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ISSN – 1807 - 2674

REVISTA

31
de ECONOMIA POLÍTICA
e HISTÓRIA ECONÔMICA
Ano 09 – Número 31 – Janeiro de 2014

Índice

05
A Unificação Monetária Europeia – a Formação da Área do Euro de
1990 a 2002
Maria de Fátima Silva do Carmo Previdelli
43
Uma Interpretação da Revolução Burguesa no Brasil na Visão de
Florestan Fernandes
Glinzer Santa Cruz da Silva Costa
63
Desregulamentação, Desindustrialização e Reconcentração de Renda
na Crise dos EUA
Robério Paulino
89
Apontamentos para uma História Econômica da Cidade de Diamantina
Alessandro Borsagli
Fernanda Guerra Lima Medeiros Borsagli
107
A Soberania Econômica Nacional e a Economia Institucional Europeia
Gustavo Granado
146
Abordagem Acerca do Aporte Listiano para a Formação do
Pensamento de Raúl Prebisch
Otávio Erbereli Junior
183
As Minas de Mato Grosso: Apogeu, Crise e Declínio da Mineração
Romyr Conde Garcia
199
Economia Política e Política Econômica no Brasil Recente: O
Neodesenvolvimentismo “Restringido” do Governo do Presidente Luiz
Inácio Lula da Silva
Glaudionor Gomes Barbosa
Ana Paula Sobreira Bezerra
230
Resenhas:

LUSTOSA, C e ROSÁRIO, F. (orgs.) Desenvolvimento Local em Regiões Periféricas:


a política dos arranjos produtivos em Alagoas.

SINHA, Ajit. Theories of Value from Adam Smith to Piero Sraffa.


http://rephe01.googlepages.com
2 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31, Agosto de 2013.

Expediente
REVISTA DE ECONOMIA POLÍTICA E HISTÓRIA ECONÔMICA
Número 31, Ano 09, Janeiro de 2014.
Uma publicação semestral do GEEPHE – Grupo de Estudos de Economia Política e História
Econômica.
http://rephe01.googlepages.com
e-mail: rephe01@hotmail.com

Conselho Editorial:

Fernando Almeida
Glaudionor Barbosa
Haruf Salmen Espíndola
Jean Luiz Neves Abreu
Júlio Gomes da Silva Neto
Lincoln Secco
Luiz Eduardo Simões de Souza
Marcos Cordeiro Pires
Marina Gusmão de Mendonça,
Osvaldo Luis Angel Coggiola,
Paulo Queiroz Marques,
Pedro Cezar Dutra Fonseca,
Romyr Conde Garcia,
Rubens Toledo Arakaki,
Vera Lucia do Amaral Ferlini,
Wilson do Nascimento Barbosa
Wilson Gomes de Almeida.

Edição:
Maria de Fátima Silva do Carmo Previdelli

Autor Corporativo:
GEEPHE – Grupo de Estudos em Economia Política e História Econômica.

A REPHE – Revista de Economia Política e História Econômica – constitui mais um periódico acadêmico
que visa promover a exposição, o debate e a circulação de ideias referentes às áreas de história
econômica e economia política. A periodicidade da REPHE é semestral.
3 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Editorial

Um olhar para a procedência dos pesquisadores que


compõem a REPHE mostra a abrangência e pluralidade da
proposta do periódico. Todas as regiões do país estão
comportadas, do Sul ao Norte, do Nordeste ao Centro-Oeste e
Sudeste. Isso mostra a aderência da proposta da REPHE com a
política de livre debate e trânsito de ideias que a gerou em
2005.

A REPHE 31 inicia com um artigo de Fátima Previdelli


sobre a formação da Zona do Euro nos anos 1990. Glinzer
Santa Cruz remonta a Florestan Fernandes, Robério Paulino
aponta elementos de reconcentração de renda na crise
econômica recente dos EUA, Alessandro e Fernanda Borsagli
abordam alguns elementos para a história econômica de
Diamantina (MG). Gustavo Granado envereda-se por
aspectos teóricos do institucionalismo de Douglass North,
enquanto Otávio Erbeli Junior busca as raízes alemãs do
pensamento econômico do patrono da CEPAL, Raúl Prebisch.
Romyr Conde Garcia aborda a economia mineradora de
Mato Grosso durante a escravidão e Glaudionor Barbosa e
Ana Paula Sobreira fazem um balanço econômico dos oito
anos de Governo Lula.

Na seção de resenhas, temos as contribuições de Tiago


Camarinha Lopes e Rafael Aubert de Araujo Barros.

Reiteramos os agradecimentos aos leitores e


colaboradores da REPHE e convidamos à leitura de mais este
exemplar.

A Editora
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
4

Ficha Catalográfica
Revista de Economia Política e História Econômica /
Maceió, Grupo de Estudos em Economia Política e
História Econômica - Número 31, Ano 09, Janeiro de
2014 – Maceió, GEEPHE, 2007.

Semestral

1. História Econômica. 1.Economia Política


NEPHE
5 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

A Unificação Monetária Europeia – a


Formação da Área do Euro de 1990 a 20021

Maria de Fátima Silva do Carmo Previdelli2

RESUMO

O processo de formação de um bloco de países integrados com


unificação de políticas monetárias dentro do continente europeu
constitui uma das etapas mais importantes que os países do velho
continente realizaram em direção à sua integração. Para
compreender como o processo se efetuou e as mudanças
ocorridas na economia de seus agentes, este artigo apresenta uma
análise dos principais documentos elaborados e assinados durante
o processo, bem como a análise de alguns indicadores
macroeconômicos, visando verificar as mudanças ocorridas na
estrutura desses países no período de implantação da União
Monetária, entre 1990 e 2002.

Palavras-chave: História Econômica, União Europeia, Área do Euro

ABSTRACT

The process of formation of a bloc of countries integrated with


unified monetary policy within the European continent is one of the
most important steps that the countries of Europe held towards their
integration. To understand how the process was carried out and the
changes in the economy of its agents, this article presents an analysis
of key documents drafted and signed during the process as well as
the analysis of some macroeconomic indicators, seeking to verify the
changes in the structure of these countries during the establishment
of the Monetary Union, between 1990 and 2002.

Keywords: Economic History, European Union, the Euro Area

1Artigo apresentado em 16/05/2013 e aprovado em 12/08/2013.


2Economista, Mestre e Doutoranda em História Econômica pela USP-FFLCH, bolsista do CNPq. Professora da
Universidade Federal de Juiz de Fora, Campus de Governador Valadares.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
6

1 O Processo de Unificação Monetária Europeu

Após o término da Segunda Guerra Mundial em 1945, as


divisas dos diferentes países era regida pelo chamado padrão
dólar, conforme o acordo firmado em Bretton Woods em 1944. No
entanto, a supremacia da moeda estadunidense e as
desvalorizações forçadas das moedas europeias levaram os
dirigentes de suas principais nações a buscar medidas que
reduzissem este desequilíbrio relativo às suas moedas frente à
“moeda internacional”.

O uso da moeda estadudinense representava para as


potências do velho continente, ao mesmo tempo que uma
submissão à influência da antiga colônia britânica, também um
risco de vunerabilidade por problemas econômicos que pudessem
vir daquele país. A crise de 1929 ainda não havia sido esquecida.
Porém, a Guerra Fria exigia uma tomada de posição que criava
uma aliança natural com os Estados Unidos, levando à aceitação
de sua moeda como moeda internacional.

Em 1969, iniciaram-se os planos para a criação de uma


moeda única na Europa. Tais propostas resultaram no chamado
Plano Barre, elaborado em conjunto pelos então seis membros
componentes da Comunidade Econômica Europeia (CEE):
Alemanha Ocidental, Bélgica, França, Itália, Luxemburgo e Países
Baixos. Tal documento, concebido sob a reunião de Roma, em
fevereiro de 1969, apresentava uma série de operacionalizações
das propostas de integração fiscal, monetária e cambial dos países
europeus. Uma de suas propostas, ainda sob o sistema de Bretton
Woods, era a criação de uma política integrada de câmbio entre
os países membros, amparada por um fundo comum de crédito
destinado a suprir as flutuações entre as moedas nacionais. Nele,
também se observa a primeira sugestão de um numerário comum
aos países membros, o European Currency Unit (ECU).
7 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Em síntese, pode-se definir o Plano Barre3 como um conjunto


de diretrizes para que se levasse a cabo uma União Europeia, com
moeda comum, ausência de barreiras alfandegárias entre seus
membros, mobilidade de mão de obra e estabilidade no nível de
preços e taxa de câmbio. Elaborado pelos chefes de governo e
Bancos Centrais dos seis4 países membros, o documento serviu de
base para os posteriores que viriam a concretizar a união monetária.
No entanto, as negociações avançaram lentamente e somente no
ano de 1971 ocorreram novas conversações relativas à adoção da
moeda única. Nesse ano foi elaborado o Plano Werner, como
proposta de convergência das economias nacionais dos países
membros da CEE para tal fim.

O novo documento consistia em 68 páginas produzidas pela


Comissão da Comunidade Europeia, presidida por Pierre Werner5, e
votadas em março de 1970. Nomeado como Plano Werner6, esse
documento contém um endosso às recomendações do Plano
Barre, e um planejamento em três etapas para a unificação
monetária. A primeira etapa encontra-se detalhada com duração
e decisões conforme se pode verificar abaixo:

A primeira fase terá início em 1 de Janeiro de 1971


e irá abranger um período de três anos. Além da
ação aprovado pelo Conselho na sua decisão de 8
e 9 de Junho 1970, implicará na adoção das
seguintes medidas: (I) Os procedimentos de
consulta terão um caráter preliminar e obrigatório e
exigirão o aumento da atividade dos órgãos
comunitários, em particular o Conselho e a
Comissão, bem como, o Comité de Gestores dos
bancos centrais. Estas consultas incidirão,
principalmente, na definição de políticas
econômicas de médio prazo, políticas econômicas
de curto prazo, política orçamentaria e política
monetária7.

3 Idem.
4 Alemanha Ocidental, Bélgica, França, Itália, Países Baixos e Luxemburgo.
5 Primeiro Ministro e Ministro das Finanças de Luxemburgo.
6 Arquivo oficial de Legislações da União Europeia disponível no endereço http://europa.eu/ legislation

summaries /economic and monetary affairs , consultado em 18/10/2012.


7 Arquivo oficial de Legislações da União Europeia disponível no endereço http://europa.eu/

legislationsummaries/economic and monetary affairs , consultado em 18/10/2012. Tradução da autora.


Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
8

O texto não detalha as demais etapas a serem adotadas e


no final de 1970 o mesmo foi aprovado. No entanto, o colapso do
sistema de Bretton Woods e a decisão americana de permitir a
flutuação do dólar em Agosto de 1971 provocaram uma onda de
instabilidade nos mercados cambiais que prejudicou as paridades
entre as moedas europeias levando a uma suspensão do projeto de
união monetária.

Em Março de 1972, o Grupo dos Seis tentou reativar o


processo de integração monetária criando a “Serpente no Túnel”:
um mecanismo de flutuação combinada das moedas (a
“serpente”) no interior de margens de flutuação estreitas em
relação ao dólar (o “túnel”). Esse sistema consistia em uma fórmula
alternativa ao sistema monetário de Bretton Woods. Tinha como
mecanismo o uso de margens de flutuação de 2,25% entre as
diversas moedas europeias pertencentes ao sistema. Desse modo,
pretendia-se desenvolver um grupo autônomo de taxas de câmbio
entre os países da CEE que levasse à posterior eliminação das
margens de flutuação entre as moedas dos países membros. Em
1972 o Grupo dos Seis se expandira com a entrada da Irlanda,
Dinamarca e Reino Unido.

Desse modo, o Grupo dos Nove8 criou o Fundo Europeu de


Cooperação Monetária (FECOM), cujas reservas se destinavam a
ajudar os bancos centrais nacionais a manter a paridade da sua
moeda no mecanismo da Serpente Monetária, agora alinhada ao
dólar fora do sistema de convertibilidade. Contudo, as constantes
modificações unilaterais dos tipos de câmbio, e as diferenças entre
as economias dos países membros levaram ao fim da Serpente
Monetária Europeia, em 1978. O sistema estava desestabilizado
pelas crises petrolíferas, pela debilidade do dólar e pelas
divergências entre as políticas econômicas e havia perdido a maior
parte dos seus membros para finalmente ficar reduzida a uma zona

8 Alemanha, Bélgica, Dinamarca, França, Itália, Irlanda, Luxemburgo, Países Baixos e Reino Unido.
9 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

do "marco" reagrupando a Alemanha Ocidental, o Benelux e a


Dinamarca9.

Os esforços no sentido de criar uma zona de estabilidade


monetária foram retomados em Março de 1979, por iniciativa da
França e da Alemanha, com a criação do Sistema Monetário
Europeu (SME) baseado no conceito de taxas de câmbio fixas, mas
ajustáveis. As moedas de todos os Estados-membros, à excepção
do Reino Unido, participaram no mecanismo de taxas de câmbio.

O SME tinha como objetivo primário interligar as moedas e


evitar grandes flutuações entre os seus respectivos valores. Para
tanto, foi criado o Mecanismo Europeu das Taxas de Câmbio (MET),
através do qual as taxas de câmbio da moeda de cada Estado
Membro obedeciam a ligeiras flutuações (+/-2,25%) para cada lado
do valor de referência. Este valor, fixado por acordo em relação ao
conjunto de todas as moedas participantes, foi chamado Unidade
de Moeda Europeia (ECU), seguindo a sugestão britânica de 1975 e
era calculando de forma ponderada, segundo a dimensão da
economia de cada Estado Membro10.

No final dos anos 1980, o mercado de cada um dos Estados


Membros cresceu para patamares semelhantes e o objetivo de
criação do Mercado Único Europeu tornou-se mais viável. Mas o
comércio internacional neste Mercado Único poderia ser
prejudicado pelo risco das taxas de câmbio – apesar da relativa
estabilidade introduzida pelo MET – e pelos crescentes custos de
transação. A solução, mais uma vez foi depositada na esperança
de criação de uma moeda única.

Em fevereiro de 1986, a Comissão Europeia presidida por


Jacques Delors aprovou o Ato Único Europeu (AUE)11 alterando o
Tratado de Roma que, em 1945, havia criado o Grupo dos Seis. As

9 Conforme informações disponíveis no endereço http://europa.eu/legislation_summaries /economic_and


_monetary_ affairs/introducing_euro_practical_aspects/l25007_pt.htm acessso em 07 de julho de 2013.
10 Idem.
11 Arquivo oficial de Legislações da União Europeia disponível no endereço http://europa.eu/

legislationsummaries/economic and monetary affairs , consultado em 18/10/2012.


Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
10

alterações visavam a total abertura de fronteiras entre os Estados


membros para a circulação de bens, de capitais e de pessoas. O
objetivo da mudança era remover as barreiras institucionais e
econômicas entre os Estados Membros da CEE e estabelecer como
meta a formação do Mercado Comum Europeu (MCE).
Adicionalmente, o Ato Único Europeu determinava a criação da
União Econômica e Monetária (UEM) recuperando as
recomendações dos Planos Werner e Barre. O tratado buscava
aprovar e regulamentar a transformação da Comunidade
Econômica Europeia em União Europeia, incluindo definições como
o tempo de vigência dos mandatos dos participantes das
instituições a serem criadas com vistas a tais transformações para
seis anos. Adicionalmente, estabeleceu a data limite para adoção
das medidas relativas ao Mercado Interno dos Países Membros.
Elegeu ainda como foco das ações a serem tomadas, as áreas
social, tecnológica, de meio ambiente, de energia atômica, além
da área econômica.

Dois anos depois, em 1989, é elaborado o chamado Relatório


Delors12, ou “Report on economic and monetary union in the
European community” e que foi apresentado à comunidade
europeia no dia 17 de abril de 1989 quando foi publicado pelo
Comitê para o Estudo da União Econômica e Monetária, cujo
presidente era o político e economista francês, Jacques Delors. Por
sua importância, torna-se necessário descrever o Relatório Delors
em maiores detalhes. Composto de três capítulos, o inicial “Past and
present developments in economic and monetary integration in the
Community”, faz um resumo dos passos dados até o momento no
processo de unificação monetária, conforme a síntese a seguir:

1- Parte 1 - denominada “The objetive of economic and


monetary union” traz, informações sobre os movimentos
feitos nas décadas de 1970 e 1980 para o
estabelecimento da União Econômica e Monetária,

12 Idem.
11 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

destacando a criação do Sistema Monetário Europeu


(SME) e da Unidade de Conta Europeia (UCE).

2- Parte 2 - denominada “The European Monetary System


and the ECU” recorda a utilização abaixo do potencial do
SME causada pela não adesão de alguns países membros
ao mecanismo de taxa de troca, bem como a falta de
convergência das politicas fiscais, levando a orçamentos
deficitários em alguns membros. Já a ECU é relembrada
como tendo obtido elevado sucesso e adesão dos países
membros, subindo em 6% a participação de títulos
europeus nas transações do mercado internacional de
títulos e expandindo a emissão de títulos de dívida
lastreados na ECU, como forma de diversificação de
portfólio.

3- Parte 3 - sob o título “The Single European Act and the


Internal Market Programme”, resume o Ato Único Europeu
e seus resultados.

4- Parte 4 - relata as expectativas quanto à consolidação do


mercado único tido como fator preponderante na
eliminação de possíveis tensões sobre a política
monetária. Destacando as duas premissas necessárias à
concretização do mercado único: (1) aumento da
convergência das performances econômicas dos países
membros, e (2) intensificação das políticas conjuntas de
implantação do processo.

No segundo capítulo do relatório, “The final stage of


economic and monetary union” tem-se cinco seções: a primeira,
“General considerations” defende a formulação de políticas
conjuntas para a livre movimentação dos fatores produtivos
(Capital e Trabalho). Nas duas seções seguintes, caracteriza-se o
que seria a união monetária e econômica, destacando a
necessidade de: (1) completa conversibilidade entre moedas, (2)
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
12

instituição de um mercado com livre mobilidade de capitais, e, por


fim, (3) a completa equiparação das economias com a eliminação
das margens de flutuação nas paridades.

Para a obtenção desses pontos estabeleceram-se como


metas: (1) um mercado único com livre mobilidade de bens, capital
e pessoas; (2) políticas generalizadas de fortalecimento dos
mecanismos de mercado; (3) formulação de politicas com foco nas
mudanças estruturais e do desenvolvimento da união; e (4) adoção
de politicas macroeconômicas comuns aos países membros para
atingir os estágios de desenvolvimento que permitissem uma maior
concisão nos panoramas econômicos da União.

Há ainda um arcabouço institucional para legitimar o


estabelecimento das uniões econômica e monetária na
comunidade europeia, com destaque para a criação de um novo
agente monetário – o Sistema Europeu de Bancos Centrais – com
maior agilidade de decisão frente a mudanças no mercado
financeiro internacional. Este capítulo se encerra destacando o
ganho de poder de barganha que uma unificação de Estados
europeus obteria frente ao resto do mundo nos processos de
determinação de politicas internacionais.

O terceiro capítulo do Relatório Delors detalha os passos para


a implantação da união econômica e monetária na comunidade
europeia. Tais passos são estruturados em três fases.
Adicionalmente, informa quais etapas deverão ser postas em
prática antes mesmo de se iniciar os estágios de implantação da
unificação. Entre estas etapas, pode-se destacar a discussão sobre
a possibilidade de alteração na ECU para ampliar a eficiência do
instrumento e averiguar uma maior integração das politicas
monetárias através da ECU.

As fases propostas pelo Relatório Delors para a implantação


efetiva da União Econômica e Monetária estariam assim expostas:

(1) Uma fase inicial, objetivando o fortalecimento e


convergências das performances econômicas dos países,
13 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

acompanhadas por politicas monetárias coordenadas.


Esta fase se caracterizaria por acordos e tratados entre os
países membros para implantar tal coordenação.

(2) Fase de monitoramento e avaliação dos


resultados obtidos na etapa anterior, de reestruturação
das instituições existentes, assim como de criação de
novos agentes de monitoramento e formulação de
políticas em comum.

(3) Etapa de substituição das moedas nacionais por uma


moeda única.

O período entre a publicação do Relatório Delors e o marco


seguinte no estabelecimento da união monetária, o Tratado da
União Europeia, foi de três anos. No intermédio desse triênio, o
evento mais significativo na mudança do contexto histórico mundial
foi a reunificação da Alemanha. A queda do muro de Berlin fez
com que a comunidade europeia viesse a lidar com mudanças em
um dos seus países membros de maior destaque no grupo, iniciando
assim as negociações com a Alemanha unificada que resultariam
em sua participação, sob o novo formato em 1990, com uma
população de um quarto do total do bloco13.

A unificação das duas Alemanhas foi acertada em 18 de


maio de 1990, quando os dois Estados assinaram o Tratado que
institui a União Monetária, Econômica e Social entre a República
Democrática Alemã e a República Federal da Alemanha14 que
entrou em vigor em 1 de julho de 1990, com a adoção do Marco da
República Federativa como moeda comum, em paridade de um
para um com o marco da República Democrática Alemã. Dessa

13 Em 1990, a Alemanha unificada possuía 79.433.831 habitantes, já os demais países do bloco possuíam um
total de 263.611.268 habitantes. O segundo país mais populoso era a França com 56.708.820 habitantes
segundo dados disponíveis em http://stats.oecd.org/OECDStat_Metadata /ShowMetadata.ashx?Dataset=POP_
FIVE _HIST & Show OnWeb=true&Lang=en acesso realizado em 12-06-2013.
14 Conforme informações disponíveis no endereço http://www.princeton.edu/~achaney/tmve/wiki100k/

docs/German_reunification.html acesso em 07 de maio de 2013.


Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
14

forma, o país deu início ao processo que o levaria à posição de


principal potência dentro da Área do Euro.

Em 1992, as três fases previstas pela Comissão Delors em seu


relatório, foram formalizadas no Tratado de Maastricht, no qual se
definiram os critérios para a convergência econômica dos países
membros e adesão a uma moeda única. Esse tratado marca a
transição da Comunidade Econômica Europeia(CEE) para a União
Europeia (UE).

Tais critérios de adesão à União Europeia e de adoção do


euro foram definidos em três documentos a saber: (1) O Tratado de
Maastricht de 1992, que entrou em vigor em 1 de Novembro de
1993; (2) Os chamados Critérios de Copenhague, elaborados no
mesmo ano pelo Conselho Europeu para detalhar os objetivos
gerais do Tratado de Maastricht; e (3) O documento de
negociação de cada país candidato no momento de pedido de
adesão15.

O primeiro documento, conhecido como Tratado da União


Europeia16, ou Tratado de Maastricht, foi o resultado de uma
conferência intergovernamental dos países membros e introduziu o
Protocolo relativo aos Estatutos do Sistema Europeu de Bancos
Centrais e do Banco Central Europeu, bem como, o Protocolo
relativo aos Estatutos do Instituto Monetário Europeu. Entrou em vigor
em 1 de novembro de 1993.

O Tratado agrega numa só entidade, a União Europeia, as


três comunidades europeias anteriores (Euratom, CECA, CEE) e as
cooperações políticas institucionalizadas nos domínios da política
externa, da defesa, e da justiça. A Comunidade Econômica
Europeia passa a ser designada como União Europeia. Além disso, é

15 As datas de pedido de adesão dos países foram: Bélgica 1972 para Dinamarca, Irlanda e Reino Unido; 1981
para Grécia; 1985 para Portugal e Espanha; 1995 para Áustria, Finlândia, e Suécia; 2004 para Chipre,
Eslováquia, Eslovênia, Estônia, Hungria, Letônia, Lituânia, Malta, Polônia, e República Checa; e 2007 para
Bulgária e Romênia.
16 Arquivo oficial de Legislações da União Europeia disponível no endereço http://europa.eu/

legislationsummaries/economic and monetary affairs , consultado em 18/10/2012.


15 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

instituída a União Econômica e Monetária (UEM), e novas políticas


comunitárias na área da Educação e Cultura são instituídas.

Assinado pelos 12 países participantes do bloco, o


Tratado apresenta na sua versão consolidada, 55 artigos
agrupados em seis títulos ou capítulos. Estruturado como a
figura de um templo grego17, o documento possui três pilares:
1- O pilar central foi denominado de “pilar comunitário”,
e representa o mercado único, a União Europeia, a
União Econômica e Monetária, a PAC, os fundos
estruturais e de coesão, bem como as instituições que
permeiam todas essas instancias.
2- Os pilares laterais, estavam baseados não nos poderes
supranacionais mas na cooperação entre os governos
e envolviam (1) a Política Exterior e Segurança Comum
(PESC), e (2) Justiça e Assuntos Internos (JAI). Como
segundo pilar, baseado na cooperação entre os
governos, estabeleceu-se uma Política Externa e de
Segurança Comum (ESC) que permitiu empreender
ações comuns em matéria de política externa. O
Conselho Europeu, com suas decisões passou a definir
os princípios e orientações gerais da PESC.
3- O terceiro pilar, baseado na cooperação
intergovernamental, baseou-se na Justiça e na
administração de temas de interesse comum para
todos os estados membros como terrorismo, imigração
clandestina, políticas de asilo, tráfico de drogas, crime
e a cooperação judicial.

A diferença entre os pilares reside na forma como se


tomam as decisões. Assim, nos pilares de cooperação entre os
governos, as decisões deverão tomar-se por consenso e as
competências da Comissão, o Parlamento Europeu e o

17Conforme informações disponíveis no endereço http://europa.eu/eu- law/treaties/index_en.htm, acesso em


03-04-2013.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
16

Tribunal de Justiça são escassas. Já no chamado pilar


comunitário, as decisões são tomadas por maioria e o papel
das instituições comunitárias é essencial. Ainda em relação a
este pilar, o tratado define alguns pontos importantes: como o
reconhecimento de uma cidadania europeia, e a
operacionalização da União Econômica e Monetária (UEM) a
ser estruturada nas três fases baseadas no Relatório Delors e
descritas a seguir:

1- A primeira fase, iniciada em 1990, seria concluída em


31 de Dezembro de 1993 e teria como objetivo
completar a livre circulação de capitais entre os países
membros.
2- De 1 de Janeiro de 1994 a 1 de Janeiro de 1999,
ocorreria a segunda fase na qual os países membros
deviam coordenar as suas políticas econômicas
objetivando atender aos “critérios de convergência”.
3- A terceira fase começaria em de 1 de Janeiro de
1999, e marcava a criação da moeda única, o Euro,
que teria fixada nessa data a sua equivalência com
as moedas nacionais dos países participante, bem
como, seria a data para o estabelecimento de um
Banco Central Europeu (BCE).

O Tratado da União Europeia18 destaca como um de


seus objetivos, a busca por uma homogeneidade econômico-
social das diversas regiões e países comunitários que a
compõem. Para tanto, regulamenta o chamado Fundo de
Coesão com o objetivo de proporcionar ajuda financeira a ser
aplicada nos setores de meio ambiente, transportes e
infraestrutura de base. Este fundo estava destinado aos
estados membros da União que tivessem um PNB per capita

18Conforme informações disponíveis no endereço http://europa.eu/eu- law/treaties/index_en.htm, acesso em


03-04-2013.
17 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

inferior a 90% da média europeia e implantassem as “políticas


de convergência”, ou seja, controle da inflação, controle do
déficit das contas públicas e redução da dívida pública. Os
principais beneficiários destas políticas e fundos foram
Espanha, Grécia, Portugal e Irlanda. O grupo passou a ser
conhecido como “Países da Coesão”.

Outras áreas definidas ao longo do texto são referentes


à política econômica e monetária, política industrial, redes
transeuropeias e política de transportes, políticas
educacionais, defesa dos consumidores, pesquisa e o
desenvolvimento tecnológico, e cooperação para a
preservação do meio ambiente19. Assim, o tratado aborda
pontos importantes como no caso do 8º artigo, onde
estabelece a possibilidade da execução e regulação de
acordos com Estados não membros pelas instituições da
União. O artigo 10, define que a União deve operar na forma
de uma democracia representativa, e no artigo seguinte
determina que as operações da União deverão ser expostas
de forma transparente ao povo europeu.

No que se refere às instituições, o artigo 13 introduz as


seguintes medidas: o Parlamento aumenta os seus poderes, o
Conselho de Ministros passa a denominar-se Conselho da
União Europeia; a Comissão recebe o nome oficial de
“Comissão das Comunidades Europeias”, o Tribunal da Justiça,
o Tribunal de Contas e o Comitê Econômico e Social reforçam
as suas competências, cria-se o Comité das Regiões, com
caráter consultivo e prevê-se a criação do Banco Central
Europeu, ao iniciar-se a terceira fase da UEM. Nos artigos
seguintes, define as funções de cada uma dessas instituições
concedendo ao Parlamento Europeu e ao Conselho a função

19 Idem.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
18

legislativa e orçamentária (artigo 14) e atribui ao Conselho


Europeu a função de incentivar e regular o desenvolvimento
da União sem, no entanto, agir como poder legislativo (artigo
15).

Vale destacar que para alguns, como Marsh20, no entanto, o


Tratado de Maastricht e as propostas colocadas em vigor com sua
assinatura, seguiram todo o modelo do sistema financeiro da
Alemanha, país mais forte do grupo. E fortaleceriam a divisão entre
países pobres e ricos do bloco.

Na versão completa do Tratado da União Europeia21 constam


diversos protocolos adicionais dos quais chamam à atenção dois
que regulamentam a situação do Reino Unido e da Dinamarca no
que se refere à unificação monetária. O primeiro permite ao Reino
Unido optar a qualquer momento pela entrada na terceira fase de
implantação da moeda única. Assim, o tratado isenta o país de
aderir ao uso do Euro e permite que mantenha a libra como moeda
oficial. Adicionalmente, mantêm sua autonomia relativa às políticas
monetárias e fiscais adotadas.

No protocolo relativo à Dinamarca, o tratado faculta a


entrada do país na Área do Euro com a realização de uma consulta
à população do país. Até 2013, o governo dinamarquês não
realizou o referendo sobre a entrada na Área do Euro.

Existe uma terceira exceção, que está relacionada com a


Suécia. Quando aderiu à União Europeia em 1995, o país não
atendia aos critérios necessários para a adoção da moeda única e
o povo sueco rejeitou o euro através de referendo, preferindo
preservar sua moeda nacional. Todos os demais países, ao se
candidatarem à União Europeia, automaticamente iniciam o
processo de adesão à moeda única, e quando atendem

20 Conforme MARSH, David. The battle fot the new global currency. London:Yale University Press, 2009.
p.12.
21 Conforme documento divulgado pelo Official Journal C 191, de 29 de julho de 1992, disponível em

http://europa.eu/ legislationsummarie, acessado em 24 de junho de 2013.


19 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

plenamente às exigências dos Critérios de Copenhague, passam a


integrar a Área do Euro.

2. Fases de Implantação da UEM


Embora a Fase I tivesse começado em 1979 com a criação
do SME, o seu início oficial se deu em 1990 e o marco inicial desta
fase se deu pela abolição do controle sobre as taxas de câmbio,
libertando assim os movimentos de capitais no interior da CEE.
Portanto, oficialmente, a Primeira Fase da UEM teve início no dia 1
de julho de 1990 e caracterizou-se pela eliminação de todas as
barreiras internas à livre circulação de mercadorias, pessoas,
serviços e capitais nos Estados membros da União Europeia.

Ainda nessa primeira fase, atribuíram-se responsabilidades ao


Comitê de Gestores dos Bancos Centrais dos Estados membros. Em
março de 1990, foi definida e regulamentada a prática de
realização de consultas relativas à política monetária entre os
gestores para a coordenação entre Estados membros, visando
controlar a estabilidade de preços e a unificação de medidas. Para
tanto, foi elaborado o documento conhecido como a Resolução
141 de 1990 do Conselho Europeu22. O documento estabelecia uma
supervisão multilateral a ser efetuada nos países membros, cobrindo
todos os aspectos da política econômica, a curto e médio prazo
objetivando obter a estabilidade de preços, controle de finanças
públicas e condições monetárias favoráveis como balanços de
pagamentos favoráveis e a manutenção da abertura de mercados
internos aos fluxos de produtos e fatores.

Operacionalmente, através de análises e decisões tomadas


em sessões restritas, mas com deliberações tornadeas públicas, a
supervisão multilateral se dava com base em relatórios períodicos
dos países sobre as condições econômicas nacionais, com
detalhamento das perspectivas e informações detalhadas das

22 Council Decision 90/141/EEC of 12 March 1990 on the attainment of progressive convergence of economic
policies and performance during stage one of economic and monetary union [Official Journal L 78 of 24.03.1990]
disponível no endereço http://europa.eu/legislation_summaries economic_and_monetary_affairs/introducing_
euro_practical _aspects/l25006_en.htm acesso em 15-08-2013.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
20

políticas monetária e orçamental; em seguida eram feitas as


avaliações periódicas da situação econômica da Comunidade
como um todo e gerado um relatório anual a ser avaliado e
aprovado pelo Comitê Econômico e Social.

A fim de promover a coerência das políticas


econômicas e monetárias entre os países pertencentes ao
bloco, o presidente do Comitê dos Gestores dos Bancos
Centrais participava das reuniões do Conselho e poderia
convocar reuniões extraordinárias do Comitê de Gestores de
Bancos Centrais para decisões ou detalhamentos que,
posteriormente apresentava ao Conselho.
Os governos dos países deveriam informar aos seus
ministros e parlamentos, sobre as recomendações do
Conselho para substanciar a elaboração das políticas
econômicas nacionais. Desse modo, tanto os Gestores dos
Bancos Centrais participavam da elaboração das
recomendações no nível da comunidade, quanto da
elaboração das políticas econômicas em seus próprios países,
garantindo sua unicidade.
A criação do Instituto Monetário Europeu (IME) em 1994
marcou o início da Segunda Fase da UEM e, o Comité de Gestores
dos Bancos Centrais foi extinto. Cabe esclarecer que o IME não
tinha qualquer responsabilidade pela condução da política
monetária da União Europeia (UE), a qual continuava a ser da
competência das autoridades nacionais, adicionalmente, o IME
não podia realizar intervenções cambiais. Suas funções eram de
duplo caráter: (1) Reforçar a cooperação entre os bancos centrais
e a coordenação das políticas monetárias (ainda que durante essa
segunda fase a política monetária continuasse a ser definida no
âmbito nacional); e (2) realizar as tarefas necessárias à instituição do
Sistema Europeu de Bancos Centrais (SEBC), a quem caberia
determinar e conduzir a política monetária única a partir do início
21 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

da terceira fase, e proceder à introdução da moeda única também


nessa Terceira Fase da UEM.

Em Junho de 1997, o Conselho Europeu se reuniu em


Amsterdã e aprovou o Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC)
que criou o MET II, sucessor do SME e do MET. Este somente entraria
em vigor após o lançamento do euro na sua forma monetária.

O PEC23 continha instruções engessadoras do orçamento dos


Estados, visando evitar endividamento dos mesmos. O Pacto de
Estabilidade e Crescimento era composto por três partes: (1) que
visava estabelecer um „braço preventivo‟ relativo a problemas
orçamentários; (2) um regimento dos procedimentos de supervisão
das situações orçamentais; e (3) o chamado „braço corretivo” a ser
aplicado no caso de um país membro apresentar uma situação de
“déficit excessivo”.

Os principais objetivos do PEC em relação ao orçamento dos


estados membros eram obter um compromisso no sentido de
respeitar um saldo orçamental próximo do equilíbrio ou de superávit,
além de especificar o que seriam cirsuntâncias excepcionais, e
sanções aos déficits excessivos. O PEC definiu como valor de
referência para teto máximo de déficit público, 3% do PIB. E, definia
como situação excepcional, que permitiria valores superiores a esse,
uma recessão econômica grave (com taxa de crescimento anual
negativa do PIB ou de uma redução cumulativa da produção
durante um período prolongado de crescimento anual muito
baixo)24.

Operacionalmente, cada Estado membro devia apresentar à


Comissão Econômica, seus programas de estabilidade (para os
participantes da Área do Euro) e programas de convergência (para
os que ainda não fazem parte da área do euro). Em ambos os

23 Conforme informações disponíveis no endereço http://europa.eu/eu- law/treaties/index_en.htm, acesso em


03-04-2013.
24 De acordo com informações disponíveis no endereço http://europa.eu/legislation_summaries/economic_and

_monetary_affairs /stability_and_growth_pact/l25019_pt.htm, acesso em 16-08-2013.


Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
22

casos, os programas visavam estabelecer a meta orçamentária


para os próximos anos e eram avaliados pela Comissão, sofrendo
recomendações do Conselho, específicas para cada Estado. Este
era o “braço preventivo” do PEC25. Adicionalmente, o pacto criou
um “Semestre Europeu” no início de cada ano para que os países
membros pudessem colocar em prática, suas políticas orçamentais.
Em seguida a esse período, a Comissão Europeia avaliava as contas
apresentadas pelos Estados e elaborava um relatório com
informações sobre a situação da economia do país. Caso ocorresse
um caso de “déficit excessivo”, o relatório devia pontuar todos os
fatores26 relacionados às suas causas e medidas de correção.

Já o chamado “braço corretivo” do pacto, se


relacionava ao regulamento27 que apresenta as sanções a
serem tomadas no caso de um “déficit excessivo”.
Inicialmente, estas assumiam a forma de um depósito não
remunerado junto à União Europeia. O montante desse
depósito incluia uma componente fixa correspondente a 0,2 %
do PIB do país; e uma componente variável correspondente a
um décimo da diferença entre o déficit (expresso em
percentagem do PIB do ano durante o qual o déficit foi
considerado excessivo) e o valor de referência (3 %).
Nos anos seguntes, o Conselho poderia intensificar as
sanções exigindo depósitos suplementares correspondentes
ao décimo da diferença entre o déficit expresso como
percentagem do PIB do ano anterior e o valor de referência
de 3 % do PIB. Caso o “déficit excessivo” não fosse corrigido
após dois anos, os depósitos passam a ser considerados como

25 Idem.
26 Nomeadamente: o potencial de crescimento; as condições conjunturais; a execução das políticas que visem
incentivar a pesquisa e inovação; a evolução do orçamento no médio prazo, com os esforços de equilíbrio
orçamental; e dados relativos a mudanças no sentido de diminuir as políticas assistenciais de aposentadorias e
pensões.
27 Conhecido como Regulamento (CE) n.º 1467/97 do Conselho, de 7 de Julho de 1997, relativo à aceleração e

clarificação da aplicação do procedimento relativo aos défices excessivos. Disponível no endereço


http://europa.eu/legislation_summaries /economic_and
_monetary_affairs/stability_and_growth_pact/l25020_pt.htm acessado em 16-08-2013.
23 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

multas e, juntamente com os juros a eles relacionados, são


distribuídos pelos Estados membros que não tenham um
“déficit excessivo”, de modo proporcional à sua participação
no PIB total do bloco28.
Ainda em 1998, em reunião do Conselho Europeu em
Bruxelas, foram aprovados os onze países que poderiam adoptar o
euro em 199929. Eram estes: Alemanha, Áustria, Bélgica, Espanha,
Finlândia, França, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Países Baixos, e
Portugal.

Os Chefes de Estado ou de Governo de tais países


nomearam, através de acordos políticos, os componentes da
Comissão Executiva do BCE.

Em relação às taxas de câmbio, nesse mesmo ano, os


ministros da área financeira dos Estados membros que iriam adotar
o euro, entraram em acordo com os gestores dos respectivos
bancos centrais nacionais, a Comissão Europeia e o IME. Tal acordo
visava estabelecer quais as taxas centrais bilaterais no MTC das
moedas dos Estados membros participantes a serem utilizadas para
a conversão das moedas nacionais em euros.

Com a instituição do BCE em 1 de junho de 1998, o IME


cessou as suas funções. Em conformidade com o artigo 123 (ex-
artigo 109-L) do Tratado que Institui a Comunidade Europeia30, o IME
entrou em liquidação no momento em que o BCE iniciou a
atividade.

Ainda nesta fase, os Estados membros deveriam


compatibilizar suas legislações nacionais com esse Tratado e os

28 Idem.
29 Conforme informações disponíveis no endereço http://europa.eu/legislation_summaries /economic_and
_monetary_ affairs/introducing_euro_practical_aspects/l25007_pt.htm acessso em 07 de julho de 2013.
30 O Tratado de Roma de 1957 foi sendo modificado ao longo dos anos a cada novo tratado e acordo assinado,

deste modo, ao original foram adicionadas as decisões posteriores e o documento resultante recebe esta
denominação e representa a versão consolidada das decisões dos países membros relativas à norma da União
Europeia, suas instituições e órgão componentes.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
24

estatutos do Sistema Europeu de Bancos Centrais (SEBC) 31, em


especial no que diz respeito à independência dos seus bancos
centrais.

Da mesma forma, era esperado que cada país se adequasse


aos chamados “critérios de convergência” ou Critérios de
Copenhague, a saber: (1) manutenção das divisas nos limites
fixados pelo MET por período não inferior a dois anos; (2) taxas de
juro de longo prazo não superiores a 2% das taxas dos três países
membros que obtivessem melhor desempenho no período; (3)
inflação inferior a um valor de referência (num período até 3 anos os
preços não poderiam ser superiores a 1,5% dos do Estado melhor
posicionado); e (4) o endividamento público deveria ser inferior a
60% do PIB (ou caminhar neste sentido), com déficit do orçamento
público obrigatoriamente inferior a 3%32.

No final dessa fase, o BCE começou a operar com a missão


de dirigir a política monetária da União Europeia e fiscalizar as
atividades do Sistema Europeu de Bancos Centrais.

Tendo confirmada sua data de início durante o Conselho


Europeu de Madrid, em 15 e 16 de Dezembro de 1995, a terceira
fase de implantação da UEM começou em 1 de janeiro de 1999,
com a fixação irrevogável das taxas de câmbio das moedas dos
iniciais 11 Estados membros participantes da Área do Euro para o
valor do último dia útil de 1998. Adicionalmente ocorreu a
introdução do euro como moeda única, ainda na forma não
monetária.

Nessa data, tem-se também a passagem da


responsabilidade pela condução da política monetária da área do
euro para o Conselho do BCE. Oficialmente, a transferência dessa
função ocorreu na reunião do Conselho Europeu, com a presença

31 Conforme informações disponíveis no endereço http://europa.eu/legislation_summaries /economic_and


_monetary_ affairs/introducing_euro_practical_aspects/l25007_pt.htm acessso em 07 de julho de 2013.
32 Segundo informações disponíveis no endereço http://europa.eu/pol/emu/index_pt.htm acessado em 12-05-

2013.
25 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

de Chefes de Estado ou de Governo, em maio de 1998, onde foram


confirmados os onze Estados definidos na fase anterior33 já que
haviam cumprido os critérios de convergência exigidos para a
adoção da moeda única. No entanto, o BCE ainda operaria em
conjunto com os Bancos Centrais nacionais para fixação das metas
monetárias até o ano de 2002, quando passou a operar sozinho.

Nesse período em que a moeda única ainda não estava em


circulação na sua forma monetária, os valores em euro eram usados
na contabilidade e as empresas podiam fazer as chamadas
transações seguras em euros, uma vez que as taxas de câmbio
entre as divisas eram fixas. Para acostumar a população à nova
moeda, valores em euros surgiam nas contas bancárias
acompanhando os valores nas moedas nacionais. A transição para
o euro em sua forma monetária ocorreu em primeiro de janeiro de
2002 com a introdução das notas e moedas de euro. O Mecanismo
Europeu de Taxas de Câmbio (MET) deu lugar ao MET-II,
funcionando como o anterior, mas agora no contexto de um euro
realmente existente.

Em primeiro de janeiro de 2002, as caixas eletrônicas dos


bancos começaram a fornecer a nova moeda um minuto depois
da meia-noite e os cidadãos, poucos dias depois, estavam
utilizando a nova moeda de forma corriqueira apesar de algumas
resistências da população mais idosa que não compreendia as
mudanças nominais de preços e protestou contra possíveis perdas
de poder aquisitivo34.

3 Análise do Ambiente Econômico dos Países da Área


do Euro (1990 a 2002)

33 Alemanha, Áustria, Bélgica, Espanha, Finlândia, França, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Países Baixos, e
Portugal. Em 2000, a Grécia foi aprovada e se tornou o décimo segundo país a entrar na Área do Euro.
34 De acordo com informações disponíveis no endereço http://ec.europa.eu/economy_finance/euro/adoption/

acessado em 8 de julho de 2013.


Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
26

A seguir analisam-se alguns indicadores relativos às três fases


de implantação da União Econômica e Monetária conforme
acordado no Tratado de Maastricht, objetivando verificar as
alterações observadas nas estruturas econômicas dos países
candidatos à integração monetária. Dessa forma, priorizou-se
o estudo das variáveis que foram objeto de maiores
mudanças em virtude da busca pelo cumprimento dos
critérios de convergência, conhecidos como Critérios de
Copenhague.

Evolução da População, Produto, e Consumo Privado

Segundo a Tabela 1, Alemanha, França, Itália e


Espanha, conjuntamente, representam aproximadamente 80
% da população total da Área do Euro. Tal justifica sua força
em termos de voto no Parlamento Europeu, e demais
instituições da União Europeia. Em termos agregados, não se
observam alterações na composição populacional entre as
nações da região da Área do Euro.
Visando facilitar a análise dos dados em função desssa
representatividade, optou-se por manter a ordem de
apresentação dos países nas tabelas a seguir, em ordem
decrescente de participação populacional no grupo dos
doze formadores iniciais da Área do Euro.
27 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Tabela 1: Participação da população no total do Grupo (Área do


Euro), por país, por fase de implantação da UEM (1990 a 2002)

1ª Fase 2ª Fase 3ª Fase Média


País
1990-1993 1994-1998 1999-2002 1990-2002

Alemanha 27,00 27,16 26,95 27,04

França 19,77 19,77 19,92 19,84

Itália 19,15 18,89 18,67 18,89

Espanha 13,15 13,10 13,22 13,15

Países Baixos 5,08 5,15 5,22 5,15

Grécia 3,46 3,54 3,58 3,53

Bélgica 3,38 3,37 3,36 3,37

Portugal 3,37 3,34 3,35 3,35

Áustria 2,62 2,64 2,63 2,63

Finlândia 1,69 1,70 1,70 1,70

Irlanda 1,19 1,21 1,25 1,22

Luxemburgo 0,13 0,14 0,14 0,14

Fonte: Elaborado pela autora a partir de dados de EUROSTAT35.

Ao se analisar as mudanças econômicas desta primeira fase


de implantação da UEM, observa-se uma reestruturação dos ritmos
de crescimento econômico dos países envolvidos na Área do Euro.
Praticamente todos arrefecem suas taxas de crescimento em 1993,
para algo próximo a um terço ou à metade dos valores observados
em 1990, como consta na Tabela 2.

35Base de dados disponível no endereço http://epp.eurostat.ec.europa.eu/portal/page/portal/statistics/ acesso


em 10-05-2013.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
28

Tabela 2: Taxa média anual de variação Porcentual do PIB, por país, por
fase de implantação da UEM

1ª Fase 2ª Fase 3ª Fase


País
(1990 a 1993) (1994-1998) (1999-2002)
Alemanha 5,92 3,23 3,35
França 4,15 4,30 5,69
Itália 4,03 4,27 3,21
Espanha 4,61 5,48 7,29
Países Baixos 5,47 5,84 6,57
Grécia 3,57 4,45 7,34
Bélgica 4,43 3,75 5,71
Portugal 4,91 5,26 5,65
Áustria 7,69 3,49 3,72
Finlândia 6,47 6,35 5,35
Irlanda 7,24 10,54 9,95
Luxemburgo 8,15 4,85 8,82
Fonte: Elaborado pela autora a partir de dados de OCDE36.

É possível atribuir-se o efeito de refreamento da


intensidade de crescimento econômico às tentativas de
coordenação de políticas econômicas dos países-membros,
especialmente as de caráter fiscal e monetário, o que teve
impactos sobre o suprimento das respectivas demandas
efetivas dos mesmos.
A retomada do ritmo de crescimento econômico em
patamar mais homogêneo marca o comportamento da
variação percentual do PIB na segunda fase de implantação
da moeda comum. Neste período, de 1994 a 1998, as médias
de crescimento ficam entre 3% e 6%, com exceção da
Irlanda, que apresenta um crescimento médio anual de
10,56%, no período. De maneira geral, com exceção
novamente da Irlanda, isso representa que, essa segunda fase
de coordenação das políticas econômicas visando a
implantação da UEM, é caracterizada pelo surgimento de um
poder arbitral entre as políticas fiscais, cambiais e monetárias.
Observa-se um arrefecimento do ritmo dos países que
cresciam mais na primeira fase, notadamente Alemanha e
Áustria, e uma intensificação do crescimento nos países que
antes cresciam a taxas inferiores a 3%, em 1993, como

36 Base de dados disponível no endereço http://stats.oecd.org/, acesso em 30-10-2012.


29 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Finlândia e Portugal. Contudo, não é possível formular ainda a


hipótese de que já nessa segunda fase, a Área do Euro
poderia ser considerada uma unidade territorial, do ponto de
vista econômico.
Na terceira e última fase de implantação do Euro, de
1999 a 2002, percebe-se o reforço da tendência à
homogeneização das taxas de crescimento dos países
membros. É possível dividir o conjunto de países em dois
grupos distintos: um primeiro, que cresce entre 3% a 5%; e um
outro, que cresce nas faixas de 6% a 9% anuais. A Irlanda
apresenta extrapolação com variações excepcionais de 12%,
em 2000, por exemplo. Mas é importante notar-se a criação
desses “grupos” ou “sub-blocos” dentro do grupo em função
das oscilações que ocorreriam nos anos seguintes. Nivelam-se
os ritmos de crescimento do produto desses grupos na Área
do Euro a partir do primeiro, ou seja, por baixo.
Visto como um todo, o período de 1990 a 2002 representa
uma fase de financeirização e transferência da relevância da
composição do produto para ativos imobiliários, conforme se
observa na Tabela 3, onde claramente se percebe um crescimento
da participação do setor de serviços financeiros e imobiliários em
todos os países do grupo.

Tabela 3: Variação percentual da Participação Setorial no PIB, por país, média do


período 1990- 2002
Agricultura, Serviços Comércio
País Pesca, Indústria Construção financeiros e outros
Extrativismo e imobiliários serviços
Alemanha -33,9 -21,1 -13,8 28,0 6,0
França -40,9 -21,8 -22,1 14,3 8,6
Itália -71,7 -17,7 -19,3 31,1 -0,3
Espanha -27,4 -22,3 -2,5 19,5 5,0
Países Baixos -46,4 -22,7 -2,2 28,4 3,7
Bélgica -46,1 -23,5 -8,3 23,2 5,5
Portugal -63,7 -15,1 31,0 4,7 15,4
Áustria -50,1 -12,7 7,2 29,1 -0,5
Finlândia -51,6 7,0 -25,4 28,0 -1,3
Irlanda -74,9 1,7 37,6 50,3 -12,0
Luxemburgo -60,4 -48,3 -19,1 50,4 -5,0
Fonte: Elaborado pela autora a partir de dados de OCDE37.

37 Base de dados disponível no endereço http://stats.oecd.org/, acesso em 30-10-2012.


Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
30

Observadas as taxas de variação do consumo privado


durante as três fases de implantação da UEM, constata-se que,
Alemanha e Áustria apresentam redução do consumo privado. Dos
demais países, à exceção de Portugal, todos demonstram uma
intensificação do aumento de consumo privado em termos de
porcentagem do PIB durante todo o período. como se pode
verificar na Tabela 4.

Tabela 4: Variação do Consumo Privado em porcentagem do PIB,


média anual, por país, por fase de implantação da UEM (1990 a
2002).

1ª. Fase 2ª. Fase 3ª. Fase


País
1990-1993 1994-1998 1999-2002
Alemanha 3,06 1,35 1,30
França 0,94 1,76 2,80
Itália 0,85 2,16 1,48
Espanha 1,67 2,62 4,12
Países Baixos 2,07 3,51 2,94
Bélgica 1,91 2,10 1,67
Portugal 4,13 2,71 2,98
Áustria 2,70 1,61 1,80
Finlândia -2,97 3,72 2,61
Grécia 1,75 2,61 3,55
Irlanda 2,25 6,14 7,13
Luxemburgo 2,63 3,70 4,46
Fonte: Elaborado pela autora a partir de dados de OCDE 38.

Poupança e Formação Bruta de Capital Fixo

A poupança líquida dos doze países candidatos à unificação


monetária se mostra inalterada durante o período preparatório para
a adoção da moeda única, como consta da Tabela 5. Porém
destacam-se como exceções Portugal e Grécia que apresentaram
queda em suas poupanças líquidas ao final do período.

38 Idem..
31 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Tabela 5: Poupança líquida, valores em porcentagem do PIB, por


país, anos selecionados, por fase de implantação da UEM (1990 a
2002).

País 1ª Fase 2ª Fase 3ª Fase


1990 1993 1994 1998 1999 2002
Alemanha 9,68 7,26 7,33 8,44 8,26 9,58
França 7,98 5,35 5,89 8,85 9,70 7,39
Itália 7,13 5,31 5,60 7,08 6,66 6,05
Espanha 9,46 6,90 6,38 9,47 9,25 9,79
Países Baixos 10,97 9,61 11,03 10,77 12,51 10,83
Grécia 0,10 0,10 0,10 0,09 0,08 0,93
Bélgica 10,39 10,35 11,60 10,67 11,20 10,01
Portugal 10,64 4,82 3,91 5,16 4,45 0,81
Áustria 11,37 6,93 6,81 6,66 6,05 5,25
Finlândia 5,83 4,24 0,14 9,37 10,89 12,39
Irlanda 7,79 7,17 7,15 14,36 13,25 10,27
Fonte: Elaborado pela autora a partir de dados de OCDE 39.

(*) Luxemburgo não apresenta dados referentes a este indicador nas bases
de dados da OCDE e EuroStat.

A análise das diferentes fases de implantação da UEM


relativas à Formação Bruta de Capital Fixo, na Tabela 6 revela que
somente Espanha, Grécia e Luxemburgo apresentam elevação
dessa capacidade.

Tabela 6: Formação Bruta de Capital Fixo como porcentagem do


PIB, valor médio anual, por país, por fase de implantação da UEM
(1990 a 2002).
País 1ª Fase 2ª Fase 3ª Fase Variação %
1990-1993 1994-1998 1999-2002 1990-2002
Alemanha 23,01 21,59 20,31 -19,44
França 19,61 17,35 18,56 -11,71
Itália 21,08 19,11 20,46 -5,04
Espanha 23,34 21,69 25,68 3,86
Países Baixos 21,96 21,43 21,48 -12,10
Grécia 20,73 18,58 22,46 6,33
Bélgica 21,14 20,19 20,50 -15,32
Portugal 24,52 24,39 26,87 -3,38
Áustria 24,39 24,28 23,37 -7,98
Finlândia 22,20 17,94 19,61 -33,37
Irlanda 16,63 18,82 22,58 18,40
Luxemburgo 21,59 20,81 22,33 4,18
Fonte: Elaborado pela autora a partir de dados de OCDE 40.

Já os dados desagregados por área de investimento


mostram que os investimentos ocorridos na Grécia durante o

39 Idem.
40 Idem.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
32

período de implantação da UEM, se concentraram em


equipamentos de transporte como navios e aviões (de 10% do total
de FBCF em 1990 para 17% em 2002)41, em segundo lugar, o país
apresentou aumento no investimento em máquinas, equipamentos
e infraestrutura (ambos com aumento de 3% na participação do
total no período analisado). No caso da Espanha, ocorreu uma
elevação do investimento para ampliação de áreas cultivadas e
para exploração de produtos de origem animal (de 33% do valor
total da variável em 1993 para 45%, em 2002). Por fim, Luxemburgo
ampliou o investimento nos setores de construção de infraestrutura
que apresentavam uma participação de 36% em 1995, e de 45%
em 2002.

Políticas Fiscais

Em conformidade com os “critérios de convergência”


constantes do Tratado que Institui a Comunidade Europeia. Tais
critérios receberam o nome de “Critérios de Copenhague”,
conforme citado anteriormente. Assim, os países que desejassem
adotar a moeda única deveriam, segundo o 4º critério, apresentar
déficit orçamental inferior a 3%.

Na Tabela 7 observam-se os esforços empreendidos pelas


políticas fiscais no sentido de aproximar seus gastos com a
arrecadação, e desse modo, reduzir o déficit das contas públicas.

41Base de dados disponível no endereço http://epp.eurostat.ec.europa.eu/portal/page/portal/statistics/ acesso


em 15-05-2013.
33 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Tabela 7: Contas do Governo, média anual em porcentagem do PIB, por país, por
fase de implantação da UEM (1990 a 2002).

1ª Fase: 2ª Fase: 3ª Fase:


País 1990 a 1993 1994 a 1998 1998 a 2002
Arrecadação Gasto Arrecadação Gasto Arrecadação Gasto
Alemanha 44,06 46,89 45,55 49,59 45,37 47,22
França 47,71 51,84 49,80 53,98 50,14 52,21
Itália 43,58 54,34 45,47 51,30 44,82 47,14
Espanha 36,48 45,75 37,52 43,27 38,42 39,17
Países Baixos 51,58 55,31 47,37 50,72 45,44 45,44
Grécia 30,80 43,50 38,38 44,93 41,77 45,83
Bélgica 46,16 53,63 48,34 51,73 49,39 49,52
Portugal 35,45 42,00 37,20 41,46 38,66 42,33
Áustria 50,52 53,49 51,22 55,08 50,49 51,83
Finlândia 55,85 58,16 55,78 58,94 53,76 49,25
Irlanda 41,41 44,18 39,18 39,37 34,95 32,99
Luxemburgo 40,54 38,99 42,92 40,30 43,51 39,12
Fonte: Elaborado pela autora a partir de dados de OCDE 42.

Os esforços no sentido de atender os critérios de conversão


também podem ser observados na Tabela 8, com os valores médios anuais
das taxas que os países adotaram durante as três fases de implantação da
UEM. Merecem destaque os aumentos efetuados pela Grécia (passando
de taxas médias de 27% na primeira fase para 33,65% na terceira). Em
contra partida, a Alemanha manteve suas taxas inalteradas, em torno de
36%. Já países como Bélgica, Países Baixos e Irlanda, ao contrário dos
demais, diminuíram as mesmas em torno 2% para o primeiro e 4% para os
outros dois, no entanto atingindo o equilíbrio das contas públicas na
terceira fase, como visto na Tabela 7.

Tabela 8: Taxas como percentual do PIB, valores médios anuais, por país, por fase
de implantação da UEM (1990 a 2002)

1ª Fase 2ª Fase 3ª Fase


País
1990-1993 1994-1998 1999-2002
Alemanha 36,17 36,74 36,68
França 42,39 43,82 44,29
Itália 39,53 41,21 41,76
Espanha 32,96 32,60 34,19
Países Baixos 44,45 41,07 38,80
Grécia 27,05 31,28 33,65
Bélgica 42,22 44,03 44,75
Portugal 28,25 29,67 30,88
Áustria 40,92 42,85 43,83
Finlândia 44,61 46,41 45,64
Irlanda 33,35 32,30 29,63
Luxemburgo 34,91 38,03 39,12
Fonte: Elaborado pela autora a partir de dados de OCDE 43.

42 Base de dados disponível no endereço http://stats.oecd.org/, acesso em 30-10-2012.


43 Base de dados disponível no endereço http://stats.oecd.org/, acesso em 30-10-2012.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
34

A depreciação dos títulos públicos de longo prazo pode ser


observada na Tabela 9. Apesar de todos os países do grupo
apresentarem quedas significativas da remuneração de tais títulos,
destaca-se principalmente Portugal, Espanha, Itália e Grécia,
conhecidos como “os países do grupo do Sul”.

Tabela 9: Média anual da remuneração dos títulos públicos de


longo prazo (10 anos), por país, por fase de implantação da UEM
(1990 a 2002).

País 1ª Fase 2ª Fase 3ª Fase


1990-1993 1994-1998 1999-2002
Alemanha 7,88 6,03 4,83
França 9,09 6,69 4,90
Itália 12,82 8,77 5,13
Espanha 13,11 9,32 5,05
Países Baixos 8,03 6,03 4,97
Grécia 24,91 14,28 5,71
Bélgica 8,80 6,44 5,12
Portugal 13,74 8,35 5,14
Áustria 8,05 6,18 5,07
Finlândia 12,26 7,94 5,01
Irlanda 9,02 6,91 5,06
Fonte: Elaborado pela autora a partir de dados da EUROSTAT44.

Tal comportamento reflete a padronização das políticas


monetárias no cumprimento das exigências para a unificação
monetária, mais propriamente o segundo critério de convergência
que estipulavam taxas de juro de longo prazo não superiores a 2%
das taxas dos três países membros que obtivessem melhor
desempenho econômico no período.

Comércio Internacional
Um dos objetivos principais da integração econômica
consiste no aumento das transações comerciais entre os países
membros do grupo. Assim, uma análise do comércio externo dos
países pertencentes à Área do Euro na sua fase de implantação da
moeda única (1990-2002) pode ser observada na Tabela 10.

O volume de transações de comércio exterior é, sem duvida,


dominado pelo grupo dos países da União Europeia. Ao longo das
três fases de implantação da UEM, tem-se uma intensificação

44 Base de dados disponível no endereço http://epp.eurostat.ec.europa.eu/portal/ acesso em 22/10/2012


35 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

dessas transações por parte de praticamente todos os países do


grupo. Já o comércio interpaíses da Área do Euro atinge um
patamar de equilíbrio ao final do período, comprovando a eficácia
das medidas adotadas para estabelecimento do mercado único. A
única exceção a destacar é o caso da Grécia, que perde espaço
para suas exportações nos países do grupo e também diminui o
ritmo de suas importações dentro da Área do Euro.

A análise da evolução das transações dos países membros


da Área do Euro em relação aos Estados Unidos permite observar
um crescimento para a maioria dos países do bloco, seja em termos
de exportações, seja de importações, destacando-se a Irlanda
nesse contexto.

As relações comerciais com o resto do mundo mostram


queda de transações em geral, o que pode ser justificado pelas
medidas de estímulo às trocas dentro do bloco europeu.

Um olhar mais detalhado para as quatro maiores economias


do grupo45 analisado permite destacar que a Alemanha caminha
para um maior déficit comercial com os países da Área do Euro, já
que aumenta suas importações desse grupo, mas não altera
significativamente suas exportações para o mesmo grupo. Já a
França tem uma melhora nesse quesito, na medida em que
aumenta suas transações de venda para os EUA, diminuindo suas
compras desse país. A Itália apresenta uma pressão de aumento
do seu déficit comercial com a Área do Euro e também com a
União Europeia ao aumentar suas importações desses grupos. Por
fim, a Espanha caminha em direção a um saldo comercial
crescente com os EUA e um déficit comercial com a Área do Euro.

45 As quatro maiores economias do grupo incluem Alemanha. França, Itália e Espanha e o critério para sua
escolha recai sobre a participação no total do grupo, em termos de PIB. A média no período (1990-2002) da
participação do país no PIB do grupo que formaria a Área do Euro ficou da seguinte forma: 1º.Alemanha
(29,4%), 2º França (20%), 3º Itália (19,7%), 4º Espanha (10,8%), 5º Países Baixos (5,7%), 6º Bélgica (3,7%), 7º
Áustria (2,8%), 8º Grécia (2,6%), 9º Portugal (2,3%), 10º Finlândia (1,6%), 11º. Irlanda (1,2%) e 12º Luxemburgo
(0,3%) segundo dados da OECD disponíveis no endereço http://stats.oecd.org/, acesso em 05-12-2012.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
36

Tabela 10: Média anual da composição percentual de importações e exportações


por destino, por fase de implantação da UEM (1990 a 2002).

Importações Exportações
País Parceiro 1990- 1994- 1999- 1990- 1994- 1999-
1993 1998 2002 1993 1998 2002
EUA 6,49% 7,20% 8,00% 6,64% 7,96% 10,19%
Alemanh União Europeia 53,18% 54,49% 59,75% 56,36% 56,00% 62,82%
a Área do Euro (12) 39,68% 37,58% 40,54% 41,76% 37,30% 42,66%
Resto do Mundo (*) 40,34% 38,31% 32,25% 37,00% 36,03% 26,98%
EUA 8,73% 8,41% 8,63% 6,54% 6,59% 8,37%
União Europeia 55,84% 56,94% 63,33% 58,63% 58,10% 65,86%
França
Área do Euro (12) 44,96% 44,76% 50,71% 46,39% 43,82% 50,08%
Resto do Mundo (*) 35,43% 34,65% 28,03% 34,83% 35,31% 25,77%
EUA 5,31% 4,88% 4,91% 7,30% 7,78% 9,65%
União Europeia 58,50% 59,81% 62,36% 60,54% 58,49% 61,38%
Itália
Área do Euro (12) 48,71% 47,39% 50,09% 49,54% 44,86% 46,28%
Resto do Mundo (*) 36,19% 35,31% 32,73% 32,16% 33,73% 28,96%
EUA 7,76% 6,38% 4,85% 5,09% 4,35% 4,49%
União Europeia 60,26% 63,56% 66,42% 69,80% 69,90% 73,51%
Espanha
Área do Euro (12) 50,19% 52,26% 55,44% 59,24% 58,09% 60,04%
Resto do Mundo (*) 31,98% 30,06% 28,73% 25,11% 25,75% 22,00%
EUA 7,91% 8,66% 10,34% 3,62% 3,47% 4,82%
Países União Europeia 52,83% 50,58% 52,03% 62,18% 60,65% 72,68%
Baixos Área do Euro (12) 40,29% 35,80% 37,37% 49,29% 46,54% 55,66%
Resto do Mundo (*) 39,27% 40,76% 37,64% 34,20% 35,88% 22,50%
EUA 3,82% 3,60% 4,13% 4,92% 4,30% 5,51%
União Europeia 64,15% 66,27% 61,50% 71,26% 64,82% 60,33%
Grécia
Área do Euro (12) 53,56% 53,36% 49,71% 54,87% 45,09% 35,84%
Resto do Mundo (*) 32,03% 30,13% 34,37% 23,82% 30,88% 34,16%
EUA 6,14% 6,94% 7,16% 4,34% 4,49% 6,10%
União Europeia 73,42% 73,56% 71,94% 78,50% 78,65% 77,14%
Bélgica
Área do Euro (12) 60,68% 60,10% 58,90% 66,94% 65,43% 62,48%
Resto do Mundo (*) 20,45% 19,50% 20,90% 17,16% 16,87% 16,76%
EUA 3,38% 3,21% 2,87% 4,13% 4,74% 5,54%
União Europeia 70,81% 72,78% 77,97% 77,84% 77,48% 82,10%
Portugal
Área do Euro (12) 61,06% 63,48% 68,94% 60,63% 61,11% 67,09%
Resto do Mundo (*) 25,81% 24,01% 19,15% 18,03% 17,78% 12,35%
EUA 4,16% 5,34% 3,34% 4,98%
União Europeia 78,03% 77,65% 73,99% 75,04%
Áustria
Área do Euro (12) 64,91% 62,43% 55,70% 54,92%
Resto do Mundo (*) 17,80% 17,01% 22,67% 19,98%
EUA 6,74% 7,51% 7,08% 6,35% 7,13% 8,33%
União Europeia 58,30% 58,17% 59,18% 62,53% 58,52% 60,35%
Finlândia
Área do Euro (12) 32,93% 31,61% 32,93% 33,36% 28,81% 32,64%
Resto do Mundo (*) 34,97% 34,32% 33,74% 31,11% 34,35% 31,32%
EUA 15,12% 16,51% 15,95% 8,53% 10,17% 16,79%
União Europeia 66,65% 55,67% 57,76% 71,73% 65,95% 64,23%
Irlanda
Área do Euro (12) 21,22% 18,04% 20,53% 37,23% 36,97% 37,92%
Resto do Mundo (*) 18,22% 27,82% 26,29% 19,74% 23,87% 18,98%
Fonte: Elaborado pela autora a partir de dados de OCDE46.

(*) Exclui os países da UE e EUA.

46 Base de dados disponível no endereço http://stats.oecd.org/, acesso em 30-05-2013.


37 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

3 Algumas Considerações

A formação da Área do Euro, ao que parece, consistiu


etapa intermediária de um processo mais amplo de
integração do território europeu, pelo que se pode
depreender da documentação observada no período entre o
pós-guerra (1945-1973) e a chamada “era do
desmoronamento” (1973-1991). Precedida por uma
integração comercial, e como fechamento de um processo
de padronização das instituições ligadas às relações
econômicas, a integração monetária representada pela
criação do euro daria consistência ao ambiente para uma
então provável integração política e territorial da Europa.

As vantagens oferecidas por este cenário aos grupos de


interesse econômico envolvidos no ambiente europeu seriam
óbvias: ampliação do volume de comércio, possibilidade de
aumento na produtividade de fatores produtivos, expansão e
integração de mercado e a criação de um ambiente
institucional sólido para os negócios interregionais.

Por outro lado, a integração econômica comprometeria


gravemente os interesses localizados dos mesmos grupos, em
vários aspectos, eliminando os custos de transação e ganhos
de escala, além de afetar a autonomia de política
econômica dos Estados-nação. Ainda que a vontade de
reconstruir algo em conjunto fosse bastante forte, e até
mesmo reconhecível como honesta, a autonomia dos
Estados-nação derivados das contingências da Era dos
Impérios (1870–1914) ainda era-lhes muito cara.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
38

Como resultado, no processo de integração europeia,


existiram três tipos de países, a saber: (1) países interessados
em uma integração ampla e funcional; (2) países não
interessados na integração a princípio, mas suscetíveis se
colocados em posição vantajosa; e (3) países interessados em
uma integração, ainda que secundária, à Área do Euro. Os
países do primeiro tipo, associados aos países do segundo,
constituíram o arcabouço institucional do euro, controlando o
processo político de construção de acordos e normas ligadas
à união monetária. Restaria aos países do terceiro tipo a
anuência a uma inserção com representatividade e poder de
barganha reduzidos no sistema.

Assim foi construído o processo de instituição do euro.


Países como Alemanha e França dominaram o processo
positivo. Em sentido oposto, Inglaterra e Dinamarca, além da
Suécia, repuseram contraponto a este, obtendo diferentes
graus de autonomia em um processo originalmente
concebido como universal. Um terceiro grupo simplesmente
aquiesceu à agenda resultante do embate entre esses dois
lados. O resultado foi um processo composto por três etapas,
as quais podem ser caracterizadas da seguinte maneira:

I: Ajuste (1990–1993). Tal etapa se caracterizou pelo


ajuste das cestas de comércio exterior e de política
fiscal, com o objetivo de padronizar os ritmos de
crescimento dos países participantes da Zona de União
Monetária.

II: Convergência (1994–1998). Uma vez realizado o


conjunto de ajustes comerciais e fiscais, os países
convergiriam suas políticas cambiais, monetárias e de
investimento.
39 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

III: Implantação (1999–2002). Etapa caracterizada pela


criação da moeda única, e consolidação das funções
do Banco Central Europeu.

No período 1990–2002, de modo geral, é possível afirmar


que houve financeirização e uma chamada “imobilização
ativa” do produto. De maneira geral, ocorreu redução do
setor primário. Aparentemente, as políticas de ajuste e
convergência monetária nivelaram o dinamismo das
economias por baixo. Quanto ao desenvolvimento do
produto, em caráter geral também, observa-se um
refreamento do setor primário na fase I (1990–1993); uma
redução no setor industrial, que parece resultante de uma
primeira competição predatória pelos mercados abertos, na
fase II (1994–1998), com financeirização plena, ou seja,
predomínio completo do setor financeiro, na fase III (1999–
2002).

Durante a implantação do euro, apenas Áustria e


Alemanha têm observado uma redução na participação do
consumo privado no Produto Interno Bruto. Isso significaria, à
primeira vista, que a estrutura de composição do produto,
quanto aos agregados, teria criado apenas espaço para o
governo ou para os estoques de capital naqueles dois países.
Mas, a observação dos dados fiscais indica que tal não se
refletiu em aumento da participação do governo na
composição do PIB de Alemanha ou Áustria, ou mesmo na
formação bruta de capital. É provável que tal redução tenha
relação com o comércio externo à Área do Euro.

Ao final do período de implementação da moeda


única, alguns países – notadamente Portugal e Grécia –
sofreram redução em suas taxas de poupança líquida. Isso
indica um movimento tendencial rumo à estagnação. Nesse
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
40

sentido, outros países apresentaram uma significativa queda


em sua formação bruta de capital, como Alemanha e França,
por exemplo, o que reforça a construção do quadro de
estagnação então presente.

A criação da Área do Euro parece ter servido a um


propósito mais imediato, qual fosse, o de intensificar as
relações comerciais entre os países integrantes. Há uma
concentração progressiva da demanda em países como
Alemanha e França, entre 1990 e 2002. Contudo, não houve
resolução de problemas que se faziam presentes desde os
anos 1970 na economia europeia – o desemprego e a
redução progressiva da rede de proteção social derivada do
Estado de Bem-Estar – os quais foram apresentados pelos
governos dos países membros como resolvíveis pela
integração econômica e monetária. A taxa de desemprego
permaneceu na casa dos dois dígitos por todo o período 1990-
2002. Tais resultados levaram à busca por novas soluções e o
Tratado de Lisboa, assinado em 2007, traria como prioridade,
políticas relativas à capacitação de mão de obra e criação
de emprego.
41 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

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desafios. Lisboa:Edições Sílabo, 2005ARRIGHI, G. A ilusão do
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43 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Uma Interpretação da Revolução Burguesa no


Brasil na Visão de Florestan Fernandes1

Glinzer Santa Cruz da Silva Costa2

RESUMO
A revolução burguesa no Brasil ocorreu entre o último quartel do século XIX
e o primeiro quartel do século XX, seus agentes mais destacados foram o
fazendeiro cafeicultor e o imigrante estrangeiro, seu locus foi nas regiões
brasileiras do Vale do Paraíba e Sudeste, o focus foram os novos
comportamentos políticos, culturais e econômicos que surgiram dentro da
nova estrutura econômica colonialista periférica e dependente do Brasil.
A forma interpretativa do sociólogo Florestan Fernandes sobre a revolução
burguesa no Brasil colonial é integrativa e totalizadora entre os agentes,
objetos e processos na ordem econômica, política, cultural e sociológica;
todavia, este texto ressalta alguns conteúdos econômicos de forma
evolutiva, sem desconsiderar seus agentes nos processos mais integradores.

Palavras-Chave: Revolução, Classes Sociais, Brasil, Florestan Fernandes

ABSTRACT
The bourgeois revolution in Brazil took place between the last quarter of the
century XIX and the first quarter of the century XX, his most outstanding
agents were the farmer coffee-grower and the foreign immigrant, his locus
was in the Valley of Paraiba and in the South-east Brazilians, the focus it was
the new political, cultural and economical behaviors that appeared inside
the new economical colonialist periphery and dependent structure of
colonial Brazil.
The interpretative form of the sociologist Florestan Fernandes on the
bourgeois revolution in colonial Brazil is integrative and tantalization
between the agents, objects and processes in the economical, political,
cultural and sociological order; however this text emphasizes some
economical contents of evaluative form, and his agents do not disregard in
more integrative processes.

Keywords: Revolution, Social Classes, Brazil, Florestan Fernandes

1. INTRODUÇÃO

1 FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: Ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro,
Zahar Editores, 1976, (2a ed.), (Biblioteca de Ciências Sociais). Esta primeira parte analisa apenas o “Capítulo
3: O desencadeamento histórico da revolução burguesa” (p. 86-145). Na segunda parte será feita a análise do
“Capítulo 4: Esboço de um estudo sobre a formação e desenvolvimento da ordem social competitiva” (p. 145-
197). Texto apresentado em 02/07/2013 e aprovado em 10/09/2013.
2 Professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade – FEAC/Universidade Federal de

Alagoas – UFAL; Doutor em História Econômica pela Universidade de Oviedo (Espanha).


Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
44

As alterações políticas que condicionaram a reorganização


da sociedade e da economia brasileira a partir da última metade
do século XIX, indo até a primeira metade do século seguinte,
caracterizaram a revolução burguesa no Brasil na visão do
sociólogo Florestan Fernandes [1976].
Entretanto, o sistema econômico colonial brasileiro se
transformou, desde o início daquele marco histórico, numa espécie
de capitalismo comercial tupiniquim, quando inseriu o país na
organização da economia mundial através de novos padrões
voltados para atividades e operações mercantis nos setores de
importações e de exportações, nos mecanismos monetários, do
crédito, financeiro e bancário conforme constatou Florestan
Fernandes.
Todavia, esses novos padrões que qualificavam um novo
sistema da economia colonial brasileira se formaram através do
surgimento de novas organizações empresariais e econômicas e o
seu comportamento estava dotado de modernas tecnologias, de
capitais e de recursos humanos especializados.
Surgiram, também, substratos sociais, através das
transformações na configuração da sociedade local, rearranjos
sociais se conformaram com os novos agentes externos - os
imigrantes estrangeiros - quando em conjunto criaram novos
paradigmas econômicos e sociais similares aos das economias
centrais e mais focados nas atividades mercantis de exportação e
importação.
O autor faz uma análise sociológica da revolução burguesa
no Brasil de forma integrativa e totalizadora; entretanto, o enfoque
dado neste texto está mais voltado para os conteúdos econômicos
evolutivos, considerando seus agentes, os objetos e os processos
integradores.
Os principais agentes econômicos internos e externos – o
fazendeiro do café e o imigrante, respectivamente – construíram um
sistema colonial, todavia, moderno porque inseriu a economia
colonial local na economia mundial através de um sistema de
45 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

poder: o econômico, voltado para o lado mercantil e o poder


político coercitivo próprio da aristocracia agrária. As vantagens
econômicas dessa aristocracia eram auferidas através do
desenvolvimento econômico urbano, então emergente3.
Através da burocratização da dominação patrimonialista, o
poder político, também, resultou na elevação do status senhorial,
pela captação do excedente econômico, que se destinava ao
crescimento horizontal da grande lavoura exportadora de café. E a
redistribuição da renda se dava entre a estrutura capitalista do
sistema de mercados e a divisão do trabalho social.
O perfil econômico do burguês cafeicultor resultou num
agente gestor da grande lavoura do café, que era privilegiado pelo
capitalismo comercial e financeiro. Isso ocorreu
concomitantemente com uma evolução estrutural do meio social
brasileiro. A concentração, a centralização do capital comercial e
financeiro aparecia em conexão com a concentração do capital
industrial, posteriormente, à década de trinta, e nesse caso o
principal agente passa a ser o imigrante estrangeiro.
Dentro ainda da dimensão histórica da revolução burguesa
no Brasil – que vai de 1890 a 1930 -, uma nova mentalidade
capitalista se cristaliza internamente com o ingresso do imigrante,
quando a sua racionalidade econômica, provocava mudanças na
tradição cultural, na desagregação da ordem escravocrata e
senhorial, na alteração da estratificação estamental da sociedade,
na especialização econômica, na introdução de novos métodos e
técnicas de análise econômico-financeira e, finalmente, as
conexões internacionais deram o caráter econômico à explicação
de fatos sociológicos, p.ex., o padrão do equilíbrio do poder
político, as ideologias das elites nativas no poder, etc.
Finalmente, a análise segue a forma do discurso do autor, sua
estrutura, o seu raciocínio, sua dialética histórica e a sua lógica na
interpretação dos eventos sociológicos, políticos, culturais no

3 Para compreender a geração e a apropriação do excedente e a manifestação material da existência de um


sistema de poder nas sociedades capitalistas veja FURTADO, Celso. Prefácio à nova Economia Política. São
Paulo, Paz e Terra, 1976, (p. 29-30).
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
46

cenário e estado da arte econômica, isso caracterizou a burguesia


no Brasil colonial.
Convém ressaltar que os comentários interpretativos da obra
de Florestan Fernandes estão, metodologicamente, no
desenvolvimento do texto e nas notas de rodapé, evidentemente
seguindo a cronologia e a sua dialética, quando o autor aborda os
agentes e as categorias econômico-sociais integrados a processos
sócio-econômicos.

2. A REVOLUÇÃO BURGUESA NO BRASIL: LAÇOS E TRAÇOS POLÍTICOS,


CULTURAIS E ECONÔMICOS

O desenvolvimento histórico da revolução burguesa no Brasil


conforme o pensamento de Florestan Fernandes [1976] ocorreu,
mais profundamente, por alterações políticas, sendo que estas
implicaram na reorganização da sociedade e da economia.
Todavia, o país inseria sua economia colonial no mercado mundial,
ao mesmo tempo, em que criava seus mercados internos. Isso
equivalia dizer que o modelo colonial vigente aqui era,
aproximadamente, igual, ou equivalente, à organização
econômica das economias centrais daquela época e se
processava no seguinte período: o fim do século XIX até o início do
século XX4. Todavia, a revolução burguesa na economia colonial
brasileira se deu, mais acentuadamente, por forças controladoras
de fora nas relações de negócios de exportação e de importação
[Fernandes, 1976:89].
Entretanto, o país com sua economia colonial e na condição
de economia periférica e dependente favoreceu a criação de

4 Para FERNANDES, Florestan. A sociologia no Brasil. Rio de Janeiro, Vozes, 1997, outra obra de sua autoria,
este autor afirma que o período colonial brasileiro compreende a seguinte dimensão temporal, ou seja, vai do
século XVI até o início do século XIX. Quando no primeiro decêndio do século XIX a família real se transfere
para o Brasil, como conseqüência da invasão de Portugal por tropas francesas – naquela época surgem os
primeiros ofícios administrativos e financeiros, criados em núcleos urbanos de atividade intelectual, em função
de contatos com os centros europeus de produção artística, cultural, científica, intelectual e técnica [p.17].
Enfatize-se que o conceito de Sociologia para Fernandes é a análise de fenômenos histórico-culturais e
econômicos [p.25]. Sobre os traços burocráticos que perpassaram o período colonial brasileiro e chegaram à
república veja COSTA, Glinzer S.C. da Silva. “A gestão pública brasileira, alguns elementos inovadores que
perpassam desde o Brasil Colonial até o Brasil Republicano”. São Paulo, Revista de Economia Política e
História Econômica, ano 08, n. 25, jun/2011, p. 72-86. Veja também a seguir a NR n. 6.
47 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

mercados internos (a partir daquele período) e esses ocorreram


geralmente nos centros urbanos, dado a dinamicidade da sua
economia primário-exportadora com as relações econômicas
internacionais.
Enquanto o núcleo vital da economia continuava sendo o
setor primário-exportador e que produzia para os mercados interno
e externo, o fator mais importante desse setor – o voltado para o
mercado externo - era a especialização na produção agrícola para
a exportação do café. No caso brasileiro a economia produzia para
fora e consumia de fora. Essas circunstâncias restringiram
consideravelmente a amplitude e a intensidade do campo dentro
do qual se processou, inicialmente, a absorção dos modelos de
organização da vida econômica que podiam ser transplantados
[Fernandes, 1976:87].
No processo da geração do excedente econômico em
novos setores dinâmicos da economia brasileira, em atividades de
exportação e importação, a partir dos mercados internos emergiu
um capitalismo moderno e extracolonial, conforme afirma
Fernandes [1976:88]. Como também permitiu que uma classe
senhorial, típica do colonialismo vigente, desse lugar a uma
moderna burguesia que acumulou e aplicou a apropriação do
excedente num novo padrão de consumo social e em
investimentos no setor produtivo da cafeicultura e noutros setores
econômicos emergentes, tais como o de transportes e
comunicações, além dos setores financeiros, bancários, de
comércio e serviços diversos5.

5 Veja RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro – A formação e o sentido do Brasil. São Paulo, Companhia das
Letras, 2006; para este autor, (...) no conjunto dessa população colonial (apostólica e romana), destaca-se uma
camada superior, desligada de tarefas produtivas formada por três setores letrados, tais como: uma burocracia
colonial comandada por Lisboa; outra religiosa; e a última que viabilizava a economia de exportação [p.112].
A camada ligada ao setor produtivo detinha o sistema de fazenda e alcançou, com a implantação das
grandes lavouras de café, um novo auge só comparável ao êxito dos engenhos açucareiros. Seu efeito crucial
foi reviabilizar o Brasil como unidade agro-exportadora do mercado mundial e como um próspero mercado
importador de bens industriais [p.335].
O que caracteriza e tipifica essa camada é a oligarquia cafeeira, como detentora dos maiores
poderes políticos no período imperial e no republicano, é responsável por algumas deformações mais profundas
da sociedade brasileira. A principal delas decorre de sua permanente disputa com o Estado pela apropriação da
renda nacional [p.364].
Seu agente ou sujeito é o velho senhor de engenho que é substituído por um patronato gerencial de
empresas que caíram em mãos de firmas bancárias. Os filhos bacharéis dos antigos senhores, todos eles
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
48

O que caracterizou esse modelo colonial brasileiro foi a sua


forma de capitalismo dependente, ou seja, o conjunto de uma
estrutura de mercado heteronômico – um sistema de ética segundo
o qual as normas de ação provêm de fora –; e autonômico, isto é,
um sistema que possui relativa autonomia. Entretanto, mais
importante ausência de conteúdo que poderia completar esse
conceito é a inexistência de projetos de desenvolvimento
econômico numa completude para a moderna burguesia brasileira
emergente. Por outro lado, a autonomização política significa para
Fernandes dois conteúdos, no primeiro o domínio dos importadores
europeus; no segundo a produção da grande lavoura exportadora.
Dois eventos históricos anteriores à revolução burguesa no
Brasil, que sem sombra de dúvida devem ter contribuído bastante
com aquela revolução, foi a transferência da Corte Portuguesa
para a colônia brasileira em 24 de janeiro de 1808 e após quatro
dias à sua chegada à Bahia a abertura dos portos brasileiros às

citadinos, têm agora como as “fazendas” a cota de ações que restou da propriedade familiar e, sobretudo, o
erário público de que se torna uma das principais clientelas [p.276].
Contudo na obra de PRADO JR., Caio. Formação econômica do Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1986,
(33a ed.), para se compreender o caráter da colonização brasileira, (especificamente no capítulo 2), na Europa
do século XV originam-se as empresas comerciais levadas a efeito pelos navegadores dos principais países,
tais como, Portugal, Espanha, e a Itália, posteriormente, a França, Inglaterra, Holanda, Suécia e a Dinamarca. O
comércio interno europeu era o que interessava; e esse seria abastecido por iguarias, metais preciosos,
madeiras de construção ou tinturarias, peles de animais e a pesca, tal estado da arte ocorre entre os séculos
XV-XVI. Nesse período, a idéia de povoar não ocorre inicialmente a nenhum dos países citados, logo a
colonização principia pelo estabelecimento de feitorias comerciais [p.14-15]. De forma resumida, o autor afirma:
a empresa comercial, mais complexa que a antiga feitoria, mas mantendo o caráter comercial, dá o verdadeiro
sentido da colonização tropical, de que o Brasil é uma das resultantes; logo a essência da nossa formação foi
fornecer o açúcar, tabaco; mais tarde, metais preciosos; depois o algodão e, por fim, o café. Esse comércio
reorganiza a economia e a sociedade da colônia brasileira, a partir dos seus caracteres de produtora e mercantil
[p. 22-23].
Entretanto, para FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil.São Paulo, Editora Nacional,
1976, (14a ed.), contribuindo para a compreensão da colonização brasileira, ele argumenta através de um
conjunto de fatores que contribuíram para o êxito da grande empresa colonial agrícola européia foi a inserção
de uma mercadoria – o açúcar - em grande escala de produção num mercado de dimensão mundial – o
mercado europeu, a partir do século XVI, quando Portugal desenvolveu tecnologias para sua produção nas ilhas
do Atlântico [p. 9-12]. A etapa colonial fundamentada nesse processo de ocupação social e econômica se
encerra na segunda metade do século XVII, quando Portugal perdia para o comércio oriental, desorganizado o
comércio do açúcar, não dispunha de meios para defender o que lhe sobrara das colônias numa época de
crescente atividade imperialista. Portugal compreendeu, assim, que para sobreviver como metrópole colonial
deveria ligar o seu destino a uma grande potência, o que significaria necessariamente alienar parte da sua
soberania. Os acordos concluídos com a Inglaterra em 1642, 1654 e 1661 estruturaram essa aliança que
marcará profundamente a vida política e econômica de Portugal e do Brasil durante esses dois séculos
seguintes [p. 32-38].
49 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

nações amigas, especialmente, ao comércio britânico, pondo um


fim ao Pacto Colonial6.
Todavia, os agentes econômicos que promoveram essa
revolução burguesa foram o fazendeiro do café, antes o senhor
rural, na dimensão histórica da burguesia brasileira representado por
seu status social, conforme Fernandes [1976:103]. O outro agente foi
o imigrante que aqui chegou fora do contexto do tradicionalismo,
quer escravocrata, ou como uma mão-de-obra livre, porém,
pertencente a uma divisão internacional do trabalho mais
especializada para o setor agropecuário. Ambos agentes
romperam com o passado colonial, anteriormente, controlado pela
aristocracia agrária7.
Entretanto, os agentes dessa aristocracia agrária e
cafeicultora das regiões brasileiras do Vale do Paraíba e do Sudeste,
também, dispunham de recursos técnicos, financeiros, humanos e
institucionais, que levaram à reintegração (grifo nosso) da
economia brasileira no sistema econômico internacional. A
expressão reintegração completa a interpretação de Darcy Ribeiro
sobre o que se passou após o ciclo da economia açucareira. Essa

6 A Carta Régia promulgada pelo Príncipe-regente de Portugal Dom João de Bragança foi assinada no dia 28 de
janeiro de 1808, na Capitania da Baia de Todos os Santos, em Salvador, foi a primeira experiência liberal do
mundo após a Revolução Industrial.(...). A carta marcou o fim do Pacto Colonial, o qual na prática obrigava a
que todos os produtos das colônias passassem antes pelas alfândegas em Portugal, ou seja, os demais países
não podiam vender produtos para o Brasil, nem importar matérias-primas diretamente das colônias alheias,
sendo forçados a fazer negócios com as respectivas metrópoles. In: <wikpedia.org> [acesso em mar/2013].
7 Na formação do povo brasileiro de RIBEIRO [2006, op.cit.] o sistema de fazenda cafeicultora implantado no

Brasil, a partir da segunda metade do século XIX, visava a produção de artigos para a exportação e substituiu
as relações de solidariedade, de companheirismo e de compadrio do caipirismo pela única forma de
relacionamento, as relações comerciais. O primeiro modelo empresarial das fazendas cafeicultoras é o modelo
escravocrata, quando o fazendeiro ainda residia na propriedade, na vivenda senhorial em oposição à senzala.
Somente na segunda metade do século XIX os cafeicultores se constituem numa oligarquia nacional com
superpoderes. Esse segundo modelo é, relativamente, mais bem sucedido que o modelo da sucrocracia, p.q.
controla todo ciclo produtivo do café até a exportação. As novas fazendas de café estruturadas para um novo
sistema de colonato são monocultoras e extensivas no plantio do café, o fazendeiro – ora visto como
empresário e também como barão do café – é um absenteísta, não mais reside na fazenda e sim na cidade,
administra e dirige seus negócios à distância, por intermédio de gestores. O sistema de fazendas somente
atingiu o êxito que havia atingido os engenhos de açúcar, cujo efeito crucial foi re-viabilizar o Brasil como
unidade agro-exportadora do mercado mundial e como um próspero mercado importador de bens industriais [p.
352-353; veja também as pgs. 355, 357 e 362]. Por outro lado analisando o papel de outro agente da revolução
burguesa no Brasil a imigração européia maciça coloca milhões de trabalhadores à disposição da lavoura
comercial, essa nova massa vinha de velhas sociedades estratificadas e disciplinadas para o trabalho
assalariado e que levaria alguns, posteriormente, à condição de pequenos proprietários [p. 351-352]. Noutra a
obra do mesmo autor Gentidades. Porto Alegre, L&PM, 2011, ele no primeiro ensaio emblemático, desse livro,
analisa Casa Grande & Senzala de Gilberto Freyre e discute a sociedade patriarcal, sua formação econômico-
social e a sua configuração histórico-cultural, inclusive sob o ponto de vista crítico da ausência no
aprofundamento da análise freyriana dessas categorias sociais [p. 11-30].
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
50

nova aristocracia agrária vai se transformar, como afirma Fernandes


[1976:93], numa espécie de sócio menor da burguesia
patrimonialista [veja as NR´s n´s. 10 e 12].
O conceito de alto comércio, como conseqüência da
inserção da economia colonialista brasileira na economia mundial
se deu pela participação das agências empresariais, com técnicas
de organização e comandadas por economias centrais além da
transferência de tecnologias e capitais sem, contudo, possuir o
caráter de uma relação entre matriz e filiais [veja a N.R. n. 8].
Ambos, os agentes econômicos, inseridos no ambiente de alto
comércio, o fazendeiro do café e o imigrante, contribuíram com a
extinção do estatuto colonial o que de alguma maneira com a
formação de um Estado nacional independente.
Novos padrões capitalistas resultaram na ruptura do antigo
modelo colonial para um novo sistema de capitalismo comercial.
Com a participação do agente o elemento burguês que surgiu
desse novo cenário econômico substituindo grande parte da
aristocracia agrária; todavia, uma parte dessa aristocracia sofreu
algumas mudanças adaptativas ao novo processo sócio-
econômico, como exemplos, a grande lavoura de produção
intensiva e extensiva, novas técnicas produtivas, a diversificação
agrícola, o aporte de capitais externos, etc. E, comenta Fernandes
que pela primeira vez emergia na cena histórica brasileira o
verdadeiro palco do burguês, ou seja, num ambiente econômico
de mercado que exigia situações e comportamentos compatíveis
de ordem econômica, social e política com o espírito burguês e a
concepção burguesa do mundo [1976:96].
Continuando, com a interpretação da revolução burguesa
no Brasil esta é também, acima de tudo, uma interpretação
sociológica [reveja a NR n. 4], por conta da substituição de papéis
entre classes sociais, quando uma aristocracia agrária cedeu lugar
e espaço para uma burguesia comercial. No nexo sócio-econômico
da evolução do capitalismo no Brasil essa evolução se deu, entre
outras áreas e setores, na diversificação agrícola monocultora do
51 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

café, com a criação e a consolidação dos mercados internos e


com o surgimento de novos padrões de consumo social, pela
transferência cultural das unidades econômicas importadas
[Fernandes, 1976: 97].
O processo de modernização econômica estava ligado aos
efeitos distintos, ou seja, ao controle externo sobre a vida
econômica nacional e com isso se criou um pacto de lealdade e
simpatia entre a pequena burguesia de comerciantes portugueses
e proprietária de empresas importadoras e exportadoras de
pequeno porte, especialmente, aquelas que participavam do alto
comércio importador e de organizações de origem estrangeira.
Todavia, essas organizações estrangeiras se relacionavam com o
Brasil usando procedimentos econômicos liberais, eqüitativos e
neutros, entretanto, sem uma gestão de estar lidando no contexto
de uma relação matriz-filiais8.
Por outro lado, a burguesia comerciante e a clientela que
consumia os artigos importados e aquela burguesia regional
dependiam dos negócios de exportação, ambos pertenciam aos
estamentos senhoriais [Fernandes, 1976: 98]9.
A ligação entre a burguesia nacional (nos seus diversos
estamentos) e a aristocracia agrária com a burguesia empresarial
estrangeira ocorria num clima de relacionamento de normalidade,
pressupõe-se que um estado de liberalismo econômico regulava
essas relações de comércio, com aparente vantagem comparativa

8 Para se entender essa relação econômica entre matriz-filiais, na forma de controle, transferência de capitais,
difusão tecnológica, localização, apropriação do excedente produzido pelo trabalho, a mais-valia, os
investimentos estrangeiros e o movimento de capitais associados às operações das empresas multinacionais
etc. dentro de um paradigma próprio da ingerência hegemônica e econômica, o que não ocorria no Brasil, no
cenário da revolução burguesa, até mesmo porque essa relação se materializa entre empresas transnacionais,
geralmente da espécie jurídica das sociedades anônimas, e suas filiais; veja principalmente a obra de HYMER,
Stephen. H. The International Operations of National Firms: A Study of Direct Foreign Investment. Cambridge,
MIT Press, 1976. (Tese de doutorado, publicada postumamente). Esse autor faz a análise desse processo de
relações entre matriz-filiais e aplica conceitos explicitamente da economia marxista. Também veja a
interpretação dessa obra em COHEN, R.B. et.all. The Multinational Corporation: A Radical Approach. Papers by
Stephen Herbert Hymer. Cambridge, University Press, 1979.
9 Em Max Weber (1864-1920) o conceito de estamentos é uma forma de estratificação social, com camadas

mais fechadas que classes sociais, e mais abertas que castas; além de possuir menor mobilidade social.
Geralmente caracteriza determinadas sociedades feudais (durante a Idade Média, período que compreende os
séculos V-XV); todavia, esse grupo social não é propriamente um grupo homogêneo estratificado, porém possui
poderes sobre determinados campos de atividades sociais e econômicas; in: <wikpedia.org> [acesso em
mar/2013].
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
52

para o Brasil. É oportuno lembrar que esse liberalismo começou a


declinar a partir do fim do século XIX, quando se aprofundou e se
consolidou o sistema econômico do capitalismo financeiro no
mundo como um todo.
Dado esse estado da arte sócio-econômico a aristocracia
agrária possuía mais vantagens, sob certos aspectos, com relação à
burguesia de comerciantes e a nova burguesia agrária do café,
porque aquela possuía o monopólio do poder político [Fernandes,
1976: 99].
Continua Florestan Fernandes explicando que a economia
agrária patrimonial, mesmo como um setor de captação de um
excedente econômico maior que aquele gerado pela burguesia do
capital comercial, essa não obteve a eficiência econômica da
burguesia do capital comercial, devido ao elevado custo
econômico do status senhorial, o excesso de burocracia da
dominação patrimonialista e a não inversão no seu quadro
reprodutivo.
O setor novo, como um setor da estrutura do capitalismo
mercantil, onde ali ocorria uma acumulação estamental de capital,
o estado heterônimo do sistema econômico global fazia com que
esse se inserisse no sistema capitalista global e na dinâmica do
capitalismo mercantil. Segundo o autor um setor novo (...) se
conformava nos requisitos do capitalismo mercantil numa situação
de mercado que combinava, nuclearmente, fatores heterônimos e
autonômicos de integração e de diferenciação do sistema
econômico global [Fernandes, 1976:101-102].
Pode-se entender que o perfil do fazendeiro do café não
fazia parte da aristocracia rural, entretanto, era um estamento
dentro daquela aristocracia, enquanto agente econômico, era
forçado a operar com a riqueza fora do contexto econômico da
grande lavoura; ou seja, cambiou o perfil de senhor rural
patrimonialista pelo do grande proprietário [Fernandes, 1976:104].
Entretanto, com a revolução burguesa aquele personagem se
identificou com os novos papéis e perfis – o de coronel e homem de
53 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

negócios -; como classe social assume uma aristocracia agrária,


com novos e maiores poderes políticos e econômicos para re-
organizar um Estado nacional independente, ideologicamente esse
era o anseio dessa burguesia desde o fim do século XIX10.
Segundo Fernandes [1976:106-108] o senhor rural não tomava
consciência nem acolhia as considerações e as pressões
puramente econômicas, decorrentes da dimensão burguesa de sua
situação de interesses e dos mecanismos econômicos do mercado
mundial. A imagem dessa aristocracia – o fazendeiro do café –
pressupunha a heteronomia do senhor agrário e uma estrutura
compatível com os interesses e os valores da aristocracia agrária.
O homem de negócios, novo perfil que a aristocracia agrária
assumiu e deu significado aos novos papéis econômicos no
capitalismo comercial e financeiro no Brasil, como agentes são
comerciantes, banqueiros, empresários do ramo imobiliário, dente
os principais perfis. Afirma Fernandes [1976:109] esses fazendeiros
eram, impropriamente falando, absentistas e lograva uma maior
penetração na realidade econômica em virtude da participação
de papéis especificamente capitalistas no setor urbano-comercial e
financeiro.

10 Segundo KULA, Witold. Investigaciones históricas sobre la Historia de las empresas y renta nacional. Buenos
Aires, Editor 904, 1977; o conceito de empresário é um organizador da atividade econômica e proprietário dos
meios de produção [p. 4]. Em J. A. Schumpeter [1883-1950] um empreendedor, quando inovador, não
necessariamente inventor. Para J. B. Say [1767-1832] um agente econômico em busca do lucro, pela aplicação
do conhecimento em P&D na empresa; quase que se confunde com o empresário industrial, empreendedor,
que cria produz e arrisca. Entretanto, para Luiz Carlos Bresser Pereira seu conceito de empresário
complementa o conceito de Schumpeter e acrescenta a inovação e a acumulação de capital (...) ao considerar
que a atividade do empresário capitalista é, além de inovar, a de integrar o desenvolvimento científico e
tecnológico ao processo de produção, de lançar novos produtos no mercado, de partir em busca de novos
mercados; e, ao mesmo tempo, de tomar as decisões finais sobre o processo de acumulação de capital, ou
seja, onde, quando e quanto investir. Finalmente, para Fernando Henrique Cardoso [1964], unindo as
interpretações de Schumpeter e Bresser Pereira, este autor inclui a ousadia, como uma conseqüência da fé,
quando afirma que: toda criação é um ato de fé (grifo nosso), mesmo quando tenha a motiva-la a simples
vontade de poder e riqueza.
Entretanto, na sua obra CARDOSO, F. H. Empresário industrial e desenvolvimento econômico no
Brasil. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1964, o autor discute a relação entre o empresário industrial e o
desenvolvimento econômico do Brasil, desde o final do século XIX, e enfatiza que o crescimento industrial
brasileiro se deu em surtos descontínuos desde aquele período.
Contesta PEREIRA, Luiz Carlos. “Empresários, suas origens e as interpretações do Brasil”. in:
<anpocs.org.br> [acesso em mar/2013], com sua pesquisa quando apresenta a tese de que os empresários
brasileiros se originaram de famílias imigrantes e não em famílias brasileiras ligadas ao café. Os empresários
eram imigrantes que se dedicavam à importação. A sua discussão central é sobre as origens étnicas e sociais
dos empresários; e não sobre as relações econômicas entre o café e o início da industrialização brasileira.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
54

A evolução da fazenda de café no contexto da sociedade


global foi o primeiro passo para a grande lavoura exportadora e,
posteriormente, para a fazenda de café ideal, i.e., aquela auto-
suficiente economicamente, quando o fazendeiro passou a
desempenhar novos papéis, tais como, a supervisão administrativa,
a associação com intermediários, a geração de novos negócios
consorciados ou não à cultura do café, ou fora do setor; e na última
etapa levava o excedente econômico a financiar o crescimento
horizontal da grande lavoura exportadora, dentre outras
destinações [Fernandes, 1976:110]11.
O fazendeiro do café se transformou em agente econômico
capitalista, quando se inseriu no marco histórico de 1890/1930 e
somente passou a agir livremente como tal a partir de uma
evolução na estrutura econômica e social que permitiu o
surgimento de mercados internos, daí então o senhor agrário (ou
fazendeiro de café) se projetou como essa espécie de agente
gerando um novo processo de acumulação a partir dos interesses
criados pela concentração do capital comercial e financeiro.
Entretanto, afirma Fernandes [1976:112] quando o burguês emerge
do senhor agrário, o fazendeiro de café já deixara de ser parcial ou
preponderantemente, “homem da lavoura” ou produtor rural, e se
convertera em puro agente, mais ou menos privilegiado, do
capitalismo comercial e financeiro.

11 Comparando os cenários da revolução burguesa brasileira com os da revolução capitalista na Rússia, numa
tentativa de aproximações interpretativas busca-se em LENIN, V. I. El desarrollo del capitalismo en Russia.
Moscú, Editorial Progreso, 1979, (5ª ed.), alguns elementos conectivos, nesse trabalho o autor citado tem como
objetivo geral explicar como se formaram os mercados internos para o capitalismo russo, deixando de lado
inicialmente o mercado externo, num contexto teórico do início do século XX e levando-se em conta,
exclusivamente, todos os aspectos econômicos desse processo nas províncias do interior da Rússia, da sua
evolução capitalista na agricultura, na formação de uma agricultura mercantil-capitalista; entre as primeiras
fases do capitalismo industrial, precisamente, e o surgimento da pequena indústria agrícola, como segunda
fase. Posteriormente, o autor faz a análise do desenvolvimento da grande indústria mecanizada.
Em resumo, o desenvolvimento do capitalismo russo se dá através da industrialização, a partir do início do
século XX, quando a pequena produção mercantil manufatureira e agrícola, que se caracterizam pela técnica
manual-artesanal nas empresas, pequenas fábricas, são absorvidas pela grande indústria mecanizada e
automatizada.
O papel histórico e progressivo do capitalismo russo pode, também, resumir-se em duas breves teses: no
aumento da força produtiva do trabalho social e na sua socialização; noutra tese, nas distintas fases do
desenvolvimento da economia nacional russa que não cabe aqui interpretá-las [p. 527-582].
Finalmente o autor chega a uma conclusão fatídica na sua análise do regime sócio-econômico e,
conseqüentemente, da estrutura de classes na Rússia, naquele período: (...) partiendo de esta base económica,
se comprende que la revolución em Rusia, es, enevitablemente, uma revolución burguesa [p. 15].
55 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

O fazendeiro de café quando se transferiu para as cidades,


abandonando o estilo de vida do coronel patriarcal12 e
patrimonialista, intensificou os traços da revolução burguesa
diretamente na formação, consolidação e expansão da economia
urbana, através de uma nova concentração e capitalização do
capital comercial e financeiro [Fernandes, 1976: 118].
Entretanto, na opinião do autor, outra conexão da revolução
burguesa no Brasil se deu naquele ambiente urbano, todavia com a
concentração industrial do capital e o seu principal agente foi o
herói imigrante [Fernandes, 1976:118:N.R.16].
A revolução burguesa extrapolou os interesses daquele
homem de negócios, o fazendeiro do café, alcançou também uma
nova dimensão econômica de interesse nacional e essa tendência
se deu através de dois argumentos a seguir, cujo cenário é o fim do
século XIX, primeiro pela formação e acumulação de capital do
setor cafeeiro em atividades de exportação, especialmente, da
grande lavoura mono exportadora; e em seguida, através da fusão
do capital comercial com o capital financeiro, o que resultou aqui
no Brasil, como um fenômeno diferente, ou seja, a criação de novos

12 Os ensaios de Oswald de Andrade (1890-1954) A crise da filosofia messiânica e A marchas das utopias
representam o pensamento brasileiro no início do século XX tem como base a filosofia de Nietzsche. Contudo, o
pensamento de Friedrich Nietzsche (1844-1900) tem como objetivos gerais a valoração e o sentimento como
crítica à origem das coisas sob o ponto de vista do valor da origem e a origem dos valores. Os hemisférios
culturais que Oswald discute são dois o matriarcado, com a propriedade comum do solo e a condição mater dos
filhos de direito materno, não se constituía uma classe social, isso ocorre na Idade Primitiva. Todavia, o
primitivismo, sob o ponto de vista antropológico, poderia ser definido na superioridade do estilo de vida simples
das sociedades pré-industriais, p.ex., conforme o estilo de vida das culturas africanas, pré-colombianas ou da
Oceania. Outrossim, essa expressão somente passa a ser utilizada a partir do século XX no âmbito das artes de
vanguarda e sua crítica. De alguma maneira o primitivismo brasileiro é um certo primitivismo do pintor
surrealista André Breton (1896-1966). Também, uma aproximação ao marxismo, à psicanálise de Sigmund
Freud (1856-1939) e uma aplicação do pensamento filosófico de Nietzsche, assim o fez Oswald de Andrade
para fundamentar o seu pensamento antropofágico, no início do século XX, indo até ao matriarcado de
Pindorama. Nesse período, a propriedade privada era uma herança patriarcal linear, o que implicava na
dominação de um grupo social, aquele que detinha a propriedade, e o papel do Estado era uma representação
desse grupo. O segundo hemisfério é o patriarcado que se caracteriza pela posse da propriedade privada,
nesse cenário o Estado é dominado por essa classe social através do poder político. Segundo Oswald de
Andrade o patriarcalismo brasileiro é messiânico. O messianismo é uma crença divina: o envio de um ser divino
libertador que libertará um povo oprimido. Na história do Brasil vários são os movimentos sociais fundados por
líderes religiosos, inclusive com traços messiânicos desde os jesuítas; incluindo a burocracia da ordenação
religiosa portuguesa; esses conteúdos lhes dão os caracteres de reacionário e conservador. Oswald de
Andrade desprezava as elites brasileiras e como ideologia ele as identificava através do ódio de classe e o
desprezo das elites pelo povo brasileiro, isso viria a ser uma das raízes da contracultura, mas esse é outro
assunto e não será abordado aqui. Por fim, um texto que trata dos ensaios de Oswald de Andrade é o ensaio de
PAIVA JR., Yago E. B. de. “Genealogia do matriarcado do Pindorama”. São Paulo, Revista Sociologia, ano iv,
ed. 36, p. 54-59, ago/set 2011.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
56

agentes monetários e financeiros, os bancos comerciais públicos e


privados, o que se pôde denominar de capital bancário brasileiro13.
Noutro aspecto da revolução burguesa no Brasil com o
surgimento da classe social14 do fazendeiro de café, essa classe
adotou uma nova mentalidade econômica, um novo estado de
espírito mais racional no seu comportamento econômico, por
exemplo, introduzindo uma nova forma de trabalho, o trabalho
assalariado (em maioria do imigrante estrangeiro), todavia, novas
técnicas em agronegócios e novos capitais (financeiro e físico), que
resultaram em ganhos de escalas, custos reduzidos e mais
produtividade no setor agrícola do café, especialmente, a partir do
fim do século XIX, nas regiões brasileiras do Vale do Paraíba e do
Sudeste.
Continuando com a análise dos papéis dos agentes, com a
criação desse novo setor dinâmico da economia ocorreram outras
transformações, com relação ao agente, o senhor agrário, esse
passou a ser um empresário capitalista, ou seja, através desse novo

13 O sentido econômico do capital bancário é explicado por HILFERDING, H. O capital financeiro. São Paulo,
Nova Cultural, 1985, (Os Economistas). Então para entendê-lo vamos ao crédito este é uma função alterada do
dinheiro como meio de pagamento [p.85]. Já o capital mercantil (por se tratar, no caso, de transações entre
capitalistas produtores) essa expressão também depende da expansão do processo de reprodução; então o
capital produtivo é o conjunto de máquinas, matérias-primas, força de trabalho, etc. [p. 86]. Por outro lado, o
capital monetário disponível é o capital necessário para as transações no processo de circulação e o crédito [p.
92] e quando este se encontra nas mãos dos capitalistas, se constitui na base da superestrutura como um fundo
de compensação para saldar títulos ou um fundo de reserva em face de eventuais prejuízos [p.87]; logo o
capital comercial é crédito de pagamento [p.94]; dai então o capital bancário é a transição dos capitais industrial
e comercial, como fornecedor de empréstimos para o capitalista produtor, portanto, o princípio transitório da
evolução do sistema bancário [p. 92]. O capital monetário que os bancos fornecem aos capitalistas industriais
pode ser empregado na ampliação da produção de duas maneiras: pode haver necessidade de capital
monetário para ser transformado em capital circulante ou então em capital fixo, com isso, os bancos depositam
seu capital nas empresas capitalistas e então participam do destino dessas empresas [p.93].
14 Para Émile Durkheim (1858-1917) uma classe social é uma representação coletiva e solidária de partes de

uma sociedade, partes essas que ele a denominou de corpo social, que teria uma função, sem hierarquia (!?)
entre si, acarretando uma sociedade harmônica e coesa. Para esse autor, os fatos sociais se apresentam de
diferentes formas em diversos períodos históricos, ou são atos praticados culturalmente ou fenômenos
persistentes no tempo; para ele isso justifica o que se passa na mutação social. Veja DURKHEIM, Émile. As
regras do método sociológico. São Paulo, Ed. Martin Claret, 2012, (6a reimpressão), especialmente o “Capítulo
4: Regras relativas à constituição dos tipos sociais”.
Segundo a visão marxista, não existe essa coesão harmônica, porque existe uma classe dominante
que controla direta e indiretamente o Estado e outras classes (dominadas) por aquela; reproduzindo, assim
inexoravelmente uma estrutura de classe social, que implica também e, conseqüentemente, em lutas de
classes, todavia, a perpetuação da exploração social. Conforme o pensamento do marxista convicto
LEVEBVRE, Henri. Marxismo. Porto Alegre, L&PM, 2010.
Para Max Weber (1864-1920) seu conceito de classe social está baseado no consumo social,
em estruturas de mercado que definem um critério econômico de consumo social e a sua dominação
por uma política de controle monopolista; de alguma forma, esse cenário permite a identificação de
conflitos de classes e, como tal, esses conflitos são favoráveis ao rompimento de ordenações
existentes na vida da sociedade.
57 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

papel a burguesia investiu o capital acumulado em outras


atividades especulativas, por exemplo, no setor comercial, dai
mudanças, também, ocorreram no padrão senhorial de vida
incluindo o deslocamento do habitat nas fazendas de café para os
centros urbanos. Com relação ao emprego da mão-de-obra, esta
passou a ser livre e assalariada. Outras transformações se passaram
concomitantemente com o desenvolvimento de sistemas de
comunicação entre as zonas rurais e urbanas, com o surgimento de
novas estradas e rodovias, o telégrafo, ferrovias de carga e pessoas,
dentre outras espécies de comunicação [Fernandes, 1976: 120-121].
O capitalismo comercial e financeiro no Brasil naquele
período se expandiu e intensificou novas formas de acumulação a
partir da sua concentração e centralização. Na esfera da
concentração se unificaram os capitais, nacionais e estrangeiros, de
diferentes espécies, industrial, bancária e comercial. Assim, eram
investidos quer em agronegócios, na manufatura ou fora dela e no
setor de serviços. Contudo, na esfera da centralização essa se deu
através da tomada de decisões por grupos burgueses emergentes,
que detinham poderes na condição de acionistas ou cotistas das
empresas emergentes.
Com relação ao outro agente econômico, o imigrante, este
também se inseriu nos setores monetários da economia; além
daquele setor no qual o uso da sua força de trabalho assalariada
tinha vindo suprir a locação do excesso de demanda sobre o
serviço desse fator, e, é claro, que essa procura ocorreu dentro de
um novo contexto seletivo de maior especialização na divisão
internacional do trabalho.
Entretanto, dentre as origens imigratórias, o autor compara o
judeu imigrante ao judeu europeu, também, o faz com relação ao
imigrante oriental chinês e japonês, suas descrições e interpretações
coincidem com parte do pensamento (contraditório) de Werner
Sombart (1863-1941). Por exemplo, para Sombart – que foi um
anticapitalista liberal e antimarxista bolchevista – a modernização
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
58

da agricultura e a industrialização era fruto do espírito capitalista do


sujeito econômico: o empresário empreendedor15.
Porém, o êxito alcançado pela migração na América e no
Brasil não significou para o imigrante uma segunda pátria ou como
o autor denomina de pátria de adoção, fatores econômicos,
emocionais, sociais e culturais atraíram os imigrantes em busca de
acumular riqueza, especialmente, na forma monetária, o que os
conduzia, geralmente, para setores monetários da economia.
Todavia, o autor explica também que motivos psicosociais e de
natureza econômica projetava o imigrante num contexto
econômico e social que consolida, substancialmente, com a ordem
social escravocrata e senhorial [Fernandes, 1976: 122 e 128].
Os elementos que se inseriram no processo da acumulação
de capital para o imigrante conforme o autor descreve foram
disponibilizados pelos capitais comerciais e financeiros para os
processos de importação e exportação, através dos agentes
negociantes e/ou capitalistas. E, assim, formaram pequenos grupos
(por parentesco ou por companheirismo conterrâneo), jamais indo
de encontro ao código ético das camadas senhoriais da sociedade
brasileira, o que lhe permitiu a venda da sua força de trabalho
(livre), dentro de uma nova DIT, apenas caracteriza a diferente
forma do trabalho escravo e pouco especializado de uma nova
especialização do trabalho do imigrante, mas voltado para sua
subsistência e uma eventual riqueza. Entretanto, outras formas de
apropriação do trabalho do imigrante entre seus grupos foram
através da cooperação doméstica, das relações de
companheirismo e do trabalho de menores, esse modelo permitiu,
de alguma maneira, através dessas formas de trabalho e da

15 Uma das interpretações do pensamento do sociólogo e economista alemão Sombart está na tese de
doutorado de Antonio Nogueira, cujo resumo foi divulgado in: <analisesocial.ics.ul.pt> [acesso em mar/2013],
esse autor afirma que as publicações de Sombart de superioridade teutônica da missão alemã, em confrontação
direta com o ethos capitalista, o cosmopolitanismo e o internacionalismo burguês, subentenda-se judaico (...),
assim identifica e redefine o empresário empreendedor, pondo em evidência as formas do desenvolvimento
histórico da empresa capitalista, ressaltando, sobretudo o trabalho artesanal como um meio de passagem para
a manufatura, e a partir daí caracteriza a industrialização. Finalmente, Sombart atribui importância ao papel das
formações urbanas (as cidades) e os seus mercados internos, tudo isso associado à sua interpretação
sociológica como motivação econômica [p. 1138-1139, 1147].
59 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

mobilidade ocupacional à acumulação de capital [Fernandes,


1976: 129-130].
Contudo, os principais elementos que contribuíram com a
acumulação de riquezas nas novas classes sociais emergentes e
estrangeiras no país, conforme Fernandes foi o sucesso ao explorar
as oportunidades econômicas abertas pela mobilidade horizontal e
vertical, com tamanha versatilidade ocupacional ou econômica,
então, o imigrante alargou o seu horizonte econômico [Fernandes,
1976: 130-131]; através do mercado interno, no curto prazo, na
perspectiva do consumo de produtos agropecuários e da
produção artesanal. No mesmo locus, todavia na perspectiva de
longo prazo, o imigrante introduziu arranjos comerciais ampliando a
comercialização de produtos agropecuários ou da produção
industrial dentro de padrões europeus, ou seja, aproveitando o
capital comercial e o capital financeiro, na forma do crédito para
financiar a produção industrial.
Sob o ponto de vista do autor este segundo conteúdo
referido anteriormente permitiu surgir firmas comerciais, até chegar,
progressivamente, aos ditos impérios industriais. Por outro lado, essa
burguesia do fazendeiro – homem de negócios -, originada do
imigrante, proporcionou uma nova mobilidade econômica que
resultou na rápida concentração de capital comercial, a partir da
acumulação agropecuária – a lavoura de subsistência, a criação
do gado das espécies vacum e porcino -, e na produção artesanal
[Fernandes, 1976: 132-134].
Para o autor, no contexto da nova mentalidade empresarial
e empreendedora da burguesia brasileira, o agente imigrante,
também, introduziu na sua mentalidade empresarial o raciocínio do
cálculo econômico-financeiro e a noção da relação entre
princípios, meios e fins, na intertemporalidade das ações financeiras,
o que veio a conferir ao país um padrão capitalista de organização
da personalidade, da economia e da sociedade no marco histórico
referenciado [Fernandes, 1976:141].
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
60

3. CONCLUSÃO

A revolução burguesa no Brasil não é uma evolução, como o


que ocorreu em determinados paises europeus de forma lenta e
gradual nas mutações naturais dentro de suas classes sociais, ou
noutras economias dependentes e periféricas. Entretanto, o
desenvolvimento histórico da revolução burguesa no Brasil ocorreu
por alterações de ordem política e sociológica, o que implicou na
reorganização da sociedade e da economia de forma mais rápida
e acelerada, comparando-a com outras organizações sociais. Essa
é a lógica de um sistema que caracteriza o modelo colonial
brasileiro: um capitalismo dependente e, ao mesmo tempo, de
forma contraditória, autonômico. Também, regido por um sistema
de poder, de forma complementar, de um lado a exteriorização do
poder político coercitivo, do outro lado, o poder econômico-
mercantilista, ambos exercido por uma elite da burguesia nacional,
constituída de fazendeiros do café e imigrantes.
Quando isso se passou a economia colonial brasileira se
inseriu no mercado mundial, via exportação do café e como
conseqüência provocou a criação de mercados urbanos internos
via importação de bens de consumo e de bens de capital. Isto
equivalia a dizer que o modelo colonial nacional-periférico, vigente
entre o fim e o início dos séculos XIX-XX, no período quando ocorreu
a revolução burguesa, estava bastante próximo da organização
econômica das economias centrais.
Os agentes dessa aristocracia agrária lançaram mão de
recursos técnicos, financeiros, físicos, humanos e institucionais, para
inserir a economia nacional no cenário econômico globalizado da
época, como se fosse uma reintegração da economia cafeicultora
sulista, comparando-a ao que se passara com a economia
sucrocrata do Nordeste dos séculos anteriores.
Entretanto, com a inserção da economia nacional na ordem
econômica mundial vigente, o agente burguês com o seu
comportamento, espírito e concepção burguesa do mundo fez
61 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

emergir no cenário brasileiro conteúdos comportamentais de ordem


econômica, social, cultural e político.
No estado da arte sócio-econômico do país, no período que
se processou a revolução burguesa, verificou-se que determinados
subestratos sociais, por exemplo, a burguesia agrária, com relação
à burguesia de comerciantes, possuía mais vantagens que essa
última, porque aquela detinha o monopólio do poder político.
A apropriação do excedente gerado pelo novo setor
dinâmico da economia nacional, principalmente na grande lavoura
exportadora, ao mesmo tempo em que processava a fusão do
capital comercial com o capital financeiro resultou no Brasil um
fenômeno diferente do cenário mundial, o surgimento de novos
agentes monetários e financeiros, os bancos comerciais públicos e
privados, o que se pôde denominar de capital bancário nacional.
Finalmente, as condições de uma economia nacional,
periférica e dependente permitiram a mudanças da ordem
econômica, ao mesmo tempo social e cultural, dado novos hábitos
de consumo social com o surgimento de novos mercados internos
nos centros urbanos, perpassando uma nova geopolítica urbana,
impulsionada pela dinamicidade da economia primário-
exportadora, enquanto tal núcleo vital se voltava para fora, esse
mesmo núcleo dinâmico se especializava para tal competitividade
econômica nas esferas da demanda social interna, e da oferta
monocultora do café para exportação, quando, no mesmo
momento, facilitava a criação e a modernização de mecanismo do
capitalismo financeiro interno, em harmonia com o sistema do
capitalismo financeiro internacional, que viriam em breve a
favorecer uma nova etapa do desenvolvimento econômico
brasileiro com a sua industrialização.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
62

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63 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Desregulamentação, Desindustrialização e
Reconcentração de Renda na Crise dos EUA1

Robério Paulino2

Resumo
A crise econômico-financeira global aberta em 2008 parece prenunciar o início do fim
da hegemonia neoliberal sobre o pensamento econômico, mesmo estando claro que
esta última não está exaurida. A grave recessão atual gera destruição de riqueza e
muito sofrimento humano, mas também abre a oportunidade de revalorização dos
Estados nacionais para o desenvolvimento econômico e social. Este trabalho busca
aprofundar o estudo das causas desta crise, apontando aspectos ainda pouco
aprofundados nos estudos disponíveis, como a desindustrialização e a reconcentração
de renda nos EUA, e, ao final, sugere pontos de discussão para uma Nova Agenda
Nacional de Desenvolvimento no Brasil.
Palavras-chave: Crise global, neoliberalismo, Estado de Bem-Estar Social

Abstract: The global economic-financial crisis opened in 2008 seems to foreshadow the
beginning of the end of the neoliberal hegemony over the economic thinking, even
though it is clear that the latter is not exhausted. The severe current recession causes
destruction of wealth and a lot of human suffering, but it also opens up the opportunity
for revaluation of the Nation States towards the economic and social development. This
paper aims to deepen the study of the causes of this crisis, pointing out aspects yet little
developed in the available studies, such as deindustrialization and income
reconcentration in the US, and, at the end, it suggests topics of discussion for a New
National Development Agenda in Brazil.

Keywords: Global crisis, neoliberalism, Welfare State.

1Texto apresentado em 10/10/2013 e aprovado em 10/11/2013.


2Economista e doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo – USP, Professor Adjunto do Departamento de
Políticas Públicas – DPP e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Urbanos e Regionais – PPEUR da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte – UFRN, em Natal.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
64

1 INTRODUÇÃO

Reorientar a agenda do país, para aqueles que o consideram


necessário, exige extrair as lições, ainda que iniciais, da crise global que se
abateu sobre o mundo desde 2008. Enganam-se os que avaliam que o
pensamento político e econômico já elucidou todas as causas da grande
recessão em curso. O mundo assistiu nas últimas três décadas o retorno e a
hegemonia do liberalismo radical, que operou profundas alterações no
capitalismo regulado emergido da Segunda Guerra Mundial. O resultado da
desregulamentação, da remoção dos poucos freios exercidos sobre os
mercados pelos Estados nacionais naquele período foi uma nova e imensa
liberalização para o trânsito de capitais, empresas e mercadorias, um salto na
mundialização do capital (CHESNAIS, 2005). Ao mesmo tempo, o
neoliberalismo implicou em um severo retrocesso civilizatório (LAURELL, 2002),
em um duro ataque às conquistas do Estado de Bem-estar Social construído
em diferentes países, com a volta da elevação da desigualdade entre as
classes sociais, mesmo dentro dos Estados Unidos, como se buscará mostrar em
números neste trabalho.
O abalo econômico-financeiro global eclodido em 2008 e ainda não
encerrado é, sem dúvida, uma crise cíclica estrutural do capitalismo
contemporâneo, mas ao mesmo tempo uma consequência da aplicação das
políticas do liberalismo radical pós 1980, bem como a comprovação da
falência dos seus argumentos. A aplicação de duras medidas de austeridade
fiscal em países da União Europeia desde 2010 revela, contudo, que o domínio
da ortodoxia não se exauriu. Passado o susto dos liberais, suas políticas têm
retornado com força. Mas, no plano estritamente ideológico, a crise atual e o
recurso à bóia de salvamento estatal por parte dos mercados em pânico
desmontaram, mais uma vez, como na Grande Depressão iniciada em 1929,
os pilares do arcabouço teórico neoclássico e podem estar abrindo um novo
período de revalorização do Estado para o desenvolvimento econômico e
social. A defesa da presença do Estado na economia retorna à pauta, ainda
que num primeiro momento apenas no sentido de socorro ao capital,
enquanto que, contraditoriamente, os mesmos que criaram esta crise vêm
conseguindo mais uma vez atacar as conquistas sociais em vários países. No
65 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

entanto, de alguma forma, o pêndulo do pensamento político-econômico


começou a se mover.
O trabalho de seguir precisando as razões da grave recessão atual,
especialmente nos Estados Unidos, não é um exercício sem sentido e
continuará por muitos anos: aprender com o passado e com o presente é uma
obrigação para aqueles preocupados com um futuro melhor para a espécie
humana e com a vida no planeta. Extrair desse fenômeno todas as suas lições
pode nos servir de guia para reorientar a agenda política, econômica e social
no Brasil e demais países. É muito difícil pensar seriamente em qualquer novo
projeto nacional de desenvolvimento sem que o país se afaste de vez da trilha
neoliberal em que ingressou na década de 1990 e da qual não se afastou
muito desde então, mesmo nos governo Lula e Dilma Rousseff. É pura ficção
afirmar que hoje o Brasil aplica um modelo desenvolvimentista, contrapondo-o
ao receituário neoliberal, enquanto a taxa de investimento segue abaixo de
20% do PIB e toda a economia continua a ser submetida à lógica de
compressão dos gastos, objetivando elevar a taxa de superávit primário para
pagamento da dívida pública, com os interesses do capital financeiro sendo
colocados acima das necessidades do país.
Além de analisar sinteticamente o cenário global e nacional, este
trabalho busca ao final apontar algumas poucas linhas para a construção de
uma Nova Agenda Nacional de Desenvolvimento, que coloque em primeiro
plano o progresso econômico, tecnológico e especialmente humano e
cultural do país.

2 ALGUMAS PRIMEIRAS LIÇÕES ACERCA DAS CAUSAS DA CRISE GLOBAL


INICIADA EM 2008

A Grande Recessão iniciada em 2008 foi detonada pela exuberância


especulativa dos mercados sem controle, pela alavancagem sem limites dos
rentistas, pelo acúmulo de dívidas impagáveis e pelo endividamento
exagerado das instituições financeiras, das empresas e das famílias norte-
americanas. Muitos sabem agora o que significa o “Momento Minsky” – o
ponto no qual um período de alta febre financeira se transforma em pânico
perante o abismo. Segundo Hyman Minsky (1982), um longo período de
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
66

crescimento acelerado, inflação reduzida, taxas de juros baixas e estabilidade


macroeconômica estimulam a complacência e uma maior disposição de
assumir risco por parte dos agentes que concedem crédito. A estabilidade
leva à instabilidade, à crise.
No entanto, mesmo os mais brilhantes discípulos de John Maynard
Keynes, como Minsky, para quem um sistema de crédito não regulado seria
inerentemente instável e desestabilizador, não conseguem explicar com sua
caixa de ferramentas teóricas as crises que assombram a economia capitalista
sem recorrer a Marx. Seria enganoso pensar que as razões para tal abalo
sísmico da economia global se resumam a exageros ou falhas de regulação
dos mercados, falta de rigor na concessão de créditos ou nas deficiências
morais dos atores. As causas da crise atual são mais profundas: residem no
núcleo mesmo do sistema, sendo a especulação e a financeirização do
organismo econômico apenas alguns dos fatores explicativos. É isso que vem
tornando a depressão atual mais longa que o esperado e a recuperação dos
índices de produção anteriores à crise mais difíceis. Decorre disto também
que, para o capital, a saída desta recessão vem impondo não apenas um
pouco mais de regulação, mas duros ajustes estruturais na economia dos
países. Abaixo se tenta elencar alguns dos fatores que, na opinião do autor,
estão na base do abalo atual; umas já bem debatidas, outras, como a
desindustrialização e a reconcentração de renda nos EUA, ainda pouco
compreendidas.

2.1 Crise estrutural do capitalismo e crise do neoliberalismo

Muitos analistas se dão ao trabalho de discutir se essa seria uma crise do


capitalismo ou apenas do neoliberalismo, uma discussão com pouco sentido.
Ela é ao mesmo tempo as duas coisas. O abalo atual não é apenas mais um
espasmo episódico, fruto do pouco controle sobre Wall Street. É a mais grave
crise do capitalismo contemporâneo desde a Grande Depressão. Trata-se de
uma crise cíclica e estrutural do capitalismo mundializado. Para Marx (1996), as
crises cíclicas do capital são tipicamente crises de superprodução ou de
subconsumo, decorrentes de potencial produtivo em excesso não absorvido
pela demanda. Apesar da elevação do consumo nos EUA nos anos
67 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

imediatamente anteriores a 2008, havia um excedente de produção no


mundo, especialmente na China, no Japão e na Alemanha, fator que sempre
contribui para precipitar as grandes recessões. Toda crise obriga o sistema a se
ajustar, destruindo a capacidade produtiva sobrante e riqueza acumulada,
como se viu também desta vez.
O mercado norte-americano vinha funcionando como numa espécie
de esponja para esse excesso de oferta, através do endividamento excessivo
das famílias, que consumiam muito além de suas possibilidades. Mesmo
crescendo, embalada pelo crédito fácil, a demanda não acompanhava o
ritmo de elevação da oferta mundial. Em algum momento, esse mecanismo se
esgotaria, até por outras razões, como a reconcentração da renda nos EUA,
fenômeno que tem sido pouco analisado nos estudos disponíveis sobre a crise
atual e abordado neste trabalho. Já não será possível aos EUA continuar com
déficits comerciais crescentes com o exterior, que ficaram insustentáveis, e
porque grande parte das famílias trata hoje de pagar dívidas, ajustando o
consumo às suas possibilidades reais. É isto que está na base da atual guerra
cambial entre as grandes potências econômicas.
Mas além de uma crise cíclica e estrutural do capitalismo,
evidentemente essa também é uma crise do neoliberalismo. Desde a Grande
Depressão até meados da década de 1970, o liberalismo clássico foi afastado
da cena e as ideias keynesianas, de maior intervenção e regulação estatal,
dominaram o ideário político-econômico. Com exceção dos grupos socialistas
revolucionários e dos setores capitalistas mais a direita, todos no campo do
capital durante aquele período se punham de acordo quanto à necessidade
de o Estado estar presente em amplos setores da atividade econômica. Fosse
diretamente como produtor e provedor – do transporte público à geração e
distribuição de energia, passando pela siderurgia –, fosse como regulador dos
excessos de irracionalidade do capital, especialmente pondo algum cabresto
no setor financeiro, que havia disparado a crise de 1929. A presença do Estado
como indutor da atividade econômica, agente de ampliação dos mercados
através da distribuição de renda às famílias e regulador da atividade
econômica, foi sem dúvida um fator essencial que esteve na base da
recuperação do pós-guerra e da fenomenal expansão dos “Trinta Anos
Gloriosos do Capitalismo” que vão de 1945 a 1973-75.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
68

Entretanto, como se veria mais adiante no tempo e bem mostrou Perry


Anderson (1995), o liberalismo não estava definitivamente derrotado. Apenas
esperava a chance de um retorno, o que se deu com a crise do modelo
keynesiano durante os anos 1970. Não é objetivo deste trabalho analisar o que
foi o neoliberalismo em si, pois o assunto é por demais esclarecido e debatido.
Apenas devemos ressaltar que a transformação da economia mundial em um
grande cassino e a farra financeiro-especulativa que detonou a crise de 2008
nos EUA só foram possíveis pela desregulamentação sobre o capital,
especialmente o financeiro, agora novamente livres da tutela do Estado
regulador, enfim liberados daquilo que Hayek (1990) chamou de “servidão”.
Neste sentido, a crise de 2008 é categoricamente uma crise do neoliberalismo
em tudo que ele significa. Como vêm percebendo mesmo analistas pouco
críticos do capitalismo, como Justin Fox (2011), o mito dos mercados racionais
e eficientes despencou.
2.2 Financeirização e riqueza fictícia
Como na quebra da Bolsa de Nova Iorque em outubro de 1929, o
estopim da crise atual foi também o estouro de uma bolha financeira criada
pela febre especulativa e pela grande valorização artificial dos papéis
negociados em bolsas, bem acima do crescimento da economia real. Nos
EUA, o valor das ações cresceu quatro vezes mais que o PIB entre 1980 e 2008.
O crescimento de um sistema bancário paralelo, os “bancos não-bancos”,
livres de regulamentação para criar “coisas interessantes e perigosas”
(KRUGMAN, 2009), e a globalização dos mercados financeiros, com a
liberdade total para o capital especulativo se deslocar entre as diversas
praças mundiais, transformaram a economia global e dos EUA em uma
grande Las Vegas. É a isso que os economistas neoclássicos chamam em seus
manuais de “comportamento racional”.
Os bancos e um sistema financeiro e de pagamentos nacional ágil e
confiável têm um papel importante em qualquer tipo de economia, capitalista
ou socialista. É por meio deles, dos bancos, da moeda, dos cheques ou, hoje,
dos cartões de crédito magnéticos, que a sociedade faz seus pagamentos,
suas transações econômicas. E quanto mais eficiente este sistema em um país,
mais dinamicamente funciona o organismo econômico. É também através do
sistema bancário que se centralizam os tributos e a poupança coletiva, ou
69 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

seja, parte do excedente social que deveria se transformar em investimentos


comuns a toda sociedade. Mas não é bem isso que se dá no capitalismo
contemporâneo: bancos cumprindo primeiramente uma função social. Pelo
contrário, o que ocorre hoje é uma perversa financeirização da atividade
econômica, com o sistema financeiro numa busca incessante de lucros
rápidos através da especulação, concentrando renda e riqueza através da
velha e conhecida agiotagem, das altas taxas de juros, de apostas em títulos e
nos atrativos papéis das dívidas públicas dos países. Como se pode observar
também no Brasil, grande parte da arrecadação estatal dos tributos, que
deveria se transformar em inversões sociais necessárias, é repassada
diretamente aos capitais rentistas, numa relação inversamente proporcional à
pressão contrária das lutas sociais e da opinião pública.
Para valorizar-se, segundo Marx (1996), normalmente o capital precisa
abandonar sua forma preferencial de dinheiro, passar pela produção,
organizando o trabalho, transformando-se em mercadorias que possam ser
vendidas, para só depois ressurgir ampliado na forma original de moeda,
fechando o circuito, que Marx denominou de D-M-D‟. Mas já no século XIX, em
O Capital, Marx (1996) apontava que o capital buscava alternativas de
valorização, fugindo das agruras e riscos da produção. Para ele, ganhariam
por isso peso crescente as formas de acumulação nas quais o capital pudesse
crescer fazendo o próprio dinheiro render mais dinheiro diretamente, sem
nada produzir, forma que ele denominou D-D‟. Segundo Marx, essa via rápida
de multiplicar o capital poderia gerar grandes fortunas, mas tornava todo o
edifício mais instável, potencializando as crises. Foi isso que se viu em essência
no século XX, especialmente nas últimas quatro décadas, e que também está
na base da crise atual.
Por esse mecanismo, grande parcela da riqueza criada é puramente
fictícia. O valor dos papéis e das empresas avaliados pelas agências de
classificação e risco é em grande parcela potencial, virtual, não tem
correspondência com os ativos reais das empresas. Observe-se a Figura 1
abaixo, capturada diretamente do site mundial do Banco JP Morgan, em 22
de janeiro de 2009, com os valores de mercado estimados para alguns
grandes bancos, antes e logo depois da explosão da crise em 2008. As bolas
maiores, externas, representam os valores avaliados de mercado dos bancos
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
70

no segundo semestre de 2007, antes da crise. As bolas menores, internas, as


avaliações destes mesmos bancos após as turbulências do segundo semestre
de 2008.
Tome-se o exemplo do Citigroup, a bola maior da figura. Ele estava
avaliado em US$ 255 bilhões antes da crise. Seu valor teria despencado para
US$ 19 bilhões no início de 2009. Para onde teria ido toda essa “riqueza”
perdida? Para lugar algum; simplesmente a maior parte dela não existia, era
fruto de valorização exagerada dos ativos. Como era de se esperar, passado o
surto de pânico, as estimativas voltaram a subir já para o segundo semestre de
2009. Devem-se tomar com muita cautela todas essas avaliações das
agências da classificação, pois elas expressam a frequente embriaguês dos
mercados, portanto, não têm muita confiabilidade ou precisão. Usamo-las
aqui apenas no sentido de ilustrar o processo de valorização artificial dos
ativos e de destruição de riqueza fictícia. As agências de classificação de
empresas e países e de avaliação de risco estão muito desmoralizadas pela
crise, porque foram absolutamente incapazes de enxergar os perigos de
tamanho planetário para o sistema capitalista.

Figura 1 – Valores de mercado estimados de alguns bancos, antes e depois do


início da crise de 2008
Fonte: Banco JP Morgan (2009). Diagrama montado pelo banco com dados
divulgados pela Agência Bloomberg em 20 jan. 2009.
71 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Diversos relatórios de bancos e agências de classificação, do início do


ano de 2009, davam conta, alarmados, de que a crise havia “queimado”
trilhões de dólares das empresas e famílias norte-americanas e do resto do
mundo.
O problema é que esse fenômeno de destruição de riqueza fictícia não
afeta apenas o lado monetário da economia, mas cria desemprego, diminui o
PIB, destrói, assim, riqueza real. Como o crescente excesso de oferta não é
absorvido, ele deverá ser eliminado, gerando falências, desemprego, corrosão
das poupanças das famílias e muito sofrimento humano. O desemprego deu
imediatamente um salto em muitos países. De acordo com o Departamento
de Estatísticas do Trabalho dos EUA (Bureau of Labor Statistics – BLS), o
desemprego no país saltou de 5,0% da força de trabalho em janeiro de 2008
para 9,7% em janeiro de 2010. Neste último ano, 15 milhões de norte-
americanos estavam desempregados, dentre os quais 7 milhões perderam seu
posto de trabalho depois de 2008 (BLS, 2011). Outras avaliações, apresentadas
adiante, acusam o governo norte-americano de manipular a taxa de
desemprego, que seria bem maior. Milhões tiveram a vida em parte arrasada
pela irresponsabilidade criminosa dos especuladores, ditos “racionais”, e hoje
elegantemente chamados de “investidores internacionais”. Mas mesmo após
a imensa comoção humana que essa crise vem gerando, executivos de
bancos e corretoras continuam a atribuir para si mesmos poupudos prêmios.

2.3 Desindustrialização e menos empregos nos EUA

Outro fator explicativo para que a crise tenha se iniciado pelos EUA, que
pouco aparece nas análises disponíveis no Brasil, é o profundo processo de
desindustrialização vivido pelos EUA nas últimas décadas, como consequência
da ideologia do livre comércio, da importação de produtos mais baratos que
os produzidos no país, da desregulamentação que permitiu a terceirização da
produção de componentes no exterior ou diretamente da transferência de
milhares de plantas para outras regiões, especialmente para o México e Ásia.
Fração considerável dos produtos vendidos nos EUA é hoje manufaturada em
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
72

outros países e reexportada ao país. No setor automotivo, uma proporção


crescente dos carros e autopeças vem de fora. No setor de tecnologia, que
inclui notebooks, monitores e televisores de LCD e plasma, celulares, Ipods,
tablets, quase tudo é importado. Mesmo a indústria aeronáutica importa
grande proporção dos componentes que usa. Grandes empresas mantiveram
no país apenas seus setores de pesquisa e desenvolvimento, assegurando o
controle tecnológico. Como revelou Edward Luttwak (2001), sob a égide do
turbo capitalismo neoliberal, o país apostou apenas nas empresas de alta
tecnologia, deixando as indústrias de média ou baixa tecnologia quebrarem.
Do ponto de vista da redução de custos e da elevação dos lucros, a
produção na Ásia ou no México, por exemplo, reenviada aos EUA, tem sido a
galinha dos ovos de ouro para as empresas estadunidenses, já que pode ser
feita com de mão de obra muitas vezes mais barata que a do país. Mas essa
opção de jogar todas as fichas num único cavalo teve como contrapartida a
crescente desindustrialização do país e a elevação do desemprego. Milhões
de postos de trabalho desapareceram na grande e tradicional indústria
construída sob o fordismo pelo processo de reestruturação produtiva ou foram
transferidos para o exterior. Desde 1997, quase 6 milhões de vagas foram
perdidas no setor industrial (HAGERTY, 2011), que passa por um longo declínio.
Os “Velhos Titãs” da indústria americana, como GE, ITT, RCA, IBM, Chrysler,
Ford, GM, vêm perdendo mercado dentro do próprio país para empresas de
outras nacionalidades, retrocederam no cenário mundial, se associaram a
empresas estrangeiras ou simplesmente desapareceram. A quebra da GM em
2010, acossada pela competição dos asiáticos, é apenas um sintoma desse
fenômeno.
No lugar da velha indústria, crescem grandes redes de varejo, como
Wal-Mart, Sears, Mcdonalds e Bobs. Os empregos “para a vida inteira”, dos
operários da tradicional fábrica fordista, com salários relativamente altos e
considerável estabilidade, são substituídos aos milhões por novos postos de
vendedores de lojas, alimentadores de prateleiras de supermercados ou
entregadores de sanduíches, que têm salários muito menores e grande
rotatividade (SENNETT, 1999). Estas novas empresas não oferecem mais os
simples, mas bem remunerados empregos da indústria de antes. No varejo e
nas redes de fast-food de larga escala, a maioria trabalha por salários mínimos;
73 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

pouquíssimos são bem pagos, já que os escritórios das lojas e empresas são
bem enxutos (LUTTWAK, 2001). A terceirização de muitas funções antes
integradas às empresas completa o quadro de precarização do mercado de
trabalho.
Até 1995, antes de também promover um enxugamento de quadros, o
setor de tecnologia e informática parecia ser a nova coqueluche de
empregabilidade da globalização. Mas apesar de ofertar excelentes
empregos de alta especialização, em suas maiores empresas-mãe não
chegava a contratar sequer um décimo do que fazia a indústria tradicional,
como se pode ver e comparar pela Tabela 1.

Tabela 1 - Os velhos e os novos Titãs: rol de empregados em 1995

Antigas empresas Grande Varejo Setor de Tecnologia


General
Motors 721.000 Wal-Mart 434.000 Intel 32.600
Ford 325.000 Sears 403.000 Oracle 19.000
Boeing 143.200 K-mart 358.000 Microsoft 15.000
Kodak 132.600 McDonald‟s 177.000 Sun Microsystems 13.300
Fonte: E. LUTTWAK, 2001, p. 110.

Evidentemente, o setor de tecnologia e comunicações tem gerado


muitos empregos indiretos para técnicos, programadores, instaladores etc.,
mas em geral como autônomos ou muito precários, como também acontece
no Brasil, já que a maior parte da produção do setor de tecnologia foi
transferida para a Ásia.
Para que se tenha um parâmetro de comparação com os números da
tabela acima, enquanto desaparecem milhares de empregos nos EUA,
somente a Foxconn Technology, indústria de placas-mãe de computadores,
telas de LCD para televisores, Ipads e outros componentes eletrônicos, que
produz para grandes marcas norte-americanas, como Dell, Hewlett-Packard e
Apple, empregava em torno de 900.000 trabalhadores em suas plantas na Ásia
em 2010, dos quais 400.000 na China. Esta empresa, que está se instalando no
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
74

Brasil a convite do governo Lula, ficou mundialmente conhecida nos últimos


anos por seus baixos salários e pela severa opressão interna, o que levou a
uma dezena de suicídios dentro das suas fábricas em 2010. Comparada à
fumarenta Shenzhen, cidade onde está sediada a Foxconn na China, as
fábricas da velha Manchester industrial dos séculos XVIII e XIX eram o paraíso,
quando de trata de opressão da força de trabalho. Este é o tão celebrado
novo mundo da globalização neoliberal.
Com a reestruturação das empresas ou seu fechamento e transferência
para o exterior, muitas cidades nos EUA, que por muito tempo viveram em
torno de fábricas que empregaram várias gerações de trabalhadores, estão
hoje completamente desestruturadas. Em muitas cidades, como Buffalo e St.
Louis, por exemplo, encontram-se quarteirões e mais quarteirões de casas
abandonadas, fábricas desertas e prédios de escritórios vazios com placas de
“aluga-se”. Muitos dos novos formados em universidades norte-americanas
têm sido forçados a aceitarem empregos de garçom em bares ou vendedores
em lojas e retornaram a morar com os pais. Todo esse processo vem gerando
profundas transformações no tecido social norte-americano, que ajudam a
explicar a eleição de Barack Obama.
As estatísticas oficiais apontaram em 9,5% a taxa média de desemprego
em 2010, mas muitos analistas independentes afirmam que esta taxa é irreal,
especialmente depurada para não contabilizar a maior parte dos
empregados apenas temporaria ou parcialmente, os trabalhadores part-time.
John Williams (2011), um especialista em estatística, que calcula o desemprego
de forma alternativa e mais rigorosa, apontou taxas de até 22% de
desemprego em 2010. Mesmo números internos do governo, que incluem o
subemprego part time, chegam a 17%. Os EUA, considerado desde a década
de 1960 um país de classe média, vê a grande massa de sua população
empobrecer, para o deleite de alguns poucos milhões de super-ricos. Tal
fenômeno revela – ao contrário do que se poderia imaginar, ou seja, que a
aplicação do neoliberalismo teria sido menos intensa dentro dos EUA – que o
capital não tem pátria, que o mercado liberalizado não tem outros valores
que a maximização do lucro, ignorando os mais básicos princípios de bem-
estar das sociedades e mesmo de defesa do país.
75 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

O risco de desindustrialização é um alerta que deve servir ao Brasil, já


que a concorrência dos produtos importados no Brasil, especialmente
chineses, também pode levar a um retrocesso industrial no país. Como
argumentou Stiglitz (2003), o resultado da abertura inocente dos mercados em
muitos países pode apenas fazer atividades menos produtivas passarem à
produtividade zero, ou seja, fecharem, elevando o desemprego, sem que
novos postos de trabalho sejam criados. A Argentina acreditou no conto de
fadas das vantagens do livre mercado e hoje precisa esforçar-se pela
reindustrialização do país. A globalização, na verdade, só trouxe vantagens
para pouquíssimas nações ou para as classes ricas dentro dos países. No caso
dos EUA, ainda que o país continue a ser a maior potência econômica e
militar do planeta e tenha aumentado seu número de bilionários, lentamente o
país vem se desindustrializando e perdendo espaço na economia global, num
processo semelhante ao que se passou com a Inglaterra após o surgimento de
novas potências industriais na segunda metade do século XIX.

2.4 De volta para o passado: reconcentração de renda

O que explica em parte a ira da corrente neoliberal não só contra as


revoluções socialistas do século XX e suas conquistas sociais, mas também
contra o próprio Estado Bem-Feitor de inspiração keynesiana, é que este,
através das políticas públicas, dos mecanismos de redistribuição da renda às
famílias, terminou por reduzir a parcela da renda nacional que ficava com as
classes capitalistas. A construção do Welfare State em muitos países não
ocorreu como uma concessão voluntária do capitalismo, mas, segundo
Vicente Navarro (2002), foi um passo atrás forçado, frente à pressão das
classes trabalhadoras, especialmente na Europa. Foi também consequência
da difícil e arriscada situação em que se encontrava o capitalismo para sua
própria sobrevivência depois da Grande Depressão e da Segunda Guerra
Mundial, do medo que as classes ricas sentiam das revoluções sociais dos
pobres e da ameaça soviética, no contexto da Guerra Fria, como sugeriu
Hobsbawm (1994).
Ainda de acordo com Navarro (2002), especialmente na década de
1960, as classes trabalhadoras passaram a pressionar mais e mais os Estados
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
76

para atender às suas reivindicações, principalmente no que tange a melhores


condições de trabalho e de vida, e a questionar mesmo o poder da classe
capitalista. O Estado de Bem-Estar, significativamente ampliado naquela
década de intensa polarização ideológica, foi um grande progresso social,
mas também uma política de contenção compulsória contra o progresso das
ideias socialistas, um pacto social para a incorporação das classes
trabalhadoras ocidentais na democracia representativa capitalista,
afastando-a das alternativas mais radicais enquanto era tempo. Mas para o
capitalismo mundial, como se veria depois, aquilo foi apenas um recuo
temporário e involuntário.
Como se pode observar pelo Gráfico 1, com o advento forçado do
Welfare State, nos EUA as classes ricas perderam participação na apropriação
da renda nacional. Se, antes de 1929, os 1% mais ricos do país chegavam a
ficar com até 19% da renda nacional, depois da Segunda Guerra Mundial,
com a construção dos sistemas de proteção social, sua parcela caiu para
algo em torno de 8% (REICH, 2008). Assim também ocorreu na Europa.
percentagem
renda em
Fatia da

1% Superior 0,1% Superior 0,01% Superior

Gráfico 1 – Fatia da renda nacional dos EUA apropriada pelas classes mais
ricas.
Fonte: T. Piketti e E. Saez, versão atualizada de “Income Inequality in the United
States, 1913-1998”. Quarterly Journal of Economics 113. n. 1 (fevereiro de 2003),
com quadros e figuras atualizados até 2005, apud R. REICH, 2008, p. 109.
77 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

O neoliberalismo foi na verdade uma reação do capitalismo mundial


contra essa desconcentração da renda operada forçadamente pelo Estado
intervencionista, que taxava progressivamente mais os ricos e impunha limites
à taxa de exploração, à liberdade para os negócios privados. Para os liberais,
foi um “caminho da servidão” para o capital, para lembrar novamente a
expressão de Hayek (1990), considerado um dos fundadores daquela corrente.
Para ele e seus seguidores, como Milton Friedman, Karl Popper, Lionel Robbins,
Ludwig Von Mises e Michael Polanyi, por exemplo, a intervenção anticíclica
com políticas macroeconômicas e a redistribuição de renda às famílias
deformavam absurdamente o curso natural da acumulação privada e do livre
mercado. Como essa redistribuição só podia ser cumprida através de
mecanismos estatais, já que o mercado é naturalmente concentrador de
renda, explica-se o ódio visceral do neoliberalismo contra o socialismo e
contra o Estado capitalista regulador e provedor emergido do após-guerra,
acusado de agigantado, ineficiente, gerador de déficit público etc.
Os ultraliberais, contudo, não desperdiçariam a chance de um retorno
à situação de antes de 1929. A crise do pacto keynesiano na década de 1970,
com o esgotamento da “era de ouro” do capitalismo, foi a chance que
esperavam de engrenar marcha a ré. A onda ideológica privatista e
monetarista iniciada com Thatcher (Inglaterra, 1979), Reagan (Estados Unidos,
1980), Kohl (Alemanha, 1982), Schlutter (Dinamarca, 1983), e que já havia
chegado com força à América Latina com Pinochet (Chile, 1975),
correspondia na verdade a uma necessidade de toda a classe capitalista
mundial de retomar suas margens de lucro e voltar a elevar a parcela
apropriada da riqueza produzida nos países, o que implicava atacar o Estado
em sua feição social, redistributiva, reduzindo-o ao mínimo.
Quase todos os governos eleitos na Europa Ocidental durante a
década de 1980 tentaram aplicar programas segundo as orientações
neoliberais (ANDERSON, 1995). O colapso político e econômico da União
Soviética na segunda metade dos anos 1990, identificada como expressão
maior de país com Estado forte, planejamento centralizado e serviços sociais
universalizados, acelerou as reformas neoliberais. Por mais que os ventos de
revolução há muito tivessem deixado de soprar desde Moscou, até ali o
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
78

capital sentia na existência em si da URSS uma ameaça. Mas agora já não


tinha a quem fazer frente, com quem comparar-se, por quem se sentir
ameaçado. Estava livre o caminho para acelerar o ataque às conquistas
sociais no Ocidente, o que atesta a tese de que o Welfare foi uma concessão
involuntária do capital, fruto da imensa pressão social existente no mundo no
pós-guerra.
O neoliberalismo indiscutivelmente obteve um êxito fenomenal quanto
aos seus objetivos, como pode ser comprovado pelo Gráfico 1. Com todas as
políticas de governo contra o já epidérmico sistema de proteção social nos
EUA, com a redução de impostos sobre os ricos, a precarização das relações
de trabalho, a transferência de empresas ou da produção para fora do país, a
terceirização, a elevação do desemprego e o decorrente rebaixamento dos
salários, a concentração de renda no país voltou a aumentar para patamares
primitivos, similares aos do final do século XIX.
Se, em 1981, os 1% mais ricos do país ficavam com algo em torno de 8%
da renda nacional, em 2007, esta fatia voltou a se aproximar de 20%. Já a
parcela apropriada pelos 0,1% superiores mais que triplicou desde 1980, para
7%. Isso supera mesmo países de renda tradicionalmente concentrada, como
o Brasil, onde, nas últimas duas décadas, os 1% da ponta da pirâmide de
renda se apropriaram de algo entre 13% e 14% da renda nacional. Esses
números podem ser ainda maiores e dão uma noção de quem está
suportando a dor da crise nos EUA:

[...] a distribuição, cada vez mais enviesada, do rendimento


dá uma indicação clara quanto a quem deve ser: cerca de
um quarto de todos os rendimentos nos Estados Unidos
agora vai para 1%, enquanto para a maioria dos norte-
americanos o rendimento hoje é menor do que era há uma
dúzia de anos. (STIGLITZ, 2011, p. 2, grifo nosso)

Stiglitz (2011) avalia ainda que com a crise, até o início de 2011, 10% das
famílias do país já teriam perdido suas casas com as hipotecas.
79 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Evidentemente, para o mecanismo econômico, a reconcentração de renda


fez com que o ritmo de crescimento da demanda ficasse por baixo do
crescimento da oferta interna e externa, sendo, portanto, outro fator
explicativo para a crise de 2008. A produção massiva não pode subsistir sem
consumo massivo, como bem mostrou Michael Harrington (1989), um dos
principais estudiosos das estratégias de Ford nos Estados Unidos. Este elemento
de saturação dos mercados por excesso de oferta também havia estado na
base da Grande Depressão (HEILBRONER, 1987), o que levou Keynes a
incorporar em sua teoria instrumentos para incrementar antes de tudo a
demanda efetiva nos países.
Para um economista político ou um cientista social, as linhas do Gráfico
1 sintetizam toda a história da luta social no século passado pela apropriação
do produto nacional pelas distintas classes em conflito. Em termos de
lucratividade, o neoliberalismo foi excepcionalmente bom para as classes
ricas. Porém, se o parâmetro for o aspecto social, esta ideologia, que visava
reformar o capitalismo para fazê-lo voltar ao primitivismo social do capitalismo
liberal sem freios do século XIX, foi sem dúvida, como mostrou Laurel (2002), um
grande retrocesso civilizatório.

Felizmente, em certos países europeus, mesmo nas últimas três décadas


de neoliberalismo, a concentração de renda não se elevou ou até caiu. A
média da parcela apropriada pelo 1% mais ricos na França e na Suíça em
2010, por exemplo, foi de 8% da renda nacional. Na década de 1960, estes
ultra ricos nestes dois países abocanhavam 10% e 12% do bolo nacional,
respectivamente (POCHMANN, 2007).

Além disso, em outras partes do mundo e especialmente na Europa,


apesar de toda ofensiva neoliberal contra o Estado provedor, pela maior
resistência dos trabalhadores organizados e dos movimentos sociais, os gastos
com os sistemas de proteção social não foram tão ceifados como nos EUA
(ZIMMERMANN e ALVES, 2009). Em alguns países, apesar do esforço neoliberal
para reduzi-los, chegaram mesmo a subir, o que se pode comprovar pela
Tabela 2.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
80

Tabela 2 – Gastos com proteção social em países europeus, em % do PIB


Países/ano 1970 1980 1983 1989 1994 2000 2003
França 18,9 25,4 28,3 28 30,2 29,5 30,9
Alemanha 21,5 28,7 28,8 27,3 27,7 29,3 30,2
Dinamarca 19,6 28,7 30,1 29,6 32,5 28,9 30,9
Itália 14,4 19,4 22,9 23,2 26 25,2 26,4
Países Baixos 19,6 30,4 33,8 30,2 31,7 27,4 28,1
Reino Unido 14,3 21,5 23,9 20,6 28,6 27 26,7
Fonte: MURAD (1993) e EUROSTAT, apud ZIMMERMANN e ALVES (2009, p. 230).

2.5 Fim da onda neoliberal?

Para Bresser Pereira (2008), chegou ao fim, com a crise atual, a onda
ideológica neoliberal. Isto deve ser relativizado e verificado. Por um lado, a
grande comoção econômico-financeira na qual o mundo mergulhou em 2008
com certeza quita – como já havia acontecido na Grande Depressão iniciada
em 1929 – toda legitimidade aos principais argumentos liberais. Esta nova
depressão veio demonstrar mais uma vez que o capital deixado livre, sem
controle, é irracional, caótico, e cego em termos humanos. No auge do
terremoto de 2008, em pânico diante do precipício, os mesmos apologistas do
mercado e candidatos a coveiros do Estado – de repente, todos ironicamente
transformados em keynesianos – recorreram exatamente à bóia da salvação
estatal.
Fora dos EUA, as reformas e a macroeconomia neoliberal claramente
fracassaram em promover o desenvolvimento econômico dos países que as
abraçaram, como foi o caso de muitos países da América Latina que seguiram
a agenda do Consenso de Washington (WILLIAMSON, 1990). Estes países,
inclusive o Brasil, tiveram crescimento econômico pífio durante as décadas de
1980 e 1990, sem reduzir em nada seus problemas sociais. Muitos, como a
Argentina, se desindustrializaram. O único aspecto que se poderia alegar
como resultado positivo dessas orientações é a estabilização monetária, mas
isso não foi fruto necessariamente da ortodoxia neoclássica, mas sim a
imposição de uma necessidade. No entanto, após a crise de 2008/2009,
81 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

sequer o argumento da estabilidade e do equilíbrio – parcial ou geral – dos


mercados os liberais podem ainda sustentar.
Depois de 2008, em termos estritamente ideológicos, pode-se com
certeza afirmar que a autoridade dos ortodoxos no debate econômico,
especialmente no que tange à relação do Estado com a economia e com a
sociedade, está bastante abalada. Mas isso não implica que eles perderam o
leme da política econômica na maioria dos países. Pelo que se pôde observar
nas crises das economias de muitos países da União Européia durante 2010,
como Grécia, Irlanda, Espanha, Portugal, França etc., constata-se o contrário:
eles ainda estão muito bem alojados nos governos, nos bancos centrais, nas
universidades e nas escolas de Economia.
Os mesmos governos que premiaram com trilhões de dólares dos cofres
públicos os bancos e especuladores que criaram ou alimentaram a farra
financeira que detonou a crise de 2008, arruinando a vida de milhões e
gerando imensos déficits públicos, aplicam agora, em nome da austeridade,
as mesmas amargas políticas de cortes em benefícios sociais, empregos e
salários. Ou seja, a mesma prescrição neoliberal de antes. As vítimas da
irresponsável orgia financeira de uns poucos ricos e novos ricos são obrigadas
a pagar ainda mais. Os imensos protestos sociais vistos na Europa desde 2010
são decorrentes da revolta contra a imoralidade desta opção.
As políticas recentes desses governos indicam que ainda não há um
esgotamento do neoliberalismo como sugere Bresser Pereira, que a força
desta corrente não está exaurida, que o recurso à intervenção do Estado até
aqui foi exclusivamente para salvar o capital. Não há, por enquanto, até 2013,
uma nova virada do capitalismo global em direção a uma segunda onda de
keynesianismo, como na década de 1930. Não ocorre hoje em nenhum país
algo sequer parecido ao New Deal de Roosevelt nos anos 1930. E tampouco
os movimentos socialistas sob a bandeira do marxismo, ainda muito
fragmentados, voltaram a acumular até aqui forças suficientes para
apresentar uma alternativa global ao capitalismo, como depois de 1945. A
explicação do não afastamento do neoliberalismo até o momento, apesar da
gravidade da crise atual, é também que, pela ação rápida e coordenada dos
governos, ela não teve a mesma intensidade da Grande Depressão iniciada
em 1929. Novos repiques da crise atual poderão alterar a situação.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
82

Nem sempre, no entanto, as saídas das crises caminham num sentido


positivo, como bem o demonstrou a década de 1930 com o surgimento do
nazismo e o mergulho na Segunda Grande Guerra, com o custo humano de
mais de 72 milhões de mortos. Para que não venha um novo e maior desastre
civilizatório, por ninguém desejado, afastar o neoliberalismo – e dessa vez
talvez definitivamente – da condução dos assuntos humanos, ao mesmo
tempo em que se constrói uma nova alternativa ao capitalismo, através das
lutas sociais e do debate sem tréguas, é uma tarefa pendente e urgente
daqueles que ainda pensam no progresso social.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS: A CRISE COMO OPORTUNIDADE DE CONSTRUIR UMA


NOVA AGENDA NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO

Quando apenas se pronunciava a crise mundial em andamento, Cano


(2007, v. 1, p. 59-69) perguntava: Brasil: é possível uma reconstrução do Estado
para o desenvolvimento? Desde o início da crise até hoje, os Estados têm
agido apenas na direção de socorrer o capital. Mas os tempos mudaram.
Mesmo lentamente, o pêndulo do pensamento econômico começa a se
mover e a resposta à pergunta de Cano pode ser sim. A crise atual vem
abrindo espaço também para uma rediscussão do papel do Estado na
indução do desenvolvimento econômico e social, para uma reorientação de
agenda, para as sociedades se oporem aos ajustes fiscais e exigirem a
manutenção e, num segundo momento, a ampliação mesmo das políticas
sociais.
O Estado começa a ser visto novamente não apenas como problema,
mas como solução (EVANS, 1993). Não é outro o sentido da aprovação da
reforma no sistema nacional de saúde pública por Barack Obama nos EUA,
ainda que muito limitada. As imensas mobilizações sociais de jovens
desempregados, “indignados”, na Espanha e em toda a Europa desde 2010
ocorrem contra a redução das políticas sociais de Estado e pela falta de
empregos. Lentamente esses movimentos começam a apontar para os
verdadeiros responsáveis pelo desastre atual. O movimento Ocupe Wall Street
em Nova Iorque, neste segundo semestre de 2011, com repercussões em
centenas de cidades pelo mundo, denuncia a ganância irresponsável dos
83 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

bancos e especuladores. As revoluções democráticas no mundo árabe desde


2011 também são parte desse amplo processo de rejeição a um capitalismo
sem freios. Parcela da população do planeta está acordando e se pondo em
movimento contra os efeitos da crise e contra um capitalismo voraz,
desacorrentado, bestializado.
No Brasil, a propaganda do Partido dos Trabalhadores – PT - não para
de divulgar os avanços sociais do governo Lula, apoiada no fato de que, nos
últimos oito anos, existiram alguns pequenos avanços em relação ao governo
de FHC e do PSDB. Divulga-se à exaustão o fato de que mais de 30 milhões de
brasileiros tenham deixado a miséria extrema e que o país tenha praticamente
universalizado a educação básica. Programas de transferência de renda,
como o Bolsa-Família, que beneficiava 12,7 milhões de famílias em 2011, foram
centralizados e ampliados. Entretanto, números como esses não deveriam
obscurecer a visão da inteligência crítica de esquerda no país. Ainda são
gritantes os indicadores de atraso social, econômico, tecnológico, cultural e
político a superar no Brasil. Mesmo integrantes dos governos do PT nos últimos
anos, reconhecem que, apesar daqueles pequenos avanços, “A
desigualdade no Brasil continua coisa de sociedade feudal” (POCHMANN,
2010, p.12).
O fato é que, como procurou demonstrar Cano (2010), o governo Lula
não rompeu com os pilares centrais da política macroeconômica neoliberal
anterior, como o elevado superávit primário para pagar a dívida pública, do
que decorre austeridade fiscal; alta taxa de juros para atrair e remunerar o
capital financeiro; controle da inflação pela elevação dos juros e
represamento da demanda e não pelo aumento da produção; câmbio
flutuante e relativa liberalização comercial; ampliação da política social de
forma apenas residual, sem tocar nas reformas estruturais cruciais que o país
precisa fazer. Os pequenos progressos apresentados ocorreram num marco
global de continuidade, onde o essencial do modelo neoliberal anterior não
foi alterado.
De acordo com dados do próprio Banco Central do Brasil, em 2011, o
país desembolsou aproximadamente R$ 230 bilhões com o pagamento de
juros da dívida pública, o que equivale ao custo de mais de 10 programas
Bolsa-Família. Se por um lado esse barato programa social custa ao país
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
84

anualmente algo em torno de 0,5% do PIB, o custo da dívida pública drenou


entre 5% e 8% do PIB para o setor financeiro nos últimos anos. Em 2012, os
recursos destinados ao seu pagamento consumiram mais de 45% do
Orçamento Geral da União, o que pode ser facilmente comprovado nos
portais oficiais. Ou seja, enquanto se tenta reduzir a desigualdade por um lado,
a dívida pública segue concentrando renda e riqueza por outro. E os interesses
dos bancos foram tratados nos últimos governos, inclusive nos de Lula e Dilma
Rousseff, como um tabu sagrado, intocável. Como a dívida pública em
grande medida está indexada à taxa básica de juros, cada ponto a mais
nesta taxa desvia bilhões de reais dos assalariados para as mãos de 20 mil
famílias no Brasil, muito mais do que o que retorna à sociedade com alguns
baratos programas sociais.
Ninguém contesta, nem mesmo o governo, que a Reforma Agrária
quase nada avançou. Apesar dos poucos novos assentamentos, continua em
andamento o processo de concentração fundiária no país. De acordo com o
Censo Agropecuário do IBGE de 2006, divulgado em 2009, o índice de Gini de
concentração fundiária saltou de 0,843 em 1998 para 0,854 em 2006. Segundo
reportagem publicada pela revista Carta Capital, número 657, de 3 de agosto
de 2011, de acordo com o Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), os
créditos para assentamentos despencaram de 958 milhões de reais em 2009
para apenas 30 milhões de reais nos primeiros sete meses de 2011, um
acumulado muito abaixo da média dos anos FHC, o que indica a quase
paralisação da Reforma Agrária no primeiro ano do governo de Dilma
Rousseff. É consenso que a maior aposta do governo Lula – o que se repete no
governo Dilma –, em volume de investimentos, é no grande agronegócio
exportador, como o etanol e a soja.
A estrutura tributária brasileira continua extremamente perversa e
concentradora de renda e riqueza. Além do aumento da carga de impostos
nas últimas décadas, hoje em torno de 35% do PIB, a sua incidência
centralmente sobre os produtos penaliza principalmente os pobres. E grande
parcela da arrecadação não retorna sob a forma de serviços à população,
mas é transferida para uns poucos milhares de famílias ricas através do
mecanismo da dívida pública, que reconcentra a renda em proporção muito
maior do que as transferências às famílias através dos programas sociais.
85 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Outra questão preocupante é o atraso tecnológico que o país vem


acumulando, com o risco de desindustrialização. É verdade que existem
avanços setoriais, como na indústria naval e na área do petróleo. Mas, em
termos gerais, ao contrário dos países asiáticos, o Brasil tem ficado para trás no
domínio de tecnologias de ponta (SCHWARTZ, 2006), especialmente na área
de informática e de comunicações, apenas montando computadores e
celulares, importando praticamente todos os componentes essenciais, dos
quais não domina a tecnologia de fabricação. Isso vem gerando uma
elevação no déficit do balanço comercial de produtos de alta tecnologia, o
que já está obrigando o governo de Dilma Rousseff refrear as importações e
conter o ritmo a economia. Vem caindo o peso dos produtos industrializados
na pauta de exportações, enquanto dispara a porcentagem de produtos
primários remetidos, um risco de volta ao passado. São questões estratégicas
ofuscadas pela propaganda do governo, que entorpece a visão coletiva para
pensar os grandes desafios que tem o país.
Construir uma nova Agenda Nacional de Desenvolvimento, como
sugeriu Cano (2010), exige uma ruptura real e definitiva com o modelo
neoliberal, que coloque em pauta uma verificação e a rediscussão das formas
de pagamento da dívida pública; uma significativa redução da taxa real de
juros; uma reforma tributária que estabeleça imposto fortemente progressivo
de acordo com a renda e a riqueza dos contribuintes, como ocorre nos países
europeus; a elevação da taxa de investimento produtivo para um mínimo de
25%; a reavaliação da política cambial, de forma a proteger as empresas e os
empregos dos trabalhadores do país; uma elevação significativa dos
investimentos em educação, ciência e tecnologia; maior atenção básica à
saúde, habitação etc. Além disso, uma Reforma Agrária verdadeira, que não
destrua mais o meio ambiente, como faz o agronegócio. Estes seriam apenas
alguns pontos de partida de uma agenda de pontos de discussão e ação
para uma mudança real no país.
Evidentemente, essa virada não se dará de forma automática, apenas
pelo impacto da crise global, sem pressão social nos países, pois os poderosos
interesses das empresas financeiras, industriais, agrícolas ou mineradoras, bem
como a ideologia e a mão do neoliberalismo, seguem bem presentes nos
governos, inclusive no Brasil, opondo-se às mudanças. O contingenciamento
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
86

de aproximadamente R$ 50 bilhões do orçamento federal de 2011 pelo


governo de Dilma Rousseff, como o clamor de quase toda classe a capitalista
e de sua mídia por mais cortes nos gastos e nos investimentos públicos, são
uma constatação do que se diz acima e indicam o rumo escolhido pelo novo
governo. Depois do “desvio” muito fracamente keynesiano dos últimos dois
anos do governo Lula, forçado pela crise global, a orientação do novo
governo parece agora retornar à “normalidade” ortodoxa dos primeiros anos
do governo anterior, continuada por Guido Mantega.
A consequência disso é a manutenção de um quadro secular pouco
alterado de desigualdade e concentração de riqueza e renda, sem tocar nos
grandes interesses do grande capital e modificando apenas tópica e
lentamente a questão social. Disto decorre que a construção de uma nova e
ousada agenda nacional, positiva, centrada no desenvolvimento econômico
e humano sustentável, dependerá do debate franco, honesto, e, antes de
tudo, de uma maior mobilização social, da intensidade da reação das
sociedades aos novos planos de ajuste fiscal aplicados pelos governos e
organismos que criaram a grande recessão iniciada em 2008. A onda de
mobilizações observada atualmente na Europa e agora nos EUA não tardará a
chegar ao Brasil, sendo talvez o impulso que o país precisa para iniciar uma
mudança real da agenda.
87 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

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.
89 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Apontamentos para uma História Econômica


da Cidade de Diamantina1
Alessandro Borsagli2
Fernanda Guerra Lima Medeiros Borsagli3

RESUMO
Sendo a economia um dos principais fatores para o desenvolvimento e o
povoamento de uma região, então se uma região apresenta uma
economia estável, propiciada pela exploração de recursos naturais, ou
mesmo como entreposto comercial, ela se torna atrativa para a migração
ocorrendo então um aumento populacional e urbano. Esse é o caso de
Diamantina, já que nessa cidade, seu crescimento urbano está
estritamente ligado ao crescimento econômico. No período colonial houve
um maior controle populacional na cidade de Diamantina por parte da
Coroa, então detentora exclusiva da exploração dos diamantes no Distrito
Diamantino. No final do Século XIX ocorre um fluxo migratório para a
cidade, em decorrência do crescimento econômico proporcionado pela
acumulação de capital oriundo da decadente exploração de diamantes.
Nas primeiras décadas do Século XX a cidade sofre uma estagnação
econômica e urbana chegando a decrescer a partir dos anos 1950 em
decorrência da decadência econômica. Nas ultimas décadas a
economia vem crescendo novamente, juntamente com a malha urbana
da cidade.

Palavras chave: Crescimento econômico, crescimento urbano, diamantes.

ABSTRACT
The economy is a major factor for the development and population of a
region. If the region has a stable economy, caused by the exploitation of
natural resources or even as a trading makes it attractive for migration
occurring then a population increase and urban development. In
Diamantina town, urban growth is closely linked to economic growth.
During the colonial period there was a higher population control in the city
of Diamantina by the Portuguese Crown, then sole owner of the
exploitation of diamonds in the Diamond District. In the late nineteenth
century is a migration to the city, due to the economic growth provided by
the accumulation of capital from the decadent diamond exploration. In
the first decades of the twentieth century the city suffered an economic
stagnation and declining urban coming from the year 1950 due to
economic decline. In recent decades the economy is growing again,
along with the city network.

Keywords: Economic growth, urban growth, diamonds.

1 Artigo apresentado em 10/04/2013 e aprovado em 11/06/2013.


2 Bacharel em Geografia – PUC – MG.
3 Graduanda em Engenharia de Materiais – CEFET – MG.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
90

INTRODUÇÃO
A Restauração da Independência de Portugal em 1640
encerrou com a dominação espanhola sobre o Reino que durou
sessenta anos. Portugal saiu da União Ibérica economicamente
arrasado. A economia açucareira, alicerce da economia
portuguesa estava desorganizada e grande parte dos entrepostos
comerciais de Portugal no Oriente haviam sido perdidos para outras
nações que emergiam como potencias nesse período. Para manter
as suas colônias, responsáveis pela base de sua economia, Portugal
se viu obrigado a se aliar a uma das potencias emergentes no
período e em 1642 é fechado o primeiro acordo entre Portugal e
Inglaterra.
Nas décadas seguintes o mercado do açúcar produzido nas
colônias de Portugal ainda não havia conseguido se organizar,
principalmente pela baixa dos preços no mercado europeu
causada pelo açúcar das Antilhas Francesas e Holandesas. Junto
com a decadência das colônias vinha a decadência da
Metrópole. O iminente colapso econômico que se projetava forçou
o Reino a encontrar uma solução para o déficit da balança
comercial portuguesa. A solução encontrada pelo reino foi o
investimento em expedições pelo interior do Brasil em busca do tão
sonhado metal precioso, cuja existência já se conhecia através de
relatos fragmentados de alguns exploradores e caçadores de índios
provenientes de São Paulo. Foi necessário quase um quarto de
século para a descoberta de ouro em parte do território que hoje
pertence ao estado de Minas Gerais.
A descoberta de ouro no interior do Brasil no final do Século
XVII reacendeu a economia portuguesa, em franca decadência,
conforme dito anteriormente desde meados do Século XVII devido
à concorrência dos produtos oriundos das colônias inglesas,
holandesas e francesas nas Américas. Isso levou a um imediato
deslocamento de grandes contingentes populacionais para a
região das Minas. Uma conseqüência desse deslocamento foi o
surgimento de numerosos núcleos urbanos nas imediações das
91 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

áreas de mineração. Ao longo dos anos, alguns desses núcleos,


estrategicamente situados em áreas onde a Coroa pudesse manter
controle, foram crescendo e se fortalecendo economicamente
sendo que alguns deles foram elevados à condição de Vila. Na
região do Serro Frio apareceram inúmeros núcleos mineradores que
com o tempo se tornaram arraiais, como por exemplo, o Arraial do
Tejuco, atual Diamantina.
Desde a sua fundação, a cidade de Diamantina sempre
desempenhou um papel central na região do Alto Jequitinhonha. A
descoberta de diamantes na região do Arraial do Tejuco, fez com
que a Coroa desempenhasse um maior controle da região, uma
vez que um grande contingente populacional se deslocou para a
região atrás das riquezas provindas do garimpo. O comércio do
arraial, desde os tempos coloniais sempre foi forte e abastecia todo
o norte mineiro. O arraial adquiriu formas bem distintas em relação
aos demais centros urbanos da capitania de Minas Gerais surgidos
no mesmo período, tanto na sua organização social, como na
organização econômica e política4.
Durante sua história, a cidade de Diamantina passou por
alguns períodos de prosperidade econômica, com forte
desenvolvimento do comércio, extração e lapidação de minerais
preciosos, períodos de estagnação econômica e até crises. As
marcas destes diferentes períodos econômicos de Diamantina estão
refletidas no traçado urbano e nas características das edificações.
Para se que possa compreender melhor estes períodos econômicos
eles foram divididos em quatro períodos, porem ligados entre si,
ainda lembrando que o crescimento econômico está estritamente
ligado ao crescimento urbano.

1º Período: Da fundação do Arraial do Tejuco até o término do


período dos Contratadores no final de 1771.

4 Fundação João Pinheiro, vol. 9, n° 7, p. 466, jul. 1979.


Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
92

O Arraial do Tejuco, atual Diamantina, surgiu como os outros


núcleos urbanos do seu tempo em decorrência da existência e
posterior exploração aurífera.
Estes arraiais que foram proliferando ao ritmo das descobertas de
novos veios nos regatos e grupiaras espalhavam-se por áreas
contíguas e por conta disso foram compondo uma rede urbana “ao
longo dos caminhos e estradas nas encruzilhadas ou nas travessias
de cursos d‟água, a margem dos locais onde o ouro e o diamante
eram encontrados” (SILVA TELLES, 1978, p.46). Normalmente os
arraiais, que se assentavam ao redor de capelas, orientavam-se
pelos caminhos, configuração que se observa nos primeiros núcleos
de povoamento, como lemos nas palavras de Silvio de
Vasconcellos:

(...) suas ruas são sempre antigas estradas. Por isso


mesmo, foram a princípio chamadas de rua da
Praça, da Matriz, da Câmara, etc. Não porque
nelas se localizassem estas edificações, mas
porque a elas conduziam. Por isso mesmo ainda
hoje os habitantes da zona rural tratam a cidade
como „a rua‟, no singular, como uma reminiscência
do trecho único da estrada onde se construíram
estabelecimentos comerciais. „Vou à rua fazer
compras‟, dizem. E, realmente, à rua quase só vão
com essa finalidade (VASCONCELLOS, 1959)

Inicialmente o núcleo primitivo do Tejuco assentou-se na


vertente do Córrego São Francisco onde se localizam as ruas de
Santa Catarina e do Burgalhau. A ocupação se deu nesse local por
estar próximas às lavras auríferas e pelo fato de que a estrada de
acesso a Vila do Príncipe e a Vila Rica, então capital da Província,
cortar o arraial. É por ela que chegavam os víveres necessários para
a sobrevivência da população do arraial. As cidades mineiras do
Século XVIII surgiram todas pelos caminhos abertos pelos primeiros
exploradores. Os caminhos que interligavam os arraiais e que
posteriormente transformaram-se em estradas anteciparam a
institucionalização do espaço destes arraiais devido ao comércio e
as rotas de abastecimento, caracterizando-os não mais apenas
93 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

como um “espaço de produção”, mas sim como “espaço de


reprodução”, já que a ordenação e normatização urbana são sinais
de que isso se define.
A declaração da descoberta dos diamantes em 1729 fez
com que um grande número de pessoas se deslocasse para o
arraial. Um comerciante, Francisco da Cruz morador da Vila de
Sabará relatou que a Vila estava ficando deserta, pois todos
corriam para a região diamantina5. A chegada de tamanha
população fez com que o arraial se expandisse para além do
núcleo inicial. Ele foi crescendo em direção do Morro de Santo
Antonio e o centro do arraial foi então deslocado para uma área
menos tortuosa, no qual hoje se localiza a Praça da Matriz, atual
centro de Diamantina. O arraial cresceu tanto em tão pouco tempo
que o Governador da Capitania, Dom Lourenço de Almeida,
reconheceu que a população do arraial já ultrapassara em muito a
da Vila do Príncipe, embora esta fosse a “cabeça” da comarca. A
influência do Tejuco já se espalhara por todo o norte de Minas. A
economia do arraial sofreu um grande impulso com a descoberta e
com o grande número de pessoas que se deslocaram para lá.
Apareceram negociantes, comerciantes e tantas outras funções
que a Coroa então percebeu que era necessário um maior controle
sobre a região evitando assim prejuízos ao Erário Real.
Em 1731 foi enviado ao Governador um decreto impedindo a
exploração dos diamantes em todos os rios que os tivessem,
decretando então o monopólio real sobre as gemas. A Metrópole
queria ter maior lucro com as jazidas, já que só se cobrava apenas
o imposto da Captação. Mas o decreto não foi posto em prática e
o comércio do diamante voltou a ser franqueado em toda a região
e o arraial do Tejuco, centro do comércio do diamante, continuava
recebendo mais pessoas vindas das minas e até mesmo de
Portugal.
A Coroa, percebendo a necessidade de uma administração
especial na região resolve criar no inicio de 1734 a Intendência dos

5 FURTADO, Chica da Silva, 2003, p.29.


Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
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Diamantes. Nesse mesmo ano foi publicado um decreto que proibia


toda e qualquer exploração dos diamantes na Demarcação. O
fluxo de diamantes foi tão grande que o seu preço despencou na
Europa, causando grandes prejuízos para a Coroa. Até 1734 os
limites do Distrito ainda não se encontravam bem definidos, os
decretos proibindo a mineração faziam apenas menção aos rios e
ribeirões proibidos. Foi então feita uma delimitação mais precisa dos
limites do Distrito em 1739, com cerca de oito postos fiscais que
controlavam a entrada e saída do distrito (Figura 01). Também em
1739 foi estabelecido o sistema de exploração das lavras
diamantinas por contrato, levando então a população residente no
Distrito a procurar novas formas de sobrevivência.

Figura 01: Mapa do Distrito Diamantino onde se vê no centro da


imagem o arraial do Tejuco, ponto de convergência de toda a
região.
Fonte: Arquivo Público Mineiro.
Com o maior rigor por parte da Coroa o arraial, centro de
convergência do comércio do Distrito e de fora dele, passou a ter
mais controle sobre o que era aí comercializado. Era de extrema
importância para a metrópole o controle, pois o contrabando era
95 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

extremamente forte e servia como base econômica de inúmeras


famílias do Tejuco e em muitos casos, os contrabandistas eram
acobertados pela própria Intendência6. Segundo cálculo de
Eschwege7, no inicio do século XIX o volume do contrabando era
igual ao da produção. Daí se pode concluir a importância do
contrabando para a economia do Tejuco no período colonial.
Segundo Felício dos Santos, foi no período dos Contratadores
que o Tejuco aumentou consideravelmente sua população e o
comércio se desenvolveu, mesmo com as leis e bandos em vigor,
que procuravam controlar e até mesmo extingui-lo8.
Uma das características da economia do Arraial no período
colonial eram os rearranjos da população em torno das leis e
decretos que vinham da metrópole, restringindo ou mudando a
forma de exploração e ocupação do território. A Metrópole poderia
e realmente tinha a intenção de inibir o máximo possível a
acumulação gerada pelo comércio no Distrito, mas a população
sempre encontrava uma saída para a sobrevivência estabelecendo
redes de contrabando de diamantes, que a Coroa não conseguia
desarticular, alugando escravos para os Contratadores e,
posteriormente para a Real Extração, como também se
empregando na Administração, como se verá adiante. Mas, se por
um lado a Coroa tentava controlar o Distrito para evitar a
acumulação de Capital, por outro essa acumulação favorecia o
Mercantilismo entre Colônia-Metrópole com a compra de produtos
vindos de Portugal por alguns moradores mais abastados do Arraial
que acumulavam fortunas devido ao contrabando de diamantes.
O Mercantilismo era à base da economia brasileira no período
colonial sob qual Portugal detinha os monopólios do comercio sobre
os produtos enviados para a colônia. Esse monopólio perdurou até
1808 com a vinda de D.João VI para cá. E aquele era na verdade,
a transferência da riqueza da colônia para a metrópole, sendo que
no caso de Diamantina o enviado eram os diamantes, pequenas

6 FURTADO, Livro da Capa Verde, 1996, p.65.


7 ESCHWEGE, Pluto Brasiliensis, 1974, vol.2, p.89.
8 SANTOS, Memórias do Distrito Diamantino, 1976, p.119.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
96

quantidade de ouro e pedras preciosas, tudo severamente


controlado pela Coroa. O destino desses minerais na época já foi
bastante estudado por diversos autores: o ouro foi em grande parte
para a Inglaterra e serviu para financiar a Revolução Industrial, ao
mesmo tempo em que o metal também ajudaria a fortalecer a
economia da Ilha, em um comércio quase unilateral com Portugal,
que trocava o ouro por manufaturas e artigos de luxo. Já o
diamante, monopólio régio era a produção praticamente
empenhada aos banqueiros e negociantes holandeses.
Com a dificuldade de combater os descaminhos do
diamante, em 1771 o Marques de Pombal criou o monopólio real
dos diamantes extinguindo o sistema de exploração por contrato e
criando a Real Extração dos Diamantes.

2º Período: De 1772, quando a Real Extração assume o controle pela


extração no Distrito até por volta de 1832 quando os rios
diamantíferos foram franqueados para quem os quisesse explorar.

A população do Distrito em 1772 soube se reorganizar em


torno do novo sistema de exploração dos diamantes e passou a tirar
daí o seu sustento. A classe média do Tejuco, por exemplo, passou a
compor a guarda responsável pelo patrulhamento do distrito. A
classe dominante, composta de portugueses e descendentes,
passou a ocupar os cargos da Real Extração. Os escravos, que
antes trabalhavam para os contratadores, foram alugados para a
real Extração, que pagava aos seus senhores diárias pelo serviço
(Figura 02). Mesmo com essa mudança na exploração dos
diamantes continuaram tendo importância as outras atividades
(comércio, agricultura e pecuária), atividades que eram exercidas
dentro e fora da demarcação e que tinham participação de alguns
cidadãos do arraial.
97 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Figura 02: Serviço de extração de diamantes no Rio


Jequitinhonha em 1803.
Fonte: Arquivo Público Mineiro
Uma grande parcela da população tinha escravos alugados
para a Real Extração e muitos deles viviam do aluguel pago pela
Junta. Quando a Coroa pensou em revogar o monopólio dos
diamantes em 1803, a população que vivia desse aluguel ficou
temerosa de perder essa importante fonte de renda e para evitar
um colapso da economia local foi necessário que a Coroa desistisse
por um tempo dessa medida. Uma revogação do monopólio
prejudicaria consideravelmente a população do arraial que já tinha
consolidada a sua economia na Real Extração e a coroa
suprimindo o monopólio certamente levaria o arraial e região à
ruína.
Saint-Hilaire observou, em 1818 o modo usado pelos
habitantes do Tejuco para empregar seu capital:

A compra de escravos é também para grande


numero dos habitantes de Tijuco [sic],um meio fácil
de valorizar seus capitais;eles alugam à
administração dos diamantes os escravos de que
se tornam proprietários,e por esse meio retiram de
seu capital juros de cerca de 16%. (SAINT-HILAIRE,
1974, p. 19)
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
98

O comércio nesse período era intenso e supria a região com


diversos artigos, geralmente importados de Portugal e da Inglaterra
além dos cereais e grãos produzidos nas terras próximas do Distrito.
John Mawe observou em 1808 que as altas somas pagas pela Real
Extração:
(...) movimentam grande comercio. As lojas estão
abarrotadas de mercadorias de fabricas
inglesas,assim como presuntos,queijo, manteiga,
cerveja e outros produtos de consumo. Animais
carregados deles chegam muitas vezes da Bahia e
do Rio de Janeiro9 (MAWE,1974, p. 158)

Saint-Hilaire registrou em seu diário que:

As lojas dessa aldeia são providas de toda sorte de


panos; nelas se encontram também chapéus,
comestíveis, quinquilharia, louças, vidros e mesmo
grande quantidade de artigos de luxo, que
causam admiração sejam procurados a uma tão
grande distancia do litoral (SAINT-HILAIRE, 1974, p.
33)

A partir de 1822, após a declaração de independência do


Brasil vários rios diamantíferos foram franqueados para quem os
quisesse explorar por sua conta. A Real Extração estava em franco
declínio e impossibilitada de honrar os pagamentos em relação ao
aluguel dos escravos. Em 1832 o governo Imperial resolve extinguir a
Real Extração não acertando os alugueis dos escravos nem
honrando dividas anteriores. Seus proprietários passaram então a
empregá-los na exploração dos rios franqueados mantendo-se em
parte o equilíbrio da economia da agora Vila Diamantina, criada
em 1831. Na década de 1840, uma população estimada em cerca
de 150 mil habitantes vivia direta ou indiretamente da exploração
de diamantes na região de Diamantina.
George Gardner, ao visitar a cidade de Diamantina em 1840
registra em seu diário que:

9 MAWE, Viagens ao Interior do Brasil, 1974, p.158.


99 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Muitas das lojas são bem iguais no aspecto às do


Rio de Janeiro e sortidas mais ou menos dos
mesmos artigos e a diferença de preço raramente
excede de vinte por cento10 (GARDNER,1975, p.
208)

Segundo Fernandes e Conceição (2003):

as décadas de 1840 e 1850 foram testemunhas de


um rápido crescimento demográfico e de uma
significativa acumulação capitalista. Aos antigos
mineradores e proprietários de escravos somaram-
se novos comerciantes de diamantes, atacadistas,
fazendeiros, assim como garimpeiros ricos, frutos da
descoberta de novas jazidas. Espelhando essa
recente expansão econômica houve uma
aceleração do crescimento da malha urbana de
Diamantina (FERNANDES & CONCEIÇÃO,2003, p.
44)

3º Período: Da queda dos preços do diamante na década de 1860


até a modernização dos serviços de transporte, por volta de 1960.

Ao contrario do que ocorreu na região das minas, onde a


decadência da exploração se revelou no final do século XVIII, na
região de Diamantina essa só se consolidou mesmo a partir da
década de 1860, com a descoberta de diamantes na África do Sul.
O comércio dos diamantes entra então em decadência,
provocando queda significativa no preço das gemas brasileiras e
falência de vários negociantes de Diamantina. A elite local
procurou outra forma de aplicar o capital acumulado voltando-se
para o comércio com as outras regiões do estado e para a
implantação de indústrias têxteis, como solução para a onda de
quebras que estava ocorrendo na cidade. As elites locais,
encabeçadas pelo bispo da recém criada diocese de Diamantina,
enviaram uma representação à Câmara Municipal, distribuída
posteriormente em todos os municípios do Norte, na qual
ponderam:

10 GARDNER, Viagem ao Interior do Brasil, 1974, p.208.


Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
100

Não ignorais quais têm sido as conseqüências da


atual crise: o comércio completamente paralisado,
os mineiros arruinados, um quase estado geral de
falências; e o que ainda é mais horrível, a miséria, a
fome de milhares de trabalhadores que não têm
em que se ocupar e com que sustentar suas
famílias, porque vós o sabeis, nem todos possuem
terras para cultivar.
Uma fábrica de tecido neste município daria
emprego a muitos braços e animaria a cultura de
um gênero em completo abandono. E não seria
esta a sua principal vantagem. Outras fábricas
pode se estabeleceriam quando capitais hoje
desanimados vissem um emprego lucrativo, certo e
não precário de um comércio e mineração quase
extinta (SOUZA, 1993).

As elites locais resolveram expandir seus investimentos para


alem da indústria têxtil já citada, para o comercio e prestação de
serviços. É nessa época que Diamantina se torna entreposto
comercial entre a região leste colonizada há pouco tempo, que
então escoava suas mercadorias, até o porto de Santo Hipólito no
Vale do Rio das Velhas. Data também dessa época, uma tentativa
de maior valorização dos diamantes no mercado internacional,
com a criação das casas de lapidação. O isolamento da região
proporcionou um fortalecimento do mercado regional protegido da
concorrência externa. Diamantina tornou-se então, até as primeiras
décadas do século XX, um dos mais importantes centros de
comércio e indústria de Minas Gerais expandindo sua influencia por
todo o norte mineiro (Figura 03). O período mercantilista já havia
acabado, porém ainda havia uma maciça presença de produtos
estrangeiros na cidade, não portugueses, mas na maioria ingleses. E
como em outras partes do estado o capital estrangeiro fazia-se
presente também em Diamantina.
101 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Figura 03: Rua Direita, uma das principais ruas comercias de


Diamantina em 1868.
Fonte: Arquivo Público Mineiro

Segundo Martins, a cidade distribuía para todo o norte de


Minas:

(...) tecidos, objetos de luxo, ferragens, louças,


fumo, sal, querosene, cerveja, vinho, máquinas de
costura, etc. Recebia produtos agrícolas, carne
seca e toucinho, aguardente e rapadura, utensílios
e ferramentas de ferro, algodão, etc (MARTINS,
2003, p. 287)

Não se deve esquecer também que foi no inicio do Século XX


que se inicia a construção do ramal ferroviário devido à pressão
local pela necessidade de um melhor escoamento de mercadorias.
Inaugurado em 1914 o ramal inaugurou uma nova fase de
comunicação de Diamantina com os centros mais importantes do
Estado e também do escoamento das mercadorias de todo o norte
de Minas e Alto Jequitinhonha. Os caminhos tiveram grande
importância para o desenvolvimento de Diamantina, pois eles foram
fatores determinantes para as ligações entre Diamantina e outras
regiões do Estado.
No inicio do século XX, o grande comércio local fazia
negócios com os comerciantes do Rio de Janeiro e Belo Horizonte e
comprava ouro e diamantes para depois revendê-los. As grandes
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
102

casas comerciais de Diamantina estavam presentes em toda a


região, fazendo diversas transações comerciais com os pequenos e
médios estabelecimentos existentes. O mercado municipal
administrado pela Intendência detinha o monopólio do comercio
no abastecimento e era para aí que se dirigiam os tropeiros ao
chegar à cidade, expondo suas mercadorias para a população ter
o acesso antes dos comerciantes locais.
A cidade de Diamantina, em 1925 era uma das dez maiores
cidades em numero de estabelecimentos comerciais, ficando atrás
apenas das cidades ligadas à economia mineira da Republica
Velha.
Por volta dos anos 1930 a região do Alto Jequitinhonha, da
qual Diamantina faz parte, começou a sofrer uma estagnação
econômica deflagrada por vários fatores como a constante
emigração para as regiões mais ao sul, que se industrializavam em
um ritmo acelerado e necessitavam cada vez mais de mão de
obra. A concorrência com os produtos de outras áreas industriais
que antes quase não existiam passou a ser cada vez mais
crescente, em virtude da falta de investimentos nas indústrias da
região que se tornaram obsoletas. A abertura de estradas de
rodagem diminuiu o tempo de chegada de mercadorias de fora
aos centros de comércio, o que levou a partir de Década de 50 a
extinção do oficio de Tropeiro, que constituía desde os tempos
coloniais a principal forma de comércio da cidade de Diamantina
com as cidades do norte. As estradas ainda foram responsáveis
pela perda da liderança que Diamantina tinha no norte do estado,
pois, as principais rodovias foram abertas a leste da cidade, ligando
diretamente os eixos Rio - São Paulo à região leste de Minas Gerais e
Bahia, fazendo com que o fornecimento de mercadorias não
passasse mais por Diamantina como era feito anteriormente.

4º Período: Da decadência da indústria têxtil e da mineração a


partir de 1960 até a recuperação nos dias atuais.
103 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

No inicio dos anos 1960, Montes Claros começa a se


despontar como força polarizadora da região norte de Minas Gerais
com a pecuária e a industrialização que se acentuou nos últimos
anos, tirando a influencia regional que Diamantina exercia no norte
desde o Século XVIII. A cidade passa a ter sua economia baseada
no garimpo, que ainda persistia na região, na agricultura e no
pequeno comércio, que tinha influência em uma região bem menor
do que fora antes. A população migrava para os grandes centros
urbanos a procura de melhores oportunidades. A decadência
econômica também atingiu a cidade do Serro que passou a ter sua
economia fortemente influenciada por Diamantina.
O garimpo começou a entrar em decadência no final da
década de 80 afetando diretamente a economia da região de
Diamantina. Nesse período também surgem às primeiras
preocupações ambientais da forma como estavam sendo
explorados os recursos naturais existentes na Serra do Espinhaço,
onde se encontra Diamantina. A população local e os políticos
abriram discussões para se buscar uma nova forma de reaquecer a
economia diamantinense e assim recuperar a liderança exercida
em tempos anteriores. A cidade de Diamantina, já quase
tricentenária, começou a voltar seus olhos para o turismo. Pousadas
iam surgindo e os casarões centenários passaram a ser reformados
com mais zelo, conservando suas características originais. O centro
histórico já era tombado pelo IPHAN desde 1938 e as autoridades,
tendo Ouro Preto como exemplo queriam ir mais fundo. Diamantina
era no período colonial o mais importante núcleo urbano de Minas
Gerais depois de Ouro Preto11 e, como essa cidade, ainda mantinha
quase todas suas características originais intactas. Os Casarões mais
opulentos, idênticos aos da metrópole, estavam lá ainda como há
mais de 200 anos, testemunhas da ascensão e queda da
exploração diamantífera.
No ano de 1993, Diamantina apresentou pela primeira vez
interesse em se tornar Patrimônio Histórico da Humanidade, um fator

11 SAINT-HILAIRE, Viagem pelas Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais, 1974, p.141.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
104

chave para o fortalecimento do turismo na região, porém a


UNESCO recusou a sua candidatura. Em 1997 Diamantina se
candidatou pela segunda vez na UNESCO para se tornar Patrimônio
Histórico da Humanidade. Finalmente o titulo de Patrimônio Histórico
da Humanidade veio em Dezembro de 1999 aumentando o fluxo
turístico em todo o município e região, da qual Diamantina se
tornou o pólo central para acomodação e partida dos turistas
(Figura 04).

Figura 04: O Mercado dos Tropeiros à esquerda recebia grande


parte dos produtos oriundos do norte de Minas. A direita uma parte
do centro comercial de Diamantina.
Fonte: Foto dos Autores (2009).

Atualmente, além do turismo a cidade se firmou novamente


como pólo regional pelos inúmeros serviços prestados à população
das cidades vizinhas e a própria cidade. A presença de
Universidades e alguns serviços-chave provam isso. A proibição
definitiva do garimpo em 2002 levou ao deslocamento de inúmeras
pessoas da região, que sem serviço, se fixaram na periferia da
cidade em busca de melhores condições.

Considerações Finais
Em comparação com os períodos anteriores, Diamantina
atualmente perdeu a sua influência em parte das regiões norte e
nordeste de Minas Gerais, porém continua exercendo grande
105 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

influência econômica nos municípios vizinhos e no Serro, principal


cidade da região depois de Diamantina. Atualmente, a população
das cidades vizinhas vêm buscar alguns serviços existentes apenas
em Diamantina como Universidades, aeroporto, serviços públicos e
especialidades médicas, além do comércio que atende grande
parte do Alto Jequitinhonha. O diamante, força motriz da economia
diamantinense por mais de duzentos anos, atualmente tem uma
pequena representatividade econômica na região, sendo
explorado por pequenas companhias e por garimpos, na maioria
ilegais.
Diamantina tem se destacado no cenário mineiro pelo fato
de ser considerada Patrimônio da Humanidade pela UNESCO
devido ao seu rico acervo histórico e arquitetônico. O título,
recebido há quase dez anos serve atualmente como propaganda
para atrair turistas para a cidade e região.
O desenvolvimento dos meios de comunicação e principalmente
de transporte a partir dos anos 50 com a abertura de novas
rodovias, ligando as áreas mais ao norte diretamente com a região
central do estado, abalaram um pouco a posição de centralidade
econômica que se encontrava Diamantina. Quando se iniciou a
busca de novas formas de reaquecer a economia diamantinense a
partir dos anos 80 o turismo foi uma das formas encontradas para
vencer a decadência econômica.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
106

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Diamantina: UFVJM editora, 2ª edição, 2007

FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. Editora Fundo de Cultura,


3ª edição 1961.
FURTADO, Júnia Ferreira. Chica da Silva e o Contratador dos Diamantes.
São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
FURTADO, Júnia Ferreira. O Livro da Capa Verde, o Regimento Diamantino
de 1771 e a Vida no Distrito Diamantino no Período da Real Extração.
Editora Annablume; 1ª edição 1996.
GARDNER, G.; Viagem ao Interior do Brasil. São Paulo:Editora Itatiaia, 1975.
MARTINS, Marcos Lobato. As variáveis ambientais, as estradas regionais e o
fluxo das tropas em Diamantina, MG: 1870-1930. Revista Brasileira de
História. São Paulo. v. 26, n.51, p. 141-169. 2006.
MAWE, J.; Viagens ao Interior do Brasil. São Paulo: Editora Itatiaia, 1974.
SAINT-HILAIRE, A.; Viagem pelo Distrito dos Diamantes e Litoral do Brasil. São
Paulo: Editora Itatiaia, 1974.
SANTOS, J.F.; Memórias do Distrito Diamantino. São Paulo: Editora Itatiaia 4ª
edição, 1976.
SILVA TELLES, Augusto Carlos da. A ocupação do território e a trama
urbana. Revista Barroco, Belo Horizonte, v. 10, 1978/79.
SOUZA, José Moreira de. Cidade: momentos e processos. Serro e
Diamantina na formação do Norte Mineiro no século XIX . São Paulo: Marco
Zero,1993.
VASCONCELLOS, Silvio de. A Arquitetura Colonial Mineira. In: Primeiro
Seminário de Estudos Mineiros. Belo Horizonte: UFMG, 1957.
107 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

A Soberania Econômica Nacional e a


Economia Institucional Européia1
Gustavo Granado2

RESUMO

Compreender a soberania econômica nacional é uma tarefa árdua, mas


que pode ser concretizada com a ajuda da teoria das instituições. Assim,
quando compreendemos corretamente o que são instituições, conforme
propõe Douglass North (1990), e conceitos decorrentes da economia
institucional tais como estrutura de governança e a dimensão constitutiva
das instituições, fica mais claro o contexto político-economico em que a
regulação bancária da União Europeia se dá, permitindo mesmo um
melhor entendimento da ideia de soberania nacional.

Palavras-Chave: Soberania, Instituições, Institucionalismo, União Europeia.

ABSTRACT

Understanding the national economic sovereignty is a hard task, but it can


be done with the help of the institutional theory. With an accurate
comprehension of the institutions concept, as it is proposed by Douglass
North (1990), and other concepts derived from the institutional theory as
governance strutcture and the economic dimension of institutions, it turns
more clear the political and economic context in which the financial
regulation of European Union happens, therefore leading to a better
understanding of the national sovereignty concept.

Keywords: Sovereignty, Institutions, Institutionalism, European Union.

1 Artigo apresentado em 10/08/2013. Aprovado em 10/10/2013.


2 Doutorando IE – UFRJ. Mestre em Ciência Política – UFRJ.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
108

INTRODUÇÃO

O objetivo deste artigo é demonstrar, a partir de uma


perspectiva mais específica da economia institucional, como a
soberania econômica nacional se desenvolve dentro do contexto
das instituições e organizações que promovem a regulação
bancária na União Européia.

Para desenvolver este estudo, a pesquisa parte da teoria


das instituições na perspectiva apresentada por North (1990:p.3) de
instituições como regras do jogo cujas mudanças dão forma aos
aspectos que envolvem a sociedade ao longo do tempo. Com
base nesta concepção, este capítulo pretende estudar as normas
que definem as relações político-econômicas dentro da União
Européia, como os seus tratados fundacionais e as normas de
competência do Banco Central Europeu e dos Bancos Centrais
Nacionais.

Ao aprofundar o estudo destas normas, entende-se que


será possível então compreender a sistemática sob a qual funciona
a União Européia e as regras que definem como o seu jogo político
econômico é jogado. Ainda seguindo a perspectiva institucional
apresentada por North, outro ponto importante que cabe aqui
ressaltar é que o autor traça a distinção entre instituições e
organizações (1990:p.4).

Desta feita, uma vez que as instituições são as regras do


jogo, as organizações são os jogadores que devem seguir tais regras
em suas respectivas relações de interação. Assim, enquanto as
instituições podem ser concebidas como os tratados e normas de
competências, as organizações, para efeito deste estudo, são o
Banco Central Europeu e os Bancos Centrais Nacionais, que devem
109 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

seguir tais normas nas suas relações entre si.

Com a noção de instituições e organizações assim


definida, é possível então contextualizar as relações político-
econômicas dentro da União Européia. Para isso, será analisada a
teoria de estruturas de governança de Williamson (1996:105) para
compreender a governança, e por conseqüência, ter uma noção
mais concreta sobre as relações de regulação bancária e da
soberania econômica nacional na União Européia.

Trazendo esta compreensão para o objetivo deste


capítulo, se intenciona identificar que o modelo de governança
econômica na União Européia é mais adequado, suas
características e atribuições. Desta forma, uma vez detectado o
modelo de estrutura de governança, cabe então analisar as
ferramentas de governança econômica utilizada pelas
organizações. Neste contexto, diante da relação entre o Banco
Central europeu e os Bancos Centrais nacionais, este capítulo
pretende demonstrar que a principal ferramenta de governança
econômica utilizada é a regulação das ações político-econômicas.

O primeiro objetivo, portanto, é o estudo das instituições


para então promover o estudo das organizações que estão
envolvidas nesta instituição. Com este aspecto, será analisada a
perspectiva da dimensão constitutiva das instituições de Chang &
Evans (2005:p.99). Segundo os autores, as visões funcionalista e
instrumentalista sobre as instituições, muito embora válidas e que
não podem ser descartadas, não são suficientes para explicar
corretamente o papel das instituições na sociedade moderna. É
preciso conceber o caráter constitutivo das instituições. As
instituições desempenham este papel constitutivo moldando as
formas com que grupos e indivíduos definem suas preferências e
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
110

estabelecem suas relações. Chang & Evans (2005:p.100)


argumentam ainda que os indivíduos, enquanto permanecem sob
as condições impostas pelas instituições, passam a incorporar
valores que influenciam suas relações e isso resulta em uma
mudança de paradigma de determinados comportamentos, sendo
que o mesmo raciocínio se aplica aos agentes econômicos.
Trazendo estes argumentos para o objetivo deste capítulo, o estudo
das normas e competências como instituição e do Banco Central
Europeu e Bancos Centrais Nacionais como organizações vai
proporcionar uma visão da instituição em sua dimensão constitutiva,
uma vez que estas relações moldam e constituem uma nova forma
de compreender a soberania econômica, particularmente no
contexto da União Européia.

Desta forma, após o estudo das instituições e


organizações e da análise da estrutura de governança da União
Européia sob uma perspectiva constitutiva de suas instituições,
poderá ser delineado com maior precisão o grau de interação
entre o Banco Central Europeu e os Bancos Centrais nacionais, para
então poder compreender como funciona a soberania econômica
nacional neste contexto institucional.

2 O Institucionalismo de Douglass North

Douglass North apresenta uma interessante visão sobre as


instituições, com um conceito muito preciso e bastante útil para o
objetivo deste capítulo. Segundo North (1990:p.3), as instituições
devem ser definidas da seguinte maneira:

Institutions are the rules of the game in a society or, more


formally, are the humanly devised constrains that shape
human interaction. In consequence they structure
incentives in human exchange, whether political, social
or economic. Institutional change shapes the way
111 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

societies evolve through time and hence is the key to


understanding historical change.

Esta passagem apresenta aspecto de extrema relevância,


que merecem uma análise mais profunda. Primeiro, a conceituação
de instituição como “regras do jogo” em uma sociedade, ou ainda
como restrições que moldam a interação humana. Partindo então
desta definição e a trazendo para a realidade dos cotidianos das
relações internacionais, e, em especial, das relações econômicas
internacionais dentro da União Européia, pode-se chegar então a
conclusão que as instituições seriam as normas oriundas dos
tratados entre as nações integrantes da União Européias, normas
estas que determinam como cada membro deve se comportar,
impondo limites na sua atuação.

Seguindo este raciocínio, outro fator importante e que requer


uma análise minuciosa é a questão de que as mudanças ocorridas
nas instituições de uma sociedade ao longo do tempo acabam por
moldar a evolução desta sociedade, sendo assim, o aspecto chave
para compreender mudanças históricas. Aqui, sem dúvida, há um
elemento de intensa importância para a soberania econômica.
Com efeito, as instituições européias hodiernas não são as mesmas
instituições do passado, passaram por mudanças ao longo do
tempo, e a mudança destas instituições levou a outras mudanças
históricas, dentre elas, a mudança de como compreender
corretamente a soberania econômica nacional. Portanto, se
compreendermos corretamente como se passou a mudança nas
instituições da União Européia, seremos capazes de compreender,
em termos atuais, como se desenvolve a soberania econômica
nacional dentro da União Européia.

Por outro lado, North (1990:p.4), além de definir com precisão


a noção de instituições, também se mostrou preocupado em
distigui-las de um outro conceito, segundo ele, não se pode
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
112

confundir. Trata-se do conceito de organizações, proposto da


seguinte forma:

A crucial distinction in this study is made between


institutions and organizations. Like institutions ,
organizations provide a structure of human interaction.
Indeed when examine the costs that arise as a
consequence of the institutional framework we see they
are a result not only of that framework, but also of the
organizations that have developed of that framework.
Conceptually, what must be clearly differentiated are
the rules from the players. The purpose of the rules is to
define the way the game is played. But the objective of
the team within that set of rules is to win the game – by a
combination of skills, strategy and coordination; by fair
means and sometimes by foul means. Modeling the
strategies and the skills of the team as it develops is a
separated process form modeling the creation, evolution
and the consequences of the rules.

Desta feita, Segundo o entendimento de North, o conceito


de instituições não deve ser confundido com o conceito de
organizações. Enquanto as organizações são compreendidas como
sendo as “regras do jogo”, as organizações devem ser
compreendidas como sendo os “jogadores”, que estão submetidos
àquelas regras. Com efeito, empreendendo tal raciocínio para a
realidade das relações econômicas internacionais na União
Européia, pode se afirmar que as organizações seriam o Banco
Central Europeu e os Bancos Centrais Nacionais dos estados
membros. Estas organizações estariam submetidas as “regras do
jogo”, ou seja, das instituições, que seriam as normas dos tratados
internacionais, que, dentre outros aspectos, determinam o âmbito
de competência de cada um, determinando como cada qual
deve se agir e impondo limites na conduta dos “jogadores”.

Ainda segundo North (1990:p.6), cabe destacar e analisar a


função primária das instituições. Neste sentido,

The major role of institutions in a society is to reduce


uncertainty by establishing a stable (but not necessarily
efficient) structure to human interaction.
113 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Portanto, pode-se entender, a partir deste ponto de vista,


que a função primária das instituições é reduzir as incertezas,
estabelecendo uma estrutura estável para as relações humanas.
Desta feita, trazendo esta visão para o objeto desta tese, tem se
que as instituições, em sendo estas as regras do jogo, são os
ordenamentos legais, cujo objetivo é estabelecer uma
previsibilidade de conduta por parte dos agentes envolvidos,
reduzindo assim o grau de incerteza das relações.

Com efeito, as relações entre o Banco Central Europeu e os


Bancos Centrais Nacionais, dos estados membros da União
Européia, são interações político-econômicas que se desenvolvem
através de uma série de regulamentações previstas em normativos,
sejam estes tratados, resoluções, decretos, ou qualquer outra forma
de legislação que estabelece como as relações devem ser feitas e,
principalmente, determinando como cada um destes agentes
devem agir, proporcionando uma previsibilidade de conduta dos
mesmos, reduzindo assim a incerteza das interações, trazendo uma
estabilidade para estas relações.

Trata-se então de uma estrutura normativa que proporciona


uma interação político-econômica estável.

Outra questão que North argumenta, porém não enfrenta, é


o fato de que esta estabilidade trazida pelas instituições não
necessariamente apresenta uma estrutura eficiente para a
interação entre os agentes político-econômicos. Muito embora as
regras do jogo, ou seja, as instituições, sejam suficientes para dar
uma estabilidade nas relações entre os agentes, a performance
econômica não necessariamente será a mais eficiente.

Quando um estado membro decide pelo seu ingresso na


união econômico monetária da União Européia, está decisão é
uma decisão político-estratégica deste estado, que entende que,
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
114

ao ingressar no bloco econômico, a sua performance econômica


será mais eficiente que se permanecer apenas no âmbito nacional.
Em suma, o estado opta pelo ordenamento institucional
supranacional por compreender que este é mais eficiente que o
ordenamento institucional nacional, tanto no que se refere ao
incremento de sua economia, quanto na proteção que sua
economia obterá frente a eventuais crises do capitalismo
globalizado.

2.1. As regras do Jogo: Os Tratados Europeus

As políticas econômica e monetária estão disciplinadas no


título VIII do Tratado consolidado que dispõe sobre o funcionamento
da União Européia. Já nas disposições gerais do art. 119 do referido
Tratado é possível perceber uma interessante concepção acerca
dos instrumentos e formas com que a política econômica européia
deve ser conduzida, quando o próprio dispositivo legal determina
que a política econômica da União Européia é baseada por uma
estreita coordenação das políticas econômicas dos estados-
membros. Isto significa que as política econômicas nacionais devem
ser conduzidas de tal forma que os objetivos comuns, estabelecidos
pelo tratado em questão, possam ser concretamente alcançados.

Esta coordenação de políticas econômicas nacionais seria


então uma grande cooperação entre os estados-membros, cada
qual com a sua incumbência de conduzir suas respectivas
economias nacionais para produzir um resultado coletivo em que
todos acabariam por beneficiados e, desta forma, os estados-
membros teriam um comportamento previsível e, portanto, com um
comportamento econômico único.

Como visto no capítulo anterior, a cooperação é o conceito


chave para o pensamento liberal das relações internacionais.
115 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Portanto, analisando as instituições européias, ou seja, suas regras


do jogo político-econômico, é possível estabelecer que as
instituições estimulam as relações internacionais européias de forma
com que seus estados membros cooperem entre si para que um
resultado comum seja alcançado, sendo, em tese, uma instituição
cujo aspecto liberal predomina, em oposição ao aspecto de
conflito do pensamento realista. Esta questão fica ainda mais clara
quando do art. 120, do mesmo tratado, que determina que os
estados-membros deverão conduzir suas políticas econômicas no
sentido de contribuir para a realização dos objetivos da União.
Chega a ser inequívoco o caráter de cooperação proposto pela
instituição. Com efeito, os estados-membros devem agir de forma
que os objetivos do bloco supranacional sejam alcançados, ou seja,
devem cooperar para que os objetivos comuns sejam efetivamente
atingidos.

Tal raciocínio fica cristalizado quando do art. 121 do referido


tratado. Com efeito, este normativo impõe que todo estado-
membro deve colocar suas respectivas políticas econômicas
nacionais como fator de interesse comum. Muito embora seja uma
política econômica de cunho nacional, os interesses sobre esta
política econômica ultrapassam as fronteiras geográficas nacionais,
e passam a formatar um grupo de interesse mútuo entre todos os
membros, no qual o que até então era algo de natureza nacional,
passa e consubstanciar uma natureza supranacional.

Questão interessante a ser observada diz respeito então a


possibilidade de um estado-membro não cumprir com tais
determinações e não conduzir sua economia nacional de acordo
com os interesses comuns e com as orientações gerais sobre política
econômica a que todos os estados-membros estão vinculados.

Com efeito, no que afeta tal assunto, a instituição ora sob


análise não se mostrou digna de lacunas, ao revés, disciplinou
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
116

especificamente procedimentos que devem ser seguidos nestes


casos e que geram efeitos diretos na questão da soberania
econômica nacional.

Desta feita, de acordo com o prescrito no dispositivo


normativo 126 descreve que o comportamento econômico dos
estados membros são objetos de constante de observação por
parte de organizações supranacionais, cujo dever é constatar se
algum estado-membro está com um desvio comportamental na
condução de sua política econômica nacional, sobretudo quanto
ao fator orçamentário. Tais procedimentos iniciam-se em termos
mais burocráticos, em formas de relatórios e pareceres nos quais
devem conter recomendações para que o estado-membro
conduza sua política econômica de forma correta. O que torna a
questão ainda mais interessante é a situação de que o estado-
membro nesta posição, mesmo após ter recebido as
recomendações, persiste e se portar economicamente em
desacordo com o determinado pelas instituições vigentes.

Neste caso, há previsão clara e específica para a imposição


de sanções no sentido de que o próprio de estado-membro acabe
sendo pressionado a alterar seu comportamento econômico. Tais
sanções incluem a previsão da divulgação pública de dados
econômicos nacionais, como o índice de défice excessivo,
suspensão de políticas de empréstimos para investimentos,
podendo, inclusive, haver aplicação de multas.

Diante de todas estas possibilidades, verifica-se que a


soberania econômica nacional, especificamente neste contexto,
não impõe impedimentos para que acabe se sujeitando a
imposições e sanções externas. Mesmo em um ambiente de
cooperação, como visto, é possível que haja previsão de sanções
para que os objetivos comuns sejam efetivamente alcançados. Tal
situação, do ponto de vista do pensamento realista, interpretaria
117 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

como sendo um conflito entre políticas econômicas distintas,


conflito este que seria previsto e promovido por instituições
internacionais, o que demonstraria, do ponto de vista realista, que
as instituições internacionais não são eficientes para evitar ou dirimir
conflitos internacionais.

2.2 Os jogadores: O BCE e os BCN‟s

O protocolo dezoito do Tratado Consolidado que dispõe


sobre o funcionamento da União Européia regulamenta a criação e
instituição prevista pelo art. 8º do mesmo tratado do sistema
europeu de bancos centrais – SEBC. Trata-se de um sistema no qual
estão congregados o Banco Central Europeu e os Bancos Centrais
Nacionais dos estados membros, cujo objetivo principal é a
estabilidade de preços, além do apoio as políticas econômicas
gerais da comunidade européia com o intuito de incentivar uma
repartição eficaz dos recursos. Analisaremos inicialmente estas
características.

Do ponto de vista da teoria realista das relações


internacionais, vista no primeiro capítulo desta tese, este sistema
estaria fadado a gerar conflitos entre as nações já que, ao buscar a
estabilidade dos preços, interferiria na relação entre oferta e
demanda, bem como o apoio previsto para as políticas
econômicas gerais da comunidade seria compreendido com uma
forma de interferência nas questões econômicas nacionais e o que
se pretende por repartição eficaz dos recursos, tal qual previsto pelo
tratado, não necessariamente significaria uma repartição igualitária
destes recursos, mas sim, uma repartição em que se permitiria que
nações com poderes econômicos mais fortes ficassem com a maior
parte dos recursos, em detrimento de nações economicamente
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
118

mais frágeis, o que levaria a um estado de permanente tensão nas


relações econômicas entre tais nações.

Por outro lado, a teoria liberal das relações internacionais,


tal qual analisada no segundo capítulo desta tese, pode
compreender estas características de forma que se consagre uma
cooperação para o desenvolvimento econômico continuo das
nações envolvidas. Segundo a visão liberal, o sistema encarregado
de manter a estabilidade dos preços é um mecanismo com que as
economias nacionais se apoiarão para que o seu desenvolvimento
econômico seja feito de forma a atender as suas necessidades
econômicas de maneira mais eficiente, inclusive no que se refere à
repartição eficaz dos recursos pois estes seriam repartidos de
acordos com as necessidades de cada nação, que não
necessariamente são semelhantes, em um verdadeiro processo de
cooperação econômica para o desenvolvimento.

Delineando as características do sistema europeu de


bancos centrais, Haan, Sylvester e Eijffinger (2005:45) apontam:

The ESCB is governed by the decision-making bodies of


ECB: the Governing Council, the Executive board, and the
General Council. The Governing Council of the ECB is the
most important decision-making body of the ECB. It consists
of the Executive Board of the ECB and Governors of the
national central banks of the countries in the euro area. The
Governing Council is responsible for formulating monetary
policy, including decisions about intermediate objectives
and interest rates.

Como visto, o sistema europeu de bancos centrais


interfere em questões relevantes das economias nacionais, não
apenas em seus objetivos intermediários, mas também na
condução de suas respectivas políticas econômicas nacionais, com
o intuito de estabelecer compromissos para o desenvolvimento
comum.
119 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Eijffinger (2002) apresenta interessante estudo no qual


detalha de maneira bastante aprofundada a questão da
transparência da atuação do banco central europeu com relação
ao mesmo parâmetro de outros bancos centrais nacionais pelo
mundo. Tal estudo gerou a criação de um índice para medir o grau
de transparência dos bancos centrais estudados, considerando
uma série de variáveis, as pode-se destacar, dentre outras, a
capacidade de cada um em divulgar dados macroeconômicos;
abertura dos objetivos das políticas econômicas adotadas;
existência de quantificação dos objetivos primários, etc. Segundo o
indicador, que varia em uma pontuação de zero a quinze, o banco
central europeu consegue obter dez pontos no índice Eijffinger, o
que significa que pode ser considerado uma organização de
razoável transparência, porém ainda existe um caminho a ser
percorrido para que a transparência possa ser considerada ideal.

Esta conclusão também aparece em outro estudo sobre


a transparência do Banco Central Europeu, este feito por
Amtenbrink (2002). De pronto, cabe ressaltar que são estudos feitos
na mesma época, através de indicadores diferentes, mas que
chegam a mesma conclusão. Amtenbrink faz a sua análise
baseado em quatorze variáveis, divididas em três grupos: objetivos;
estratégias e comunicação. Cada grupo aborda uma série de
questões que podem levar a organização em questão a somar no
máximo vinte pontos. Entretanto, o Banco Central Europeu obtém
dezesseis pontos, alcançando uma marca de oitenta por cento no
índice de transparência, o que significa que é uma organização
consideravelmente transparente, mas que pode aprimorar ainda
nesta questão.

Avançando na questão da transparência, cabe então


analisar como é a accountability do Banco Central Europeu. Haan,
Sylvester e Eijffinger (2005: 89):
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
120

In our view the concept of central bank accountability


has three main features: 1. Decisions about the explicit
definition and ranking of objectives of monetary policy; 2.
Disclosure of actual monetary policy and 3. Who bears
final responsibility with respect to monetary policy.

No caso específico do Banco Central Europeu é possível


afirmar que seus objetivos estão claramente definidos, até pelo fato
de estarem expressamente previstos nos tratados europeus,
notadamente no tratado que dispõem sobre o funcionamento da
União Européia. Em razão dos objetivos estarem previstos em um
texto legal, sendo então uma regra a ser seguida, ou seja, uma
instituição no sentido proposto por North (1990), a estabilidade dos
preços, bem como o apoio às políticas econômicas gerais da
comunidade européia e a repartição eficaz de recursos, aliados aos
princípios do livre mercado são uma definição explícita e com uma
clara exposição dos objetivos da política monetária da União
Européia, que é conduzida pelo Banco Central Europeu, com o
apoio dos Bancos Centrais Nacionais.

No que tange ao segundo requisito proposto para avaliar


o grau de accountability do Banco Central Europeu, é preciso
avaliar a forma com que as ações adotadas por esta organização
são apresentadas bem como as intenções futuras na condução das
políticas econômicas. Retornando ao protocolo dezoito do tratado
consolidado que dispõem sobre o funcionamento da União
Européia, tem-se que o Banco Central Europeu é impelido a
publicar trimestralmente relatórios de suas atividades, bem como
fornece informa em tais relatórios qual direção a política
econômica deve seguir, dando conhecimento a seus pares, a
saber, os bancos centrais nacionais da sua atuação e de qual
caminho deve ser trilhado pelas economias nacionais de forma que
o desenvolvimento econômico seja o mais eficaz para todos.
121 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Por fim, o derradeiro requisito trata da questão


envolvendo a responsabilidade pela condução da política
monetária. Para este requisito, Haan, Sylvester e Eijffinger (2005: 142)
afirmam que é preciso considerar três questões:

Concerning the final responsibility for monetary policy, we


think that three issues are crucial: the ECB‟s relationship with
the European Parliament, the introduction of an override
mechanism and a dismissal procedure for the European
Central Bank‟s governor.

Considerando então estes três fatores, tem se que o Banco


Central Europeu é regido pelo princípio da independência, não
havendo, portanto, subordinação ou ingerência na condução da
política econômica. Desta feita, a relação entre o Banco Central
Europeu e o Parlamento Europeu é uma relação entre duas
organizações, na qual se respeitam as instituições envolvidas nestas
relações. Seguindo esta linha de raciocínio, fica difícil também existir
um mecanismo de substituição para as políticas do banco central,
pois, uma vez que os governos não podem interferir nas políticas
econômicas não há como promover uma substituição nas ações do
Banco Central sem que sua independência seja afetada. Sobre a
independência do Banco Central Europeu, Roberts (2010:p.58)
afirma que:

The European Central Bank (ECB), established by the 1992


Treaty on European Union, is a prominent example of the
commitment to bank independence. It is explicitly
forbidden from taking instructions from the European
Council, which represents member states, and from the
popularly elected European Parliament. The president and
other members of the ECB‟s executive board are
appointed for eight-year terms, and can be removed only
if a court determines that they are guilty of serious
misconduct. The ECB president must be an individual
recognized for professional banking experience. The treaty
stipulates that deliberations within the ECB on monetary
policy are confidential.

A independência do Baco Central Europeu nos leva a análise


do último fator, qual seja, a existência de um procedimento para
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
122

afastamento do dirigente do Banco Central Europeu. Com efeito,


trata-se de uma questão delicada pois se o banco central é uma
organização independente, deve restar livre de influencias ou
ingerências políticas, para conduzir tecnicamente as políticas
econômicas. Contudo, por outro lado, há de se salvaguardar a
integridade da política para o desenvolvimento econômico no
sentido de que o banco central seja uma organização imune aos
governos nacionais de forma que estes sejam meros reféns de suas
ações. Para que isso seja feito de forma que não afete a
independência do Banco Central e, ao mesmo tempo, não permita
que os governos nacionais fiquem inteiramente desguarnecidos,
deve haver um procedimento transparente, calcando em premissas
objetivas e técnicas, não políticas, para que seja possível avaliar se
o dirigente do Banco Central, no exercício de sua função, não está
tecnicamente atuando de acordo com as diretrizes do
desenvolvimento comum, procedimento este então que permitiria o
afastamento do dirigente com o objetivo de corrigir eventuais falhas
técnicas na condução da política econômica e assim promover o
desenvolvimento econômico da forma mais eficaz possível.

No que se refere aos bancos centrais nacionais, o próprio


relatório emitido em 2008 pelo Banco Central Europeu, como parte
integrante do Sistema Europeu de Bancos Centrais afirma que:

Os bancos centrais nacionais do Eurosistema são


dotados de personalidade jurídica (ao abrigo da lei do
respectivo país) distinta da do BCE. Simultaneamente,
são parte integrante do Eurosistema, que é responsável
pela estabilidade de preços na área do euro, e, como
tal, desempenham as suas atribuições no âmbito do
Eurosistema em consonância com as orientações e
instruções do BCE. Os BCN participam na condução da
política monetária única da área do euro. Realizam
operações de política monetária, destinadas, por
exemplo, a fornecer moeda do banco central às
instituições de crédito, e asseguram a liquidação de
pagamentos escriturais domésticos e transfronteiras.
Além disso, conduzem operações de gestão de reservas
externas por conta própria ou como agentes do BCE. Os
BCN são também, em grande medida, responsáveis
pela recolha de dados estatísticos nacionais e pela
emissão e processamento de notas de euro nos
123 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

respectivos países. Desempenham igualmente funções


fora do âmbito dos Estatutos do SEBC, salvo se o
Conselho do BCE considerar que essas funções são
incompatíveis com os objectivos e atribuições do
Eurosistema. Ao abrigo da legislação nacional, os BCN
podem assumir outras funções não relacionadas com
política monetária. Por exemplo, alguns BCN estão
envolvidos na supervisão prudencial e/ou actuam como
o principal banqueiro dos respectivos governos.

Como se pode denotar, a atuação dos bancos centrais


nacionais está intimamente vinculada as diretrizes propostas pelo
Banco Central Europeu, não havendo muito espaço de atuação
para as organizações nacionais se portarem de acordo com os seus
interesses próprios, já que a imposição do interesse coletivo trazida
pelo Banco Central Europeu limita a atuação de seus pares
nacionais.

Desta feita, a soberania econômica nacional, diante


desta relação entre a atuação do Banco Central Europeu e os
Bancos Centrais Nacionais deve ser então compreendida como
potencialmente conflituosa, já que haveria um choque de interesses
na condução da política econômica? Ou, por outro lado, a
soberania econômica nacionais deve ser compreendida em tal
relação como uma forma de cooperação entre as organizações
para que as mesmas, em consonância, possam conduzir as políticas
econômicas rumo ao desenvolvimento? Uma ou outra visão
perpassa necessariamente pela abordagem que se adota para as
relações econômicas internacionais, sendo que para a primeira
visão a teoria realista tem amparo e para a segunda visão o
amparo estaria na teoria liberal.

Uma vez então que foram analisadas tanto as instituições


como as organizações – regras do jogo e jogadores – cabe então
analisar em qual modelo de estrutura de governança esta relação
se desenvolve, de modo a avançar um pouco mais na
compreensão da soberania econômica nacional no contexto
europeu.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
124

3 As Estruturas de Governança de Oliver Williamson

Uma vez analisado e compreendido o fator relativo à


análise das instituições e organizações envolvidas nas relações
econômicas internacionais na União Européia, cabe então agora
avançar para compreender em qual contexto político-econômico
tais instituições e organizações estão inseridas.

Williamson (1996:p.105) apresenta sua análise sobre as


estruturas de governança na qual propõe uma classificação em
que tais estruturas são colocadas em três diferentes espécies,
segundo a análise de algumas ferramentas e, dentre elas, está a
capacidade de adaptação as mudanças, razão pela qual o
estudo destas estruturas de governança torna-se fundamental para
o desenvolvimento da presente tese, uma vez que a mudança da
concepção das relações econômicas internacionais,
principalmente no âmbito da União Européia, apresenta uma forte
mudança na forma com que são desenvolvidas, influindo
diretamente na concepção da soberania econômica nacional e a
capacidade de seus membros em se adaptarem a esta nova
concepção das relações econômicas internacionais. Uma vez
analisadas todas as formas de estruturas de governança propostas,
será possível identificar a partir de suas características individuais,
quais delas é aplicável às relações econômicas internacionais na
União Européia e então poder melhor compreender em qual
contexto se desenvolve atualmente a soberania econômica
nacional.

Como dito, Williamson (1996:p.105) apresenta três


espécies diferentes de estruturas de governança, quais sejam as
estruturas de mercado, hierárquica e híbrida. Para estabelecer a
diferença entre cada uma destas espécies, Williamson utiliza alguns
125 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

atributos, que são divididos em atributos instrumentais e atributos de


performance. Dentre os instrumentais há a intensidade de incentivos
e a presença de controles administrativos. Já dentre os atributos de
performance é considerado a forma de adaptação às mudanças,
elemento fundamental para desenvolver o objeto desta tese, e a
existência de regras contratuais.

Com efeito, cada uma destas formas de estruturas de


governança apresentará diferentes características que variam na
apenas na presença ou não de um determinado atributo, mas
também na magnitude, ou na capacidade, maior ou menor, de um
determinado atributo influenciar nas relações econômicas.

Segundo Williamson (1996:p.103):

“markets are a „marvel‟ in adaptation (A) respects. Given a


disturbance for which process serve as sufficient statistics,
individual buyers and suppliers can reposition
autonomously. Appropriating, as they do, individual
streams of net receipts, each party has a strong incentive
to reduce cost and adapt efficiently. (…) Matters get more
complicated when bilateral dependency intrudes. As
discussed above, bilateral dependency introduces an
opportunity to realize gains through hierarchy. As
compared with the market, the use of formal organization
to orchestrate coordinated adaptation to unanticipated
disturbances enjoys adaptive advantages as the condition
of bilateral dependency progressively builds up.”

É, portanto, possível extrair de tal passagem que, na visão


do citado autor, umas das diferenças que podem ser estabelecidas
no que se refere as estruturas de governança de mercado e
hierárquica é justamente com relação a capacidade ou forma de
adaptação as mudanças. Segundo o autor, as estruturas de
governança do modo de mercado possuem uma capacidade de
mudança que ele denomina do “tipo A”, qual seja, uma
capacidade de adaptação autônoma as novas circunstancias do
mercado, devido a existência de fortes incentivos segundo os quais
os agentes econômicos envolvidos alteram seu comportamento de
modo a obter maior eficiência em suas relações econômicas.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
126

Diferentemente, as estruturas de governança do modo hierárquico


são caracterizadas pela presença de uma dependência bilateral
no que se refere a sua capacidade de adaptação frente às
mudanças. Neste último caso as adaptações, denominada “Tipo
C”, segundo o autor, seriam advindas de organizações, tal qual visto
por North, que coordenam as ações de adaptação de forma que
os agentes econômicos envolvidos desfrutem de vantagens mútuas.

Uma vez postas tais características, é possível então fazer


uma análise destas formas de estruturas de governança com
relação aos pensamentos realista e liberal nas relações econômicas
internacionais vistos nos capítulos anteriores. Com efeito, no que
concerne a estrutura de governança do tipo de mercado, não
existem controles administrativos e as adaptações às mudanças são
feitas individualmente, através dos incentivos advindos das forças
de mercado que influenciam os agentes econômicos. Aqui temos
então um comportamento individual das forças econômicas, no
sentido de que cada uma destas forças busca a melhor
performance econômica para si, não importando se esta conduta
pode afetar negativamente a economia de outros agentes
econômicos, desde que a sua performance econômica tenha
maior eficiência. Neste ambiente, no qual cada agente econômico
procura implementar sua força econômica individualmente, sem a
existência de controles administrativos, é muito propício para a
geração de conflitos entre as forças econômicas que buscam cada
qual sua maior eficiência. Esta estrutura de governança de
mercado guarda então maior relação de compatibilidade com o
pensamento realista, caracterizado pela presença do
comportamento individualista e da geração de conflitos nas
relações com outros atores. Por outro lado, a estrutura de
governança do modo hierárquico conta com a existência de
controles administrativos e organizações que fazem a gestão das
condutas de seus atores econômicos para que se adaptem a
eventuais mudanças de forma que a performance econômica a ser
127 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

considerada não é a performance individual de cada ator, mas a


performance coletiva destes. Portanto, é então possível dizer que
este modo hierárquico guarda maior relação de compatibilidade
com o pensamento liberal das relações econômicas internacionais.
Com efeito, como visto nos capítulos anteriores, o pensamento
liberal preza não pelo conflito entre os agentes econômicos, mas
pela cooperação entre eles, cooperação esta coordenada pela
existência de organizações (no sentido proposto por North)
internacionais, no qual a performance coletiva é o foco das ações.

Ao lado dos modos de mercado e hierárquico, Williamson


(1996:p.105) apresenta uma terceira forma de estrutura de
governança que o autor nomeia de híbrida. Como o próprio nome
sugere, tal estrutura de governança não apresenta fortes
características para ser classificada como hierárquica ou de
mercado, ao revés, apresenta pequenos traços característicos dos
outros dois modos de forma que tenha características próprias que
não se enquadram como de mercado ou hierárquica, criando
assim uma forma de estrutura de governança autônoma.

Desta feita, uma vez analisada as formas de estrutura de


governança e suas respectivas características, bem como a sua
aproximação com os pensamentos realista e liberal, cabe então
tecer análise sobre qual forma de estrutura de governança melhor
se adapta ao contexto político-econômico exercido na União
Européia.

Como visto anteriormente, a União Européia possui


instituições e organizações com as quais desenvolve o seu
funcionamento. Cabe então aferir neste contexto, partindo das
variáveis apresentadas por Williamson, quais sejam a existência ou
não de controles administrativos e qual forma utilizada para
promover adaptações a eventuais mudanças para então
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
128

estabelecer com precisão se estamos diante de uma estrutura de


governança de modo de mercado, hierárquico ou híbrido.

Com efeito, dentro das instituições (regras do jogo)


analisadas, é possível observar a existência de mecanismos
segundo os quais as condutas econômicas dos estados-membros
da União Européia são acompanhadas, devendo estes se portar de
acordo com as diretrizes econômicas estabelecidas, de modo que,
uma vez identificado que um determinado estado membro não
está se portando adequadamente, há a previsão de deflagração
de procedimento no qual se pretende impor ao estado-membro
que obedeça as diretrizes de política econômica estabelecidas
pelas instituições supranacionais.

É exatamente o que está previsto no art. 126 do Tratado


consolidado que dispõe sobre o funcionamento da União Européia.
Especificamente no item 11 do referido dispositivo normativo, há a
previsão se sanções e mecanismos de imposição dos quais destaca-
se a possibilidade de suspensão de políticas de empréstimos por
parte do Banco Central do Europeu para com os estados-membros
e até mesmo a possibilidade de aplicação de multas até que o
estado-membro corrija a sua política econômica nacional no
sentido de obedecer as diretrizes estabelecidas pelo bloco
supranacional. Desta feita, é possível então afirmar que tal
dispositivo consubstancia mecanismos de controle administrativo do
comportamento de condução das políticas econômicas nacionais
de seus estados membros.

Por outro lado, o art. 134 do referido tratado institui as


organizações que vão atuar no âmbito da União Européia, dentre
eles a instituição de um Comitê Econômico e Financeiro, cujo
objetivo é promover a coordenação das políticas econômicas dos
Estados-Membros, na medida do necessário ao funcionamento do
mercado interno. Com efeito, trata-se de uma organização cujo
129 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

propósito é exercer a cooperação entre os estados membros, no


sentido de que todos adotem políticas econômicas nacionais
baseadas nos mesmos princípios, e tal coordenação pode
sobressair, mormente no que se refere à necessidade de se adaptar
a eventuais mudanças, os estados-membros não podem agir
individualmente, ao revés, devem agir segundo a coordenação das
organizações internacionais, já que, uma vez inerente a um único
bloco supranacional, o comportamento econômico de um estado-
membro influencia diretamente no comportamento econômico de
outro estado-membro, havendo então uma dependência mútua
para que ambos conduzam suas respectivas adaptações de modo
a privilegiar o ambiente coletivo, cooperando uns com os outros. De
acordo então com a classificação de Williamson, pode se afirma
que tal tipo de adaptação às mudanças é do “Tipo C”, ou seja, a
forma de adaptação as mudanças que enseja dependência
mútua, com foco na performance coletiva.

Portanto, uma vez que se pode constatar a existência


de controles administrativos e forma de adaptação do Tipo “C”,
expressamente previstas pelas “regras do jogo”, é possível então
compreender que a União Européia é uma estrutura de governança
do modo hierárquico.

4 Chang & Evans e a dimensão constitutiva das instituições

Nos tópicos anteriores apresentou-se a concepção de


instituições e organizações como regras do jogo e jogadores e qual
a estrutura de governança estes elementos estão incluídos.
Portanto, uma vez estabelecidos tais parâmetros, cabe agora
analisar como estas instituições afetam a soberania econômica
nacional.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
130

Para iniciar tal análise, parte-se da seguinte afirmação


de Chang & Evans (2005:p.100):
“focusing attention instead on institutions as devices
which enable the achievement of goals requiring supra-
individual coordination and, even more important, which
are constitutive of the interests and worldviews of
economic actors.

Segundo tal raciocínio, os atures sustentam que as instituições


são instrumentos que permitem que objetivos que necessitam de
coordenação supranacional sejam alcançados e constitui os
interesses e a concepção de relações internacionais de atores
econômicos. Há, portanto, dois fatores que inicialmente devem ser
analisados.

Primeiro, a idéia de que as instituições permitem que


necessidades que exijam coordenação supranacional sejam
alcançadas guarda uma relação de compatibilidade grande com
as características do pensamento liberal das relações econômicas
internacionais. Como visto no segundo capítulo desta tese, as
instituições internacionais desempenham um papel fundamental
para a cooperação entre as nações, permitindo que necessidades
comuns sejam satisfeitas com maior eficiência. Desta feita, é possível
depreender então que tal raciocínio considera uma visão liberal das
instituições nas relações econômicas internacionais.

Segundo, tem-se a idéia de que as instituições são


elementos que dispõem de uma dimensão constitutiva, ou seja, as
instituições constroem os interesses coletivos e proporciona uma
nova visão das relações econômicas. Partindo então desta premissa
e buscando inseri-la no contexto ora objeto desta tese, seria possível
estabelecer que as instituições, ou seja, os tratados, e as
organizações, quais sejam o Banco Central Europeu e os Bancos
Centrais Nacionais, constituíram uma nova concepção de
soberania econômica nacional. Com efeito, tal percepção fica
ainda mais factível a partir da seguinte afirmação:
131 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Obviously, our simultaneous emphasis on the constitutive


role of institutions and on a culturalist perspective on a
institutional formation suggests a perspective in which
institutions and economic actors are mutually
constitutive. (Chang & Evans, 2005:p.100)

Interessante aqui é o fato de que os autores colocam as


instituições e os atores econômicos em uma relação constitutiva
mútua, ou seja, há uma interdependência entre eles de forma que
um influencia nas características do outros. Tal fato é interessante
uma vez que corrobora a conclusão obtida no tópico anterior,
quando se compreendeu que a União Européia é uma estrutura de
governança do modo hierárquico, pois, como visto, trata-se de uma
dependência mútua para adaptação as eventuais mudanças e tal
característica encontra amparo nesta passagem no sentido de que
as instituições e os atores econômicos, sendo estes os estados
membros, se constituem mutuamente. Com efeito, as instituições
são estabelecidas pelos estados membros, que por sua vez estão
vinculados a tais instituições.

Seguindo tal raciocínio, os autores passam então a


analisar a questão do surgimento de instituições de nível global e
suas implicações para as instituições em diferentes níveis, inclusive
no que se refere às instituições de nível nacional. Segundo Chang e
Evans (2005:p.120):

Global institutional building has implications for institutions


at others levels, including the developmental state.
Global institutional both embody and reshape global
norms and world views, which in turn are incorporated
into the world views of actors at the national level. Global
institutional are also a constraining and enabling context
for institutions at the national level, making it harder to
maintain some institutions and easier for others to
emerge. At the same time, the relationship between
global institutions and nations stares is anything but one-
way. Global governance institutions depend
fundamentally on the capacities of nation states to
execute their goals, even while they may enhance the
capacities of nation states in certain areas by providing
political clout and technical assistance. Looking at the
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
132

global institutions is a powerful reminder that institutional


change is a multi-level process.

Em tal passagem, alguns aspectos mostram-se muito


relevantes e merecem uma análise mais apurada.
Inicialmente, sustentam os autores que a construção de
instituições de nível global incorporam e reformulam as normas
globais e as visões de mundo, que por sua vez, são incorporadas as
visões de mundo de agentes ao nível nacional. Neste ponto, pode-
se então depreender que o surgimento de uma integração global
da economia proporcionou que novas instituições surgissem e assim
novas normas surgiram, reformulando o contexto internacional, com
novas concepções, que passaram a ser adotadas nacionalmente.
Com tal raciocínio, poder-se-ia então deduzir que, o surgimento das
instituições de nível global reformulou as então vigentes visões de
mundo, tais como a concepção da soberania econômica
nacional, de tal forma que o novo contexto das relações
econômicas internacional fez com que os próprios estados-nação
reformulassem a sua visão de soberania econômica nacional, para
que fossem aptos a desenvolver suas atividades econômicas neste
novo contexto global.

Outro aspecto que merece uma melhor reflexão reside no


argumento sustentado pelos autores que a relação entre as
instituições e os estados-nação é uma relação de mão-dupla, pois
aquelas dependem da capacidades destes em alcançar os
objetivos. Neste ponto, os autores trazem uma importante noção de
que as instituições internacionais, mesmo as de nível global, não são
fatores poderosos ou mágicos que vão tornar o desenvolvimento
econômico por si só, é preciso haver uma harmonia entre os
objetivos propostos pelas instituições a o poder de ação dos estados
em desenvolver suas atividades econômicas de tal forma que tais
objetivos possam ser, efetivamente, alcançados. Trata-se, portanto,
de uma verdadeira relação de interdependência entre instituições
globais e estados para que objetivos comuns sejam obtidos e o
133 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

resultado partilhado por todos os agentes econômicos envolvidos.


Para isso, é possível mesmo que as instituições globais promovam
maior influência política ou até dê assistência para que os estados
desenvolvam suas ações de acordo com os parâmetros pré-
estabelecidos. Tal perspectiva reflete exatamente as características
primordiais do pensamento liberal, no que concerne as relações
econômicas internacionais, tal qual visto e analisado no segundo
capítulo da presente tese.

Em uma análise mais recente, Chang (2010) apresenta e


analisa uma intrigante questão, que, ao final, terá muita relevância
para o estudo da concepção da soberania econômica nacional.
Segundo o autor, muito se discute na literatura acadêmica sobre os
efeitos que as instituições provocam no desenvolvimento
econômico, no sentido de que com instituições fortes mais eficiente
será o seu desenvolvimento econômico. Contudo, o autor levanta
uma questão de que tal análise, ainda que não equivocada, é
insuficiente, já que se deve considerar também o sentido reverso
desta relação, ou seja, o impacto que o desenvolvimento
econômico tem sobre as instituições, especialmente no que se
refere às mudanças ocorridas nas instituições como conseqüências
lógicas do desenvolvimento econômico.

Tal questão reflete-se diretamente na concepção da


soberania econômica nacional, visto que, conforme se procura
demonstrar ao longo da presente tese, as relações econômicas
internacionais hodiernas possuem características distintas das que
possuem em tempos idos, portanto, é possível que o
desenvolvimento econômico tenha influenciado uma reformulação
das instituições, com o surgimento de instituições supranacionais e
globais e, diante de tais perspectivas, a concepção de soberania
econômica nacional seja agora diferente do que era outrora.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
134

Portanto, a questão levantada por Chang, posta em


outros termos, pode ser refletida sobre o seguinte aspecto: as
instituições proporcionam um melhor desenvolvimento econômico
e, por conseqüência, levaram a uma necessidade de se repensar a
concepção de soberania econômica nacional, ou, no sentido
inverso, o desenvolvimento econômico levou a novas e mais
eficientes instituições, que por sua vez influenciaram na concepção
da soberania econômica nacional?

Para buscar resposta para esta questão, primeiro se


analisará os termos e argumentos propostos por Chang e sua
própria questão, para então realizar uma reflexão mais concreta
sob o ponto de vista da soberania econômica nacional.

Segundo Chang (2010:p.4), existem três argumentos que


suportam a idéia de que o desenvolvimento econômico eficiente
promove o aperfeiçoamento das instituições, quais sejam:

Economic development changes institutions through a


number of channels. First, increased wealth due to
growth may create higher demands for higher-quality
institutions (e.g., demands for political institutions with
greater transparency and accountability). Second,
greater wealth also makes better institutions more
affordable. Institutions are costly to establish and run, and
the higher their quality the more „expensive‟ they
become (see below). Third, economic development
creates new agents of change, demanding new
institutions.

Inicialmente, Chang argumenta que o aumento da


riqueza em função do desenvolvimento econômico tem por
conseqüência um aumento expressivo da necessidade de se criar
instituições com maior qualidade, que envolvam, no exemplo
citado pelo autor, maior transparência e responsabilidade no
desenvolvimento de suas funções. De acordo com este argumento,
o desenvolvimento econômico proporciona um maior poder de
ação por parte dos cidadãos inerentes a uma determinada
economia, no sentido de que, com maiores recursos, maior a sua
135 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

necessidade de ter para si instituições mais eficientes, com maior


poder de controle do comando da economia, para que o
desenvolvimento alcançado não se perca e continue progredindo.

Trazendo então tal argumento para a questão da


soberania econômica nacional, é possível então analisar tal
situação partindo-se do ponto de vista que tal necessidade para
instituições mais eficientes no controle do desenvolvimento
econômico não sejam apenas instituições nacionais, mas sim, o
surgimento de instituições supranacionais que, por sua natureza,
teriam maior poder de controle e assim poderiam exercer suas
funções com mais transparência e responsabilidade.

Diante de tal quadro, teríamos então instituições de


natureza supranacional, com poder de controle e supervisão do
desenvolvimento econômico nacional, situação esta em que o
conceito de soberania econômica nacional tradicional não mais
seria suficiente para refletir tais relações econômicas internacionais,
havendo então a necessidade de se refletir para então buscar
compreender corretamente a soberania econômica nacional
dentro deste novel contexto.

Portanto, com este argumento, seria então possível


compreender que existe uma relação de compatibilidade lógica
entre o regular desenvolvimento econômico e o aperfeiçoamento
das instituições, que, por conseqüência, levaram à necessidade de
se repensar a compreensão da soberania econômica nacional.

Como se verá mais adiante, esta relação de


compatibilidade lógica não se apresenta viável unicamente para o
primeiro argumento trazido por Chang, mas também se apresenta
consistente com os dois próximos argumentos analisados pelo autor,
e que serão abordados sob o ponto de vista da soberania
econômica nacional a seguir.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
136

O segundo argumento trazido por Chang (2010) para dar


suporte ao seu pensamento de que é possível que o
desenvolvimento econômico gere melhores instituições, e não no
sentido inverso desta relação, reside no fato de que melhores e mais
eficazes instituições tem um custo alto para serem criadas e se
desenvolverem em suas funções, ou seja, é preciso que haja uma
capacidade de arcar com maiores custos para que então seja
possível se obter melhores instituições. Tal capacidade de suportar
maior custo advém exatamente, na visão de Chang (2010), do
desenvolvimento econômico, seguindo o raciocínio de que quão
mais a sua economia se desenvolve maior se torna o seu poder
econômico e, portanto, maior será a sua capacidade de arcar com
custos maiores. Uma vez que a economia nacional tenha esta maior
capacidade de arcar com maiores custos, é possível então que
haja uma necessidade de se estabelecer instituições com mais
qualidade e eficiência, uma vez que seria então possível arcar com
o custo de tal decisão.

Seguindo então este argumento, a relação entre


desenvolvimento econômico e instituições seguiria este sentido e
não o sentido reverso.

Trazendo então este argumento para a questão da


soberania econômica nacional, seria então possível argumentar
que o desenvolvimento econômico, em função do maior poder de
absorção de custo, provoque a criação e o desenvolvimento de
melhores instituições e, por conseguinte, a repensar a noção da
soberania econômica nacional? Utilizando-se dos elementos
contidos nos argumentos, a conclusão a que se chega para tal
indagação é positiva.

Como visto no argumento anterior, as instituições que


advém do desenvolvimento econômico não seriam
137 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

necessariamente instituições nacionais, mas, sim, instituições


supranacionais. Com efeito, em função da própria natureza de tais
instituições, os custos com os quais se tem de arcar com a criação e
desenvolvimento de instituições nacionais são menores do que os
custos com os quais se tem de arcar com a criação e o
desenvolvimento das instituições supranacionais. Instituições
supranacionais implicam em maior custo do que instituições
nacionais. Portanto, com maior poder econômico, é possível que se
estabeleça novas instituições, e quem tais instituições sejam
supranacionais e, por fim, provoquem a necessidade de se repensar
a noção de soberania econômica nacional.

Seguindo então a análise dos argumentos trazidos por


Chang (2010), por fim, o autor salienta o fato de que o
desenvolvimento econômico faz surgir novos atores da mudança,
que por sua vez, necessidade de novas instituições. Para sustentar
tal argumento, o autor ressalta algumas evidencias históricas que,
em sua visão, realçam esta relação entre desenvolvimento
econômico e novas instituições. Como exemplo, Chang (2010) cita
a revolução industrial, que deu origem a novos atores, como os
bancos, que se impuseram diante dos proprietários de terras e
estabeleceram novas instituições. Ainda para exemplificar, o autor
cita o surgimento da classe operária e seu poder de ação, que
fizeram surgir novas legislações laborativas protetivas. Portanto, é
possível, na visão de Chang (2010) que o desenvolvimento
econômico faça surgir novos atores na economia, que por sua vez
farão com que se estabeleçam novas instituições.

Trazendo então esta análise para o campo da soberania


econômica nacional, é possível chegar à conclusão de que o
desenvolvimento econômico possa fazer surgir novas instituições ao
ponto de se tornar necessário repensar a soberania econômica
nacional? Como visto nos dois primeiros argumentos, a resposta se
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
138

mostrou positiva, e assim também se apresentará neste terceiro


argumento.

Com efeito, as relações econômicas internacionais


hodiernas não se travam mais como se passava em tempos idos. O
desenvolvimento econômico trouxe novos atores econômicos
internacionais que atualmente passaram a fazer parte deste
contexto. Empresas multinacionais, Organizações Não
Governamentais, dentre outros, são novos atores que atuam
diretamente nas relações econômicas internacionais, ao lado dos
tradicionais atores, quais sejam, os estados nacionais. Corroborando
este entendimento:

O principal processo atuando na reconfiguração das relações


internacionais, a transnacionalização, provoca o aparecimento
simultâneo de novos atores – juntamente com os já existentes –
se organizam. (...) São também novas entidades paraestatais de
poder (...). São, ainda, as organizações “não governamentais”
multinacionais, empresariais ou não. (Albuquerque: 2005, p.83)

A existência, portanto, de novos atores nas relações


econômicas internacionais é então um fato inegável, mas o que
torna tal passagem interessante é o fato de que o surgimento de
novos atores neste processo não elimina os atores antigos, ao revés,
estes novos atores se somam neste processo e passam,
conjuntamente com os atores originários, a formar um contexto no
qual se desenvolverá as relações econômicas internacionais.

Isto significa que os estados nacionais permanecem como


importantes atores das relações econômicas internacionais,
contudo, não são os únicos atores envolvidos neste processo, pois,
atualmente, como visto, existem novos atores que ocupam, cada
vez mais, espaço nestas interações econômicas e cabe aos estados
se adaptarem a este novo contexto.
139 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

E é exatamente neste ponto que a questão da soberania


econômica nacional se apresenta. Essa adaptação, pela qual o
estado nacional deve passar para que se insira neste novo
contexto, perpassa necessariamente pela revisão da compreensão
de sua soberania econômica. Com efeito, quando os estados
nacionais, quando únicos atores inerentes ao processo de relações
econômicas internacionais, permitem entender a soberania
econômica nacional de tal forma que a presença de novos atores,
sobre tudo atores não estatais, agora também inerentes a tal
processo, não possui a capacidade de apresentar com precisão as
características agora apresentadas pelo novo quadro no qual se
estabelece as relações econômicas internacionais.
E isso se dá em função de que, a presença destes novos
atores, como Chang (2010) sustenta, demandará o surgimento de
novas instituições, novas regras do jogo, para que a participação
de tais atores seja feita de forma clara e precisa, cada qual com a
sua respectiva função dentro do sistema econômico internacional.
Com estas novas regras do jogo (instituições), advindas em função
do desenvolvimento econômico, que gerou novos atores neste
processo, o papel de cada ator será redefinido e o estado nacional
então deverá se adaptar a este novo quadro e a soberania
econômica nacional passará por uma nova compreensão.

O último argumento trazido então por Chang (2010) para


sustentar o raciocínio de que o desenvolvimento econômico
provoca o surgimento de novas e mais eficazes instituições, e não o
revés, pode ser utilizado também, de forma positiva tal qual os
outros dois argumentos analisados anteriormente, para se
estabelecer que o desenvolvimento econômico não apenas gera o
surgimento de novas e mais eficazes instituições, como também
estas vão proporcionar a necessidade de revisão da compreensão
da soberania econômica nacional.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
140

Superada então esta questão, cabe agora refletir sobre


um último aspecto abordado por Chang (2010).

Com efeito, é preciso analisar com certa cautela a


questão referente a mudanças das instituições. Ao propor o
raciocínio de que o desenvolvimento econômico proporciona o
surgimento de mudanças nas instituições, que passam a ser mais
eficientes, muito embora os argumentos apresentados sejam
compatíveis com esta realidade, a mutabilidade das instituições
não é algo pacífico, havendo entendimento no sentido de que:

They think that institutions are determined by immutable


things such as climate and culture, so they cannot be
changed, except through some epoch-making external
shocks. (Chang, 2010)

Trata-se, em verdade, de duas correntes de pensamento,


apresentadas por Chang, nas quais se tem o voluntarismo, que
entende pela mudança das instituições e o fatalismo, que entende
pela impossibilidade de mudança das instituições. Neste sentido:

On the one hand, we have the extreme voluntarism of


the GSI school, which believes that institutions can be
changed very easily if there is a political will. On the other
hand, we have the extreme fatalism of the climate-
culture school, which believes that institutional patterns
are deeply influenced by immutable (or at least near
immutable) factors, such as climate and culture, and
therefore that there is nothing much we can do about it.

A idéia que reside por trás do fatalismo se consubstancia


no fato de que as instituições, uma vez criadas, devem permanecer
em suas funções ao longo do tempo, ou seja, a durabilidade,
permanência, estabilidade das funções inerentes as instituições são
as suas principais características, sendo, inclusive, as instituições, um
instrumento alusivo à coordenação das relações em sociedade,
pois traz previsibilidade nas relações sociais.
141 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Desta forma, pode-se então compreender que, do ponto


de vista do fatalismo, a função das instituições é contribuir para a
manutenção do status quo, impedindo que haja mudanças nas
relações político-econômicas. Portanto, é possível traçar uma
relação de compatibilidade entre a visão fatalista e a teoria realista
das relações internacionais. É fato que a manutenção das
instituições na forma em que são implementadas faz com que a
sociedade a qual tais instituições são inerentes se posicione diante
de eventuais intervenções externas que pretendam mudanças
institucionais para facilitar a influência, seja econômica ou política,
de uma nação sobre outra. É possível depreender que a visão
fatalista sustenta que a manutenção das instituições diminui a
vulnerabilidade externa de uma nação e assim proteja os interesses
nacionais.

Como visto no primeiro capítulo desta tese, a teoria


realista das relações internacionais tem como uma de suas
características a manutenção do status quo das relações
internacionais, dentre elas as relações econômicas internacionais.
Com cada nação promovendo a manutenção de suas instituições,
protegendo seus interesses nacionais, torna-se então inevitável, de
acordo com a visão realista, o surgimento de conflitos nos quais
cada nação busca impor seus interesses sobre interesses externos.
Para então contornar estes conflitos, as nações buscam manter o
sistema de relações internacionais em seu status quo, ou seja, que
as regras do jogo se mantenham sem modificações,
permanecendo cada nação com a sua função dentro do sistema
global, de forma que possam proteger seus interesses nacionais, se
resguardando de intervenções externas. Ainda que se considere a
questão do ponto de vista do realismo ofensivo, que ao contrário do
realismo clássico entende que as nações buscam a ruptura do
status quo, para obter maior poder dentro das relações
internacionais (como visto no primeiro capítulo desta tese), a
compatibilidade entre o fatalismo trazido por Chang (2010) e a
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
142

teoria realista se mantém, uma vez que mesmo que se busque


manter as regras nas quais estas relações se desenvolvem, as
nações sempre buscam utilizar estas regras de forma que mais lhes
aproveitem em seus interesses, gerando conflitos entre as nações.

Portanto, se o desenvolvimento econômico leva ao


surgimento de boas instituições, como propõe Chang (2010), e estas
instituições são criadas para se manter fiéis aos seus propósitos, sem
que haja previsibilidade de mudanças significativas, tem-se que,
com o desenvolvimento econômico, o poder político advindo deste
desenvolvimento nas relações internacionais também aumenta,
gerando assim atores com maior força na proteção de seus
interesses nas relações internacionais, o que levaria ao conflito,
característica maior destas relações.

Em adendo, pode-se ainda buscar um paralelo com a


classificação dos tipos de institucionalismo trazida por Vivien
Schimdt (2008). Segundo Schimdt (2008), o institucionalismo histórico
é baseado na questão de existência de path dependence, as
instituições acabam seguindo um modelo exibido ao longo do curso
do desenvolvimento e este modelo se perpetua ao longo do
tempo, permanecendo com suas características próprias, não
havendo mudanças nas instituições.

Contudo, se por um lado o fatalismo encontra amparo na


teoria realista das relações internacionais, pode-se dizer também
que é verdadeira a conclusão de que o voluntarismo é compatível
com as características da teoria liberal.

Com efeito, o voluntarismo tal qual explicado por Chang


(2010) reside no fato que as instituições são criadas e
implementadas não com uma proposta de durabilidade ou
previsibilidade, mas sim, com possibilidade de que altere tais
instituições, para que melhores resultados possam ser alcançados.
143 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Deste ponto de vista, as instituições estão sujeitas às novas


dinâmicas das relações sociais e econômicas e estas novas
condições podem conduzir a uma mudança institucional.

Esse cenário nos leva a crer que as mudanças


institucionais devem ser fácies de se implementar justamente para
que as nações possam cooperar entre si, fazendo que suas
necessidades econômicas sejam satisfeitas de forma mais eficiente
e o desenvolvimento econômico pode, inclusive, levar ao
surgimento de instituições cujo âmbito de atuação ultrapasse as
fronteiras nacionais, propondo regras do jogo, no sentido proposto
por North, para economias nacionais que se relacionam em uma
arena internacional.

Com todas estas características, principalmente o fato de se


compreender o desenvolvimento da economia através da
cooperação entre nações e não do conflito entre elas, é possível
então entender que a relação entre o voluntarismo o qual Chang
(2010) argumenta é compatível com os pressupostos da teoria
liberal das relações internacionais, cuja principal característica está
no fato de que a cooperação entre as nações lava ao
desenvolvimento econômico. Fazendo então o mesmo paralelo
feito anteriormente com o fatalismo, o voluntarismo também pode
ser comparado com o institucionalismo discursivo proposto por
Schimdt (2008). Com o efeito, segundo o institucionalismo discursivo
considera o estado em termos de idéias e discursos os quais os
atores políticos utilizam para explicar e legitimar a ação política no
contexto institucional, de acordo com a lógica da comunicação.
Surge para explicar as mudanças dentro do estado e no estado, de
forma que uma abordagem estática não consegue explicar. As
instituições são constituídas e moldadas pelas idéias e discursos dos
atores políticos. Discursos e idéias são fundamentais para mudar e
constituir novas instituições e são de natureza imprevisível e
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
144

indetermináveis, independem de fatores estruturais e podem


representar um rompimento com a path dependence.

Desta forma, pode-se então concluir que a análise proposta


por Chang (2010) entre voluntarismo e fatalismo para entender as
mudanças institucionais é, no fundo, analisar o desenvolvimento
econômico a partir das premissas estabelecidas pelas teorias
realista e liberal das relações internacionais, permeando seus
argumentos entre o conflito ou a cooperação que caracterizam as
relações econômicas internacionais.
145 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Referências Bibliográficas

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Review, vol 88/02 1996
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
146

Abordagem Acerca do Aporte Listiano para a


Formação do Pensamento de Raúl Prebisch1

Otávio Erbereli Júnior2

Resumo
A literatura econômica, quando aborda as origens do pensamento
cepalino, geralmente o vincula ao pensamento keynesiano. Neste
artigo, procuramos demonstrar que o pensamento cepalino,
especificamente nas formulações de seu principal pensador, o
economista argentino Raúl Prebisch, pode também ter suas origens
no pensamento do economista alemão do século XIX, Friedrich List.

Palavras-chave: Friedrich List; Raúl Prebisch; História Econômica;


História do Pensamento Econômico.

Abstract
The economic literature, when discussing the origins of ECLAC´s
thought, usually binds to Keynesianism. In this paper, we have
demonstrated that ECLAC´s thought, specifically in the formulations
of its main thinker, the Argentine economist Raúl Prebisch, can also
have its origins in the thinking of the XIX´s German economist,
Friedrich List.

Keywords: Friedrich List; Raúl Prebisch; Economic History; History of


Economic Thought.

1Artigo apresentado em 15 de outubro de 2013 e aprovado em 20 de dezembro de 2013.


2Economista pela Unesp, especialista em História Econômica (Universidade Estadual de Maringá), mestrando
em História e Sociedade (Unesp – Assis) e bolsista do CNPq.
147 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Introdução

Quando a literatura econômica trata das origens do


pensamento econômico da CEPAL3, é comum encontrarmos
referência ao pensamento keynesiano como principal escola que
teria influenciado os economistas cepalinos, o que não seria
diferente no caso do economista argentino e primeiro secretário
daquela instituição, Raúl Prebisch (1901-1986). Isso ocorre devido ao
fato de que algumas políticas recomendadas pela CEPAL também
podem ser derivadas da principal obra do economista inglês John
Maynard Keynes, A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda,
publicada em 1936, “como intervencionismo, defesa de políticas de
crescimento acelerado dos investimentos e do produto, crítica à lei
de Say, ênfase à demanda efetiva interna e rejeição às teorias
ortodoxas e do comércio internacional.” (FONSECA, 2000, 334).
Também merece destaque neste caso, o fato de que Prebisch
publicou em 1947, o primeiro manual de economia na América
Latina destinado a divulgar as ideias de Keynes contidas em sua
Teoria Geral sob o título de Introdução a Keynes.
Contudo, Pedro Cezar Dutra Fonseca (2000) contesta este
lugar comum e busca outras origens para o pensamento cepalino
como um todo. Para ele as principais ideias que se tornariam
célebres no âmbito daquela instituição poderiam ser encontradas
de forma germinal em algumas correntes de pensamento européias
e que teriam sido assimiladas pelos críticos da ortodoxia liberal.
Seriam elas: o “liberalismo de exceção”, o positivismo e as ideias do
economista alemão Georg Friedrich List (1789-1846). O que nos
causa mossa é que “a despeito da semelhança entre as teses da
Cepal e as de List, este autor é pouco citado pelos economistas
vinculados àquela instituição.” (FONSECA, 2000, p. 352).
Destarte o fato de que realmente o pensamento de List é
pouco estudado por economistas nos cursos de economia política

3Comissão Econômica para América Latina e Caribe. Órgão da Organização das Nações Unidas (ONU), criado
em 1948 à fim de pensar políticas para o desenvolvimento da região.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
148

dos diversos cursos de graduação em Ciências


Econômicas/Economia do país, a tradução do livro Kicking away
the ladder: development strategy in historical perspective do
economista sul-coreano e professor da Universidade de Cambridge
na Inglaterra, Ha-Joon Chang, em 2004 sob o título de Chutando a
Escada: a estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica
parece ter reabilitado a perspectiva de análise de List e tê-lo feito
mais conhecido entre os brasileiros, pois “em termos metodológicos,
ele [Chang] se diz inspirado em Friedrich List e na abordagem da
Escola Histórica Alemã.” (PESSALI, 2004, p. 190). No primeiro capítulo
de seu livro, Chang dedica toda uma parte metodológica ao
primeiro livro da obra de List que trata exatamente da história do
desenvolvimento econômico de várias regiões da Europa. “Por ora,
eu queria chamar a atenção do leitor para a metodologia de List,
ou seja, para a sua análise histórica da economia.” (CHANG, 2004,
p. 18). Logo em seguida faz questão de deixar claro o intento de
seu livro, bem como sua escolha metodológica. “(...) um dos
objetivos do presente trabalho é reafirmar a utilidade de tal
abordagem (...).” (idem, p. 22). O título do livro – “chutando a
escada” – é uma referência a uma expressão do próprio List e
defende a tese geral de que os países ricos alcançaram seu
desenvolvimento através de políticas que hoje não indicam aos
países em desenvolvimento, ou seja, recomendam aos países em
desenvolvimento políticas que não adotaram a fim de que outros
países não trilhem o mesmo caminho que eles.
Como veremos na seção seguinte do presente artigo, algo
de semelhante ocorria à época de List, onde a Inglaterra, a nação
mais desenvolvida, recomendava políticas econômicas diferentes
daquelas que a haviam conduzido àquele patamar de riqueza,
devendo os outros países, como a Alemanha de List, seguir outras
políticas econômicas.
Tendo estas questões como pano de fundo, nosso intento
neste artigo não será demonstrar as influências do economista
alemão List sobre o pensamento de Raúl Prebisch através da busca
149 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

de referências em textos de Prebisch aos trabalhos de List, mas sim,


em uma leitura comparativa, perceber como o pensamento de
ambos podem ser complementares. Para tanto, nossas fontes serão:
a principal obra de List Sistema Nacional de Economia Política,
publicada em 1841 e três escritos de Raúl Prebisch: O
desenvolvimento da América Latina e seus principais problemas,
publicado originalmente em 1949 e que se popularizou como
“Manifesto da América Latina”; Estudo econômico da América
Latina de 1949, que, apesar de ser um documento cuja autoria é
atribuía à CEPAL, utilizaremo-nos de trechos cuja autoria é
reconhecidamente de Prebisch; e Problemas teóricos e práticos do
crescimento econômico, publicado originalmente em 1952, como
documento da CEPAL. Privilegiamos estes textos de Prebisch, dentro
da grande gama de publicações do autor que se inicia em 1944 e
se estende até sua morte em 1986, inspirados em seu texto Cinco
etapas de mi pensamiento sobre el desarrollo de 1983, onde o
próprio Prebisch divide seu pensamento em cinco grandes grupos.
Seus textos escritos entre sua entrada na CEPAL em 1949 até fins da
década de 1950 são fundamentais para nós, pois neles
encontramos as principais formulações de Prebisch quanto ao
desenvolvimento da América Latina, a Deterioração dos Termos de
Troca/Intercâmbio e o sistema centro-periferia.
Na primeira seção do artigo, exporemos as principais
diretrizes e fundamentos do pensamento de List presentes em seu
texto Sistema Nacional de Economia Política, buscando inseri-las em
um contexto histórico mais amplo, bem como suas origens no
pensamento filosófico alemão. Na segunda seção, exporemos o
pensamento de Prebisch presente em seus três textos, bem como os
principais conceitos e questões metodológicas desenvolvidas. Na
terceira seção, procuraremos demonstrar como as ideias de List e
Prebisch são complementares, longe de serem contrapostas. Por
fim, teceremos algumas reflexões em nível de conclusão.

List e seu Sistema Nacional de Economia Política


Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
150

Antes de adentrarmos propriamente nesta obra de List,


convém historicizá-la, ou seja, colocá-la em perspectiva com seu
contexto e possibilidades de produção. Quanto ao contexto, List
escreve em uma Alemanha fragmentada, dividida em ducados,
principados, cidades-livres, estados-livres dos mais variados portes,
como a Áustria, Prússia, Saxônia, Bavária e Wüttemberg. A partir
desta perspectiva List olhava para a Grã-Bretanha, com a Inglaterra
já unificada e em avançado estágio de desenvolvimento desde a
Primeira Revolução Industrial. Portanto,
List viveu entre a Primeira e a Segunda Revolução
Industrial, um período em que as manufaturas
ascendiam crescentemente em importância para o
desenvolvimento nacional e para a vida cotidiana.
Foi uma época de nacionalismo e ascensão de
grandes potências, onde a Inglaterra se destacava
como nação mais desenvolvida e líder no sistema
internacional. (PADULA, 2007, p. 162).

Somado a este contexto, a experiência existencial de List


também lhe proporcionará contato com pessoas que contribuirão
muito para a formação de seu pensamento. Quando reeleito
deputado para a Assembléia de Wüttemberg, em 1820,
iniciou uma campanha tão firme e intensa em
defesa da indústria e da moralização
administrativa, que em menos de um mês custou-
lhe a invasão de sua casa, a destruição de seus
panfletos e um processo por sedição, que o fez
perder o mandato e ser condenado à prisão por
dez meses e o pagamento dos custos judiciários.
(BUARQUE, 1983, p. X).

Neste excerto, trecho do prefácio de Cristovam Buarque


para a edição brasileira de sua grande obra, notamos que List, além
de grande pensador econômico, também foi homem bastante
pragmático, o que o coloca ao lado de outros grandes e raros
nomes do pensamento econômico, que também foram grandes
homens de ação como Karl Marx e John Maynard Keynes. Após
cumprir sua sentença, List parte para os EUA, onde formulará boa
parte de seu pensamento e terá contato com nomes que o
influenciarão por toda vida. Dentre eles cabe-nos destacar o
151 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

espanhol Antonio Serra, James Steuart e principalmente Alexander


Hamilton – primeiro secretário do Tesouro dos EUA à época. No
Relatório sobre as manufaturas de 1791, encontramos o argumento
de proteção a indústria nascente e outras ideias que exerceram
grande influência sobre List. Grosso modo, para Hamilton,
o Estado deveria intervir com um programa de
auxílio às indústrias que precisavam ser criadas,
sobretudo em substituição às fábricas instaladas na
Inglaterra, cujos produtos os Estados Unidos
necessitavam importar, mesmo após a declaração
de independência nacional. (PEREIRA e MENEZES,
2008, p. 94).

É desta sua experiência nos EUA que se origina seu Sistema


Nacional de Economia Política, pois “(...) em 1827, Charles Ingerssol,
Vice-Presidente da “Sociedade da Filadélfia para a Promoção da
Indústria Nacional” [sic], encomendou a List a elaboração de um
documento de defesa do protecionismo industrial a ser
apresentado na Convenção Nacional dos Protecionistas (...)”
(PADULA, 2007, p. 163). Este estudo de List deu origem às 12 cartas
publicadas em um dos mais importantes jornais do país, o National
Gazette. Estas cartas foram a base para o livro de List publicado sob
o titulo de Outlines of American Political Economy, que List chamou
de “seu sistema”. Neste livro encontramos a essência de seu Sistema
Nacional de Economia Política.
Seu entusiasmo para com a realidade econômica
estadunidense encontra-se no prefácio de sua grande obra.
“Quando (...) visitei os Estados Unidos, pus de lado todos os livros –
pois a essa altura só tenderiam a desencaminhar-me da via certa. A
melhor obra sobre Economia Política que se possa ler naquele país
moderno é a vida real.” (LIST, 1983, p. 5). List segue relatando como
nos EUA se passa da condição de vida material mais primitiva até
atingir-se o estado manufatureiro. List termina sua apologia aos EUA
no prefácio afirmando que em nenhum outro lugar é possível ver-se
a importância do sistema de transportes para a vida intelectual e
material.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
152

List inicia o prefácio afirmando seu descontentamento em


relação à teoria econômica predominante em sua época:
Já faz mais de 33 anos que comecei a ter dúvidas
sobre a veracidade da teoria da Economia Política
atualmente dominante, empenhando-me desde
então em investigar quais, em meu modo de
entender, seriam os erros dessa teoria e as causas
fundamentais em que radicam tais erros. (LIST, 1983,
p. 3).

Portanto, um dos intentos deste texto de List será questionar


os fundamentos da teoria clássica, baseada nas principais
propostas de Adam Smith presentes em seu A Riqueza das Nações,
publicado em 1776, principalmente no que tange às proposituras de
liberdade de comércio e de não intervenção do Estado na
economia. Ao longo de todo Seu Sistema, List estará dialogando e
se contrapondo àquela escola de pensamento econômico.
Em síntese, podemos dizer que a teoria de Smith –
que se apresenta como crítica ao sistema mercantil
vigente na época – baseia-se, sobretudo, na
liberdade e igualdade, sendo esses dois princípios
características essenciais a uma nação que busca
o progresso. Importa destacar que Smith fala em
nome dos indivíduos, ou seja, entende a sociedade
não em sua coletividade, mas na individualidade
de seus cidadãos. Por essa razão, ao evocar o
princípio de liberdade, está defendendo, antes de
tudo, a liberdade de cada indivíduo poder decidir
sobre suas atividades, sem a interferência do
Estado, e conduzi-las da maneira que melhor lhe
convém. Além disso, defende que todos devem ter
igualdade de direitos na luta por melhores
condições, posicionando-se contra a concessão de
privilégios. Desse modo, o Estado deixa a cargo dos
talentos individuais a aquisição de riqueza pelos
cidadãos; cabe a ele garantir a liberdade e, ao
mesmo tempo, o seu controle, fazer com que a
legislação seja cumprida, manter a ordem social e
tomar cuidado para não se tornar intervencionista.
(PEREIRA e MENEZES, 2008, p. 90).

A Economia Política inglesa ou clássica por vezes é


denominada por List como “escola popular” ou “Economia
Cosmopolítica”. Antes de adentrarmos propriamente na crítica que
List empreende em relação à escola de pensamento fundada por
Smith, faz-se mister destacarmos a tradição filosófica da qual List é
153 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

herdeiro à fim de que possamos compreender melhor, em termos


metodológicos, porque seria natural que List, destarte questões de
hegemonia de poder econômico e de relações internacionais da
época, se opusesse ao pensamento da escola inglesa. List se insere
no movimento geral do pensamento alemão do século XIX.
Assim, a peculiaridade de um pensamento que,
embora iluminista, rejeitasse o liberalismo, o
individualismo e o atomismo floresceu entre os
pensadores alemães e não só na economia: Kant, e
principalmente Hegel, são os exemplos mais
respeitáveis do campo do conhecimento em que
os autores de língua alemã por excelência se
destacaram no século 19: a filosofia. (FONSECA,
2000a, p. 5).

Deste modo temos aqui a confrontação de duas


concepções econômicas que, em seus fundamentos
metodológicos e filosóficos, são extremamente distintas. O
pensamento de List deriva da tradição filosófica alemã do século
XIX, cuja principal marca é a oposição ao individualismo
metodológico. Já o pensamento smithiano deriva da tradição
filosófica herdeira, dentre outros, de John Stuart Mill, cuja principal
característica é exatamente o individualismo metodológico.
Para List existe uma diferença fundamental entre a
Economia Política e a Economia Cosmopolítica. Para ele reside
exatamente aqui um dos equívocos de Adam Smith e seus
seguidores. Remontando-se ao economista fisiocrático François
Quesnay, List afirma que este
fala de economia cosmopolítica [sic], isto é, da
ciência que ensina como a humanidade inteira
pode atingir a prosperidade, em oposição à
Economia Política, ou seja, à ciência que limita seu
ensinamento a investigar como determinada
nação [sic] pode obter (nas condições vigentes do
mundo) a prosperidade, a civilização e o poder,
por meio da agricultura e do comércio. (LIST, 1983,
p. 89).

Podemos notar a partir do excerto acima que, para List, o


pensamento de Adam Smith e seus seguidores, como Jean-Baptiste
Say, possui um caráter universalizante, ou seja, pensam no
desenvolvimento econômico da humanidade como um todo. Já
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
154

para List, a questão central se coloca sob o desenvolvimento da


Nação. E aqui temos uma das categorias fundamentais para List.
Mas, por que List está tão preocupado com a Nação e com seu
desenvolvimento e os economistas clássicos estão preocupados
com as Nações? Reside aqui um importante elemento histórico
contextual. Alguns países como Portugal, Espanha, França e
Inglaterra alcançaram sua unidade política interna entre os séculos
XV e XVIII. A Itália, a Alemanha e muitos outros países conseguiram
atingir seus projetos de unidade política interna somente no século
XIX. Portanto, em um momento em que a Inglaterra já está
unificada, contando com um mercado interno integrado e já
passou por seu processo de industrialização, a Alemanha ainda
estava fragmentada, em vias de sua união política. Portanto, “aos
alemães faltava a instituição básica, por excelência, dos tempos
modernos: o Estado Nacional unificado.” (FONSECA, 2000a, p. 4).
Exatamente por isso, “a existência de instituições locais e a
inexistência de outras impunham aos homens no cotidiano – a seus
governantes e a seus pensadores – , a necessidade de pensar a
economia não como algo universal, mas como fruto daquela
realidade histórica e institucional.” (FONSECA, 2000a, p. 4). Sendo
assim, devido ao fato de que o século XIX é o século das grandes
uniões e formações nacionais, o mesmo ficou conhecido por século
da História, pois a História, enquanto disciplina, surge exatamente
neste momento, como legitimadora dos Estados Nacionais.
Aqui reside outra peculiaridade do trabalho de List: a
presença da História em sua análise, sendo tido como um dos
precursores da Escola Histórica Alemã.
Em economia, o verdadeiro precursor da escola foi
FRIEDRICH LIST [sic], que, no Sistema nacional de
economia política, [sic] publicado em 1841, recorre
à história para fundamentar suas teses de patriota
que desejava ver os Estados alemães constituírem
uma nação. (IGLÉSIAS, 1959, pp. 50-51).

Este método histórico de List, mais uma vez, se contrapõe ao


“método dedutivo, abstrato e com pretensões universalizantes dos
ingleses.” (FONSECA, 2000a, p. 3). Para List, não poderia existir
155 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Ciência Econômica/Economia sem História. Isso fica claro quando


lemos a primeira parte do Sistema de List denominada Livro Primeiro:
A História. Através dele, podemos derivar todo o sistema teórico de
List, aprofundado e desenvolvido no Livro Segundo: A Teoria4 e
encontramos o segundo grande intento de seu texto: buscar a
política econômica que propicie o desenvolvimento da Alemanha.
He developed a method of historical research into
the annals of various people in an effort to find a
casual explanation for the origin of civilization to
which they have attained. This provided a
framework for the Historical School of Economists
which for forty years (1843-1883) was the most
influential school of thought in German-speaking
countries. (BELL, 1942, p. 81).

Nesta primeira parte de seu Sistema, List trata da história de


vários povos: os italianos, os hanseáticos, os holandeses, os ingleses,
portugueses e espanhóis em conjunto, franceses, alemães, russos e
norte-americanos. Sua análise tem sempre em perspectiva o
desenvolvimento da Inglaterra enquanto Nação. Ao tratar das
repúblicas italianas, já aparece uma das categorias fundamentais
para List, conforme pontuamos acima: a Nação. Para ele, a
derrocada das repúblicas italianas e o impedimento maior para que
estas não atingissem o mesmo grau de desenvolvimento da
Inglaterra está no fato de que “faltava-lhe unidade nacional [sic] e
o poder que dela deriva.” (LIST, 1983, p. 10). Ao tratar dos
hanseáticos, List encontra um subsídio histórico que lhe permite
advogar a favor da sinergia entre os diversos setores da economia,
uma vez que para os economistas smithianos o incentivo à
implementação de manufaturas por parte do Estado imporia um
grande ônus aos agricultores. Para List, por outro lado, a agricultura
muito se beneficiaria do estímulo às manufaturas, conforme ficará
claro na segunda parte de seu Sistema.
No tempo de Henrique VIII, os preços de todos os
gêneros alimentícios haviam subido
consideravelmente devido ao grande número de
artesãos e trabalhadores estrangeiros em Londres;

4 Neste tópico não nos utilizaremos deste segundo livro da obra de List. Faremo-lo quando tratarmos, no quarto
tópico deste artigo, das idéias em conjunto de List e Prebisch.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
156

um sinal evidente do grande benefício que a


indústria agrícola nativa auferia do
desenvolvimento da atividade manufatureira
nacional. (LIST, 1983, pp. 18-19).

Ao tratar do desenvolvimento econômico inglês, List aponta


que a Inglaterra procedeu exatamente da maneira que os
economistas ingleses contemporâneos condenavam, de acordo
com o que List denomina de “Teoria dos Valores”. De acordo com
esta teoria, os ingleses não poderiam contrariar a Lei das Vantagens
Comparativas, ou seja, deveriam importar bens cujo custo de
produção interno fosse maior, comparativamente às nações
fornecedoras, e exportar bens cujo custo de produção interno fosse
menor. Ocorre, porém, conforme constata List, que durante seu
processo de desenvolvimento a Inglaterra atuou exatamente de
forma contrária.
Pois, de acordo com essas teorias, a Inglaterra
deveria ter comprado o que necessitava, lá onde
pudesse comprar melhor a preços mais baixos; foi
loucura fabricar para si mesmo bens a custo
superior ao dos produtos comprados fora, e ao
mesmo tempo ceder essa vantagem aos países do
continente. (LIST, 1983, p. 36).

Segundo List, a Inglaterra agiu de acordo com o que,


contemporaneamente ao economista alemão, condenava, e que
ele chama de “Teoria das Forças de Produção”, que será
desenvolvida mais adiante em seu Sistema. Outra grande
divergência de List em relação ao pensamento de Adam Smith
reside no fato de considerar o poder político mais importante do
que a própria riqueza, “simplesmente porque o poder nacional é
uma força dinâmica que abre a porta para novos recursos
produtivos, e porque as forças de produção constituem a árvore da
qual cresce a riqueza, e porque a árvore que produz os frutos tem
valor superior aos próprios frutos.” (LIST, 1983, p. 37). Aqui temos outra
categoria fundamental à análise listiana: as forças de produção ou
forças produtivas.
Um outro tipo de abordagem aparece também na parte
em que List analisa o desenvolvimento da Inglaterra. List não se
157 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

prende apenas aos aspectos políticos e econômicos do


desenvolvimento. É pioneiro ao considerar fatores institucionais, que
somente no século XX seriam tomados como de suma importância
pelas teorias do desenvolvimento econômico, como a Nova
Economia Institucional, por exemplo. Para List,
importa também, admitir o que a enorme
capacidade produtiva e a grande riqueza da
Inglaterra não podem ser creditadas
exclusivamente ao poder nacional e ao amor inato
do povo pelo ganho financeiro. Participam deste
mérito também o amor inato do povo à liberdade e
à justiça, a energia, o caráter religioso e moral do
povo. Participam igualmente a Constituição do
país, suas instituições, a sabedoria e a força do
Governo e da aristocracia. Finalmente, não se deve
esquecer a posição geográfica, as riquezas do país,
diríamos até, a sorte. (LIST, 1983, p. 39).

Realmente a condição geográfica e a sorte dizem muito


respeito ao tipo de desenvolvimento que uma Nação pode ou não
alcançar. Neste sentido, encontramos em List uma posição
imperialista em relação aos países de clima tropical, que ele
denomina de países da zona tórrida. Para List, estes países não
apresentam as condições necessárias para o desenvolvimento
manufatureiro, devendo se colocar ad eternum como fornecedores
de matérias-primas dos países manufatureiros da Europa e EUA.
Além disso, países de pequeno porte também não poderiam
ascender à condição de país desenvolvido.
Outro elemento marcante da análise histórica de List, diz
respeito à importância do desenvolvimento das ciências e das artes
para o desenvolvimento da Nação. Ligada ao desenvolvimento das
ciências, List é pioneiro ao dar importância à necessidade do
desenvolvimento de um sistema de patentes.
Em virtude de sua legislação sobre patentes
industriais, durante muito tempo a Inglaterra
monopolizou o gênio inventivo de todas as nações.
Agora que a Inglaterra atingiu o ponto culminante
de seu crescimento e progresso industrial, é mais do
que dever de honestidade restituir às nações do
continente europeu uma parte das forças
produtivas que originalmente auferiu delas. (LIST,
1983, p. 43).
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
158

Ao analisar o processo de desenvolvimento histórico de sua


pátria-mãe, List nos fornece um exemplo do quão profícuo pode ser
o protecionismo no desenvolvimento de manufaturas. E aqui temos
outra categoria fundamental do constructo teórico listiano: o
protecionismo, que quando conduzido pelo Estado através da
implantação de tarifas alfandegárias restritivas às importações,
toma o caráter de intervencionismo.
Seguiu depois o bloqueio continental decretado
por Napoleão, evento que marcou uma era na
história tanto da indústria alemã como da indústria
francesa, apesar de J. – B. Say, o mais renomado
discípulo de Adam Smith, tê-lo denunciado como
uma calamidade. Quaisquer que sejam as
alegações dos teóricos, particularmente dos
ingleses, contra o bloqueio, é incontestável – e
todos os que conhecem a indústria alemã devem
atestá-lo, pois há testemunhas abundantes do fato
em todos os escritos estatísticos da época – que,
como resultado daquele bloqueio, as manufaturas
alemãs de toda espécie, pela primeira vez,
começaram a registrar progresso importante. (LIST,
1983, p. 64).

Ao final deste primeiro livro, List já sistematiza toda a sua


teoria, que será exposta e contraposta à teoria smithiana, em 3
estágios de desenvolvimento. Nas palavras do próprio List:
No primeiro estágio, adotando comércio livre com
nações mais adiantadas como meio de saírem elas
mesmas de um estado de barbárie e para fazerem
progresso na agricultura; no segundo estágio,
promovendo o crescimento das manufaturas, da
pesca, da navegação e do comércio exterior,
adotando restrições ao comércio; e no último
estágio, após atingirem o mais alto grau de riqueza
e poder, retornando gradualmente ao princípio do
livre comércio e da concorrência sem restrições,
tanto no mercado interno como no mercado
internacional, de maneira que seus agricultores,
comerciantes e manufatores possam ser
preservados da indolência e estimulados a
conservar a supremacia que adquiriram. (LIST, 1983,
p. 86).

Fica claro pelo excerto acima que List não é contrário ao


livre comércio, tampouco um protecionista/intervencionista strictu
sensu. Para List, a fim de que a Nação possa sair de um estado de
desenvolvimento extremamente baixo, onde o único setor
159 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

representativo da economia nacional é a agricultura e rumar para


um desenvolvimento manufatureiro é necessário adotar uma
política de livre-comércio, sem qualquer restrição às importações.
Em um segundo momento, sim. Para poder promover o
desenvolvimento manufatureiro é necessário certo grau de
proteção, pois List pressupõe que todos os setores da economia
estão interligados e que a manufatura é um fator indutor do
desenvolvimento de uma infra-estrutura de transportes, por
exemplo. Portanto, se neste momento a manufatura nacional tiver
que concorrer com produtos manufaturados de outras nações,
todo o esforço de desenvolvimento das manufaturas é prejudicado,
assim como todos os demais setores da economia. Por fim, quando
a Nação estiver com suas forças manufatureiras em um estágio
avançado de desenvolvimento, deve-se adotar novamente o livre-
comércio de uma forma gradual, posto que se o ambiente interno
ainda estiver preservado da concorrência exterior, todos os setores
da economia podem se acomodar e entrar em letargia.
Após esta sucinta exposição do Sistema de List, passemos
agora ao pensamento de Raúl Prebisch, que muito contribuirá para
a formação do pensamento cepalino, para, em seguida, tecermos
algumas considerações sobre a presença de constructos listianos na
teoria de Prebisch.

O pensamento de Raúl Prebisch nos anos 1950 e seus


principais elementos constitutivos

À semelhança do tópico anterior, antes de adentrarmos


propriamente nos três textos selecionados para apreendermos os
fundamentos do pensamento de Prebisch e que seriam os alicerces
do pensamento cepalino, iremos primeiramente analisar de modo
breve as condições históricas e intelectuais que propiciaram o
surgimento de tais ideias no ambiente da realidade histórica latino-
americana.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
160

Após a Segunda Guerra Mundial tivemos uma polarização


do poder mundial, com uma disputa por hegemonia entre os EUA e
a URSS. Os EUA, à fim de impedir que o socialismo tomasse a Europa,
implementa o Plano Marshall para a reconstrução da Europa.
Investimentos maciços são direcionados ao continente europeu e
ao Japão. A partir daí a Europa e o Japão se vêem em um
crescimento econômico acelerado, com baixas taxas de
desemprego e inflação controlada.
Na América Latina o cenário não era diferente. Também
algumas economias latino-americanas em função das restrições às
importações durante as Primeira e Segunda Guerras Mundiais,
haviam adentrado no assim conhecido processo de industrialização
por substituição de importações, uma vez que não tinham acesso
aos bens de consumo produzidos na Europa. Contudo, este
processo de industrialização, devido às características históricas da
América Latina, principalmente em relação às suas estruturas
econômico-sociais, apresentava sérias contradições.
Aqui [na América Latina], alguns países transitaram
para uma nova dinâmica econômica, baseada na
demanda e investimentos internos e alguns centros
urbanos passaram à ser os pólos dinâmicos da
economia. Neles, uma classe industrial latino-
americana surgia, carente de uma ideologia que
representasse sua visão de mundo e seus interesses.
Ao mesmo tempo, a rápida migração campo-
cidade, na ausência de reforma agrária, inchou
sobremaneira as urbes sem que a oferta de
emprego crescesse na mesma velocidade. Desse
modo, a mesma economia que se transformava a
taxas não desprezíveis era incapaz de reduzir a
pobreza. (AMORIM, 2005, p. 4).

Portanto, a CEPAL, que em seu inicio se confunde com o


pensamento de Prebisch, visto que foi o principal formulador das
teses cepalinas até 1963, ano de sua saída daquela instituição, irá
se debruçar sobre as principais questões relativas ao
desenvolvimento econômico da América Latina. Como foi dito,
Prebisch será o principal responsável por essas formulações tendo
sempre em perspectiva a economia estadunidense e a teoria
neoclássica do comércio internacional.
161 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Prebisch, assim como List, foi um homem extremamente


pragmático. Seu pensamento e sua teoria derivam de sua reflexão
acerca de como resolver os problemas latino-americanos que
impediam a região de deixar sua condição de subdesenvolvimento.
Prebisch lecionou na Universidade de Buenos Aires, onde também
se formou, entre 1925 e 1948 e foi um dos fundadores do Banco
Central da Argentina. Até a grande crise da década de 1930,
Prebisch foi um fiel seguidor e defensor das teorias neoclássicas. Nas
palavras do próprio Prebisch: “Os ensinamentos dessa crise me
fizeram refletir, mais tarde, sobre o desenvolvimento periférico, sua
grande vulnerabilidade externa e suas relações com os centros.”
(PREBISCH apud FLECHSIG, 1991, p. 94). Sendo assim, o pensamento
de Prebisch a partir dos anos 1930 será de crítica à teoria
neoclássica do comércio internacional.
A lei das vantagens comparativas (um dos pilares
da Teoria Clássica) sustentava que, se os países
atrasados se especializassem nos produtos
primários, e os avançados em industrializados, nas
relações comerciais entre eles os países atrasados
acabariam levando vantagem, pois absorveriam
todo o diferencial de produtividade de seus
parceiros avançados. A elevação da produtividade
dos países industrializados e, conseqüentemente
[sic], a diminuição de seus custos, deveria refletir-se
na queda sistemática dos preços de seus produtos
e, portanto, dos preços de suas exportações, a
serem intercambiadas com as exportações dos
países menos produtivos, cujos preços, em vista de
sua menor eficiência, permaneceriam mais
elevados. Dessa forma, haveria transferência dos
ganhos de produtividade dos países avançados
para os atrasados, de modo a propiciar o
desenvolvimento destes últimos. (MANTEGA, 1985, p.
35).

O excerto acima é uma síntese desta teoria criticada por


Prebisch e que tem em Paul Samuelson um de seus principais
expoentes.
Antes de adentrarmos propriamente no texto de Prebisch
de 1949, faz-se mister termos uma ideia de conjunto de seu
pensamento à fim de que o mesmo não apareça aqui de forma
fragmentária.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
162

A primeira etapa do pensamento de Prebisch, conforme


exposto por ele mesmo em seu texto de 1983 denominado Cinco
etapas de mi pensamiento sobre el desarrollo, se inicia com sua
saída do Banco Central argentino em 1943 e termina com sua
entrada na CEPAL em 1949. A marca aqui são seus estudos sobre o
ciclo econômico, antecedentes de seu constructo do sistema
centro-periferia e o rechaçamento à teoria econômica
predominante, cujos principais fundamentos expusemos acima.
Além das já mencionadas influências derivadas de Keynes e List,
encontramos nesta fase outra influência recebida por Prebisch.
“Nesta fase, Prebisch estuda também profundamente a obra de
Schumpeter, que se materializa nas suas idéias [sic] sobre o ciclo
econômico e o papel do empreendedor no processo de
desenvolvimento.” (COUTO, 2007, p. 48).
A segunda fase do pensamento de Prebisch se dá quando
de sua entrada na CEPAL em 1949 até finais da década de 1950.
Esta é a etapa de seu pensamento sob a qual nos debruçaremos,
posto que é nela que Prebisch sistematiza seu conceito de centro-
periferia e faz suas principais assertivas acerca da industrialização
da América Latina e alguns de seus principais obstáculos. Ademais,
é nesta etapa que podemos notar, de forma mais explícita, como
veremos no próximo tópico deste artigo, as permanências e
continuidades a partir do pensamento de List.
A terceira etapa de seu pensamento possui como marcos
delimitadores, o final da década de 1950 até sua saída da CEPAL
em 1963. Esta fase ou etapa do pensamento de Prebisch é muito
importante, posto que nela Prebisch não trata somente de fatores
econômicos quando pensa o processo de desenvolvimento da
América Latina, mas inclui em sua análise a estrutura social; e para
superar a estrutura social da América Latina, o caminho
preconizado por ele está na educação. Outro ponto importante é
que em texto de 1959, Prebisch pensa a possibilidade de criação de
um mercado de livre-comércio para a América Latina. Aparece
163 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

também sua defesa da reforma agrária e o conceito de


insuficiência dinâmica. Por fim,
admitia ainda o fim da etapa fácil de substituição
de importações [sic]. Foi relativamente simples
substituir bens de consumo corrente e alguns
duradouros. Tratava-se agora de substituir bens de
capital e intermediários, de fabricação mais
complexa, que exigia [sic] maiores mercados e
capitais. (COUTO, 2007, p. 54).

Na quarta etapa, seu pensamento transcende as fronteiras


da América Latina, posto que Prebisch deixa a CEPAL e ingressa na
Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento
(Unctad) como seu secretário geral em Genebra, na Suiça. Esta
etapa é delimitada pelos anos entre 1963 e 1969, na qual Prebisch
formula sua Teoria da Transformação e sua abordagem
multidisciplinar se acentua. “Diz que o desenvolvimento não se
defrontava apenas com problemas econômicos, mas também com
problemas políticos, sociais e culturais.” (COUTO, 2007, p. 56).
Por fim, a última etapa ou estágio do pensamento de
Prebisch compreende o período entre 1976, quando de sua entrada
como diretor geral da Revista de La Cepal, até sua morte em 1986.
Esta é uma etapa de intensa produção intelectual, na qual Prebisch
se dedica a refletir e sistematizar melhor sobre o capitalismo
periférico, bem como é uma fase de grande aproximação com o
socialismo. A principal produção de Prebisch é o livro Capitalismo
periférico. Crise e Transformação publicado em 1981, no qual
Prebisch sintetiza sua contribuição presente em todos os seus artigos
anteriores. Apesar de novas interpretações surgidas ao longo de
todas estas etapas ou períodos de sua produção, “Prebisch
continua acreditando na substituição de importações e nas
exportações de manufaturados como forma de superar o
desequilíbrio externo.” (COUTO, 2007, p. 59).
Após termos explicitado as principais etapas do
pensamento de Prebisch, bem como as características de cada
uma delas, exporemos as principais categorias presentes em seus
três textos que selecionamos para análise, partindo do pressuposto
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
164

de que “ese conjunto de documentos contenía ya todos los


elementos que figurarían como la gran referencia ideológica y
analítica para todos los desarrollistas latinoamericanos.”
(BIELSCHOWSKY, 1998, p. 25). Nos três, o que chamamos de
constructo centro-periferia, autores consagrados como Octavio
Rodríguez, chamam de sistema. A denominação pouco importa. O
que mais nos interessa aqui é pontuar que este sistema de análise
foi largamente adotado pela CEPAL e se tornou um termo comum à
escola. “Consideram-se centros as economias em que penetram
primeiro as técnicas capitalistas de produção. A periferia está
constituída pelas economias cuja produção permanece
inicialmente atrasada, do ponto de vista tecnológico e
organizativo.” (RODRÍGUEZ, 1981, p. 37).
No texto de Prebisch de 1949, popularizado como
“Manifesto da América Latina” por Alberto Hirschman, a primeira
vez que os termos “centro” e “periferia” aparecem, é quando
Prebisch disserta acerca da divisão internacional do trabalho:
“Nesse esquema [da divisão internacional do trabalho]
correspondia à América Latina, como parte da periferia da
economia mundial, o papel específico de produzir alimentos e
matérias primas para os grandes centros industriais.” (PREBISCH,
1949, p. 47). É a partir do teor das trocas comerciais entre centro e
periferia e da análise dos ciclos econômicos da economia
capitalista, que Prebisch irá encontrar a dinâmica de
desenvolvimento da América Latina.
Os Estados Unidos são, agora, o principal centro
cíclico do mundo, como em outros tempos foi a
Grã-Bretanha. Sua influência econômica sobre [sic]
os outros países é manifesta. E nessa influência, o
ingente desenvolvimento da produtividade
daquele país desempenhou papel importantíssimo:
tem afetado intensamente o comércio exterior e,
através de suas variações, o ritmo [sic] de
crescimento econômico do resto do mundo e a
distribuição internacional do ouro. Os países da
América Latina, com um elevado coeficiente de
comércio exterior, são extremamente sensíveis a
essas repercussões econômicas. Justifica-se,
portanto, examinar as projeções daquele
165 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

fenômeno e os problemas dele [sic] decorrentes.


(PREBISCH, 1949, p. 60).

Prebisch irá se contrapor à teoria neoclássica do comércio


internacional, exposta sinteticamente acima em citação de Guido
Mantega, principalmente no que tange à distribuição dos frutos ou
benesses do progresso técnico entre o centro e a periferia do
sistema econômico capitalista, principalmente nas relações
comerciais entre os países da América Latina e os EUA, principal
centro cíclico da economia, em substituição à Inglaterra.
E' [sic] certo que a argumentação relativa às
vantagens econômicas da divisão internacional do
trabalho é de validade teórica inobjetável [sic].
Mas, esquece-se, via de regra, que se baseia em
uma premissa terminantemente negada pelos
fatos. Segundo esta premissa, o fruto do progresso
técnico tende a repartir-se igualmente em toda
[sic] a coletividade, seja pela baixa dos preços seja
pela alta equivalente das remunerações. Por meio
do intercâmbio internacional, os países de
produção primária obtêm sua parte nesse fruto.
Não necessitam, portanto, de industrializar-se. Pelo
contrário, sua menor eficiência fá-los-ia perder
irremissivelmente [sic] as vantagens clássicas do
intercâmbio. O erro [sic] dessa premissa consiste em
atribuir caráter geral ao que de si mesmo é muito
circunscrito. Se por coletividade se entende,
apenas, o conjunto dos grandes países industriais, é
certo que o fruto do progresso técnico se distribui,
gradualmente, entre todos os grupos e classes
sociais. Mas, se o conceito de coletividade também
se estende à periferia da economia mundial, essa
generalização encobre um grave erro [sic].
(PREBISCH, 1949, pp. 47-48).

Vejamos como Prebisch contesta esta assertiva de que os


países da periferia não necessitariam passar por um processo de
industrialização devido ao fato de que o progresso técnico gerado
no centro se espalharia para toda a periferia através do livre
comércio, devendo os países da periferia permanecer como
fornecedores de bens primários e matérias-primas para os países do
centro capitalista.
Através da teoria dos ciclos econômicos, Prebisch afirma
que durante a alta do ciclo, ou seja, no auge cíclico, os preços dos
produtores manufaturados sobem/aumentam e os preços dos
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
166

produtos primários também. Nesta alta do ciclo, no centro, parte


dos ganhos obtidos em produtividade são repassados como
remuneração aos fatores de produção. Na periferia ocorre o
mesmo fenômeno. Contudo, na baixa do ciclo as estruturas
econômicas distintas do centro e da periferia, fazem com que as
consequências desta baixa se manifestem de modos diversos.
Ocorre que na baixa cíclica o preço dos produtos primários
baixa mais do que o preço dos manufaturados. Isso decorre da
estrutura do mercado de trabalho, que no centro tende à rigidez,
ou seja, as pressões dos sindicatos organizados não permitem que
haja quedas na remuneração dos fatores de produção. Com isso,
os preços baixam menos. Na periferia, em contrapartida, devido à
maior flexibilidade do mercado de trabalho, os salários são
baixados, o que se reflete em uma queda mais acentuada dos
preços, comparativamente ao centro. É deste movimento cíclico
que Prebisch deriva sua teoria da Deterioração dos termos de
Intercâmbio, onde, grosso modo, temos uma tendência de queda
dos preços dos produtos primários frente aos produtos
manufaturados, corroborada pelas estatísticas do período
selecionado por Prebisch que, obviamente, não está imune às
contestações e controvérsias. Portanto, como não há queda nos
preços dos produtos manufaturados, não há transferência de
progresso técnico para a periferia e este tem se concentrado no
centro do sistema.
Daí deriva-se a necessidade de industrialização da periferia,
posto que com a industrialização toda a estrutura econômica
periférica que propicia este fenômeno não mais lhe daria suporte. A
estrutura produtiva da periferia se caracteriza por ser extremamente
especializada, ou seja, os frutos do progresso técnico concentram-
se no setor exportador, pelo fato de a constituição histórica destas
economias serem de desenvolvimento voltado para fora. Outra
característica da estrutura produtiva da periferia é sua
heterogeneidade, ou seja, temos setores de alta produtividade,
principalmente os voltados ao setor exportador, e outros setores
167 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

onde a produtividade do trabalho é muito baixa e inferior aos


mesmos setores dos centros. Esta estrutura produtiva da periferia
implica em que
A acumulação de capital tende a realizar-se de
maneira extremamente desigual no que se refere à
incorporação do processo técnico, que se difunde
de forma muito restrita entre as atividades
produtivas. A produção se concentra, em grande
medida – em seus componentes dinâmicos – nos
bens de consumo relativamente luxuosos em
relação à renda média prevalecente e tende a
satisfazer, além de necessitar, da demanda
diversificada de uma pequena parte da população
que detém em suas mãos uma substancial
proporção da renda. (SERRA, 1976, pp. 20-21).

O que explica o aumento da produtividade maior no centro


do que na periferia, é o potencial científico e tecnológico do centro
e sua maior capacidade de acumulação de capital. Esta
configuração estrutural do centro permitiu-lhe gerar maiores níveis
de investimento e, consequentemente, reter maior parte deste
mesmo progresso técnico por ele produzido.
Asimismo, como consecuencia de su mayor
capacidad para retenerlo, los centros poseen
también uma marcada superioridad en lo relativo a
la interacción dinâmica entre acumulación,
productividad e ingreso; la periferia, por el
contrario, padece el círculo vicioso en que son
precários la productividad, el ingreso y la
acumulación. (GURRIERI, 1982, pp. 21-22).

Outra característica da América Latina nestas relações de


trocas comerciais com o centro é sua tendência estrutural ao
desequilíbrio externo. Ocorre que durante o processo de
industrialização da periferia latino-americana, há uma confluência
de fatores que conduzem ao desequilíbrio externo, ou seja, ao
déficit no balanço de pagamentos. Primeiro: durante o processo de
industrialização ocorre um aumento do coeficiente de importações
que não encontra proporcionalidade na capacidade para
importar, devido ao fato de que a demanda do centro por
produtos primários tende à ser inelástica com relação à renda.
Portanto, há um aumento no valor das importações, sem um
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
168

correspondente aumento no valor das exportações. Segundo: o


padrão de consumo da periferia latino-americana não foi
desenvolvido pari passu com sua capacidade produtiva, sendo que
uma parcela importante da população brasileira tem seus hábitos
de consumo ditados pelo centro. Estes dois fatores combinados
encontram-se presentes em todos os estágios da industrialização
latino-americana, exceto quando se atinge o estágio mais
avançado.
O resultado é que, não havendo nada no sistema
que assegure proporcionalidade entre o
crescimento da demanda por importações e o
crescimento da capacidade de importar, o
problema do desequilíbrio externo tende a
reaparecer ao longo do processo, ao invés de
desaparecer com ele, pelo menos até que um
estágio bem avançado da industrialização tenha
sido atingido. (BIELSCHOWSKY, 2000, p. 20).

Desta forma, as importações superam em muito as


exportações, gerando déficit no balanço de pagamentos, que
deve ser enfrentado através da diminuição das reservas em dólares.
Portanto, juntamente com o desemprego estrutural e a inflação, a
deterioração dos termos de troca e o desequilíbrio externo seriam os
principais obstáculos que, segundo Prebisch, obstaculizariam o
processo de industrialização latino-americano.
Contudo, destarte estes problemas estruturais da
industrialização latino-americana, esta tem papel central na teoria
do desenvolvimento econômico de Prebisch. Em trecho do
documento de 1952 da CEPAL, intitulado Problemas teóricos e
práticos do crescimento econômico, Prebisch sintetiza sua visão de
desenvolvimento econômico. Nela estão apresentadas algumas
benesses trazidas pela industrialização, como o estímulo à
agricultura e o aumento no nível de renda, mas também o
obstáculo do desequilíbrio externo.
As atividades de exportação dos países latino-
americanos são insuficientes para absorver o
aumento da população ativa disponível, em virtude
de seu crescimento vegetativo e do progresso
técnico. A industrialização desempenha, antes de
mais nada, o papel dinâmico de absorver
169 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

diretamente a população ativa excedente e


estimular outras atividades, inclusive a agricultura
de consumo interno, que contribuem para o
mesmo objetivo. Dessa forma, através do progresso
técnico e da industrialização, vai crescendo a
renda global e melhorando a renda per capita
[sic]. À medida que a renda aumenta dessa
maneira e que se vai alterando a composição da
demanda, é indispensável ir transformando a
composição das importações e desenvolvendo a
produção substitutiva interna, a fim de que outras
importações possam crescer intensamente.
Quando esse reajuste das importações não se
realiza em medida suficiente, a elevação da renda
manifesta-se na tendência ao desequilíbrio externo:
as importações tendem a crescer mais do que a
capacidade de importar. (PREBISCH, 2000, p. 196).

No Estudo Econômico de 1949, também aparece a


industrialização como estimuladora da agricultura.
Esta, como indica seu nome, abrange as primeiras
etapas do processo produtivo, enquanto a indústria
compreende as etapas subseqüentes [sic].
Justamente por essa posição relativa das duas
atividades, o aumento da atividade industrial
fomenta a atividade primária, a qual, por sua vez,
não tem o poder de estimular a atividade industrial.
(CEPAL, 2000, p. 147).

Procuramos neste item apontar as principais etapas do


pensamento do economista argentino Raúl Prebisch, bem como as
principais categorias de análise por ele desenvolvidas ao longo dos
anos 50 do século passado. São elas: o esquema centro-periferia e
os dois principais fatores que obstaculizam a industrialização latino-
americana: a deterioração dos termos de troca ou intercâmbio e a
tendência estrutural ao desequilíbrio externo. Não tratamos aqui da
importante questão da industrialização por substituição de
importações, dado que o faremos no próximo item ao buscar as
continuidades e desenvolvimentos do pensamento de Prebisch a
partir de List.
A fim de que possamos encerrar esta seção do artigo, falta-
nos apenas pontuar a importância do método de Prebsich para
seus constructos e esquemas analíticos. O método de análise que se
consagrou pela CEPAL, foi o método histórico-estrutural, já presente
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
170

no texto de 1949 de Prebisch através do sistema centro-periferia. Ao


contrário do que ocorreu nas ciências sociais, na lingüística e na
antropologia quando do surgimento do estruturalismo, ou seja,
marcadamente a-histórico, com a CEPAL ele se insere na análise
histórica. Ao contrário do preconizado por Rostow, de que o
subdesenvolvimento seria uma etapa pela qual os países pobres
deveriam passar até atingirem o patamar de desenvolvimento dos
países ricos, através do método cepalino, a condição de
subdesenvolvimento da América Latina deveria ser estudada a
partir de seus condicionantes históricos e de sua própria
experiência, ou seja, o caminho trilhado pelos países
subdesenvolvidos não necessariamente seria o mesmo que o dos
países desenvolvidos.
En otras palabras, el enfoque histórico-estructuralista
cepalino implica un método de producción del
conocimiento muy atento al comportamiento de
los agentes sociales y a la trayectoria de las
instituciones, que se aproxima más a un proceso
inductivo que a los enfoques abstracto-deductivos
tradicionales. (BIELSCHOWSKY, 1998, p. 24).

Para além de pensamentos contrapostos: a


complementaridade

List se contrapunha ao pensamento econômico


predominante de sua época, ou seja, à teoria de livre-comércio
derivada dos escritos de Adam Smith e de seus principais
seguidores, como o francês Jean-Baptiste Say. Da mesma forma,
Prebisch também rechaçava a teoria neoclássica do comércio
internacional, versão da teoria econômica smithiana do livre-
comércio na teoria econômica moderna. Ambos, da mesma
maneira, não negam a validade destas teorias, contudo, as
mesmas possuem um caráter universalizante e, para que atinjam
sua validade, são necessárias uma série de pré-condições. Aqui
reside uma das grandes semelhanças entre os dois pensadores: o
método. Ambos utilizam-se do método indutivo, ou seja, um método
eminentemente histórico e não dedutivo como o pensamento
171 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

econômico inglês à época de List e o pensamento da escola


neoclássico, extremamente a-histórico, quando das principais
formulações de Raúl Prebisch. Devem-se levar em consideração as
condições da Alemanha de List naquele momento e não tentar
implementar políticas sugeridas pela Inglaterra que se encontrava
em outro nível de desenvolvimento. Da mesma forma para Prebisch.
“Não é de estranhar, portanto, que prevaleça, frequentemente
[sic], nos estudos que se publicam acêrca [sic] da economia dos
países da América Latina, o critério ou a experiência especial dos
grandes centros da economia mundial.” (PREBISCH, 1949, p. 48).
Desenvolvimento tanto para List quanto para Prebisch
significa industrialização. “Daí o significado fundamental da
industrialização para os países novos. Ela não é um fim em si mesma,
mas o único meio de que se dispõe para captar uma parte do fruto
do progresso técnico e elevar progressivamente o nível de vida das
massas.” (PREBSICH, 1949, p. 48). Assim, para Prebisch a
industrialização melhoraria o nível de vida da população como um
todo e para List, em outras palavras, aconteceria o mesmo, com a
elevação da condição da Nação a um patamar semelhante ao da
Inglaterra em sua época. Já vimos como a condição de um país
que apenas se concentra na produção de bens agrícolas ou
primários é desvantajosa na visão dos dois pensadores.
Em um país dedicado apenas à agricultura em
estágio primitivo predominam as seguintes
características: embotamento da mente,
despreparo físico, adesão obstinada a conceitos,
costumes, métodos e processos antiquados, falta
de cultura, de prosperidade e de liberdade. Ao
contrário, desejo e empenho por constante
crescimento das aptidões mentais e corporais,
espírito de emulação e de liberdade caracterizam
uma nação voltada para a manufatura e o
comércio. (LIST, 1983, p. 137).

List vai além dos fatores meramente econômicos quando


advoga a favor do desenvolvimento manufatureiro e, em um
primeiro momento, podemos até mesmo acusar List de uma
desqualificação cabal da agricultura, incluindo aí até mesmo
fatores de ordem cultural. Vejamos agora, a maneira como ambos
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
172

concebem este processo de industrialização, bem como seus


benefícios.
Para Prebisch a industrialização da América Latina se iniciou
durante a Primeira Guerra Mundial, em um contexto de restrição às
importações, o que induziu um processo de industrialização
denominado pela CEPAL de processo de industrialização por
substituição de importações. Este processo teria levado a uma
transformação das estruturas sócio-econômicas de alguns países da
América Latina, induzindo um acentuado processo de urbanização
e liberando mão de obra da agricultura para os setores urbano-
industriais. Este quadro teria se acentuado durante a Segunda
Guerra Mundial. List também concebeu que restrições ao comércio,
como a guerra, poderiam estimular a implantação de manufaturas,
ou seja, estimular a industrialização.
Se, contudo, uma nação agrícola, cuja produção e
consumo diminuíram por motivo de guerra, já tiver
feito progressos consideráveis no tocante à
população, à civilização e à agricultura, as
manufaturas e as fábricas florescerão em
conseqüência [sic] da interrupção do comércio
internacional devido ao conflito bélico. (LIST, 1983,
p. 127).

Para Prebisch, a substituição de importações se dá em


etapas, sendo a primeira delas a etapa de substituir a importação
de bens de consumo duráveis, através da importação de bens de
capital. Para tanto é necessário a intervenção do Estado através da
implantação de tarifas aduaneiras protecionistas. “(...) a substituição
de importações por produção interna requer, geralmente, a
elevação das tarifas aduaneiras, dado o maior custo que via de
regra têm os produtos desta.” (PREBISCH, 1949, p. 88). Aqui reside
uma das maiores proximidades entre o pensamento de List e o de
Prebich: a necessidade de proteção por parte do Estado ao
processo de industrialização. É incrível notar que já no século XIX List
propõe para a Alemanha, mecanismos de industrialização sugeridos
por Prebisch e pela CEPAL aos países subdesenvolvidos mais de um
século depois.
173 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Os estágios de desenvolvimento de uma Nação


preconizados por List – “No tocante à economia, as nações devem
passar pelos seguintes estágios de desenvolvimento: barbárie inicial,
estágio pastoril, estágio agrícola, estágio agromanufatureiro e
estágio agromanufatureiro-comercial.” (LIST, 1983, p. 125) – e
apresentados por nós na página 10 do presente artigo, poderiam
ser “traduzidos” da seguinte maneira em termos cepalinos: o
primeiro estágio seria aquele em que se deveria adquirir bens de
capital para a industrialização; o segundo seria o de implementar
políticas protecionistas à industria nascente; e o terceiro estágio,
após o que Prebisch denominou de “etapa fácil do processo de
industrialização por substituição de importações”, seria o de
promover a consolidação da indústria de bens de capital e
estimular a concorrência à fim de se evitar a estagnação.
Vejamos agora as proposições de List quanto à proteção
alfandegária ou aduaneira e a intervenção do Estado na
economia, para em seguida podermos traçar um comparativo com
as propostas de Prebisch.
Para List, a produção agrícola não é passível de proteção,
ou seja, não se devem impor taxas alfandegárias às exportações de
produtos primários, tão pouco à importação destes mesmos
produtos.
De acordo com nosso sistema, só se pode pensar
em proibir a exportação, ou em impor taxas à
exportação, em casos excepcionais; as
importações de produtos naturais devem, por toda
parte, estar sujeitas somente ao direito meramente
fiscal e nunca a taxas alfandegárias destinadas a
proteger a produção agrícola nacional. (LIST, 1983,
p. 207).

Quanto à importação de bens manufaturados, List aponta


que os países subdesenvolvidos não devem impor tarifas
alfandegárias à sua importação, o que certamente não agradaria
à Prebisch.
(...) os países de clima quente, ou de população ou
territórios reduzidos, ou os países ainda não
suficientemente povoados, ou países ainda
subdesenvolvidos no que tange à civilização e às
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
174

instituições sociais e políticas, só devem impor meros


direitos fiscais sobre os bens manufaturados. (LIST,
1983, p. 207).

O protecionismo, através de tarifas alfandegárias, não é


indiscriminado. Como vimos, para List não deve haver proteção
quanto aos produtos agrícolas/primários. Além disso, a política
protecionista não pode ser implantada em qualquer país, ou em
termos listianos, em qualquer Nação. List nos apresenta as
características que uma Nação deve possuir para que a política
protecionista seja exitosa.
As medidas protecionistas só se justificam com o
intuito de fomentar e proteger a força
manufatureira interna, e somente no caso das
nações que, por possuírem território extenso e
uniforme, população numerosa, recursos naturais
abundantes, agricultura em estágio avançado e
elevado grau de civilização e de desenvolvimento
político, tiverem capacidade para competir com as
grandes nações agrícolas, manufatureiras e
comerciais, e com as maiores potências navais e
militares. (LIST, 1983, p. 207).

List, demarcando o aspecto histórico de sua teoria, coloca


que o grau de proteção deve ser analisado segundo as condições
específicas de cada Nação.
Não é possível determinar teoricamente até que
ponto se devem aumentar as taxas alfandegárias
no caso de mudança do sistema de livre
concorrência para o sistema protecionista, e até
que ponto devem ser reduzidas em caso de
mudança do sistema proibitivo para um sistema de
proteção moderada; isto depende das condições
específicas e das condições relativas na qual se
encontra a nação menos desenvolvida em relação
às mais avançadas. (LIST, 1983, p. 210).

É notória, por exemplo, a semelhança entre a assertiva de


List acerca da necessidade de nações pouco desenvolvidas
importarem o que ele denomina de “maquinaria” e a propositura
cepalina acerca da necessidade de se estimular, por parte do
Estado, a importação de bens de capital – que nada mais são do
que “maquinaria” em termos listianos – para a primeira etapa do
processo de substituição de importações.
175 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

As nações ainda pouco desenvolvidas na técnica e


na manufatura de maquinaria devem permitir a
importação livre de qualquer maquinaria de maior
complexidade, ou, pelo menos, impor taxas muito
moderadas, até que possam produzi-las com a
mesma rapidez que a nação mais avançada. (...)
esse setor específico da manufatura necessita do
apoio direto do Estado, no caso de não poder
concorrer em regime de taxas de importação
moderadas. (LIST, 1983, p. 210).

Fica claro pelo excerto acima, que a importação de bens


de capital, em termos cepalinos, ou de maquinaria, em termos
listianos, deve ser estimulada pelo Estado, senão através de uma
não taxação, ao menos através de tarifas preferenciais, como por
muito tempo se fez na economia brasileira.
Uma preocupação de Prebisch e da CEPAL em relação ao
padrão de consumo de uma classe completamente pautada pelos
padrões estadunidenses, também já aparece em List: “As indústrias
que só produzem artigos de luxo de preço elevado são as que
merecem menos consideração e menor grau de proteção.” (LIST,
1983, p. 210). Neste sentido, tanto para Prebisch, quanto para List, os
bens supérfluos deveriam ser mais taxados, à fim de desestimular a
importação de bens não essenciais para a industrialização. Ainda
sobre a necessidade de se restringir a importação de bens de luxo e
estimular a importação de bens de capital, já em seu texto
inaugural de 1949, Prebisch pontuava: “Há, pois, que admitir (...), a
possibilidade de que tenha que reduzir-se o coeficiente de
importações, seja em conjunto ou em dólares, reduzindo ou
suprimindo artigos não essenciais, para possibilitar mais amplas
importações de bens de capital.” (PREBISCH, 1949, p. 80).
Portanto, quanto às tarifas alfandegárias impostas aos
produtos importados, as posições que encontramos em Prebisch,
podemos também encontrar em List, principalmente no que tange
à necessidade de importar bens de capital/maquinaria e de
desestimular a importação de bens de luxo/supérfluos. Em ambos os
pensadores o Estado tem papel fundamental em estabelecer os
níveis de proteção à industria nacional. Contudo, também em
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
176

ambos os pensadores, a proteção não pode ser indiscriminada, seu


nível e incidência devem se dar de acordo com condições
específicas.
Após termos explicitado como se daria o processo de
industrialização para cada pensador, bem como as formas de
estimulá-lo, passemos agora às benesses que cada um aponta
derivadas desse processo.
Como demarcamos anteriormente no tópico dedicado à
List, este pensador, ao contrário dos economistas vinculados a
Adam Smith, não vê que a manufatura poderia prejudicar a
agricultura, devido ao fato de que uma política de apoio à industria
nascente faria aumentar o preço dos produtos manufaturados,
devido às tarifas protecionistas. Ao contrário, List defende que a
manufatura estimularia a agricultura. Ou seja, List vê grande sinergia
entre os diversos setores da economia, onde a manufatura faria
com que se estimulasse toda a implantação de uma infra-estrutura
de transportes que, consequentemente, faria o preço da terra subir,
bem como a renda auferida pelos proprietários na forma de renda
da terra. Os preços agrícolas também seriam estimulados, pois com
o desenvolvimento das manufaturas, a demanda por produtos
agrícolas aumentaria.
A indústria, para Prebisch, também traria grandes benefícios
ao setor primário exportador, posto que a indústria poderia absorver
os excedentes de mão de obra provenientes das rodadas de
progresso técnico pelas quais passaria o setor primário. “Compete à
indústria e às atividades que dependem direta ou indiretamente do
desenvolvimento da produção primária, portanto, a função de
absorver esse excedente.” (CEPAL, 2000, p. 145). Outra forma de
estímulo à produção primária trazida pela industrialização seria o
incentivo ao aumento da produção deste setor. Contudo, assim
como List pontua por várias vezes em seu Sistema, Prebisch também
não vê a possibilidade de que o processo inverso ocorra, ou seja, de
que a atividade primária estimule a atividade industrial.
177 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Esta, como indica seu nome, abrange as primeiras


etapas do processo produtivo, enquanto a indústria
compreende as etapas subseqüentes [sic].
Justamente por essa posição relativa das duas
atividades, o aumento da atividade industrial
fomenta a atividade primária, a qual, por sua vez,
não tem o poder de estimular a atividade industrial.
(CEPAL, 2000, p. 147).

Na análise de Prebisch, a renda da terra também


aumentaria em consequência do processo de desenvolvimento dos
transportes trazido pela industrialização. “A renda das terras
economicamente novas é, em última instância, a expressão de sua
maior produtividade, em comparação com as terras de exploração
mais antiga. O progresso técnico dos transportes explica esse
fenômeno do aumento da renda.” (CEPAL, 2000, p. 151). Além do
beneficio trazido pela industrialização para a agricultura, Prebisch
aponta outros setores que seriam dinamizados por este processo,
como o comércio – através do incremento no consumo devido ao
aumento no nível de renda – e até mesmo melhorias no mercado
de trabalho com o surgimento de novas fontes de ocupações.
A industrialização absorve uma parte da
população disponível e contribui para que uma
outra parte seja absorvida em atividades correlatas,
como os transportes e o comércio, que se
desenvolvem paralelamente à ela. Além disso, o
aumento da produtividade média em que se
manifesta o processo de industrialização,
juntamente com o aumento de produtividade
determinado pelo aperfeiçoamento das técnicas
na produção primária, eleva a renda per capita
[sic] e traz consigo uma demanda crescente de
serviços, com o que surgem novas fontes de
ocupação. (PREBISCH, 2000, p. 185).

Podemos também encontrar em List subsídios que nos


permitem pensar em uma incipiente Teoria da Deterioração dos
Termos de Intercâmbio/Troca. List esclarece que uma nação
agrícola muito se prejudica se depender das importações de seus
produtos por parte de outras nações para fazer frente à sua
demanda por produtos manufaturados. Se pensarmos que a base
da Teoria da Deterioração dos Termos de Troca está na questão da
queda secular dos preços dos bens primários frente aos
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
178

manufaturados e que o quadro se agrava devido ao fato de que o


país que exporta produtos primários depende das condições do
país importador, o raciocínio de List é bastante inspirador.
A inconstância da demanda externa constitui, sob
todos os aspectos, o fator mais pernicioso de todos,
se em decorrência de guerras, fracasso das safras,
diminuição de importações de outros países, ou
devido a qualquer outra circunstância ou
ocorrência, a nação manufatureira exigir grandes
quantidades, especialmente de gêneros de
primeira necessidade ou de matérias-primas e se
depois essa grande demanda baixa deixa
novamente de existir, em circunstância da
restauração da paz, de colheitas abundantes, de
maiores importações de outros países, ou em
decorrência de decisões políticas. (LIST, 1983, p.
167).

A consequente tendência ao desequilíbrio do balanço de


pagamentos que estão sujeitas as economias que importam bens
manufaturados e exportam bens primários, também está presente
em List.
A experiência tem demonstrado repetidas vezes (...)
que, nas nações agrícolas, cujo mercado
manufatureiro está exposto à livre concorrência por
parte de uma nação que já atingiu a supremacia
manufatureira, com freqüência o valor da
importação de bens manufaturados ultrapassa de
muito o valor dos produtos agrícolas exportados, o
que por vezes ocasiona repentinamente uma
exportação extraordinária de metais preciosos,
gerando confusão na economia da nação
agrícola, sobretudo se seu comércio interno estiver
baseado principalmente na circulação de papel-
moeda, chegando-se no caso a verdadeiras
calamidades nacionais. (LIST, 1983, p. 183).

Sem querermos aqui ser teleológicos, se substituirmos o


termo “metais preciosos” do excerto acima, por “dólares”, não
teríamos dificuldade em ver aí um gérmen do desequilíbrio externo
tratado pelos economistas cepalinos, e por Prebisch
originariamente. Ademais, a calamidade à que List faz referência é
a inflação, que também estaria presente, devido ao fato de que se
buscaria implementar uma desvalorização cambial a fim de se
tentar restabelecer as reservas monetárias.
179 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Algumas considerações finais

Tratamos aqui de expor de forma geral o pensamento de


List e o pensamento de Prebisch. Não pudemos adentrar em
aspectos mais detalhados de ambos os pensadores, devido ao fato
de que nosso espaço não propicia tamanho intento. Contudo,
esperamos que nosso objetivo, de demonstrar a
complementaridade das ideias dos dois autores, tenha sido
alcançado.
Vimos que o pensamento de List, em muitos aspectos estaria
à frente de seu próprio tempo, bem como também à frente, em
certa medida, do pensamento do próprio Prebisch, ao considerar
fatores políticos e culturais que impediriam ou estimulariam a
implantação de manufaturas e que Prebisch iria integrar em sua
análise somente décadas depois. Obviamente que a análise de
Prebisch é mais sofisticada que a de List, posto que Prebisch tinha à
sua disposição um instrumental de análise mais desenvolvido do que
List. Porém, List se limita, até mesmo pelos intentos de sua grande
obra – colocar a Alemanha em um mesmo patamar de
desenvolvimento que a Inglaterra – , como vimos, à destacar as
benesses da industrialização, sem se atentar para seus obstáculos,
como o faz Prebisch para o caso específico da América Latina, ao
importar bens de capital do centro, por exemplo.
(...) ao efetuarem seus investimentos, tais países
deparam com a necessidade de importar os
mesmos equipamentos a que chegaram os países
desenvolvidos depois de uma longa evolução.
Assim, sucede que equipamentos com uma grande
intensidade de capital por homem empregado,
compatíveis com a elevada renda per capita [sic]
dos centros industializados, são igualmente
oferecidos aos países menos desenvolvidos, nos
quais a renda per capita [sic] e, portanto, a
capacidade de poupança são evidentemente
inferiores. (PREBISCH, 2000, p. 200).

Contudo, a grande aproximação entre os dois pensadores


se dá pela questão do método eminentemente histórico
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
180

desenvolvido por ambos, procurando pensar o desenvolvimento de


cada região em uma perspectiva histórica de longo prazo.
Conhecer o pensamento de List e seus desdobramentos no
pensamento de Prebisch nos instrumentaliza para a compreensão
de debates ainda contemporâneos nas relações internacionais e
na economia brasileira. Por vezes, o governo brasileiro se queixa das
medidas protecionistas dos governos estadunidense e europeus
quanto ao setor agrícola, o que diminui a competitividade dos
produtos primários brasileiros naqueles mercados.
Diante da avalanche de produtos chineses que toma o
mercado brasileiro, encontra-se em debate ainda, a questão de se
proteger a indústria nacional em relação à estes produtos, com o
argumento de se garantir a competitividade dos produtos brasileiros
no mercado nacional, que não teria condições de concorrer com
os produtos chineses, devido, entre outros fatores, aos baixos salários
vigorantes na China.
Portanto, conhecer o debate em torno de políticas
protecionistas versus políticas mais liberalizantes, da intervenção do
Estado na economia, além de necessário conhecimento no âmbito
da História do Pensamento Econômico, também nos instrumentaliza
para os debates em torno dos rumos da política econômica
brasileira e das relações internacionais.
181 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

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183 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

As Minas de Mato Grosso: Apogeu, Crise e


Declínio da Mineração1

Romyr Conde Garcia2

RESUMO

Este artigo trata-se de um estudo sobre a mineração em


Mato Grosso nos séculos XVIII e XIX procurando através da
história quantitativa determinar um momento em que esta
atividade chega ao seu apogeu e entra em crise. Partindo de
dados demográficos e econômicos e realizando
comparações com outras regiões mineradoras, Minas Gerais
e Goiás ficam provadas que as minas mato-grossenses
apresentam regularidade e alta produtividade, porém, na
medida em que sua população cresce o ouro vai decaindo e
com ele, elevam-se os custos de produção. Esta crise situa-se
por volta de 1800, momento em que a mineração não
permite mais a manutenção do plantel escravista.

Palavras-chave: Mineração, Mato Grosso, História


Quantitativa, Escravidão.

ABSTRACT

This paper covers a study on mining in Mato Grosso during the


eighteenth and nineteenth centuries, aiming at determining a
moment when this activity reaches its peak and when it starts
its decadence, through quantitative history. Starting from
economic and demographic data and conducting
comparisons with mining in other regions such as Minas Gerais
and Goiás, it is proved that mines in Mato Grosso have
regularity and high productivity, nevertheless, as its population
grows, gold declines, and together with it, the production
costs rise. This crisis is set around 1800, when the mining activity
no longer allows the maintenance of slavery.

Keywords: Mining, Mato Grosso, Quantitative History, Slavery.

1Artigo recebido em 08/08/2013. Aprovado em 10/10/2013.


2Doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo.Pós-Doutor pela Universidade Federal
Fluminense, Professor da Universidade Estadual do Mato Grosso – UNEMAT.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
184

Introdução

É intrigante pensar-se na decadência da mineração no Brasil


colonial. Atestada na documentação oficial: ofícios e relatórios dos
governadores, dos intendentes do ouro e das juntas de fazenda,
lamentada por figuras ilustres do Império, como José Bonifácio e
Eschwege, confirmada pela produção acadêmica e divulgada por
livros didáticos, todos falam de uma “decadência das minas” ou
“redução da arrecadação dos Quintos” no final do século XVIII e
início do XIX. Se esta é a tendência nacional, cujo exemplo principal
é Minas Gerais, o que podemos dizer de uma capitania de
pequeno porte como Mato Grosso?
Nas pesquisas realizadas encontramos o mesmo “tom de
desânimo” nas correspondências oficiais de Mato Grosso tanto no
século XVIII como para o início do século XIX (1808), e ainda para os
últimos anos do Primeiro Reinado. Parece que a decadência
sobrevivia às administrações e reinados. Por sua vez, a bibliografia
tende, seguindo mais o ritmo aurífero nacional, do que
propriamente o ritmo da capitania de Mato Grosso, definir a
segunda metade do século XVIII como um momento de declínio da
produção mineradora. Ou seja, para grande parte dos historiadores,
a capitania teria sido criada em momento de crise.
A longa decadência apresentada pela documentação
oficial contrasta com a ideia de criação e surgimento da capitania
de Mato Grosso na segunda metade do século XVIII, como o
próprio crescimento de sua população. Diante deste impasse, é
fundamental para qualquer estudo econômico sobre Mato Grosso,
situar o momento em que esta crise se abateu sobre esta região
mineradora, ou mesmo, se esta crise realmente existiu. Segundo as
nossas pesquisas acreditamos que Mato Grosso teria sofrido um
padrão de fortes flutuações econômicas no período 1800-1840,
flutuações estas mais agudas até do que aquelas do conjunto da
economia brasileira. A causa para estas flutuações encontra-se no
setor minerador.
185 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Como mostraremos a seguir, a mineração mato-grossense,


entre 1750 e 1850, conviveu com surtos auríferos e diamantíferos
rápidos e violentos, surgimento e desaparecimento de arraiais
mineradores, esgotamento rápido de veios auríferos convivendo
com a permanência de garimpos não tão produtivos, m a s
extremamente regulares.
Dentro deste longo processo situamos a crise da mineração
na passagem do século XVIII para o XIX, particularmente para o
ano de 1800. Destes dois pressupostos um terceiro torna-se possível,
a economia mato-grossense deveria entrar em decadência ou
estagnação econômica, o que contraria as concepções
acadêmicas vigentes de reordenamento econômico sem vestígios
de declínio, muito menos, de estagnação, justamente a resposta
por nos encontrada.
Este artigo, que é um desdobramento da tese de
doutoramento defendida na USP em 2003, orientada por Wilson
Barbosa do Nascimento e tentará situar a crise da mineração em
Mato Grosso, mostrando novos dados e fontes e, a partir deles,
confrontar com a evolução de outras duas capitanias mineradoras:
Minas Gerais e Goiás.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
186

Século XVIII: Noya Pinto e o calculo da produção auríferera

O primeiro grande trabalho a lançar luz sobre a produção


aurífera em Mato Grosso foi O Ouro Brasileiro e o Comércio Anglo-
Português, de Virgílio Noya Pinto (Pinto, 1979), nos seus cálculos, a
produção mineral de Mato Grosso não apresentou números
elevados, como Goiás e Minas Gerais, no entanto, foi a capitania
que teve a produção mais regular. (Veja o Gráfico 01)
Considerando os números de Noya Pinto como corretos,
perceberemos que a Capitania de Mato Grosso tem o seu ápice na
década de 1740, seguido, posteriormente por um longo e suave
declínio, período marcado por uma regularidade que a diferencia
de outras capitanias mineradoras. Neste mesmo espaço de
tempo a capitania foi criada, estruturada e sua população
apresentou crescimento por todo século XVIII, principalmente no
que se refere a população escrava. A princípio, a expansão
demográfica poderia indicar que não existia crise no setor
187 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

minerador, mas sabemos que, por toda a segunda metade do


século XVIII, bem como para o século seguinte, Mato Grosso nunca
mais alcançará os patamares auríferos da década de 1740 e seu
sentido sempre foi declinante. Como explicar este descompasso,
principalmente no tocante a escravidão?
Uma resposta para o descompasso entre o declínio da
mineração e expansão demográfica foi a produtividade das minas
mato-grossenses. Mesmo tendo a menor produção bruta das três
maiores capitanias mineradoras, pela sua diminuta população, a
produção per capita da capitania de Mato Grosso era muito
superior à de Minas Gerais, e um pouco maior que a de Goiás. Veja-
se o Quadro abaixo.

Supondo que apenas um terço da população se


dedicava à mineração, tal como afirmou Eschwege (1979)
para Minas Gerais em 1750 (período de maior extração), a
produtividade mato-grossense era excelente. Cerca de
51$741 mil réis (não computando o quinto). Com esta renda,
os mato-grossenses poderiam superar o problema da
distância, principal fator de encarecimento das mercadorias
de exportação. Considerando o preço médio do escravo em
250$000 réis, o valor despendido na sua compra seria
coberto em 5 anos. Como a vida útil do escravo, segundo
Jacob Gorender seria de dez anos, a renda média do
trabalho na mineração nesse período daria para comprar
dois escravos, mantendo-se a reprodução do sistema.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
188

Analisando sob o ponto de vista da produtividade, o


pequeno tamanho da população de Mato Grosso parecia
ser um fator positivo, mais na verdade não o era. Desde os
primeiros governadores, passando pelos viajantes do início
do século XIX até para relatos de 1868, todos afirmam que
as minas não produziam mais por falta de braços,
principalmente de escravos.
Se as minas de Mato Grosso tinham este problema,
existe aspecto positivo desta fragilidade numérica: a
atividade mineradora acabou persistindo por muito mais
tempo. Talvez isso explique a expansão demográfica da
segunda metade do século XVIII, que não era
acompanhada pela produção aurífera mais notável.
Como argumentei através dos cálculos de Noya Pinto,
a lenta diminuição da produção aurífera que perdurou por
todo o século XVIII, não foi um empecilho ao crescimento
econômico de Mato Grosso. Pelo contrário, a regularidade
da produção, mesmo que se desse através de pequenos
surtos, permitiu manter favorável o fluxo demográfico e
promover o crescimento da capitania. Inclusive com outras
atividades produtivas. Todavia, à medida que a população
cresceu e a província se expandiu mais rápido se
esgotariam os veios auríferos. Nesse ritmo, chegaria um
momento em que o modelo entraria em colapso. Ou,
como alguns preferem, “em crise”. Acredito que esse
momento foi o início do século XIX.

Descobrimos que volume da produção oficial de


ouro Mato Grosso contidos nos balanço de oficiais, e pela
sua regularidade, se aproximam dos cálculos feitos por Noya
Pinto. Ou seja, uma produção que variou muito pouco nas
duas últimas décadas. Uma mineração que ainda não
189 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

dava claros sinais de crise. Todavia, não é isso que se


observa ao confrontar os índices de produtividade per
capita da década de 1770, com a dos anos de 1790. Como
a produção de ouro de 1790, foi de 211:944$890 réis, a
produção per capita de uma população de 21.000
habitantes, seria de 10$092 réis.
Considerando apenas a parcela da população
empregada na mineração (um terço), cerca de 6.930
indivíduos, a produção per capita dela seria de 30$583. Essa
produtividade ainda é duas vezes superior à da capitania
de Minas Gerais para o mesmo período. Contudo, o declínio
da produtividade em Mato Grosso foi mais sensível que em
Minas. Isso se deve à expansão demográfica da capitania
do Centro Oeste, que cresceu 31% em quinze anos: saltou
de 16.000 em, para 21.000 em 1790.

Se o declínio da produtividade per capita ocorresse,


simultaneamente com a queda dos preços dos escravos, das
“ferragens” e das “fazendas”, ter-se-ia então um cenário de
estabilidade produtiva, afastando, a ideia de crise no setor
minerador. Entretanto, Montenegro afirma que, devido ao
declínio da rota amazônica, os preços praticados em Vila
Bela elevaram-se no século XVIII. Deste modo, a produtividade
mato-grossense tornou-se menos interessante que outras
capitanias.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
190

Observando-se o Gráfico 02, percebe-se o declínio da


produtividade per capita da capitania de Mato Grosso em
relação a Goiás e Minas Gerais. Até meados de 1795 a
produtividade per capita mato-grossense era de 9$205 réis,
contra 5$568 réis de Goiás e 2$930 de Minas Gerais.
Considerando a produtividade da população empregada na
mineração (33%), a renda seria de 27$616. Com esse valor, em
dez anos (tempo de vida útil do escravo), se teria um
montante de 270$616 réis. Aproximadamente igual ao preço
médio do escravo em Mato Grosso, que ficava entre 300$000
e 250$000 réis.
No ano de 1800, a produtividade per capita ficaria em
6$39 réis e a renda da população empregada na mineração
em 20$817 réis. Portanto, com essa renda, para se obter um
escravo no valor de 275$000 réis, ter-se-ia que trabalhar 13
anos. Três a mais que o tempo de vida útil do escravo. Ou seja:
191 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

com essa produtividade/renda, a reprodução do sistema


escravista na capitania de Mato Grosso estava
comprometida.
Para agravar a situação, no mesmo ano de 1800, a
produtividade/renda da capitania de Goiás ficou muito
próxima da produtividade/renda da capitania de Mato
Grosso. (veja o quadro a seguir) Como os custos de
produção dos goianos eram mais baixos que os dos mato-
grossenses, tornava-se mais atraente para aqueles que
desejam minerar migrar para Goiás do que ficar em Mato
Grosso. O que comprometia a elevação da população
mato-grossense.

Esses dados reforçam a hipótese de que a crise da


mineração em Mato Grosso ocorreu em meados de do ano
1800, e não em outro momento do século XVIIII. Neste
quadro, a combinação, queda da produtividade, altos
custos de produção e intensificação da exploração
mineradora devido ao crescimento demográfico do final do
século XVIII, pode explicar o início da crise da mineração em
Mato Grosso.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
192

Flutuações da mineração em Mato Grosso

Sendo a mineração o setor mais importante da


economia mato-grossense, cabe aqui uma conclusão em
separado.
Por muito tempo, o quinto do ouro constitui-se na
principal renda da capitania/província de Mato Grosso.
Na década de 1770, ele chegou a representar mais de
70% de toda arrecadação de Mato Grosso. Mantendo-se
estável até o final do século XVIII. Por sua vez, as outras
rendas giravam em torno de 30%. Todavia, na segunda
metade do século XIX esses valores inverteram: o quinto do
ouro caiu e as outras rendas elevaram-se.
Essa inversão pode ser observada quando se
compara a flutuação do ouro como o Produto Interno de
Mato Grosso, vide o gráfico anterior.
Quando se observa uma estimativa da tendência
do produto de Mato Grosso no período 1796-1822,
xecada contra o padrão de flutuações da produção do
ouro, distingue-se claramente duas crises econômicas: a
primeira ocorreria em 1799-1800, recuperando-se após o
produto; e segundo nota-se de 1810 a 1821, com produção
bem abaixo da tendência. Isso confirma o forte padrão
de flutuações imprimida a economia da época pela
tendência depressiva da produção aurífera, que
visivelmente não podia ser compensada por outros
recursos.
193 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Na introdução deste artigo afirmei que, devido à crise


do setor minerador, Mato Grosso teria sofrido um padrão de
fortes flutuações econômicas no período 1800-1840, mais
agudas até do que aquelas do conjunto da economia
brasileira, sendo possível caracterizá-las como um período
histórico de decadência ou de estagnação e que a crise da
mineração teria ocorrido na passagem do século XVIII para o
XIX, aproximadamente no ano de 1800.
Ao confrontar a flutuação da produção do ouro com
o Produto Interno de Mato Grosso, acredito que se alcança
a comprovação da primeira hipótese. Outro dado que
reforça essa hipótese é a evolução da produção per capita
da mineração mato-grossense e da renda da população
ocupada no setor minerador, no período 1770-1830.
Confrontando a renda com a “taxa anual mínima de
reposição escravista”, é possível observar uma crise da
mineração nos últimos anos do século XVIII, particularmente
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
194

em 1800. A Taxa Mínima Média de reposição escravista é a


produtividade anual que o escravo deveria alcançar (em dez
anos de trabalho) para poder repor o custo da sua aquisição.

Pelos índices da renda da população ocupada no setor


minerador, entre 1778 e 1800, a capacidade de reprodução do
sistema escravista estava comprometida. Isso significa que um
escravo teria que trabalhar mais de dez anos, para poder comprar
outro escravo para o seu senhor. Entre 1800 e 1805 a renda ainda
ficou próxima à taxa anual mínima. Todavia, nos anos seguintes, ela
ficou abaixo dos 20$000. Ou seja, o escravo teria que trabalhar mais
de 14 anos para cobrir o valor da sua aquisição.
A extração diamantífera poderia elevar a renda dos
mineradores a ponto dessa ficar acima da taxa anual mínima de
reposição escravista. Contudo, a mineração de diamantes não
causou muito impacto nas rendas provinciais, visto que pouco foi
destinado para arrematar as pedras que eram voluntariamente
oferecidas a Junta de Gratificação. Entretanto, o início da
195 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

exploração diamantífera causou impactos significativos nesta


capitania: (1) fez deslocar contingentes demográficos de outras
sub-regiões para o Alto Paraguai, principalmente do Guaporé; (2)
deve ter elevado momentaneamente o preço do escravo e dos
gêneros; (3) aumentou o extravio realizado pelos escravos, e (4) a
grande oferta de pedras fez o preço dos diamantes cair.
Voltando à mineração como um todo, um ponto que deve
ser observado é a grande presença da escravidão, mesmo no final
do período. A atividade de extração aurífera possibilitaria a
formação de um plantel de escravos maior que as demandas
produtivas da mineração e das atividades ligadas ao
abastecimento. O apogeu da população escrava teria ocorrido em
1815, quando a província encontrou-se num momento contraditório:
declínio da produtividade anual per capita e desenvolvimento dos
garimpos do Alto Paraguai. Como a população escrava
praticamente ficou estável deve-se supor que os mato-grossenses
conseguiram aumentar a expectativa de vida do escravo,
elevando, consequentemente, a sua vida útil. Isso só poderia
ocorrer deslocando-se o escravo para a lavoura de subsistência.
Esse deslocamento para a agricultura de subsistência poderia
promover mudanças significativas no plantel de escravos da
região mineradora: (1) locação apenas de uma pequena
parcela do plantel de escravos na mineração, enquanto a maioria
estaria na roça; (2) elevação do número de escravas e,
consequentemente (3) elevação da taxa de natalidade. Esse
quadro foi detectado no Arraial de Lavrinhas. E acredito que deve
ter se repetido em outros lugares, talvez em Vila Bela ou Diamantino.
Todas essas mudanças, mas a manutenção da mineração, mesmo
que em baixos padrões, poderia explicar porque a população
escrava manteve-se estável por todo o período.

Conclusão

De todos esses movimentos e dados conclui-se que:


Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
196

 Possivelmente, a região que sentiu a crise do setor


minerador foi Vila Bela, em meados do final do século XVIII. Em
1800, o Vale do Cuiabá deveria encontrar-se em similar situação,
até que o último grande descoberto da era escravista surgiu:
Diamantino (1803). Esse descobrimento provocou outras
consequências: (1) consolidou de vez o Cuiabá como o centro da
província, tornando insustentável para Vila Bela manter-se como a
Capital de Mato Grosso; (2) elevou o preço do escravo, tornando
inviável a reprodução escravista de muitos garimpos mato-
grossenses; e (3) tornou-se um centro consumidor de mão-de-obra
dos garimpos decadentes, (4) se não revigorou o setor minerador,
pelo menos, manteve as atenções dos senhores de escravos para
mineração, dificultando a transferência de escravos e capitais para
outros setores da economia, ou mesmo, para fora da província.
 O desenvolvimento de Diamantino não acabou com
os garimpos decadentes do Guaporé e do Cuiabá, apenas tornou
mais elevados os custos de produção. A mineração nestas regiões
se contentaria com baixas produções até a exaustão final dos seus
veios. Entretanto, enquanto houvesse ouro, a escravidão seria
mantida, mesmo em patamares baixos. Cessou a renovação dos
plantéis, como outrora. Contudo, o tempo de vida útil do escravo
tendia a aumentar para compensar a renda menor. Assim a
população escrava continuou elevada, mesmo na crise dos anos
vinte.
O exemplo mais evidente disso seria o Arraial de
Lavrinhas (1832-1834). Não existiam fazendas de gado,
engenhos ou fábricas de açúcar ou aguardente. Sua
produção agrícola era suficiente para a subsistência. Sua
única atividade econômica de peso era a mineração, com
produção anual bruta de apenas 600 oitavas, cerca de
900.000 réis. Do total de 450 escravos, apenas 40, trabalhavam
197 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

na mineração, com produtividade per capita em torno de


20.000 réis.
Mesmo com renda abaixo da taxa anual mínima de
reprodução escravista (27$000), o arraial não teve seu plantel
de escravos reduzido. Pelo contrário, apresentou leve
crescimento. Isso não ocorreu por causa do crescimento
vegetativo da população escrava, visto que o número de
batismos era inferior ao número de óbitos e de emancipações
somados. Excluindo o crescimento vegetativo, a única
explicação para o crescimento do plantel seria a compra de
escravos.
O curioso do caso “Lavrinhas” é esclarecer porque um
arraial que não tinha setor agropastoril, voltado para o
mercado e não extraia grandes quantidades de ouro, possuía
a maior parte do seu plantel (82%), operando fora do setor
lucrativo. Para quê tinha a necessidade de comprar escravos?
Mais intrigante ainda é pensar que anualmente
emancipavam-se 16 escravos, sendo quatro adultos. A
resposta está talvez no envolvimento familiar de trabalho servil.
Não se pode responder de todo ao caso peculiar de
Lavrinhas. Mesmo com uma renda baixa, ainda era possível ali
comprar escravos. Podia-se comprá-los, podia-se também
importar outras mercadorias. Enquanto existisse ouro existiria
comércio de importação. Diante deste quadro, mesmo com
de decadência a mineração, a província de Mato Grosso
ainda podia manter parte da sua capacidade de
importação. Afinal, os únicos produtos de exportação ainda
eram o ouro e o diamante. E deles se formavam excedentes
sobre o custo de sobrevivência local, a carteira de
desembolsos que diferenciava a riqueza da pobreza.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
198

Referências Bibliográficas

CORRÊA FILHO, Virgílio. História de Mato Grosso, 1926,


ESCHWEGE, Ludwig Von. Pluto Brasiliensis, Belo Horizonte: Ed.
Itatiaia; São Paulo 1979.
GARCIA, Romyr Conde. Mato Grosso: crise e estagnação
do projeto colonial, Tese de Doutoramento, São Paulo:
FFLCH/USP, novembro de 2003.
MOUTINHO, Joaquim. Notícia sobre a Província de Mato
Grosso seguida d’um Roteiro da
Viagem da sua Capital a São Paulo.Sem data.
PINTO, Virgílio Noya. O Ouro Brasileiro e o Comércio Anglo-
Português, 2ª ed., São Paulo, Cia Editora Nacional, 1979.
199 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Economia Política e Política Econômica no Brasil


Recente: O Neodesenvolvimentismo “Restringido” do
Governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva
Glaudionor Gomes Barbosa1
Ana Paula Sobreira Bezerra2
Resumo
O trabalho pretende discutir o conceito de neodesenvolvimentismo “restringido”
para verificar os impactos das políticas econômicas dos dois governos do
Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e suas limitações ao desenvolvimento. Para
tanto, faz uma discussão histórica da expectativa criada com a vitória do referido
Presidente, quando a mesma venceu o medo anterior, devido a mudanças feitas
pelo Partido dos Trabalhadores – PT, que precisou se acomodar para conseguir tal
vitória. Começa-se com um vice-presidente empresário – José de Alencar –
sinalizando a acomodação entre trabalho e capital. Contudo, a maior vitória foi a
eleição de um operário, com pouca formação (formal) como o homem mais
poderoso do país. A partir de então, segue na discussão do papel dos diversos
representantes do PT, como Palocci, além do retorno da crença do monetarismo
na economia, associado ao arrocho da política fiscal, gerando, com isso,
superávits primários bastante elevados. Como forma de “compensação”, foi
suspenso o processo de privatização, o BNDES voltou a atuar fortemente como
banco de fomento e a Petrobrás passou a agir de forma virtuosa, comprando e
ativando diversas plataformas e navios construídos no país, com a finalidade de
estimular a produção nacional. No final do primeiro mandato e, principalmente, no
segundo, foram tomadas medidas mais “keynesianas”, em especial com o PAC,
que teve como metas prioritárias, investimentos em infraestrutura, estímulo ao
crédito e ao financiamento, melhoria ao ambiente de investimento e
desoneração, aperfeiçoamento do sistema tributário e medidas fiscais de longo
prazo. No último tópico, discute a economia brasileira recente e como ela se
encontra, dada a eleição de uma Presidenta indicada e apoiada por Lula.
Palavras-Chave: Governos Lula; keynesianismo; desenvolvimento econômico.

Abstract
This paper discusses the concept of new developmentalism "restricted" to verify the
impacts of economic policies of the two governments of President Luiz Inacio Lula
da Silva and limitations to development. Therefore, it makes a historical discussion of
the expectation created by the victory of the President said, when it won the
previous fear, due to changes made by the Workers Party - PT, who had to
accommodate to achieve this victory. It begins with an entrepreneur Vice President
- José de Alencar - signaling the accommodation between labor and capital.
However, the biggest victory was the election of a worker with little study as the
most powerful man in the country. Since then, following the discussion of the role of
various representatives of the PT, as Palocci and the return of the belief of
monetarism in the economy, coupled with the tightening of fiscal policy,
generating, thus, very high primary surpluses. As a form of "compensation", was
suspended the privatization process, BNDES returned to acting strongly
development bank, as Petrobras, and started to act virtuously, buying and
activating various platforms and ships built in the country, with the aim of stimulating
national production. At the end of the first term, and especially the second, were
taken more "Keynesian", especially with the PAC, which had as its priority goals,
investments in infrastructure, promotion of credit and financing, improving the
investment environment and relief , improvement of the tax system and tax
measures long-term. On the last topic, discusses the recent Brazilian economy and
how it is given the election of a President and supported by Lula indicated.

Keywords: Lula‟s Governments; Keynesianism; economic development.

1 Professor e Pesquisador do CAA/UFPE/Brasil.


2 Professora e Pesquisadora do CAA/UFPE/Brasil.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
200

1. Introdução

O trabalho tem por objetivo principal analisar as políticas


econômicas dos governos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e os
limites impostos ao desenvolvimento. Para tanto se utiliza o conceito de
neodesenvolvimentismo “restringido”, enquanto tese conhecida da
historiografia econômica brasileira.
Esta contribuição está estruturada em quatro seções, além dessa
introdução. A seção dois trata da transição da vitória da esperança para
um quadro de acomodação ou de transfiguração da política; na seção
três, discute-se aquilo que ficou conhecido como “herança maldita” e o
papel do Paloccismo na manutenção de uma política semelhante àquela
do governo anterior; na seção quatro analisa-se a superação do padrão
inicial e o advento do PAC; a seção cinco faz a análise do
comportamento da absorção externa e da incorporação tecnológica.

2. De como a esperança venceu o medo e depois perdeu ou a política


como exercício de “transfiguração”

No final de 2002, o Presidente Fernando Henrique Cardoso insistia na


tese de que o Brasil estava no rumo certo. A população brasileira que deu
61,3%3 dos votos válidos para Luiz Inácio Lula da Silva discordava do então
Presidente Cardoso. Se a estabilidade de preços tornou-se um bem público
que todos deveriam proteger, as outras variáveis macroeconômicas
haviam se transformado em males que a sociedade queria superar.
Passados dois anos de governo do Presidente Lula ficou a impressão de
que o sociólogo Fernando Henrique estava certo, em parte, pois a
população parecia concordar com o caminho (o rumo certo, segundo
Cardoso), mas desejava mudar o piloto. Foi a segunda parte do desejo
popular que não estava visível em 2002, nem para o político Cardoso nem
para o sociólogo Fernando.
Para chegar até a vitória o Presidente Lula e seu partido, o PT
fizeram alguns movimentos de acomodação. Em primeiro lugar, a
constituição de uma frente ampla o bastante para incluir, além do
Senador José Alencar como Vice, sinalizando uma aliança pragmática
entre o trabalho e o capital, figuras históricas tradicionais como Orestes

3 Folha de São Paulo, 28 de outubro de 2002.


201 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Quércia, Roberto Requião, José Sarney e Itamar Franco. Em segundo lugar,


uma carta aos brasileiros, onde ficavam claras as intenções de bom
comportamento do Partido e do candidato quanto às regras de mercado.
A verdadeira e mais importante mudança foi simbólica. Eleger um
ex-operário era um avanço notável em uma sociedade conservadora e
submetida a um rigoroso controle social exercido pela grande imprensa. As
forças políticas que haviam guindado o Presidente Fernando Henrique ao
poder havia 10 anos, trabalhava com uma estratégia de longa duração,
algo como um “reinado” de pelo menos 20 anos. Desmontar esta
estratégia continuista e conservadora foi uma vitória que exigiu seu preço.
Um preço muito alto.
A primeira grande mudança do novo governo deu-se em um
campo que aparentemente não tem tanta importância, mas que é
essencial em tempos de mundialização do capital e multilateralismo. A
política externa do governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi
desde o início um diferencial positivo, como apontou Amorim:

A diplomacia vive um momento de grande


dinamismo que reflete as prioridades do
governo Lula nas áreas interna e externa,
como combater a fome e a pobreza,
contribuir para a criação de uma nova
geografia comercial e adotar postura firme e
ativa nas negociações multilaterais, inclusive
regionais; com vistas a assegurar um espaço
regulatório multilateral justo e equilibrado. Está
ainda o imperativo de preservar a nossa
capacidade soberana de defender o
desenvolvimento que desejamos para o nosso
país4.

Importante ressaltar, ainda, no campo da economia política


internacional que a vitória do Presidente Lula enterrou de vez a imposição
por parte dos Estados Unidos de uma agenda unilateral para formação da
Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). Em consonância com este
movimento estratégico, houve o fortalecimento do MERCOSUL e do clube
dos vinte5.

4 AMORIM, Celso. Palestra. Seminário Atualidade de San Tiago Dantas. 27 de setembro de 2004. Disponível
em: http://www.acrj.org.br. Acesso em 15 de dezembro de 2011.
5 Trata-se da constituição de um grupo de países com agenda independente no âmbito da Organização Mundial

do Comércio (OMC).
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
202

No campo da política econômica “estrito senso” a polaridade


histórica que opõe de um lado uma heterodoxia estimuladora de políticas
expansivas e de outro uma ortodoxia sempre disposta a puxar o freio de
mão já estava instalada desde a campanha e continuou operando dentro
do governo. Em certo sentido e durante três longos anos a política
macroeconômica foi a mesma dos anos do Presidente Fernando Henrique
Cardoso. O que muitos se perguntavam, incluindo petistas da primeira
hora, era como se podia conciliar uma política externa independente,
solidária e emancipatória associada com propostas gerais de redução da
pobreza e da desigualdade, tendo como eixo da macroeconomia,
políticas de contração da demanda?

A resposta à pergunta acima foi dada recentemente por


importantes dirigentes do Partido dos Trabalhadores (PT) e dos governos do
Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da Presidenta Dilma Rousseff.
Mercadante (2009) e Mantega (2012) justificaram a necessidade de um
período de ajustamento ou de transição entre o modelo neoliberal e o
modelo denominado de novo-desenvolvimentismo. O problema maior é
que, na prática, se utilizou de todo um mandato, ou seja, 2003-2006 para
realizar a transição. Os argumentos sofrem do defeito de quem fala de si
mesmo e de seus feitos. Nada é mais complicado do que autobiografia ou
perfil político autoconstruido. Na verdade os mais “medíocres”
historiadores6 ainda são melhores narradores e mais verdadeiros interpretes
da história do que os próprios “heróis”.

3. “Herança Maldita”, Paloccismo e Primeiro Lula ou para que mudar o


rumo?

Considerando a existência de uma “herança maldita” vinda do


governo anterior e representada por um acordo com o FMI de combate à
inflação baseado em um Sistema de Metas de Inflação, o Presidente eleito
nomeia Antônio Palocci, Ex-prefeito de Ribeirão Preto/SP e Coordenador
do programa de governo para o Ministério da Fazenda e Henrique
Meirelles, Ex-presidente mundial do BankBoston para o Banco Central,
como gestores da “herança”, de forma a garantir a gestão financeira

6 Um historiador pode ser medíocre seja por positivismo, seja por crença em uma história linear e sempre
sincrônica, seja por vicio estruturalista anti-histórico, seja pela insistência na singularidade dos acontecimentos,
como se não houvesse repetição, pelo menos das linhas gerais de configuração das forças sociais.
203 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

acordada com o FMI, além da continuidade de reformas planejadas pelo


governo anterior. Cabe aqui lembrar que a dupla Palocci-Meirelles
renovou o acordo com o FMI7 por mais dois anos, preservando assim a
subordinação da economia brasileira ao receituário da banca
internacional.

No que consistia o modelo de controle inflacionário do novo


governo? As bases eram as premissas do velho monetarismo
friedmaniano8. “Inflação foi, é, e será sempre um fenômeno monetário”.
Para os monetaristas, há sempre um excesso de demanda em alguma
parte do sistema, assim como há uma contrapartida de um excesso de
moeda em circulação. Uma excelente âncora monetária é a taxa de
juros. O modelo é muito simples e prático: correlacionam-se a taxa de juros
e a taxa de inflação, de maneira que quanto mais as expectativas ou a
inflação efetiva se afastam da meta fixada, maior deve ser a taxa de juros
comandada pela autoridade monetária.

Aqui necessário se faz um parênteses: A constituição dos índices


das expectativas de preços e de expectativas de juros é feita por
levantamento do Banco Central junto aos 100 mais importantes
operadores e analistas do mercado financeiro, ou seja, os agentes que
estão mais interessados em juros altos fornecem as informações necessárias
e suficientes para formá-los. Mas não é só. As altas taxas de juros
“capturam” os capitais de curto prazo, principalmente os especulativos
que auxiliam na rolagem da própria dívida interna. Ou seja, na medida em
que reduz a liquidez dosistema, as autoridades monetárias sustentam o
dogma monetarista de controle inflacionário, mas de fato estão
produzindo os recursos para pagar os encargos da dívida, enquanto
aumentam o principal através de novos encargos financeiros.
Tabela 1
Brasil
Superávit Primário(% do PIB)
1º 2º 2002 2003 2004 2005
mandato mandato
FHC FHC
Superávit 0,0 3,55 3,89 4,37 4,61 4,84
Primário
Fonte: Banco Central do Brasil

7 O novo acordo com o FMI não foi feito sem resistências dentro do governo. Ele encerrou-se em março de
2005, quando vários membros do governo votaram que o mesmo não precisava ser renovado. A dupla Palocci-
Meirelles concordou com a não renovação, mas manteve a política subjacente ao acordo. José Dirceu era o
principal opositor de Palocci.
8Friedmaniano refere-se ao importante, mas equivocado economista norte-americano Milton Friedman.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
204

A política monetária contracionista não opera sozinha, ela precisa


de arrocho fiscal. O aperto fiscal é realizado pelo corte dos gastos públicos
e pelo aumento da carga tributária, criando-se os mega-superávites
primários9. A tabela 1 mostra que durante o primeiro governo do Presidente
Fernando Henrique Cardoso este indicador ficou próximo de zero,
aumentou para 3,55 no segundo mandato, voltou a crescer para 3,89 no
último ano de governo (2002), pulou respectivamente para 4,37 em 2003;
4,61 em 2004 e 4,84 em 2005. Cabe lembrar que a exigência do FMI era de
4,25%, ou seja, o governo brasileiro foi mais realista que o “Rei” ou mais
capitalista que a banca.
A tabela 2 mostra que o governo do Presidente Luiz Inácio Lula da
Silva recebeu uma taxa de juros reais 10 baixa, isto é de 5,8% em dezembro
de 2002. Em julho de 2003 a taxa saltou para 6,8 e sempre em um
crescendo atingiu a marca de 14,4 em março de 2004. Como a inflação
aumenta a taxa real de juros declina até atingir 9,3 em agosto de 2004. A
taxa atinge 12,7% em março de 2005, para depois se estabilizar em 14,0%.

Tabela 2
Brasil
Taxas de juros reais efetivas (%)
Períodos Selecionados
Dez./2002 Jul./2003 Ago./2003 Set./2003 Out./2003
Taxa 5,8 6,8 7,4 7,6 8,7
Nov./2003 Dez./2003 Jan./2004 Fev./2004 Mar./2004
Taxa 11,4 12,9 13,7 13,9 14,4
Abr./2004 Maio./2004 Jun/2004 Jul./2004 Ago./2004
Taxa 14,3 13,5 11,9 10,2 9,3
Fonte: Banco Central do Brasil e IBGE

9 O superávit primário é expresso como percentagem do PIB e apesar de ideologicamente se recobrir com a
linguagem séria e douta de “austeridade fiscal” é preciso entender seu real significado. Suponha uma economia
muito simples que produza uma quantidade mínima de bens, tais como pão, manteiga, bicicletas, educação e
saúde. As pessoas comem pão com manteiga, apenas. Elas se locomovem de bicicleta e cada uma delas
precisa de uma consulta médica e de uma matrícula escolar. Suponha quantidades inteiras em um tempo “t”
qualquer, ou seja, 1000 unidades de pão, 100 unidades de manteiga, 1000 bicicletas, 1000 consultas médicas e
1000 matrículas escolares. Suponha uma população de 1000 habitantes. Quando as autoridades econômicas
se orgulham de terem obtido 5,0% de superávit fiscal, isto significa exatamente que: 50 pães, 5 caixas de
manteiga, 50 bicicletas, 50 consultas médicas e 50 matriculas escolares foram “jogadas” em um depósito de
inservíveis para apodrecerem ou enferrujarem, enquanto pessoas não são atendidas nas UPAs, carteiras ficam
vazias nas Escolas, parte da população anda a pé. Agora se podem multiplicar algumas dessas coisas por
milhões, como bicicletas ou por bilhões, como pães. Qual a racionalidade de se jogar fora bilhões de pães?
10 A taxa de juros reais é aquela que efetivamente mede o custo da moeda e do seu uso e depende do nível

geral de preços. Assim, mesmo com taxas nominais crescentes, quando a inflação aumenta a taxa de juros
reais tem tendência declinante.
205 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

A tabela 2 mostra que o governo do Presidente Luiz Inácio Lula da


Silva recebeu uma taxa de juros reais 11 baixa, isto é de 5,8% em dezembro
de 2002. Em julho de 2003 a taxa saltou para 6,8 e sempre em um
crescendo atingiu a marca de 14,4 em março de 2004. Como a inflação
aumenta a taxa real de juros declina atéatingir 9,3 em agosto de 2004. A
taxa atinge 12,7% em março de 2005, para depois se estabilizar em 14,0%.
Talvez para compensar políticas econômicas tão ortodoxas, o
governo tenha tomado algumas decisões importantes, tais como:
(a) suspendeu o processo de privatização que já tinha alienado parte
importante do patrimônio público;
(b) o BNDES voltou a sua função de banco financiador dos
investimentos em empresas nacionais;
(c) a Petrobrás fixou um amplo programa de compra de plataformas e
de navios construídos no país, com o objetivo de estimular a
produção nacional.

Tabela 3
Brasil
Evolução do PIB
2003-2010
Ano 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010
PIB 1,1 5,7 3,2 3,7 4,0 5,7 - 0,2 5,0
Fonte: IBGE

O primeiro ano do governo Lula apresentou um quadro econômico


tão estagnacionista que decepcionou alguns aliados 12e foi motivo de
júbilo no campo adversário. A partir do segundo ano de mandato a
economia apresentou crescimento do PIB na ordem de 5,7%, de maneira
que no período 2003-2010 a média anual foi de 3,5% (conforme tabela 3),
contra 2,3%13 do período 1995-2002 do Presidente Fernando Henrique. O
que efetivamente determinou o primeiro ano de estagnação e o que
puxou nosegundo ano a locomotiva da “lulaeconomics”?

11 A taxa de juros reais é aquela que efetivamente mede o custo da moeda e do seu uso e depende do nível
geral de preços. Assim, mesmo com taxas nominais crescentes, quando a inflação aumenta a taxa de juros
reais tem tendência declinante.
12 O jornal Folha de São Paulo estampou em manchete do dia 7.11.2003: “Fiesp se queixa ao FMI de política

fiscal”, e a matéria interna do seu caderno Dinheiro da mesma edição noticia que os empresários paulistas,
representados pela sua outrora poderosa Federação, foram à Sra. Anne Krueger, vice-diretora-gerente do FMI,
queixar-se do aperto fiscal a que a administração fazendária do governo Lula os submete. Mas a professora
Maria da Conceição Tavares, em artigo publicado no mesmo jornal, edição de 9.11.2003, diz que os novos
“donos do poder” são o Banco Central e a Secretária do Tesouro, e mesmo os ministros da Fazenda e do
Planejamento são cada vez mais apenas simbólicos. E ela entende de governo Lula e do poder financeiro. V.
“os novos donos do poder”, FSP, São Paulo, 9.11.2003 apud Oliveira (2005), p. 386, nota 1.
13 IBGE – Online. Acesso em 28 de dezembro de 2001.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
206

No primeiro ano o novo governo seguiu exatamente as mesmas


políticas do governo anterior. Resultado: corte na demanda, nos
investimentos e aumento do desemprego. De acordo com o IBGE, o
investimento caiu em 6,6%. Como a renda cresceu em 1,1% e o
crescimento demográfico foi de 1,3%, então ocorreu uma queda na renda
per capita. Em face da queda do investimento, dos gastos do governo e
do consumo, isto é, da demanda interna agregada, o PIB não foi negativo
porque as exportações cresceram em 21%14.

Tabela 4
Diversos Países
Taxas básicas de juros reais
2004
Países Turquia Brasil “Países Emergentes” Países Ricos
Taxa (%) 14,8 9,3 2,7 0,3
Fonte: Global Invest.

Em 2004, a locomotiva da “lulaeconomics” foram as exportações.


Até parecia o Professor Delfim Neto dizendo no início dos oitenta: “exportar
é o que importa”. A produção industrial cresceu em 8,3% 15, a melhor taxa
desde 1986, enquanto o PIB crescia 5,7%16. O desemprego aberto medido
pelo IBGE caiu de 12,3% em 2003 para 11,5% em 200417. Olhando a
demanda agregada o que se observa? Taxa de juros reais alta, a segunda
maior do mundo, isto é, 9,3%18, o que desestimula o investimento. Superávit
Primário de 4,61% do PIB o que significa gastos públicos baixos. Salários
reais em queda, o que acarreta, pelo menos, não-crescimento do
consumo. Conclusão: demanda interna agregada deprimida. Novamente
a resposta está nas exportações que cresceram 32,0%19 em 2004.
Pode-se dizer que a reanimação das exportações se deveu aos
custos salariais baixos e ao aquecimento da demanda externa por
produtos brasileiros. Estes são dois aspectos essenciais da resposta. Um
terceiro elemento foi a compressão da absorção interna, pois políticas
econômicas restritivas empurram as mercadorias (que não podem ser
compradas internamente por falta de renda) para o exterior. Contudo a
resposta completa deve incluir a política diplomáticae a política comercial
do governo. Enquanto a dupla Palocci-Meirelles jogava água fria na

14 Fonte: IBGE – Online. Acesso em 28 de dezembro de 2011.


15 Fonte: IBGE. Pesquisa Industrial Mensal. Acesso em 02 de janeiro de 2012
16 Fonte: tabela 28
17Fonte: IBGE – Online. Acesso em 28 de dezembro de 2011
18Fonte: tabela 29
19Fonte: IBGE – Online. Acesso em 28 de dezembro de 2011.
207 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

caldeira da locomotiva, a dupla Lula-Celso Amorim fazia multilateralismo


pragmático. Parodiando o próprio Presidente Luiz Inácio Lula da Silva:
“Nunca antes na história deste país um presidente foi um caixeiro-viajante
tão eficiente”.
Como ocorreu em 1984, ou seja, 20 anos antes, em 2004 o
crescimento do setor exportador foi gradualmente se espalhando para a
economia interna, através do único instrumento possível: o aumento da
massa de salários. O IBGE apresentou informações que confirmam um
aumento de 9,0%20 na massa salarial em 2004. Outro elemento importante
para o soerguimento do mercado doméstico foi o aumento do volume de
crédito, principalmente o crédito consignado para servidores públicos,
aposentados, e pensionistas, pois como a garantia do banco era total, os
juros podiam ser mais baixos. Milhares destas pessoas, talvez milhões, hoje,
são prisioneiros dos bancos, mas seus padrões de vida caíram bastante,
dado que a maioria dispõe de apenas metade de seus proventos.
No último quadrimestre de 2004, as autoridades econômicas
resolvem combinar juros reais mais altos, valorização do real e aumento de
tributos. Estas medidas derrubaram o investimento, o consumo e as
exportações. O governo insistia na política do “stop and go”. O problema
era de que o único operador eficiente entre as autoridades econômicas
era o Banco Central. O Ministério do Planejamento que já fora o ministério
do crescimento na “era Sayad” havia sido “apagado”. O Ministério da
Fazenda executava tarefas de rotina e delegava ao Banco Central. Este
operava de acordo com os interesses da média das expectativas dos
operadores da banca. A lógica do BACEN era limitar o crescimento a 3,5%.
Erraram o alvo e deu 3,2%. Seguramente uma das equações do sistema do
BACEN continha um viés ou a média das expectativas divergia das reais
expectativas daquilo que o mercado realmente desejava. É preciso tomar
cuidado com estas entidades por demais caprichosas, quase
sobrenaturais. Quem sabe com certeza o que o mercado quer, a não ser
ele mesmo.
O fato é que a expansão ocorrida nos três primeiros anos do
governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva não era sustentável e, como
visto, baseava-se nas exportações. Contudo, seja qual for o componente
da demanda agregada que esteja puxando o crescimento econômico é
preciso compreender duas questões: (a) sem investimento o crescimento

20 Fonte: IBGE. Pesquisa Industrial Mensal. Acesso em 02 de janeiro de 2012


Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
208

só é possível enquanto houver capacidade ociosa, chegando próximo do


pleno emprego os preços sobem; (b) o investimento21 é a variável-chave
da dinâmica capitalista, sem ele nenhum crescimento é auto-sustentado.
Significava que os juros reais precisavam cair para que os investimentos
fossem realizados. Como apontava o documento do IEDI “o trinômio juro,
câmbio e investimento público é o problema, pois todos estão fora do
lugar” 22.
No final de 2005 muitos achavam que era hora de mudar, menos o
“paloccismo radical” 23,24que no início do governo afirmava que as
medidas econômicas eram apenas um remédio amargo necessário para
se atingir o desenvolvimento auto-sustentado, mas pretendeu prorrogar as
políticas restritivas por tempo indefinido, através de uma proposta
elaborada no Ministério do Planejamento. A proposta foi rechaçada por
alguns ministros, tendo a frente a ministra Dilma Rousseff.

4. Superando o paloccismo ou o segundo Lula: rumo ao PAC ou por que


somos todos keynesianos

A possibilidade de adentrar o último ano de mandato e, ao mesmo


tempo, ano eleitoral de 200625 com um desempenho econômico medíocre
acendeu a luz vermelha (ou terá sido de outra cor?) no comando do
partido hegemônico da frente que sustentava o governo do Presidente
Luiz Inácio Lula da Silva. Uma das discussões presentes era de que o
paloccismo enquanto processo transitório estava ganhando força como
forma permanente de gestão e de poder. A direção partidária chegou a
conclusão que era possível um segundo mandato, porém que este
dependeria de algumas mudanças (ou promessas de mudanças) em
pontos sensíveis da política econômica. Era preciso sinalizar para os
eleitores que havia condições e vontade política para crescer.

21 O investimento depende da comparação entre a taxa real de juros e a eficiência marginal do capital. Esta
última funciona, grosso modo, como uma taxa interna de retorno, ou seja, quanto o empresário capitalista ganha
na diferença entre o pagamento de juros de financiamento e a receita de seus negócios.
22 IEDI, O sol e a peneira, 30 de novembro de 2005.
23 “paloccismo radical” é uma forma grave e crônica de transformismo onde os problemas de uma economia

capitalista semiperiférica são metamorfoseados em virtudes. Onde medidas ortodoxas ditas como emergenciais
são transformadas em permanentes.
24 Transformismo refere-se ao processo de adesão (individual ou coletiva) ao bloco histórico dominante, por

parte de lideranças e/ou organizações políticas dos setores subalternos da sociedade, com o abandono de suas
antigas concepções/posições políticas. Fonte: FILGUEIRAS & GONÇALVES, 2007, p. 250.
25 Folha de São Paulo, 08 de dezembro de 2005.
209 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Consideramos fundamental reduzir de forma


significativa e sustentada as taxas de juros,
algo totalmente compatível com o cenário
internacional, com a situação das contas do
governo e com estabilidade de preços.
Estimamos imprescindível acelerar a
execução orçamentária, ampliar os
investimentos em infra-estrutura e nas políticas
sociais, acelerar a reforma agrária e melhorar
o funcionamento do conjunto do governo. O
caminho do crescimento permite reduzir a
relação dívida/PIB, sem os sacrifícios
resultantes das metas do superávit primário,
que devem ser reduzidos26.

A resolução do diretório nacional do Partido dos Trabalhadores


iniciava o processo de repúdio “relativo” ao paloccismo. Palocci
começara a ser “fritado”. Como se necessita muito de figuras como o ex-
ministro era melhor fritá-lo por razões estranhas ao labor ministerial. Palocci
e sua equipe resistiram até março de 2006, para serem finalmente
exonerados pelo Presidente. O caminho estava aberto para um derrotado
do primeiro ano: Guido Mantega. O economista Mantega começou o
governocomo ministro do Planejamento, mas tinha independência e
autoridade, e era desenvolvimentista demais, o que ameaçava o
protagonismo de Palocci. Desse modo, Mantega foi deslocado para o
BNDES, enquanto o “cinzento” Paulo Bernardo assumia o Planejamento,
mas recebia ordens do ministro da Fazenda.
Guido Mantega assume em meados de maio e em entrevista
coletiva afirma que: “[é necessário que] os juros baixem de forma ainda
mais consistente, já que há condições para que isto aconteça, porque o
país está com a inflação controlada e já conquistou a maioridade para
atingir o desenvolvimento sustentado”27. O novo ministro da Fazenda não
conseguiu realizar grandes mudanças até o final do ano, porém atuou em
duas frentes fundamentais, ambas subordinadas ao seu Ministério.
Acompanhou o Banco Central para que o mesmo não interrompesse o
procedimento de redução (mesmo que lenta) da taxa de juros e
pressionou a Receita Federal para que mantivesse saldos primários iguais a
meta e não acima, como ocorria na era palocciana.
O Presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi reeleito. A principal questão
explorada na campanha, pela oposição que começou toda farra de juros

26 Jornal O Globo de 11 de dezembro de 2005.


27 Folha de São Paulo, 17 de maio de 2006.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
210

reais e superávits primários altos, foi o baixo crescimento do período 2003-


2006, ou seja, 3,5%.28 Insiste-se, que no período do Presidente Cardoso o
crescimento pode ser medido como de 2,3% ou de 1,9% dependendo do
Instituto e da metodologia. Contudo, a palavra de ordem pós-eleitoral
passou a ser “vamos destravar a economia”. O Presidente reeleito não
ficou no discurso, convocou uma equipe para criar um programa de
crescimento econômico sustentado. Desse modo, estava lançado, em 22
de janeiro de 2007, o Programa de Aceleração do Crescimento –
2007/201029, logo conhecido como PAC.
O PAC, na tradição estruturalista latino-americana, partiu de um
diagnóstico onde havia um conjunto de gargalos que “travavam” o
crescimento da economia brasileira.30 Tais pontos de estrangulamentos
estavam concentrados na infra-estrutura física, como transporte e energia;
e infra-estrutura social, como saneamento e habitação. Assim, era nestas
áreas que deveriam se concentrar os investimentos. Ficaram definido
metas de crescimento do PIB de 4,5% para 2007 e de 5,0% para o triênio de
2008-2010. As medidas foram enquadradas em cinco categorias:
(a) Investimentos em infra-estrutura;
(b) Estímulo ao crédito e ao financiamento;
(c) Melhoria ao ambiente de investimento;
(d) Desoneração e aperfeiçoamento do sistema tributário;
(e) Medidas fiscais de longo prazo.31
O PAC, em boa medida, desconsidera as observações de Giovanni
Arrighi (1997) em “A Ilusão do Desenvolvimento”, onde aquele cientista
social mostra que os entraves ao desenvolvimento estão além do que os
teóricos do desenvolvimentismo chamam de gargalos. Vinte e três anos
antes de Arrighi, em 1974, no final de um “milagre” o maior economista
brasileiro, Celso Furtado em “O mito do desenvolvimento econômico”
chamava a atenção sobre problemas semelhantes. “Mito” para Furtado e
“Ilusão” para Arrighi. Para os iludidos é suficiente uma boa dose de
keynesianismo bastardo32 para se vender novas esperanças de chegada
ao Primeiro Mundo (eufemismo ultrapassado para núcleo orgânico do
capitalismo). Não significa que um país isolado, principalmente com as

28 IBGE – Online. Acesso em 02 de janeiro de 2012


29 Disponível em: < www.fazenda.gov.br>. Acesso em 28 de dezembro de 2011
30Disponível em: < www.fazenda.gov.br>. p. 6. Acesso em 28 de dezembro de 2011
31 Disponível em: < www.fazenda.gov.br>. p. 4. Acesso em 28 de dezembro de 2011.
32 Keynes abominou a dominância do capital financeiro. Aceitou a existência de algumas bolhas de especulação

em torrentes de produção e nunca o contrário. Keynes propôs a socialização dos investimentos sob o controle
do Estado. Ninguém deveria denominar-se keynesiano sem entender a filosofia social da Teoria Geral.
211 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

potencialidades do Brasil não possa seguir a trilha do desenvolvimento e


atingir o núcleo orgânico. É claro que pode, mas precisa de muito mais do
que boas intenções e um PAC.
Para se compreender um dos limites do PAC veja-se o item
transportes, onde o Programa faz a seguinte profissão de fé: “infra-estrutura
logística, envolvendo a construção e ampliação de rodovias, ferrovias,
portos, aeroportos e hidrovias”.33 Qualquer Plano Econômico que mereça
esta denominação, neste país, contém algo semelhante. O Plano de
Metas assim se posicionava: “investimentos estatais em infra-estrutura,
principalmente transporte e energia elétrica”.34

Tabela 5
Brasil
PAC - Investimento em infra-estrutura
Bilhões de reais
2007-2010
Eixo de Planejamento Valores distribuídos
Logística (sobretudo transportes) 58,3
Orçamento da União 33,3
Estatais, federais e de demais fontes 25,3
Energia 274,8
Orçamento da União -
Estatais, federais e de demais fontes 274,8
Infra-estrutura social 170,8
Orçamento da União 34,8
Estatais, federais e de demais fontes 136,0
Total do PAC 503,9
Orçamento da União 67,8
Estatais, federais e de demais fontes 436,1
Fonte: Programa de Aceleração do Crescimento/PAC – 2007-2010.

É evidente que o Plano de Metas era planejamento no melhor da


tradição cepalina. Assemelhava-se bastante a outras experiências de
planejamento, inclusive as recentes experiências asiáticas. Mesmo não
envolvendo toda a economia, ou seja, mesmo sendo um planejamento
setorial, as bases teóricas e conceituais do planejamento seguiam as
normas e as técnicas da planificação soviética. 35 Observando o Plano de

33 Investimento em infra-estrutura. Disponível em: http://www.brasil.gov.br/pac/infra-estrutura. Acesso em 20 de


dezembro de 2011.
34 ORENSTEIN & SOCHACZEWSKI In: ABREU (Org.), 1992, pp. 171-195
35 O Planejamento estatal começou a ser usado de forma ampla na planificação da economia da União

Soviética. O primeiro plano qüinqüenal começou em 1929, em um momento histórico de muita gravidade para a
economia capitalista mundial, ou seja, enquanto a URSS iniciava sua planificação econômica, o resto do mundo
embarcava na Grande Depressão. De 1929 até 1939, enquanto as economias de mercado tentavam sair do
fundo do poço, a produção industrial soviética cresceu de 5% no total mundial em 1929 para 18% em 1938.
Fonte: HOBSBAWM, 1995.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
212

Metas36 verifica-se, claramente, os objetivos de se criar uma ampla malha


de transporte e oferta abundante de energia. Foi planejada a construção
de 13.000 km de rodovias e foram realizadas 17.000 km. A tabela 6 mostra
que se construiu apenas 1000 km de ferrovias, mas este fato denota uma
decisão política (equivocada, mas consciente) e não um erro de
planejamento. É verdade que o Plano de Metas aumentou os
desequilíbrios regionais, internacionalizou excessivamente a economia e
ampliou nossa dependência da economia norte-americana, mas criou
uma infra-estrutura e impulsos dinâmicos, vindos dos pontos de
germinação37 e da demanda derivada 38 que se propagaram pelas
décadas de sessenta e setenta.

Tabela 6
Brasil
Plano de Metas: Previsão e resultados
1957-1961
Especificação Previsão Realizado %
Energia Elétrica (1000 Kw) 2000 1650 82
Carvão (1000 toneladas). 1000 230 23
Petróleo-Produção (1000 96 75 76
barris/dia)
Petróleo-Refino (1000 200 52 26
barris/dia)
Ferrovias (1000 km) 3 1 32
Rodovias-Construção (1000 13 17 138
km)
Rodovias-Pavimentação 5 - -
(1000 km)
Aço (1000 toneladas) 1100 650 60
Cimento (1000 toneladas) 1400 870 62
Carros e Caminhões (1000 170 133 78
unidades)
Nacionalização (carros) (%) 90 75 -
Nacionalização (caminhões) 95 74 -
(%)
Fonte: ORENSTEIN & SOCHACZEWSKI (1992), p. 180

Sabiamente os formuladores do PAC chamaram-no de Programa e


não de Plano. Em primeiro lugar, porque o nome planejamento poderia
assustar os operadores do mercado, muito dos aliados políticos e poderia,

36 O Plano de Metas foi proposto pelo Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira no período de 1956 a 1961.
O Plano tinha 31 metas, com a meta-sintese sendo a construção de Brasília. No período em questão o PIB
aumentou à taxa anual de 8,2%, o que acarretou um crescimento de 5,1% na Renda per capita. Por sua vez, a
taxa de inflação interna manteve-se elevada durante todo governo do Presidente Juscelino, este fato provocou
uma redistribuição de renda dentro da economia, pois os salários aumentavam em um ritmo mais lento do que
os preços e do que outras rendas. Fontes: LESSA, 1981 e LAFER, 1970.
37Pontos de germinação
38 Demanda Derivada
213 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

ainda, ensejar idéias de que o partido político hegemônico no governo


estivesse voltando no tempo, praticando alguma forma sutil de
anacronismo ou abandonando seu “honesto” transformismo. Em segundo
lugar, seria impróprio chamar o PAC de Plano, pois uma proposta de
planejamento não dedicaria apenas 8,6% 39 para infra-estrutura logística
que diz ser: “a construção e ampliação de rodovias, ferrovias, portos,
aeroportos e hidrovias”. Teria que se acrescentar estações, armazéns,
estaleiros e diversas outras construções que acompanham qualquer
expansão de estradas de transportes. Teria que se acrescentar pessoal em
diversos níveis de formação. Realmente, 8,6% para um Programa
quadrienal é um valor irrisório, tanto é assim que a Ferrovia Transnordestina
continua no papel.
Desse modo, realmente o segundo mandato do Presidente Luiz
Inácio Lula da Silva não foi suficiente. Será certamente, necessário um
segundo mandato para a Presidenta Dilma ou a volta triunfante (nos
braços do povo ao estilo varguista) de Luiz Inácio Lula da Silva. Em suma:
se o PSDB pensou em um “reinado” de pelo menos vinte anos, o Partido
dos Trabalhadores pensa o mesmo. Isto porque muito do que o PT faz é a
“passo de formiga”.
Um dos problemas enfrentado pelo Programa de Aceleração do
Crescimento – PAC foi o recorrente conflito entre os proponentes do
crescimento econômico e os partidários das “finanças sadias”. Não se
estar usando de ironia ao se falar de “finanças sadias”, mas se utiliza de um
jargão de domínio público. Na verdade estes técnicos monetaristas
representam os interesses do capital financeiro dentro do Estado 40. No caso
em questão ficou evidente que os esforços do ministro Mantega 41 não
foram suficientes para “colocar algumas idéias no seu devido lugar”,
principalmente a ineficiência e inoportunidade da política de juros do
Banco Central. Fato é que a redução da Selic vinha acontecendo a
“passos de tartaruga”, mas acontecia, quando o Copom interrompeu a
descida na reunião de outubro de 2007. A decisão unilateral criou uma

39 Fonte: Tabela 5
40 Este trabalho prefere não citar nomes, mas sugere um esforço simples da memória dos leitores para os vários
membros de diversos governos que vieram e/ou voltaram para o setor financeiro.
41 Em entrevista a Revista Época o ministro Guido Mantega nega ter enfrentado problemas com a dupla

Palocci- Meirelles e afirmaque concorda com a política econômica de todo o período 2003-2011. Afirma que
deixou claras as divergências com Meirelles, mas não conspirou contra o colega. Chega a ser suave quando
fala de Palocci, mas se irrita quando lembrado de que só é rapidamente citado em apenas seis das 254 páginas
do livro do desafeto. Parece que a institucionalização do Partido dos Trabalhadores foi completa. Fonte:
ÉPOCA, Nº 713, 16 de janeiro de 2012. pp. 32-49.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
214

polêmica absurda que envolveu a própria autoridade do Presidente da


República.42
O Banco Central não conseguia convencer da necessidade de
suspender o processo de redução das taxas. A ata dizia explicitamente
que “a dinâmica dos preços indica que a inflação tende a evoluir para a
trajetória das metas”.43 Ou seja, nada naquele momento indicava ou
sugeria uma elevação dos preços. Os motivos utilizados pelo Banco
Central para manter as taxas de juros altas, normalmente, são pressão
inflacionária por excesso de demanda ou problema de financiamento da
dívida pública. A ata não apontava nenhum dos dois problemas e até os
descartavam. Onde estava o problema que gerava este movimento de
política recessiva e contrária ao crescimento da economia?
O problema estava em um novo tecnicismo, que pode ser expresso
da seguinte forma: segundo os gênios da economia financeira havia uma
defasagem potencial entre as trajetórias da demanda e da oferta
agregadas e isto poderia se transformar em pressão inflacionária
futuramente. Dito de maneira, assim, pomposa e repetida “ad náusea”
pela mídia transformava-se em argumento indiscutível. É a demanda não
convergindo para a oferta, estúpido! Pois é, os estúpidos aprenderam que
a demanda e a oferta podem apresentar hiatos e a correção deles, em
uma economia de mercado, é função do mecanismo de preços. Mas a
pirotecnia monetarista diz que não. Diz que o equilíbrio entre demanda e
oferta é garantido pela política monetária. Diz que é a taxa de juros que
deve guiar as mercadorias nos labirintos dos mercados.44
Duas questões saltam à vista neste episódio. Primeiro que os
monetaristas só controlam inflação “baixando o pau na demanda”,
quando a inflação quase sempre é uma expressão de escassez de oferta.
“Tão simples, tão óbvio, tão negligenciado”. Segundo é que havia uma
ação aberta de boicote ao Programa de Aceleração do Crescimento –
PAC, ou seja, o pouco que a parte desenvolvimentista do governo fazia
para crescer no segundo mandato era combatido pela parte monetarista.

42 De público o Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva e o Presidente do Banco Central Henrique
Meirelles divergiram. O Presidente Luiz Inácio argumentava, com acerto, que já se estava ocupando toda
capacidade instalada e que era necessário baixar os juros para estimular os empresários a expandir a
capacidade, o que viria a auxiliar no controle inflacionário. Enquanto o Presidente do BACEN repetia a avaliação
do Copom de que era tarefa do Banco Central agir sempre de maneira preventiva e prudencial.
43Comitê de Política Monetária. Sistema de metas para a inflação. Ata da 130ª Reunião, p.1. Acesso em 27 de

dezembro de 2011.
44 A imagem da taxa de juros orientando as mercadorias não deixa de ser intrigante, apesar de extremamente

hilariante. Seguramente, “Dona” taxa de juros, esta Dama tão sensível, levaria todas as mercadorias, com seus
valores de uso e valores de troca para um precipício, tudo por amor ao capital fictício.
215 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Do que foi dito acima não se deve concluir que o PAC não tenha
desempenhado nenhum papel no crescimento do Produto entre 2008 e
2010. O Programa deu importante contribuição como mecanismo
keynesiano tradicional e já testado em diversas condições históricas. É
evidente que gastos na ordem de 256 bilhões de reais 45 reanimam a
economia e é exatamente isto que o governo deve fazer sempre, apenas
como cumprimento de dever. Aqui, também, o investimento privado
aparece de imediato na forma de contratos públicos, para em seguida
aparecer em outras formas.

Tabela 7
Brasil
PAC – Balanço
Bilhões de reais
2007-2009
Eixo de Planejamento Realizado
Logística (sobretudo transportes) 40,5
Energia 72,4
Infra-estrutura social 144,0
Total do PAC 256,9
Fonte: Programa de Aceleração do Crescimento/PAC – Balanço de três
anos.

A tabela 8 mostra que o número de famílias que foram atendidas


pelo Programa Bolsa-Família era de 3,6 milhões em 2003 e cresceu até
atingir 12,4 milhões46 em 2009, o que correspondeu a um aumento de
245%, trata-se de um aumento significativo, mesmo que se deva admitir
que a base de partida era muito baixa. Em 2003 o referido programa
pagou 600 milhões de reais, para pagar benefícios no montante de 12,5
bilhões de reais no ano de 2009. Trata-se de um aumento de mais de 20
vezes. Os gastos da Bolsa-Família entre 2007 e 2009 somam 32,6 bilhões de
reais, o correspondente a 12,7% de todo desembolso do PAC 47 no mesmo
período. Corresponde, também, a 80,5% dos gastos do PAC 48 com
logística.

45Fonte: tabela 32
46 São 12,4 milhões de famílias que passam a consumir e acionam os mecanismos propagadores da demanda
agregada.
47Fonte: tabela7
48Fonte: tabela7
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
216

Tabela 8
Brasil
Bolsa-Família
2003-2009

Ano Bolsa Família Bolsa Família


(Famílias Atendidas) (Pagamentos de Benefícios)
(milhões de unidades) (bilhões de reais)
2003 3,6 0,6
2004 6,5 3,8
2005 8,7 5,8
2006 11,1 7,6
2007 11,1 9,2
2008 11,6 10,9
2009 12,4 12,5

Fonte: Mercadante, 2010.Elaboração do Autor

A tabela 9 mostra que o Salário Mínimo acumulou variações reais


positivas todos os anos dos dois mandatos do Presidente Luiz Inácio Lula da
Silva, sendo que no período 2003-2008 acumulou um total de 37,0%;
enquanto os Rendimentos Médios Reais cresciam apenas em 9,5% no
acumulado do período 2003-2008. Considerando-se a variação do PIB
como Proxy para produtividade do trabalho, tem-se que o Produto
acumulou 28,0% de aumento. Conclusão: a produtividade foi de 28,0%,49
os trabalhadores receberam 9,5% na média e o salário mínimo teve um
ganho real de 37,0%.50 Um valor que reduz a defasagem histórica do
mínimo, mas mantém a defasagem da maioria dos salários, principalmente
do setor público.
No item distribuição de renda e redução da pobreza é preciso
buscar a contextualização histórica. Os dados do IBGE, entre os anos
sessenta e oitenta do século passado, indicam a seguinte evolução nos
percentuais da pobreza no Brasil: Em 1960 havia 41,4% de pobres, este
número caiu para 39,3% em 1970 e para 24,4% em 1980. Com a forte
recessão dos anos 80, ocorreu elevação na proporção de pobres: e, em
1983 o país voltava ao nível de 1960, com 41,9%. A breve recuperação
econômica do ano de 1986 associada ao forte crescimento do Plano
Cruzado, fez cair rapidamente a proporção de pobres, neste ano ela
desceu para 28,4%. Nos anos seguintes, a escalada da inflação e a

49 Fonte: IPEADATA
50 Fonte: Tabela 9
217 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

deterioração econômica, com os efeitos recessivos de planos anti-


inflacionários, elevaram de novo a taxa: 35,9 em 1987 e 39,3% em 1988,
voltando ao nível de 1970.

Tabela 9
Brasil
Indicadores de Salários e Consumo das Famílias
(Variação Anual em %)
2003-2008
Ano Variação percentual Rendimentos Massa Real de Consumo das
real do Salário Mínimo Médios Reais (%) Rendimentos (%) Famílias (%)
2003 1,23 - 5,1 -7,8 - 0,7
2004 1,19 0,2 3,6 3,8
2005 8,23 2,4 5,7 4,5
2006 13,04 4,4 4,7 5,3
2007 5,10 3,6 6,4 6,3
2008 4,03 4,0 7,3 7,1
2009 5,79 2,4 2,3 4,1
Fonte: IPEADATA apud Mercadante, 2010. Elaboração do Autor

Segundo dados do IBGE em 1992, o percentual de pobres era de


35,16%, caindo para um valor acima de 28,00% no final da década de
noventa e principio dos anos 2000. Em 2003 o Brasil tinha 13,7% de sua
população vivendo em situação de indigência, enquanto 35% eram
considerados pobres. Em 2008, a distribuição da renda já havia melhorado,
de modo quenos cinco anos, que separam 2003 e 2008, os índices de
indigência e pobreza foram reduzidos, respectivamente, a 6,6% e 24,1%.
Estes dados indicam que 32 milhões de pessoas, o que equivale a mais de
três vezes a população atual de Portugal e a 80% da população da vizinha
Argentina, saíram da linha de pobreza.
A primeira vista pode-se pensar que este deslocamento para cima
da população na escala de renda deve-se unicamente aos diversos
programas sociais do atual governo, contudo, os dados indicam que
houve um aumento significativo no volume agregado do emprego, ou
seja, algo como oito milhões de novos postos no mercado de trabalho foi
criado no período que vai de 2003 até 2009. (Jornal Valor Econômico de
29/12/2009)
Segundo Néri (2009) quando se analisa a redução total da
desigualdade, verifica-se que a renda do trabalho assalariado responde
por 66,86% na variação total, vindo a seguir os programas sociais com 17%,
enquanto os benefícios previdenciários explicam 15,72%, o deixa um
resíduo de menos de 1%.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
218

Quando se investiga a evolução da renda é preciso combinar os


fluxos de renda com a trajetória temporal da pobreza, da desigualdade e
das classes de renda. Apesar das limitações evidentes do conceito de
classes de renda, é possível fazer uma adequada apreensão do
movimento que leva segmentos da população dos níveis mais baixos de
pobreza para níveis mais elevados de renda. Assim, a população é
desagregada em quatro grupos de renda.

Tabela 10 (35)
Variação na população por classes de rendimentos
Brasil
Variação na 2008-2003 2008-2007
população
Classe E (19.458.924,00) (3.798.432,00)
Classe D (1.485.360,00) (899.594,00)
Classe C 25.890.892,00 5.285.627,00
Classe AB 6.095.662,00 1.680.397,00
Fonte: Néri (2009)
Nota: os valores entre parênteses indicam redução.

A classe de mais alta renda (acima de 4807,00 reais) incorpora


entre 2003 e 2008, seis milhões de pessoas, de modo que esta camada
atinge quase vinte milhões de pessoas. A segunda classe (entre 1115,00
reais e 4807,00) recebe 25,9 milhões de pessoas. Na terceira classe (entre
768,00 reais e 1115,00 reais) há uma redução de um milhão e meio de
pessoas. Na última classe de renda (até 768,00 reais) há uma queda
populacional de 19,4 milhões de pessoas.
A economia tradicional, mesmo a heterodoxa (ou keynesiana em
particular) dá valor excessivo a chamada distribuição pessoal da renda
que quase sempre ou “encobre” algumas formas disfarçadas de
desigualdade ou “descobre” formas de políticas públicas compensatórias,
mas insuficientes enquanto alternativa de inserção decente das
populações pobres. A economia política, incluindo a economia
kaleckiana preocupa-se fundamentalmente com a distribuição funcional
da renda, ou seja, no quantum da renda nacional recebido pelos
trabalhadores (salários), pelos capitalistas (lucros e aluguéis) e pelos
rentistas (juros). Neste caso a parcela da renda apropriada pelos
trabalhadores no período 2003-2009 oscilou entre 31,5% e 29,3%51, quando
a absurda media histórica brasileira é de 30%. Nos países do núcleo
orgânico a parcela fica entre 60 e 70%. Isto, logicamente não significa que

51 Fonte: IBGE. Contas Nacionais e Pesquisa Industrial Anual (PIA) Método de aferição: BARBOSA (2001)
219 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

há nenhuma inversão ou que os trabalhadores “estejam se apropriando”


da acumulação, mas apenas que são em número muito mais elevado que
os capitalistas.
Outro fato para o qual a tabela 9 é absolutamente muda52 são os
estupendos lucros bancários, para tanto se precisa da tabela 11.

Tabela 11
Brasil
Participação dos Grandes
Bancos Privados (a) no PIB (%)
Períodos selecionados
Ano 1995-1998 1999-2002 2003-2006
Ativo/PIB 11,6 12,2 19,3
Patrimônio Líquido/ PIB 1,4 1,9 2,2
Fonte: Filgueiras& Gonçalves (2007).Elaboração do Autor
Nota: (a) Inclui Bradesco, Unibanco e Itaú

A tabela 11 mostra a apropriação crescente do capital bancário


sobre a Renda Nacional. No período 1995-1998 a relação Ativo/PIB era já
de 11,6% passando para um valor de 19,3% no primeiro Lula enquanto a
relação Patrimônio Líquido/PIB passou de 1,4% no primeiro FHC para 2,2%
no primeiro Lula. A situação é sempre preocupante quando o capital
financeiro passa da condição de “servo” obediente para “senhor” do
capital produtivo.
A tabela 12 mostra que o consumo das famílias teve importante
papel na formação da demanda agregada. O consumo teve um valor de
– 0,39% em 2003 cresceu para 3,80% em 2007 e 3,27% em 2008. Assim, no
ano de 2008 o consumo contribui com 64,0% para a composição do PIB 53.
O aumento do consumo deveu-se ao aumento de desembolsos de
programas como a Bolsa-Família, do aumento real do salário mínimo em
alguma medida do aumento da massa salarial54
A contribuição do consumo do governo tem sido muito discreta,
enquanto as exportações caíram desde 2006. Em compensação a
Formação Bruta de Capital Fixo apresentou uma ligeira reação desde
2006, ou seja, 1,69% em 2006, 2,34% em 2007 e 3,01% em 2008 55, mas
qualquer “vôo de águia” vai depender de uma expansão acentuada da
Formação Bruta de Capital (investimento); ou em uma boa e insuperável
linguagem e cultura marxista, tudo dependerá de um crescimento

52A tabela é muda, isto é, não fala, nem mesmo quando perguntada.
53Fonte: tabela 37
54Fonte: tabela 34
55Fonte: tabela 37
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
220

permanente e sustentado da Acumulação de Capital e que não ocorram


novas restrições às exportações brasileiras.
É exatamente pelo que foi apresentado acima que se pode
considerar o período 2003-2010 como uma fase de recuperação nacional
restringida, mesmo que se devam reconhecer vários avanços na
sociedade brasileira.
Tabela 12
Brasil
Contribuição ao PIB
(Variação Anual em %)
2003-2008
Ano Consumo Consumo FBKF Exportações Importações PIB
das do
Famílias Governo
2003 - 0,39 0,15 - 0,28 1,47 0,20 1,20
2004 2,31 0,79 1,87 2,29 - 1,61 5,70
2005 2,64 0,44 - 42,00 1,53 - 1,06 3,20
2006 3,06 0,51 1,69 0,76 - 2,13 4,00
2007 3,80 0,95 2,34 0,97 - 2,38 6,10
2008 3,27 1,12 3,01 - 0,08 - 2,24 5,10
Fonte: IPEADATA apud Mercadante, 2010, p. 120.Elaboração do Autor

5. Economia brasileira recente: comportamento da absorção externa e da


incorporação tecnológica.

Desde 1999 observa-se um movimento de expansão das


exportações brasileiras. Contudo, é a partir de 2001 que a Balança
Comercial começou a apresentar resultados positivos que levariam
amega-superávits maiores do que àqueles dos anos oitenta, chegando-se
a atingir uma média de 32,5 bilhões de dólares entre 2002 e 2008.56
O bom desempenho das exportações brasileiras esteve ligado à
excelente performance da economia mundial a partir de 2003. O aumento
da demanda mundial eleva a demanda de commodities e
conseqüentemente seus preços. Isto não significa que a economia
brasileira apenas se adaptou aos movimentos dos preços. A leitura da
tabela 13 mostra que os produtos básicos e os produtos
semimanufaturados tiveram variação mais intensa dos preços, enquanto os
manufaturados foram guiados por maior variação no quantum (72% contra
31%). Não se pode, então, afirmar que houve uma adaptação totalmente
passiva da economia brasileira ao ciclo expansivo mundial, inclusive

56Nos anos oitenta acumularam-se saldos de 86 bilhões de dólares, com média de 12,4 bilhões. Nos anos dez
do atual século o total ultrapassou 300 bilhões de dólares, a uma média de 30 bilhões de dólares.
221 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

porque a variação do quantum das exportações totais foi de 56%, ou seja,


10% superior ao efeito-preço (46%). Contudo, os fortes efeitos dos preços
para as categorias dos básicos (63%) e semimanufaturados (68%) indicam
uma tendência à reprimarização.

Tabela 13
Brasil
Evolução das Exportações por fator agregado
2002-2006
Base: 1996
Período Exportações Totais Produtos básicos Produtos Produtos manufaturados
semimanufaturados
Preços Quantum Preços Quantum Preços Quantum Preços Quantum
2002 77,9 162,3 65,5 217,6 74,9 139,0 82,9 150,8
2003 81,5 187,8 72,3 246,2 83,4 152,5 82,4 182,3
2004 90,3 223,8 85,6 280,1 95,5 163,4 87,2 229,8
2005 101,3 244,7 97,8 298,5 106,8 173,6 96,7 255,1
2006 113,9 252,8 106,9 316,5 126,1 179,7 108,6 260,5
Variação 46% 56% 63% 45% 68% 29% 31% 72%
Fonte: IPEADATA

A tabela 14 mostra dados importantes sobre o comércio exterior no


período de governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Observa-se que
as exportações agrícolas (XA) mantêm uma superioridade muito alta em
relação às importações agrícolas (MA), de forma que a razão XA/MA
chega a atingir 8,55 vezes. Três conclusões se impõem: (a) a auto-
suficiênciabrasileira na produção agrícola; (b) o alto volume e receita das
exportações não-industriais; (c) os mega-superávits obtidos na
comercialização de produtos agrícolas.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
222

Tabela 14
Brasil
Balança Comercial (Total e Agrícola)
(Bilhões de Dólares)
2003-2009
Ano Exportações Importações Razão Saldo Comercial
Agrícolas (XA) Agrícolas (MA) XA/MA
2003 30,6 4,7 6,51 25,9
2004 39,0 4,8 8,12 34,2
2005 43,6 5,1 8,55 38,5
2006 49,5 6,7 7,45 42,8
2007 58,4 8,7 6,71 49,7
2008 71,8 11,8 6,08 60,0
2009 64,8 9,8 6,61 54,9
Ano Exportações Importações Razão Saldo Comercial
Totais (XT) Totais (MT) XT/MT
2003 73,2 48,3 1,51 24,9
2004 96,7 62,9 1,54 33,8
2005 118,5 73,6 1,61 44,9
2006 137,8 91,3 1,51 46,5
2007 160,6 120,6 1,33 40,0
2008 197,9 173,1 1,14 24,8
2009 152,2 126,9 1,20 25,3
Fontes: Funcex e BCB apud Mercadante, 2010, pp. 80-81 e Ministérioda
Agricultura, Pecuária e Abastecimento apud Mercadante, 2010, p. 168.
Elaboração do Autor.

Quando se observa a parte inferior da tabela 14, relativa ao


comércio externo total percebe-se que a razão XT/MT que já foi de 1,61
indicando que as exportações brasileiras pagavam as importações 57 com
um saldo de 60%58, acusou uma queda acentuada para 1,14 em 2008 e
1,20 em 200959. São dados preocupantes quando se pensa em
desenvolvimento econômico, pois aponta para a possibilidade de um
processo de reprimarização da economia.60
Outra informação importante contida na tabela 14 é de que o
saldo comercial agrícola superou o saldo comercial total em cinco anos
da série, perdendo apenas em 2005 e 2006por pequena diferença, isto

57 Este é um conceito fundamental, isto é de que as exportações pagam as importações. Na verdade, exportar é
gerar recursos para importar. Assim pensavam os economistas clássicos. É claro que há mais complexidade no
comércio internacional do que supõemodelo ricardiano, mas ajuda muito pensar neste intercâmbio como um
trade-off.
58 Esta relação entre exportação e importação com 60% de saldo significou em 2005 um “lucro” de exportação

de 45 bilhões de dólares.
59 As razões 1,14 e 1,20 correspondem a saldo de quase metade daquele obtido em 2005, ou seja, 25 bilhões

de dólares.
60Por reprimarização da economia se entende o aumento relativo das receitas de exportação (preço x quantum)

de bens primários frente ao declínio negativo das receitas de exportação de bens industriais. É uma discussão
que deve ser feita com cuidado e rigor. Deve ser devidamente contextualizada. Por sua vez, não é um problema
apenas de oferta, mas também de demanda (aqui, também, a demanda comanda a oferta), é claro que para
exportar bens primários o país precisa tê-los ou ter os recursos necessários para produzi-los.
223 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

novamente indicaria uma forte predominância de bens primários na pauta


e conseguintemente uma tendência à reprimarização da economia
brasileira.
Uma das questões que muito se discute (BRESSER-PEREIRA, 2007 e
2010) é do risco do Brasil sofrer algum ataque da “doença holandesa”61,
apesar do risco maior ser a “euforia chinesa”62,63. Volta-se às duas questões
mais abaixo.

Tabela 15
Brasil
Razão das Exportações Agrícolas (XA)
Sobre as Exportações Totais (XT) em (%)
2003-2009
Ano Exportações Agrícolas (XA)/ Exportações Totais (XT)
2003 41,80
2004 40,33
2005 36,79
2006 35,92
2007 36,36
2008 36,28
2009 42,57
Fontes: Tabela 14

A tabela 15 confirma através da razão exportações


agrícolas/exportações totais (XA/XT) um peso de 36% no período 2005-2008
a 42% em 2009 das exportações agrícolas na pauta. Pode-se dizer, então,
que os dados disponíveis quando cruzados indicam que os bens primários
ou os semimanufaturados estão aumentando suas participações na
receita.
A tabela 16 retirada de Mercadante (2010) mostra as principais
mercadorias exportáveis brasileiras. São dez produtos mais um item
denominado de “demais produtos” correspondente a 7,6% das
exportações brasileiras em 2008. Todos os dez produtos têm origem
agropecuária, mesmo que alguns possam indicar processos de
semimanufaturados ou até manufaturado, não há como observar

61É um termo geral que se aplica às situações de forte apreciação cambial decorrentes de grandes saldos na
balança comercial, que são causadas, principalmente, pelo crescimento extraordinário da quantidade exportada
ou do preço de commodities de exportação. A origem do nome deve-se a um fenômeno ocorrido na Holanda
quando da descoberta de grandes reservas de gás natural. O aumento da exportação do produto causou forte
apreciação da moeda doméstica, perda de competitividade industrial e conseqüente desindustrialização.
62 O PIB chinês cresceu a uma média de 10% entre 1999 e 2008, segundo informação do Fundo Monetário

Internacional. Fonte: www.imf.org


63Em 1999 o valor das exportações da China ficou em torno de 670 milhões de dólares, em 2008 este valor

aumentou para 16,4 bilhões de dólares, isto corresponde a um aumento de aproximadamente 24 vezes. A
voracidade do crescimento chinês e o tamanho de sua sociedade e de sua economia têm potência de absorver
toda produção primária, mesmo de um país do porte doBrasil. Fonte: MDIC/Secex.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
224

agregação de alto valor nos citados produtos. Não há como supor muito
valor agregado em “cereais, farinhas e preparações” e mesmo que
houvesse seu peso é de 3,1%, enquanto “fibras e produtos têxteis”
apresentam-se com percentual de 2,2%. O “complexo da soja” representa
25%,ou seja, ¼das exportações brasileiras. Os cinco primeiros itens da
pauta correspondem a 76% do total, ou seja, ¾ das exportações. O café,
que ajudou tanto, mas também criou inumeráveis problemas, ainda
contribui com 6,6% e é o quinto produto da pauta.
Segundo Mercadante (2010, p. 169) os setores “complexo da soja”,
“carnes” e “sucroalcooleiro” contribuíram com 75% do aumento das
exportações brasileiras no período de 2003 a 2008. Por sua vez, a economia
brasileira ocupa a primeira posição mundial na produção de açúcar 64,
café e suco de laranja. Nesta mesma direção somos os principais
fornecedores mundiais dos três produtos citados acima acrescidos de mais
dois: “carne bovina” e “carne e aves”.

Tabela 16
Brasil
Participação dos Principais Exportáveis
2008
Principais Produtos Valor (US$) (%)
Complexo da Soja 17.980.184.191 25,0
Carnes 14.545.483.709 20,3
Produtos florestais 9.326.148.932 13,0
Complexo Sucroalcooleiro 7.873.074.318 11,0
Café 4.763.068.651 6,6
Couro, Produtos de Couro, e peleteria 3.140.208.311 4,4
Fumo e seus produtos 2.752.032.482 3,8
Cereais, farinhas e preparações 2.206.966.200 3,1
Sucos de frutas 2.151.782.905 3,0
Fibras e produtos têxteis 1.587.383.802 2,2
Demais produtos 5.480.133.717 7,6
Total 71.806.467.218 100,0
Fonte: SECEX/MDCI apud Mercadante, 2010, p. 169

Resta lembrar que parte importante da dinâmica mundial recente


esteve ligada, pode-se dizer dependente, da forte expansão da economia
chinesa. Aquela economia cresceu num impulso tão forte que para
sustentá-lo foi necessário uma elevação permanente da demanda por
produtos básicos e semimanufaturados, especialmente minerais metálicos
e grãos. É a elevação dos preços destes produtos aliada a uma procura
sempre crescente que se pode chamar de “euforia chinesa”. Países ricos

64Gilberto Freyre ficaria feliz em saber que além de adoçar o mundo atlântico o “ouro branco” adoça o mundo
todo.
225 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

em bens primários, grandes fornecedores de commodities, como o Brasil


são automaticamente arrastados pela “euforia chinesa”, tornando-se,
também, por contágio, “eufóricos”.
Assim, pode-se creditar ao bom desempenho mundial,
particularmente ao excelente crescimento chinês, os ganhos de
exportação da economia brasileira, o que também indica tendência à
reprimarização.
A própria experiência do período 2003-2008 mostra a existências de
movimentos complexos. Observa-se que a taxa de câmbio tende à
sobrevalorização devido aos saldos positivos na Balança Comercial e da
entrada de capitais externos em função do diferencial entre as taxas de
juros internas e as externas, o que deveria ser respondido, numa ótica
linear, com acomodações da Balança Comercial pela perda de
competitividade. Entretanto, a apreciação cambial foi contrabalanceada
pelo aumento dos preços e das quantidades.

Tabela 17
Brasil
Estrutura das Exportações Brasileiras
Por Segmentos de Intensidade Tecnológica
(Totais e de Produtos Industriais)
(Percentual)
Exportações Brasileiras de Produtos 2002 2008 Variação 2008/2002
Industriais
Alta tecnologia 12,20 8,11 - 33,52
Baixa tecnologia 39,32 36,22 - 7,88
Média-alta tecnologia 26,59 28,28 6,36
Média-baixa tecnologia 21,89 27,39 25,13
Total 100,00 100,00 -
Exportações Brasileiras Totais 2002 2008 Variação 2008/2002
Indústria de alta tecnologia 9,83 5,81 - 40,89
Indústria de baixa tecnologia 31,70 25,96 - 18,10
Indústria de média-alta tecnologia 21,43 20,27 - 5,40
Indústria de média-baixa tecnologia 17,64 19,64 11,33
Produtos Não-industriais 19,40 28,32 45,98
Total 100,00 100,00 -
Fontes: MDIC apud Mercadante, 2010, pp. 163 eIBRE/FGV apud
Mercadante, 2010, pp. 162.Elaboração do Autor

Quando se examinam os dados de exportação quanto ao grau de


intensidade tecnológica dos produtos percebem-se evidências de
movimentos de reprimarização, mesmo que incipientes e de ausência de
upgrade das exportações dos itens industriais. A tabela 17 mostra que
quando se observa a parte superior da tabela, os produtos industriais de
alta tecnologia sofrem uma queda de participação na pauta de 33,52%,
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
226

enquanto os produtos industriais de baixa tecnologia caem em 7,88%. Por


outro lado, os produtos industriais de média tecnologia aumentam sua
participação em 31,94%65
Na investigação das exportações totais, parte inferior da tabela
observa-se que as exportações industriais de alta tecnologia sofrem uma
queda de 40,89%, enquanto as exportações industriais de baixa
tecnologia, também, caem em 18,10%. As exportações industriais de
média-alta tecnologia decrescem de 5,40%, enquanto as exportações
industriais de média-baixa tecnologia, próprias da Segunda Onda crescem
de 11,33%. Finalmente, mas não em importância, os produtos não-
industriais apresentam uma variação positiva de 45,98% superior a qualquer
outra variação mostrada na tabela 42, seja positiva ou negativa.

65 Os produtos de média-baixa tecnologia que cresceram 25,13% são todos próprios da Segunda Revolução
Industrial ou anterior a esta. Enquanto os itens de média-alta tecnologia que aumentaram apenas em 6,36% são
quase todos,também, da Segunda Revolução Industrial, com exceção de três itens que envolvem informática
elementar, eletrônico e engenharia de medicina no total de média-alta tecnologia correspondem a irrisórios
2,2%.
227 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Referências Bibliográficas

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VISÃO. Quem é quem na economia brasileira. Edição Especial, várias


edições.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
230

Resenha: LUSTOSA, Maria Cecília Junqueira(Org.); ROSÁRIO,


Francisco, José Peixoto(Org.). Desenvolvimento Local em
Regiões Periféricas: A política dos arranjos produtivos em
Alagoas. Maceió: EDUFAL, 2011.

Os estudos sobre desenvolvimento observaram certa


diversificação nos últimos anos. À pauta clássica, tem-se
acrescentado os temas da sustentabilidade ambiental, da
governança e da incorporação de novas interpretações acerca de
conceitos outrora consolidados na área, como desigualdade ou
bem-estar, por exemplo.

Exauridos ou desacreditados em outras áreas das ciências


sociais aplicadas, ainda alguns outros temas tentam apear-se na
temática do desenvolvimento, como a “inovação”, ou certo
enfoque herdado da quase centenária teoria do lugar central
weberiana, este requentado sob a forma conceitual dos arranjos
produtivos locais, ou como seus autores gostam de apelidar, APLs.

Isto posto, de um livro como o de Cecília Lustosa e Francisco


Rosário, professores da Universidade Federal de Alagoas, uma
universidade periférica, seria esperado algum acréscimo ao assunto.
O título do livro convida; a capa, bonita, seduz. Seria de se esperar
alguma boa discussão sobre o desenvolvimento regional. Diz-se
boa, porque o tema é não apenas válido, mas premente, atual,
relevante e favorável ao próprio desenvolvimento das ciências
sociais.

Infelizmente, não é o caso do livro (organizado ou autoral?


Não há como saber ali) de Lustosa e Rosário. Simplesmente não há
nada de positivo a ser dito sobre o uso das quase duzentas páginas
de papel.

Uma menção inicial – que exime de culpa os responsáveis


pela obra, a princípio – vai para o serviço editorial da Edufal. O livro,
a despeito da bela capa, remontando ao regionalismo, é um
verdadeiro desastre de revisão, edição, diagramação e montagem.
Quase nenhum gráfico ou tabela escapa de um arremesso certeiro
à incompreensibilidade. Os mapas chegam a ser risíveis, porquanto
borrados, distorcidos, e inutilizados em sua função informativa
(como apresentar em “tons de cinza” mapas originalmente
coloridos?). Uma editora séria já o teria retirado de circulação,
apresentando uma edição revisada. Dadas as condições do
231 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

mercado editorial, fica a sugestão, que reduziria em parte o dano à


leitura.

Infelizmente mais uma vez, os erros não limitam aos aspectos


formais, avançando por sobre aspectos que envolvem a própria
concepção do livro. Em seus seis capítulos, o livro intenta defender o
desenvolvimento do estado de Alagoas através do incentivo a
criação e consolidação de programas de incentivo aos APLs, como
alternativas a uma atual estrutura produtiva centrada no cultivo e
comercialização da cana-de-açúcar e de seus derivados. Os
primeiros dois capítulos iniciam-se tentando expor uma conjuntura
socioeconômica de Alagoas e o fluxo comercial do estado. Nos
dois capítulos seguintes há uma tentativa de estabelecimento dos
critérios de identificação e mapeamento dos APLs, assim como suas
respectivas politicas de auxilio aos arranjos. Dois capítulos finais,
bastante reduzidos, tentam fazer uma análise das políticas
governamentais postulando o investimento em APLs como a saída
para o desenvolvimento do Estado.

Embora o tema da obra trate de questões pertinentes ao


desenvolvimento alagoano, as falhas metodológicas em seu
decorrer prejudicam seriamente a corroboração de quaisquer
assertivas coerentes com a realidade alagoana feitas ali. O que se
apresenta de início como a análise empírica da “conjuntura
socioeconômica”, limita-se a observações do PIB e seus
desdobramentos mais óbvios, como os produtos setoriais e a mão
de obra empregada. Não aparece a análise de indicadores de
desenvolvimento como o IDH ou mesmo o Índice de
Desenvolvimento Rural. A análise da “conjuntura socioeconômica”
prometida no início do livro é entregue sob a forma de um
agregado, de extensão temporal insuficiente, de dados que
somente fariam sentido em séries mais amplas. A aparência é a da
soma de vários briefings de relatórios de conjuntura de curto prazo.
Entender o longo prazo como uma extensão do curto transcende o
limite do deslize metodológico, passando à aberração. O resultado
não passa de uma simples junção de informações já conhecidas na
literatura econômica recente como, por exemplo, a tendência de
aumento da participação do setor de serviços no volume total de
empregos, caso que de maneira alguma constitui singularidade
alagoana.

A análise do fluxo comercial, por sua vez, tenta mostrar uma


economia apoiada em duas cadeias produtivas: cana e derivados
do petróleo. A base empírica para tal alegação, na forma como
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
232

apresentada, é muito rala e pode ser facilmente contestada,


levando em consideração que toda a análise limitou-se a
observações do ano de 2006. A observação conduz dessa vez à
inferência de que a cana constitui o setor mais dinâmico da
economia alagoana. A melhor das vontades em assumir a validade
científica do trabalho cai por terra diante de tal redundância. Seria
possível afirmar aqui pelo menos uma centena de trabalhos que
realizaram exame empírico mais apurado, para chegar ao mesmo
resultado.

O terceiro capítulo busca, a partir de critérios oficiais,


identificar os diversos tipos de APLs e organizá-los de acordo com as
configurações do mercado em que se inserem. Por simplesmente
utilizar o trabalho anterior realizado pelo Ministério da Ciência e
Tecnologia (MCT), há uma aparente melhoria na qualidade do
conteúdo. Contudo, há necessidade urgente de revisão, com
mapas simplesmente ilegíveis de impossível delimitação das áreas
abarcadas pelos arranjos. Como está, inviabiliza-se qualquer
contribuição à elaboração de políticas que visem incentivar a
produção dentro da área dos APLs em Alagoas.
O quarto capítulo oferece um rol de entidades de apoio aos APLs, e
o critérios de avaliação de tais agentes. A qualidade da análise
feita nesse capítulo pode ser associada ao grau de congruência
com a realidade da variável-chave analisada. Nesse caso, parece
ter sido sistematicamente escolhida a variável menos relacionada
com a efetividade dos projetos de apoio, ao se basear
principalmente nos números de ações encerradas, ações em
andamento e em ações cujo marcos críticos não estão sendo
superados. Para uma obra que visa formular uma estrutura de
organização entre APLs e as atuais entidades de apoio para o
desenvolvimento regional, a impressão é de que há pouco interesse
no desempenho das ações, importando unicamente a existência
de ações de auxilio e não no que estas acrescentariam ao sistema
produtivo local.

Os dois últimos capítulos refletem a pesquisa rala feita


anteriormente e mostram uma inconsistência argumentativa básica:
uma vez “descobertos” como “dinâmicos” para a economia do
estado os setores da cana e dos derivados de petróleo, qual seria
efetivamente o interesse – estratégico, basilar, de mudança
estrutural social ou econômica – de investir-se nos arranjos
produtivos locais como opção de desenvolvimento regional? À
assertiva categórica de Lustosa e Rosário em dois capítulos curtos
que repetem o mesmo bordão – o caminho para o
233 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

desenvolvimento de Alagoas estaria no investimento em APLs – não


se agrega qualquer argumento sólido, tornando-se o livro ao final
uma profissão de fé e não a obra científica originalmente proposta.
Há profunda desconexão do diagnóstico com as propostas.

Felizmente, o estudo do desenvolvimento regional


sobreviverá a tal atentado, por sua pertinência e pela forma como
é estudado por pesquisadores sérios e comprometidos com a
produção de conhecimento científico na academia e fora dela. O
livro ora abordado fica como um exemplo do que não se deve
fazer ao estudar o assunto.

Rafael Aubert de Araujo Barros


Economista – Grupo de Estudos em Economia Política e História
Econômica (GEEPHE).
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
234
235 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Resenha: SINHA, Ajit. Theories of Value from Adam Smith to


Piero Sraffa. New Delhi, Routledge, 2010

A teoria do valor é uma constante na ciência econômica


que permite relacionar boa parte dos autores que têm
preocupações de ordem abstrata na construção da disciplina de
economia. A predominância contemporânea da teoria do valor
utilidade não significa que o debate em torno deste tema tenha
terminado, mas apenas que em nosso tempo, o ensino de
economia raramente recupera as controvérsias em torno do núcleo
duro de nossa disciplina. A área de economia política, por outro
lado, sempre se preocupa com a questão. E ela é um ponto de
partida segura para os exercícios de história do pensamento
econômico.

O livro de Ajit Sinha, Theories of Value from Adam Smith to


Piero Sraffa, representa um destes exercícios aliados com cautelosa
pesquisa bibliográfica da trajetória intelectual desde a fundação da
economia política clássica em 1776 até a publicação e repercussão
de Produção de Mercadorias por Meio de Mercadorias. De forma
sintética, trata-se de um resumo aprofundado do desenvolvimento
da teoria do valor, em seu aspecto quantitativo, nas principais obras
do quarteto Smith-Ricardo-Marx-Sraffa. É possível ler o livro como um
dos resultados indiretos de Piero Sraffa ao “reabilitar”, como diria
Meek (1961), o ponto de vista clássico. Em adição a isto, trata-se
também de um posicionamento do autor em relação às
controvérsias que emergiram na economia marxista após uma
manobra admirável de Samuelson (1971) ao desviar a atenção dos
economistas das controvérsias de Cambridge para os efeitos de
Produção de Mercadorias por Meio de Mercadorias sobre o Capital
de Marx. Foi isto que fundamentou o desenvolvimento da
polarização entre sraffianos e marxistas em relação à teoria do valor
e o surgimento de um fenômeno estranho ao projeto crítico de Piero
Sraffa: a criação da corrente neoricardiana.

O texto é estruturado com clareza e objetividade: após um


prefácio inspirado na visão de Sraffa de que a perspectiva dos
clássicos foi esquecida despropositamente, quatro capítulos (um
para cada autor em sua respectiva obra prima na área da
Economia Política) antecedem um quinto capítulo final de
reconsideração justamente sobre o paradigma de retorno da
Economia Política Clássica desde o último quarto do século XX..
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
236

O primeiro capítulo começa portanto a investigação sobre a


teoria do valor na Riqueza das Nações de Adam Smith. Sinha
apresenta a obra de Smith com um recorte bem delimitado: sua
busca é sempre direcionada à problemática da questão sobre a
determinação dos preços das mercadorias. O esforço do autor é de
colocar ao público sua interpretação particular da teoria do valor
de Smith. O leitor acompanha a leitura atenta e comentada de
Sinha até identificar o núcleo da questão: a dificuldade de
estabelecer uma medida para o valor e de fundamentar o papel
do trabalho nas relações de troca. A diferença entre a medida em
trabalho e a medida em dinheiro, exposta no quinto capítulo de A
Riqueza das Nações, serve como ponto de partida para Sinha
avançar sobre toda controvérsia em torno do aspecto quantitativo
da teoria do valor trabalho que corre em paralelo com o estudo
sobre a relação entre o sistema de valores e o sistema de preços.
Ele aponta corretamente que Smith reconhecia o problema, ainda
que não de forma muito clara, e que é possível reconhecer já no
fundador da Economia Política indicações experimentais sobre
como resolver a questão.

Ao final deste primeiro capítulo, o autor apresenta outras


interpretações da teoria do valor de Smith que tiveram grande
influência no percurso posterior da Economia Política. Os
contemporâneos de Smith, David Ricardo e os ricardianos, Marx e os
neoclássicos são postos como leitores de Smith no intuito de
diferenciar as correntes que se originam da mesma semente. A
única ressalva aqui decorre da própria abordagem que Sinha dá a
toda problemática do valor: ao apresentar a leitura de Marx sobre
Smith, Sinha restringe a crítica marxista ao aspecto quantitativo da
determinação das relações de troca. Certamente Marx apontou
problemas e indicou caminhos para solucionar o repetido problema
da transformação, mas há um outro aspecto na teoria que só se
encontro nele. O diferencial do estudo de Marx sobre a economia
política burguesa é justamente a de ser a única que indaga sobre a
qualidade do valor, pergunta esta que culmina na busca pela
explicação sobre o porquê da teoria do valor trabalho emergir
apenas na época dos economistas clássicos e não antes.

Esta é a lacuna fundamental da obra que delimita todo eixo


de exposição de Sinha. Por exemplo, o segundo capítulo discute a
teoria do valor nos Princípios de Economia Política de Ricardo. Sinha
defende que a principal preocupação de Ricardo é a de
estabelecer a lei dinâmica que determina a distribuição do produto
entre as diferentes categorias participantes do processo econômico
237 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

e que se referem às remunerações com nomes específicos, como


renda, lucro, salário, etc. Esta perspectiva restringe Ricardo a
abordar apenas o aspecto quantitativo da teoria do valor, de
modo que a Crítica da Economia Política, esmiuçada por Marx nas
primeiras página do Capital, não pode se desenvolver. Dessa forma,
quando Ricardo inicia sua obra justamente com a teoria do valor a
partir da base posta por Adam Smith, Sinha detalha acertadamente
de que se trata da continuação da questão, mas não indica dentro
de quais limites a economia política clássica opera quando trata
das relações de produção e distribuição.

Em outras palavras, toda dificuldade de Ricardo em


encontrar uma medida invariável de valor, assim como em
esclarecer o processo gravitacional que orienta a determinação
quantitativa concreta das relações de troca é contextualizada com
propriedade por Sinha. As primeiras fragilidades da teoria do valor
trabalho e reticências de Ricardo sobre ela são apresentadas com
uma leitura minuciosa dos Princípios, mas uma associação com o
movimento socialista que começa a se apropriar da economia
política não aparece neste capítulo e nem de forma referenciada
no livro. Por conta disso, a questão que Sinha persegue, qual seja:
por que começar com o valor (ou por que adotar a teoria do valor
trabalho)? flutua como uma controvérsia entre economistas-
pensadores descolada da realidade da luta dos trabalhadores
assalariados em se instrumentalizar para compreender o
capitalismo. Este aspecto do livro aqui sob crítica resulta em uma
leitura da contribuição de Marx à teoria do valor muito aquém de
todo o potencial que a Crítica da Economia Política engendra.

A interpretação de Marx sobre a teoria do valor de Ricardo é


apresentada como se Marx tratasse apenas da questão
quantitativa do valor. Assim, Sinha parece se surpreender com a
volatilidade com a qual Marx trata Ricardo, ora aceitando sua
teoria do valor, ora rejeitando o pensamento burguês que ele
representa. Toda a atenção de Sinha é voltada para o problema
da determinação quantitativa das relações de troca entre valores
de uso. Assim, sua leitura aborda todo o problema do valor como se
fosse apenas o problema da transformação dos valores em preços.
O capítulo 3, dedicado ao Capital de Karl Marx dedica-se a exaurir
a apresentação das primeiras páginas do capital dentro desta
perspectiva quantitativa. De fato, é salutar o esforço e
detalhamento com que Sinha contrapõe Marx com Smith e Ricardo
para descobrir a resposta para a pergunta que ronda o livro a todo
instante (porque a medida do valor é feita pelo tempo de
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
238

trabalho?). Sinha descreve com propriedade alguns dos principais


passos na controvérsia do problema quantitativo da transformação
dos valores em preços mas em nenhum momento destaca que
Marx é o único dos autores a explicar a bifurcação do
desenvolvimento da teoria do valor: a mercadoria é a unidade
abstrata original, sendo duplicada em valor de uso e valor. Estas
duas são novamentes duplicadas, em quantidade e qualidade. A
teoria do valor, enquanto tópico da economia política clássica que
se transforma em algo novo dentro do materialismo histórico, deve
explicitar o nexo entre estes quatro entes que concretizam a
categoria mercadoria. Sinha, ao se restringir ao aspecto
quantitativo, certamente contribui para a reconstrução histórica da
teoria do valor, pois este é uma parte importante da problemática
que tem relevância prática enorme para a teoria da planificação
econômica. Mas o componente qualitativo que permite justamente
compreender a relação entre a Economia Política inglesa e o
marxismo é deixado de lado sem que o leitor seja avisado. E o
método dialético obriga o tratamento tanto da quantidade quanto
da qualidade do valor.

O capítulo 4, que apresenta Produção de Mercadorias por


Meio de Mercadorias de Piero Sraffa deixa claro que Sinha tem em
alta estima as sintéticas linhas publicadas em 1960 pelo economista
italiano. O modelo de Sraffa é exposto com certa formalidade para
os leitores acostumados com os textos qualitativos de Smith, Ricardo
e Marx, mas com grande atenção para a explicação didática das
equações representando os setores da economia. Sinha argumenta
que a grande contribuição de Sraffa é ter trazido de volta à ciência
econômica a teoria objetiva do valor. Todo esforço aqui seria o de
contradizer a teoria marginalista do valor, onde as relações de troca
são determinadas a partir do julgamento subjetivo dos agentes em
relação às coisas transacionadas no mercado. A mensuração dos
valores com meios físicos desconectados da avaliação individual
em relação aos valores de uso é o que Sinha julga ser um dos
principais pontos da teoria do valor de Sraffa. Além deste ponto, as
possibilidades de se pensar em um sistema econômico de equilíbrio
em Sraffa são discutidas, o que corrobora nossa leitura de que,
apesar de levantar a questão-chave para entender o avanço de
Marx no desenvolvimento da teoria do valor (por que o tempo de
trabalho é a medida de valor?), Sinha acaba caindo
repetidamente em outra questão (também relevante, é bom
salientar) que lhe toma toda a atenção (por que as mercadorias
possuem estes preços e não outros?).
239 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

O capítulo 5 repete a tese de Sinha de que a recuperação


da perspectiva clássica é positiva para o desenvolvimento da
ciência econômica, mas ao mesmo tempo revela os limites de sua
abordagem. É relevante destacar que a manobra de colocar a
economia política clássica em confronto com a escola neoclássica
contemporânea é extremamente importante porque isto mostra
que a disciplina de economia tem uma história, que ela se
desenvolveu e se modificou ao longo do tempo. Mas é importante
lembrar que esta retomada fica aquém da fronteira cientítica em
economia quando consideramos a existência do socialismo
científico.

Qual é a posição de Sinha em relação à teoria do valor


utilidade? Mesmo não constando explicitamente no livro, podemos
inferir que é a mesma de Sraffa: a de que é uma teoria com erros
lógicos internos e que deve ser substituída pelo ponto de vista “dos
antigos economistas clássicos, de Adam Smith a Ricardo”, que “tem
estado submerso e esquecido desde o advento do método
„marginalista‟” (Sraffa ([1960] 1985), p. 175). Mas como lidar na
prática com a absoluta ignorância do mainstream em relação à
teoria de Sraffa e às inexistentes mudanças nos livros-textos desde o
surgimento e esvaziamento das controvérsias de Cambridge? Não
existiria uma corrente de interpretação e uso da escola originada
nos trabalhos de Menger ([1871] 1950), Jevons ([1871] 1970) e Walras
([[1874] 1954), por exemplo, iniciada por Lange (1935) que estaria
em maior conformidade com o método de Marx e portanto com
maiores chances de encarar a luta de classes refletida na teoria da
economia política? Sobre isso, Sinha nada diz a respeito, o que dá a
impressão ao leitor de que não existe necessidade alguma de
relacionar a teoria do valor clássica, objetiva, com a teoria do valor
neoclássica, subjetiva.

De toda forma, levando em conta o estado atual do ensino


das ciências econômicas no Ocidente, o livro de Sinha é um
excelente guia para estudiosos experientes no campo da Economia
Política e da História do Pensamento Econômico, mas de forma
alguma substitui a leitura e estudo direto das obras de Adam Smith,
David Ricardo, Karl Marx e Piero Sraffa. Para aqueles que, portanto,
ainda não fizeram estas leituras, é recomendável que não se
apóiem no livro de Sinha antes de passar algum tempo na
companhia dos originais destas quatro distintas figuras em Economia
Política que se dedicaram com fervor à construção da teoria do
valor objetiva.
Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
240

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Tiago Camarinha Lopes


Professor da Universidade Federal de Goiás.
Representante para o Brasil da IIPPE (International Initiative for
Promoting Political Economy).
241 Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.

Normas de Publicação:
A REPHE publica textos inéditos referentes às áreas de História
Econômica e Economia Política. Os textos podem ser:

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PRÓXIMA CHAMADA DE TEXTOS: 10 de maio de 2014


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Revista de Economia Política e História Econômica, número 31,Janeiro de 2014.
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