulo: Romeno-Guerra /Edusp,
2003.
____ . “Documento: Arquitetura Nova” em Arquitetura e Urbanismo, n.89, pp. 68-
72, abr. 2000.
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era
da TV. Rio de Janeiro: Record, 2000.
rocha, Angela Maria. “No horizonte do possível”, em Arquitetura e Urbanismo,

n.18, 1988.
SEGAWA, Hugo. “A afirmação de uma hegemonia / A diluição do modelo e a crí­
tica” em Arquiteturas no Brasil ijoo-iyyo. São Paulo: Edusp, 1998, pp. 153-157.
SCHWARZ, Roberto. “Posfácio” em ARANTES, Pedro. Arquitetura nova... op.cit.,
2002.
_. “Cultura e política 1964-1969”, em O pai defamília. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1978.
_. “O progresso antigamente”, em Que horas são? São Paulo: Cia. das Leiras,
ÍNDICE REMISSIVO

Aalto, Alvar, 157 Bauschinger, Julius, 164


Abramovitz, Max, 336 Benjamin, Walter, 129, 240, 269, 303,
Acayaba, Marlene Milan, 255 34b 349n> 365> 4»7
Adorno, iheoclore, 79, 149, i’6g, 175, Bense, Max, 108
236'37’ 239, 241, 281, 286, 295, 297, Bernini, Gian Lorenzo, 154, 200, 336
^64,, 36 o,,, 4.11-12. GWltís, Vbo
Alberti, Leon Battista, 195, 215, 334, Beuys, Joseph, 416
336’352’355’388 Biard, Nicolas de, 331
Aleijadinho, Antônio Francisco Lisboa, Bicca, Paulo, 105
dito, 242 Bitencourt, Mário, 80, 260
Amaral, Amónia Uaarj/qjia, 2,94 RJücgíl, AiiLirurxj', -19-3
Andrade, Mário de, 311 BNH, 62, 66, 78, 87-88, 101, 140, 259
Andrade, Oswald, 311 Boffil, Ricardo, 336
Apollinaire, Gillaume, 24511 Roito, Armando, 300
Arantes, Otília Beatriz Fiori, 303 Boltanski, Jean-Luc, 401
Avutt&s, Eí&jazida, 377,4YL XLjíííí,, '343

Arantes, Pedro Fiori, 274, 305 Botero, Fernando, 296


Ache, Jean-Baptiste, 249n Botta, Mario, 369
Archigram, grupo, 176, 384 Boudon, Phillippe, 171-73
Aristóteles, 329 Bramante, Donato, 200, 334, 336
Aristoxenes, 173 Brancusi, Constantin, 373
Arnheim, Rudolf, 175, 370 Brandão Lopes, Juarez, 263, 270-71, 275
Arrivé, M., 346 Braque, Georges, 245
Artigas, João Batista Vilanova, 48, 80, Brecht, Bertold, 282, 365, 369
255-56, 258-68, 273, 275-78, 283, Breuer, Marcel, 136, 259, 399, 421
326, 344, 421 Brion-Guerry, Lilianne, 111
Bruna, Paulo, 86
Bach, Johann Sebastian, 172 Brunelleschi, Filippo, 193,195, 282,
Bachelard, Gaston, 234, 237 289» 334“35> 349’ 355’ 38°
Banham, Reyner, 167, 257, 301, 369, Buarque de Holanda, Francisco, 294

374
Bardi, Lina Bo, 271, 431 Camilo, Giuglio, 356
Barone, Júlio, 270 Capisano, Helladio, 42
Barret, P. R, 164 Caravaggio, Michelangelo Merisi, dito.
Barthes, Roland, 129,163, 240 296, 371
Baudot, Antoine de, 165 Cassirer, Ernst, 159
Castiglione, Baldassare, 388-89 Fabriano, Gentile da, 183
Castro, Josué, 86n Farish, William, 152
Cézanne, Paul, 137,155,162,189, 200, Fauran, Jacques de, 331
245 Faure, Elie, 166
Changeux, Jean-Pierre, 223 Fausto, Boris, 43, 269, 275-76, 324
/

Chiapello, Eve, 401 Fausto, Ruy, 281


Christophe, Paul, 164 Fausto, Simão, 267
Coignet, François, 164 Ficino, Marcelo, 194, 250, 393
Colbert, Jean-Baptiste, 153-54 Fleury, Sérgio Paranhos, 278
Coppola, Francis Ford, 347 Ford, Henry, 136, 369
Cordemoy, abade, 336 Forte, Miguel, 261-63
Correggio, Antonio Allegri, 200 Foster, Norman, 231, 424
Costa, Lucio, 94, 215-19, 221, 305-308, Foucault, Michel, 160,187, 267, 344, 366
òu-^ 317'l8> 322 Fourier, Charles, 421
Courbert, Gustave, 155,178 Francastel, Pierre, 183, 193
Cuvilliés, François de, 154 Frank, André Gunder, 206, 281
Freay 336
D’Arezzo, Guy, 172 Freud, Sigmund, 138,145, 150, 302,
D’Ensingen, Ulrich, 331 345.377-78,408
D’Orbay, François, 154 Freyssinet, Eugene, 163-64
Da Vinci, Leonardo, 389 Friedman, Yona, 398
Damish, Hubert, 357
Deforge, Yves, 152 Garnier, Tony, 136,164, 421
Degas, Edgar, 429 Gaudí, Antoni, 157,165,196, 318, 342,
Delaunay, Robert, 155 344
Deleule, Didier, 385 Gehry, Frank, 302, 398, 423
Della Gondola, Andrea di Pietro, 356 Genette, Gérard, 240
Derrida, Jacques, 240, 302, 342, 365 Ghiberti, Lorenzo, 193
Désargues, Girard, 152-53 Giorgioni, Giorgio Zorzi, dito, 392
Di Cavalcanti, Emiliano, 311 Gorz, André., 110,119, 268, 277
Didi-Huberman, 240 Goya, Francisco, 311
Drake, 164 Gramsci, António, 194
Duchamp, Marcel, 389 Greimas, A. X, 220, 371
Dupont, Gilles, 214 Gropius, Walter, 136, 176, 421
Durand, Gilbert, 160, 186-87, 237 Grünewald, Mathias, 178
Dürer, Albrecht, 356 Guedes, Joaquim, 259
Güell Bacigalupi, Don Eusebio, 157,165
Eco, Umberto, 57, 240 Guéry, François, 385
Eisenman, Peter, 302 Guimarães, Ulisses, 306
448 Engels, Friedrich, 88n, 141, 279, 400 Hachette, Jean Pierre, 158
Hadid, Zaha, 383, 423 Kropotkin, Peter, 430
Hamburger, Amélia Império, 269, 271 Kubitschek de Oliveira, Juscelino, 306-
Hamburger, Wolf, 269, 270 308
Hardouni, Mohammed, 214 Kupfer, Luiz, 44
Heck, Carlos, 214
Hegel, Georg Wilhelm Friedrich, 116, LEplatténier, Charles, 244
223, 237, 239, 24411, 273, 284, 287, L’Orme, Philibert de, 344
296’ 301> 3o6> 312> 515-16, 365> 377? Lacan, Jacques, 240, 350, 369, 378,
384-87, 392, 394-95, 4°4> 4o6? 411* 408, 410
16, 421 Lamarca, Carlos, 279, 294
Heidegger, Martin, 240, 303, 341, 365, Lambot, Joseph Louis, 164
375 Laugier, Marc-Antoine, 336
Hennebique, François, 164 Le Baron Jenney, William, 155
Herzog, Jacques, 423 Le Bas, Jacques Phillipe, 153
Hollanda, Francisco de, 389 Le Corbusier, Charles-Edouard
Honnercourt, Villard de, 167 Jeanneret, dito, 48, 80, 128, 135,
Horkheimer, Max, 183 157,166,176,196,214-21,241-51,
255,257,259,264,267,289,351,
Império, Flávio, 37-38, 265-66, 268-71, 368,370-74,406,421-23
274-75> 278, 280, 290, 297-98, 321, Le Goff, Jacques, 324, 333
323, 382, 299 Ledoux, Claude-Nicolas, 48, 137
Issler, Bernardo, 44, 270, 275-76, 324-25 Lefebvre, Henri, 277
Lefèvre, Rodrigo, 33, 40-42, 37, 39,
Jackobson, Roman, 366 265-66, 270-71, 273-74, 279, 29°>
Jeanneret, Pierre, 135, 216-17, 249, 351 297-98. 3°5> 3H> 321-23, 327, 382-
Jimenez, Marc, 175 83, 400
Jones, Inigo, 343 Leger, Fernand, 133
Joyce, James, 345, 347 Lelé, João da Gama Filgueiras Lima,
dito, 269, 431
Kahn, Louis, 176, 399, 406 Lemos, Carlos, 61-62, 65
Kant, Emmanuel, 301, 317, 326, 344, Lenin, Vladimir Illych, 420
366-67, 369, 373, 385, 391-95, 404- Leroi-Gourhan, A., 109, 146, 223
406, 413,416 Levi, Rino, 215, 261-63
Kebbal, Chérif, 214 Lévi-Strauss, Claude, 109, 232, 350,
Khun, Thomas, 368 363.397-98
Klee, Paul, 246 Lhote, André, 155. 218
Klein, Robert, 193 Libeskind, Daniel, 302. 423
Koenen, M., 164 Liebknecht, Karl, 110
Krauss, Rosalind, 240 Liebniz, Gottfried, 116
449 Kristeva, Julia, 240 Lima, Mayumi Souza, 269
Lipchitz, Jacques, 180 Motta, Flávio, 283, 291
Lomazzo, Giovan Paolo, 356 Moureau, Nathalie, 293
Loos, Adolf, 173, 364 MST, 22, 379, 400, 443
Luxembourg, Rosa, 110 Mucchielli, R., 182
Mulberguer, A., 88n
Mahler, Gustav, 295
Maignien, Yannick, 268 Napoleão III, 176
Maillart., Robert, 163-65 Navier, Claude Louis Marie Henri, 163
Maliêvitch, Casimir, 293 Nervi, Pier Luigi, 165
Mallarmé, Stéphane, 429 Neutra, Richard, 136
/
Manet, Edouard, 311, 345 Neves, Tancredo, 306
Manetti, Antonio, 194 Niemeyer, Oscar, 48, 94,133,137, 165,
Mannoni, O., 168 176, 196, 215, 258-60, 275, 305-308,
Mao Tsé-Tung , 298 310, 312, 315-16, 318, 322, 336, 384,
Marcelo II, papa, 197 42t, 430
Marcuse, Herbert, 268 Nouvel, Jean, 302
Marighella, Carlos, 265, 279, 294
Marin, Louis, 240 Oliveira, Francisco de, 268
Marx, Karl, 106, 115, 119,127,171,180, Olivier, E., 123
186, 198, 239, 276, 280-82, 284, 286, Ozenfant, Amédée, 245, 248
299. 5°2> 3l6> 323. 328‘29> 377. 379-
80, 386, 388, 4H-I2, 416, 426 Palladio, Andrea, 173, 200, 215, 336,
Melan, Josef, 164 343. 347. 349-5°. 352> 355-56
Mendes da Rocha, Paulo, 263, 300 Panofsky Erwin, 193, 335, 345
Meyer, Hannes, 422 Parler, Peter, 331
Michelangelo Buonarroti, 162, 197, Pastrand, G, 120, 125
199-200,242,295,336,342,344, Pederneiras, Albertina, 41
349-5°. 354. 358-62. 389. 398 Peirce, Charles Sanders, 238-39, 244^
Millan, Carlos, 262 245, 286, 347, 350, 366-67, 372, 406,
Mitterand, François, 293 4X3> 4*3
Mogensen, A.H., 125 Perdiguier, Agricol, 153
Moles, Abrahm, 108 Pereira, Luiz, 9 on
Mondrian, Piet, 137, 243, 311, 371 Perrault, Claude, 336, 349
Monge, Gaspard, 152-53, 158 Perret, Auguste, 164, 336
Monicr, Joseph, 164 Perret, Gustave, 164, 336
Montreil, Pierre de, 331 Petain, Philippe, 422
Moretti, E, 338 Petrarca, Francesco, 112
Morris, William, 244, 268, 271, 284-85, Pevsner, Nicolaus, 193, 311
293. 384"85. 412> 4l6 Philonenko, A., 392
4*0 Motta Filho, Geraldo, 305 Piaget, Jean, 159, 169, 177, 190
^-rarío^emo, 231, 424, 42S ^aairnem, YAieV, 13b
Picasso, Pablo, 245, 293, 311, 347, 392 Sader, Emir, 281
Pignon, D., 125, 268 Saint Laurent, Yves, 275
Pini, 7711 Sami-Ali, Mahamoude, 191
Pirenne, Henri, 333 Sampaio,, Maria, Ruth,
Pitágoras, 173 Sangallo, Antonio da, 154
Platão, 327, 354 Sansovino, Jacopo, 200, 359, 399
Poe, Edgai Allan, 143, 169, 345 Sant’Elia, 384
Pollock, Jackson, 243 Santos, Maria Cecilia Loschiavo dos,
Pompidou, Georges, 297 265
Poncelet, Jean-Victor, 152 Sartre, Jean-Paul, 278, 346
Pontalis, Jean Bertrand, 164 Saussure, Ferdinand, d&, , 3Ç/S
r-opper, TLar’l, 232, 235, 427 Scamozzi, Vincenzo, 336
Potie, Philippe, 214 Schenberg, Mário, 295
Potzampaxc, Ckxu&iaa 39b Schwarz, Roberto, 273, 281, 339
Poussin, Nicolas, 392 Scobeltzine, André, 194
Prouvé, Jean, 223 Setlio,33b, 352-54, 359
Serra, Richard, 294
Quemin, Alain, 303 Simonnet, Cyrille, 214
Querzola, J., 125 Smith, Adam, 154
Smithson, Alison, 257
Rabut, Charles, 164 Smithson, Peter, 257
Rafael, 200, 311 Soufflot, Jacques-Germain, 349
Recht, Roland, 332 Stendhal, Henri Beyle, 152
Reidy, Affonso Eduardo, 136 Sullivan, Louis, 398
Rembrandt, Hermans van Rijn, 346,
366, 409 Tafuri, Manfredo, 193, 334
Renaudi, Jean, 289 Tall, Joseph, 164
Rimbaud, Arthur, 327, 410 Tange, Kenzo, 176
Ritier, 164 Tátlin, Vladimir, 133,196
Rochlitz, Rainer, 293 Taut, Bruno, 138
Rodin, Auguste, 373 Taylor, Frederick, 143
Romano, Giuglio, 352 Tedeschi, Ugo, 259
Rosand, 240 Tesauro, 362
Rosenfield, K. H., 329 Thuille, 164
Rossellino, Bernardo, 194 Ticiano, 345, 354
Rotchild, 75 Tintoreto, Jacopo Robusti, dito, 349, 409
Rubel, Maximilien, g6n Torroja, Eduardo, 165
Rubens, 370 Touchard, Dominique, 214
451 Ruskin, John, 284 Trissino, Giovan Giorgio, 356
Vampré, Marieta, 40 Weber, Max, 108
Van der Rohe, Mies, 110, 176, 399, 406, Welde, van der, 364
424 Werckmeister, Andreas, 172
Vargas, Getúlio Dornelles, 308 Wisnik, Guilherme, 305
Varinfroy, Gautier de, 331 Wõlfflin, Henrich, 359
Vasari, Giorgio, 193-94, 241, 282, 334, Wolgensky, André, 216, 217, 248
399 Wright, Frank Lloyd, 155,165, 255,
Veblen, Thorstein, 70, 353 267, 382, 399, 421
Diego, 345
Venturi, Robert, 302 Yavelberg, Iara, 279, 294
Verdillon, Claude, 214
Viator, Jean Pélerin, 111 Xenakis, Iannis, 216-17, 248-49, 373
Vignola, Giacomo Barozzi, 336, 344
Villa Lobos, Heitor, 311 Zanine Caldas, José, 428
Zarlino, Gioseffo, 173
Wagner, Richard, 241 Zevi, Bruno, 134,193
Ward, William, 164 Zurbaran, Francisco de, 346

452
Agradecemos a Vicente Wissenbach pela
gentil disponibilização de O canteiro e o
desenhopwa publicação nesta coletânea.

As citações de autores estrangeiros,


quando possível, foram atualizadas para as
edições brasileiras.

Foram traduzidos do francês os seguintes


textos: Desenho e canteiro na concep­
ção do convento de LaTourette [1988];
Programa para pólo de ensino, pesqyjsa
e experimentação da construção [19941;
Questões de método 11996]; O "mate-
ÇiaT WTi Le Corbusier [1997]; Sobre "O
canteiro e o desenho" [2003].

CRÉDITO DAS ILUSTRAÇÕES

Mareei Gautherot/Acervo Instituto Moreira Salles, capa e p.253

Acervo Centro Maria Antonia, p.45


Elaine Ramos, p. 103
João Urban, p. 59
José Moscardi, pp. 31,40, 41,42, 43
Luiz Kupfer, p. 44
Mariana Fix, p. 232
© René Burri/Magnum Photos, p.201
Sérgio Ferro, pp. 246, 368, 399, 400
William Morris, pp.2-3, 432-33
© Cosac Naify, 2006

Capa Marcel Gautherot, Obras Gerais, BrasiHa-DF.


c.1958-60. Acervo Instituto Moreira Salles.

^ COLEÇÃO FACE NORTE

Coordenação editorial Cristina Fino


Projeto gráfico Elaine Ramos
Composição Jussara Fino
Tradução do francês Iraci D. Poleti
Revisão Cristina Fino e Pedro Fiori Arantes
A tualização bibliográfica I n á Ca m a rgo Co sta
índice remissivo Maria Cláudia Mattos

í Dados Internacionais de Catalogação


------------------------------------'Ã
na Publicação (CIP)
[Câmara Brasileira do Livro, SR Brasil]

Ferro, Sérgio (1938-)


Arquitetura e trabalho livre / Sérgio Ferro
Apresentação: Pedro Fiori Arantes Posfácio: Roberto Schwarz
São Paulo: Cosac Naify, 2006
456 p., 29 ilustr.

Bibliografia.
ISBN 85-7503-420-0

1. Arquitetura 2, Arquitetura -Teoria 3. Canteiro de obras 4. Capitalismo


5. Ferro, Sérgio, 1938 - Critica e interpretação 6. Relações de trabalho I.
Arantes, Pedro. II. Schwarz. Roberto. III.Título.

05-8948 CDD-720.1

índices para catálogo sistemático: 1. Arquitetura: Teoria 720.1


2. Arquitetura: Crítica 720.1 3. Teoria arquitetônica 720.1

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David Underwood

Aprendendo com Las Vegas


Robert Venturi, Denise Scott Brown e Steven Izenour

Depoimento de uma geração


Alberto Xavier (org.)

Modernidade e tradição clássica - ensaios sobre arquitetura (1980-1987)


A/an Co/quhoun

Precisões sobre um estado presente da arquitetura e do urbanismo


Le Corbusier

Lucio Costa - Um modo de ser moderno


Ana Luiza Nobre, João Masao Kamita, Otávio Leonídio, Roberto Conduru (orgs.)

Caminhos da arquitetura
João Batista Viianova Artigas

tipologia Walbaum c Univers papel Paperfeci go g/m2

impressão Geográfica tiragem 3.000


Este livro reúne, pela primeira vez, quase toda a produção
crítica do arquiteto, pintor e professor Sérgio Ferro - das
primeiras propostas e interpretações dos anos 1960 e 70,
incluindo o conhecido "O canteiro e o desenho", a entre­
vistas e ensaios atuais, redigidos na França e no Brasil,
diversos deles inéditos. Neste conjunto de intervenções,
Sérgio Ferro extrai da crítica radical os princípios para
uma nova prática da arquitetura, fundada na idéia de
trabalho livre.

"E o que é trabalho livre? Nada a ver com arbitrariedade,


improvisação ou preguiça. O trabalho é livre quando rea­
liza o melhor possível em dada situação, o melhor do
ofício, o melhor objetivamente inscrito no material, o
melhor projeto social. A liberdade, ensina Hegel, não se
opõe à necessidade: ambas consistem em ter todas as
razões para serem o que são em si mesmas. A verdadeira
autonomia é intrinsecamente racional."

posfácio Roberto Schwarz


organização e apresentação Pedro Fiori Arantes

9788575034200

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